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O
Muro de Berlim caiu há 20 volta discussões antigas sobre o papel À queda do Muro seguiu-se outra que-
anos, mas apenas agora se do Estado numa economia de merca- da igualmente poderosa para o anda-
ouviu o barulho do seu im- do, é um fruto tardio da derrubada do mento do capitalismo nas bases atuais:
pacto real e, ainda que um ícone socialista. “Na verdade, o desa- a das torres gêmeas no 11 de Setembro
símbolo do socialismo, seus parecimento do contrapeso represen- de 2001. “Houve a partir daí um súbito
fragmentos acabaram atin- tado pelo socialismo ajudou a liberar e contínuo reforço do poder do Estado,
gindo, nos últimos meses, as forças originadoras dos excessos sua afirmação crescente perante o mer-
outro “muro”, dessa vez um símbolo financeiros que iriam desencadear o cado e a sociedade civil”, observa.
do capitalismo: Wall Street. Um livro derretimento do sistema especulativo “Um dos corolários da mudança
fundamental para entender todo o dos anos recentes.” àquela época é que a política e a estra-
contexto dessas mudanças é Revolu- O diplomata lembra que em 1990, tégia tinham voltado, como nos tempos
tion 1989: the fall of the soviet empire após o triunfalismo da queda do Muro da guerra, a ganhar total prioridade so-
(Random House, 480 páginas, US$ de Berlim, a única voz sensata foi da bre a economia. Após os atentados, po-
30), de Victor Sebestyen, que acaba de Unctad, que, em seu relatório anual, rém, com a injeção intensa de recursos
ser lançado na Europa e nos Estados previu que aquela década e a seguinte financeiros no sistema pelo Estado, a
Unidos. Aliás, num momento histórico seriam caracterizadas pela frequência, economia melhorou e, amortecidos os
em que os dois fatos se entrecruzam, intensidade e poder destrutivo das primeiros impactos dos atentados, re-
como observou o economista Joseph crises financeiras e monetárias. “Na tomado o vigor da expansão econômica
Stiglitz numa entrevista recente ao jor- raiz do desastre estava a aceleração depois de 2002, criou-se a impressão de
nal espanhol El País, é preciso analisar da tendência para eliminar qualquer que o mercado tinha recuperado sua
que o fim do socialismo, se, por um controle interno e externo ao fluxo autonomia em relação ao domínio da
lado, gerou um entusiasmo geral para desimpedido de capitais. Por essas ra- política”, analisa. Para o professor, ha-
os adeptos do capitalismo, por outro, zões pode-se prever como vai acabar o via uma intensificação de movimento
agora, traz questionamentos impor- século XXI americano: pela desenfrea­ experimentado pelo mercado após a
tantes a respeito do funcionamento do da liberalização financeira e devido ao queda do Muro: “O fim do socialismo
sistema nas últimas décadas.“Quando imoderado gosto da cobiça”, avalia Ri- foi um maremoto político. O vácuo
Stiglitz diz que a crise financeira afetará cupero. “Há muito tempo que o poder ideológico e o desequilíbrio de forças
o fundamentalismo de mercado com em Washington não é dominado mais consequentes tornaram possível aquilo
força devastadora comparável à que pelo complexo militar-industrial, mas que era antes inconcebível: a absoluta
teve a queda do Muro de Berlim sobre pelo financeiro-político-militar. E as- hegemonia dos mercados financeiros e
os destinos do comunismo deixou de sim termina o mundo, como vaticinava os excessos responsáveis pelo colapso
dizer que a ligação dos episódios é mais T.S. Eliot, não com um estrondo, mas atual”. Afinal, o Muro em ruínas coloca-
do que meramente simbólica”, explica com um gemido.” O economista alerta ra conceitos como “esquerda” e “direita”
o economista e diplomata Rubens Ri- para a concentração excessiva das aná- numa posição delicada. “A queda do
cupero, diretor da Faculdade de Eco- lises sobre a crise recente apenas nos Muro e o fim da União Soviética e a
nomia e Administração da Fundação seus aspectos financeiros, com a po- redemocratização geral esvaziaram as
Armando Álvares Penteado (FAAP) e lítica aparecendo às vezes como pano propostas e a energia social da esquer-
ex-secretário-geral da Conferência das de fundo referencial, se falando ainda da. Foram os detergentes de ideologias”,
Nações Unidas para o Comércio e De- menos sobre o processo pelo qual se- como observa o cientista político Leôn-
senvolvimento (Unctad). Segundo ele, tores ligados às finanças conquistaram cio Martins Rodrigues, da Universida-
a atual crise financeira, que trouxe de posições no sistema político americano. de Estadual de Campinas (Unicamp).

