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1998 ANO

Relação entre saúde e saneamento

ARTIGO ARTICLE
na perspectiva do desenvolvimento

Relationship between health and environmental


sanitation in view of the development

Léo Heller 1

Abstract The present paper discusses the rela- Resumo Discute-se a relação entre saúde e sa-
tion between health and public health engi- neamento, situando-a no contexto do processo
neering in the context of social development. de desenvolvimento social. É defendida inicial-
Initially we defend the insertion of this concept mente a inserção dessa relação no atual enfo-
in the presently used approach, health and en- que saúde e ambiente, reconhecendo que esta
vironment, recognizing that this new area does nova área não elimina a pertinência da abor-
not eliminate the relevancy of the health-envi- dagem saúde-saneamento, na verdade sua pre-
ronment approach, being actually its precursor. cursora. Apresenta-se a conceituação de sanea-
We present the concept of public health engi- mento e sua atual situação no país, além dos
neering, its present-day situation in Brasil, as marcos conceituais da relação saúde-sanea-
well as the paremeters for the relation health – mento. Indicadores de desenvolvimento dos
public health engineering. Development indi- países, enfatizando os brasileiros, são confron-
cators from Brazil and other countries are con- tados com indicadores sanitários, mostrando-se
fronted with sanitary indicators demonstrating que, para o grau de desenvolvimento econômico
that in Brazil, taking into consideration the de- e a cobertura por serviços de saneamento no
gree of economic development and the extent of Brasil, melhor desempenho dos indicadores de
offered sanitary services, a better performance saúde seria esperado. Avaliam-se as assertivas
of health indicators could be expected. We eval- que podem ser extraídas dos estudos epidemio-
uate the conclusions of epidemiological studies lógicos desenvolvidos na área de saneamento e,
on sanitation and, finally, we discuss the per- por fim, discutem-se as perspectivas que se
spectives of the health – public health engineer- apresentam no campo da relação saúde-sanea-
ing approach. mento.
Key words Public Health Engineering; Water Palavras-chave Saneamento; Abastecimento
Supply; Sanitation; Health Indicators; Devel- de Água; Esgotamento Sanitário; Indicadores
opment de Saúde; Desenvolvimento

1 Departamento de
Engenharia Sanitária
e Ambiental da UFMG.
Av. do Contorno, 842,
7o andar, Belo Horizonte,
MG, 30.110-060, Brasil.
heller@oraculo.lcc.ufmg.br
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Heller, L.

