Você está na página 1de 13

Capítulo 32.

Saneamento: direito humano, justiça ambiental e promoção da saúde

Patrícia Campos Borja, Luiz Roberto Santos Moraes e Cezarina Maria Nobre Souza

A abordagem interdisciplinar e integrada

No final do século XIX, as reformas sanitárias nas cidades, não só na Europa como também
nos Estados Unidos, influenciaram na redução da mortalidade, notadamente a infantil,
contribuindo para o aumento da esperança de vida, evidenciando a relação do saneamento e
a saúde (TAMBELLINI; MIRANDA, 2012). A permanência das condições sanitárias e de saúde
nos países da periferia capitalista e a discrepância dos indicadores sociais entre os países do
Norte e do Sul, permitem constatar que há uma determinação social da salubridade e que os
males da falta de saneamento são os males da contradição do capitalismo que não pode
prescindir da exploração do trabalho e da natureza.
A partir da contribuição relevante dos autores do campo da teoria crítica para o
entendimento do processo saúde-doença, no final do conturbado e inovador anos 60, passa
a ocorrer uma importante inflexão no campo da ciência, não só pela crítica ao racionalismo,
mas também ao papel da ciência e a sua pretensa neutralidade. Esse cenário, aliado à
ampliação da problemática ambiental, influencia na revisão do paradigma científico
predominante. A visão disciplinar e a explicação reducionista dos fenômenos, fez emergir
novas práticas e abordagens como a visão sistêmica, a noção da complexidade, a incerteza,
a valorização do diálogo de saberes e do saber ancestral. Os estudos que incorporam a
dimensão subjetiva da realidade e as técnicas qualitativas ganham visibilidade e maior
aceitação e as ciências sociais se legitimam com seus recursos teórico-conceituais e
metodológicos próprios. Em vez das partes, o “todo”, a interdependência, a interrelação, a
visão multi, inter e transdisciplinar. Para Ludwig von Bertalanffy e sua Teoria Geral do Sistema
“o todo é maior que a soma das partes”.
Esse cenário vai repercutir em todas as disciplinas e também no campo da saúde,
saneamento e ambiente. Há um esforço de construção de objetos de estudo que dialoguem
com a complexidade da realidade, tem-se buscado uma abordagem mais integrada e a
participação dos sujeitos no processo do conhecimento sobre suas realidades. Para
Andreazzi, Barcellos e Hacon (2007, p.212), há a:
Necessidade de uma abordagem integrada entre as partes e o todo, entre o lugar
e o seu contexto globalizado, devendo ser entendido o binômio saúde/doença
como um processo coletivo, recuperando o “lugar” (definido como uma conjunção
de fatores históricos, sociais e ambientais que produzem no espaço geográfico
contextos particulares dos problemas de saúde) como espaço organizado para
análise e intervenção.

O campo do saneamento no Brasil foi influenciado por esse movimento de revisão


paradigmática. Nos anos 80 o conceito de saneamento passa a ser tratado em termos de
saneamento básico e saneamento ambiental. Supera-se não só a visão estritamente higienista
e sanitarista, mas também a abordagem do saneamento como apenas o abastecimento de
água e o esgotamento sanitário, incorpora-se a dimensão ambiental. A perspectiva tecnicista
e elitista herdada da engenharia convencional passa a ser questionada e a participação social
e as tecnologias apropriadas são inseridas nas práticas e em legislações.
O conceito de saneamento básico é melhor estabelecido como sendo o abastecimento de
água em quantidade e qualidade para o consumo humano; a destinação adequada dos excretas
humanos/esgotos sanitários; o manejo de águas pluviais; o manejo de resíduos sólidos e
disposição ambientalmente adequada de rejeitos; o controle ambiental de vetores e
reservatórios de doenças transmissíveis; a educação sanitária e ambiental.
A definição clássica de saneamento básico estabelece que este é “o conjunto de medidas que
visam a modificar as condições do meio ambiente, com a finalidade de prevenir doenças e
promover a saúde” (MENEZES, 1984, p. 26). A Organização Mundial da Saúde define o
saneamento como o controle de todos os fatores do meio físico do homem, que exercem ou
podem exercer efeitos deletérios sobre seu bem-estar físico, mental e social, ficando clara a sua
relação com o ambiente e com a proteção e promoção da saúde (MORAES, 2003). O
saneamento ambiental, inclui o saneamento básico e a disciplina sanitária do uso e ocupação do
solo, a prevenção e o controle da qualidade do ar e do excesso de ruídos e a melhoria das
condições de moradia. Já a salubridade ambiental é entendida como o estado de qualidade
ambiental para prevenir doenças relacionadas ao ambiente e promover as condições ecológicas
favoráveis ao pleno gozo da saúde e do bem-estar das populações urbanas e rurais.
Uma influência importante da área da saúde, especialmente dos debates sobre a promoção
da saúde nos anos 80, relaciona-se à noção dos direitos sociais, da universalidade e igualdade
e da responsabilidade do Estado na promoção de direitos. Assim, a salubridade ambiental passa
a ser considerada um direito e dever de todos e obrigação do Estado. Para tanto, a salubridade
deve ser assegurada por políticas públicas e sociais; deve ter prioridade econômico-financeira;
envolver o uso de tecnologias apropriadas/sociais; dispor de eficiência administrativa, gerencial,
técnica, operacional na prestação dos serviços; garantir a participação social, de forma a
universalizar o acesso às populações urbanas e aos povos do campo, da floresta e das águas.

