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02/02/2023 15:48 Acórdão do Tribunal da Relação de Évora

Acórdãos TRE Acórdão do Tribunal da Relação de


Évora
Processo: 173/20.6GBSLV.E1
Relator: BEATRIZ MARQUES BORGES
Descritores: HOMICÍDIO QUALIFICADO
DETENÇÃO DE ARMA PROIBIDA
CONCURSO DE INFRACÇÕES
Data do Acordão: 25-05-2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
1 - Se a circunstância agravativa prevista na al. h) do nº 2 do artº 132º
do C.P. (no caso, utilização de uma arma, eventualmente
consubstanciadora da prática de um crime de perigo comum) não for
efectivamente aplicada, não está verificada a exceção constante da parte
final do n.º 3 do artigo 86.º do RJAM, mas sim a regra da parte inicial
desse n.º 3, e a pena aplicável ao arguido pelo homicídio tentado terá
de ser agravada de 1/3 nos seus limites mínimo e máximo.

2 - Neste caso é possível autonomizar de forma clara duas unidades


jurídicas de facto: a primeira relativa à circunstância de o agente ter
mantido a espingarda caçadeira na sua posse durante vinte cinco anos,
sabendo fazê-lo de forma ilegal, por não estar legalmente habilitado a
tê-la na sua posse; a segunda consistente na utilização da arma ilegal
serrando o seu cano para realizar o disparo na tentativa de matar a
vítima.
Na situação em apreciação acontece um concurso efetivo de crimes,
sendo tutelados dois bens jurídicos distintos, “no crime de homicídio a
vida humana e no crime de detenção de arma proibida a segurança das
pessoas”.
Decisão Texto Integral:

Acordam, em conferência, na 2.ª Subsecção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

I. RELATÓRIO
1. Da decisão
No Processo Comum Coletivo n.º 173/20.6GBSLV da Comarca Faro, Juízo Central Criminal de
Portimão, Juiz 4, submetido a julgamento foi o arguido (...),
1.1. Quanto à parte penal:
a) Absolvido da prática de um crime de violência doméstica agravado, na forma consumada,
previsto e punido pelos artigos 14.º, n.º 1, 26.º 1ª parte e 152.º, n.ºs 1 alínea a) e 2, alínea a), 4.º, 5.º
e 6.º todos do CP e artigo 86.º, n.º 3 da Lei n.º 5/2006 de 23 de fevereiro;
b) Condenado pela prática, em autoria material, de um crime de homicídio qualificado, na forma
tentada, previsto e punido pelos artigos 22.º, 23.º, 131.º e 132.º, n.ºs 1 e 2, alínea b) do CP e artigo
86.º, n.º 3 da Lei n.º 5/2006 de 23 de fevereiro, na pena de 6 anos e 6 meses de prisão;
c) Condenado pela prática, em autoria material, de um crime de detenção de arma proibida, na
forma consumada, previsto e punido pelos artigos 14.º, n.º 1, 26.º 1ª parte do CP e artigo 86.º, n.º 1,
alíneas c), d) e e) e n.º 2, por referência aos artigos 2.º, n.ºs 1 alínea p) e v), x) ar) e az) e 3, alíneas
e) e p), 3.º, n.ºs 1, 2 alíneas l), p) e x) da Lei n.º 5/2006 de 23 de fevereiro, na pena de 1 ano e 2
meses de prisão
d) Em cúmulo jurídico, condenado na pena única de sete anos de prisão.
1.2. Quanto à parte cível
e) Condenado a pagar à demandante (...) o montante de € 15.000, acrescido de juros de mora
vencidos e vincendos desde a notificação para contestar até efetivo e integral pagamento.
f) Condenado a pagar ao Centro Hospitalar Universitário do Algarve o montante de 541,07 €,
acrescido de juros de mora vencidos e vincendos desde a notificação para contestar até efetivo e
integral pagamento.
g) Condenar a pagar ao Centro Hospitalar e Universitário de Lisboa Norte EPE o montante de
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2418,40 €, acrescido de juros de mora vencidos e vincendos desde notificação para contestar até
efetivo e integral pagamento.
1.3. Foi ainda decidido:
h) Declarar perdidas a favor do Estado as armas e munições apreendidas, à exceção da arma de ar
comprimido, relativamente à qual foi comunicada à PSP para efeito de instauração de
procedimento contraordenacional.

2. Do recurso
2.1. Das conclusões do arguido
Inconformado com a decisão o arguido interpôs recurso extraindo da respetiva motivação as
seguintes conclusões (transcrição):
“1º - Da prova realizada, resulta provado que o Arguido, ora Recorrente, não regista quaisquer
antecedentes criminais, o que, atenta a sua idade e percurso de vida, releva para a Decisão de
condenar sem especial severidade, o que o douto Tribunal “a quo” não considerou, ao aplicar tão
excessiva pena de prisão, efectiva.
2º - Igualmente, resulta da produção da prova, em Julgamento, que o Arguido, ora Recorrente,
ficou especialmente debilitado, e enfraquecido, em consequência dos telefonemas recebidos, que o
alertavam para a infidelidade de sua esposa, estando, à data dos factos, justificadamente
diminuído na sua imputabilidade.
3º - A grande angústia do Arguido, provocou-lhe diminuição da imputabilidade, que lhe retirou a
capacidade de se determinar de acordo com as normas, circunstancialismo que o douto Tribunal
“a quo” deveria ter considerado, para efeitos da aplicação da pena única.
4º - O Arguido, ora Recorrente, casou para toda a vida, sempre cuidando da sua família,
representando as suspeitas de infidelidade de sua esposa, uma grande ansiedade no sentido de
querer saber da verdade.
5º - Seriamente perturbado na sua capacidade de se determinar, o ora Recorrente tentou assustar
sua esposa, com vista a que a mesma o esclarecesse sobre a verdade, sem sucesso, nunca tendo
pretendido mais do que assustar, ameaçando do que nunca foi seu propósito.
6º - Não tendo escolhido o melhor meio para confrontar sua esposa, utilizou a arma de seu
falecido pai para assustar sua esposa, ameaçando-a, sem que pretendesse efectuar qualquer
disparo.
7º - O Recorrente nunca projectou atentar contra a vida de sua esposa, Assistente nos autos, sendo
seu único propósito coagi-la a contar-lhe a verdade, não resultando, da prova realizada e
analisada de acordo com a experiência comum o contrário, pelo que deveria ter resultado provado
o tipo negligente.
8º - E, porque o Recorrente mais não pretendia, do que assustar, sem querer atentar contra a vida
de sua esposa, a empurrou, sem efectuar qualquer disparo.
9º - Provado, resulta que os disparos da arma se deveram à intervenção de terceiros, resultando a
lesão da vítima de um acidente não previsto pelo Arguido, e para o que a própria vítima
contribuiu.
10º - Igualmente provado, resultou que, após o acidente, foi o Recorrente que telefonou para o
“INEM”, ficando com a vítima, que logo socorreu, estancando a hemorragia, tendo o douto
Tribunal “a quo” ultrapassado os limites da livre apreciação da prova, e as regras da experiência
comum.
11º - A emoção justificadamente sentida pelo Recorrente, em consequência dos telefonemas
recebidos, diminuiu-lhe a imputabilidade e a capacidade de se determinar livre e conscientemente,
o que justifica a atenuação da cuilpa, e da pena a aplicar, que nunca deverá ser efectiva, mas
suspensa na sua execução.
12º - Presumindo-se, com dignidade Constitucional, inocente, à falta de elementos probatórios
bastantes, restaria considerar praticado o tipo negligente, e absolver da prática do crime
qualificado tentado, de que o Arguido nunca teve dolo.
13º - Sem antecedentes, e não sendo um jovem, face a toda a factualidade, o ora Recorrente é
merecedor de uma oportunidade, não sendo imperiosa a reclusão, sabidamente incapaz de
reabilitar e reintegrar, sendo expectável que o Recorrente o alcance em meio livre.
14º - Independentemente de todo o exposto supra, a excessiva pena efectiva aplicada pelo douto
Tribunal “a quo”, que ultrapassa a medida da culpa, não poderá deixar de ser substancialmente
reduzida, e suspensa na sua execução, assim merecendo integral provimento o presente Recurso.
15º - Devia, pois, o douto Tribunal “a quo”, ter absolvido o Arguido, da prática do crime de
Homicídio Qualificado, na forma tentada, por ausência de dolo para tanto, punindo-o pelo ilícito
negligente, e não o tendo considerado, contra a Constitucional presunção de inocência de que
gozam os Arguidos, e ultrapassando as regras da experiência comum e os limites da livre
apreciação da prova, condenando-o em tão excessiva pena de prisão, violou o Princípio “in dubio
pro reo”, o disposto nos artigos 127º, com os vícios do 410º-2, que determinará o reenvio do
Processo, do Código de Processo Penal, e os artigos 40º, 71º, 72º, 137º e 50º, do Código Penal,
pelo que, merecendo, o presente Recurso, integral provimento, absolvendo-se da tentativa de
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homicídio, se deverá revogar o douto Acórdão de Fls, a substituir por outro que venha a condenar
o ora Recorrente numa pena única não superior a 3 anos de prisão, suspensa na sua execução, por
verificados os legais pressupostos.
Nestes termos, e nos demais de direito que Vªs Exªs doutamente suprirão, a não haver reenvio do
Processo, para repetição do Julgamento, deverá o douto Acórdão ora Recorrido ser revogado e
substituído por outro que conclua pela absolvição do Recorrente, pela prática do tipo qualificado,
e, assim se não entendendo, sempre será de reduzir substancialmente a excessiva pena aplicada em
1ª Instância, a suspender na sua execução, assim merecendo provimento o presente Recurso.”.

2.2. Das conclusões de recurso do Ministério Público


Inconformado com a decisão o Ministério Público também interpôs recurso extraindo da respetiva
motivação as seguintes conclusões (transcrição):
“1ª – O presente recurso vem interposto no seguimento do acórdão proferido no dia 7 de Janeiro
de 2021, no Processo Comum, Tribunal Colectivo n.º 173/20.6GBSLV, que condenou, em autoria
material e em concurso efectivo, o arguido (...), pela prática de um crime de homicídio
qualificado, na forma tentada, p. e p. pelos artigos 22.º, 23.º, 131.º e 132.º, n.º 1 e 2, alínea b), do
Código Penal, e artigo 86.º, n.º 3, da Lei 5/2006, de 23 de Fevereiro, na pena de 6 anos e 6 meses
de prisão e um crime de detenção de arma proibida, na forma consumada, p. e p. pelos artigos
14.º, n.º 1, 26.º 1.ª parte, do Código Penal, e 86.º, n.º 1, alíneas c), d) e e), e n.º 2, com referência
aos artigos 2.º, n.º 1, alínea p) e v), x), ar) e az), e 3, alíneas e) e p), 3.º, n.º 1 e 2, alíneas l), p) e x),
da Lei 5/2006, de 23 de Fevereiro, na pena de 1 ano e 2 meses de prisão, e, em cúmulo jurídico, na
pena única de 7 anos de prisão.
2.ª - O Ministério Público não se conforma com a pena única de 7 (sete) anos de prisão aplicada
pelo Tribunal recorrido, por não ser proporcional e adequada à gravidade dos factos praticados
pelo arguido, não satisfazendo, em nosso entender, as necessidades de prevenção e a defesa do
ordenamento jurídico.
3.ª Além disso, entende o Ministério Público, salvo melhor opinião, que o arguido devia ter sido
condenado pela prática de um crime de detenção de arma proibida não só por ter na sua posse
uma pistola da marca “Waltro”, calibre 8mm, transformada para calibre 7,65 e sete cartuchos de
calibre 12, mas também pela posse de uma espingarda caçadeira da marca “Browning”, com o
cano serrado, que utilizou para alvejar a vítima.
4.ª – Foram dados como provados os seguintes factos:
4.1. O arguido (...) e a ofendida (...) contraíram casamento em 5 de Agosto de 1995, vivendo
maritalmente desde essa data até esta parte, tendo fixado residência comum na (…).
4.2. Desta relação nasceu uma filha, (…).
4.3. O arguido tem, há cerca de 25 anos na sua posse e guardada no interior da sua habitação,
uma espingarda caçadeira da marca “Browning”, modelo “B-80”, calibre 12, n.º de série (…), e
que apresenta um cano único de 36 cm, serrado.
4.4. Desde há 5 (cinco) anos a esta parte que o arguido manifesta um comportamento obsessivo,
pautado pelos ciúmes, insinuando que a ofendida o trai.
4.5. No dia 19 de Abril de 2020, por volta das 16h00, o arguido encontrava-se a lanchar com a sua
mãe e com a vítima, no interior da residência comum do casal, quando se iniciou uma discussão
relacionada com questões financeiras.
4.6. O arguido, em hora não concretamente apurada, mas antes das 18h00, recebeu uma
mensagem de texto no seu telemóvel remetida por pessoa não concretamente identificada, esposa
do homem com quem a vítima teria alegadamente uma relação extraconjugal, dizendo ter sido
traído pela ofendida.
4.7. Nessa sequência, o arguido municiou a supra referida espingarda da marca “Browning”, com
dois (2) cartuchos, e ausentou-se de casa na posse da mesma, a fim de manter uma conversa
telefónica com essa pessoa.
4.8. O arguido esperou a chamada telefónica em frente à habitação, dentro da sua viatura, na
posse da arma municiada.
4.9. Volvidos alguns minutos, concluída a conversa telefónica, o arguido (...) regressou a casa e
iniciou, na cave da residência, uma discussão com a ofendida (...) exigindo que aquela lhe
mostrasse as mensagens que tinha na aplicação Messenger no seu telemóvel.
4.10. Perante a recusa da vítima, o arguido empunhou a supra referida espingarda, previamente
municiada por si com dois cartuchos, na direção da vítima, dizendo que a matava.
4.11. Nessa ocasião, o arguido deu um forte empurrão à vítima, fazendo com que a mesma caísse
ao chão.
4.12. A ofendida levantou-se e fugiu para a cozinha da habitação, sita no rés-do-chão, tendo o
arguido seguido no seu encalço e, encontrando-se a 2 metros de distância da vítima, apontou a
arma na sua direcção, questionando, por mais do que uma vez, se a mesma tinha algum amante.
4.13. Nesse momento, (...), mãe do arguido, interveio com vista a acalmar o mesmo, levantando-
lhe o braço para cima, momento em que este disparou um tiro com a arma, que atingiu o candeeiro
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da cozinha.
4.14. Nesse momento, o arguido colocou a sua mãe na rua, fechando a porta da referida
habitação.
4.15. Em acto contínuo, a ofendida encetou fuga para o primeiro andar da habitação, entrando
para o interior da casa de banho, tendo o arguido ido no seu encalço.
4.16. Nesse momento, o arguido entrou na casa de banho, apontou a espingarda municiada na
direcção da ofendida, que implorou para que o arguido não lhe fizesse mal, encostou a mesma à
sua cabeça, na região temporal esquerda, e premiu o gatilho, não tendo a arma nesse momento
disparado, por motivos alheios à vontade do arguido.
4.17. Nesse instante, o arguido abriu a arma retirou o cartucho e voltou a colocar o mesmo
cartucho na arma.
4.18. . Em acto contínuo, o arguido voltou a encostar a arma ao corpo da ofendida, na zona do
abdómen, concretamente na região do coração, e disse que a matava, porém ao premir o gatilho a
arma voltou a encravar e não disparou.
4.19. A ofendida, em acto reflexo, tentou desviar a espingarda do seu corpo, tendo o arguido
manietado a ofendida com a mão esquerda, colocando-se por trás desta, apontando depois a arma
na direcção do braço direito da ofendida, premido o gatilho e efectuado um disparo, que acertou
na parte interior do seu antebraço direito e no abdómen.
4.20. Logo após, o arguido largou a arma, tendo a ofendida descido sentada, e combalida, as
escadas da habitação.
4.21. Nessa ocasião o arguido dirigiu-se à ofendida e disse “querias morrer agora vais morrer” e
“então não tinhas medo de morrer e agora já tens”.
4.22. Em virtude de tais ferimentos, a ofendida foi assistida no local pelo INEM e transportada
para o Hospital de Portimão.
4.23. A ofendida apresentava uma hemorragia activa do membro superior direito e múltiplas
lesões contundentes ao nível do abdómen, apresentando uma extensa ferida contusa com cerca de
25 cm de comprimento, com perda de tecidos superficiais e destruição muscular, na parte interna,
entre o cotovelo e o punho, no antebraço direito.
4.24. A ofendida foi transferida para Hospital de Santa Maria, em Lisboa, apresentando esfacelo
de quase totalidade da face interna do antebraço direito, com perda total do revestimento cutâneo
e esfacelo amplo das massas musculotendinosas da região anatómica afectada.
4.25. Em virtude de tais factos, a ofendida foi submetida a cirurgia plástica com anestesia geral
para correcção do esfacelo do membro superior direito, tendo ficado internada desde o dia
19/04/2020 até 11/05/2020.
4.26. A ofendida apresentava a seguinte sequela:
a. Membro superior direito: vendagem no antebraço direito que não se remove, nem consegue
movimentar braço e mão.
4.27. As lesões apresentadas pela ofendida resultaram de traumatismo de natureza perfurante e
determinaram 106 dias para a consolidação médico-legal, com afectação da capacidade de
trabalho geral (60 dias) e com afectação da capacidade de trabalho profissional (60 dias).
4.28. No referido dia 19/04/2020, o arguido detinha, na sua posse, no interior da sua habitação:
a. Uma espingarda caçadeira, da marca “Browning”, modelo B-80, calibre 12, n.º série (…), e que
apresenta um cano único (serrado);
b. Dois cartuchos de calibre 12, para espingarda caçadeira deflagrados;
c. Duas buchas de cartucho, para espingarda caçadeira deflagrados;
d. Uma pistola da marca Waltro, modelo 85 Combat, calibre 8mm transformada para calibre 7,65,
com indicação do calibre rasurado, sem número de série visível, fabricada em Itália por Libera
Vendita Platinas em plástico de cor preta e o corpo de cor cinza prata com respectivo carregador e
escovilhão;
e. Sete cartuchos de calibre 12, com invólucro de cor verde da marca RIO;
f. Uma pressão de ar, marca Webley Victor, com o número (…);
g. Um cano serrado de uma espingarda caçadeira com cerca de 31 cm.
4.29. Foi apreendido um livrete de manifesto de arma com o número (…) emitido em 20-12-1985
referente a uma espingarda de caça Browning com o número (…) em nome de (…) e uma licença
de uso e porte de arma de caça com o número (…), válida para os anos de 1986 a 1990, em nome
de (…), referente a uma arma de um cano calibre 12.
4.30. O arguido não é detentor de qualquer licença de uso e porte de arma.
4.31. Ao agir do modo descrito, o arguido pretendia e queria tirar a vida de (...), bem como
molestá-la fisicamente, bem sabendo que com tal conduta atingia órgãos vitais da ofendida uma
vez que direccionou a arma para a cabeça e a zona abdominal da mesma, só não lhe conseguindo
tirar a vida por razões independentes da sua vontade.
4.32. O arguido bem sabia que, ao direcionar a arma para as regiões do corpo da ofendida supra
descritas, lhe tiraria a vida e/ou lhe criava perigo para a vida e ainda assim não se absteve de
premir o gatilho da arma, o que quis, disparando-a sob a ofendida, só não logrando atingir nos
seus órgãos vitais por interferência da própria ofendida.
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4.33. O arguido bem sabia que praticava os factos contra a sua cônjuge e utilizando meio
particularmente perigoso, o que quis.
4.34. O arguido bem sabia que não podia deter, utilizar ou guardar as supra referidas armas e
munições, sendo que conhecendo as características das mesmas, não se inibiu de as deter.
4.35. O arguido bem sabia que para deter, utilizar ou guardar quaisquer armas na sua posse e as
respectivas munições, necessitava de licença que o habilitasse a tais classes de armas, bem como
necessitava de registar as armas, embora aquelas não o fossem suscetíveis de o ser, o que sabia
não deter e ser obrigatório, mas mesmo assim não se absteve de agir do modo descrito, o que quis
e logrou.
4.36. Mais sabia o arguido que não poderia deter qualquer arma transformada, por si ou por
terceiro, na sua posse, e ainda assim quis deter as referidas armas.
4.37. O arguido actuou sempre de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua
conduta era proibida e punida por lei penal.
4.38. O arguido não tem antecedentes criminais registados.”
5.ª - No julgamento, o arguido prestou declarações, revelando discurso incoerente, inverosímil,
com um propósito claro de alijar responsabilidades, dizendo, em suma, que apontou a arma à
mulher apenas porque a queria assustar e que disparou a arma inadvertidamente.
6.ª - Resulta inequívoco, pela reiteração das condutas e zonas para onde o arguido dispara, que a
sua intenção era efectivamente tirar a vida à ofendida, o que apenas não acontece por razões
alheias à sua vontade. Num primeiro momento porque a sua mãe intervém e desvia o tiro, num
segundo e terceiro momento porque nos disparos sobre a cabeça e coração a arma encravou e, por
fim, porque apesar de ter atingido a ofendida no braço e abdómen a mesma foi prontamente
assistida.
7.ª - A ofendida depôs com rigor, isenção, objectividade e clareza, pautado pela emoção e
comoção, principalmente no que diz respeito ao episódio ocorrido no dia 19-04-2020, tendo a mãe
do arguido admitido que, mercê da sua intervenção junto do arguido, o primeiro tiro foi
direccionado para o tecto da cozinha e não para a ofendida, como pretendia o arguido.
8.ª – A testemunha (…), vizinho, esclareceu que, estando em casa, a mãe do arguido lhe pediu
ajuda, pois o seu filho queria matar a ofendida pelo que acorreu à residência destes e já no seu
interior ouviu gritos da vítima e um disparo, após o que viu a vítima a sangrar do braço direito,
tendo então diligenciado pelos primeiros socorros.
9.ª - O arguido e a vítima encontravam-se casados há 24 anos, fazendo vida em comum, e tinham
uma filha, com 22 anos de idade, que já não vivia com eles.
10.ª - (...) agiu motivado por ciúmes doentios, sem qualquer prova senão a sua própria crença,
acreditando que a sua mulher manteria uma relação extraconjugal com outro homem, apenas
porque recebeu umas mensagens anónimas.
11.ª - No dia 12-04-2020, na residência do casal, o arguido empunhou uma espingarda caçadeira,
cujo cano serrou, municiada com dois cartuchos, e ordenou à vítima que lhe mostrasse o telemóvel
e, perante a recusa desta, nem lhe deu a oportunidade de se defender, disparando, de seguida, na
cozinha, que não atingiu a vítima porque a mãe do arguido interveio e lhe levantou o braço no
momento do disparo, direcionando o tiro para o tecto.
12.ª - De imediato, o arguido empurrou a sua mãe para fora de casa, fechou a porta da entrada e,
com a arma empunhada, perseguiu a ofendida até à casa de banho, no primeiro andar, onde esta
se refugiara.
13.ª - Aí, o arguido apontou a arma à zona temporal da cabeça da ofendida, o arguido premiu o
gatilho, mas a arma encravou; após abrir a arma, tirar e enfiar o cartucho na câmara, apontou a
arma à zona do coração da ofendida, premiu o gatilho, mas a arma encravou; abriu a arma,
voltou a tirar e a enfiar o cartucho na câmara e, desta vez, manietando a arguida pelas costas,
empunhou a arma de encontro ao seu braço, e disparou um tiro à queima-roupa que atingiu no
braço e zona abdominal, provocando-lhe graves lesões.
14.ª - Tendo sobrevivido, e estando a sangrar abundantemente do braço, o arguido além de não lhe
prestar auxílio, ainda disse, perante os gritos da ofendida de que iria morrer: “querias morrer,
agora, vais morrer” e “então, não tinhas medo de morrer? E agora já tens”.
15.ª - Ao desprezar de forma grosseira os deveres de cooperação, respeito e assistência, torna-se
manifesto o acrescido desvalor da conduta do arguido, tanto mais que nada no comportamento da
ofendida se traduziu em provocação para com o arguido.
16.ª - A actuação torpe e violenta do arguido, que o levou a superar, por ciúmes, em relação à sua
mulher, as contra-motivações ético-sociais decorrentes da sua proximidade familiar com a sua
cônjuge, fechando-a em casa e perseguindo-a e encurralando-a, tendo-lhe apontando por diversas
vezes, à queima-roupa, uma arma de fogo, disparando por duas vezes sem lhe dar qualquer
possibilidade de defesa, revela especial censurabilidade e perversidade.
17.ª - Entendemos que o arguido deve ser condenado pela prática de um crime de detenção ilegal
de arma, p. e p. pelo artigo 86.º, n.º 1, al. c), da Lei das Armas, não só pela posse da pistola da
marca “Waltro”, modelo 85 “Combat”, calibre 8mm transformada para calibre 7,65 de fogo, e
sete cartuchos de calibre 12, com invólucro de cor verde da marca RIO, mas também pela posse da
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espingarda caçadeira da marca “Browning”, modelo “B-80”, calibre 12, n.º de série (…).
18.ª - Temos como certo que o arguido guardou, deteve e transportou a espingarda caçadeira da
marca “Browning”, fora das condições legais, e sem qualquer título legal para a usar, tendo até
serrado o cano da espingarda, para melhor concretizar os seus intentos.
19.ª - O facto de o arguido ter sido punido pela prática de um crime de detenção de arma proibida,
p. e p. pelo artigo 86.º, n.º 1, al. c) e d), da Lei n.º 5/2006, de 23 de Junho, não obsta à agravação
do crime de homicídio pelo uso da arma, nos termos do artigo 86.º, n.º 3, daquele diploma legal,
pois trata-se de punição de condutas distintas.
20.ª - Mesmo que o arguido apenas detivesse a espingarda caçadeira da marca “Browning”, com
o cano serrado, que utilizou para cometer o crime de homicídio qualificado, o arguido tinha de ser
condenado pelo crime de homicídio qualificado, na forma tentada, em concurso real (e não
aparente) com o crime de detenção de arma proibida.
21.ª - “O crime de homicídio e de detenção de arma proibida, tutelam distintos bens jurídicos e
não ocorre, no caso concreto, uma dupla valoração em relação à arma utilizada pelo agente, uma
vez que a agravação cominada no tipo legal em análise (homicídio) não absorve a censura ético-
normativa da detenção duma arma sem estar licenciado para o efeito. Consequentemente, deve o
arguido ser condenado, quer pelo crime de homicídio, quer pelo crime de detenção de arma
proibida.” (in CJ, STJ, n.º 302, Ano XXVIII, T. I, 2020, pág. 217).
22.ª - Deste modo, devendo o arguido ser punido apenas por um crime de detenção de arma
proibida, punível em conformidade com a disposição legal mais grave, funcionam as «outras»
armas/munições como agravantes na determinação da medida concreta da pena.
23.ª - Analisando os factos dados como provados, a fundamentação de facto, de direito e o
dispositivo do acórdão recorrido, salvo melhor opinião, não podemos concordar com a decisão de
condenar o arguido, pela prática, em autoria material, de um crime de homicídio qualificado, na
forma tentada, em concurso efectivo com um crime de detenção de arma proibida, na pena única
de 7 anos de prisão.
24.ª –“A determinação da medida concreta da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita, de
acordo com o disposto no artº 71º do CP, em função da culpa e das exigências de prevenção,
devendo atender-se a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a
favor do agente ou contra ele, circunstâncias essas de que ali se faz uma enumeração
exemplificativa e podem relevar pela via da culpa ou da prevenção. (Ac STJ, processo n.º
262/13.3PAPTM.E.1.S1)
25.ª - “À questão de saber de que modo e em que termos actuam a culpa e a prevenção responde o
artº 40º, ao estabelecer, no nº 1, que «a aplicação de penas visa a protecção de bens jurídicos e a
reintegração do agente na sociedade» e, no nº 2, que «em caso algum a pena pode ultrapassar a
medida da culpa».
26.ª - Assim, a finalidade primária da pena é a de tutela de bens jurídicos e, na medida do possível,
de reinserção do agente na comunidade. À culpa cabe a função de estabelecer um limite que não
pode ser ultrapassado.
27.ª - Há uma medida óptima de tutela dos bens jurídicos e das expectativas comunitárias que a
pena se deve propor alcançar”, mas que não fornece ao juiz um quantum exacto de pena, pois
“abaixo desse ponto óptimo ideal outros existirão em que aquela tutela é ainda efectiva e
consistente e onde portanto a pena concreta aplicada se pode ainda situar sem perda da sua
função primordial”.
28.ª - Dentro desta moldura de prevenção geral, ou seja, “entre o ponto óptimo e o ponto ainda
comunitariamente suportável de medida da tutela dos bens jurídicos (ou de defesa do ordenamento
jurídico)” actuam considerações de prevenção especial, que, em última instância, determinam a
medida da pena.”
29.ª - O crime de homicídio qualificado na forma tentada previsto 22.º, n.º 1 e 2, al. b), 23.º, n.º 1,
26.º, 131.º e 132.º, n.º 1 e 2, al. b) do Código Penal e art. 86.º, n.º 3, do RJAM,, é punido, em
abstracto, com pena de prisão entre 3 anos e 2 meses e 25 anos de prisão.
30.ª O crime de detenção de arma proibida previsto no art. 86.º, n.º 1 alíneas c) da Lei n.º 5/2006
de 23 de Fevereiro, é punido com pena de prisão de 1 a 5 anos ou com pena de multa até 600 dias.
31.ª – Nos crimes de homicídio, as exigências de prevenção geral positiva são sempre intensas,
pois que a violação do bem jurídico primeiro – a vida – fere grandemente os sentimentos ético-
jurídicos das pessoas.
32.ª - O arguido não confessou os factos nem mostrou arrependimento sobre a sua perpetração,
apresentando uma versão inverosímil que menospreza a natureza do comportamento adoptado,
demonstrando que não interiorizou o desvalor que ele traduziu.
33.ª - O grau de ilicitude é elevadíssimo, atenta a gravidade dos factos praticados, nomeadamente
por se tratar da sua mulher, violando os deveres de respeito e de assistência, o dever pela
importância dos valores jurídicos violados e pela forma de cometimento do crime e sentimentos de
desprezo e indiferença revelados pelo arguido, sem olvidar que utilizou uma arma de fogo,
disparando à queima-roupa, negando qualquer possibilidade de defesa à sua mulher, e não lhe
prestando qualquer auxílio após a ter alvejado.
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34.ª - O dolo directo, muito intenso.
35.ª - A motivação – ciúmes obsessivos – demonstra uma má formação da personalidade do
arguido, agindo com uma excessiva e despropositada violência, sem qualquer motivo válido para
tal.
36.ª - O modo de execução: o arguido encurralou a sua mulher, totalmente indefesa, dentro da
residência e disparou várias vezes, à queima-roupa, com uma espingarda com o cano serrado,
efectuando um dos disparos na presença da sua mãe.
37.ª – A personalidade evidenciada pelo arguido conduz ao aumento das exigências preventivas,
atentas as características de frieza e de distanciamento afectivo, auto-desculpabilização,
desconfiança, egoísmo, quando existia uma especial relação entre arguido e vítima, por serem
marido e mulher, reveladores de uma atitude indiferente perante os valores fundamentais que
regem a sociedade.
38.ª - A estabilização contrafáctica das expectativas comunitárias na afirmação do direito reclama
uma reacção forte do sistema formal de administração da justiça, traduzida numa pena capaz de
restabelecer a paz jurídica abalada pelo crime e de assegurar a confiança da comunidade na
prevalência do direito.
39.ª - Relativamente ao crime de detenção de arma proibida também são prementes as exigências
de prevenção em crimes desta natureza, dado que cada vez as pessoas adquirem, detêm e utilizam
armas, de forma indiscriminada e descontrolada, sabendo que as mesmas têm capacidades letais e
que, por isso, só podem ser detidas mediante licenciamento pelas autoridades competentes,
potenciadoras de crimes contra a integridade física e a vida.
40.ª - O elevado grau de dolo directo.
41.ª - A ilicitude é elevada, atentas características das armas que o arguido tinha na sua posse,
insusceptíveis de serem legalizadas.
42.ª - Relativamente à escolha da pena aplicada o crime de detenção de arma proibida,
concordamos plenamente com o Tribunal a quo que “atendendo, por um lado, ao número de vezes
que estes crimes são cometidos e a intranquilidade que criam, cremos que o desvalor das condutas
não pode ser apreciado isoladamente do homicídio qualificado na forma tentada, pois foi
precisamente por recurso a uma das armas que tinha em casa que o arguido disparou sobre a sua
mulher, não descurando que a arma que determinou a consumação do crime de detenção ilegal de
arma era uma pistola transformada, com número de calibre rasurado, pelo que a imagem global
da conduta do arguido já não é de molde a satisfazer-se com a aplicação da pena de multa, tanto
mais que a isso se opõem exigências irrenunciáveis de prevenção geral por forma a que a
comunidade veja restabelecida a confiança na validade da norma violada.”
43.ª - Merecendo provimento o recurso, as penas quantos aos crimes de homicídio qualificado e de
detenção de arma proibida, deverão ser reformuladas.
44.ª - Assim sendo, tudo ponderado, atendendo aos limites abstractos das penas, afigura-se
adequada aplicar ao arguido (...):
a) pela prática do crime de homicídio qualificado, na forma tentada, p. e p. pelos artigos 22.º,
23.º, 131.º e 132.º, n.º 1 e 2, alínea b), do Código Penal e 86.º, n.º 3, da Lei 5/2006, de 23 de
Fevereiro, a pena de treze anos de prisão;
b) pela prática do crime de detenção de arma proibida, na forma consumada, p. e p. pelos artigos
14.º, n.º 1, 26.º 1.ª parte, do Código Penal, e 86.º, n.º 1, alíneas c), d) e e), e n.º 2, com referência
aos artigos 2.º, n.º 1, alínea p) i), s), v), x), ar) e az), e 3, alíneas e) e p), 3.º, n.º 1 e 2, alíneas l), p)
e x), da Lei 5/2006, de 23 de Fevereiro, a pena de 1 ano e 10 meses de prisão.
45.ª - Atento o disposto no artigo 77.º, n.º 1, do Código Penal “quando alguém tiver praticado
vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa
pena única.”
46.ª - Caso o recurso tenha provimento, a pena única em que o arguido (...) foi condenado também
deverá ser reformulada.
47.ª - Assim, atendendo ao disposto no n.º 2 do artigo 77º do Código Penal a pena única aplicada
tem de situar-se entre os 13 anos (mais alta das penas parcelares) e 14 anos e 10 meses (soma da
totalidade das penas aplicadas).
48.ª - Tendo em atenção as considerações expendidas sobre a determinação das penas parcelares,
e ponderando a imagem global dos crimes imputados e da personalidade, a dimensão dos bens
jurídicos tutelados pelas duas condenações, nomeadamente a vida, o bem jurídico maior,
revelando o arguido uma acentuada ilicitude e insensibilidade moral perante o sofrimento da
vítima, não tendo mostrado arrependimento, entende-se adequado fixar a pena única do arguido
(...) em 12 anos de prisão.
49.ª - Decidindo como decidiu, o tribunal a quo violou os artigos 22.º, 23.º, 73.º, 131.º e 132.º, n.º 1
e 2, alínea b), 30.º, n.º 1, 40.º, n.º 1 e 2, 71.º, n.º 1 e 2, todos do Código Penal, 86.º, n.º 1, alíneas
c), d) e e), e n.º 2, da Lei 5/2006, de 23 de Fevereiro.
50.ª- Termos em deverá ser dado provimento ao recurso e o acórdão recorrido ser revogado em
conformidade com o exposto.”