Introdução texto, mostra-se insuficiente e reducionista a


consideração apenas das questões sanitárias,
Verifica-se atualmente a consolidação do ino- ignorando relevantes problemas ambientais
vador enfoque saúde e ambiente, que encon- contemporâneos e o risco à saúde a ele asso-
tra na terminologia epidemiologia ambiental ciados, a exemplo de fatores das mais diversas
seu instrumental metodológico e na expres- naturezas como a poluição atmosférica, o em-
são saúde ambiental a chave para orientar a pregos de biocidas na agricultura, o stress ur-
organização institucional e para sensibilizar bano e a radiação.
comunidades, técnicos e governos sobre a ne- Apesar dessa tendência, há que se ter cla-
cessidade de uma abordagem que articule am- ra a persistência da importância do papel do
bas as esferas. Subjacente a essa visão, há a saneamento no quadro de saúde, em especial
percepção da importância de que saúde e am- nos países em desenvolvimento. Seria equivo-
biente se aproximem, enquanto conceito e prá- cado se substituir a visão de saneamento pela
tica. O resultado dessa aproximação para a visão ambiental mais ampla, sendo necessário
área da saúde seria a de valorizar o ambiente sim se reconhecerem as questões de saneamen-
como fator determinante de agravos à saúde, to como ainda na ordem do dia da saúde am-
enquanto que, para a área ambiental, visuali- biental, localizando seu papel, sua pertinên-
zar efeitos das alterações ambientais sobre a cia e a aplicabilidade do conceito, identifican-
saúde humana traria a significativa contribui- do sociedades, ocupações, situações e fatores
ção de resgatar o impacto sobre a homem nas de risco associados.
preocupações do enfoque ambiental, avançan- Nesse particular, deve-se ter claro que a
do da clássica supervalorização dos impactos persistência da problemática do saneamento
sobre o meio físico. encontra-se fortemente associada ao modelo
Por outro lado, ao se abordar a relação en- sócio-econômico praticado e que a população
tre saúde e saneamento, é vital inseri-la no mais vulnerável corresponde justamente àque-
contexto exposto da relação saúde e ambiente. la excluída dos benefícios do desenvolvimen-
A primeira constatação, nesse aspecto, é de que to. Considerando essa premissa, se perma-
preocupações sobre a relação saúde-saneamen- nece hegemônico em nível mundial o proces-
to estiveram, na verdade, na raiz da atual vi- so de globalização, suportado por uma visão
são saúde-ambiente. Foram quase exclusiva- neo-liberal do desenvolvimento, é legítimo su-
mente as questões de saneamento, sobretudo por que a situação de dependência da econo-
antes da Revolução Industrial, aquelas que his- mia periférica terá continuidade, acarretando
toricamente caracterizaram os determinantes maior exclusão e aprofundamento da pobre-
ambientais da saúde. E, nesse ponto, os vários za, confirmando a pertinência da manuten-
marcos que, ao longo da História, denotaram ção, como contemporânea, das preocupações
a preocupação da melhoria do ambiente vi- com a relação saneamento – saúde.
sando à prevenção de problemas com a saúde De forma simplificada, pode-se situar que
humana, tiveram no saneamento seu referen- os riscos decorrentes da insalubridade do meio
cial. afetam com maior intensidade as populações
Assim, desde dois mil anos antes de Cris- de menor status sócio-econômico, enquanto
to, com o reconhecimento da necessidade de que os problemas ambientais originários do
se purificar a água (USEPA, 1990) e de se pra- desenvolvimento atingem mais homogenea-
ticarem hábitos sanitários, até Snow (1990), mente a todos os estratos sociais, conforme
passando por Hipócrates e pela prática dita- ilustra-se na Figura 1.
da pela teoria miasmática, a trajetória histó-
rica da saúde ambiental foi, até este século, a
constatação da relação entre o saneamento e Saneamento
a saúde.
A complexidade da sociedade atual e a de- Para se localizar de forma adequada a presen-
corrente ampliação dos impactos ambientais, te discussão, é inicialmente necessário que se
tanto sob o ponto de vista de sua natureza situe o conceito de saneamento e, daí, sua re-
quanto de sua abrangência geográfica, em lação com a saúde. Classicamente, a definição
muitos casos atingindo escala planetária, im- de saneamento baseia-se na formulação da Or-
pôs também a expansão da visão dos determi- ganização Mundial da Saúde: saneamento
nantes ambientais sobre a saúde. Nesse con- constitui o controle de todos os fatores do
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Figura 1
trabalho, além da higiene industrial e o con-
Morbidade/mortalidade por enfermidades devidas trole da poluição atmosférica e sonora. Para
à insalubridade do meio e ao desenvolvimento, em função efeito de padronização, a tendência predomi-
do nível sócio-econômico. nante no Brasil tem sido a de considerar co-
mo integrantes do saneamento as ações de:
• abastecimento de água, caracterizado co-
v mo o fornecimento às populações de água em
quantidade suficiente e com qualidade que a
Morbidade/mortalidade

enquadre nos padrões de potabilidade;