O saneamento como promoção da saúde

Um novo paradigma para a explicação do processo saúde-doença começa a emergir a


partir dos anos 1970, levando em conta a crescente complexidade das sociedades, bem como
dos problemas ambientais e de saúde. Tal paradigma se apresenta como sendo a Promoção
da Saúde, abrangendo o aspecto da sustentabilidade. Nesse processo, pouco a pouco, o foco
se desloca da doença para a qualidade de vida (BUSS, 2000). Um novo ponto de vista sobre
os conhecimentos e saberes, ações e práticas em saúde começa a tomar corpo.
Relativamente ao saneamento, uma contribuição conceitual foi introduzida por Souza (2007),
ao fazer a distinção entre o saneamento preventivista e o saneamento lastreado no ideário da
Promoção da Saúde: o primeiro como barreira entre os humanos e o ambiente para evitar
doenças; o segundo como parte da mediação entre ambos (intervenções e interações), com
a finalidade de propiciar e contribuir para o desenvolvimento de condições saudáveis de vida:
segurança alimentar e nutricional; habitação saudável; saúde (por meio da prevenção,
proteção e promoção da saúde); qualidade de vida, conforto e bem-estar; recuperação e
proteção ambiental; sustentabilidade em todas as dimensões; manutenção dos serviços dos
ecossistemas; educação; renda; justiça social e equidade (SOUZA et al., 2015).
Nessa perspectiva, as ações e práticas de saneamento podem ser compreendidas não
como dissociadas dos contextos socioculturais e ambientais em que se realizam. Ao contrário,
visam a transformar esses contextos, por meio de políticas públicas saudáveis, contribuindo
para a dignidade humana, que possibilita o pleno gozo de outros direitos (COSTA, 2009).
Isso significa que as ações de saneamento, orientadas pelo ideário da Promoção da
Saúde, são voltadas para a promoção da saúde pública e ambiental, sem, contudo,
desconsiderar as ações e práticas preventivas. Essas, ainda necessárias para problemas
específicos de doenças que atingem determinados grupos da população expostos a fontes de
degradação ambiental em comunidades, municípios, estados ou mesmo países.
Considerando o saneamento promocional para a promoção da saúde, as intervenções e
interações têm sua relação com o ambiente permeada pelo fluxo da vida em sociedade, que
se reflete sobre a qualidade de vida. Essas intervenções e interações se efetivam não apenas
mediante a implantação e instalação de sistemas físicos e a prestação de serviços, mas
também a partir de ações permeadas por diversas dimensões das condições de vida em que
se dão as práticas de produção e reprodução dos processos socioculturais.
Definem o saneamento como Promoção da Saúde três dimensões fundamentais e
articuladas entre si: a sociocultural, a tecnológica e a de gestão (SOUZA et al., 2015). Caso
uma delas não esteja devidamente estruturada, o todo estará comprometido e não será
alcançada a sustentabilidade, o que potencializa situações de vulnerabilidade sanitária e
ambiental.
A dimensão sociocultural envolve temas e ações como educação, desigualdades,
equidade e eliminação da pobreza; preservação da diversidade cultural; direitos humanos,
segurança das pessoas e o grau em que as necessidades humanas básicas são atendidas.
Destaca-se, aqui, o reconhecimento dos usuários dos serviços como sujeitos empoderados,
o que constitui pré-requisito para a promoção da saúde e a sustentabilidade.
A dimensão tecnológica dá suporte às medidas estruturais a partir da identificação das
soluções, de natureza coletiva ou individual, para o abastecimento de água, o esgotamento
sanitário, o manejo das águas pluviais e o manejo dos resíduos sólido. Tais soluções são
materializadas por meio de obras de engenharia e da aplicação de tecnologias sociais que
abrangem desde produtos até processos de baixo custo, fácil aplicabilidade e replicabilidade
e que, tendo como ponto de partida os problemas das comunidades, buscam promover
inovação e diálogo de saberes (técnicos e populares), enfatizando a cidadania, a participação
democrática e a autonomia dos sujeitos, contribuindo para a transformação social.
A dimensão da gestão envolve as soluções estabelecidas por meio de um conjunto de
procedimentos e processos administrativos voltados para a implementação das políticas
propostas pelo Poder Público. Inclui as articulações intersetoriais e uma estrutura institucional
capaz de gerenciar as ações de saneamento de forma integrada às demais áreas ligadas à
saúde, ao ambiente e outras que, no processo de desenvolvimento, impactam o ambiente,
comprometendo a qualidade de vida e as condições de saúde pública e ambiental.
Souza e Freitas (2006), fazem a distinção entre saneamento preventivista e promocional, e
criticam o modelo da tríade ecológica (agente causador, hospedeiro e ambiente) de explicação
da causalidade da doença, que restringe a concepção de ambiente à dimensão física-natural. Os
autores propõem a incorporação da perspectiva promocional nas práticas de saneamento,
situando-o em uma abordagem multidimensional (Quadro 1).