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>

Um
POLÍTICA EXTERNA

estrondo
que ainda
ecoa
duas
décadas
depois
Discussão sobre aniversário
da queda do Muro de Berlim
revela o seu impacto
GERARD MALIE/afp

na atual crise mundial

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Queda do Muro de Berlim há 20 anos: entusiasmo gerou crise atual

Ganhou força a “terceira via” pregada continua o diplomata, foi que o papel e pelo Banco Mundial”, analisa. “Nos
por Giddens e praticada por Tony Blair. do Estado passaria a ser cada vez mais Estados Unidos, como resultado, o se-
“Sua ideologia era a mistura de globa- permanente como fator de estabilização tor financeiro saltou de 10% do total
lização com liberalização. Globalização de uma situação econômica de crescen- dos lucros corporativos em 1980 para
entendida como unificação em escala te desequilíbrio interno e externo. 40% em 2006, apesar de gerar apenas
planetária dos mercados, sobretudo pa- “Se a crise de 1929 foi uma crise de 5% dos empregos.” Daí a justa indig-
ra as finanças. Liberalização no sentido mercados, a crise dos anos 1990 foi uma nação de Ricupero com a ausência de
de eliminar tudo o que pudesse limitar crise do Estado. E esta crise do Estado, uma análise política e ideológica da
as oportunidades dos negócios. A fisca- deste ponto de vista, se coloca no plano crise atual, incluindo-se aí um retros-
lização, se acreditava, ficaria por conta de quem é que vai saldar estes créditos pecto histórico que remonta ao fim
da suposta capacidade autorregulatória que os indivíduos têm em relação à cole- do Muro. “Essas transformações todas
dos mercados.” O que não se percebeu, tividade. Um crédito para o qual é preci- não se deram por geração espontânea.
so ter recursos e para os quais um Estado Foram o produto de escolhas políti-
fragilizado, inclusive na sua capacidade cas, da atividade determinante e das
de promover bem-estar social, se coloca decisões do Executivo e do Congresso
> Artigos e livros com clareza”, avalia Celso Lafer, professor americano. Constituíram o resultado
titular do Departamento de Filosofia e da ação política de um Estado a servi-
1. Sebestyen, V. Revolution 1989: the fall
of the soviet empire. Ramdom House, 480
Teoria Geral do Direito da Faculdade de ço de interesses de setores econômicos
páginas, 2009. Direito da Universidade de São Paulo. influentes, em especial o financeiro. A
Ricupero lembra ainda que as manipulação ideológica esforçou-se,
2. Celso Lafer e Gelson Fonseca Jr. crises da década de 1990 (que atingi- no entanto, em fazer crer que a evo-
Questões para a diplomacia no contexto ram México, Argentina, quase todos lução não passava de imposição irre-
internacional das polaridades indefinidas os países asiáticos, em 1997, Rússia e sistível da globalização econômica.”
(notas analíticas e algumas sugestões). In
Fonseca, Gelson e Castro, Sérgio H. N.
Brasil) não serviram como lição para Nikita Krushev, onde quer que esteja,
(orgs.). Temas de política externa II (Brasília/ o sistema. “Longe de se beneficiar de deve estar rindo de ter inventado uma
São Paulo, Funag/Paz e Terra, 1994). alguma tendência inelutável derivada monstruosidade como o Muro, que,
da natureza das coisas, a proliferação mesmo demolido, mostrou-se uma
3. RICUPERO, R. A crise financeira e a financeira foi a política oficial perse- bomba-relógio anticapitalista.
queda do muro de Berlim. Estudos guida e imposta vigorosamente pelo
Avançados. v. 22, n. 64. 2008.
governo americano, pelos criadores do Unificação - “Em paralelo com as mo-
4. Lafer, C. Os novos valores do sistema Consenso de Washington, pela quase dificações que nos EUA reforçavam a
internacional na década de 90. Estratégia. totalidade das organizações e dos ban- convergência entre governo e setor
p. 8-9. 1991. cos internacionais liderados pelo FMI financeiro, o colapso do comunismo

