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Vol. 56, p. 46-66, jan./jun. 2021. DOI: 10.5380/dma.v56i0.

72908 e-ISSN 2176-9109

Gestão descentralizada de soluções de esgotamento


sanitário no Brasil: aspectos conceituais, normativos e
alternativas tecnológicas

Decentralized management of sewage solutions in Brazil: conceptual,


regulatory aspects and technological alternatives

Tayane Cristiele Rodrigues MESQUITA1, André Pereira ROSA1*, Uende Aparecida Figueiredo GOMES2,
Alisson Carraro BORGES1
1
Universidade Federal de Viçosa (UFV), Viçosa, MG, Brasil.
2
Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Belo Horizonte, MG, Brasil.
*
E-mail de contato: andrerosa@ufv.br

Artigo recebido em 15 de abril de 2020, versão final aceita em 6 de outubro de 2020, publicado em 26 de março de 2021.

RESUMO: Diante da dificuldade de fornecer acesso adequado ao esgotamento sanitário em regiões não atendidas por
sistemas centralizados, a adoção de sistemas descentralizados mostra-se relevante para a superação do déficit.
Sendo assim, buscou-se nesse estudo analisar os aspectos conceituais relativos à utilização de sistemas
descentralizados no país e discutir questões relacionadas à gestão desses sistemas à luz do marco legal e
institucional da área de saneamento. Para tanto, inicialmente, definiram-se os contextos nos quais os sistemas
descentralizados são mais utilizados, a partir de revisão da literatura. Posteriormente, foram avaliadas
alternativas de tratamento utilizadas no saneamento descentralizado. Nesse ponto, foram analisados dados
de estações de tratamento de esgotos (ETEs) em operação no país, disponibilizados pela Agência Nacional
de Águas e Saneamento Básico (ANA). Por fim, foi realizada uma análise documental do marco legal e
institucional que regulamenta o saneamento brasileiro e suas interfaces com a gestão descentralizada de
esgotos. Verificou-se que, no Brasil, as tecnologias descentralizadas mais utilizadas são os reatores UASB e
tanques sépticos seguidos por filtros anaeróbios (TS+FAN). No entanto, a utilização dessas tecnologias, bem
como de outras soluções descentralizadas carece de regulamentação federal que defina a responsabilidade pela
gestão dos sistemas. A nível estadual, apenas dois estados brasileiros possuem regulamentações que definem
tal responsabilidade. Sobre os TS+FAN, três estados, localizados no Sudeste e Sul do país, possuem leis que
normatizam a utilização dessas tecnologias na ausência de redes públicas de coleta. A discussão aponta que
para superar a precariedade e ausência de acesso ao esgotamento sanitário é necessário empreender esforços
na ampliação do atendimento dos serviços, sobretudo em áreas rurais, periurbanas e de difícil acesso ao
sistema centralizado. Neste contexto, a combinação entre sistemas centralizados e descentralizados pode ser

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uma solução adequada para superação do déficit em esgotamento sanitário.

Palavras-chave: sistemas descentralizados; saneamento; tratamento de esgotos.

ABSTRACT: Adoption of decentralized systems is an alternative for sewage treatment even in the face of hardships in regions
not covered by centralized systems. Nevertheless, the discussion on the approach of decentralized systems in
terms of regulatory frameworks is still incipient. Therefore, this study aimed at investigating the decentralized
systems application in Brazil, as well as discussing the management of these systems in the light of legislation.
Firstly, the ideal conditions of decentralized systems were evaluated based on a comprehensive literature
review. Afterwards a documentary analysis of sanitation legislation was carried out beyond its interfaces with
decentralized management. The more indicated technological alternatives were evaluated by using data from
sewage treatment plants (STPs) in Brazil according to the Brazilian National Water and SanitationAgency (ANA).
At last, a document analysis of the legal landmark and its interfaces with decentralized systems management
was carried out. In Brazil it was verified that the most useful decentralized systems were UASB reactors and
septic tanks followed by anaerobic filters (ST+AF), although the responsible for the decentralized systems are
scarcely defined. At the state level in Brazil only two states have guidelines that define responsibilities for the
management of decentralized systems. In addition, only three states located in the regions Southeast and South
have regulations for decentralized systems in locations where sewage collection networks are absent. It could
be concluded that is required more efforts to expand sanitation services especially in rural and periurban areas,
as well as in an area of difficult access. In this context the combination between centralized and decentralized
systems could be a proper alternative to overcome the deficit in sanitation.

Keywords: decentralized systems; sanitation; sewage treatment.

1. Introdução mento apropriado ao esgotamento sanitário o acesso


no qual há coleta de esgotos, seguida de tratamento,
Em 2010, o acesso ao esgotamento sanitário bem como o uso de tanque séptico. De acordo com
foi considerado direito humano pela Organização da o Plansab (2013), apenas 39,4% da população brasi-
Nações Unidas (ONU). No entanto, este direito tem leira têm acesso ao esgotamento sanitário, sendo que,
sido recorrentemente violado, uma vez que existem desse total, 12% referem-se a sistemas declarados
673 milhões de pessoas no mundo ainda praticando como tanques sépticos. Já o Programa Saneamento
a defecação a céu aberto (WHO, 2019). Na América Brasil Rural (PSBR), aprovado em dezembro de 2019
Latina e Caribe, 15,5 milhões de pessoas não têm por meio do Portaria nº 3.174, ampliou o conceito
acesso a banheiros. Nesses locais, pessoas com renda de atendimento apropriado ao esgotamento sanitário,
mais baixa, em áreas rurais e indígenas, são as mais considerando também a utilização de fossa seca, nos
afetadas (WHO, 2019). casos de indisponibilidade hídrica (PSBR, 2019). No
No Brasil, o Plano Nacional de Saneamento entanto, segundo o PSBR (2019), nas áreas rurais
Básico (Plansab), aprovado em novembro de 2013, brasileiras1, o acesso apropriado ao esgotamento
por meio Decreto nº 8.141, caracterizou como atendi- sanitário é de apenas 20,6%.
1
Importante observar que o PSBR apresenta uma definição de rural própria considerando critérios de densidade demográfica e vizinhança. A
partir da metodologia aplicada, tem-se, como resultado, uma população residente em 11.192.096 domicílios particulares permanentes, estimada
para as áreas tipicamente rurais do Brasil, em 2010, igual a 39,91 milhões de habitantes, aproximadamente 21,0% da sua população residente.
De acordo com o Censo Demográfico, em 2010, 29,54 milhões de habitantes brasileiros eram considerados rurais, representando 15,6% do
total (PSBR, 2019).