• esgotamento sanitário, compreendendo a
coleta dos esgotos gerados pelas populações e
sua disposição de forma compatível com a ca-
pacidade do meio ambiente em assimilá-los;
Insalubridade do meio
• limpeza pública, incluindo todas as fases
de manejo dos resíduos sólidos domésticos,
até sua disposição final, compatível com as po-
tencialidades ambientais;
“Doenças do desenvolvimento”
• drenagem pluvial, significando a condu-
ção das águas pluviais, de forma a minimizar
v

seus efeitos deletérios sazonais sobre as popu-


Nível sócio-econômico
lações e as propriedades;
• controle de vetores de doenças transmis-
síveis, especialmente artrópodes e roedores.
Para efeito de apresentação da pertinência
meio físico do homem, que exercem ou po- da problemática do saneamento, pode-se ve-
dem exercer efeitos deletérios sobre seu estado rificar a carência de cobertura pelos serviços
de bem estar físico, mental ou social. Neste no Brasil, certamente ilustrativo da situação
conceito, fica clara a articulação do saneamen- dos países em desenvolvimento.
to com o enfoque ambiental, ao situá-lo no Segundo a FIBGE (1991), 32% da popula-
campo do controle dos fatores do meio físico, ção brasileira não é conectada à rede coletiva
e com a abordagem preventiva de saúde, assu- de água e 68% não são atendidos por sistema
mindo que a própria OMS considera o bem coletivo de esgotos. Além disso, parcela con-
estar físico, mental e social como definição de siderável da população abastecida por água re-
saúde. cebe água intermitentemente e com qualida-
Esta conceituação mais geral contribui pa- de duvidosa. E quase a totalidade dos esgotos
ra a delimitação das ações compreendidas sob coletados é lançado nos cursos d’água sem re-
a terminologia saneamento, a partir do cam- ceber qualquer tipo de tratamento.
po de intervenções a ela associados – fatores Em relação à limpeza pública, segundo a
do meio físico – e das conseqüências espera- mesma fonte, 44% da população brasileira não
das – prevenção dos efeitos deletérios sobre a é atendida por serviços de coleta.
saúde. Entretanto, o conceito admite amplas
interpretações sobre as ações abrangidas e dis-
ciplinas envolvidas. Ao longo da trajetória ins- Relação saúde-saneamento:
titucional e avaliando as diversas tentativas de marcos conceituais
delimitação de seu campo de ação, localizam-
se desde definições absolutamente estreitas até Alguns modelos têm sido propostos para ex-
limites mais amplos para seu significado. No plicar a relação entre ações de saneamento e a
primeiro extremo, o PLANASA – Plano Na- saúde, enfocando distintos ângulos da cadeia
cional de Saneamento – em 1971 definiu sa- causal. Entretanto, as formulações têm privi-
neamento básico como apenas as ações de legiado a compreensão sanitária do abasteci-
abastecimento de água e esgotamento sanitá- mento de água e do esgotamento sanitário, em
rio. Por outro lado, algumas definições de sa- detrimento das outras ações de saneamento.
neamento ambiental, ao lado das áreas mais Além disso, os modelos não guardam uma
clássicas, incluem ações como o saneamento mesma lógica em sua formulação, encontran-
dos alimentos, das habitações e dos locais de do-se desde modelagens basicamente biologi-
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Heller, L.