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real e a mudança de rumos na China “nova ordem internacional”, que seria
deram as condições necessárias para a “construção de todos”, movimento


consolidar o modelo em ascensão. O que gera uma revalorização das Na-
primeiro pôs fim à divisão da Alema- ções Unidas, a que, pensava-se, livre
nha, da Europa e do mundo em dois dos entraves que a impediam de fun-
blocos ideológicos e militares incom- cionar plenamente na Guerra Fria, se Houve
patíveis, possibilitando a unificação em seguiria um novo momento em que a
escala planetária dos mercados para as ONU poderia cumprir sua função de um súbito
finanças e para o comércio”, observa instrumento de segurança universal.
Ricupero. “O segundo deu nascimento
ao processo que garantiu 25 anos de Realidade - Após essa euforia, seguiu-
e contínuo
reforço do poder
crescimento acelerado chinês.” se, continuam Lafer e Fonseca, a emer-
“Efetivamente, se não se alterar de gência de forças centrífugas do “segun-
forma radical a correlação de forças, é do pós-Guerra Fria”, iniciado com a
difícil imaginar que o governo ameri- derrocada da URSS e o fim da Iugos- do Estado,
cano aceite um tipo de reforma que lhe lávia. Era o fim da crença no triunfo
reduza o poder de modo substancial. dos valores iluministas universais e o sua afirmação
Assim como o setor financeiro, tempo- ressurgimento de conflitos étnicos, re-
rariamente enfraquecido, não terá outro ligiosos, culturais, que foram um forte perante o
remédio senão aceitar por algum tempo obstáculo à lógica da globalização. “O
a presença intrusiva do Estado”, avalia
Ricupero. A queda do Muro, porém,
Muro de Berlim foi o grande símbolo
da realidade que fez da política inter-
mercado
foi saudada de início como o começo nacional algo contíguo à guerra, tendo
de uma nova e melhor era na relação como critério o antagonismo amigo/
entre os países. “Foi um momento inte- inimigo. Daí o realismo da lógica do Rubens Ricupero
ressante, por reunir líderes em torno de poder da Guerra Fria. A sua queda ge-
uma centro-esquerda preo­cupada com rou expectativas positivas sobre a pos-
valores, bem como com a arquitetura sibilidade de construção de uma ordem
financeira. Essa articulação foi afetada mundial mais pacífica e mais coope-
pelo fim do mandato desses governan- rativa. Isso não se manteve, porque o
tes: Bill Clinton, Schroeder, D’Alema, mundo mudou novamente”, observa
Jospin, Fernando Henrique Cardoso, Lafer. O Muro igualmente movimentou
Tony Blair. Eles tentaram fixar a agenda a política externa brasileira.
pós-Guerra Fria, tomando como marco “A chancelaria brasileira, eu costu-
inaugural desse novo tempo a queda do mava dizer, havia sido pensada tendo

J.F. DIORIO/AG NCIA ESTADO/AE


Muro”, analisa. em vista a relação Leste-Oeste e a re-
“Havia a expectativa de que era lação Norte-Sul como articulada nas
preciso construir uma ordem mun- brechas da primeira. O fim da relação
dial mais kantiana, mais cosmopolita, Leste-Oeste significava que a relação
mais humana. Isso tudo foi colocado Norte-Sul tinha que ser repensada à
em xeque após o 11 de Setembro. Ali o luz não de uma nova conjuntura, mas
mundo mudou.” No artigo “Questões de uma transformação da estrutura de
para a diplomacia no contexto inter- funcionamento do sistema internacio-
nacional das polaridades indefinidas”, nal. Minha reflexão era que o mundo
Lafer e o diplomata Gelson Fonseca Jr. continuava mudando e que estávamos
formulam, a partir do fim do Muro, operando num jogo de forças centrípe-
um diagnóstico do futuro do sistema tas e centrífugas. As primeiras levavam
internacional. Segundo eles, a predo- à globalização e as segundas à fragmen-
minância de forças centrípetas era a tação” nota Lafer. No ruir de uma estru-
característica marcante do primeiro tura edificada escondiam-se problemas
“pós-Guerra Fria, período entre a que- futuros e o fim das utopias, agora as
da do Muro e a guerra do Golfo, entre democráticas. “É a intuição poética de
1990 e 1991. Nesse período, observam, Camões, no início da globalização dos
houve uma análise otimista e mesmo descobrimentos, ao voltar e encontrar
eufórica das transformações interna- a pátria ‘metida no gosto da cobiça e
cionais, apontando para o surgimento na rudeza de uma austera, apagada e
de uma “comunidade internacional”, vil tristeza’”, lembra Ricupero. n
racionalmente orientada pelo mercado
e pela democracia. Volta-se a falar em Carlos Haag

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