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A Agência Nacional de Águas (ANA), por restrições de natureza ambiental, social e econômica
meio da publicação do relatório “Atlas Esgotos: na dicotomia centralização/descentralização. Desse
Despoluição de Bacias Hidrográficas” (ANA, modo, segundo os autores, não é concebível aceitar
2017), disponibilizou as informações mais recen- ou recusar uma delas por pressuposição, isto é, sem
tes a respeito do saneamento em sedes municipais a devida avaliação técnica prévia caso a caso. O
urbanas do Brasil. Os resultados apresentados no processo de avaliação e seleção de sistemas cen-
referido relatório indicaram que o déficit nos servi- tralizados ou descentralizados para o tratamento de
ços de coleta e tratamento de esgotos no Brasil tem esgotos em uma localidade envolve diversos fatores,
resultado no lançamento diário de 5.516 t de DBO tais como: a concepção do sistema de tratamento,
nos corpos de água, o que corresponde a 60,6% da nível de tratamento exigido, características da
carga orgânica gerada diariamente e resulta em im- população atendida, custos relativos à construção,
plicações negativas aos usos múltiplos dos recursos operação e manutenção dos sistemas, bem como
hídricos (ANA, 2017). dos custos advindos da reparação e substituição do
A precariedade nos serviços de esgotamento sistema (Massoud et al., 2009).
sanitário é mais acentuada em regiões periurbanas Muitos sistemas descentralizados não forne-
e rurais, caracterizadas por estarem situadas a lon- cem o nível de tratamento apropriado à proteção
gas distâncias das áreas centrais e apresentarem da saúde pública e do ambiente. Isso ocorre em
baixa densidade demográfica. Tais características razão da ausência de programas efetivos de geren-
dificultam a utilização dos sistemas centralizados ciamento, responsáveis por assegurar a inspeção,
de tratamento de esgotos comumente adotados em monitoramento e manutenção regulares dos siste-
regiões urbanas e densamente povoadas (Tonetti mas (Massoud et al., 2009).
et al., 2018). Na União Europeia, os requisitos gerais rela-
Libralato et al. (2012) observam que, para o tivos à instalação, operação e manutenção de pe-
atendimento de regiões dispersas, a utilização de quenas unidades de tratamento de águas residuárias
sistemas descentralizados de tratamento de efluentes são definidos por meio da Norma Europeia 12.566,
tem sido apontada como uma alternativa efetiva, que contempla um conjunto de normas europeias
capaz de aumentar os índices de tratamento de (EN) publicadas entre os anos 2000 e 2016. Nos
esgotos nestas regiões. Isso é possível tendo em Estados Unidos, a Agência de Proteção Ambiental
vista que sistemas descentralizados, usualmente, (USEPA) possui um manual com informações re-
possuem baixo custo de implantação e operação, ferentes ao uso de sistemas de tratamento de águas
baixo requisito de energia/área, além de simplici- residuárias no local (onsite) (USEPA, 2005). Em
dade operacional (Massoud et al., 2009). países em desenvolvimento, ainda é verificada
De acordo com Libralato et al. (2012), o debate grande dificuldade para a manutenção dos sistemas
internacional evidenciou a existência de diversas descentralizados implementados. Para Cookey et al.

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(2016), parte das falhas verificadas nesses países Dentre os estudos existentes sobre essa te-
pode estar associada à ausência de regulamentações mática, destaca-se o trabalho de Paffrath & Freira
ou à existência de regulamentações pouco claras. (2019) que compararam a utilização de sistemas
No Brasil, a ausência de normatização e de centralizados e descentralizados, em um município
uma clara definição legal da responsabilidade de brasileiro. Outros autores, tais como Machado et
gestão de sistemas descentralizados tende a criar al. (2017), Cruz et al. (2018) e Cruz et al. (2019)
setores descobertos e prejudica a implementação avaliaram questões associadas ao desempenho
bem-sucedida de tais sistemas. Importante obser- individual de sistemas de tratamento aplicados ao
var que com a aprovação da Lei 14.026/2020, foi contexto descentralizado. No âmbito internacional,
incluído o seguinte parágrafo na Lei 11.445/2007, Libralato et al. (2012) apresentaram um panorama
que estabelece a Política Nacional do Saneamento do papel da centralização e descentralização no
Básico: nas Zonas Especiais de Interesse Social gerenciamento de águas residuárias.
(Zeis) ou outras áreas do perímetro urbano ocu- Contudo, não são verificados estudos que
padas predominantemente por população de baixa realizaram uma avaliação das questões associadas
renda, o serviço público de esgotamento sanitário, à utilização de sistemas descentralizados nas dife-
realizado diretamente pelo titular ou por concessio- rentes regiões brasileiras, tampouco que utilizaram
nário, inclui conjuntos sanitários para as residências dados atuais do cenário do saneamento brasileiro
e solução para a destinação de efluentes, quando como o Atlas esgotos (ANA, 2017) e o PSBR (2019)
inexistentes, assegurada compatibilidade com as para uma avaliação atual do saneamento descentra-
diretrizes da política municipal de regularização lizado no Brasil.
fundiária. Como trata-se de uma alteração recente, Diante das lacunas, buscou-se por meio des-
ainda não é possível analisar os impactos da alte- se estudo analisar aspectos relativos à utilização
ração do marco legal. de sistemas descentralizados e discutir questões
Adicionalmente, estudos que abordam a dico- relacionadas às tecnologias utilizadas e à gestão
tomia centralização/descentralização no contexto desses sistemas à luz da legislação vigente, a fim
brasileiro são escassos. A ausência de estudos que de identificar potenciais e limitações para o uso da
contemplam soluções descentralizadas de trata- técnica.
mento de esgotos pode estar associada ao estigma
vinculado aos sistemas descentralizados. Segundo 2. Fundamentação teórica
Tonetti et al. (2018), os sistemas descentralizados
são, por vezes, considerados inferiores às soluções
O processo de avaliação e seleção de um
centralizadas adotadas em grandes centros urbanos
sistema de tratamento de esgoto mais apropriado
e sinônimos de precariedade e subdesenvolvimento.
para uma localidade envolve diversos fatores, tais
No entanto, tal percepção não considera que solu-
como: características da população atendida e custos
ções descentralizadas podem ser mais adequadas
relativos à construção, operação e manutenção dos
em determinados contextos.
sistemas (Massoud et al., 2009). Além disso, é de

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fundamental importância a avaliação do sistema mento, a economia é o critério mais importante na
de gestão de efluentes mais apropriado para cada tomada de decisão (Massoud et al., 2009).
contexto. Os sistemas existentes para o tratamento
de esgotos sanitários, basicamente, incluem duas 2.2. Sistemas descentralizados
abordagens: centralizadas e descentralizadas, con-
forme descrito a seguir (Tonetti et al., 2018).
Os sistemas de gerenciamento descentralizado
são definidos como aqueles cuja coleta, tratamento
2.1. Sistemas centralizados e disposição/reutilização de esgotos são realizadas
próximas à fonte de geração. A abordagem descen-
Os sistemas centralizados têm sido empregados
tralizada comumente compreende sistemas locais ou
no tratamento de efluentes oriundos de regiões urba-
em cluster (Libralato et al., 2012; USEPA, 2005)
nizadas e com elevada densidade populacional. Tais
(Figura 1).
sistemas, comumente, são de propriedade pública e
Os sistemas locais caracterizam-se por realizar
realizam a coleta de grandes volumes de águas re-
o tratamento de efluentes gerados em residências
siduárias que são tratadas e descartadas distantes da
unifamiliares. Tais sistemas podem ser aplicados
fonte de geração (Libralato et al., 2012). Em função
com ou sem separação de efluentes. Essa prática,
da elevada distância entre os pontos de geração e
difundida no continente europeu, é adotada em vir-
de tratamento dos efluentes em modelos de gestão
tude da possibilidade de recuperação dos recursos
centralizada, a maior parte dos custos advindos dessa
potenciais advindos dos esgotos domésticos. No
concepção está associada à implantação de redes
Brasil, usualmente, os efluentes são tratados sem
coletoras de esgotos. Segundo Zaharia (2017), tais
separação prévia em sistemas locais de tratamento
custos representam mais de 60% do orçamento total
de esgotos (Massoud et al., 2009; Oliveira Júnior,
requerido para a implantação dos sistemas.
2013).
Os sistemas centralizados são amplamente
Os sistemas de tratamento comunitários (clus-
utilizados por serem considerados uma alternativa
ters), por sua vez, realizam o tratamento de efluen-
consolidada para o tratamento eficaz de esgotos. No
tes de um grupo de edificações em área próxima
entanto, os custos de implantação de uma malha de
do ponto de geração (USEPA, 2005). Não há na
coleta e transporte dos esgotos de regiões periurbanas
literatura uma definição clara do número máximo
até as ETEs centralizadas, por vezes, tornam essa
de habitantes que uma ETE descentralizada em
alternativa inviável em tais regiões (Oliveira Júnior,
cluster pode atender. No entanto, Massoud et al.
2013). O menor número de beneficiários nessas áreas
(2009) citam que tais sistemas servem mais do que
ocasiona perdas de economias de escala e de den-
um agregado familiar, podendo atender até núme-
sidade, acarretando maiores custos com a provisão
ros superiores a cem residências. Reymond et al.
dos serviços de esgotamento sanitário (Eggimann et
(2018), por sua vez, citam que esses sistemas de
al., 2016). Tal fato resulta em um elevado número
tratamento de pequena escala atendem a populações
de pessoas sem acesso aos serviços de esgotamento
de até 5.000 habitantes.
sanitário, uma vez que, em países em desenvolvi-