cistas até explicações que privilegiam uma vi- Por outro lado, no campo da limpeza pú-
são mais sistêmica, com ênfase para os deter- blica localizam-se algumas referências, que
minantes sociais. Em todos os casos, porém, contribuem para iniciar a formulação de um
aspectos da relação saneamento-saúde procu- modelo causal, ainda a ser construído e vali-
ram ser elucidados. dado. Najm (s.d.) propõe um esquema das vias
Em relação aos modelos que associam o de contato lixo-homem (Figura 3) que, sinte-
abastecimento de água e o esgotamento sani- ticamente, explica as trajetórias através das
tário com a saúde, vários autores procuram quais pode ocorrer transmissão de doenças
dar conta da complexidade dessa relação, ex- oriundas da disposição inadequada dos resí-
plicando a influência sobre indicadores espe- duos sólidos urbanos. Note-se que, dada a di-
cíficos, como a diarréia, ou sobre medidas mais versidade de vias e, especialmente, a ação dos
abrangentes de saúde, como a mortalidade in- vetores – biológicos e mecânicos – o raio de
fantil ou a expectativa de vida. Além disso, a influência e os agravos sobre a saúde mostram-
discussão sobre efeitos da intervenção a cur- se de difícil identificação.
to e a longo prazos são também encontrados. A Figura 4 propõe um modelo esquemáti-
Nesse último aspecto, Briscoe (1985) postula co, relacionando a solução para as diversas eta-
que, se a curto prazo o efeito mensurável do pas do manejo dos resíduos sólidos domésticos
abastecimento de água e do esgotamento sa- com o risco à saúde.
nitário pode parecer reduzido, pela reposta Alguns modelos de caráter geral também
não linear da intervenção, a longo prazo seu são localizados, a exemplo de estudo desen-
efeito sobre a saúde é substancialmente supe- volvido no Sri-Lanka (Waxler et al., 1985), que
rior ao de intervenções médicas. Baseado em trabalhou um modelo causal da mortalidade
uma simulação de dados demográficos de Lyon infantil, composto por uma teia de determi-
(França), entre 1816 e 1905, prevê que as in- nantes, na qual atuam preditores culturais, só-
tervenções ambientais podem prevenir cerca cio-econômicos e médicos (Figura 5). Nota-
de quatro vezes mais mortes e elevar a expec- se que a situação de saneamento, representa-
tativa de vida sete vezes mais, que as interven- da pelo atendimento por fossa, localiza-se em
ções de natureza biomédica. O mesmo autor uma etapa mais terminal do ciclo de relações,
(Briscoe, 1987) afirma que tal comportamen- em um sentido sendo determinada por fato-
to sugere um efeito multiplicador dos progra- res econômicos, culturais e educacionais e em
mas de abastecimento de água e esgotamento outro, determinando a mortalidade infantil. Na
sanitário. conclusão desse estudo, explica-se a mortali-
Em outra formulação, Cvjetanovic (1986) dade infantil em Sri-Lanka da seguinte forma:
caracteriza como estreitos os modelos que re- “O status dos grupos minoritários resulta
lacionam as ações de saneamento com um gru- em pobreza, o que impede a família de pos-
po definido de doenças, como as enfermida- suir instalações sanitárias seguras, causando
des diarréicas. Afirma que tal enfoque ignora morte infantil. A mortalidade infantil em Sri-
o caráter amplo da definição de saúde formu- Lanka não é, portanto, simplesmente um pro-
lada pela Organização Mundial da Saúde, ao blema médico, para ser assumido pelos pro-
avaliar impactos sobre doenças e não sobre a gramas de saúde pública, nem tampouco é um
saúde propriamente. Reconhece, entretanto, problema econômico, que possa ser resolvido
os obstáculos metodológicos para uma abor- pela criação de empregos, mas é melhor que
dagem holística, que privilegie sobretudo os seja encarada como um problema da estrutu-
fatores sócio-econômicos. Esquematicamen- ra de toda a sociedade.”
te, a Figura 2 ilustra o modelo proposto pelo Na mesma linha, estudo epidemiológico
autor, no qual se prevê que ações de abasteci- realizado na sede urbana de Betim-MG (Hel-
mento de água e de esgotamento sanitário pro- ler, 1997a), cidade de porte médio com popu-
porcionam benefícios gerais sobre a saúde da lação de aproximadamente 160.000 habitan-
população segundo duas vias: através de efei- tes, permite inferir o marco causal da diarréia
to direto e através de efeitos indiretos, resul- em crianças de até cinco anos, a partir de de-
tantes primordialmente do desenvolvimento terminantes sócio-econômicos e relacionados
da localidade atendida. Observe-se que, em- ao saneamento. A Figura 6 exibe o modelo.
bora pleiteando uma explicação causal mais
sistêmica, o modelo de Cvjetanovic não inclui
o papel dos determinantes sociais.
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Figura 2
Efeitos diretos e indiretos do abastecimento de água e do esgotamento sanitário sobre a saúde:
esquema conceitual.