Quadro 1 – Diferenças conceituais entre saneamento preventivista e promocional


Saneamento como promoção Saneamento como prevenção
Intervenção de natureza multidimensional no Intervenção de engenharia que ocorre no
ambiente voltada para a saúde. Ação que parte ambiente considerando como espaço físico,
do entendimento de ambiente como espaço voltada para obstaculizar a transmissão de
dinâmico e multidimensional (composto por doenças e assegurar a salubridade ambiental.
uma dimensão física ou natural, mas também Ação que compreende a saúde como ausência de
abrangendo as dimensões social, econômica, doenças, trabalhando para o impedimento às suas
política e cultural), cujos desequilíbrios geram manifestações.
as doenças e da percepção de saúde como
uma multidimensionalidade; mais do que
ausência de doença; qualidade de vida;
erradicação da doença pelo combate integral às
causas e determinantes.
Fonte: Souza e Freitas (2006).

Para Souza et al. (2015, p. 21),


No saneamento orientado para a promoção da saúde, as intervenções e
interações têm sua relação com o ambiente permeada pelo fluxo da vida em
sociedade, que remete a qualidade de vida. E esta se efetiva não apenas
mediante sistemas – componentes físicos – e serviços, mas também mediante
ações permeadas por diversas dimensões das condições de vida em que se dão
as práticas de produção e reprodução dos processos socioculturais. Três
dimensões são fundamentais para o saneamento em perspectiva ampliada: a
sociocultural, a tecnológica e a gestão.

Assim, o saneamento para além de se constituir em uma obra física voltada para interrupção
de rotas de enfermidades, é incorporado ao campo sociopolítico, já que, na sua
multidimensionalidade, alcança diversas dimensões da vida dos sujeitos sociais, como a redução
da pobreza e das iniquidades dela derivadas.
Os objetivos finais do saneamento promocional podem ser extremamente inviabilizados em
decorrência do quadro atual do sanamento no Brasil, tendo em vista a política privatista do
governo central. Em um estudo sobre a privatização da Companhia de Saneamento do Pará,
Figueiredo e Bandeira (2018) buscaram identificar as percepções de diferentes sujeitos sociais
a respeito: desde o simples cidadão usuário dos serviços, passando por outros usuários que
apresentavam especificidades, tais como, ser profissional da Companhia, ser empresário,
ser sindicalista, ser membro da academia científica, fechando-se a amostra com um não
usuário. Foram predominantes as percepções de que: 1) com a privatização, haveria
aumento tarifário (usuário, profissional, pesquisador e não usuário compartilham esta
percepção); 2) sem a privatização, perduraria a condição de sucateamento da Companhia
(compartilhada pelo usuário e pelo não usuário, que também antevê a possibilidade de piora
dessa situação); 3) a privatização era vantajosa para o governo (compartilhada pelo
profissional, pelo sindicalista e pelo não usuário) e desvantajosa para a população
(compartilhada pelo usuário, pelo sindicalista, pelo pesquisador e pelo não usuário).
A perspectiva do saneamento promocional impõe o reconhecimento do caráter público
dessa ação em face da sua essencialidade à vida, o que inclusive tem levado a diversos
municípios em todo o mundo a retomarem das mãos privadas a prestação dos serviços,
visando garantir o atendimento à todos, com qualidade e preços módicos.