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FIGURA 1 – Representação de sistemas descentralizados locais e em clusters.
FONTE: Adaptada de Asano et al. (2007).

No Brasil, o enquadramento das ETEs des- de unidades de tratamento descentralizadas em


centralizadas tem sido, comumente, realizado em pequenas comunidades, comparativamente às alter-
conformidade com a legislação CONAMA nº nativas centralizadas, resulta em menores custos de
377/2006, que dispõe sobre a classificação dos sis- implantação e operação (Eggimann et al., 2016; Jung
temas em função de seus portes. Segundo a referida et al., 2018). No entanto, para que os sistemas descen-
legislação, são consideradas de pequeno porte ETEs tralizados sejam efetivos na diminuição do potencial
projetadas para atender vazões de até 50 L s-1 ou com poluidor dos esgotos sanitários, é necessário que seja
capacidade para atendimento de população igual ou implementado um programa de gestão rigoroso, que
inferior a 30.000 habitantes. No entanto, segundo garanta a inspeção regular e a manutenção apropriada
Orth (2007), não há uma relação direta entre ETEs dos sistemas (Massoud et al., 2009).
descentralizadas e ETEs de pequeno porte. Segundo Ademais, em sistemas descentralizados, o
o autor, a classificação de uma ETE como descen- reúso não potável das águas residuárias tratadas
tralizada está relacionada a uma questão de escala, é fortemente encorajado, sempre que possível e
por exemplo, da comparação da população atendida apropriado (Libralato et al., 2012) explicam que, na
pelo sistema descentralizado com a população total abordagem descentralizada, a utilização de sistemas
de um município. em pequena escala facilita a reutilização dos efluentes
A abordagem descentralizada para o tratamento no local, representando economia para as residências
de águas residuárias é citada como uma solução para atendidas. Um estudo realizado por Morato et al.
a problemática do esgotamento sanitário em comuni- (2019), visando estimar a redução de consumo de
dades rurais e periurbanas, as quais não são servidas água com o reúso de água cinza, indicou que haveria
pelo sistema de esgotamento sanitário centralizado uma economia de água potável de cerca de 28% no
(Santos, 2019). Estudos indicam que a implantação consumo total de uma residência.

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Os benefícios do reúso de água em edificações fim, a atualização da Lei nº 11.445/2007 determina
que utilizam sistemas descentralizados também são que edificações para uso não residencial ou condo-
descritos na literatura internacional, tais como em mínios, desde que autorizados pelo órgão gestor
Opher & Friedler (2016) e Yerri & Piratla (2019). competente, poderão utilizar fontes e métodos alter-
No entanto, no Brasil, a experiência de reúso de nativos de abastecimento de água, incluindo o reúso.
efluentes provenientes de ETEs descentralizadas Adicionalmente, nos estados de Minas Gerais,
ou oriundos de águas de lavagem das edificações São Paulo e Ceará, o reúso de água não potável foi
ainda é incipiente. objeto de regulamentação por meio da Deliberação
A ausência de uma definição clara dos padrões Normativa nº 65/2020, Resolução Conjunta SES/
de reúso não potável tem sido apontada como um SMA/SSRH nº 01/2017 e Lei nº 16.033/2016, res-
dos fatores responsáveis pela restrita adoção da pectivamente.
referida técnica. Desse modo, Fiori et al. (2006)
destacam que, para a ampliação do reúso de água 3. Método de pesquisa
no Brasil, cabe aos órgãos competentes institucio-
nalizar, regulamentar e promover a prática no país.
Para estruturar essa revisão foram abordados
Nesse sentido, a Lei nº 14.026/2020 atualizou
os principais aspectos relativos à utilização de siste-
o marco legal do saneamento básico e alterou a Lei
mas centralizados e descentralizados no tratamento
nº 9.984/2000, estabelecendo que caberá à ANA
de esgotos sanitários. Em um primeiro momento,
estabelecer normas de referência sobre reúso dos
a partir do levantamento das características dos
efluentes sanitários tratados, em conformidade com
referidos sistemas, e da consulta à literatura técnica
as normas ambientais e de saúde pública. A Lei nº
relacionada ao tema, fez-se a inferência de conjuntu-
14.026/2020 realizou, ainda, alterações na Lei nº
ras as quais a adoção dos sistemas descentralizados
11.445/2007, que passou a conter menções ao reúso
é mais conveniente. Em seguida, foi realizada uma
de efluentes sanitários.
avaliação acerca dos aspectos legais relativos à utili-
Na versão atual da Lei nº 11.445/2007, o fo-
zação de sistemas descentralizados de tratamento de
mento ao reúso de efluentes sanitários é considerado
esgotos no Brasil. Por fim, o estudo das principais
um dos princípios fundamentais da prestação de
alternativas de tratamento utilizadas no saneamento
serviços públicos de saneamento básico. No con-
descentralizado foi conduzido, tendo como foco
ceito de esgotamento sanitário também foi realizada
os sistemas mais utilizados na realidade brasileira.
a inclusão de atividades relativas à destinação final
dos esgotos sanitários para produção de água de
reúso. O reúso da água também foi mencionado 3.1. Sistemas centralizados e
em relação aos contratos de prestação dos serviços descentralizados de tratamento de esgotos
públicos de saneamento básico, que deverão conter
metas do reúso de efluentes e possíveis fontes de A base metodológica para a execução desse
receitas alternativas, incluindo, o uso de efluentes estudo consistiu em um levantamento bibliográfico
sanitários para a produção de água de reúso. Por utilizando-se a plataforma de busca do Portal de pe-