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2.3. Das contra-alegações do arguido


Respondendo ao recurso interposto pelo Ministério Público o arguido motivou concluindo nos
seguintes termos (transcrição):
“1º - Da prova realizada, resulta provado que o Arguido não regista quaisquer antecedentes
criminais, o que, atenta a sua idade e percurso de vida, releva para a Decisão de condenar sem
especial severidade, pelo que se não pode subscrever o douto entendimento do Ministério Público.
2º - Igualmente, resulta da produção da prova, em Julgamento, que o Arguido ficou especialmente
debilitado, e enfraquecido, em consequência dos telefonemas recebidos, que o alertavam para a
infidelidade de sua esposa, estando, à data dos factos, justificadamente diminuído na sua
imputabilidade, o que deverá manifestar-se na atenuação da pena a aplicar, que deverá ser
inferior, e nunca mais grave, do que a aplicada em 1ª Instância.
3º - A grande angústia do Arguido, provocou-lhe diminuição da imputabilidade, que lhe retirou a
capacidade de se determinar de acordo com as normas, tudo justificando que a pena única
aplicada em 1ª Instância seja reduzida, e nunca agravada.
4º - O Arguido, casou para toda a vida, sempre cuidando da sua família, representando as
suspeitas de infidelidade de sua esposa, uma grande ansiedade no sentido de querer saber da
verdade, nunca tendo tido dolo mais grave.
5º - Seriamente perturbado na sua capacidade de se determinar, o Arguido tentou assustar sua
esposa, com vista a que a mesma o esclarecesse sobre a verdade, sem sucesso, nunca tendo
pretendido mais do que assustar, mesmo que ameaçando do que nunca foi seu propósito.
6º - Não tendo escolhido o melhor meio para confrontar sua esposa, utilizou a arma de seu
falecido pai para assustar sua esposa, ameaçando-a, sem que pretendesse efectuar qualquer
disparo, pois só desejava que lhe fosse contada a verdade.
7º - O Arguido nunca projectou atentar contra a vida de sua esposa, Assistente nos autos, sendo
seu único propósito coagi-la a contar-lhe a verdade, não resultando, da prova realizada e
analisada de acordo com a experiência comum o contrário, pelo que deveria ter resultado provado
o tipo negligente.
8º - E, porque o Arguido mais não pretendia, do que assustar, sem querer atentar contra a vida de
sua esposa, a empurrou, sem efectuar qualquer disparo. O Arguido só desejava uma resposta, e
não a morte da esposa, e, por isso, lhe fez as perguntas.
9º - Provado, resulta que os disparos da arma se deveram à intervenção de terceiros, resultando a
lesão da vítima de um acidente não previsto pelo Arguido, e para o que a própria vítima
contribuiu.
10º - Igualmente provado, resultou que, após o acidente, foi o Arguido que telefonou para o
“INEM”, ficando com a vítima, que logo socorreu, estancando a hemorragia, factualidade
justificativa da atenuação da pena única, para além de se afastar a intenção de matar.
11º - A emoção justificadamente sentida pelo Arguido, em consequência dos telefonemas recebidos,
diminuiu-lhe a imputabilidade e a capacidade de se determinar livre e conscientemente, o que
justifica a atenuação da culpa, e da pena a aplicar, que nunca deverá ser efectiva, mas suspensa
na sua execução, perante todo o circunstancialismo a considerar.
12º - Presumindo-se, com dignidade Constitucional, inocente, à falta de elementos probatórios
bastantes, restaria considerar praticado o tipo negligente, e absolver da prática do crime
qualificado tentado, de que o Arguido nunca teve dolo.
13º - Sem antecedentes, e não sendo um jovem, face a toda a factualidade, o Arguido é merecedor
de uma oportunidade, não sendo imperiosa, nem aconselhável, a reclusão, sabidamente incapaz de
reabilitar e reintegrar, sendo expectável que o Arguido o alcance em meio livre.
14º - Independentemente de todo o exposto supra, a excessiva pena efectiva aplicada pelo douto
Tribunal “a quo”, que ultrapassa a medida da culpa, não poderá deixar de ser substancialmente
reduzida, e suspensa na sua execução, contrariamente ao proposto pelo Ministério Público.
15º - Improcedendo o Recurso do Ministério Público, deve o Arguido ser absolvido da prática do
crime de Homicídio Qualificado, na forma tentada, por ausência de dolo para tanto, punindo-o
pelo ilícito negligente, sem o que se desconsidera a Constitucional presunção de inocência de que
gozam os Arguidos, e se ultrapassa as regras da experiência comum e os limites da livre
apreciação da prova, o Princípio “in dubio pro reo”, o disposto no artigo 127º do Processo, do
Código de Processo Penal, e os artigos 40º, 71º, 72º, 137º e 50º, do Código Penal, pelo que,
merecendo, o Recurso do Arguido, integral provimento, absolvendo-se da tentativa de homicídio,
se deverá negar provimento ao Recurso do Ministério Público a que ora se responde.
Nestes termos e nos demais de direito que Vªs Exªs doutamente suprirão, a não haver reenvio do
Processo, para repetição do Julgamento, negando-se provimento ao Recurso apresentado pelo
Ministério Público, deverá o douto Acórdão ora Recorrido ser revogado e substituído por outro
que conclua pela absolvição do Recorrente, pela prática do tipo qualificado, e, assim se não
entendendo, sempre será de reduzir substancialmente a excessiva pena aplicada em 1ª Instância, a
suspender na sua execução, assim merecendo provimento o presente Recurso.”.

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2.4. Das contra-alegações do Ministério Público


Respondendo ao recurso interposto pelo arguido motivou o Ministério Público concluindo nos
seguintes termos (transcrição):
“I – Por acórdão proferido no dia 7 de Janeiro de 2021, no Processo Comum, Tribunal Colectivo
n.º 173/20.6GBSLV, o arguido (...) foi condenado, em autoria material e em concurso efectivo, pela
prática de um crime de homicídio qualificado, na forma tentada, p. e p. pelos artigos 22.º, 23.º,
131.º e 132.º, n.º 1 e 2, alínea b), do Código Penal, e artigo 86.º, n.º 3, da Lei 5/2006, de 23 de
Fevereiro, na pena de 6 anos e 6 meses de prisão e um crime de detenção de arma proibida, na
forma consumada, p. e p. pelos artigos 14.º, n.º 1, 26.º 1.ª parte, do Código Penal, e 86.º, n.º 1,
alíneas c), d) e e), e n.º 2, com referência aos artigos 2.º, n.º 1, alínea p) e v), x), ar) e az), e 3,
alíneas e) e p), 3.º, n.º 1 e 2, alíneas l), p) e x), da Lei 5/2006, de 23 de Fevereiro, na pena de 1 ano
e 2 meses de prisão, e, em cúmulo jurídico, na pena única de 7 anos de prisão.
II - No caso concreto, o Tribunal motivou de modo irrepreensível a decisão sobre a matéria de
facto dada como assente, enumerando os factos dados como provados e não provados e expondo
de forma completa e concisa, os motivos de facto e de direito que fundamentam a decisão, com
indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal, cujo
enunciado se traduz numa explicitação clara e lógica do processo de formação da convicção do
tribunal.
III – Produzida a prova em audiência de julgamento, o Tribunal a quo apreciou a mesma segundo
as regras da experiência, de acordo com aquilo que é usual acontecer, e a sua livre convicção, de
modo objectivo e motivado, tendo concluído de que foi produzida prova dos factos imputados ao
arguido, os quais foram dados como provados, para além de qualquer dúvida razoável.
IV - Relativamente à medida da pena, ponderando a medida da culpa pelo conjunto dos factos, a
pena de homicídio deve fixar-se bem acima do mínimo da moldura aplicável, no ponto intermédio.
V – As exigências de resssocialização impõem que a pena única se fixe muito acima do mínimo
exigido pela prevenção geral, pelo que, em nosso entender, só uma pena situada a esse nível
poderá influenciar positivamente o comportamento futuro do recorrente, de modo que interiorize
os malefícios que lhe são impostos por atentar contra a vida da sua mulher.
VI - A pretensão do arguido, perante a imagem global dos factos, nunca poderá satisfazer
finalidades da punição.
VII - Assim sendo, por inadmissibilidade legal, não pode a pena de prisão imposta ao arguido ser
suspensa na sua execução, nos termos do artigo 50.º, n.º 1, do Código Penal.
VIII - Não foi violado o disposto nos artigos 127.º do Código de Processo Penal, e 40º, 71º, 72º,
137º e 50º, todos do Código Penal, nem foi violado o princípio in dubio por reo.
IX - Não se vislumbra a existência de qualquer vício, como alega o requerente.
Termos em que deve ser negado provimento ao recurso interposto pelo arguido.”.