O saneamento na perspectiva multidimensional e a determinação social da insalubridade

O saneamento promocional implica em um deslocamento conceitual do sanitarismo


instrumental para o saneamento multidimensional; saneamento como um direito social e não
apenas como uma obra física e sim social. Migra-se de uma concepção de infraestrutura das
cidades, para a do direito, o que afasta, inevitavelmente, o saneamento como uma mercadoria,
elevando-o a uma importante medida de justiça socioambiental. Assim, o saneamento se
constitui em uma meta coletiva diante de sua essencialidade à vida humana
e à proteção ambiental, o que evidencia o seu caráter público e o dever do
Estado na sua promoção, constituindo-se, fundamentalmente, como um
direito social integrante de políticas públicas e sociais (BORJA, 2004, p. 83).

Diversos estudos têm destacado os benefícios do saneamento para além da saúde na


perspectiva da ausência de doença. No caso do abastecimento de água têm sido indicados os
benefícios na poupança de tempo na busca pela água, a privacidade, a comodidade, a posição
social, a emancipação da mulher; no esgotamento sanitário, a segurança das mulheres e crianças
que correm riscos ao buscar fora de casa locais para defecar, a conveniência, a dignidade e o
estatuto social (ENSINK; CAIRNCROSS, 2012; CAIRNCROSS; VALDMANIS, 2006). Para os
autores “a ausência de instalações hidrossanitárias prediais na escola tem afetado a inscrição e
desempenho das meninas, que deixam a escola em maior proporção que os meninos, em
especial durante o ano de sua primeira menstruação, se não dispõe de instalações sanitárias
apropriadas” (ENSINK; CAIRNCROSS, 2012, p. 14, tradução livre).
A Organização Mundial da Saúde tem evidenciado os diversos benefícios, tanto econômicos
como sociais, do abastecimento de água e do esgotamento sanitário, a exemplo da diminuição
das enfermidades e mortes por doenças diarreicas; melhorias indiretas como o enfrentamento da
desnutrição; a disponibilidade de tempo resultantes das facilidades e proximidades dos serviços.
O esgotamento sanitário evita gastos com a saúde, diminui a demanda por serviços de saúde,
além de reduzir a perda de tempo produtivo devido às enfermidades e do decrescimento da
mortalidade prematura (WHO, 2012). O estudo revelou que o retorno econômico dos gastos com
esgotamento sanitário seria de US$5,50/US$ investido e do abastecimento de água US$2,00,
considerando os 136 países estudados. O retorno dos gastos com esgotamento sanitário e
abastecimento de água com a universalização seria de US$4,30/US$ investido (Figura 1).

Figura 1 - Razão do custo-benefício das intervenções para alcançar o acesso universal à água potável e
ao esgotamento sanitário, por região (2010)
6,00 5,20 5,30 4,50
5,00 4,20 4,30
4,00 3,30
2,60 2,70 2,90
3,00 2,00
2,00
1,00
-
E Ásia
N África

W Ásia

World
CCA

SSA

LAC

SE Ásia
S Ásia

Oceania

Fonte: WHO (2012).

A economia de tempo gerada pelo esgotamento sanitário é responsável por mais de 70% dos
benefícios totais em todas as regiões, enquanto os benefícios com cuidados à saúde variam entre
5% e 13%. Na África Subsaariana e no sul da Ásia, o maior benefício envolve as vidas salvas. Já
os benefícios com o abastecimento de água chegam a quase 70% em termos de economia de
tempo. Economia com serviços de saúde respondem a mais de 10% do benefício total em todas
as regiões, chegando a 25% na Ásia Oriental (Figuras 2 e 3).
Figura 2 - Benefícios econômicos do esgotamento Figura 3 - Benefícios econômicos do
sanitário com o cumprimento das Metas do abastecimento de água com o cumprimento das
Desenvolvimento do Milénio Metas do Desenvolvimento do Milénio

Fonte: WHO (2012).