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riódicos da CAPES. Após a identificação da base de O método utilizado para a obtenção das infor-
dados a ser consultada, foram definidas as palavras- mações consistiu em uma análise documental das
-chave a serem utilizadas na busca, sendo elas “De- diretrizes que normatizam o saneamento brasileiro.
centralized wastewater management”, “Centralized A avaliação foi realizada abrangendo as regulamen-
wastewater management” e “Decentralization”. tações federais e estaduais existentes relativas ao
Foram analisados, predominantemente, periódicos tema, utilizando-se as bases de consulta de legislação
cuja classificação pelo sistema Qualis Periódicos da do Governo Federal (Brasil, 2019). Em um primeiro
CAPES variava entre A1, A2 e B1. Após a busca, momento, foram avaliadas as legislações que faziam
foram selecionados 36 artigos que abordavam o menção ao saneamento de modo geral, realizando-
uso de sistemas centralizados e descentralizados. -se a busca no portal por meio das palavras-chave
A seleção dos artigos baseou-se na existência, em “saneamento”, “esgoto” e “esgotamento”. Após a
seus conteúdos, de informações referentes às defi- seleção das legislações, foi realizada uma avaliação
nições e características de tais sistemas, bem como individual dos documentos buscando-se menções ao
de vantagens e desvantagens associadas ao uso de saneamento descentralizado, por meio de soluções
cada um deles. Adicionalmente, foram avaliados individuais ou em clusters. Nesse ponto, também
livros e manuais internacionais publicados pela foi verificada a existência de menções à atribuição
Agência de Proteção Ambiental dos Estados Unidos da responsabilidade pela implantação e gestão dos
(USEPA) e International Water Association (IWA) sistemas descentralizados em locais não atendidos
e livros nacionais, tendo em vista a necessidade de pelas redes públicas de coleta.
obtenção de informações a respeito das origens e A consulta das legislações vigentes foi realizada
das características dos sistemas descentralizados respeitando-se a hierarquia legal, com a avaliação
utilizados no Brasil. Após a realização do levanta- das diretrizes constitucionais e, em seguida, das
mento bibliográfico, as informações obtidas foram infraconstitucionais (leis, decretos, atos normativos,
compiladas e relacionadas baseando-se nos diferen- portarias e resoluções). Como critério de avaliação
tes enfoques dados pelos autores. das legislações, somente documentos em vigência
no ano de 2019 foram avaliados.
3.2. Avaliação dos aspectos legais na
utilização de sistemas descentralizados no 3.3. Avaliação das alternativas de tratamento
Brasil utilizadas no saneamento descentralizado

A fim de identificar as limitações e potenciais Uma investigação das principais alternativas


no aparato legal existente no Brasil, o conceito e tecnológicas para o tratamento descentralizado
a utilização do saneamento descentralizado foram de esgotos foi conduzida, dando ênfase àquelas
avaliados à luz da legislação vigente. A análise foi citadas como mais utilizadas no país e às soluções
conduzida, individualmente, para sistemas indivi- individuais de tratamento recomendadas na NBR
duais e coletivos. 13.969/1997 e no PSBR (2019).

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A fim de verificar a representatividade das • Quando a população está localizada em regi-
alternativas tecnológicas levantadas no setor de ões rurais, periurbanas ou de baixa densidade
saneamento brasileiro, foi realizada uma consulta demográfica;
aos dados de ETEs em operação no país, disponi- • Quando a comunidade, condomínio ou con-
bilizados pela Agência Nacional de Águas e Sanea- junto habitacional está localizada distante de
mento Básico (ANA, 2017). Nessa etapa, tendo em um sistema de coleta e tratamento de esgotos
vista a ampla utilização de tanques sépticos e filtros já existente;
anaeróbios (TS+FAN) no país, foi realizada uma • Quando existem oportunidades e demandas
avaliação da existência de leis nos estados brasileiros locais de reúso de água;
referentes à utilização de tais sistemas. A avaliação • Quando os sistemas centralizados existentes
das legislações com referência aos sistemas TS+FAN não possuem capacidade de atender toda a
ocorreu de modo similar à citada no tópico anterior, população e os recursos para expansão são
com a realização de buscas no portal de pesquisa de limitados.
legislação do Governo Federal (Brasil, 2019).
Adicionalmente, os sistemas descentralizados
4. Resultados e discussão são indicados para o atendimento de comunidades
isoladas situadas em territórios especiais, tais como
A avaliação dos estudos que envolvem a aná- unidades de conservação, territórios quilombolas,
lise de sistemas centralizados e descentralizados terras indígenas e demais territórios habitados por
em diferentes contextos possibilita a identificação populações tradicionais. De acordo com Tonetti et al.
de vantagens e desvantagens desses sistemas. Um (2018), tais territórios possuem especificidades que
resumo das principais vantagens e limitações, consi- os diferenciam dos núcleos atendidos por sistemas
derando questões sociais, econômicas e ambientais centralizados de saneamento, desse modo, requerem
é apresentado na Tabela 1. abordagens diferentes para a implantação e operação
Sobre os custos, os estudos indicam que em dos seus sistemas de saneamento.
sistemas centralizados, os maiores custos são ge- Santos (2019) cita que, em regiões metropoli-
rados pelo sistema de coleta e, inversamente, em tanas, os sistemas descentralizados têm sido a opção
sistemas descentralizados, a maior parte do investi- preferencial para o atendimento de zonas periféricas,
mento necessário é direcionado para a implantação vilas, conjuntos habitacionais distantes e áreas de
da tecnologia de tratamento (Libralato et al., 2012). baixa renda, que se caracterizam como sistemas iso-
Diante das vantagens e desvantagens descritas lados não interligados aos sistemas centralizados de
dos sistemas centralizados e descentralizados e a maior porte. Contudo, o autor ressalta que excessos
partir dos critérios definidos por Asano et al. (2007), de descentralização podem resultar na existência
pode-se inferir algumas situações as quais a adoção de muitos microssistemas pulverizados, o que pode
de sistemas descentralizados é mais indicada: multiplicar as demandas de manejo e gestão.

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TABELA 1 – Principais vantagens e desvantagens associadas à utilização de sistemas de tratamento de esgotos centralizados e descentralizados.
Sistemas centralizados
Vantagens Desvantagens
Economias de escala em áreas densamente povoadas Baixo atendimento às populações periurbanas e rurais
Elevada aceitação social Alto custo de implantação
Regulamentação consolidada Operação e manutenção normalmente complexas
Grande volume de efluente descartado pode resultar em
Múltiplos níveis de qualidade de água possíveis
eutrofização
Normalmente possui unidades para processamento da fase sólida Forte dependência do fornecimento de energia elétrica
Deseconomias de escala são possíveis no atendimento de
Variações de vazão e carga são absorvidas pelas extensas redes coletoras
longas distâncias
Necessidade de renovação do sistema de coleta a cada
Tratamento em níveis seguros para a saúde pública e do corpo receptor
50-60 anos
Sistemas descentralizados
Vantagens Desvantagens
Manutenção inapropriada deixa o sistema altamente
Atende áreas periurbanas, rurais e de baixa densidade populacional
exposto a falhas
Redução de custos com transporte de esgoto Eficácia do sistema depende de programa de gestão intenso
Requisitos simples de operação e manutenção Ausência de regulamentação consolidada
Instalação e gerenciamento de diversos sistemas podem ser
Potencial reutilização de águas residuárias tratadas
difíceis
Usualmente não possui unidade de processamento da fase
Utilização de sistemas com baixa demanda energética
sólida
Possibilidade de construção gradativa do sistema (evita capacidade ociosa) Ampla variação de vazão e carga poluente no esgoto
Promove o retorno das águas residuárias tratadas dentro da bacia de origem

Tratamento em níveis seguros para a saúde pública e do corpo receptor

Distribui o risco de falha  a múltiplos subsistemas e são pouco influenciados


por desastres naturais

FONTE: Libralato et al. (2012); Massoud et al. (2009); Santos (2019); Tchobanoglous et al. (2004); Tonetti et al. (2018).

