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01/04/2020

Reflexões para médicos veterinários sobre gatos e SARS-CoV-2, agente causal de COVID-19

O manuscrito “Susceptibility of ferrets, cats, dogs, and different domestic animals to


SARS-coronavirus-2” publicado em um site que serve como repositório para textos ainda não
publicados em revistas científicas descreve a inoculação intranasal de uma carga viral alta de
SARS-CoV-2 (agente causal de COVID-19) em um número diminuto de gatos filhotes. Os gatos
infectados experimentalmente estiveram mantidos próximos a outros gatos não infectados, dos
quais foi recuperado o RNA viral de SARS-CoV-2, o que sugeriu-se no artigo como uma
comprovação de que os gatos positivos para SARS-CoV-2 podem infectar outros gatos. Com a
atual disseminação “viral” desse manuscrito, um sinal de alerta foi acionado, impulsionando a
redação dessas reflexões com a finalidade que conclusões precipitadas não sejam tomadas.

Apesar dessa circulação “viral” do manuscrito, observou-se que o mesmo não foi publicado em
nenhuma revista científica. É de conhecimento que todos os artigos científicos antes de serem
publicados, normalmente, passam pela revisão de no mínimo 2 experts da área correlata ao
trabalho.

O que não aconteceu com este trabalho. O desenho experimental é bastante falho, contudo, o
presente texto irá focar nos pontos principais. Não foram apresentados dados laboratoriais que
comprovassem a saúde geral dos gatos utilizados no experimento, assim como o status desses
gatos para as principais viroses felinas que poderiam contribuir para um quadro de
imunossupressão e consequente interferência nos resultados da inoculação experimental.

Os exames realizados (RT-PCR e histologia) para comprovar que estes gatos foram infectados
são insuficientes, seriam necessários o isolamento viral e a imuno-histoquímica para identificar
o agente viral nas lesões teciduais para que o sucesso do experimento fosse realmente
comprovado. Cabe ressaltar que nenhum dos animais apresentou sinal clínico após a inoculação
experimental. Nem ao menos, foi identificada lesão tecidual ou material genético de SARS-CoV-
2 em pulmões, fato que é bastante intrigante já que SARS-CoV-2 causa lesões graves em tecido
pulmonar de humanos.

Um outro viés experimental bastante importante foi a descrição no texto do manuscrito de que
os autores não conseguiram obter swabs nasais dos gatos, por eles estarem muito agressivos.
Sabidamente, o estresse age negativamente na imunidade celular que é essencial na defesa dos
hospedeiros contra as infecções virais. Assim, ressalta-se que cuidados de bem-estar não foram
tomados na condução desse estudo.

Outro relato que se tornou “viral” foi a identificação de SARS-CoV-2 em amostras de um gato
doente na Bélgica. Neste caso, os dados foram apresentados em forma de notícias, portanto
não está bem esclarecida qual foi a metodologia de diagnóstico de SARS-CoV-2 e nem se outros
exames foram realizados para o estabelecimento de um diagnóstico diferencial.

Há recomendações de que os pacientes com suspeita ou confirmados para COVID-19


permaneçam isolados do contato com pets. Tal recomendação é sempre preconizada para
qualquer doença infecciosa emergente, até que informações científicas determinem embasem
a suspensão dessa recomendação.
01/04/2020

Portanto, considerando-se que não há evidências científicas de que os gatos possam em


condições naturais se infectarem e serem uma fonte importante de SARS-CoV-2 para humanos,
assim nós veterinários temos um papel fundamental no combate ao abandono ou ao sacrifício
desses animais, bem como de impedir que informações sem base sólida sejam veiculadas.

Profa. Dra. Aline Santana da Hora

Departamento de Medicina Veterinária Preventiva

Faculdade de Medicina Veterinária

Universidade Federal de Uberlândia

alinedahora@ufu.br

Prof. Dr. Paulo Eduardo Brandão

Departamento de Medicina Veterinária Preventiva e Saúde Animal

Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia

Universidade de São Paulo

paulo7926@usp.br

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