Os estudos de Ensink e Cairncross (2012), de Cairncross e Valdmanis (2006) e da WHO


(2012) revelam o caráter multidimensional do saneamento básico, mesmo sendo esses restritos
ao abastecimento de água e esgotamento sanitário. Embora estudos mais amplos sobre os
benefícios do manejo de águas pluviais e de resíduos sólidos sejam escassos, ao se observar os
impactos na saúde com enfermidades como a leptospirose e as diversas arboviroses pode-se
antever uma ampliação significativa dos benefícios para a saúde, qualidade de vida e promoção
de justiça socioambiental.
Por outro lado, as medidas de manejo de águas pluviais, de esgotos domésticos e de resíduos
sólidos permitem a proteção dos rios urbanos que têm sido alvo de obras de encapsulamento,
restringindo o acesso a esse bem comum, que na cidade tem se tornado um ambiente fétido e
desagradável, que para muitos deve ser retirado da paisagem da cidade. Assim, o direito à cidade
sustentável, previsto no Estatuto da Cidade, de 2001, é afetado. Segundo essa Lei, a política
urbana deve ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade
urbana, devendo atender, dentre outras diretrizes gerais:
I – garantia do direito a cidades sustentáveis, entendido como o direito à terra
urbana, à moradia, ao saneamento ambiental, à infraestrutura urbana, ao
transporte e aos serviços públicos, ao trabalho e ao lazer, para as presentes e
futuras gerações (BRASIL, 2001, p. 1).

Os estudos citados também destacam as relações do saneamento com a questão de gênero


e o empoderamento da mulher, temas pouco estudados. Algumas investigações já têm apontado
que o fardo físico e o tempo dispendido para o transporte e manejo da água recai sobre as
mulheres e meninas, revelando mais um aspecto da injusta divisão social do trabalho.
O saneamento na escola, temática reservada a pequenos grupos da área de saneamento, é
outro ponto que elucida a multidimensionalidade do saneamento básico. Para as meninas, a
situação é especialmente problemática já que a ausência de banheiros adequados tem implicado
em evasão escolar quando estas atingem a puberdade. Além disso, a falta de acesso à
instalações hidrossanitárias para a realização do asseio expõe as meninas à violência sexual.
Mais da metade das escolas do mundo não têm acesso à água potável e instalações sanitárias.
Cerca de 443 milhões de dias de escola são perdidos cada ano devido a doenças relacionadas à
água. Assim, deve-se promover ações não só para o saneamento nas escolas, mas também
medidas de educação sanitária para a promoção de práticas de higiene pessoal de meninos e
meninas para se garantir a proteção da saúde e a frequência na escola.
Por outro lado, a liberação do trabalho da criança na busca de água possibilita o acesso à
educação e a quebra do ciclo de pobreza. Assim, o saneamento básico contribui para a garantia
do direito à educação e à infância e à redução da pobreza.
Outra temática que tem fortes vínculos com o saneamento básico relaciona-se à promoção da
justiça étnico-racial, em face das marcas e práticas perversas do racismo estrutural que estão
longe de serem superadas, mas que devem ser enfrentadas com políticas públicas que
promovam a reparação, a inclusão e a justiça social. E os indicadores de saneamento no Brasil
são claros ao demarcar as inequidades e iniquidades presentes entre os territórios e as classes
sociais. Assim, os quilombos, as aldeias indígenas, as comunidades de pescadores e pescadoras,
os assentamentos dos trabalhadores sem-terra e das comunidades tradicionais, os sem teto e as
populações em situação de rua, devem ser alvo de políticas para a reversão do cenário.
Estabelece-se assim vínculos mais amplos e complexos do saneamento básico, o que exige
ações também complexas, intersetoriais e integradas para a sua promoção. A Figura 4 apresenta
um esforço inicial e complementar à noção de saneamento promocional.

Figura 4 - A multidimensionalidade do saneamento básico na promoção da saúde

Saneamento básico

Medida Medida de
de Direito à Medida de Medida de cidadania Garante o Empodera Reduz a Promove
promoção educação proteção infraestrutura e direito à direito à a mulher pobreza a justiça
à saúde ambiental urbana cidade infância étnico-
racial

Fonte: Borja (2018).