2.5. Do parecer do MP em 2.ª instância


Na Relação o Exmo. Senhor Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer com o seguinte teor
(transcrição):
“(…) Recurso interposto pelo MºPº
(…) O Tribunal Colectivo condenou o arguido (...) pela prática, como autor material e em
concurso efectivo, de um crime de homicídio qualificado, na forma tentada, p. e p. pelos artigos
22.º, 23.º, 131.º e 132.º, n.º 1 e 2, alínea b), do Código Penal, e artigo 86.º, n.º 3, da Lei 5/2006, de
23 de Fevereiro, na pena de 6 anos e 6 meses de prisão e um crime de detenção de arma proibida,
na forma consumada, p. e p. pelos artigos 14.º, n.º 1, 26.º 1.ª parte, do Código Penal, e 86.º, n.º 1,
alíneas c), d) e e), e n.º 2, com referência aos artigos 2.º, n.º 1, alínea p) e v), x), ar) e az), e 3,
alíneas e) e p), 3.º, n.º 1 e 2, alíneas l), p) e x), da Lei 5/2006, de 23 de Fevereiro, na pena de 1 ano
e 2 meses de prisão.
Em cúmulo jurídico na pena única de 7 anos de prisão.
Inconformado com a decisão veio o Ministério Público interpor recurso manifestando a sua
discordância, fundamentalmente, da medida da pena aplicada ao arguido.
De facto, apesar da discordância manifestada quanto à subsunção dos factos atinentes à detenção
e uso de arma proibida a verdade é que, julgando interpretar correctamente o pensamento
expresso nesta peça processual, tal divergência não assume especial relevância no que diz respeito
ao número de crimes efectivamente praticados e ao número de condenações que o arguido deveria
ter sofrido.
É o que parece resultar do teor da conclusão 44ª b) ao referir expressamente a punição por um
único crime de detenção de arma proibida.
O “thema decidendum” é pois este – são ou não adequadas as penas parcelares aplicadas por
cada um dos referidos ilícitos e é ou não adequada a pena única de 7 anos de prisão.
Uma vez que o recurso interposto pelo Ministério Público não impugna nem contesta minimamente
a decisão de facto, embora reproduza abundantemente toda a prova e sobre ela teça as suas
próprias considerações, abster-nos-emos de repetir todo o segmento do recurso nesta parte não
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deixando, porém, de exarar nesta sede a nossa total concordância com essa posição por se nos
afigurar inteiramente pertinente e coincidente com a valoração que o Tribunal fez da prova.
Faremos apenas uma breve referência aos factos para melhor enquadrar a solução de direito.
Recordando a decisão de facto, temos o seguinte:
(…)
Esta é, portanto, a factualidade selecionada pelo Ministério Público – e expressa no Acórdão –
que justificaria uma alteração substancial da moldura penal quer quanto a cada um dos crimes
“per si”, quer quanto à pena única.
Que dizer?
No seu extenso requisitório o senhor Procurador fundamenta com bastante veemência as razões
que justificarão uma alteração tão drástica da moldura penal.
Nomeadamente que o arguido,
“agiu motivado por ciúmes doentios, acreditando, sem provas, mas em intrigas sem rosto, que a
sua mulher manteria uma relação extraconjugal com outro homem, apenas porque recebeu umas
mensagens anónimas, sem qualquer suporte na realidade.” – sic.
E que,
“no dia em que os factos ocorreram, um domingo, vestiu-se como se fosse sair, em vez de vestir o
usual fato-de-treino; questionado se ia sair naquele dia e ela o podia acompanhar, ter-lhe-á dito,
num tom estranho, “vou sair, vais comigo vais…”.
Ainda nessa manhã, numa arrecadação existente na residência, o arguido serrou o cano da
espingarda caçadeira, que era do seu falecido pai.
À tarde, depois de uma refeição leve (crepes feitos pela vítima), deixando a sua mãe e a vítima em
casa (a aspirar), o arguido dirigiu-se com a arma, já municiada com dois cartuchos, para o seu
carro, para se encontrar com alguém desconhecido, que lhe prometia exibir provas irrefutáveis de
que a mulher o enganava, e que nem sequer apareceu.
E ainda que,
“arguido nem deu à vítima a oportunidade de se defender, não se fundando em provas tangíveis
para chegar à conclusão de que a sua mulher lhe era infiel.”
Para, depois de mais algumas considerações, concluir que,
“Tal modo de agir configura, em nosso entender, actuação especialmente perversa e censurável,
tanto mais que nem a presença da sua mãe o demoveu de disparar contra a sua mulher, tendo
depois afastado a sua mãe para poder, com calma e frieza, tirar a vida à sua mulher, efectuando
um disparo à queima-roupa, o que demonstra o total desprezo pela vida desta.
Nada justifica o homicídio, pois o valor da vida é o bem mais elevado que é proporcionado ao ser
humano e, nas circunstâncias em que o arguido agiu, espelhado no facto praticado, revela uma
personalidade desconforme ao direito” e que revelará “especial censurabilidade e perversidade”.
Depois de proceder a uma ponderação das circunstâncias concretas que concorrem em cada um
dos ilícitos para a determinação da medida da pena, em face dos critérios postulados pelos artºs
40º e 71º do CP, nomeadamente a protecção dos bens jurídicos violados pela conduta criminosa, a
ilicitude e a culpa – intensas – as exigências de prevenção geral e especial, a compatibilização
entre essas necessidades e o dever de promover a ressocialização do agente, que não tem
antecedentes criminais, a conduta do arguido em julgamento, a natureza do bem jurídico violado e
a sua relação com a vítima, a motivação do crime, demonstrativa de uma personalidade mal
formada, o modo de execução do crime e a persistência no propósito criminoso apesar da
oposição da própria mãe, o grau de sofrimento infligido e as consequências directas da agressão,
depois de proceder a esta reflexão dizíamos, considera o recorrente que ao crime de homicídio
qualificado sob a forma tentada deveria ser aplicada a pena de 13 anos de prisão. E ao crime de
detenção de arma proibida – apenas um – 1 ano de 10 meses de prisão.
Há que reconhecer o esforço realizado na tentativa de demonstrar a inadequação da pena de 6
anos de 6 meses – sobretudo esta – para punir o crime de homicídio qualificado na forma tentada
no circunstancialismo fáctico descrito.
Admitimos até que esta pena peque por escassa.
Mas, da mesma forma, nos custa admitir a aplicação de uma pena de 13 anos de prisão, como está
pedida.
Não ignoramos o pulsar de sentimentos contraditórios e até antagónicos no seio das sociedades
modernas – o caso português não é único – que parecem prefigurar fenómenos de retrocesso
relativamente ao pensamento que até há algum tempo dominava a “intelligentsia” jurídica no que
toca aos “benefícios” e “vantagens” preventivas e ressocializadoras da pena de prisão. E é assim
que, enquanto em muitos areópagos internacionais ainda se olha para o nosso País como um
recanto civilizacional onde vigoram práticas repressivas dignas do século XIX – continuamos a ser
censurados internacionalmente por ter uma das mais elevadas taxas de encarceramento por
habitante, diz-se – por outro lado não é raro surgirem vozes autorizadas – e outras nem tanto – a
clamar contra o laxismo dos Tribunais, por que aplicam penas ridículas, quando não mandam,
pura e simplesmente, “os criminosos para a rua”. Esta sensação é particularmente impressiva
naquilo que poderíamos chamar de “crimes odiosos” um elenco de crimes de grande repercussão
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social – violência doméstica, abusos sexuais de crianças, discriminação racial, etc. etc. – para os
quais qualquer punição que se aplique é sempre insuficiente.
Não queremos com isto dizer que não se deva estar atento ao sentimento da comunidade,
porventura à diferente percepção com que tais condutas são hoje encaradas e a menor tolerância
para com elas.
Tudo isto é verdade, tudo isto tem de ser devidamente equacionado.
Mas também não é menos verdade que uma sociedade que assenta em valores humanistas, que se
rege pelo respeito da pessoa humana e que considera que não existem pessoas “expendable”, não
pode abdicar de as tratar, mesmo do ponto de vista sancionatório e com recurso às normas
repressivas do processo penal, com humanidade o que significa aqui, com a parcimónia e
adequação que a pena de prisão impõe.
Nesta pequena divagação poder-se-á já intuir que, apesar de reconhecermos mérito ao trabalho
desenvolvido pelo nosso colega em 1ª instância, não podemos concordar com a pena que julga
adequada para punir o crime de homicídio (sobretudo este) qualificado tentado.
Não por que a conduta não seja especialmente censurável.
É.
Não por que a ilicitude e o dolo não sejam elevados e intensos.
São.
Não por que as necessidades de prevenção geral e especial não se façam sentir no caso concreto e
na conjuntura social em que vivemos com especial premência.
Não é disso que se trata. Aí estamos em total sintonia com a posição expressa pelo Ministério
Público. Onde divergimos é na necessidade de punir esta conduta concreta, no circunstancialismo
em que ocorreu, levada a cabo por um homem com quase 60 anos de idade e sem um único crime
registado no seu CRC, com uma pena extremamente pesada e que se nos afigura inadequada por
violar precisamente os princípios que invoca, ou seja fica fora do, “ponto óptimo e o ponto ainda
comunitariamente suportável de medida da tutela dos bens jurídicos (ou de defesa do ordenamento
jurídico)” e também por isso, não realiza,
“A medida da “necessidade de socialização do agente (que) é, em princípio, o critério decisivo das
exigências de prevenção especial”, mas, se o agente não se «revelar carente de socialização», tudo
se resumirá, em termos de prevenção especial, em «conferir à pena uma função de suficiente
advertência “
A pena deve consistir numa advertência. Para o arguido e para a comunidade. Não pode ser
desajustada, por demasiado benévola, por que perde o seu efeito preventivo e, consequentemente,
deixa de constituir tutela eficaz dos bens jurídicos que lhe incumbe proteger.
Mas a pena não pode ser desajustada por excesso, acima da culpa ou independente da culpa, sob
pena de se cair em puro terrorismo penal. O qual, apesar de não causar especiais preocupações a
muitos “opinion makers” que pululam um pouco por toda a parte nos órgãos de comunicação
social, não pode servir de base fundacional a qualquer direito penal digno desse nome.
Em suma, não concordamos que a pena adequada para o crime de homicídio qualificado sob a
forma tentada, quer em face das circunstâncias do crime, quer em função da personalidade do
agente – “que diabo”, tem 60 anos e nunca cometeu um crime! - seja a proposta de 13 anos de
prisão.
Sobretudo esta.
Admitimos, no entanto e invocando os mesmos princípios, que a pena possa ser ligeiramente
alterada e situar-se nos 8 anos e 6 meses de prisão, atenta a moldura legal fixada para este ilícito.
Apesar de tudo ainda muito abaixo do respectivo termo médio!
Quanto à pena do crime de detenção de arma proibida afigura-se-nos adequada, ainda com base
nos mesmos pressupostos, que se situe na medida proposta em 1ª instância – 1 ano e 10 meses -.
Sobre a punição do concurso parece-nos existir, salvo melhor opinião, uma incongruência na
fixação da pena única proposta – 12 anos.
Na verdade, propõe-se para o crime de homicídio a pena de 13 anos de prisão.
E para o crime de detenção de arma proibida 1 ano e 10 meses.
Ora, de acordo com o disposto no artº 77º nº 2 do CP, o limite máximo aplicável resultará da soma
das penas concretamente aplicáveis aos vários crimes – no caso 13 anos + 1 ano e 10 meses daria
14 anos e 10 meses – e o limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos
vários crimes – 13 anos, portanto -. Não concorrendo “in casu” qualquer das circunstâncias dos
artºs 72º e 73º do CP, a pena única nunca poderia ser inferior a 13 anos de prisão e não 12.
Tendo em consideração tudo que ficou dito afigura-se-nos que a pena única se deverá situar nos 9
anos de prisão.
Neste sentido, o recurso deverá merecer provimento parcial, revogando-se o Acórdão nesta parte e
fixando-se a pena única em 9 anos de prisão pela prática dos aludidos crimes.

Parecer nº 40/21 Recurso interposto pelo arguido (...) (…)


Por tudo aquilo que já deixámos expresso a propósito do recurso interposto pelo Ministério
Público sobre o acórdão do Tribunal Colectivo de Portimão, pouco resta de verdadeiramente novo
www.dgsi.pt/jtre.nsf/134973db04f39bf2802579bf005f080b/ed701939ad526360802586ea004dcac3?OpenDocument&Highlight=0,homicídio 11/40
02/02/2023 15:48 Acórdão do Tribunal da Relação de Évora
a dizer sobre o recurso do arguido (...).
A decisão sobre a matéria de facto afigura-se-nos bem fundamentada, sem erros ou omissões, é
coerente, analítica, completa e permite uma clara percepção de todo o “iter” seguido quer na
selecção e avaliação da factualidade constitutiva dos crimes, quer das suas circunstâncias, quer
da motivação do agente, das suas condições pessoais, etc -.
Aliás, tanto assim é que nem o Ministério Público nem o arguido, na sua condição de recorrentes,
colocam minimamente em causa o bom fundamento desta vertente da decisão.
Não fosse a parte final do recurso interposto pelo arguido e quase que poderíamos dizer – enfim,
um recurso onde não se fala dos vícios do artº 410º nº 2, nem se põe em causa a matéria de facto
nos termos do artº 412º nº 3 do CPP -.
Mas tal conclusão seria precipitada.
De facto, ao ler-se o parágrafo que antecede as conclusões e que o arguido sintetiza da seguinte
forma:
“Devia, pois, o douto Tribunal “a quo”, ter absolvido o Arguido, da prática do crime de
Homicídio Qualificado, na forma tentada, por ausência de dolo para tanto, punindo-o pelo ilícito
negligente, e não o tendo considerado, contra a Constitucional presunção de inocência de que
gozam os Arguidos, e ultrapassando as regras da experiência comum e os limites da livre
apreciação da prova, condenando-o em tão excessiva pena de prisão, violou o Princípio “in dubio
pro reo”, o disposto nos artigos 127º, com os vícios do 410º-2, que determinará o reenvio do
Processo, do Código de Processo Penal, e os artigos 40º, 71º, 72º, 137º e 50º, do Código Penal,
pelo que, merecendo, o presente Recurso, integral provimento, absolvendo-se da tentativa de
homicídio, se deverá revogar o douto Acórdão de Fls, a substituir por outro que venha a condenar
o ora Recorrente numa pena única não superior a 3 anos de prisão, suspensa na sua execução, por
verificados os legais pressupostos.”
acabamos por perder toda a ilusão…
Temos assim que, para o arguido, o Acórdão padece dos seguintes vícios:
a) Vícios do artº 410º nº 2, que deverão determinar o reenvio do processo (alusão ao artº 426º nº 1
do CPP?) Será?
b) Violação do artº 127º do CPP e, concomitantemente, do princípio “in dubio pro reo”.
c) Violação da presunção legal e constitucional de inocência.
d) Necessidade de “convolar” o crime principal para homicídio negligente, por ausência de dolo
na acção.
Parece-nos ser este o resumo do petitório.
Dado tratar-se de temas tão “estafados”, perdoe-se-nos a expressão e sobre os quais já por mais
que uma vez tivemos a oportunidade de nos pronunciar, limitar-nos-emos a reproduzir o que sobre
cada um desses pontos já dissemos.
Não sem que, antes, se refira “en passant” que o arguido nem se deu ao trabalho de invocar com
precisão (na verdade nem com precisão nem sem precisão…) quais os vícios do artº 410 nº 2 do
CPP que logrou descobrir no Acórdão, quais as passagens que evidenciam erros notórios,
manifestas insuficiências ou flagrantes contradições.
Nada. Zero absoluto.
Por outro lado, pretendendo impugnar a matéria de facto, única via possível para reverter toda a
matéria vertida na decisão, deveria ter indicado com precisão, nos termos do disposto no artº 412º
nº 3 do CPP, quais os pontos da matéria de facto que reputava mal julgados e as provas que
impunham decisão diferente.
Também aqui, nada, zero absoluto.
Os vícios do artº 410º nº 2 do CPP
Não existem, como é óbvio. Sobre eles dissemos isto:
“Os tribunais superiores há anos que se ocupam ciclicamente desta questão. Questão que gera um
debate aparentemente simples, mas que continua e persiste numa discussão enviesada, insistindo-
se numa visão que endossa total confusão – porquê, se não há tribunal superior que não se tenha
pronunciado por mais que uma vez sobre isto? - entre aquilo que são os vícios intrínsecos da
decisão, que resultam do seu próprio texto e aquilo que emana de uma diferente apreciação dos
meios concretos de prova.
O erro notório, a contradição insanável e a insuficiência para a decisão da matéria de fato
provada a que alude o artº 410º do CPP nº 2 nada têm a ver com uma errada ou deficiente
avaliação da prova.
Uma coisa nada tem a ver com a outra. Tais vícios podem fundar-se numa apreciação errada da
prova, é verdade. Mas são ostensivos, resultam do próprio texto da decisão, por si só ou conjugada
com as regras da experiência. Para os percepcionar não é preciso perscrutar os elementos de
prova em concreto produzidos. Basta a avaliação atenta de qualquer pessoa dotada de uma
razoabilidade comum.
Contudo, do acervo fáctico vertido na sentença recorrida, não se consegue vislumbrar onde a
defesa conseguiu descobrir um erro notório de avaliação, ou mesmo uma qualquer insuficiência da
matéria de facto dada como provada para a decisão de condenar o arguido.
www.dgsi.pt/jtre.nsf/134973db04f39bf2802579bf005f080b/ed701939ad526360802586ea004dcac3?OpenDocument&Highlight=0,homicídio 12/40
02/02/2023 15:48 Acórdão do Tribunal da Relação de Évora
De facto e socorrendo-nos uma vez mais da exposição feita pelo Ministério Público, desse texto
não é possível retirar um erro crasso de apreciação de prova algo que, flagrantemente, constitua
uma impossibilidade, uma incoerência gritante, quer na sua relação com outros factos dados como
provadas, quer no cotejo com as regras de experiência comum sob as quais qualquer cidadão se
rege.
Da mesma forma a matéria considerada provada é manifestamente suficiente para a decisão de
condenar o arguido pelo crime em que foi condenado.”
Não há qualquer erro notório, a matéria considerada provada é suficiente para integrar a prática
dos crimes por que foi condenado e não enferma de qualquer contradição. O texto é simples,
linear e escorreito.
Por outro lado, se quisesse demonstrar a existência não de dolo mas sim de mera negligência
deveria, para além das conjecturas que faz sem qualquer suporte na prova, ter indicado que
pontos da matéria de facto reputava mal julgados e, sobretudo, indicar as concretas provas que
impunham decisão diversa.
Não fez uma coisa nem outra.
Pelo que apenas subsiste a interpretação do Tribunal e nada mais.
Violação do artº 127º do CPP e do princípio “in dubio pro reo”.
Também aqui nada de verdadeiramente novo existe.
E, por isso, limitamo-nos a transcrever o que a este propósito já dissemos.
“Também não conseguimos alcançar com clareza o sentido desta alegação. A invocação deste
vício só acontece por que o arguido não terá compreendido bem a essência e natureza deste
princípio. Ele emana do princípio constitucional da presunção de inocência, no sentido em que,
nas palavras do Prof. Figueiredo Dias, um “non liquet” em sede de direito penal terá de resultar
forçosamente em benefício do arguido e, consequentemente, na sua absolvição.
Todavia esse “non liquet” traduz-se em direito penal na ausência de prova suficientemente
convincente e razoável para fundamentar uma condenação. O julgador, perante uma dúvida
insanável sobre a culpabilidade do arguido, por total ausência de prova ou pela ausência de prova
convincente, não poderá resolver o dilema em desfavor do arguido, mas em seu benefício. Mas,
para que tal aconteça, é necessário que a dúvida surja de forma razoável no espírito do julgador.
Já não quando este, perante um acervo de provas contraditórias, adere fundadamente a uma ou
várias em detrimento de outras. O que é necessário é que o percurso racional, que permite ao
julgador chegar a tal conclusão, seja inteligível e sindicável de forma objectiva.
Como foi claramente o caso.”
E ainda que:
“Este princípio, que mais não é que um corolário da presunção de inocência só pode ser chamado
à colação em situações nas quais o julgador tem dúvidas sobre a culpabilidade do agente, depois
de escrutinadas e avaliadas todas as provas. Não se aplica numa situação na qual o tribunal,
perante um determinado acervo probatório, fica intimamente convencido da culpabilidade do
arguido. Até pode estar a laborar num erro de avaliação, mas essa é outra questão. O que não
pode é perante uma dúvida insanável, inultrapassável, resolvê-la em desfavor do arguido. O que
não pode fazer é, na dúvida, condenar. Ora o recorrente pode ter todas as dúvidas que entender.
Mas se o tribunal não as tiver, terá de seguir por outro caminho, eventualmente o caminho previsto
no artº 412º nº 3…”
Em suma, o Tribunal, valendo-se dos princípios que norteiam a apreciação da prova em processo
penal – artº 127º - e sem contrariar as regras da experiência comum julgou, em sua íntima
convicção, que o arguido praticou, pela forma descrita, os crimes por que foi condenado. Se a
convicção do arguido era outra deveria ter sindicado a decisão de facto pela forma prevista no
artº 412º do CPP.
Não o fez.
Está no seu direito.
Do que se deixou dito decorre necessariamente que carece totalmente de fundamento a pretensão
do arguido em convolar o crime doloso para um crime negligente. Nada na prova produzida o
autoriza. Nada, a não ser as suas conjecturas – nem chegam a constituir verdadeiras
interpretações da prova, uma vez que nem por uma vez se lhes refere de acordo com o estipulado
na lei – legitimam tal conclusão.
Com a ressalva emitida no nosso parecer a propósito do recurso paralelo interposto pelo
Ministério Público, o Acórdão deverá ser confirmado, devendo ser negado provimento a este
recurso.”.

2.6. Da tramitação subsequente


Foi observado o disposto no n.º 2 do artigo 417.º do CPP.
Efetuado o exame preliminar e colhidos os vistos teve lugar a conferência.
Cumpre apreciar e decidir.

II. FUNDAMENTAÇÃO
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02/02/2023 15:48 Acórdão do Tribunal da Relação de Évora
1. Objeto do recurso
De acordo com o disposto no artigo 412.º do CPP e atenta a Jurisprudência fixada pelo Acórdão do
Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19/10/95, publicado no
DR I-A de 28/12/95 o objeto do recurso define-se pelas conclusões apresentadas pelo recorrente na
respetiva motivação, sem prejuízo de serem apreciadas as questões de conhecimento oficioso.

2. Questões a examinar
Analisadas as conclusões de recurso as questões a conhecer são:
2.1. Se ocorre algum dos vícios enunciados no n.º 2 do artigo 410.º do CPP;
2.2. Se a avaliação da prova feita pelo tribunal a quo foi realizada com violação da presunção de
inocência consagrada constitucionalmente e consequentemente do princípio in dubio pro reo; e
2.3. Sedimentada em definitivo a factualidade apurada, indagar se em face dela a medida das penas
parcelares e única devem ser alteradas.

3. Apreciação
3.1. Da decisão recorrida
Definidas as questões a tratar, importa considerar o que se mostra decidido pela instância recorrida.