Por outro lado, regiões com elevada densidade Desse modo, percebe-se que a abordagem
populacional ou elevado nível de urbanização, onde descentralizada não está em contraste com a cen-
são permitidos ganhos em escala, favorecem o uso de tralizada. A descentralização é uma alternativa
sistemas centralizados. No entanto, quando existem para integrar os sistemas convencionais existentes.
elevadas densidades populacionais em áreas periur- Orth (2007) observa que ambas configurações de
banas localizadas a grandes distâncias dos sistemas sistemas são aplicáveis em diferentes situações,
centralizados, essa economia de escala desaparece, cabendo aos gestores do setor a decisão do siste-
exigindo elevado investimento (Subtil et al., 2016). ma que melhor se aplica aos diferentes contextos.
Assim, verifica-se que a definição do sistema ideal

55 MESQUITA, T. C. R. et al. Gestão descentralizada de soluções de esgotamento sanitário no Brasil...


a ser implementado em uma área está vinculada a As linhas gerais, instituídas na Constituição
uma profunda análise das características regionais, Federal, delinearam o desenvolvimento das di-
da avaliação das instalações já existentes e de de- retrizes infraconstitucionais para o saneamento
mandas específicas da população atendida. existentes atualmente no Brasil. Destas, a Política
Tonetti et al. (2018) ressaltam que é funda- Federal de Saneamento Básico (PFSB), com dire-
mental que sejam adotadas estratégias diversas, trizes instituídas pela Lei Federal 11.445/2007, é
que considerem as peculiaridades locais e regionais considerada a mais importante na conjuntura na-
e respeitem a diversidade cultural e ambiental das cional do saneamento básico. A referida Lei, dentre
comunidades. Desse modo, não há uma solução suas atribuições, estabelece os princípios para a
única que possa ser aplicada a todas as situações. provisão do saneamento e determina a elaboração
Propostas apropriadas consistem em adotar a do Plano Nacional de Saneamento Básico (Plansab).
coexistência de diversos níveis de centralização e Por meio do Decreto Federal 7.217/2010, a regula-
descentralização, explorando as potencialidades que mentação da PFSB foi efetivada. Adicionalmente,
cada sistema oferece. A abordagem descentralizada, o referido Decreto apresentou complementações
por exemplo, mostra-se muito aplicável no caso de às disposições da Lei 11.445/2007 ao definir como
grandes blocos, tais como hospitais, centros comer- obrigatória a utilização dos serviços públicos de
ciais e aeroportos. Por outro lado, em áreas urbanas saneamento e ao sujeitar a execução dos planos e
densamente povoadas e historicamente servidas projetos de saneamento ao licenciamento ambiental.
por sistemas centralizados, a descentralização não Segundo dados do Plansab, a maior parcela
representa uma alternativa viável (Libralato et al., do déficit de saneamento básico no Brasil é ve-
2012). rificada em áreas rurais e periferias urbanas. Em
função disso, o plano manifestou a necessidade de
4.1. Sistemas descentralizados e aspectos elaboração de um programa de saneamento rural
legais que contemple essa população. Neste contexto,
foi aprovado, em dezembro de 2019, o Programa
Saneamento Brasil Rural (PSBR), sob coordenação
A Constituição Federal brasileira, promulgada
do Ministério da Saúde.
no ano de 1988, estabelece que a saúde e o meio
As informações contidas no PSBR revelaram
ambiente equilibrado são direitos fundamentais
que apenas 20,6% da população residente em áreas
de todo cidadão. Segundo Freeman et al. (2017),
rurais brasileiras possuem atendimento apropriado
o saneamento deficiente resulta na incidência de
ao esgotamento sanitário, sendo os piores índices
diversas doenças e, desse modo, apresenta relação
verificados em aglomerações isoladas menos aden-
direta com as questões de saúde pública. Diante
sadas e em locais sem aglomerações. Ademais, a
disso, verifica-se que na ausência de condições
discussão do atendimento descentralizado, com a
sanitárias apropriadas, o direito à saúde e ao meio
provisão destes serviços em regiões dispersas, é
ambiente equilibrado, previstos constitucionalmen-
recente na legislação federal. A Lei nº 14.026/2020,
te, não pode ser efetivado.
que atualizou o marco legal do saneamento básico

Desenvolv. Meio Ambiente, v. 56, p. 46-66, jan./jun. 2021. 56


e alterou a Lei nº 11.445/2007, estabeleceu que é os serviços (...)”. O Decreto nº 7.217/2010, por sua
facultado à entidade reguladora prever hipóteses em vez, cita que serão considerados serviços públicos
que o prestador de serviços de saneamento poderá “a fossa séptica e outras soluções individuais de
utilizar métodos alternativos e descentralizados esgotamento sanitário, quando se atribua ao Poder
para os serviços de coleta e tratamento de esgoto Público a responsabilidade por sua operação, nos
em áreas rurais, remotas ou em núcleos urbanos termos de norma específica”. A falta de clareza
informais consolidados. quanto às atribuições faz com que o gerador e o poder
No nível estadual, ainda que de modo inci- público, por vezes, não assumam a responsabilidade
piente, são verificadas legislações que dispõem de pelo manejo de resíduos dos sistemas, o que resulta
diretrizes a respeito da utilização de sistemas de em falhas operacionais.
tratamento de esgotos em áreas não atendidas pelos Nas Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIS)
serviços públicos, cujos detalhes serão abordados e demais áreas do perímetro urbano ocupadas
nos tópicos seguintes. predominantemente por população de baixa
renda, a Lei nº 14.026/2020, que atualizou a Lei
4.1.1. Sistemas locais nº 11.445/2007, atribui as ações de esgotamento
sanitário ao serviço público, que deve incluir con-
A Lei Federal nº 11.445/2007 determina que, na juntos sanitários para as residências e solução para
ausência de redes públicas de saneamento, soluções a destinação de efluentes, quando inexistentes. Tal
individuais de afastamento e tratamento de esgotos proposição não especifica se a utilização, quando
são admitidas. No Brasil, os sistemas descentrali- necessária, de sistemas alternativos de esgotamento
zados locais (ou individuais) comumente utilizam sanitário pelo serviço público deverá ser realizada por
tanques sépticos (TS) como opção de tratamento, meio de sistemas individuais ou coletivos.
com disposição final nos solos, sumidouros ou corpos Além dos entraves relacionados à responsabi-
hídricos (Oliveira Júnior, 2013). Segundo o mesmo lidade pela manutenção dos sistemas individuais, o
autor, tais sistemas, em função de uma inapropriada destino do lodo proveniente de tais unidades também
rotina de descarte de sólidos, por vezes, não apre- constitui um problema. Segundo Andreoli (2009), o
sentam efluentes com a qualidade necessária para lodo é um passivo, assim, historicamente, há uma
proteção dos cursos de água e da saúde pública. A grande resistência do poder público e da população
falta de manutenção em tais unidades, pode estar em assumir a responsabilidade por sua gestão.
associada à ausência de uma regulamentação espe- De acordo com o Decreto nº 7.217/2010, consi-
cífica, que defina com clareza as responsabilidades dera-se serviço público de esgotamento sanitário “a
sobre a manutenção dos sistemas e a disposição final disposição final dos esgotos sanitários e dos lodos
dos resíduos (ANA, 2017). originários da operação de unidades de tratamento
A Lei Federal 11.445/2007 determina que coletivas ou individuais, inclusive fossas sépticas”.
“não constitui serviço público a ação de saneamento A Lei nº 14.026/2020 incluiu, ainda, que a disposi-
executada por meio de soluções individuais, desde ção deverá ser realizada de forma ambientalmente
que o usuário não dependa de terceiros para operar apropriada.