Investimento em
Efeitos abastecimento de água Efeitos
indiretos e esgotos sanitários diretos
v

Abastecimento de água Manutenção e ampliação Qualidade


seguro e disposição de Quantidade
excretas

v
• Desenvolvimento
econômico
• Aumento da produção
v

• Comercialização

• Alimentação Capacidade de trabalho


• Educação Conhecimento
• Instalações sanitárias

Benefícios à saúde provenientes de:


• melhoria da nutrição
• higiene pessoal e da comunidade
v

• interrupção da transmissão das


doenças relacionadas com a água

Fonte: Cvjetanovic (1986).

A relação com o desenvolvimento Ao se compararem os indicadores de de-


senvolvimento do Brasil com o conjunto dos
A relação entre saneamento e desenvolvimen- países, alguns aspectos chamam a atenção. A
to é bastante clara. Em geral, países com mais Figura 7 mostra a relação entre o valor do IDH
elevado grau de desenvolvimento apresentam na escala de todos os países e a expectativa de
menores carências de atendimento de suas po- vida, um dos componentes do índice. Observa-
pulações por serviços de saneamento. Ao mes- se que o ponto correspondente à posição bra-
mo tempo, países com melhores coberturas sileira encontra-se abaixo da linha de tendên-
por saneamento têm populações mais saudá- cia, demonstrando que a expectativa de vida
veis, o que por si só constitui um indicador de no Brasil é cerca de 5,3 anos inferior ao espe-
nível de desenvolvimento. rado pelo seu IDH, sugerindo um descompas-
O PNUD – Programa das Nações Unidas so entre crescimento econômico e qualidade
para o Desenvolvimento – vem levantando de vida.
desde 1990 o IDH – Índice de Desenvolvimen- Por outro lado, relacionando-se o produ-
to Humano, para os diferentes países. Este ín- to doméstico bruto per capita – um indicador
dice, cujo valor varia entre zero e um, com- da renda média da população – e a mortalida-
põe-se de três fatores: expectativa de vida, co- de infantil, conforme Figura 8, observa-se no-
nhecimento (alfabetização e instrução) e pa- vamente que o par de valores característico do
drão de vida (produto doméstico bruto per ca- Brasil localiza-se sob a curva de tendência. Is-
pita). to pode ter significado similar à interpretação
78
Heller, L.

Figura 3
Esquemas das vias de contato homem-lixo.

Contato direto

v
Contato indireto
LIXO HOMEM

v
v

(ar, água, solo)

Vetores mecânicos
(moscas, baratas, Alimentos
v

v
roedores, suínos)

Vetores biológicos
(mosquitos, roedores,
v

suínos, moscas*, baratas*)

* introduzido pelo autor.


Fonte: NAJM (s. d.).

anterior, ou seja, caso o padrão de desenvol- as políticas de saúde do país permanecem pri-
vimento brasileiro tivesse uma natureza pró- vilegiando a ótica curativa, verificando-se po-
xima ao da média mundial, a mortalidade in- derosos óbices para a integração com essa vi-
fantil média da população poderia ser de 33,7 são e o reconhecimento na prática do papel
óbitos por 1.000 crianças nascidas vivas, 10,3 preventivo das ações de saneamento.
aquém dos atuais 44. Estas comparações entre indicadores de
Finalmente, corroborando a análise ante- desenvolvimento e o quadro de saúde brasi-
rior sobre o padrão de desenvolvimento brasi- leiros são úteis no sentido de demonstrar a
leiro, as Figuras 9 e 10 sugerem que, com os possibilidade de, com políticas públicas com
níveis de cobertura por abastecimento de água real compromisso social, se obterem signifi-
e esgotamento sanitário do Brasil, melhores cativos avanços na qualidade de vida da po-
condições de saúde infantil poderiam ser ve- pulação. Fato certamente associado à ausên-
rificadas, reduzindo a taxa de mortalidade in- cia de um maior impacto do crescimento eco-
fantil para cerca de 16 ou 22 óbitos por 1.000 nômico e também das ações de saneamento
crianças nascidas vivas, respectivamente. sobre a saúde da população é o quadro de de-
É evidente que a otimização do impacto sigualdade social, que retém a ampliação dos
das intervenções em saneamento sobre a saú- benefícios. O UNDP (1994) mostra que o Bra-
de da população está também condicionada a sil é o segundo país do mundo em concentra-
transformações estruturais e institucionais. ção de renda, após Botsuana: a renda dos 40%
Há um crônico distanciamento entre as polí- mais pobres corresponde a apenas 7% da ren-
ticas de saneamento e de saúde no Brasil. Por da nacional e os 20% mais ricos têm 32,1 vezes
um lado, a prática e os planejamentos do se- mais renda que os 20% mais pobres. Na pu-
tor de saneamento não valorizam a relação blicação de 1997, o PNUD indica que o coefi-
com a saúde, havendo inclusive deficiências ciente de Gini brasileiro é o maior – 63,4% –
na formação dos profissionais. E, por outro, dentre 64 países.
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Figura 4
Limpeza pública e saúde – modelo causal.