3.1.1. Factos provados na 1.ª instância


O Tribunal a quo considerou provados os seguintes factos (transcrição):
“1. O arguido (...) e a ofendida (...) contraíram casamento em 5 de Agosto de 1995, vivendo
maritalmente desde essa data até esta parte, tendo fixado residência comum na (…).
2. Desta relação nasceu uma filha, (…).
3. O arguido tem, há cerca de 25 anos na sua posse e guardada no interior da sua habitação, uma
espingarda caçadeira da marca “Browning”, modelo “B-80”, calibre 12, n.º de série (...), e que
apresenta um cano único de 36 cm, serrado.
5. Desde há 5 (cinco) anos a esta parte que o arguido manifesta um comportamento obsessivo,
pautado pelos ciúmes, insinuando que a ofendida o trai.
12. No dia 19 de Abril de 2020, por volta das 16h00, o arguido encontrava-se a lanchar com a sua
mãe e com a vítima, no interior da residência comum do casal, quando se iniciou uma discussão
relacionada com questões financeiras.
13. O arguido, em hora não concretamente apurada, mas antes das 18h00, recebeu uma mensagem
de texto no seu telemóvel remetida por pessoa não concretamente identificada, esposa do homem
com quem a vítima teria alegadamente uma relação extraconjugal, dizendo ter sido traído pela
ofendida.
14. Nessa sequência, o arguido municiou a supra referida espingarda da marca “Browning”, com
dois (2) cartuchos, e ausentou-se de casa na posse da mesma, a fim de manter uma conversa
telefónica com essa pessoa.
15. O arguido esperou a chamada telefónica em frente à habitação, dentro da sua viatura, na posse
da arma municiada.
16. Volvidos alguns minutos, concluída a conversa telefónica, o arguido (...) regressou a casa e
iniciou, na cave da residência, uma discussão com a ofendida (...) exigindo que aquela lhe
mostrasse as mensagens que tinha na aplicação Messenger no seu telemóvel.
17. Perante a recusa da vítima, o arguido empunhou a supra referida espingarda, previamente
municiada por si com dois cartuchos, na direção da vítima, dizendo que a matava.
18. Nessa ocasião, o arguido deu um forte empurrão à vítima, fazendo com que a mesma caísse ao
chão.
19. A ofendida levantou-se e fugiu para a cozinha da habitação, sita no rés-do-chão, tendo o
arguido seguido no seu encalço e, encontrando-se a 2 metros de distância da vítima, apontou a
arma na sua direcção, questionando, por mais do que uma vez, se a mesma tinha algum amante.
20. Nesse momento, (...), mãe do arguido, interveio com vista a acalmar o mesmo, levantando-lhe
o braço para cima, momento em que este disparou um tiro com a arma, que atingiu o candeeiro da
cozinha.
21. Nesse momento, o arguido colocou a sua mãe na rua, fechando a porta da referida habitação.
22. Em acto contínuo, a ofendida encetou fuga para o primeiro andar da habitação, entrando para
o interior da casa de banho, tendo o arguido ido no seu encalço.
23. Nesse momento, o arguido entrou na casa de banho, apontou a espingarda municiada na
direcção da ofendida, que implorou para que o arguido não lhe fizesse mal, encostou a mesma à
sua cabeça, na região temporal esquerda, e premiu o gatilho, não tendo a arma nesse momento
disparado, por motivos alheios à vontade do arguido.
24. Nesse instante, o arguido abriu a arma retirou o cartucho e voltou a colocar o mesmo cartuxo
na arma.
25. Em acto contínuo, o arguido voltou a encostar a arma ao corpo da ofendida, na zona do
abdómen, concretamente na região do coração, e disse que a matava, porém ao premir o gatilho a
arma voltou a encravar e não disparou.
www.dgsi.pt/jtre.nsf/134973db04f39bf2802579bf005f080b/ed701939ad526360802586ea004dcac3?OpenDocument&Highlight=0,homicídio 14/40
02/02/2023 15:48 Acórdão do Tribunal da Relação de Évora
26. A ofendida, em acto reflexo, tentou desviar a espingarda do seu corpo, tendo o arguido
manietado a ofendida com a mão esquerda, colocando-se por trás desta, apontando depois a arma
na direcção do braço direito da ofendida, premido o gatilho e efectuado um disparo, que acertou
na parte interior do seu antebraço direito e no abdómen.
27. Logo após, o arguido largou a arma tendo a ofendida descido sentada, e combalida, as
escadas da habitação.
28. Nessa ocasião o arguido dirigiu-se à ofendida e disse “querias morrer agora vais morrer” e
“então não tinhas medo de morrer e agora já tens”.
29. Em virtude de tais ferimentos, a ofendida foi assistida no local pelo INEM e transportada para
o Hospital de Portimão.
30. A ofendida apresentava uma hemorragia activa do membro superior direito e múltiplas lesões
contundentes ao nível do abdómen, apresentando uma extensa ferida contusa com cerca de 25 cm
de comprimento, com perda de tecidos superficiais e destruição muscular, na parte interna, entre o
cotovelo e o punho, no antebraço direito.
31. A ofendida foi transferida para Hospital de Santa Maria, em Lisboa, apresentando esfacelo de
quase totalidade da face interna do antebraço direito, com perda total do revestimento cutâneo e
esfacelo amplo das massas musculotendinosas da região anatómica afectada.
32. Em virtude de tais factos, a ofendida foi submetida a cirurgia plástica com anestesia geral para
correcção do esfacelo do membro superior direito, tendo ficado internada desde o dia 19/04/2020
até 11/05/2020.
33. A ofendida apresentava a seguinte sequela:
a. Membro superior direito: vendagem no antebraço direito que não se remove, nem consegue
movimentar braço e mão.
34. As lesões apresentadas pela ofendida resultaram de traumatismo de natureza perfurante e
determinaram 106 dias para a consolidação médico-legal, com afectação da capacidade de
trabalho geral (60 dias) e com afectação da capacidade de trabalho profissional (60 dias).
35. No referido dia 19/04/2020, o arguido detinha, na sua posse, no interior da sua habitação:
a. Uma espingarda caçadeira, da marca “Browning”, modelo B-80, calibre 12, n.º série (...), e que
apresenta um cano único (serrado);
b. Dois cartuchos de calibre 12, para espingarda caçadeira deflagrados;
c. Duas buchas de cartucho, para espingarda caçadeira deflagrados;
d. Uma pistola da marca Waltro, modelo 85 Combat, calibre 8mm transformada para calibre 7,65,
com indicação do calibre rasurado, sem número de série visível, fabricada em Itália por Libera
Vendita Platinas em plástico de cor preta e o corpo de cor cinza prata com respectivo carregador e
escovilhão;
e. Sete cartuchos de calibre 12, com invólucro de cor verde da marca RIO;
f. Uma pressão de ar, marca Webley Victor, com o número 76572;
g. Um cano serrado de uma espingarda caçadeira com cerca de 31 cm.
36. Foi apreendido um livrete de manifesto de arma com o número (…) emitido em 20-12-1985
referente a uma espingarda de caça Browning com o número (...) em nome de (…) e uma licença de
uso e porte de arma de caça com o número 227, válida para os anos de 1986 a 1990, em nome de
(…), referente a uma arma de um cano calibre 12.
37. O arguido não é detentor de qualquer licença de uso e porte de arma.
41. Ao agir do modo descrito, o arguido pretendia e queria tirar a vida de (...), bem como molestá-
la fisicamente, bem sabendo que com tal conduta atingia órgãos vitais da ofendida uma vez que
direccionou a arma para a cabeça e a zona abdominal da mesma, só não lhe conseguindo tirar a
vida por razões independentes da sua vontade.
42. O arguido bem sabia que, ao direcionar a arma para as regiões do corpo da ofendida supra
descritas, lhe tiraria a vida e/ou lhe criava perigo para a vida e ainda assim não se absteve de
premir o gatilho da arma, o que quis, disparando-a sob a ofendida, só não logrando atingir nos
seus órgãos vitais por interferência da própria ofendida.
43. O arguido bem sabia que praticava os factos contra a sua cônjuge e utilizando meio
particularmente perigoso, o que quis.
44. O arguido bem sabia que não podia deter, utilizar ou guardar as supra referidas armas e
munições, sendo que conhecendo as características das mesmas, não se inibiu de as deter.
45. O arguido bem sabia que para deter, utilizar ou guardar quaisquer armas na sua posse e as
respectivas munições, necessitava de licença que o habilitasse a tais classes de armas, bem como
necessitava de registar as armas, embora aquelas não o fossem suscetíveis de o ser, o que sabia
não deter e ser obrigatório, mas mesmo assim não se absteve de agir do modo descrito, o que quis
e logrou.
46. Mais sabia o arguido que não poderia deter qualquer arma transformada, por si ou por
terceiro, na sua posse, e ainda assim quis deter as referidas armas.
47. O arguido actuou sempre de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua
conduta era proibida e punida por lei penal.
48. O arguido não tem antecedentes criminais registados.
www.dgsi.pt/jtre.nsf/134973db04f39bf2802579bf005f080b/ed701939ad526360802586ea004dcac3?OpenDocument&Highlight=0,homicídio 15/40
02/02/2023 15:48 Acórdão do Tribunal da Relação de Évora
49. Em virtude daqueles ferimentos a Demandante foi assistida no local pelo INEM e transportada
para o Hospital de Portimão.
51. Na altura a Demandante apresentava uma hemorragia activa do membro superior direito e
múltiplas lesões contundentes ao nível do abdómen, apresentando uma ferida contusa com cerca
de 25 cm de comprimento, com perda de tecidos superficiais e destruição muscular, na parte
interna, entre o cotovelo e o punho, no antebraço direito.
52. A Demandante foi transferida para o Hospital de Santa Maria, em Lisboa, apresentando
esfacelo de quase totalidade da face interna do antebraco direito, com perda total do revestimento
cutâneo e esfacelo amplo das massas musculotendinosas da região anatómica afectada.
53. Esteve internada no Hospital de Santa Maria de 19 de Abril até 11 de Maio de 2020.
54. E foi submetida a quatro intervenções cirúrgicas, com anestesia geral.
55. Entre elas fez transplante de pele da perna para o antebraço.
56. Durante o internamento ficou imobilizada a maior parte dos dias.
57. A higiene pessoal e alimentação só foram conseguidas com ajuda das auxiliares do hospital.
58. Na altura a Demandante tinha os dedos encolhidos em face dos tendões cortados e sem
músculos, causando-lhe fortes dores e ansiedade.
59. Com alta no dia 11 de Maio, a Demandante foi para casa dos pais em (…).
60. Necessitou da ajuda dos pais para fazer a higiene e alimentar-se.
61. Durante os meses de Junho e Julho a Demandante fez sessões de fisioterapia 3 vezes por
semana no Centro de Saúde de (…).
62. No dia 2 de Agosto regressou a (…) e ficou na casa da irmã.
63. Nos meses de Agosto, Setembro e Outubro manteve as sessões de fisioterapia três vezes por
semana, na Cínica de (…)
64. Actualmente a Demandante continua as sessões de fisioterapia, porque não esta totalmente
recuperada nem a sua situação clínica estabilizada.
65. Como consequência directa e necessária das agressões a Demandante apresenta uma ferida
com cerca de 25 cm no antebraço direito, entre o cotovelo e o punho, os dedos dormentes e falta de
força no dedo polegar e na mão direita.
66. E que lhe determinaram todo este período de doença, todos com afectaçao da capacidade para
o trabalho geral e profissional.
70. A data dos factos a Demandante explorava um salão de cabeleireiro e beleza (…).
71. Desde o dia 19 de Abril que o estabelecimento está encerrado porque a Demandante não
estava em condições de trabalhar, reabrindo no início do mês de Dezembro de 2020.
73. O Salão de cabeleireiro é a única fonte de rendimento da ofendida.
74. A Demandante viveu momentos de horror no dia 19 de Abril.
75. E temeu pela sua vida por várias vezes naquele dia.
76. Para além das dores, sofrimento, humilhação e angústia que sofreu com as lesões e
tratamentos médicos e hospitalares.
77. E ver o seu futuro e sonhos profissionais, familiares e pessoais comprometidos para sempre,
sofrendo grande abalo psíquico e moral.
78. Sendo certo que ficou marcada para sempre com a ferida visível no antebraço.
79. Tal cicatriz é visível a olho nu.
80. E que desfeia notoriamente a Demandante.
81. Causando inibição e sofrimento.
82. À data dos factos do presente processo, (...) residia com o cônjuge, vitima no processo, na (…).
Reside, atualmente em casa da progenitora na cidade de (...), com adequadas condições de
habitabilidade.
A sustentabilidade do agregado era, na sua maioria, assegurada pelo arguido, com os proveitos
económicos resultantes da sua actividade de comerciante de (…), cujos valores rondavam os 800
euros/mês; como despesas fixas mencionou cerca de 150 euros referente aos consumos de agua, luz
e televisão por cabo. Atualmente, encontra-se impedido judicialmente de exercer a sua atividade,
sendo o sustendo do arguido assegurado pela progenitora, através da sua pensão de reforma e dos
lucros da actividade comercial da loja de (…), propriedade da família.
O património que detém foi adquirido com base no seu trabalho e estratégias de poupança.
O arguido é natural de (…), onde decorreu o seu crescimento junto dos pais e do irmão mais novo,
falecido num acidente de viação em 1989. O falecimento prematuro do irmão afectou
psicologicamente o arguido e todo o agregado familiar.
A dinâmica do agregado era harmoniosa com registo de algumas dificuldades financeiras nos
primeiros anos de vida. Teve uma infância considerada adequada assumindo os seus progenitores
uma educação caracterizada pela permissividade na gestão diária de regras. O seu processo
educativo foi maioritariamente assumido pela progenitora, realçando uma relação fria e
afetivamente mais distante com o pai, já falecido.
(...) fez todo o percurso escolar em (...), em idade adequada, tendo terminado o 12º ano na Escola
Comercial de (...), sem retenções. Com cerca de 19 anos, por iniciativa do progenitor, e depois de
ter terminado o ensino secundário, passou a trabalhar no ramo dos (…), numa loja propriedade
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dos progenitores em sociedade com um familiar, à data, em (…).
Passados alguns anos o pai do arguido abriu uma loja em (...), local onde (...) trabalhou até ao
inicio da presente situação judicial.
O arguido integrou, com 17 anos, juntamente com o irmão, a Banda Filarmónica de (...), onde
permaneceu durante cerca de dez anos, tendo abandonado a banda a seguir ao falecimento do
irmão.
Em 1994, (...) conheceu a vitima, com quem casou no ano seguinte e com quem teve uma filha,
atualmente com 23 anos, com a qual mantém uma relação ajustada.
O arguido descreveu a sua relação durante casamento como normal, as discussões relatadas eram
fruto de circunstância na vida de um casal.
(...) salientou que não gostava de ver a vítima a trabalhar por conta de outrem, razão pela qual
instalaram um salão de cabeleireiro para que esta pudesse trabalhar por conta própria.
Com o falecimento do progenitor do arguido, a progenitora passou a residir com o casal, na cave
da habitação onde residiam.
O arguido padece de um problema gástrico crónico ao nível do duodeno, sofre de hérnias discais e
uma deficiência cardíaca, não referenciando tendo qualquer acompanhamento clinico a este nível.
Porém beneficia de acompanhamento psicológico com alguma regularidade, atualmente com
consultas através da aplicação WhatsApp.
O arguido apresenta uma conduta reservada com características de introversão, referindo que não
consumir álcool e não ter vida social, saindo muito raramente de casa.
O arguido vivencia a actual privação da sua liberdade de forma penosa, considerando este
período de reflexão do seu percurso vivencial, bem como de avaliação e fixação de prioridades e
projetos futuros.”.

3.1.2. Factos não provados na 1.ª instância


O Tribunal a quo considerou que não se provaram quaisquer outros factos com interesse para a
presente causa nomeadamente que (transcrição):
“1. Ao longo dos últimos 5 (cinco) anos do casamento, o arguido vem manifestando atitudes
violentas para com a ofendida (…).
2. Em data não concretamente apurada, mas há menos de 5 (cinco) anos, o arguido, no interior da
habitação, agrediu a ofendida com um empurrão e um pontapé no corpo quando já estava caída
no chão, na sequência de um desentendimento entre ambos.
3. Por diversas vezes nos últimos 5 (cinco) anos, em datas não concretamente apuradas, o arguido
retirou o telemóvel das mãos da ofendida, para confirmar se a mesma não tinha trocado
mensagens com um suposto amante.
4. Em datas não concretamente apuradas, o arguido, por diversas vezes dirigiu-se à ofendida,
dizendo que a matava, bem como a “toda a gente em casa”, o que ocorreu, pelo menos, há 3 (três)
anos.
5. Com efeito, o arguido apontou, por diversas vezes, a espingarda com n.º de série (...), na direção
da ofendida, com o intuito de tornar a ameaça séria.
6. Em data não concretamente apurada, mas pelo menos há 4 (quatro) anos, o arguido, durante a
noite, perseguiu a ofendida com a referida espingarda.
7. Tais factos ocorreram todos no interior da habitação comum do casal.
8. O arguido (...) agiu de modo descrito com o objectivo de provocar medo à ofendida (...),
fazendo-a temer pela sua integridade física e pela sua vida e dos que a rodeiam, anunciando-lhe
males para a intimidar e perturbar o seu sentimento de segurança, causando-lhe alarme e temor,
assim como afectar a sua liberdade, bem sabendo que tais condutas eram aptas a provocar tais
sentimentos.
9. O arguido não se coibiu de agir como descrito, querendo causar sofrimento, humilhação e
vergonha à ofendida molestando-a física e psicologicamente, o que efectivamente logrou e quis.
10. O arguido agiu, bem sabendo que praticava tais actos na residência comum do casal, violando
o carácter securitário de tal espaço e ainda assim não se inibiu de praticar as condutas
11. A Demandante continua sem força na mão direita e por isso não consegue exercer a sua
actividade profissional
12. Como consequência das lesões a Demandante vai ficar com Incapacidade Parcial Permanente
para a sua actividade profissional de cabeleireira, cuja incapacidade ainda não é possível apurar
por não estar curada.
13. O arguido sempre foi um pai e marido sem reparo, vivendo para a sua família, acreditando que
o seu casamento era para toda a vida.
14. O arguido ao empunhar a arma de fogo apenas pretendeu assustar a ofendida e força-la a
dizer se efectivamente o havia traído como indiciavam as mensagens recebidas.
15. Após efectuar o disparo que atingiu a ofendida, o arguido diligenciou pelos primeiros socorros
à ofendida e teve a iniciativa de chamar o INEM.
A demais factualidade, por ser conclusiva, redundante, versar sobre matéria de direito ou por
irrelevante para a decisão da causa não foi colocada na factualidade provada ou não provada.”.
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3.1.3. Da fundamentação da convicção pelo Tribunal recorrido


O Tribunal motivou a factualidade provada e não provada pela seguinte forma (transcrição):
“O Tribunal fundou a sua convicção na análise crítica do conjunto da prova produzida e
examinada em audiência de acordo com as regras da experiência comum e a sua livre convicção,
tal como preceitua o artigo 127 º do C.P.P.
O arguido prestou declarações, revelando discurso incoerente, inverosímil, com um propósito claro
de aligeirar as suas responsabilidades.
Começou por negar categoricamente qualquer episódio de violência ou ameaça nos anos ou dias
que antecederam 19.4.2020, tendo de seguida admitido que nesse dia efectivamente cortou os
canos da caçadeira, que municiou com dois cartuchos, tendo abordado a ofendida com o propósito
de a assustar para que a mesma lhe confirmasse se a mensagem que recebera, dando conta que o
traíra, era verdade. Igualmente admitiu que entrou em casa com a arma empunhada, depois de ter
estabelecido contacto telefónico com o remetente das aludidas mensagens, cujo teor se encontra
reproduzido em documento junto aos autos, a pedido do arguido, em sede de audiência.
Acrescentou que o primeiro disparo, na cozinha, ocorreu de forma inadvertida enquanto discutia
com a sua mulher. Versão que não mereceu credibilidade do Tribunal. Pretendia o arguido
convencer o Tribunal que foi a ofendida quem puxou o cano da arma por ocasião de uma tentativa
de a retirar das suas mãos. E que tal episódio se repetiu - dando lugar a um segundo disparo -
agora, na casa de banho do piso superior da habitação. Tinha o arguido como firme propósito
convencer o Tribunal que os disparos foram acidentais e que apenas ocorreram por a sua mulher
procurava retirar-lhe a arma das mãos. Porém, sem êxito.
É evidente o propósito do arguido em aligeirar as suas responsabilidades, sendo certo que são as
suas próprias declarações a esbarrar com estrondo nas regras da experiência.
Não se concebe como alguém que apenas pretende assustar a sua companheira, nao só corta o
canos da arma (tornando-a mais fácil de manejar), municia a arma, puxa a culatra a trás para
colocar o cartucho na câmara (como o arguido admite que fez nas duas circunstâncias em que
disparou) e prime o gatilho (essencial para que a arma dispare), sendo certo que caso se tratasse
de uma disputa pela arma, sem qualquer intenção de disparar, o arguido seguraria somente na
coronha da arma, sem colocar o dedo no gatilho.
Para além das regras da experiência, que afastam por completo a versão do arguido, temos as
declarações da assistente, que mereçam alto grau de credibilidade, pela forma objectiva,
espontânea e clara como depôs
Com um discurso avassalador e contundente, pautado pela emoção e comoção, próprios de quem
vivenciou os acontecimentos, depôs com um rigor e isenção que impressionaram pela
objectividade e clareza, particularmente no que ao episódio do dia 19.4.2020 diz respeito.
Assim, a ofendida refere que nesse dia, logo pela manhã, notou o arguido estranho, com respostas
enigmáticas, esclarecendo, inclusive, que o viu com uma roupa diferente do habitual, perguntando-
lhe se ia sair e se poderia sair consigo, ao que o arguido respondeu “vou sair, vais comigo
vais…”, tudo num tom que a deixou desconfiada.
No período da tarde, depois de um lanche no qual participou, bem como o arguido e a mãe deste,
com discussão por questões relacionados com as finanças do casal, o arguido saiu de casa e,
regressado, empunhava já uma arma caçadeira na sua direcção, dizendo que a ia matar, desferiu-
lhe um empurrão que a prostrou no solo.
A ofendida de imediato fugiu para a cozinha, onde ficou de frente para o arguido, tendo apenas a
mesa de permeio, nessa altura o arguido aponta a arma na sua direcção, contudo, ao preparar-se
para disparar, é perturbado na sua acção pela mãe, levando a que o tiro fosse direcionado para o
teto, partindo o candeeiro.
Nesta altura, o arguido coloca a mãe fora de casa e persegue a ofendida (sempre com a arma
empunhada) até à casa de banho do piso superior, onde esta procura refugiar-se.
Aí, com a arma municiada e apontada à sua zona temporal da cabeça, efectua um disparo, mas a
arma não funciona, o que levou o arguido a abrir a mesma e colocar novamente o cartucho,
apontando de novo a arma à ofendida, agora na zona do coração, mas ao disparar a arma volta a
encravar. Mais uma vez o arguido abre a arma, coloca o cartucho e, manietando a arguida pelas
costas, empunha a arma e dispara um tiro que a vem a atingir no braço e zona abdominal,
provando-lhe as lesões descritas nos relatórios periciais de fls. 403 a 404, 511 e 512, perícia
biológica de fls. 428 e 429 e elementos clínicos de fls. 179 a 184, 202 a 212, 299 a 306, 354 a 361,
483 a 485.
O episódio ficou de tal forma gravado na memória da ofendida que, ao revivê-lo, demonstrou
riqueza de pormenores, emocionando-se ao recordar os momentos de terror pelos quais passou,
com a proximidade da morte, que ali julgou estar próxima.
Ora, o depoimento da ofendida pela forma sentida, pormenorizada e emocionada como depôs
logrou formar a convicção do Tribunal, inclusivamente quanto às expressões “querias morrer
agora vais morrer” e “então não tinhas medo de morrer e agora já tens” que o arguido lhe dirigiu
logo a seguir aos disparos quando a ofendida disse que ia morrer.
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Acresce que ouvida (…), mãe do arguido, a mesma começou por revelar um depoimento
comprometido com o seu filho, esclarecendo que não sabe como a arma disparou na cozinha por o
arguido e a ofendida se encontrarem a “guerrear” (sic).
Porém, instada a pormenorizar o momento do disparo na cozinha, acabou por admitir que o tiro
ocorreu quando estava junto ao seu filho, num dos lados da mesa, e a ofendida do outro lado, a
cerca de 1,50m de distância.
A disposição dos intervenientes no local coloca a nu a fragilidade do depoimento da mãe do
arguido, na parte em que imputa o disparo à disputa pela arma. Primus, por existir uma distância
entre o arguido e a ofendida de cerca de 1,50m, com uma mesa de permeio, ao que acresce o facto
de os canos da arma já se encontrarem serrados. Secundus, por a Testemunha, mãe do arguido, ter
admitido que foi a sua intervenção que impediu que o arguido atingisse a ofendida.
Com efeito, foi a própria (…) que gerou no Tribunal a convicção de veracidade da versão da
ofendida, já de si sólida, quando admitiu que pela sua intervenção junto do arguido o tiro foi
direcionado para o teto e não para a ofendida.
A testemunha (…), vizinho do arguido, confirmou que a mãe daquele foi muito aflita a sua casa
pedir ajuda, porém, perante alguma vacuidade do depoimento, foi confrontada com as declarações
prestadas em sede de inquérito (sem que tivesse havido oposição do arguido), confirmando que o
desenrolar dos acontecimentos foi como efectivamente descreveu em inquérito, justificando que à
data, pelo proximidade temporal, tinha os acontecimentos mais frescos na memória, o que
naturalmente se compreende.
Nas suas declarações esclareceu que a mãe do arguido além de aflita lhe pediu ajuda pois tinha
medo que o filho matasse a ofendida.
Quando chegou a casa a porta estava fechada, sendo que a mãe do arguido foi por outra porta,
abrindo-lhe depois a porta da rua pelo interior, tendo a testemunha ouvido gritos e um disparo e
chegado à casa de banho viu o arguido e a ofendida estando esta já atingida no braço, sangrando
abundantemente.
A ofendida desceu as escadas sentada, tendo a testemunha diligenciado pelos primeiros socorros,
pedindo ao arguido uma toalha e depois um garrote, ao que o mesmo acedeu, sendo que foi ainda
a testemunha a solicitar ao arguido que chamasse a ambulância, ao que o mesmo igualmente
acedeu.
O Inspector da Polícia Judiciária (…) corroborou o teor dos Relatórios de perícia criminalística e
reportagem fotográfica de fls. 40 a 56 e 146 a 177 e reportagem fotográfica de fls. 17 a 27a que o
Tribunal igualmente atendeu, de onde se extrai, além do mais, a projecção de tecido humano a
longa distância tal foi a proximidade do disparo.
Já o Inspector da Polícia Judiciária (…) confirmou o teor das apreensões do auto de fls 15 e 16 e
fls. 141, que o arguido igualmente confirmou.
O casamento da ofendida com o arguido e, bem assim, a filha que nasceu na constância do mesmo
resultam do cotejo do assento de casamento de fls. 471 e 472 e, bem assim, do Assento de
nascimento de fls. 473 e 474
Para dar como provados os factos atinentes ao elemento subjectivo, o Tribunal atendeu à
factualidade objectiva dada como provada, cotejada com as regras da experiência, de onde resulta
uma imagem global dos factos perfeitamente compatível com a intenção de matar.
Note-se que o arguido cortou os canos da arma no próprio dia (como o mesmo admitiu), municiou
a arma antes de entrar em casa (admitido pelo próprio) e ao abordar a ofendida puxou a culatra
atrás (assim colocando a arma em condições de disparar), como efectivamente o fez na direcção
da ofendida, sendo que o primeiro disparo, por força da intervenção da mãe do arguido não
atingiu a ofendida, mas antes um candeeiro do teto da cozinha.
Mas o arguido não se deteve, perante a fuga da ofendida para o piso superior, foi atrás dela,
puxando novamente a culatra atrás, assim colocando a arma em condições de disparar, sendo que
apesar de ter apontado a arma primeiro à cabeça da ofendida e disparado, a arma não disparou, o
que levou o arguido abrir a arma, colocar novamente o cartucho na câmara, puxar mais uma vez a
culatra atrás e, desta feita, apontando a arma ao coração da ofendida, com novo disparo, sendo
que a arma volta a encravar, o que leva o arguido a repetir todo o processo de municiamento,
findo o qual acaba por premir o gatilho e atingir a ofendida no braço e abdómen e perante os
gritos da ofendida - de que iria morrer - disse-lhe “querias morrer, agora, vais morrer” e “então,
não tinhas medo de morrer? E agora já tens”.
Resulta inequívoco, pela reiteração das condutas e zonas para onde o arguido dispara, que a sua
intenção era efectivamente tirar a vida à ofendida, o que apenas não acontece por razões alheias à
sua vontade. Num primeiro momento porque a sua mãe intervém e desvia o tiro, num segundo e
terceiro momento porque nos disparos sobre a cabeça e coração a arma encravou e, por fim,
porque apesar de ter atingido a ofendida no braço e abdómen a mesma foi prontamente assistida.
Foi também pela confissão integral e sem reservas quanto à detenção ilegal de armas e munições
que o Tribunal deu como provados os factos objetivos e subjectivos relativos a tal detenção, que o
arguido sabia ser proibida e punida por lei, mas ainda assim não se absteve de deter tais objctos,
como aliás resulta dos autos de apreensão.
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02/02/2023 15:48 Acórdão do Tribunal da Relação de Évora
Para dar como provado os tratamentos médicos, intervenções cirúrgicas e fisioterapia que a
ofendida suportou em virtude das lesões perpetradas pelo arguido, o Tribunal atendeu ao cotejo da
extensa informação clínica junta aos autos, concatenada com as declarações do ofendida (…) que
de forma sentida e emocionada relatou todo o período que decorreu desde o internamento no dia
19.4.2020 até à presente data, salientando as dores e intervenções médicas sofridas, bem como as
sessões de fisioterapia que efetuou e continua a efectuar até à presente data, o que lhe permitiu
retomar o trabalho no seu salão de cabeleireiro no início do mês de Dezembro de 2020,
declarações corroboradas pelos testemunhos sérios, isentos e reveladores de conhecimento directo
(pela proximidade que têm com a ofendida) das testemunhas (…), irmã da ofendida, e (…), amiga
da ofendida, testemunhas que igualmente relataram o grande abalo psíquico que veem na ofendida
e que o próprio Tribunal pôde testemunhar pelo depoimento emocionado da própria que ao reviver
o momento relatou o terror vivido pela iminência da morte que pressentiu.
Foi ainda possível visualizar a extensa cicatriz que a ofendida tem no braço, sendo que quanto a
esta o Senhor Perito Médico (…) asseverou que tenderá a esbater-se e não ficar tão visível.
As despesas hospitalares para tratamento da ofendida (…) custaram Centro Hospitalar e
Universitário do Algarve a quantia de 541,07 €, e ao Centro Hospitalar e Universitário de Lisboa
Norte EPE a quantia de 2418,40€, conforme faturas discriminavas de serviços prestados juntas
com os respectivos pedidos de indemnização civil, cujo teor não foi sindicado.
As condições sócio económicas do arguido resultaram do teor do relatório social junto aos autos
que pelas fontes seguidas, métodos acolhidos e ausência de provas que infirmem o seu teor, lograr
formar convicção do tribunal
Para prova dos antecedentes criminais do arguido, o Tribunal teve em consideração o teor do
certificado de registo criminal, junto aos autos (fls 78).
O Tribunal atendeu ainda à seguinte prova documental, Relatório de diligências iniciais, fls. 30 a
33; Ficha de avaliação de risco, fls. 72 a 74; Auto de diligência – Local CHUA –Unidade
Hospitalar de Portimão, fls. 35 a 37; Auto de diligência, fls. 38 e Ficha de
atendimento/acionamento do Centro de Orientação de Doentes urgentes e gravação de chamadas
em suporte digital, fls. 438 a 440.
A factualidade não provada, resultou quer da ausência de prova quanto à sua verificação, seja
testemunhal, seja documental, quer da contradição com a factualidade provada.
Note-se que ao contrário do que o arguido garante, não foi por sua iniciativa que estancou o
sangue da ofendida ou chamou o INEM, mas antes por iniciativa da testemunha (…) que chegou a
casa na companhia da mãe do arguido, tendo constatado que ali se encontrava a ofendida e o
arguido, logo tendo ordenado a este que chamasse o INEM e que lhe desse algo para fazer de
garrote e estancar a hemorragia provocada pelo disparo, bem se vendo que a iniciativa do socorro
não parte do arguido, mas antes de terceiro.”.