Para promover essas ações, o debate dos anos 80, 90 e 2000 e a própria Lei Nacional de
Saneamento Básico (LNSB) (BRASIL, 2007), fruto de um intenso processo de construção da
sociedade brasileira, trouxe um importante direcionamento para a ação pública. Nesse período
foram delineados os pressupostos da prestação dos serviços, alguns deles incorporados como
princípios fundamentais da LNSB, como a universalidade; integralidade das ações (horizontal e
vertical); participação e controle social; transparência das ações; adoção de tecnologias
apropriadas e tecnologias sociais. Essa última vem sendo forjada pelas comunidades no diálogo
de saberes, a exemplo da agroecologia, da permacultura, que passam a incentivar novos modos
de vida e de bem viver, com atenção à ancestralidade, ao direito à terra e ao trabalho, à gestão
popular da água, ao direito à cidade e à moradia digna, à autonomia e liberdade de produzir seu
modo de vida. Anuncia-se novas subjetividades capazes de construir um sociedade emancipada,
mais justa e igualitária, surpreendentemente na contramão de processos que fizeram emergir
mais recentemente forças políticas que rechaçam a dimensão coletiva, a democracia e
enunciados tão caros do iluminismo, como liberdade, igualdade e fraternidade, um paradigma
civilizatório que certamente persistirá e ultrapassará o retrocesso às conquistas da humanidade.
Outro avanço recente que ainda deve ser apropriado pelos governos municipais, estaduais e
federal, refere-se à necessidade de os municípios formularem suas políticas públicas de
saneamento básico e instituírem as funções de gestão dos serviços: o planejamento, cristalizado
no plano de saneamento básico; a regulação; a prestação dos serviços; a fiscalização, e,
transversal a estas, o controle social.
A noção da multidimensionalidade do saneamento básico, os pressupostos da prestação dos
serviços, as diretrizes, estratégias e conceitos estão presentes no Plano Nacional de Saneamento
Básico (PLANSAB), como o conceito de deficit, a adoção de medidas estruturais e estruturantes
e seus investimentos correspondentes, a delimitação de critérios de priorização buscando a
justiça social e territorial, a participação e o controle social da ação pública (BRASIL, 2013).
Assim, tem-se elementos substantivos que já podem guiar os caminhos para o pleno
atendimento da população brasileira com saneamento básico.

Saneamento como direito humano

O Brasil, no início do terceiro milênio, ainda conta com milhões de brasileiros(as) sem serviços
públicos de saneamento básico adequados. Com isso, o direito humano ao saneamento básico
está longe de ser uma realidade.
Visando enfrentar esse cenário, o Plansab previu metas a serem atingidas em 2033,
envolvendo investimentos de R$ 597 bilhões1. No entanto, a partir de 2014 e especialmente
após a quebra da institucionalidade jurídica-legal com o afastamento da presidente da
República, em 2016, e a ampliação das políticas de cortes de recursos, os investimentos
foram reduzidos, colocando em questão o próprio Plansab e as metas para a universalização.
Segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (IBGE, 2019), no Brasil,
85,5% dos domicílios particulares permanentes têm acesso à água canalizada, 68,3% à rede
coletora de esgotos ou fossa séptica e 84,4% à coleta de resíduos sólidos domiciliares (IBGE,

1 O valor inicial era R$ 508,45 bilhões, sendo que em 2019 foi atualizado para os R$ 597 bilhões quando da revisão
do Plansab pela Secretaria Nacional de Saneamento, do Ministério de Desenvolvimento Regional. Essa revisão
também reduziu a participação do governo federal nesse montante de 59% para 40% (BRASIL, 2019).
2019), configurando um grande desafio para a universalização do saneamento básico no País.
O direito humano ao saneamento básico não está explícito na Constituição da República
Federativa do Brasil de 1988; no entanto, considera-se que esteja implícito nos direitos à
saúde, à moradia e à alimentação (BRASIL, 1988). Mas, apesar do marco legal e regulatório
(LNSB) e resoluções da ONU, o Brasil está distante da universalização do saneamento,
havendo uma tendência de maior distanciamento dessa meta diante dos esforços atuais para
a privatização dos serviços, caminho que vem sendo revisto em diversos países do mundo.
Nas últimas duas décadas, em diferentes continentes, acontece a remunicipalização/
reestatização dos serviços públicos de saneamento básico privatizados em face do
descumprimento dos contratos, da elevação de tarifas, da redução da qualidade da prestação
dos serviços e dos baixos níveis de investimentos (KISHIMOTO; STEINFORT; PETITJEAN,
2020). No Brasil, o Congresso Nacional aprovou a Lei n. 14.026/2020 (BRASIL, 2020) que
modifica a Lei n. 11.445/2007, tendo por objetivo conceder à iniciativa privada a prestação
dos serviços públicos de abastecimento de água e de esgotamento sanitário. À luz de
experiências de diversos países, poderão ser excluídas parcelas significativas da população,
especialmente as mais vulnerabilizadas e que deveriam ser o alvo de atenção.
A normatização e controle dos serviços públicos de saneamento básico devem estar sempre
sob a absoluta tutela do poder público e da população local, defendendo seus reais interesses e
impedindo os monopólios técnico e financeiro. O processo de fiscalização e controle dos
serviços, bem como a transparência na execução e alocação dos recursos, não pode fugir das
mãos dos mesmos. Nesse sentido, torna-se necessário o estabelecimento de mecanismos e
processos institucionais apropriados, que possibilitem um real e democrático controle por parte
do poder público e da população sobre o planejamento, a regulação, a execução das ações e
prestação dos serviços públicos de saneamento básico e a sua fiscalização.
Tal desafio implica na necessidade do trabalho conjunto e coordenado entre as três esferas
de governo (municípios, estados e o Governo Federal), além da promoção da participação e
controle social ativo e independente, com mecanismos democráticos de decisão, além das
ações integradas, integrais, intersetoriais nos territórios, estes reconhecidos como uma
totalidade que revela as contradições sociais cuja intervenção do Estado e da sociedade
devem enfrentar e superar para fins da promoção de um sociedade mais justa e igualitária.