Lixo não
Lixo exposto Acondicionamento

v
v
exposto
v
VETORES
contaminação
v

água, ar e solo v
LOCAL
Não exposto
Exposto Disposição local

v
v
(aterrado)

COLETA Fatores de
CATADORES risco à saúde

v
PÚBLICA
eliminados

Baixa Freqüência Alta


v
v

v
VETORES v
contaminação Sanitária e am- Sanitária e am-
água, ar e solo bientalmente Disposição final bientalmente
v

v
v

NA DISPOS. inadequada adequada


FINAL

Relação saúde-saneamento: mo objeto populações da América do Sul (Hel-


assertivas em construção ler, 1997a).
Na maioria dos estudos publicados, vem
Diversos estudos epidemiológicos, investigan- sendo relatada uma associação positiva entre
do a relação entre saúde e saneamento, já fo- saneamento e o indicador de saúde analisado.
ram desenvolvidos, contemplando diferentes Entretanto, ainda não se pode afirmar já exis-
indicadores de saúde, diferentes ações de sa- tir uma avaliação abrangente o suficiente pa-
neamento e diferentes realidades sócio-eco- ra afirmar especificidades dessa relação. Lo-
nômicas e geográficas. calizam-se as seguintes lacunas:
Desses estudos, observa-se uma maior con- • distinção das populações sob risco, para
centração de interesses na áreas tradicionais diversas situações de ausência de condições
do saneamento. Assim, dentre 256 estudos pu- adequadas de saneamento;
blicados, 198 deles investigaram o abasteci- • efeito das intervenções sobre os diversos
mento de água, 104 o esgotamento sanitário, agravos à saúde e indicadores;
enquanto que limpeza pública, hábitos higiê- • efeito de cada intervenção em saneamen-
nicos e outras exposições foram analisados em to isoladamente;
apenas 67 trabalhos. Há também uma maior • efeito conjugado das intervenções, inclu-
incidência de estudos voltados para as reali- sive modificação de efeito de uma intervenção
dades asiática (29%) e africana (27%), locali- sobre outras;
zando-se apenas 26 dos 256 estudos tendo co- • quantificação dos riscos.
80
Heller, L.

Figura 5
Marco causal da mortalidade infantil no Sri-Lanka.

Condição econômica: Nutrição:

v
posse de cinco itens alimentação protéica
v v

v v v
Cultura:
Mortalidade infantil
grupos étnicos
v

v v v
Educação: Esgoto:

v
escolaridade de mulheres tipo de fossa

Fonte: adaptado de Waxler et al. (1985).

Figura 6
Marco causal da diarréia em Betim, MG.

v v v v
Abastecimento de água Esgotamento sanitário Disposição de lixo
Água pluvial
existência de reservatório esgotos escoando na acondicionamento; dispo-
inundação do lote
domiciliar via pública sição; disposição fraldas

Nível sócio-econômico v v v v DIARRÉIA INFANTIL


v

v v v
posse de geladeira

v
Estrutura familiar
Hábitos higiênicos Presença de vetores
número crianças na casa;
v
v

preparo de alimentos baratas; moscas (?)


idade da criança;
religião da mãe v v
v

Fonte: Heller (1997a).