3.1.4. Da fundamentação de direito pelo Tribunal recorrido


O Tribunal a quo fundamentou de direito pela seguinte forma (transcrição):
“3.1. Enquadramento Jurídico-Penal
3.1.1 Do crime de Violência Doméstica
Sob a epígrafe violência doméstica, dispõe o artigo 152.º, n.º 1, alínea a), Código Penal que
“quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos
corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais:
b) A pessoa de outro ou do mesmo sexo com que o agente mantenha ou tenha mantido relação de
namoro (…) ainda que sem coabitação
é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de
outra disposição legal.”
Acrescenta o n.º 2 do mesmo artigo que se o agente praticar o facto contra menor, na presença de
menor, no domicílio comum ou no domicílio da vítima, é punido com pena de prisão de dois a
cinco anos.
O bem jurídico protegido com a incriminação é a saúde, como bem jurídico complexo, que inclui a
integridade corporal e a saúde física, psíquica e mental, em contexto de coabitação ou de
convivência conjugal ou análoga, que pode ser afectada por comportamentos que impeçam ou
dificultem o normal desenvolvimento de uma pessoa e a sua dignidade pessoal e individual.
A incriminação visa, assim, proteger a dignidade da pessoa humana e não a instituição familiar –
cfr. Acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra, datados de 12.05.2010 e de 22.09.2010,
processos n.ºs 258/08.7GDLRA.C1 e79/09.6TAMLD.C1, respectivamente, disponíveis em
www.dgsi.pt.
Na verdade, a “tutela do bem jurídico é projectada numa relação de afectividade ou coabitação,
que pode materializar-se em casamento ou relação análoga, com ou sem habitação, ou em mera
coabitação quando a vítima seja pessoa particularmente indefesa. Sempre pressupondo um nexo
relacional, presente ou pretérito, de vida em comum, numa acepção ampla do termo, sendo em
certos casos para a tutela do seu património afectivo comum” – cfr. Plácido Conde Fernandes, in
“Violência doméstica – novo quadro penal e processual penal”, Revista do CEJ, 1.º semestre 2008,
www.dgsi.pt/jtre.nsf/134973db04f39bf2802579bf005f080b/ed701939ad526360802586ea004dcac3?OpenDocument&Highlight=0,homicídio 20/40
02/02/2023 15:48 Acórdão do Tribunal da Relação de Évora
número 8 (especial), Jornadas sobre a revisão do Código Penal, página 304.
Desta forma, o crime de violência doméstica pressupõe a existência de uma especial relação entre
o agente e a vítima, configurando-se como um crime específico, em que o agente do crime é dotado
de qualidades específicas que, in casu, lhe advêm da posição que mantém ou manteve com vítima.
Por seu turno, o sujeito passivo ou vítima será a pessoa que se encontre ou se tenha encontrado
numa relação de convivência conjugal, ou análoga, ou, ainda de namoro.
Face à amplitude do bem jurídico protegido, também as condutas típicas se mostram abrangentes,
podendo consistir em actos de violência física, psicológica, verbal e sexual.
A redacção dada ao artigo 152.º do Código Penal pela Lei n.º 59/2007, de 04 de Setembro,
consagra que comete o crime de violência doméstica quem praticar os actos descritos “de modo
reiterado ou não”.
Deste modo, fazem parte do tipo legal do crime de violência doméstica as conduta isoladas que
integrem a acção típica de maus tratos físicos ou psíquicos.
A este respeito, importa ter presente que “no crime de violência doméstica, a acção típica tanto se
pode revestir de maus tratos físicos, como sejam as ofensas corporais, como de maus tratos
psíquicos, nomeadamente humilhações, provocações, molestações, ameaças ou outros maus tratos,
como sejam as ofensas sexuais e as privações da liberdade, desde que os mesmos correspondam a
actos, isolada ou reiteradamente praticados, reveladores de um tratamento insensível ou
degradante da condição humana da sua vítima.” (sublinhado nosso) – cfr. Acórdão do Tribunal da
Relação do Porto de 26/05/2010, processo n.º 179/08.3GDSTS.P1, in www.dgsi.pt.
Assim, independentemente da reiteração ou da singularidade da conduta, o que releva é que a
mesma atente contra a dignidade da pessoa humana.
Na sua vertente subjectiva o ilícito em apreço exige o dolo em qualquer uma das suas modalidades
(cfr. artigos 13.º e 14.º do Código Penal).
Ora, no caso vertente não resultaram provados factos que integrem o crime de violência
doméstica, mas antes de tentativa de homicídio, que infra se analisará, sendo o arguido absolvido
do crime de violência doméstica de que vinha acusado.
3.1.2 Do crime de detenção de arma proibida
Prevê o artigo 86.º, n.º 1, da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro, que comete um crime de detenção
de arma proibida “ Quem, sem se encontrar autorizado, fora das condições legais ou em contrário
das prescrições da autoridade competente, detiver, transportar, importar, guardar, comprar,
adquirir a qualquer título ou por qualquer meio ou obtiver por fabrico, transformação, importação
ou exportação, usar ou trouxer consigo:
al c) Arma das classes B, B1, C e D, espingarda ou carabina facilmente desmontável em
componentes de reduzida dimensão com vista à sua dissimulação, espingarda não modificada de
cano de alma lisa inferior a 46 cm, arma de fogo dissimulada sob a forma de outro objecto, ou
arma de fogo transformada ou modificada, é punido com pena de prisão de 1 a 5 anos ou com
pena de multa até 600 dias.
al d) Arma da classe E, arma branca dissimulada sob a forma de outro objeto, faca de abertura
automática, estilete, faca de borboleta, faca de arremesso, estrela de lançar, boxers, outras armas
brancas ou engenhos ou instrumentos sem aplicação definida que possam ser usados como arma
de agressão e o seu portador não justifique a sua posse, aerossóis de defesa não constantes da
alínea a) do n.º 7 do artigo 3.º, armas lançadoras de gases, bastão, bastão extensível, bastão
eléctrico, armas eléctricas não constantes da alínea b) do n.º 7 do artigo 3.º, quaisquer engenhos
ou instrumentos construídos exclusivamente com o fim de serem utilizados como arma de agressão,
silenciador, partes essenciais da arma de fogo, artigos de pirotecnia, excepto os fogos-de-artifício
de categoria 1, bem como munições de armas de fogo independentemente do tipo de projéctil
utilizado, é punido com pena de prisão até 4 anos ou com pena de multa até 480 dias.
Acrescentando o n.º 2 do mesmo artigo que a detenção de arma não registada ou manifestada,
quando obrigatório, constitui, para efeitos do número anterior, detenção de arma fora das
condições legais.
No capítulo das definições, al 1) do n.º 1 do art 2.º estabelece que é «Arma de fogo curta» a arma
de fogo cujo cano não exceda 30 cm ou cujo comprimento total não exceda 60 cm;
Por contraposição, as armas de fogo longas são as que vêm definidas na al. s) do mesmo número
como sendo qualquer arma de fogo com exclusão das armas de fogo curtas Sendo que, dentro das
armas de fogo longas, a lei distingue a «Carabina» a arma de fogo longa com cano de alma
estriada [al. aq) do mesmo número]; da «Espingarda» a arma de fogo longa com cano de alma
lisa [al. ar do mesmo número]; Já a al. az) do n.º 1 do art.º 2.º define «Pistola» a arma de fogo
curta, de tiro a tiro, de repetição ou semiautomática)
Nos termos do artigo 2.º, n.º 3, al. p), entende-se por Munição de arma de fogo o cartucho ou
invólucro ou outro dispositivo contendo o conjunto de componentes que permitem o disparo do
projéctil ou de múltiplos projécteis, quando introduzidos numa arma de fogo.
O mesmo artigo e número, mas na al. e), estatui que dever-se-á entender por "Cartucho" o
recipiente metálico, plástico ou de vários materiais, que se destina a conter o fulminante, a carga
propulsora, a bucha e a carga de múltiplos projécteis, ou o projéctil único, para utilização em
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armas de fogo com cano de alma lisa.
No que se refere à classificação das armas, dispõe o art. 3.°, n.º 1, do diploma a que vimos
aludindo, que as armas e munições são classificadas nas Classe A, B, B1, C, D, E, F, e G, de
acordo com o grau da sua perigosidade, o fim a que se destinam e a sua utilização.
O artigo 3.º, n.º 4, al. a), estabelece com arma da classe B1 As pistolas semiautomáticas com os
calibres denominados 6,35 mm Browning (.25 ACP ou .25 Auto, como a que foi apreendida nos
autos.
Acrescenta o art. 3.º, n.º 9, al d), que são armas da classe G as armas de ar comprimido de
aquisição livre.
O artigo 11.º, n. 10, do mesmo diploma dispõe que a aquisição de armas de ar comprimido de
aquisição livre é permitida aos maiores de 18 anos, mediante declaração aquisitiva.
Para densificar o conceito de Arma de ar comprimido», dispõe o art.2.º, n.º 1, al, g), que integra
este conceito a arma accionada por ar ou outro gás comprimido destinada a lançar projéctil;
Por seu turno, a al. h do mesmo número define Arma de ar comprimido de aquisição livre como
arma de ar comprimido, de calibre até 5,5 mm, capaz de propulsar projécteis, cuja energia
cinética, medida à boca do cano, seja inferior a 24 J;
In casu, foi apreendida ao arguido Uma pressão de ar, marca Webley Victor, com o número (…),
arma que integra a categoria de arma de ar comprimido de aquisição livre e, como tal, carecia de
título aquisitivo de que o arguido não dispunha, bem sabendo que o mesmo era necessário, razão
pela a sua detenção configura uma contra ordenação que não se apreciará no presente acórdão,
antes se remetendo certidão para a autoridade Administrativa para assim permitir ao arguido uma
dupla apreciação da matéria de fato.
O ilícito em apreço configura um crime de perigo abstracto, bastando para consumação do tipo de
crime a adopção de uma das condutas típicas, consideradas perigosas, independentemente da
lesão do bem jurídico protegido.
O legislador entendeu que estas condutas são de tal modo potencialmente perigosas que antecipa
a tutela penal não exigindo a lesão de um bem jurídico para a consumação do crime.
São elementos objectivos constitutivos do crime de detenção de arma proibida a prática de uma
das condutas típicas - detiver, transportar, importar, guardar, comprar, adquirir a qualquer título
ou por qualquer meio ou obtiver por fabrico, transformação, importação ou exportação, usar ou
trouxer consigo: armas ou instrumentos descritos no tipo.
Atenta a factualidade apurada, resultou que o arguido, além da uma espingarda caçadeira da
marca “Browning”, modelo “B-80”, calibre 12, n.º de série (...), cuja detenção relevará para
efeitos de agravação do crime de homicídio tentado e já não para efeito de detenção de arma, e da
arma de ar comprimido, cuja detenção será apreciada pela autoridade administrativa, detinha
ainda:
- Dois cartuchos de calibre 12, para espingarda caçadeira deflagrados;
- Duas buchas de cartucho, para espingarda caçadeira deflagrados;
- Uma pistola da marca Waltro, modelo 85 Combat, calibre 8mm transformada para calibre 7,65,
com indicação do calibre rasurado, sem número de série visível, fabricada em Itália por Libera
Vendita Platinas em plástico de cor preta e o corpo de cor cinza prata com respectivo carregador e
escovilhão;
- Sete cartuchos de calibre 12, com invólucro de cor verde da marca RIO;
Resulta assim evidente que a pistola da marca Waltro, modelo 85 Combat, calibre 8mm
transformada para calibre 7,65 de fogo detida pelo arguido na sua habitação era arma de fogo da
classe B (pistola), detendo ainda Sete cartuchos de calibre 12, com invólucro de cor verde da
marca RIO);
Quanto ao elemento subjectivo exige-se o dolo, sendo que no caso se apurou que o arguido
conhecia o carácter ilícito da detenção das armas, conformou-se com isso, verificando-se assim
preenchido o elemento subjectivo na modalidade de dolo directo
Neste particular, adopta-se para este efeito a jurisprudência seguida nos Acórdãos do Tribunal da
Relação de Coimbra de 22/01/2014 (processo n.º 82/13.5GCFVN-C1) e do Tribunal da Relação de
Évora de 30/10/2012 (processo n.º 91/09.9PFSTB.E1), segundo os quais se pode retirar para o
caso dos autos que o detentor de 1 arma de fogo e munições, se bem que de categorias diferentes e
previstas em distintas alíneas do nº1 do art. 86º do R.G.A.M., deverá ser punido apenas por um
crime, sendo punível de acordo com a disposição legal mais grave, funcionando as «outras»
armas/munições como meras agravantes na determinação da medida concreta da pena.
Assim, inexistindo qualquer causa de exclusão da ilicitude ou da culpa será o arguido condenado
pela prática de um crime de detenção ilegal de arma, p e p pelo art. 86.º, n.º 1.º, al. c), da Lei das
Armas (5/2006, de 23 de Fevereiro).
3.1.3 Do Crime de tentativa de homicídio qualificado
O legislador português optou por determinar que o homicídio qualificado não é mais do que uma
forma agravada do homicídio simples previsto no art.º 131 do C. Penal ("Quem matar outra
pessoa é punido com pena de prisão de 8 a 16 anos").
Não há, pois, diversos tipos criminais de crimes contra a vida, mas apenas um, que é o crime base,
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sendo que há circunstâncias que especialmente o agravam (crime qualificado) e outras que
especialmente o atenuam (crime privilegiado). Por isso, também está fora de questão que se
considere o crime base o de homicídio qualificado, não sendo o homicídio simples mais do que
uma forma atenuada daquele.
A qualificação do crime vem prevista no art.º 132 e aí o legislador não quis organizá-la de uma
forma taxativa, antes optou por uma fórmula aberta, embora cingida a certos parâmetros, que
deixa ao aplicador uma margem de ponderação das circunstâncias, por forma a casuisticamente
determinar se este ou aquele facto integra o conceito legal de homicídio qualificado.
Isso é feito pela afirmação genérica de um especial tipo de culpa, que vem assim descrito no n.º 1:
"Se a morte for produzida em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou
perversidade, o agente é punido com pena de prisão de 12 a 25 anos".
Mas aliou-se essa formulação genérica à "chamada técnica dos exemplos-padrão, em que a
cláusula geral seria constituída por um tipo de culpa (art.º 132.º, n.º 1) combinado com uma
exemplificação não definitiva e facultativa (art.º 132 n.º 2)" (cf. ”Homicídio Qualificado – Tipo de
Culpa e Medida da Pena”, Teresa Serra, 2000, pág. 15).
Alguns desses exemplos padrão, estão formulados no n.º 2 do art.º 132 deste modo: «É susceptível
de revelar a especial censurabilidade ou perversidade a que se refere o número anterior, entre
outras, a circunstância de o agente:
a) Ser descendente ou ascendente, adoptado ou adoptante, da vítima;
b) Praticar o facto contra pessoa particularmente indefesa, em razão de idade, deficiência, doença
ou gravidez;
c) Empregar tortura ou acto de crueldade para aumentar o sofrimento da vítima;
d) Ser determinado por avidez, pelo prazer de matar ou de causar sofrimento, para excitação ou
para satisfação do instinto sexual ou por qualquer motivo torpe ou fútil;
e) Ser determinado por ódio racial, religioso ou político;
f) Ter em vista preparar, facilitar, executar ou encobrir um outro crime, facilitar a fuga ou
assegurar a impunidade do agente de um crime;
g) Praticar o facto juntamente com, pelo menos, mais duas pessoas ou utilizar meio
particularmente perigoso ou que se traduza na prática de crime de perigo comum;
h) Utilizar veneno ou qualquer outro meio insidioso;
i) Agir com frieza de ânimo, com reflexão sobre os meios empregados
u) ter persistido na intenção de matar por mais de vinte e quatro horas;
Estas circunstâncias qualificativas estão enunciadas a título meramente exemplificativo,
resultando directamente da lei, quando refere que são essas «entre outras».
Esta é a Jurisprudência uniforme do Supremo Tribunal de Justiça (cf. Acs. STJ de 2002/11/14,
proc. 3316/02, de 1991/12/12, proc. 42640, de 1992/05/06, proc. n.º 43109, de 1997/12/16, proc.
n.º 102/98, de 1990/12/20, proc. 41848, etc., todos eles in www. dgsi.pt)
Mas a técnica legislativa resultante da conjugação do n.º 1 com o n.º 2 do art.º 132.º, leva a que
possa ocorrer um homicídio em que se verifica alguma das circunstâncias previstas no n.º 2 e,
contudo, não se trata de um homicídio qualificado, pois, no caso concreto, aquela circunstância
não revela "especial censurabilidade ou perversidade" (n.º 1), como pode suceder o contrário, a
circunstância não estar prevista no n.º 2, mas poder ser substancialmente análoga, e integrar-se
no tipo especial de culpa do n.º 1.( “Comentário Conimbricense...”, ob. cit. pág. 26 e Teresa Serra,
ob. cit, págs. 67 e segs., na esteira de Wessels, designa o primeiro caso por homicídio simples
atípico e o segundo por homicídio qualificado atípico)
Vem a doutrina entendendo, embora dividida, que os exemplos-padrão prendem-se essencialmente
com a questão da culpa, mais do que com a ilicitude, pois ainda que se refiram a um maior
desvalor da conduta (por exemplo, o homicídio cometido na pessoa do pai ou do filho), não é essa
circunstância, por si, que determina a qualificação do crime, antes a especial censurabilidade ou
perversidade do agente, isto é, o especial tipo de culpa (“Comentário Conimbricense...”, ob. cit.,
pág. 27 e Leal Henriques e Simas Santos assinalam no “Código Penal Anotado”, II, pág. 61 e
segs., que não é exacta a afirmação do Ac. do STJ de 1990/06/06 de que “no caso de parricídio a
regra é a de que se verifica especial censurabilidade ou perversidade”, pois esta tem de ser sempre
comprovada).
Como se diz no Acórdão deste STJ de 1996/12/11, in proc. n.º 188/97 (www.dgsi.pt), "A
qualificação do crime de homicídio qualificado não é consequência irrevogável da existência de
qualquer das circunstâncias constantes do n.º 2 do artigo 132.º do CP.
Com efeito, o essencial é que as circunstâncias em que o agente comete o crime revelem uma
especial censurabilidade ou perversidade, ou seja, uma censurabilidade ou perversidade distintas
(pela sua anormal gravidade) daquelas que, em maior ou menor grau, se revelem na autoria de um
homicídio simples».
Importa precisar o que é a especial censurabilidade ou perversidade.
Permitimo-nos aqui citar, mais uma vez, Teresa Serra (ob. referida, págs. 63 a 65), «Como se sabe,
a ideia de censurabilidade constitui o conceito nuclear sobre o qual se funda a concepção
normativa da culpa. Culpa é censurabilidade do facto ao agente, isto é, censura-se ao agente o ter
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podido determinar-se de acordo com a norma e não o ter feito.
No artigo 132.°, trata-se de uma censurabilidade especial: as circunstâncias em que a morte foi
causada são de tal modo graves que reflectem uma atitude profundamente distanciada do agente
em relação a uma determinação normal de acordo com os valores...
Com a referência à especial perversidade, tem-se em vista uma atitude profundamente rejeitável,
no sentido de ter sido determinada e constituir indício de motivos e sentimentos que são
absolutamente rejeitados pela sociedade.
Significa isto pois, um recurso a uma concepção emocional da culpa e que pode reconduzir-se «à
atitude má, eticamente falando, de crasso e primitivo egoísmo do autor, de que fala Binder.
Assim, poder-se-ia caracterizar uma atitude rejeitável como sendo aquela em que prevalecem as
tendências egoístas do autor, especialmente perversa, especialmente rejeitável, será então a atitude
na qual as tendências egoístas ganharam um predomínio quase total e determinaram quase
exclusivamente a conduta do agente.
Importa salientar que a qualificação de especial se refez tanto à censurabilidade como à
perversidade.
A razão da qualificação do homicídio reside exactamente nessa especial censurabilidade ou
perversidade revelada pelas circunstâncias em que a morte foi causada.
Com efeito, qualquer homicídio simples, enquanto lesão do bem jurídico fundamental que é a vida
humana, revela já a censurabilidade ou perversidade do agente que o comete».
Indo agora ao encontro do caso concreto, o arguido vinha acusado de um crime de homicídio
qualificado, na forma tentada, sendo que a especial censurabilidade ou perversidade do acto
resultava da verificação da circunstância prevista no art. 132, n. 2, als, b) e h), do Código Penal.
A propósito da qualificativa “meio particularmente perigoso, pela qual o arguido vem acusado, o
Prof. Figueiredo Dias discorreu assim:
«(...) Utilizar meio particularmente perigoso é ..servir-se para matar, de um instrumento, de um
método ou de um processo que dificultem significativamente a defesa da vítima e que (não se
traduzindo na prática de um crime de perigo comum) criem ou sejam suscetíveis de criar perigo de
lesão de outros bens jurídicos importantes. (...) deve sobretudo ponderar-se que a generalidade
dos meios usados para matar são perigosos e mesmo muito perigosos.
Exigindo a lei que eles sejam particularmente perigosos, há que concluir duas coisas: ser desde
logo necessário que o meio utilizado revele uma perigosidade superior à normal nos meios usados
para matar (não cabem seguramente no exemplo-padrão e na sua estrutura valorativa revólveres,
pistolas, facas ou vulgares instrumentos contundentes); em segundo lugar, ser indispensável
determinar, com particular exigência e severidade, se da natureza do meio utilizado - e não de
quaisquer outras circunstâncias acompanhantes - resulta já uma especial censurabilidade ou
perversidade do agente.
Sob pena, de outra forma se poder subverter o inteiro método de qualificação legal e de se
incorrer no erro político-criminal grosseiro de arvorar o homicídio qualificado em forma-regra do
homicídio doloso».
Ou, como se diz no acórdão da Relação de Coimbra de 6-4-05, Colectânea de Jurisprudência,
2005, II-46, «meio particularmente perigoso, para efeitos de qualificação do crime de ofensa à
integridade física nos termos dos art.º 143.º, n.º 1, 146.º (art.º 146.º ao qual, após a revisão
operada pela Lei n.º 59/2007, de 4-9, corresponde o actual art.º 145.º) e 132.º , n.º 2 al.ª g)
(actualmente al.ª h)), do Código Penal, é o meio que em si é portador de uma perigosidade muito
superior à dos meios comummente utilizados para ofender fisicamente alguém».
Em suma, há-de ser um meio (instrumento, método ou processo) que, para além de dificultar de
modo exponencial a defesa da vítima, é susceptível de criar perigo para outros bens jurídicos
importantes; tem que ser um meio que revele uma perigosidade muito superior ao normal,
marcadamente diverso e excepcional em relação aos meios mais comuns que, por terem aptidão
para provocar danos físicos, são já de si perigosos ou muito perigosos, sendo que na natureza do
meio utilizado se tem de revelar já a especial censurabilidade do agente.
No caso dos autos, provou-se que o arguido disparou sobre a ofendida com espingarda da marca
“Browning” o que, como vimos, é um meio normal usado para matar, pelo que improcede a
verificação desta qualificativa.
Relativamente à qualificativa do artigo 132.º, n.º 2, al. b, do Código Penal:
Estatui este comando normativo a qualificativa para o a agente que b) Praticar o facto contra
cônjuge, ex-cônjuge, pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha
mantido uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação, ou contra progenitor de
descendente comum em 1.º grau.
Esta alínea b) constituiu um aditamento aos exemplos-padrão introduzido pela reforma do Código
Penal de 2007.
Até então “só quem tem com a vítima uma relação de parentesco na linha recta pode revelar uma
superior energia criminosa por ter ultrapassado particulares contra-motivações éticas à decisão
do homicídio”. (Teresa Quintela de Brito, «O homicídio qualificado (art. 132º)», Direito Penal –
Parte Especial: Lições, Estudos e Casos, pág. 215-6). Não estando o conjugicídio contemplado na
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hipótese da al. a), o legislador mostrou-se “sensível ao problema criminal dos maus-tratos
conjugais evidenciados socialmente em grau crescente e coerente com a sua incriminação duma
forma agravada” (Maria Margarida Silva Pereira, Direito Penal II – Os Homicídios, pág. 102),
deste modo satisfazendo “as pressões de alguns sectores da opinião pública e de certos grupos
sociais, no sentido da especial censura do homicídio doloso perpetrado no quadro da chamada
«violência doméstica»”, como salienta Teresa Quintela de Brito, (op. cit., pág.179-180).
Todavia, o legislador não se limitou a prever a agravação do homicídio cometido na pessoa do
cônjuge, tendo-o alargado a relações familiares pretéritas e a relações familiares não parentais, ao
incluir neste exemplo-padrão o ex-cônjuge, a pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o
agente mantenha ou tenha mantido uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem
coabitação,
O exemplo-padrão em causa tem um evidente paralelismo com o da al. a), acerca do qual escreveu
Figueiredo Dias: “Não parece exacto, como defende Fernanda Palma, cit. 53, que nestes casos
«não é necessária nenhuma motivação especial do agente para que o homicídio seja qualificado.
Basta que o agente tenha consciência da sua relação de parentesco com a vítima…».
Exacto é, pelo contrário, que ainda nestas hipóteses se exige que a prática do homicídio revele
uma especial censurabilidade ou perversidade do agente, indiciada (mas não «automaticamente»
verificada) por aquele ter vencido «as contra-motivações éticas relacionadas com os laços de
parentesco»”. (Comentário, I, pág, 29).
Alargada ao cônjuge ou ex-cônjuge da vítima ou àquele que, ainda que do mesmo sexo e sem
coabitação, com ela mantém ou manteve relação análoga à dos cônjuges, a especial
censurabilidade ou perversidade resulta da “particular energia criminosa revelada na
ultrapassagem de especiais deveres ético-sociais de respeito inerentes a tais tipos de
relacionamento” (Teresa Quintela de Brito, op.cit., pág. 215-7).
Conforme acentua Fernando Silva (Direito Penal Especial – Crimes contra as Pessoas 3, pág. 72
seg.): “A relação matrimonial assenta a sua vinculação na comunhão de vida, que pressupõe,
principalmente, uma união pessoal. Os cônjuges, pelo enlace matrimonial, assumem um conjunto
de poderes-deveres que os coloca numa especial relação, pressupondo um respeito e cooperação
mútuos.
A comunhão de vida que caracteriza a relação conjugal faz emergir uma nova realidade, a de um
casal que vive em comunhão afectiva. … Aos cônjuges exige-se uma especial e recíproca
protecção, pelo que a atitude de actuar, lesando a vida do outro, é reveladora de uma energia
criminal susceptível de um elevado grau de censura. A decisão de matar o cônjuge traduz, desde
logo, a manifestação de um comportamento especialmente grave, próprio de quem vence
contramotivações acrescidas, manifestando um elevado grau de culpa, na medida em que o agente,
ao cometer tal facto, contraria, em absoluto, aquela que deveria ser a sua atitude perante o seu
cônjuge.”
Mesmo sem o vínculo formal do casamento, sempre que a mera relação de namoro evolui para
uma relação análoga à dos cônjuges, numa vivência de comunhão afectiva potenciadora de uma
maior desinibição, criam-se, entre os companheiros, deveres de cooperação, de respeito e de
protecção, que se prolongam para além do fim da relação. Mas, como acentua Paulo Pinto de
Albuquerque (Comentário do Código Penal, pág. 401) “essa desinibição não pode constituir um
factor de tolerância da violência, fundando o legislador precisamente nessas relações um juízo de
censura penal agravado”.
No caso dos autos, provada a relação matrimonial entre Arguido e Ofendida, inexiste qualquer
facto ou móbil do crime que ilidida a relação de confiança existente entre ambos, como
motivadora de uma especial censurabilidade no comportamento do Arguido ao tentar matar a sua
mulher com recurso a arma de fogo, comportamento revelador de especial censurabilidade, tendo-
se, assim, por preenchido, o exemplo-padrão da alínea b) do nº 2 do art. 132º do Código Penal,
sendo que o eventual ciúme sentido pela receção das mensagens sobre alegada traição da ofendida
não pode, de forma alguma, admitir comportamentos como os perpetrados pelo arguido.
Da agravação do crime de homicídio tentado, pelo uso de arma de fogo
Não está em causa a agravação do tipo legal, que funciona da mesma forma para o homicídio
simples, como para o homicídio qualificado, isto é a agravação do art. art. 86.º, nºs. 3 e 4, da Lei
nº 5/2006, de 23 de Fevereiro, funciona independentemente do tipo de crime em questão, em
consequência do uso de arma de fogo.
Sobre estaa agravação preceitua o art. 86.º, do RJAM: (…) 3 - As penas aplicáveis a crimes
cometidos com arma são agravadas de um terço nos seus limites mínimo e máximo, excepto se o
porte ou uso de arma for elemento do respectivo tipo de crime ou a lei já previr agravação mais
elevada para o crime, em função do uso ou porte de arma.
4 - Para os efeitos previstos no número anterior, considera-se que o crime é cometido com arma
quando qualquer comparticipante traga, no momento do crime, arma aparente ou oculta prevista
nas alíneas a) a d) do n.º 1, mesmo que se encontre autorizado ou dentro das condições legais ou
prescrições da autoridade competente».
A agravação funcionou para o crime de homicídio, porque o arguido fez uso da arma, enquanto
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arma de fogo, e, nesta conformidade, como instrumento na sua função específica e fim para que foi
construído, disparando na direcção da ofendida, primeiro falhando o disparo por força da
intervenção da sua mãe, o segundo o terceiro tiros, disparados respectivamente para a cabeça e
coração não atingiram a ofendida por a arma ter encravado e o quarto disparo atingiu-a no braço
e abdómen, conforme consta do factualidade provada.
Para preenchimento desta agravação, torna-se necessário que a agente faça uso da arma
enquanto arma de fogo e disparando sobre a vítima, com o intuito de a atingir na sua integridade
física ou a de lhe causar a morte, como é lícito concluir no caso dos autos, atentas as vezes que
disparou sobre a vítima.
Assim, no caso do homicídio, funciona a agravação do art. 86.º, n.º 3, do RJAM, porque não está
prevista a agravação com arma de fogo no cometimento do crime, e cometimento implica fazer uso
da arma para a execução do crime, enquanto arma de fogo.
Não há fundamento para afastar a agravação prevista no art. de 23/2, quando o uso de arma de
fogo não é elemento do crime de homicídio e não leva ao preenchimento do tipo qualificado do
art. 132.º, do CP, cfr. Ac. do STJ de 30/10/2013, www.pgdlisboa.pt.
Note-se que apesar do arguido ser condenado igualmente pelo crime de detenção ilegal de arma,
não há uma dupla valoração.
Com efeito, a arma que leva a agravação do 86.º, n.º 3, da Lei 5/2006 é a arma que foi usada para
disparar sobre a vítima, sendo que o ilícito de detenção de arma proibida foi preenchido pela
detenção da outra arma e munições que o arguido tinha na sua posse.
O ilícito em apreço constitui um crime material ou de resultado, a não produção do resultado
típico, traduzido na lesão do bem jurídico (vida) leva a que o crime não se possa considerar
consumado.
Contudo, dispõe o artigo 22, n.º 1 do Código Penal que só há tentativa quando o agente pratica
actos de execução do crime que decidiu cometer, sem que este chegue, contudo, a consumar-se.
Actos de execução são os que preenchem um elemento constitutivo do tipo legal de crime, tal como
os que sejam idóneos a produzir o resultado típico, ou ainda os que, segundo a experiência comum
e salvo circunstâncias imprevisíveis, sejam de natureza a fazer esperar que se lhes sigam actos das
espécies anteriormente referidas (n.º 2 do citado artigo).
Na verdade, resulta das considerações tecidas que o arguido, ao pretender tirar a vida da
ofendida, disparaou sobre a mesma quatro disparos, apenas a atingindo com o último, já que como
vimos o primeiro disparo foi desviado da ofendida por força da actuação da mãe, o segundo e
terceiros não foram deflagrados por mau funcionamento da arma, pelo que apenas o ultimo
disparo (4.º) atingiu a ofendida , resultando evidente o propósito reiterado do arguido em tirar a
vida da ofendida ( o arguido não se deteve mesmo depois da intervenção da sua mãe, nem mesmo
depois da arma ter encravado duas vezes), o que apenas não aconteceu por motivos alheios à sua
vontade praticou actos de execução do crime que decidiu cometer, na medida em que toda a
actuação por ele perpetrada preencheu elementos constitutivos do crime de homicídio qualificado
os actos praticados mostram-se idóneos à produção do resultado típico (morte), que, repete-se,
apenas não ocorreu por motivos alheios à sua vontade, máxime a pronta assistência médica.
Mais se provou que o arguido ao actuar da forma descrita, o arguido agiu de forma livre e
consciente, com o propósito de, através do uso de arma de fogo, tirar a vida a à ofendida, sua
mulher, objectivo que só não logrou alcançar por circunstâncias alheias à sua vontade e, bem
assim, que bem sabia que as suas acções e o objecto por si utilizado, eram particularmente aptos a
alcançar tal resultado.
Ficou assim claramente demonstrada a intenção do arguido de tirar a vida da ofendida, o que
preenche os elementos subjectivos do tipo, na modalidade de dolo directo, isto é conhecimento e
vontade de realização típica.
Inexistindo quaisquer causas de exclusão da ilicitude ou da culpa, resulta, assim, consubstanciada,
a prática pelo arguido, em autoria material, de um crime de homicídio qualificado na forma
tentada, p e p pelas disposições conjugadas do artigos 22.º, n.º 1 e 2, al. b), 23.º, n.º 1, 26.º, 131.º e
132.º, n.º 1 e 2, al. b) do Código Penal e art. 86.º, n.º 3, do RJAM.
2. Da Determinação Medida Concreta da Pena
O crime de homicídio qualificado na forma tentada previsto 22.º, n.º 1 e 2, al. b), 23.º, n.º 1, 26.º,
131.º e 132.º, n.º 1 e 2, al. b) do Código Penal e art. 86.º, n.º 3, do RJAM,, é punido, em abstracto,
com pena de prisão entre 3 anos e 2 meses e 25 anos de prisão.
O crime de detenção de arma proibida previsto no art. 86.º, n.º 1 alíneas c) da Lei n.º 5/2006 de 23
de Fevereiro, é punido com pena de prisão de 1 a 5 anos ou com pena de multa até 600 dias.
Relativamente a estes último crime, verifica-se na respectiva moldura uma alternativa entre penas
principais de prisão e multa, pelo que cumpre, antes de mais, recorrer ao disposto nos artigos 40.º
e 70.º do Código Penal, cujo regime determina que o Tribunal deverá conceder preferência à pena
não privativa da liberdade sempre que, por seu intermédio, seja possível realizar de forma
adequada e suficiente as finalidades da punição, a saber: a protecção dos bens jurídicos e a
integração do agente no meio social.
O arguido não averba qualquer antecedente criminal.
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Pese embora a preferência legal pelas penas não privativas de liberdade, atendendo, por um lado,
ao número de vezes que estes crimes são cometidos e a intranquilidade que criam, cremos que o
desvalor das condutas não pode ser apreciado isoladamente do homicídio qualificado na forma
tentada, pois foi precisamente por recurso a uma das armas que tinha em casa que o arguido
disparou sobre a sua mulher, não descurando que a arma que determinou a consumação do crime
de detenção ilegal de arma era uma pistola transformada, com numero de calibre rasurado, pelo
que a imagem global da conduta do arguido já não é de molde a satisfazer-se com a aplicação da
pena de multa, tanto mais que a isso se opõem exigências irrenunciáveis de prevenção geral por
forma a que a comunidade veja restabelecida a confiança na validade da norma violada.
A determinação da concreta medida da pena de prisão, rege-se pelos critérios contidos nos artigos
40.º e 71.º, ambos do Código Penal.
Nos termos do artigo 71.º, n.º 1, do Código Penal, “a determinação da medida da pena, dentro dos
limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção.”
Assim, na determinação da medida concreta da pena, é preciso atender às finalidades próprias das
penas, previstas no artigo 40.º do Código Penal. De acordo com o n.º 1 deste normativo, “a
aplicação das penas e medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração
do agente na sociedade”.
Deste modo, o julgador deve atender às finalidades de prevenção geral (sobretudo positiva), no
sentido da defesa dos bens jurídicos e do ordenamento jurídico, assegurando a estabilização das
expectativas contrafácticas da comunidade nas normas jurídicas violadas.
Além disso, deve também orientar-se por finalidades de prevenção especial, já que a pena visa
igualmente a reintegração ou ressocialização do agente do crime, por forma a habilita-lo a
adoptar, no futuro, condutas conformes com os valores e bens tutelados pelo direito.
O n.º 2 do artigo 40.º do Código Penal dispõe ainda que “em caso algum a pena pode ultrapassar
a medida da culpa.”
O nosso sistema penal assenta no princípio unilateral da culpa, nos termos do qual, não pode
haver pena sem culpa, ainda que possa haver culpa sem pena. Além disso, a culpa funciona como
o limite inultrapassável da pena.
Nestes termos, na esteira da douta formulação do Professor Figueiredo Dias, in “Temas básicos
da doutrina penal”, Coimbra Editora, 2001, página 65 e seguintes, que perfilhamos, na
determinação da pena concreta deve seguir-se o modelo que comete à culpa a função de
determinar o limite máximo da pena, cabendo à prevenção geral fornecer uma moldura cujo limite
máximo é dado pela medida óptima da tutela dos bens jurídicos, e cujo limite mínimo é fornecido
pelas exigências irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico, cumprindo, por último, à
prevenção especial encontrar o quantum exacto da pena dentro da referida moldura da prevenção,
que melhor sirva as exigências de ressocialização do agente.
Assim, a culpa funciona como moldura de topo da pena, funcionando dentro dela as sub-molduras
da prevenção, prevalecendo a geral sobre a especial. Para tanto, atender-se-á, nos termos do
artigo 71.º, n.º 2, do Código Penal, a “todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de
crime, depuserem a favor do agente e contra ele”.
In casu, o grau de ilicitude dos factos é elevado, atendendo à imagem global do facto, onde o
arguido prime por quatro vezes o gatilho, com a arma apontada à ofendida, sendo que na primeira
é a intervenção da mãe do arguido que impede a vitima de ser atingida e depois da vitima fugir do
local para outra divisão da casa o arguido, sempre com a arma empunhada, vai no seu encalço,
abordando-a na casa de banho onde lhe aponta a arma, primeiro para a cabeça, depois para o
coração, sendo que apesar de premir o gatilho em ambas as situações a arma não dispara, o que o
leva a colocar novamente o cartucho na câmara, puxar a culatra atrás, manietar a ofendia e
dispara, uma vez mais, atingindo-a com maior intensidade no braço, mas também no abdómen,
tudo a revelar reiteração do intuito lesivo da vida da sua mulher.
A ilicitude na detenção de arma é também elevado, pois além de deter uma pistola, a mesma estava
transformada, e detinha ainda 7 munições.
O dolo é intenso, porque directo, tendo o arguido agido com conhecimento e vontade de realização
das condutas típicas.
As exigências de prevenção geral são elevadas, uma vez que a vida é o bem mais precioso da
vivência em sociedade, sendo qualquer comportamento que atente contra este bem jurídico
portador de uma forte carga emocional, criando sentimento de insegurança junto das populações,
e apesar da de prática frequente, perturba fortemente a paz social, pelo que cumpre evitar o efeito
imitação, a sua banalização e que se instaure entre os membros da comunidade o sentimento de
impunidade pela violação da ordem jurídica.
No que concerne às exigências de prevenção especial, há que ter em consideração que o Arguido
não tem antecedentes criminais e está familiar, social e laboralmente inserido.
Face ao exposto, ponderadas as exigências de prevenção geral e especial que no caso se fazem
sentir, limitados pela culpa manifestada no cometimento dos factos, considera-se justo e adequado
aplicar ao Arguido a pena de 6 (seis) anos e 6 (seis) meses de prisão pela prática do crime de
homicídio qualificado na forma tentada e 1 ano e 2 meses pelo crime de detenção ilegal de arma.
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4.1 Do Concurso de Crimes
Atento o disposto no artigo 77º, n.º 1 do Código Penal “quando alguém tiver praticado vários
crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa pena
única.” Sendo que, a pena aí aplicável tem como limite máximo a soma das penas concretamente
aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 25 anos tratando-se de pena de prisão e de
900 dias tratando-se de pena de multa; e como limite mínimo a mais elevada das penas
concretamente aos vários crimes (cfr. art.º 77º, n.º2 do CP).
Como refere Figueiredo Dias, na avaliação da pena unitária “tudo deve passar-se como se o
conjunto dos factos fornecesse a gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua
avaliação a conexão e o tipo de conexão entre os factos concorrentes se verifique. Na avaliação da
personalidade – unitária – do agente revelará, entretanto, a questão de se saber se o conjunto dos
factos é reconduzível a uma tendência (ou eventualmente mesmo a uma “carreira”) criminosa, ou
tão-só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade: só no primeiro caso, já não no
segundo, será cabido atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante dentro da moldura
penal conjunta. De grande relevo será também a análise do efeito previsível da pena sobre o
comportamento futuro do agente (exigências de prevenção especial de socialização).” (In Direito
Penal Português – As consequências do crime, Aequitas, 1993, págs. 291 e 292.
Face ao exposto, há que proceder ao cúmulo jurídico entre as 2 penas de prisão aplicadas ao
Arguido.
Assim, atendendo ao disposto no n.º 2 do artigo 77º do Código Penal a pena única aplicada tem de
situar-se entre os 6 anos e 6 meses (mais alta da penas parcelares) e 7 anos e 8 meses (soma da
totalidade das penas aplicadas), face às considerações tecidas aquando da determinação das
penas parcelares, fixar a pena única em 7 anos de prisão.
5. Do destino dos objectos
Uma vez que as armas e munições apreendidas podem colocar em perigo a segurança das pessoas
ou ser utilizados para o cometimento de novos factos ilícitos típicos, ao abrigo do disposto nos
artigos 109.º, do Código Penal e 78.º, da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro, declaro-as s perdidos
a favor do Estado e determino que sejam entregues no Comando da PSP que lhes dará destino.
6. Da recolha de ADN
A Lei 5/2008 de 12 de Fevereiro aprovou a criação de uma base de dados de perfis de ADN para
fins de identificação civil e criminal.
Nos termos do art. 8º, nº 1 da lei em causa «a recolha de amostras em processo crime é realizada a
pedido do arguido ou ordenada, oficiosamente ou a requerimento, por despacho do juiz, a partir
da constituição de arguido, ao abrigo do disposto no art. 172º do Código de Processo Penal».
Por seu turno, dispõe o nº 2 do artigo citado do seguinte modo: «quando não se tenha procedido à
recolha de amostra nos termos do número anterior, é ordenada, mediante despacho do juiz de
julgamento, e após trânsito em julgado, a recolha de amostras em condenado por crime doloso
com pena concreta de prisão igual ou superior a 3 anos, ainda que esta tenha sido substituída».
As entidades competentes para a análise laboratorial em causa são, nos termos do art. 5º, nº 1 da
Lei citada, o Laboratório de Polícia Científica da Polícia Judiciária e o Instituto Nacional de
Medicina Legal.
Tudo visto, resulta estarem reunidos os pressupostos para que se determine, com vista à criação da
base de dados prevista pela lei em causa, a recolha da amostra de ADN quanto ao Arguido (cf nº 2
do art. 8º citado e ainda para os fins previstos nos arts. 4º e 18º, nº 3 do mesmo diploma legal).
Tal análise laboratorial ficará a cargo das entidades “supra” discriminadas.
Do Pedido de Indemnização Civil
Dispõe o artigo 129.º do Código Penal que “A indemnização de perdas e danos emergentes de
crime é regulada pela lei civil”.
Segundo o princípio geral da responsabilidade civil por factos ilícitos prescrito no artigo 483.º do
Código Civil (doravante, C.C.) “Aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito
de outrem ou qualquer disposição destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a
indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação”.
A obrigação de indemnização só existe em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria
sofrido se não fosse a lesão – cfr. artigo 563.º do Código Civil.
Nestes termos, são pressupostos essenciais para que possa existir responsabilidade civil e
consequente indemnização, o facto humano voluntário, a qualificação desse facto como ilícito, o
nexo de imputação subjectivo entre o agente e o dano (culpa), a existência de um dano e o nexo de
causalidade entre o facto e o dano.
A obrigação de indemnização é determinada nos termos do artigo 562.º do C.C. e é, sempre que a
reconstituição natural não seja possível, fixada em dinheiro (cfr. artigo 566.º, n.º 1 do C.C.).
Os danos patrimoniais compreendem não só os prejuízos causados nos bens já existentes na
titularidade do lesado à data da lesão (dano emergente: cfr. artigo 564.º, n.º 1 C.C.), como também
“os benefícios que o lesado deixou de obter por causa do facto ilícito, mas a que ainda não tinha
direito à data da lesão” (lucro cessante: cfr. artigo 564.º, n.º 1 C.C.).
No que concerne aos danos não patrimoniais, estes serão indemnizáveis por força do disposto no
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artigo 496.º, n.º 1 do C.C. sempre que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito.
Nos termos do art. 496.º, n.º 3, do C.C., a indemnização será fixada segundo critérios de equidade,
tendo em conta a gravidade e a extensão dos prejuízos, a situação económica do agente e do
lesado, o grau de culpabilidade e as circunstâncias do caso concreto (vide artigo 494.º do C.C.).
Os danos não patrimoniais abrangem os prejuízos (como as dores físicas, os desgostos morais, os
vexames, a perda de prestígio ou reputação e os complexos de ordem estética) que, não sendo
susceptíveis de avaliação pecuniária apenas podem ser compensados com obrigação pecuniária
imposta ao agente, sendo mais uma satisfação do que uma indemnização.
O Centro Hospitalar e Universitário do Algarve e o Centro Hospitalar e Universitário de Lisboa
Norte EPE deduziram pedidos de indemnização contra o arguido, pedindo o primeiro a
condenação deste no pagamento da quantia de 541,07 €, e o segundo no valor de 2418,40 €,
ambos a título de despesas suportadas com o tratamento da assistente.
Ora, tendo resultado provado que os cuidados médicos forma na sequência das agressões
perpetradas pelo demandado/constitui-se esta na obrigação de suportar tais despesas, acrescido
de juros de mora vencidos e vincendos desde notificação para contestar até efectivo e integral
pagamento.
Quanto aos danos não patrimoniais, atendendo à extensão das lesões, provando-se que com a
conduta do arguido a ofendida sofreu dores e lesões físicas que se deram como provadas, com 106
dias para consolidação, dos quais 60 com afectação da sua capacidade de trabalho geral e
profissional e ainda a vergonha sentida em sequencia das lesões e a inibição social provada, bem
como os tratamentos médicos sofridos, com intervenções cirúrgicas, a que acresce o clima de
terror vivido e o receito que teve de perder a vida, entende o Tribunal que estes danos não
patrimoniais são indemnizáveis em montante que se fixa em 15.000 €, atendendo por um lado aos
danos os sofrido e, por outro, à condição económica do arguido que se deu como provada.
Tendo resultado não provado que, como consequência das lesões a Demandante vai ficar com
Incapacidade Parcial Permanente para a sua actividade profissional de cabeleireira, não se
arbitrará qualquer quantia de danos patrimoniais a reste respeito.”.