Referências
ANDREAZZI, M.A.R.; BARCELLOS, C.; HACON, S. Velhos indicadores para novos
problemas: a relação entre saneamento e saúde. Rev Panam Salud Publica, v. 22, n.3, p.211-
217, 2007.
BORJA, P.C. Apontamentos de aulas. Salvador: Universidade Federal da Bahia, 2018. Não
publicado.
BORJA, P.C. Política de saneamento, instituições financeiras internacionais e mega-
programas: um olhar através do Programa Bahia Azul. 2004. 400f. Tese (Doutorado em
Arquitetura e Urbanismo) – Faculdade de Arquitetura, Universidade Federal da Bahia,
Salvador.
BRASIL. Lei n. 14.026, de 15 de março de 2020. Atualiza o marco legal do saneamento
básico e altera a Lei n. 9.984, de 17 de julho de 2000, para atribuir à Agência Nacional de
Águas e Saneamento Básico (ANA) competência para editar normas de referência sobre o
serviço de saneamento, a Lei n. 10.768, de 19 de novembro de 2003, para alterar o nome e
as atribuições do cargo de Especialista em Recursos Hídricos, a Lei n. 11.107, de 6 de abril
de 2005, para vedar a prestação por contrato de programa dos serviços públicos de que trata
o art. 175 da Constituição Federal, a Lei n. 11.445, de 5 de janeiro de 2007, para aprimorar
as condições estruturais do saneamento básico no País, a Lei n. 12.305, de 2 de agosto de
2010, para tratar dos prazos para a disposição final ambientalmente adequada dos rejeitos
[...]. Disponível em: https://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/2020/lei-14026-15-julho-2020-
790419-publicacao original-161096-pl.html. Acesso em: 30 jul. 2020.
BRASIL. Plano Nacional de Saneamento Básico. Documento em Revisão Submetido à
Apreciação dos Conselhos de Saúde, Recursos Hídricos e Meio Ambiente. Brasília: Ministério
de Desenvolvimenro Regional/Secretaria Nacional de Saneamento, 2019.
BRASIL. Plano Nacional de Saneamento Básico-PLANSAB. Brasília: Ministério das
Cidades/Secretaria Nacional de Saneamento Ambiental, 2013.
BRASIL. Lei n. 11.445, de 5 de janeiro de 2007. Estabelece as diretrizes nacionais para o
saneamento básico; cria o Comitê Interministerial de Saneamento Básico; altera as Leis
nos 6.766, de 19 de dezembro de 1979, 8.666, de 21 de junho de 1993, e 8.987, de 13 de
fevereiro de 1995; e revoga a Lei nº 6.528, de 11 de maio de 1978. Disponível em:.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2007/lei/L11445.htm. Acesso em: 30 jul.
2020.
BRASIL. Lei n. 10.257, de 10 de julho de 2001. Regulamenta os arts. 182 e 183 da
Constituição Federal, estabelece diretrizes gerais da política urbana e dá outras providências.
Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/leis_2001/L10257.htm. Acesso em: 30
jul. 2020.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil 1988. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm. Acesso em: 30 jul. 2020.
BUSS, Paulo. Promoção da saúde e qualidade de vida. Ciência & Saúde Coletiva, v. 5, n.1,
p.163-177, 2000.
CAIRNCROSS, S.; VALDMANIS, V. Water Supply, Sanitation, and Hygiene Promotion.
Disease Control Priorities in Developing Countries. Chapter 41. In: JAMISON, D.T.; BREMAN,
J.G.; MEASHAM, A.R. et al. (Editors). Washington (DC): The International Bank for