57 MESQUITA, T. C. R. et al. Gestão descentralizada de soluções de esgotamento sanitário no Brasil...


Atualmente, verifica-se que a gestão do lodo ge- após coleta, apresentando mecanismos de controle e
rado em sistemas individuais no país divide-se entre fiscalização dos caminhões “limpa-fossa”.
o poder público, por meio das prefeituras municipais, A utilização de dispositivos de rastreamento
e empresas privadas que oferecem esse serviço. nos caminhões que realizam o esgotamento de
Algumas dessas empresas não são licenciadas e, tanques sépticos é considerada uma alternativa para
muitas vezes, não fornecem uma apropriada desti- fiscalização do correto descarte do lodo coletado.
nação ao material recolhido (Andrade et al., 2017). Andreoli (2009) cita que os sistemas de informa-
A inapropriada destinação do material coletado em ção geográfica (SIG) são importantes ferramentas
tanques sépticos pode resultar na contaminação dos para fiscalização e monitoramento de atividades
corpos hídricos e representar riscos à saúde pública relativas à gestão do lodo de tanques sépticos. O
e ao ambiente. Por esse motivo, a gestão apropriada autor menciona, ainda, a necessidade de obtenção
do lodo proveniente de tanques sépticos é uma ne- de informações prévias acerca das atividades de
cessidade crítica coleta e transporte de lodo podendo, para isso, serem
Nos Estados Unidos, a gestão do lodo oriundo instalados equipamentos de GPS nos caminhões
de sistemas individuais é realizada baseando-se nas “limpa-fossa”, que facilitarão o acompanhamento
recomendações de tecnologias para o tratamento e de suas rotas. Os estados do Amazonas (Resolu-
descarte do lodo da Agência de Proteção Ambiental ção CEMAN nº 27/2017), Santa Catarina (Lei nº
(USEPA, 1999). Contudo, em países em desenvolvi- 17.082/2017) e Rio de Janeiro (Lei nº 17.082/2017)
mento, tais como Brasil, Índia (Prasad & Ray, 2019) são pioneiros na criação de leis que determinam a
e Camboja (Frenoux & Tsitsikalis, 2015), o descarte utilização dessa tecnologia.
e o tratamento do lodo séptico ainda são problemas
de primeira ordem. 4.1.2. Sistemas em clusters
No Brasil, apenas o estado de Santa Catarina
possui legislação que define as responsabilidades
De acordo com as disposições da Resolução
pelos sistemas individuais de tratamento (Tabela
CONAMA nº 430/2011, a implantação de sistemas
2). Nos estados do Rio de Janeiro e Amazonas são
de tratamento de esgotos em locais como condo-
verificadas leis que possuem foco no destino do lodo
TABELA 2 – Regulamentações referentes à gestão do lodo em sistemas descentralizados em estados brasileiros.
Esfera estadual
Estado Legislação Enfoque
Resolução CE- Regulamenta a obrigatoriedade da instalação de sistema de rastreamento via satélite nos
Amazonas
MAN nº 27/2017 veículos prestadores de serviços de coleta de resíduos doméstico/sanitários.
Determina que os veículos responsáveis pela limpeza de tanques sépticos devem ser equipa-
Rio de Janeiro Lei nº 6.862/2014
dos com rastreador.
Santa Catarina Lei nº 17.082/2017 Obriga os caminhões limpa fossa a instalarem dispositivo de geoposicionamento.
Define que a instalação, funcionamento e manutenção de sistemas individuais ficarão a
Santa Catarina Lei nº 17.492/2018
cargo do proprietário em todo o estado.

Desenvolv. Meio Ambiente, v. 56, p. 46-66, jan./jun. 2021. 58


mínios, conjuntos habitacionais e pequenas comu- vez, por meio da Lei nº 9.550/2012, foi determinado
nidades, requer autorização do órgão ambiental que edifícios que possuem mais de três andares
competente, o qual cabe a função de classificar o e condomínios que contém mais de 10 unidades
empreendimento quanto ao seu potencial poluidor devem ter, obrigatoriamente, pequenas ETEs. A
e, a partir disso, definir os requisitos necessários referida Lei estabelece ainda que a operação e a
para o licenciamento ambiental, quando necessário. manutenção das ETEs poderão ser realizadas pelo
Assim como em sistemas centralizados, ETEs órgão responsável no âmbito do estado. Conforme
descentralizadas devem atender aos requisitos dis- indicado nos exemplos anteriores, soluções de
postos em legislação, referentes a normas de projeto tratamento de esgotos em nível comunitário são
e atendimento aos padrões de lançamento de efluen- passíveis de implementação pública, podendo ser
tes em corpos hídricos. No Brasil, tais padrões estão incentivadas e controladas pelos operadores dos
dispostos na Resolução CONAMA nº 430/2011. sistemas em locais onde a implantação de redes
Em suas diretrizes, a Resolução estabelece que os públicas de coleta é inviável (Larsen et al., 2013).
responsáveis por fontes poluidoras devem realizar Segundo Tchobanoglous et al. (2004), a im-
o automonitoramento dos efluentes lançados em plantação de ETEs descentralizadas só deve ser
corpos hídricos, sendo dispensadas fontes de baixo permitida mediante a designação de uma agência
potencial poluidor. pública ou privada para realizar inspeções e ma-
Para a implantação de um grupo de domicí- nutenções necessárias. A proposição de Tchoba-
lios em áreas não atendidas por serviços públicos noglous et al. (2004), tem se mostrado efetiva em
de esgotamento sanitário, cabe ao empreendedor a países que a adotaram. Langergraber et al. (2018)
busca pela solução técnica mais apropriada para a explicam que, na Áustria, as autoridades locais
coleta e tratamento dos esgotos gerados. O mesmo solicitam que os proprietários de ETEs possuam
procedimento deve ser realizado para a implan- contrato de manutenção com uma empresa espe-
tação de moradias de interesse social, conforme cializada ou que os proprietários realizem um curso
estabelecido na Lei nº 11.977/2009 e na Resolução de formação de operadores de pequenas ETEs,
CONAMA nº 412/2009. oferecido pelo poder público.
Após a implantação das ETEs descentraliza- A implementação das medidas descritas por
das, a responsabilidade pela operação e manuten- Tchobanoglous et al. (2004) e Langergraber et al.
ção dos sistemas de tratamento não é definida em (2018) na elaboração de projetos de ETEs des-
regulamentações a nível federal. Contudo, alguns centralizadas no Brasil poderia atuar como uma
estados definem a responsabilidade pela manuten- ferramenta auxiliar na gestão dos recursos hídri-
ção e operação desses sistemas após a construção. cos. Tal suposição baseia-se no fato de que ETEs
Em Santa Catarina, a Lei nº 17.492/2018 determina descentralizadas, quando submetidas a operação e
que, havendo a necessidade de implantação de ETEs manutenção frequentes, são capazes de fornecer
descentralizadas, fica a cargo da concessionária de efluentes com qualidade compatível com a exigida
saneamento a operação, manutenção e exploração na legislação ambiental vigente (Mesquita et al.,
comercial da ETE. No estado do Maranhão, por sua 2019).