3.2. Da apreciação dos recursos interpostos pelo arguido e MP


Passemos, então, a conhecer as questões apontadas em II. ponto 2. deste Acórdão.

3.2.1. Impugnação da matéria de facto


O arguido sem contestar ou impugnar concretamente os pontos da matéria de facto dados como
assentes na decisão recorrida, considera que o crime pelo qual foi condenado o deveria ter sido na
forma de homicídio negligente.
Depois, apesar de o tribunal recorrido não ter manifestado quaisquer dúvidas sobre os factos dados
como assentes, o recorrente considera ter sido violado o princípio in dubio pro reo.
Convoca, ainda, o arguido a violação do artigo 127.º do CPP, mas não explicita, nem demonstra,
qual ou quais as razões de tal incumprimento.
Ainda na conclusão 15.ª o recorrente refere ter sido violado o artigo 410.º, n.º 2 do CPP sem,
contudo, indicar as alíneas desse normativo infringidas, designadamente se ocorreu falta ou
insuficiência da fundamentação da matéria de facto, contradição entre a matéria de facto e a sua
fundamentação ou erro notório na apreciação da prova.
A este propósito cumpre referir que a sindicância da matéria de facto pode efetivamente obter-se
pela via da invocação dos vícios da decisão (impugnação restrita da matéria de facto), nos termos
do artigo 410.º do CPP.
Dispõe este normativo que:
«1 – Sempre que a lei não restringir a cognição do tribunal ou os respetivos poderes, o recurso
pode ter como fundamento quaisquer questões de que pudesse conhecer a decisão recorrida. 2 –
Mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o
recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si
só ou conjugada com as regras da experiência comum: a) A insuficiência para a decisão da
matéria de facto provada; b) A contradição insanável entre a fundamentação ou entre a
fundamentação e a decisão; c) Erro notório na apreciação da prova. (...)»