Reconstruction and Development / The World Bank; New York: Oxford University Press; 2006.
COSTA, A.M. Saúde pública e saneamento: resistências e possibilidades intersetoriais no
contexto da Lei do Saneamento Básico. In: CORDEIRO, B. S. (Org.). Conceitos,
Características e Interfaces dos Serviços Públicos de Saneamento Básico. Brasília: Ministério
da Cidades. 2009.
ENSINK, J.; CAIRNCROSS, S. Abastecimiento de água, saneamento, higiene e saúde
pública. In: Organización Panamericana de la Salud. Agua y saneamiento: en la búsqueda
de nuevos paradigmas para las Américas. Washington. D.C.: OPS; 2012.
FIGUEIREDO, D.L.; BANDEIRA, T.P.B. Percepções de agentes sociais sobre o direito
humano de acesso a água potável no contexto da privatização da Companhia de
Saneamento do Pará. 2018. Trabalho de Conclusão de Curso (Curso Superior de Tecnologia
em Saneamento Ambiental) - Instituto Federal do Pará, Belém, 2018.
IBGE. PNAD Contínua 2019. Disponível em: www.ibge.gov.br. Acesso em: 14 set. 2020.
MENEZES, L.C. Considerações sobre saneamento básico, saúde pública e qualidade de
vida. Revista Eng. Sanit., v.23, n.1, p.55-61, jan./mar. 1984.
MORAES, L.R.S. A Necessidade de Formulação e Implementação, de Forma Democrática
e Integrada, de Políticas Públicas de Saneamento Ambiental. Texto elaborado para a 1ª.
Conferência das Cidades da Bahia. Salvador, 2003. 6p. Não publicado.
KISHIMOTO, S.; STEINFORT, L.; PETITJEAN, O. The future is public: towards democratic
ownership of public services. Amsterdam; Paris: TNI; Multinationals Observatory; AK; Cupe;
FOA; Epsu; ISF; Modatima; MSP; FNV; Fagforbundet; Psiru; University of Glasgow, 2020.
SOUZA, C.M.N. Relação Saneamento-Saúde-Ambiente: os discursos preventivista e da
Promoção da Saúde. Saúde Soc. São Paulo, v.16, n.3, p.125-137, 2007.
SOUZA, C.M.N.; FREITAS, C.M. O Saneamento na Ótica da Prevenção de Doenças e da
Promoção da Saúde. In: CONGRESO INTERAMERICANO DE INGENIERÍA SANITARIA Y
AMBIENTAL, XXX., 2006, Punta Del Este. Anais... Punta Del Este: AIDIS, 2006. p.1-11.
SOUZA, C.M.N.; COSTA, A.M.; MORAES, L.R.S.; FREITAS, C.M. Saneamento: promoção
da saúde, qualidade de vida e sustentabilidade ambiental. Rio de Janeiro: Ed. Fiocruz, 2015.
TAMBELLINI, A.T.; MIRANDA, A.C. Saúde e meio ambiente. In: GIOVANELLA, L. et al.
Políticas e sistema de saúde no Brasil. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2012. p. 1037-1073.
World Health Organization. Global costs and benefits of drinking-water supply and
sanitation interventions to reach the MDG target and universal coverage. Geneva: WHO,
2012. (WHO/HSE/WSH/12.01).
Sobre os autores:

Patrícia Campos Borja, Dra. em Arquitetura e Urbanismo (PPGAU/FA/UFBA), Professora


Associada do Departamento de Engenharia Ambiental e do MAASA/Escola Politécnica da
Universidade Federal da Bahia.
Luiz Roberto Santos Moraes, PhD em Saúde Ambiental (LSHTM/University of London),
Professor Titular em Saneamento (aposentado) e Participante Especial dos PPG SAT/FMB,
MAASA/EP e RAU+E/FA da Universidade Federal da Bahia.
Cezarina Maria Nobre Souza, Dra. em Saúde Pública (ENSP/Fiocruz), Professora Titular
do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Pará.

Você também pode gostar