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Figura 7
Relação entre IDH e expectativa de vida dos países (valores de 1994).

1,000

Brasil
0,800

0,600

0,400
Valor do IDH (1994)

0,200

0,000
20 30 40 50 60 70 80
Expectativa de vida 1994 (anos)
y = 0,0619e0,0354x
R2 = 0,8736

Fonte: PNUD (1994).

Figura 8
Relação entre produto doméstico bruto per capita (1994) e mortalidade infantil (1995) dos países.

200
180
Mortalidade infantil 1995 (por 1000)

160
140
120
100
80
60
Brasil
40
20
0
0 5000 10000 15000 20000 25000 30000
Produto doméstico bruto per capita (1994)
y = 17,756Ln(x) + 186
R2 = 0,4136

Fonte: PNUD (1997).


82
Heller, L.

Figura 9
Relação entre cobertura por abastecimento de água (1994-95) e mortalidade infantil (1995) dos países.

Mortalidade infantil 1995 (por 1000)


140

120

100

80

60 Brasil

40

20

0
0 10 20 30 40 50 60 70 80 90 100 110
Abastecimento de água 1994-95 (%)
y = 399,74e-0,0347x
R2 = 0,6284

Fonte: PNUD (1997).

Figura 10
Relação entre cobertura por esgotamento sanitário (1994-95) e mortalidade infantil (1995) dos países.
Mortalidade infantil 1995 (por 1000)

140
120
100
80
60 Brasil
40
20
0
0 10 20 30 40 50 60 70 80 90 100 110
Esgotamento sanitário 1994-95 (%)
y = 158,14e-0,0269x
R2 = 0,5787

Fonte: PNUD (1997).

Em relação à quantificação dos riscos, im- de realidades estudadas. Contudo, ainda as-
portante contribuição é o trabalho de Esrey et sim são valiosas, na medida em que confi-
al. (1991), que verificaram a redução de enfer- guram valores medianos, os quais, mesmo
midades selecionadas e particularmente da imprecisos, contribuem para uma visão ini-
diarréia, a partir da consulta a 144 estudos (Ta- cial.
belas 1 e 2). Em relação às assertivas passíveis de se-
Tais agregações quantitativas esbarram rem extraídas dos estudos realizados, Roberts
por vezes em elevada dispersão dos resulta- (1997) propõe que as seguintes conclusões
dos, o que é presumível, dada a diversidade possam ser estabelecidas:
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Tabela 1
Redução percentual na morbidade por diarréia, atribuída a melhorias no abastecimento de água
ou no esgotamento sanitário.

Intervenção Todos os estudos Estudos mais rigorosos


n1 Redução n1 Redução
mediana (%) mediana (%)
Abastecim. de água e esgotam. sanitário 7/11 20 2/3 30
Esgotamento sanitário 11/30 22 5/18 36
Qualidade e quantidade de água 22/43 16 2/22 17
Qualidade da água 7/16 17 4/7 15
Quantidade de água 7/15 27 5/10 20
1 Número de estudos para os quais é possível a determinação da redução da morbidade/número total de estudos.
Fonte: Esrey et al. (1991).

Tabela 2
Redução percentual na morbidade e mortalidade por doenças selecionadas, atribuída a melhorias
no abastecimento de água e no esgotamento sanitário.

Intervenção Todos os estudos Estudos mais rigorosos


n Redução n Redução
mediana1 (%) mediana1 (%)
Ascaridíase 11 28 (0-83) 4 29 (15-83)
Doenças diarréicas
Morbidade 49 22 (0-100) 19 26 (0-68)
Mortalidade 3 65 (43-79) – –
Ancilostomíase 9 4 (0-100) 1 4 (–)
Esquistossomose 4 73 (59-87) 3 77 (59-77)
Tracoma 13 50 (0-91) 7 27 (0-79)
Mortalidade infantil 9 60 (0-82) 6 55 (20-82)
1Os números entre parênteses correspondem à faixa de variação.
Fonte: Esrey et al. (1991).