Os vícios taxativamente enumerados, terão de ser evidentes e passíveis de deteção através do mero
exame do texto da decisão recorrida (sem possibilidade de recurso a outros elementos constantes
do processo), por si só ou conjugada com as regras da experiência comum.
A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada (alínea a) do artigo 410.º do CPP)
constitui uma lacuna no apuramento da matéria de facto indispensável para a decisão de direito e
ocorre quando se conclui não ser possível com os factos considerados como provados atingir-se a
decisão de direito a que se chegou, ocorrendo assim um hiato carecido de ser preenchido.
Só se poderá falar em tal vício quando a matéria de facto provada é insuficiente para fundamentar a
solução de direito e quando o Tribunal deixou de investigar toda a matéria de facto com interesse
para a decisão final.
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02/02/2023 15:48 Acórdão do Tribunal da Relação de Évora
Já a contradição insanável da fundamentação ou entre os fundamentos e a decisão (artigo 410.º, n.º
2, alínea b) do CPP) ocorre quando se deteta incompatibilidade inultrapassável através da própria
decisão recorrida, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação
probatória e a decisão.
Há contradição insanável da fundamentação quando, fazendo um raciocínio lógico, for de concluir
que a fundamentação leva precisamente a uma decisão contrária à tomada ou quando, de harmonia
com o mesmo raciocínio, se concluir não ser a decisão esclarecedora, face à colisão entre os
fundamentos invocados.
Há contradição entre os fundamentos e a decisão quando haja oposição entre o que ficou provado e
o referido como fundamento da decisão tomada; e há contradição entre os factos quando os
provados e os não provados se contradigam entre si ou por forma a excluírem-se mutuamente.
Por fim o erro notório (artigo 410.º, n.º 2, alínea c) do CPP) na apreciação da prova constitui «falha
grosseira e ostensiva na análise da prova, percetível pelo cidadão comum, denunciadora de que se
deram provados factos inconciliáveis entre si, isto é, que o dado como provado ou não provado está
em desconformidade com o que realmente se provou ou não provou, ou seja, foram provados factos
incompatíveis entre si ou as conclusões são ilógicas ou inaceitáveis ou que se retirou de um facto
dado como provado uma conclusão logicamente inaceitável.
Dito de outro modo, há um tal erro notório quando um homem médio, perante o constante do texto
da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente se dá conta ter o
Tribunal violado as regras da experiência ou baseando-se em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo
contraditórios ou desrespeitando-se regras sobre o valor da prova vinculada ou das leges artis.
Lendo a decisão recorrida não se deteta qualquer dos vícios indicados, sendo certo, como já
assinalado, não ter o arguido concretizado qualquer deles, apenas limitando-se a convocar o artigo
410.º do CPP de forma genérica.
Finalmente o arguido assinala a violação do artigo 127.º do CPP bem como do princípio in dubio
pro reo.
Para o efeito refere não ter o Tribunal avaliado devidamente os meios de prova e conclui encontrar-
se provada matéria de facto que conduziria a subsumir a conduta do agente a uma tentativa de
homicídio por negligência e daí dever o arguido ser absolvido.
O recorrente limita-se a aduzir genericamente estarem apurados factos distintos dos fixados pelo
Tribunal e ter sido violado o artigo 127.º do CPP.
Ora no artigo 127.º do CPP consagra-se um modo não estritamente vinculado na apreciação da
prova, orientado no sentido da descoberta da verdade processualmente relevante, pautado pela
razão, pela lógica e pelos ensinamentos colhidos da experiência comum apenas limitado pelas
exceções decorrentes da prova vinculada (do caso julgado - artigos 84.º; do valor da prova pericial
- 163.º; do valor probatório dos documentos autênticos e autenticados - artigo 169.º e pela
confissão artigo 344.º do CPP) e pelos princípios estruturantes do processo penal, entre os quais se
destaca o do in dubio pro reo (artigo 32.º, n.º 2 da CRP).
Enformado por estes limites, o julgador perante o qual a prova é produzida – e quem se encontra
em posição privilegiada para dela colher todos os elementos relevante para a sua apreciação crítica
(imediação)– dispõe de ampla liberdade para eleger os meios de que se serve para formar a sua
convicção e, de acordo com ela, determinar os factos que considera provados e não provados.
O princípio da livre apreciação da prova (artigo 127.º do CPP) confere, assim, ao Julgador o poder
de dar prevalência a um determinado conjunto de provas em detrimento de outras, às quais não
reconheça, nomeadamente, suporte de credibilidade.
Examinada a fundamentação do acórdão recorrido relativamente ao acervo factual dado como
provado não se vislumbra terem subsistido dúvidas sobre os factos dados como provados nem que
tenha optado por solucioná-la em desfavor do arguido.
Não emergindo da fundamentação da sentença recorrida ter-se o julgador deparado com uma
qualquer dúvida insanável sobre a verificação dos factos que deu como provados nada há para
resolver, a favor ou contra quem quer que seja.
Não ocorrendo violação do artigo 410.º, n.º 2, artigo 127.º e do princípio in dubio pro reo mostra-se
sedimentada a matéria dada como provada, não tendo o recurso do arguido a este nível qualquer
sustentáculo, julga-se o mesmo improcedente, passando-se em seguida a conhecer da impugnação
de direito suscitada pelo arguido e pelo MP.

3.2.2. Impugnação da matéria de direito


Sedimentada em definitivo a factualidade apurada cumpre conhecer das questões de direito
suscitadas relativas à medida das penas de prisão parcelares e única aplicadas definitivamente, bem
como da possibilidade ou não da suspensão da execução desta última.
O MP sustenta que o arguido deveria ter sido punido também pela detenção da arma proibida
utilizada para tentar matar a vítima (espingarda caçadeira da marca Browning com cano serrado) e
não apenas pela posse da pistola de marca Waltro e dos cartuchos de calibre 12.
Apesar das aparentes singelas questões de direito suscitadas a complexidade jurídica subjacente à
fixação da medida das penas e do concurso efetivo de crimes reclama, antes de mais, a
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02/02/2023 15:48 Acórdão do Tribunal da Relação de Évora
identificação do quadro legal de referência aplicável ao caso, de molde a alcançar-se com
segurança resposta aos assuntos suscitados.

A. Homicídio qualificado (alínea b) do n.º 2 do artigo 132.º do CP) na forma tentada agravado pela
utilização de arma proibida (artigo 86.º, n.º 3 do RJAM)
O arguido como referido entende que a sua atuação correspondeu à prática não de uma tentativa
dolosa de homicídio qualificado na forma tentada, mas tão só de um homicídio simples na forma
tentada praticado a título negligente.
Tendo em consideração a factualidade dada como apurada e definitivamente sedimentada, e como
já referido em 3.2.1. deste Acórdão, decorre sem qualquer margem para dúvidas que o crime foi
perpetrado na forma dolosa (cf. pontos 4.31., 4.32., 4.33. e 4.37.).
Na decisão recorrida foi amplamente explicado que a norma base do homicídio é o artigo 131.º do
CP, ou seja, o homicídio simples apresenta-se como o tipo fundamental.
Assim, o artigo 132.º do CP configura um caso especial de homicídio doloso sendo moldado pelos
exemplos padrão previstos no n.º 2 os quais não funcionam de forma automática, mas apenas
constituindo um indício de uma especial censurabilidade ou perversidade do agente que há-de ser
aferida em cada situação concreta (cf. n.º 1 do artigo 132.º do CP).
Assim, mesmo que nos encontremos na presença de uma das circunstâncias das alíneas do n.º 2 do
artigo 132.º do CP, a atuação do agente apenas será qualificada, se complementarmente ocorrer
uma especial censurabilidade ou perversidade do agente[1].
Por outras palavras, mesmo que nos encontremos na presença de uma das circunstâncias do n.º 2
do artigo 132.º do CP se não ocorrer especial censurabilidade ou perversidade no cometimento do
crime a atuação do agente será punida pelo tipo fundamental do artigo 131.º do CP (homicídio
simples).
Para a qualificação do crime de homicídio não basta, assim, o mero preenchimento dos exemplos
padrão do n.º 2 do artigo 132.º do CP, exigindo-se ainda a ocorrência do substrato constante do n.º
1 do artigo 132.º, ou seja, a produção da morte seja reveladora de uma especial censurabilidade ou
perversidade.
As circunstâncias qualificativas do n.º 2 do artigo 132.º são aplicáveis ainda que se trate de crime
cometido na forma tentada[2], sendo evidentemente necessário que as circunstâncias reveladoras de
uma maior censurabilidade ou perversidade tenham de estar já presentes nos atos de execução[3].
Revertendo ao caso em apreciação o Tribunal a quo averiguou se o homicídio (tentado) cometido
pelo arguido se subsumia a algum dos exemplos padrão do n.º 2 do artigo 132.º e nesse caso se o
efeito qualificador se considerava ou não ilidido por comprovada ou não a especial perversidade ou
censurabilidade do agente.
O arguido estava acusado da prática de um crime de homicídio na forma tentada por o ter cometido
contra a cônjuge (alínea b)[4] do n.º 2 do artigo 132.º) e ter utilizado uma arma (n.º 2, alínea h) do
artigo 132.º do CP e artigo 86.º, n.º 3 da Lei 5/2006 de 23 de fevereiro).
Tendo sido dado como provado que a vítima era casada com o arguido (ponto 1. dos factos
assentes), tendo por isso o agente consciência da natureza dessa relação, não ocorre qualquer
dúvida que se encontrava indiciada a circunstância prevista na alínea b) do n.º 2 do artigo 132.º do
CP.
Como a circunstância qualificadora do homicídio (ser a vítima cônjuge do agente) não operava
automaticamente, embora consubstanciasse uma presunção de qualificação, o Tribunal recorrido
foi analisar se as circunstâncias da produção do crime revelavam especial censurabilidade ou
perversidade (n.º 1 do artigo 132.º do CP).
Da factualidade apurada resulta que o agente depois disparar uma primeira vez sobre a vítima,
disparo esse desviado pela mãe do mesmo, colocou a sua progenitora fora de casa e fechou a porta
da habitação. Nesse espaço perseguiu a vítima, encurralou-a, apontou e disparou a arma por mais
três vezes agora à ‘queima roupa’ (cabeça, coração, braços/abdómen), embora na segunda e terceira
vez não tenha ocorrido deflagração da munição, e no fim com a vítima ensanguentada ainda a ela
se dirigiu dizendo “querias morrer agora vais morrer” e “então não tinhas medo de morrer e agora
já tens”.
Convocou o arguido, em sede de recurso, encontrar-se numa situação de distúrbio emocional
causada por ciúme por uma eventual infidelidade da vítima aquando do cometimento do crime. Tal,
todavia, é insuficiente para afastar uma imagem especialmente perversa e censurável.
A persistência na intenção de agir sobre a vítima, num clima de perseguição e de terror disparando
sobre ela, não uma, duas ou três, mas quatro vezes revelam ter este tido a oportunidade de atualizar
a sua consciência e meditado sobre os efeitos da sua ação, bem como renunciar à decisão
criminosa[5]. Na primeira vez inclusive por ação da própria mãe que no último momento desviou a
arma e evitou o alvejamento da vítima e nas duas vezes seguintes por não ter ocorrido deflagração
da munição após o agente ter pressionado o gatilho.
Acresce que o arguido meditou e planeou o crime tendo nesse mesmo dia serrado o cano da
espingarda e antes de o executar refletiu sobre o meio a empregar, tendo chegado a sair de casa

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armado mesmo antes do encontro telefónico agendado supostamente com a pessoa que lhe iria
transmitir os pormenores da traição da mulher. No regresso a casa, apontando a arma de fogo, quis
obrigar a mulher a mostrar as mensagens que esta tinha no telemóvel. Perseguiu-a e encurralou-a
por várias divisões da casa (cozinha, corredor, piso 1 e casa de banho), chegando a colocar a mãe
fora de casa, após o primeiro disparo, e trancado a porta da habitação.
No fim, como referido, já depois de ter atingido a mulher no braço e abdómen com um tiro à
queima roupa distratou-a, já ensanguentada, com expressões sarcásticas.
Tendo, assim, em consideração que as circunstâncias anteriores, contemporâneas e posteriores ao
crime atribuem ao facto uma imagem global suscetível de revelar especial censurabilidade e
perversidade, o efeito qualificador do exemplo padrão (alínea b) do n.º 2 do artigo 132.º do CP)
para além de não ter sido ilidido foi comprovado, encontrando-se adequadamente condenado o
arguido como autor do crime de homicídio qualificado na forma tentada por ter investido contra a
vítima sua mulher.
O arguido foi, ainda, acusado de ter praticado o crime nos termos do artigo 132.º, n.º 2, alínea h) do
CP.
O Tribunal a quo não considerou preenchida a circunstância qualificadora da alínea h) do n.º 2 do
artigo 132.º do CP.
Dispõe esta alínea ser suscetível de revelar especial censurabilidade ou perversidade a
circunstância de o agente utilizar meio particularmente perigoso ou a atuação se traduzir na prática
de crime de perigo comum.
Quanto à utilização de meio particularmente perigoso esta manifesta-se na circunstância de o
agente “servir-se para matar de um instrumento, de um método ou de um processo que dificultem a
defesa da vítima e que (não se traduzindo na prática de uma crime de perigo comum), criem ou
sejam suscetíveis de criar perigo de lesão de outros bens jurídicos importantes”[6].
Esse instrumento, processo ou método terá contudo de ser particularmente perigoso, ou seja,
revelar “uma perigosidade muito superior à normal nos meios usados para matar”[7].
Meio particularmente perigoso seria aquele que tendo uma aptidão particular para causar a morte,
dificultasse consideravelmente a defesa da vítima e pudesse atingir terceiros de forma
indiscriminada, sem contudo, integrar o conceito de crime de perigo comum.
Se por exemplo o agente utilizasse um camião conduzindo-o para atingir a vítima num momento
em que esta estivesse no meio de uma multidão, essa atuação seria reveladora não só de especial
perversidade como de especial censurabilidade.
Já quanto à qualificativa expressa na parte final da alínea h) do n.º 2 do artigo 132.º do CP, ou seja,
de o homicídio também poder ser qualificado quando o agente é autor de um crime doloso de
perigo de comum, para efeitos deste segmento integram-se em tal conceito não apenas os crimes de
perigo comum constantes dos artigos 272.º a 286.º do CP[8], mas também outros previstos fora do
Código Penal, como por exemplo, o do artigo 86.º, n.º 1 da Lei n.º 5/2006 (RJAM), que substituiu o
anterior artigo 275.º do CP[9].
Ora o artigo 86.º, n.º 1 do RJAM pune como crime de perigo comum a detenção de arma proibida e
ficou provado ter o arguido utilizado uma espingarda caçadeira com cano serrado para tentar matar
a mulher. Tal instrumento configurando uma arma proibida é punível como crime de perigo comum
(artigo 86, n.º 1, alínea c) do RJAM).
Considerando que a qualificativa, no caso da alínea h), se encontrava preenchida[10] caberia
analisar se a sua utilização revelava ou não especial censurabilidade ou perversidade[11].
A doutrina[12] e a jurisprudência[13] têm entendido que a utilização por exemplo de um revólver ou
pistola constituem meios “normais” para matar pelo que a prática de homicídio com tais
instrumentos cairia no tipo simples do artigo 131.º do CP e não no qualificado da alínea h) do n.º 2
do artigo 132.º do CP.
Subsumindo-se, em todo o caso, a situação em apreciação à qualificativa “prática de crime de
perigo comum” e não à qualificativa “meio particularmente perigoso” vejamos se no caso a
utilização daquela concreta arma proibida é reveladora de uma especial censurabilidade ou
perversidade do agente.
A especial censurabilidade do facto resultaria de ter sido criada uma situação de risco acrescido e
extensivo a outras pessoas evidenciando a ausência de escrúpulos do agente. Por exemplo se o
autor do crime não se tivesse importado em colocar em perigo outras pessoas para além da vítima
do homicídio.
Assim, se o arguido tivesse disparado a arma na direção da vítima quando esta se encontrava
rodeada de pessoas essa sua atuação poderia revelar especial censurabilidade.
Na situação em apreciação, todavia, o arguido chegou a colocar a sua mãe fora de casa e a trancar a
porta da residência, não tendo ficado provado ou sido sequer alegado que outras pessoas pudessem
ter sido atingidas pelo disparo, não ocorrendo assim, a este nível uma especial censurabilidade na
utilização da arma pelo agente, para além do “normal”.
Já a especial perversidade na tentativa de homicídio com a utilização de uma arma de fogo poderia
resultar da circunstância de o arguido inserir o cano da arma nos genitais da vítima disparando-a,
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mas a munição não tivesse chegado a deflagrar.
Tal atitude profundamente repugnável e absolutamente rejeitada pela sociedade seria reveladora de
sentimentos de pura malvadez manifestamente distanciados do direito e reveladores de uma
especial perversidade subsumível ao disposto na parte final da alínea h), dos n.ºs 2 e 1 do artigo
132.º do CP.
No caso em apreciação o arguido, é certo, apontou a arma à cabeça, ao coração, ao braço e ao
abdómen da vítima, mas essa concreta atuação não reclama um juízo acrescido de censura para
efeitos de qualificação do crime de homicídio nos termos da alínea h) do n.º 2 do artigo 132.º [14],
pois não foi criada uma situação de perigo acrescido e extensivo a outras pessoas ou evidenciadora
de uma especial ausência de escrúpulos.
Estando ilidido o exemplo padrão da alínea h) do artigo 132.º, n.º 2 do CP, concluiu o Tribunal a
quo pela condenação do arguido pela prática de uma tentativa de homicídio qualificado tão só pela
alínea b) do citado preceito legal.
A questão subsequente analisada reportava-se a saber se não sendo a utilização da arma proibida
elemento integrante da circunstância qualificativa do homicídio (o uso da arma proibida não se
subsumiu ao exemplo padrão da alínea h) do n.º 2 em articulação com o n.º 1 do artigo 132.º do
CP) se ainda assim podia ocorrer a agravação do artigo 86.º, n.º 3 do RJAM.
Em consonância com esta questão, outra se colocava: se o arguido podia, para além da tentativa de
homicídio qualificado agravado pelo n.º 3 do artigo 86.º do RJAM, ser condenado em concurso
efetivo com o crime de detenção de arma proibida previsto pelo artigo 86.º, n.º 1 do RJAM, pela
posse da espingarda caçadeira marca Browning.
Na 1.ª instância o Tribunal a quo entendeu que não haveria concurso efetivo entre os crimes de
homicídio tentado e o de detenção da arma proibida utilizada para perpetrar o crime (artigo 86.º,
n.º 1 do RJAM)[15], embora tivesse aplicado a agravante do artigo 86.º, n.º 3 do RJAM.
O MP não discorda da aplicação do artigo 86.º, n.º 3 do RJAM, mas critica o afastamento da
aplicação do artigo 86.º, n.º 1, alínea c) do RJAM em relação à espingarda caçadeira marca
Browning utilizada pelo arguido para alvejar a vítima que, no seu entender, deveria ter sido
considerada como agravante da prática do crime de detenção de arma proibida pela qual o agente
foi condenado.
Para compreender o alcance da questão suscitada cumpre primeiro analisar o artigo 86.º, n.º 3 do
RJAM que prevê uma agravante com repercussões na medida da pena aplicada.
Esta norma dispõe o seguinte:
“3- As penas aplicáveis a crimes cometidos com arma são agravadas de um terço nos seus limites
mínimo e máximo, exceto se o porte ou uso de arma for elemento do respetivo tipo de crime ou a
lei já previr agravações mais elevada para o crime[16] em função do uso ou porte de arma”.
Indo ao encontro do caso concreto cumpria questionar em primeiro lugar se o uso e porte de arma
configurava um elemento da tentativa de homicídio cometida pelo arguido e em segundo se a lei já
previu agravação mais elevada para o crime.
A este nível tem-se defendido na jurisprudência[17] que o uso ou porte de arma não é elemento do
tipo fundamental do crime de homicídio simples (artigo 131.º do CP), embora possa ser um fator
de agravação, mas só se “para além de preencher um dos exemplos padrão ‘meios particularmente
perigoso’ ou ‘prática de um crime de perigo comum’ da alínea h) do n.º 2 do artigo 132.º revelar
especial censurabilidade ou perversidade”.
Nesta medida nada obstaria a que no caso de cometimento do crime de homicídio qualificado, por
exemplo padrão distinto do constante da alínea h) (do n.º 1 do artigo 132.º do CP) e ainda revelador
de especial perversidade ou censurabilidade (n.º 2 do artigo 132.º do CP), fosse agravado nos
moldes previstos no artigo 86.º, n.º 3 do RJAM se no seu cometimento fosse utilizada uma arma.
Cumpriria, em todo o caso, analisar se era de afastar a aplicação do n.º 3 do artigo 86.º do RJAM,
por verificação da exceção indicada na parte final deste número quando se refere ao segmento “a
lei já previr agravações mais elevada para o crime”[18].
Neste âmbito e em sintonia com o decidido pelo Acórdão do STJ de 31.3.2011, proferido no
processo 361/10.3GBLLE e relatado por Manuel Braz, entendemos que o n.º 3 do artigo 86.º do
RJAM só não é aplicável se por outra via o uso e porte de arma “dê lugar … a uma agravação
mais elevada, mas apenas se for de acionar efetivamente essa agravação”[19].
No caso em apreciação o uso de arma não é elemento do tipo de crime de homicídio (cf. artigo
131.º do CP). Por outro lado, embora a lei já preveja agravação mais elevada para o crime de
homicídio quando utilizada uma arma o certo é que na situação em apreço essa circunstância mais
grave não foi efetivamente aplicada, tendo sido afastada a subsunção à alínea h), do n.º 2 do artigo
132.º. Como atrás foi mencionado este tipo qualificado não foi preenchido por não se ter
considerado que a utilização daquela espingarda caçadeira Browning com o cano serrado na
circunstância concreta fosse reveladora de uma especial censurabilidade ou perversidade do agente.
Assim, não estando verificada a exceção constante da parte final do n.º 3 do artigo 86.º do RJAM,
mas sim a regra da parte inicial desse n.º 3 a pena aplicável ao arguido pelo homicídio tentado terá
de ser agravada de 1/3 nos seus limites mínimo e máximo, como adiante se explanará.