59 MESQUITA, T. C. R. et al. Gestão descentralizada de soluções de esgotamento sanitário no Brasil...


Garrido et al. (2016) também apontam os Segundo os autores, isso ocorre em função de no
desafios de gestão de sistemas de saneamento meio rural brasileiro predominar o uso de sistemas
instalados em áreas rurais. Segundo os autores, individuais (tanque sépticos), não havendo tradição
tais regiões, normalmente, não são atendidas pelas de operação coletiva desse serviço.
companhias estaduais de saneamento e, por vezes, Por fim, independente do modelo de gestão
são deixadas em segundo plano pelos departamen- dos serviços de saneamento adotado em áreas
tos ou autarquias municipais. Em consequência rurais, é fundamental a avaliação da alternativa
disso, a implantação dos sistemas de saneamento de menor esforço institucional e menor custo de
é feita pela própria comunidade, comumente, sem implementação, operação e manutenção, a fim de
qualquer apoio técnico. Os autores ressaltam que, assegurar que o modelo seja sustentável no longo
em alguns casos, há o auxílio de programas de prazo e apropriado a cada realidade local ou regional
desenvolvimento por meio de investimentos nos (Garrido et al., 2016).
sistemas que, posteriormente, passam a ser geren-
ciados pela própria comunidade. Contudo, sabe-se 4.2. Alternativas tecnológicas para sistemas
que, com a ausência de acompanhamento técnico, a descentralizados
infraestrutura implementada pode não ser utilizada
corretamente ou ser perdida em razão da ausência
O uso de sistemas de baixa demanda energética
de manutenção.
e simplicidade operacional em sistemas descentra-
Considerando tal vácuo institucional, alguns
lizados tem se destacado em função da facilidade
estados do Brasil adotaram modelos de gestão
operacional e economia nos custos em países como
multicomunitários, que tem como objetivo garantir
Colômbia, Brasil e Índia. De modo geral, as tecnolo-
a operação e manutenção de sistemas de água e
gias de tratamento utilizadas em sistemas descentra-
esgoto, em áreas rurais. De acordo com Garrido
lizados devem ter baixa exigência de manutenção e
et al. (2016), neste modelo, a gestão é realizada
serem capazes de absorver as oscilações de vazão e
de maneira comum para diversas comunidades
concentração dos efluentes ao longo do dia (Massoud
dentro de uma abrangência geográfica regional.
et al., 2009). Adicionalmente, segundo os mesmos
Os autores citam como exemplo dos modelos de
autores, a seleção da tecnologia de tratamento a ser
gestão multicomunitários, a Central das Associa-
utilizada depende das características socioeconômi-
ções Comunitárias para Manutenção de Sistemas
cas da região e das normas vigentes. Tecnologias
de Abastecimento de Água e Esgotos Sanitários
com alta eficiência e menor investimento global
(CENTRAL), na Bahia, e o Sistema Integrado de
destacam-se como soluções mais viáveis em países
Saneamento Rural (SISAR), no Ceará e no Piauí.
em desenvolvimento.
Contudo, os autores ressaltam que em uma amostra
Diversas opções de tecnologias para o trata-
de modelos multicomunitários avaliados em sete
mento de esgotos em sistemas descentralizados são
estados brasileiros, a operação do serviço de esgoto
apontadas na literatura, tais como wetlands cons-
pelos prestadores mostrou-se restrita, possuindo
truídos, reatores UASB, lodos ativados, lagoas de
maior ênfase na gestão do abastecimento de água.

Desenvolv. Meio Ambiente, v. 56, p. 46-66, jan./jun. 2021. 60


estabilização, filtros anaeróbios e filtros de areias Diversas alternativas tecnológicas de pós tra-
(Santos, 2019). Os sistemas indicados, têm sido tamento de efluentes de TS são indicadas na NBR
utilizados de modo combinado com tanques sépticos 13.969 (ABNT, 1997). Tais tecnologias apresentam
(TS) (Massoud et al., 2009). O TS é a tecnologia de diferenças em termos de eficiência, custos, deman-
tratamento mais amplamente utilizada no saneamento da de área, manutenção e operação. Desse modo,
descentralizado em diversos países. Nos Estados Uni- a seleção da alternativa apropriada para cada local
dos, estima-se que cerca de 20 a 25% dos domicílios deve basear-se na avaliação criteriosa de cada um
são atendidos por tal sistema (Lin et al., 2017). Na desses fatores. Na Tabela 3 são dispostas algumas
Austrália, por sua vez, o saneamento rural é realizado características dos sistemas citados.
por meio de TS, que atendem a uma população de Avaliando-se a Tabela 3 e levando-se em
cerca 180.000 habitantes (Buchanan et al., 2018). consideração os requisitos desejáveis para sistemas
No Brasil, embora não haja uma política de descentralizados (operação e manutenção simples e
gestão do saneamento descentralizado, o uso de baixo custo operacional), os filtros anaeróbios, valas
sistemas adotados mundialmente no tratamento des- de infiltração e lagoa com plantas se destacam. Con-
centralizado de esgotos é comum. Segundo Oliveira tudo, no banco de dados obtido junto à ANA (2017),
Júnior (2013), sistemas individuais de tratamento de referente às ETEs em operação no Brasil, não consta
esgoto doméstico foram implementados no Brasil a presença de ETEs que utilizam valas de infiltração
inicialmente por meio da instalação de TS e tanques ou lagoa com plantas como sistemas de tratamento.
Imhoff em locais desprovidos de coleta e transporte A ausência dos referidos sistemas no banco de dados
de esgotos. Posteriormente, tecnologias de tratamen- avaliado pode estar relacionada à maior demanda de
to como filtros anaeróbios e reatores UASB foram área requerida para sua instalação, o que, por vezes,
adotadas, a fim de melhorar a qualidade do efluente limita a sua aplicação em áreas urbanas. Adicio-
tratado e, ao mesmo tempo, manter a característica nalmente, as informações oriundas da ANA (2017)
de baixo custo operacional desejada para sistemas abrangem, exclusivamente, soluções utilizadas em
descentralizados. sedes urbanas, não sendo avaliadas aquelas adota-

TABELA 3 – Características de alternativas de pós tratamento de efluentes de tanques sépticos.


Alternativa de tratamento
Característica Lagoa com
Filtro anaeróbio Filtro aeróbio Filtro de areia Vala de infiltração Lodos ativados
plantas
Eficiência DBO (%)¹ 70-90 95 85 80 83-93 90
Eficiência Ssed (%)2 >70 >90 >90 >90 >90 >90
Área necessária Reduzida Reduzida Média Média Média Média
Operação Simples Simples Simples Simples Complexa Simples
Custo operacional Baixo Alto Médio Baixo Alto Baixo
Manutenção Simples Simples Simples Simples Complexa Simples

NOTA: ¹Eficiências consideradas em conjunto com o tanque séptico. ²Ssed: sólidos sedimentáveis