1) O acesso a instalações para a disposição das políticas públicas com base nesses prin-
de excretas é geralmente mais protetor contra cípios.
a diarréia que o acesso a maior quantidade de Em primeiro lugar, para a compreensão do
água ou a água mais limpa. maior impacto positivo da disposição de ex-
2) Quantidades adequadas de água parece cretas em relação ao abastecimento de água ou
ser mais benéfico na redução de taxas de diar- da superioridade da melhoria da quantidade
réia que o acesso a água de melhor qualidade. de água sobre a qualidade (conclusões 1 e 2),
3) Melhoria na qualidade da água é relati- devem ser bem situadas as realidades que en-
vamente vulnerável a ter seus benefícios anu- sejaram tais afirmativas. Na verdade, a maior
lados por outros fatores comportamentais ou parte dos estudos envolvendo a disposição de
ambientais. excretas confronta a implantação de sistemas
De fato, as três questões levantadas têm mais simplificados, em geral estáticos como a
sido objeto de discussão nos estudos epide- fossa seca, com a ausência de qualquer solu-
miológicos relacionados ao saneamento e al- ção para essa disposição. Da mesma forma, em
guns deles deixam antever as conclusões ex- geral a solução para o abastecimento de água
traídas por Roberts. É importante, no entan- considerada consiste de chafarizes ou implan-
to, relativizar tais conclusões, evitando algum tação de bombas manuais em poços rasos, im-
risco de generalização e de direcionamento plantado em comunidades que mantinham a
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Heller, L.

prática de se abastecer em fontes distantes, isto, uma tendência vem se estabelecendo no


transportando manualmente a água. Tais es- sentido de se reconhecer a importância dessa
tudos em sua maioria foram desenvolvidos pa- aproximação, envolvendo dois distintos níveis,
ra áreas rurais africanas ou asiáticas, em al- não excludentes.
guns casos campos de refugiados. Portanto, Em um primeiro nível, impõe-se uma
realidades muito distintas de zonas urbanas, aproximação conceitual, baseada em análises
como as encontradas no Brasil. científicas dessa relação. Entende-se que, para
Em relação à terceira conclusão, estudos tanto, o aprofundamento da compreensão da
brasileiros vêm também confirmando a maior referida relação pode ter um importante efei-
importância das prática higiênicas e da edu- to sobre a prática de ambas as áreas. E, clara-
cação sanitária sobre as intervenções físicas mente, lacunas nessa compreensão são iden-
no campo do saneamento (Heller, 1997b). Pa- tificadas, tanto sob o ponto de vista quantita-
rece correto afirmar, como o faz Roberts, que tivo da associação entre exposição e estado de
medidas de saneamento, sobretudo como a saúde, quanto sob aspectos específicos das in-
melhoria da qualidade da água, pode ter seus tervenções de saneamento e seus efeitos espe-
efeitos sobre a saúde minimizados ou até mes- cíficos sobre distintos agravos à saúde.
mo anulados por fatores de ordem comporta- O segundo nível é justamente aquele ope-
mental ou ambiental, como a presença de con- racional e institucional, referenciado na roti-
taminação no meio. na das respectivas áreas. Nesse ponto, a hege-
monia assistencial e curativa da área de saúde
necessita ser substituída por uma lógica onde
Perspectivas prevaleça a visão preventivista, com ênfase pa-
ra a ação do ambiente. Da mesma forma, a área
Tem sido freqüente a denúncia sobre o des- de saneamento carece de aproximação com a
compasso entre as ações de saúde e as ambien- perspectiva de saúde pública, visualizando seus
tais e, mais particularmente, entre as ações de fins e não os meios para atingi-los e, assim,
saúde e as de saneamento. Parece que, sobre ampliando a eficácia de suas ações.

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