61 MESQUITA, T. C. R. et al. Gestão descentralizada de soluções de esgotamento sanitário no Brasil...


das em áreas rurais, cuja disponibilidade de áreas é, locais com limitada área disponível, tais como
comumente, maior. condomínios residenciais.
Na Figura 2 são indicados os sistemas de tra- Os reatores UASB, embora não estejam pre-
tamento utilizados em pequenas ETEs (população ≤ sentes entre as alternativas de tratamentos citadas
2.000 habitantes), inventariadas pela ANA (2017). pela ABNT (1997), representam cerca de 40% das
Verifica-se uma menor participação dos sistemas pequenas ETEs inventariadas. A ampla utilização
constituídos por lodos ativados. Segundo Oliveira de tais sistemas no saneamento descentralizado
Júnior (2013), a ausência desses sistemas em ETEs ocorreu em função da busca por soluções capazes
de pequeno porte está associada à necessidade de de substituir os TS, a fim de produzir um efluente de
utilização de sistemas de aeração e de maior inter- melhor qualidade, mantendo os custos operacionais
venção operacional, o que resulta em elevado custo baixos (Oliveira Júnior, 2013). No entanto, sabe-se
de operação com energia elétrica e necessidade de que os reatores UASB, quando comparados aos TS,
contratação de operadores. demandam maior frequência de práticas operacio-
As lagoas de estabilização são o terceiro siste- nais, como a remoção do lodo de excesso. Desse
ma mais utilizado nas ETEs brasileiras de pequeno modo, para sua implantação a nível comunitário,
porte. De acordo com Chernicharo et al. (2018), faz-se necessária a existência de um operador ca-
um dos motivos para a aplicação de lagoas em pacitado para realizar as operações necessárias para
instalações de pequeno porte, é a menor demanda o seu bom funcionamento.
operacional que está, majoritariamente, associada O segundo sistema mais utilizado, corres-
às operações de limpeza da área. Contudo, assim pondendo a cerca de 31% das ETEs em operação
como descrito para as valas de infiltração e lagoas de pequeno porte, é constituído por tanques sép-
com plantas, as lagoas de estabilização possuem ticos seguidos por filtros anaeróbios (TS+FAN).
alto requisito de área para sua implantação, o que A disseminação da utilização conjunta de tanques
pode ser um fator limitante para sua utilização em sépticos e filtros anaeróbios no país é atribuída,
além do custo reduzido, à simplicidade de dimen-

FIGURA 2 – Sistemas de tratamento utilizados no Brasil em função do porte das ETEs.

Desenvolv. Meio Ambiente, v. 56, p. 46-66, jan./jun. 2021. 62


sionamento e construção. A partir da publicação da ção; wetlands; fertirrigação; rampa de escoamento;
NBR 7.229/1993 e NBR 13.996/1997, os sistemas infiltração rápida; filtro de areia; e filtro biológico.
TS+FAN foram difundidos no país, sobretudo em Vale ressaltar que a utilização conjunta das referidas
sistemas descentralizados de tratamento. Isso ocor- alternativas de tratamento foi indicada em diferentes
reu em função das referidas normas apresentarem arranjos passíveis de serem utilizados em função
informações de maneira concisa a respeito do proje- das condições locais.
to, construção e operação de tais unidades (Subtil et Para os sistemas individuais, por sua vez, fo-
al., 2016). Em alguns estados brasileiros é definida ram incluídas alternativas tecnológicas com e sem
a utilização de TS+FAN como opção de tratamento veiculação hídrica das excretas, a saber: fossa seca;
de esgotos, na ausência de redes públicas (Tabela 4). tanque de evapotranspiração; sumidouro; fossa
absorventes; tanque séptico; vala de infiltração;
TABELA 4 – Regulamentações estaduais referentes à utilização de
sistemas TS+FAN. wetland; filtro anaeróbio; filtro de areia; círculo de
Esfera estadual bananeira; e fertirrigação subsuperficial. De maneira
Estado Regulamentação semelhante à citada para os sistemas coletivos, as
Espírito Santo Lei nº 7.499/2003 alternativas apresentadas para os sistemas individu-
Minas Gerais¹ Lei nº 10.793/1992 ais foram indicadas em diversos arranjos passíveis
Santa Catarina Lei nº 17.492/2018 de utilização nas áreas rurais brasileiras.
¹ Aplicável para sistemas localizados em bacias de mananciais de
abastecimento.
5. Considerações finais
No que se refere ao PSBR (2019), as alternati-
vas tecnológicas, para os sistemas descentralizados O cenário atual do saneamento no Brasil apon-
de esgotamento sanitário, foram estabelecidas le- ta que, para atingir a universalização do saneamento,
vando em consideração a disponibilidade de água é necessário empreender esforços na ampliação do
encanada no domicílio, bem como a profundidade atendimento dos serviços de esgotamento sanitário,
do lençol freático dos solos que, eventualmente, sobretudo, em áreas rurais e de difícil acesso à rede
receberão esgotos. Desse modo, foram incluídas coletiva de coleta.
no PSBR alternativas tecnológicas com e sem Ao se avaliar os aspectos conceituais das
veiculação hídrica, além de alternativas que possi- abordagens centralizadas e descentralizadas para
bilitam o aproveitamento de compostos orgânicos o tratamento de esgotos, verifica-se que a atuação
produzidos. de sistemas descentralizados na matriz tecnológica
No tocante aos sistemas coletivos de trata- do setor pode contribuir para o aumento dos índices
mento, foram definidas alternativas que demandam de atendimento nas áreas anteriormente citadas.
disponibilidade hídrica suficiente para o transporte No entanto, para garantir que tais sistemas atuem
dos efluentes até o local de tratamento, tais como: de maneira efetiva na proteção da saúde pública
tanque séptico; reator UASB; reator anaeróbio com- e do ambiente, diversos desafios ainda devem ser
partimentado; filtro anaeróbio; lagoas de estabiliza- superados.

63 MESQUITA, T. C. R. et al. Gestão descentralizada de soluções de esgotamento sanitário no Brasil...


Foi verificado que o Brasil carece de regula- senvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq)
mentação que defina, de maneira clara, as responsa- (processo nº 131819 / 2017-8).
bilidades pela manutenção e operação dos sistemas
descentralizados. Apenas os estados do Maranhão Referências
e Santa Catarina possuem regulamentações que
definem as responsabilidades pela gestão dos sis- ANA – Agência Nacional das Águas. Atlas esgotos: despo-
temas descentralizados instalados. Também foram luição de bacias hidrográficas. Brasília: ANA, 2017.
verificadas leis em vigência nos estados do Amazo- ABNT – Associação Brasileira de Normas Técnicas. NBR
nas, Rio de Janeiro e Santa Catarina relacionadas à 13969: Tanques sépticos – Unidades de tratamento com-
plementar disposição final dos efluentes líquidos – Projeto,
gestão de sistemas descentralizados, contudo, estas
construção e operação. Rio de Janeiro: ABNT, 1997.
possuem foco no controle e fiscalização do destino
Andrade, C. F.; Von Sperling, M.; Manjate, E. S. Treat-
do lodo gerado nos sistemas. Verificou-se, ainda,
ment of septic tank sludge in a vertical flow constructed
que entre as alternativas tecnológicas utilizadas em wetland system. Engenharia Agrícola Jaboticabal, 37(4),
ETEs de pequeno porte no Brasil, os TS+FAN e os 811–819, 2017. doi: 10.1590/1809-4430-eng.agric.
reatores UASB apresentam destaque. Três estados v37n4p811-819/2017
brasileiros, localizados no Sudeste e Sul, possuem Andreoli, C. V. Lodo de fossa e tanque séptico: caracteri-
leis que determinam a utilização de TS+FAN na zação, tecnologias de tratamento, gerenciamento e destino
ausência de redes coletivas de coleta. final. Rio de Janeiro: ABES, 2009.
Por fim, verifica-se que a adoção de sistemas Asano, T.; Burton, F. L.; Leverenz, H. L.; Tsuchihashi, R.;
descentralizados, como solução de esgotamento Tchobanoglous, G. Water Reuse: Issues, Technologies, and
Applications. New York: McGraw Hill, 2007.
sanitário, pode ter maior sustentabilidade econô-
mica e social em algumas áreas no país. Contudo, Brasil. Portal da legislação – governo federal, 2019. Dis-
a apropriação tecnológica não deve ser entendida ponível em: <http://www4.planalto.gov.br/legislacao>.
Acesso em: jan. 2019.
como ausência de operação e manutenção. De
maneira oposta, os sistemas simplificados e des- Buchanan, N. A.; Young, P.; Cromar, N. J.; Fallow, H. J.
Performance of a high rate algal pond treating septic tank
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