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A outra questão colocada, como se assinalou, é a de saber, como defende o MP, mas não foi
acolhido pelo Tribunal a quo, se o arguido cometeu efetivamente o crime de detenção de arma
proibida (artigo 86.º, n.º 1 do RJAM) em relação à espingarda caçadeira de marca Browning
utilizada para tentar matar a vítima.
O MP considera ocorrer concurso efetivo entre o crime de homicídio qualificado na forma tentada
com a utilização de arma (132.º, n.º 2, alínea b) e 22.º e 23.º do CP e 86.º, n.º 1 do RJAM) e o crime
de detenção de arma proibida (artigo 86.º, n.º 1 do RJAM).
É que o arguido não só utilizou a espingarda caçadeira para cometer a tentativa de homicídio,
como a teve na sua posse durante vinte cinco anos (cf. ponto 3 da matéria provada) sem que para
tal fosse detentor de qualquer licença de uso e porte de arma (ponto 37.).
Por outro lado, em data contemporânea com a tentativa de homicídio serrou o cano da espingarda
caçadeira da marca Browning, sendo ainda que o agente detivesse título válido a mesma seria
sempre insuscetível de legalização.
Tendo-se dado ainda como provado que: o arguido sabia não poder deter, utilizar ou guardar a
referida arma conhecendo as características da mesma e não se inibindo de a ter na sua posse
durante 25 anos (cf. ponto 44. e ainda pontos 45. e 46. dos factos provados), não ocorrem dúvidas
ter o mesmo detido uma arma proibida.
Essa conduta do recorrente preenche, pois, o tipo do artigo 86.º, n.º 1, alínea c) do RJAM.
Chegados a este ponto cumpre então questionar, tal como o fez o MP em sede de recurso se, não
obstante o homicídio ser agravado em função da utilização da espingarda caçadeira, ao abrigo do
artigo 86.º, n.º 3 do RJAM, deverá ainda o arguido ser punido pela prática do crime de detenção de
arma proibida (artigo 86.º, n.º 1, alínea c) do RJAM).
Por outras palavras torna-se necessário averiguar se, no caso concreto, ocorre concurso efetivo ou
apenas aparente de crimes.
A jurisprudência do STJ[20] defende a ocorrência de concurso aparente quando a conexão existente
entre a conduta do arguido em relação à arma e o homicídio se esgota na prática deste, ou seja,
quando do comportamento global é possível extrair que o homicídio é dominante e a utilização da
arma proibida é subsidiária.
Assim, se o arguido comprasse a arma com o único propósito de cometer o homicídio, ou acedesse
à posse da arma, que se encontrava na disponibilidade de outrem, com o único propósito de
cometer em seguida (proximidade temporal e espacial) o homicídio não ocorreria, em princípio,
uma situação de concurso efetivo entre os dois crimes (homicídio e detenção de arma proibida),
pois a ação seria unitária.
Já ocorreria um concurso efetivo na situação inversa, ou seja, quando o arguido detivesse a arma
proibida durante um espaço temporal mais ou menos dilatado[21], sabendo ser essa detenção ilegal,
e resolvesse depois cometer o crime[22].
Revertendo à situação em apreciação o arguido deteve de forma ilegal a espingarda caçadeira de
marca Browning durante vinte cinco anos (ponto 3. dos factos provados), no dia do crime serrou o
cano da arma (cf. motivação da matéria de facto) e tentou matar a vítima.
Neste caso é possível autonomizar de forma clara duas unidades jurídicas de facto: a primeira
relativa à circunstância de o agente ter mantido a espingarda caçadeira na sua posse durante vinte
cinco anos, sabendo fazê-lo de forma ilegal, por não estar legalmente habilitado a tê-la na sua
posse; a segunda consistente na utilização da arma ilegal serrando o seu cano para realizar o
disparo na tentativa de matar a vítima.
Na situação em apreciação acontece, tal como defendido pelo MP, um concurso efetivo de crimes,
sendo tutelados dois bens jurídicos distintos, “no crime de homicídio a vida humana e no crime de
detenção de arma proibida a segurança das pessoas”[23].
Concluindo-se pelo apontado concurso efetivo cumpre, ainda, saber se ocorre a consunção da
incriminação entre a detenção da arma proibida (artigo 86.º, n.º 1, alínea c)) e a agravação
constante do artigo 86, n.º 3 do RJAM.
No Acórdão do STJ de 7.5.2015 (Processo 2368/12.7JAPRT.P1.S1) conclui-se não se verificar a
violação do princípio da dupla valoração na circunstância apontada, pois a agravação do artigo
86.º, n.º 3 do RJAM:
- Deve-se à menor capacidade da vítima se defender;
- Pretende funcionar como meio dissuasor do uso e porte de arma (reprimir a utilização de armas na
prática de crimes);
- Prender-se ao desejo de dar resposta adequada e proporcional à criminalidade violenta e mais
grave;
- Configura uma medida de política criminal com declarada intenção de restringir pela punição do
uso de posse de armas;
- Pretende induzir a uma posse responsável e conscienciosa;
Por fim, salienta-se naquele Acórdão que a agravação do n.º 3 do artigo 86.º do RJAM se aplica a
todo e qualquer crime em que o agente use uma arma, não ocorrendo qualquer violação do
princípio da dupla valoração se ocorrer uma condenação em concurso efetivo do crime de

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homicídio (artigo 131.º ou 132.º do CP, desde que neste último caso não seja de aplicar a alínea h)
do n.º 2) com o crime de detenção de arma proibida (86.º, n.º 1 do RJAM)[24].
Também no Acórdão da RC de 22.11.2017[25] se concluiu no mesmo sentido afirmando-se não se
verificar qualquer violação do non bis in idem e como tal inconstitucionalidade decorrente da
aplicação do artigo 86.º, n.º 3 do RJAM, pois no caso não ocorre a qualificação da alínea h), do n.º
2 do artigo 132.º nem de qualquer outra. Sendo, ainda, salientado neste aresto que “a proibição da
dupla agravação só seria de afirmar se as agravações em questão correspondessem a uma mesma
dimensão da ilicitude e da culpa, o que não sucede quando uma delas entronca numa culpa
acrescida (artigo 132.º do C. Penal) e a outra radica em razões de prevenção geral que se
prendem com a necessidade de limitar o recurso às armas, pela perigosidade que representam
para bens jurídicos essenciais (penalmente tutelados) na prática de qualquer tipo de crime (artigo
86.º, n.º 3 da Lei das Armas)”.
Pelas razões apontadas entende-se dar provimento ao recurso interposto pelo MP sendo de
condenar o arguido em concurso efetivo pelo crime de homicídio qualificado na forma tentada
com utilização de arma (artigos 132.º, n.ºs 1 e 2, alínea b), 131.º, 22.º e 23.º do CP e 86.º, n.º 3 do
RJAM) e pelo crime de detenção da arma proibida de marca Browning (artigo 86.º, n.º 1, alínea c)
do RJAM)[26].
Analisado o Acórdão proferido em 1.ª instância resulta, todavia, ter sido o arguido condenado pela
prática de um crime de homicídio qualificado tentado agravado pela utilização de arma (artigo
132.º, n.ºs 1 e 2, alínea b) e 86.º, n.º 3 do RJAM) em concurso efetivo com um crime de detenção
de arma proibida (artigo 86.º, n.º 1, alíneas c), d) e e) e n.º 2 do RJAM).
Essa condenação foi-o não pela posse da espingarda caçadeira Browning, mas sim pela
circunstância de o agente deter na sua habitação uma pistola da marca Waltro transformada para
calibre 7,65 com calibre rasurado, bem como 7 cartuchos de calibre 12 e 2 cartuchos (estes dois
deflagrados aquando da utilização da arma Browning para cometer o homicídio).
Embora o Tribunal recorrido tivesse considerado a posse de uma arma e sete munições intactas e
munições (cartuchos e buchas) deflagradas subsumíveis a três alíneas do n.º 1, do artigo 86.º do
RJAM (alíneas c), d) e e) e n.º 2), apenas condenou o arguido pela prática de um crime.
Neste ponto foi adotada a jurisprudência seguida nos Acórdãos da RC de 22.1.2014[27], RE
3.10.2012,[28] RE de 8.11.2011[29],RP 1.10.2014[30] segundo a qual o detentor de uma arma de
fogo e munições, conquanto de categorias diferentes e previstas em diferentes alíneas do n.º 1 do
artigo 86.º do RJAM, deverá ser punido apenas por um crime, de acordo com a disposição legal
mais grave, funcionado as ‘outras’ armas e munições como meras agravantes na determinação da
medida concreta da pena.
Assim, transportando este raciocínio, que também acolhemos, para o caso em apreciação, e dando
nesta parte provimento ao recurso interposto pelo MP, o arguido será condenado pela prática de um
crime de detenção de arma proibida previsto no artigo 86.º, n.º 1, alínea c) do RJAM, disposição
mais grave, funcionando a outra arma (Waltro) e as sete munições mais duas deflagradas (2
cartuchos e 2 buchas) como agravantes na determinação da medida concreta da pena, como adiante
se explanará.
Esta opção recai na circunstância de, embora as duas armas detidas pelo arguido se subsumirem à
alínea c) do n.º 1 do artigo 86.º do RJAM, a espingarda caçadeira, cujo cano foi serrado, apresentar
uma perigosidade acrescida em comparação com a pistola Waltro, pois com aquela transformação
(cano serrado) a hipótese de falhar o alvo tornou-se menor.

B. Da medida da pena
Ambos os recorrentes pugnam pela alteração das penas aplicadas, o arguido pela condenação em
uma pena única de 3 anos de prisão suspensa na sua execução e o MP numa pena única fixada entre
13 anos e 14 anos e 10 meses de prisão. Já na segunda instância o Sr. Procurador Geral Adjunto
emitiu Parecer propugnando pela aplicação de uma pena única de 9 anos de prisão, atenta a
circunstância de o arguido ter 60 anos e ser primário.
No caso em apreciação foram cometidos pelo arguido, como se referiu, dois crimes:
- Um de homicídio qualificado pela alínea b), do artigo 132.º, n.ºs 2 e 1 do CP na forma tentada
agravado pela circunstância de ter sido utilizada uma arma (artigo 86.º, n.º 3 do RJAM);
- Um crime de detenção de arma proibida previsto no artigo 86.º, n.º 1, alínea c) do RJAM, pela
posse da espingarda caçadeira de marca Browning, funcionando a outra arma (Waltro) e as sete
munições mais duas deflagradas[31] como agravantes na determinação da medida concreta da pena.
Cumpre agora encontrar o quantum das penas concretas a aplicar aos dois crimes, sendo certo não
ter sido questionada a espécie da pena aplicada (prisão) por nenhum dos recorrentes.
O MP na 1.ª Instância requereu a aplicação de uma pena concreta:
- Situada no ponto médio da pena que apontou como sendo 13 anos de prisão pela prática do crime
de homicídio qualificado na forma tentada com utilização de arma de fogo, ao invés dos 6 anos e 6
meses aplicados pelo Tribunal a quo;
- Uma pena de 1 ano de 10 meses pela prática de um crime de detenção de arma proibida (posse de

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duas armas de fogo proibidas e de 7 munições mais duas deflagradas) ao invés de 1 ano e 2 meses
aplicado em 1.ª instância (posse de uma arma de fogo e sete munições e mais duas entretanto
deflagradas).
O MP junto do Tribunal recorrido concluiu, como já referido, pela aplicação de uma pena única
situada entre os 13 anos e os 14 anos e 10 meses de prisão (embora no início do requerimento
recursivo e nas conclusões finais tivesse indicado, inconsistentemente, a pena única de 12 anos).
Indicou o MP para efeitos do crime de homicídio na forma tentada cometido com arma estarmos
perante uma moldura pena abstrata de 3 anos e dois meses a 25 anos, a mesma apontada no
Acórdão recorrido.
Quanto ao crime de detenção de arma proibida o MP indicou uma pena abstrata de 1 a 5 anos de
prisão, a mesma moldura referenciada na decisão da 1.ª Instância.
Como entendemos que a moldura penal abstrata se situa entre os 3 anos, 2 meses e 12 dias e os 22
anos 2 meses e 19 dias serão, em seguida, assinaladas as várias operações que o procedimento para
a determinação das penas parcelares e única envolve.

B.1. Determinação da moldura penal abstrata e concreta cabida ao crime de homicídio qualificado
tentado agravado pelo uso de arma (artigos 131.º, 132.º, n.ºs 1 e 2, alínea b), 22.º e 23.º do CP e
artigo 86.º, n.º 3 do RJAM)
O crime de homicídio qualificado consumado previsto no artigo 132.º é cominado com uma pena
de 12 a 25 anos.
Verificando-se que ocorreram circunstâncias modificativas atenuantes (tentativa – artigos 22.º, 23.º
do CP) e agravantes (utilização de arma –artigo 86.º, n.º 3 do RJAM) há que alterar os limites
mínimos e máximo da moldura penal abstrata correspondente ao crime cometido.
Aqui suscita-se a primeira questão. Deverá a operação iniciar-se fazendo funcionar primeiro a
atenuante (tentativa – artigo 73.º, n.º 1, alíneas a) e b)) ou a agravante (uso de arma – artigo 86.º, nº
3 do RGAM)?
Embora não se referindo à situação em análise Figueiredo Dias[32] dá uma indicação quanto à
resposta a dar à questão esclarecendo que “em caso de concorrência de modificativas agravantes e
atenuantes o procedimento mais justo e correto parece estar em fazer funcionar primeiro as
agravantes e depois, relativamente à moldura penal assim provisoriamente determinada, as
atenuantes”. Embora admita mais adiante que “Erigir nesta matéria princípios mais ou menos
gerais seria pouco avisado e perigoso”[33].
A este nível cumpre relembrar o que se acha previsto na lei quanto à atenuante da tentativa (artigos
22.º, 23.º, 72.º e 73.º do CP) e à agravante da utilização de arma para cometer um crime (artigo
86.º, n.º 3 do RJAM).
Tendo o arguido cometido o crime de homicídio qualificado na forma tentada a pena é
necessariamente atenuada pela seguinte forma: O limite máximo da pena de prisão é reduzido de
um terço e o limite mínimo é reduzido a um quinto (artigo 73.º, n.º 1, alíneas a) e b) do CP).
Já quanto à agravação pela utilização da arma para cometer o crime a pena é agravada em 1/3 nos
limites máximo e mínimo (artigo 86.º, n.º 3 do RJAM).
A propósito do limite máximo dos 25 anos de prisão teremos presente encontrarmo-nos a calcular,
nesta fase, uma moldura penal abstrata e não concreta, sendo de convocar o mesmo princípio
aplicado para o concurso de infrações. Esta opção assenta na necessidade de se evitar incorrer num
tratamento desigual para situações semelhantes, porquanto nas penas mais baixas o arguido seria
prejudicado comparativamente com um arguido punido com penas mais graves se o limite máximo
da pena abstrata não pudesse ser encontrado acima dos 25 anos de prisão.
Assim, seguindo a opção avançada por Figueiredo Dias a pena máxima de 25 anos seria agravada
de 1/3[34] (ou seja em 8,333 que equivale a 8 anos 3 meses e 29 dias num total de 33,333 ou seja,
33 anos 3 meses e 29 dias) para em seguida a pena assim obtida de 33 anos 10 meses e 29 dias ser
atenuada em 1/3 (33,333 x 1/3 = 33,333 : 3 = 11,111; 33,333 – 11,111 = 22,222) obtendo-se como
limite máximo 22 anos 2 meses e 19 dias[35] .
Já quanto ao limite mínimo os 12 anos são agravados de 1/3 (12 + (12 : 3) = 12 + 4 = 16) obtendo-
se uma pena de 16 anos que sendo reduzida a 1/5 é fixada em 3 anos 2 meses e 12 dias (16 : 5 =
3,2[36]).
Em todo o caso, cumpre esclarecer que independentemente da ordem pela qual as circunstâncias
modificativas fossem aplicadas o resultado seria sempre o mesmo. Matematicamente a explicação
para a irrelevância da ordem em que é realizada a redução/atenuante (subtração) ou o
aumento/agravante (soma) assenta na circunstância de se tratarem de parcelas independentes.
Assim, optando-se pela tese avançada por Figueiredo Dias ou pela aplicação primeiro da atenuante
e depois da agravante[37], a solução encontrada para a moldura penal abstrata do crime de
homicídio qualificado na forma tentada com utilização de arma seria sempre igual, tendo como
limites mínimo 3 anos 2 meses e 12 dias e como máximo 22 anos 2 meses e 19 dias.
Dentro da moldura penal abstrata encontrada e tendo em consideração que:
- O grau de ilicitude é muito elevado, atenta a gravidade dos factos praticados, nomeadamente por

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se tratar da mulher do arguido com quem estava casado desde 5 de agosto de 1995, violando os
deveres de respeito e de assistência, o dever pela importância dos valores jurídicos violados e pela
forma de cometimento do crime e sentimentos revelados pelo arguido, sem olvidar que utilizou
uma arma de fogo, disparando à queima-roupa, negando qualquer possibilidade de defesa à sua
mulher;
- O modo de execução: o arguido no dia do crime serrou os canos da espingarda caçadeira
Browning e saiu de casa armado para falar ao telefone. Depois entrou em casa com espingarda
caçadeira, com o cano serrado, municiada com dois cartuchos, empurrou a sua mulher, que se
refugiu na cozinha e, enquanto lhe dizia que a ia matar porque o andava a trair, apontou-lhe a arma
e disparou, mas sem a atingir porque a sua mãe desviou a arma; entretanto pôs a sua mãe fora de
casa, e sozinho com a vítima, perseguiu-a até à casa de banho (agora no 1.º andar), e apontando-
lhe, primeiro, a arma à cabeça e, depois, ao coração, premiu o gatilho, mas não tendo deflagrado o
cartucho, por falha mecânica da arma, só o conseguiu à terceira vez, momento em que disparou na
direção do braço da vítima, atingindo-a no braço e no abdómen (e em duas das vezes como o
cartucho não deflagrou voltou a inseri-lo na arma e a disparar);
- As consequências do facto consubstanciaram-se numa hemorragia ativa do membro superior
direito e múltiplas lesões contundentes ao nível do abdómen apresentando uma ferida contusa de
cerca de 25 cm de comprimento, com perda de tecidos superficiais e destruição muscular, na parte
interna, entre o cotovelo e o punho, no antebraço direito bem como todas as consequências
mencionadas em 31., 32., 33., 49. 51,. 52., 53., 54., 55. a 58 a 66. Embora a vítima apresente uma
extensa cicatriz no braço tenderá a esbater-se e a não ficar visível, bem como no início de
dezembro de 2020 a vítima retomou o trabalho no seu salão de cabeleireiro (cf. motivação da
matéria de facto constante do Acórdão recorrido).
- O grau de sofrimento infligido pelo arguido à ofendida (totalmente indefesa).
- O dolo foi intenso, porque direto, tendo o arguido agido com conhecimento e vontade de
realização da conduta.
- O bem jurídico violado, a vida, o mais importante direito fundamental;
- As exigências de prevenção geral são elevadas tendo em consideração o número crescente de
violência sobre pessoas do sexo feminino dentro do ambiente familiar, causando forte repúdio pela
comunidade, criando sentimento de insegurança junto das populações e fortemente perturbador da
paz social, cumprindo evitar o efeito imitação, a sua banalização e que se instaure entre os
membros da comunidade o sentimento de impunidade pela violação da ordem jurídica.
- As necessidades de prevenção especial reclamam também intervenção perante uma personalidade
insensível, para o fazer interiorizar sobre os graves malefícios do seu ato, pois não se revelou
arrependido, tentou desculpabilizar-se invocando o disparo acidental da arma e pelo menos há
cinco anos a esta parte o agente manifesta comportamento obsessivo pautado por ciúmes,
insinuando que a ofendida o trai.
- A motivação deriva de ciúme o que revela a má formação da personalidade do arguido ao agir
com violência exacerbada e escusada perante a situação;
- No concernente às exigências de prevenção especial, ter-se-á em consideração que o arguido à
data com 58 anos (atualmente com 59) não tinha antecedentes criminais e estava familiar e
laboralmente inserido, embora não tenha vida social, saindo muito raramente de casa.
Face ao exposto, a pena concreta a aplicar teria sempre de ser fixada acima do limite médio de 9
anos 6 meses e 7 dias[38], atentas as quatro investidas consecutivas sobre a vítima, o
comportamento obsessivo do arguido manifestado pelo menos desde o ano de 2015 pautado pelos
ciúmes insinuando que a ofendida o traía bem como o terror (a arma foi disparada na sua direção
por quatro vezes três delas à queima roupa) e o sofrimento causado na vítima.
Considera-se, assim, justo e adequado aplicar ao arguido a pena de 11 anos de prisão pela prática
do crime de homicídio qualificado na forma tentada, atenta a circunstância de atualmente a vítima,
embora continuando a beneficiar de fisioterapia ter regressado ao seu salão de cabeleireiro onde em
início de dezembro de 2020, retomou a sua atividade profissional e a cicatriz que apresenta no
braço, de acordo com o perito, tendencialmente irá esbater-se.

B.2. Determinação da moldura penal concreta cabida ao crime de detenção de arma proibida (artigo
86.º, n.º 1 da RJAM)
No recurso em apreciação o arguido cometeu vários crimes de detenção de arma proibida previsto
pelo artigo 86.º, n.º 1 da Lei das Armas, porquanto tinha na sua posse:
- Uma espingarda caçadeira de marca Browning modelo B-80, calibre 12, com cano único de 36 cm
serrado (classe A) previsto e punível pelo artigo 86.º, n.º 1, alíneas c) e n.º 2, artigo 2.º, n.º 1,
alíneas p), x), ar), artigo 3.º, n.ºs 1 e 2 alíneas l) com a pena de 1 ano a 5 anos de prisão ou com
pena de multa até 600 dias.
- Uma pistola de marca Waltro modelo 85 combat (classe A), calibre 8 mm transformada para
calibre 7,65 com calibre rasurado com carregador e escovilhão previsto e punível pelo artigo 86.º,
n.º 1, alínea c) e n.º 2, artigo 2.º, n.º 1, alíneas v), az) e artigo 3.º, n.ºs 1 e 2, alínea l) e x).
- 7 cartuchos de calibre 12 e mais 2 cartuchos, entretanto deflagrados, previsto e punível pelo artigo
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86, n.º 1, alínea e) e d), artigo 2.º, n.º 3, alíneas e) e p) punível com prisão de 1 mês a 2 anos ou
pena de multa até 240 dias.
Como já atrás se deixou referenciado o Tribunal de 1.ª instância puniu o arguido apenas por um
crime de detenção de arma proibida de acordo com a disposição mais grave (artigo 86.º, n.º 1,
alínea c) do RJAM) funcionando a outra arma e as sete munições e mais dois cartuchos entretanto
deflagrados como agravantes na determinação da medida concreta da pena.
Dentro da moldura penal abstrata encontrada de 1 a 5 anos de prisão o Tribunal a quo aplicou a
pena concreta de 1 anos e 2 meses de prisão, muito próximo do limite mínimo, mas não teve em
consideração a detenção pelo arguido da espingarda caçadeira de marca Browning.
Assim, ponderando-se, para a consumação do crime previsto no artigo 86.º, n.º 1 do RJAM, a posse
da espingarda caçadeira de marca Browning e para efeitos do agravamento do crime de detenção de
arma proibida a pistola e as sete munições mais duas entretanto deflagradas e que:
- A ilicitude na detenção da arma Browning é elevada, pois a sua posse era insuscetível de ser
legalizada;
- O arguido tinha a arma na sua posse há vinte cinco anos cujo cano único serrou; tinha ainda a
detenção de uma pistola calibre 8 mm transformada para calibre 7,65 com calibre rasurado também
insuscetível de legalização e 7 munições de calibre 12 mais duas munições entretanto deflagradas.
- O dolo foi intenso (dolo direto);
- O arguido não tinha licença de uso e porte de arma;
- As exigências de prevenção geral foram elevadas atendendo ao número de vezes que estes crimes
são cometidos e a intranquilidade que criam e à circunstância de estas detenções não poderem ser
apreciadas isoladamente da tentativa de homicídio qualificado perpetrado na forma tentada;
- O arguido não tem antecedentes criminais registados;
- O arguido confessou integralmente e sem reservas a posse das armas e munições (cf. motivação
da decisão recorrida).
- O arguido encontra-se familiar e laboralmente inserido, embora não tenha vida social, saindo
muito raramente de casa.
O Tribunal a quo aplicou ao arguido 1 ano e 2 meses de prisão por considerar não ser de valorar a
posse da espingarda caçadeira marca Browning para efeitos da prática do crime de detenção de
arma proibida (artigo 86.º, n.º 1, alínea c) do RJAM), por já ter sido valorada para efeitos da
agravação do crime de homicídio (artigo 86.º, n.º 3 do RJAM).
Tendo em atenção, todavia, o já mencionado acerca do uso da espingarda caçadeira de marca
Browning dever ser valorada para efeitos da agravação do crime de homicídio (artigo 86.º, n.º 3 do
RJAM) e para efeitos da prática do crime de detenção de arma proibida julga-se ser de aplicar ao
arguido no mínimo a pena sugerida pelo MP, ou seja, 1 ano e 10 meses de prisão.

B.3. Concurso de crimes


Encontradas as penas parcelares de 11 anos (tentativa de homicídio qualificado agravado pela
utilização de arma) e de 1 ano e 10 meses de prisão (detenção de arma proibida -artigo 86.º, nº 1 do
RJAM) cumpre encontrar a pena única.
Resultando do artigo 77.º, n.º 2 do CP dever a pena única situar-se entre 11 anos (mais alta das
penas parcelares) e 12 anos e 10 meses (soma da totalidade das penas aplicadas) a pena única terá
de se ser fixada pelo menos no ponto intermédio em 11 anos e 10 meses de prisão, sendo por isso a
sua execução insuscetível de suspensão (artigo 50.º, n.º 1 do CP) improcedendo, ainda, a este nível
o recurso do arguido.

III. DECISÃO
Nestes termos e com os fundamentos expostos:
1. Nega-se provimento ao recurso interposto pelo arguido;
2. Dá-se provimento parcial ao recurso interposto pelo MP na 1.ª instância e em consequência
condena-se o arguido:
a) Pela prática em autoria material de um crime de homicídio qualificado na forma tentada previsto
e punido pelos artigos 22.º, 23.º, 131.º e 132.º, n.ºs 1 e 2, alínea b) e 86.º, n.º 3 do CP na pena de 11
anos de prisão;
b) Pela prática em autoria material de um crime de detenção de arma proibida na forma consumada
previsto e punido pelos artigos 14.º, n.º 1, 26.º 1ª parte todos do CP e 86.º, n.º 1, alíneas c), d) e e) e
n.º 2 por referência aos artigos 2.º, n.ºs 1 alínea p), v) x), ar) e az) e n.º 3 alíneas e) e p), artigo 3.º ,
n.ºs 1 , 2 alíneas l) e x) da Lei n.º 5/2006 de 23 de fevereiro na pena de 1 ano e 10 meses de prisão;
c) Em cúmulo jurídico condena-se o arguido na pena única de 11 anos e 10 meses de prisão.
d) No mais mantém-se o Acórdão recorrido.
3. Custas pelo arguido/recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 UC (artigos 513.º, n.ºs 1 e 3 e
514.º, n.ºs 1 do CPP e artigo 8.º, n.º 9 e tabela III anexa, do Código das Custas Processuais).

Nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 94.º, n.º 2 do CPP consigna-se que o presente
Acórdão foi elaborado pela relatora e integralmente revisto pelos signatários.
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02/02/2023 15:48 Acórdão do Tribunal da Relação de Évora
Évora, 25 de maio de 2021.
Beatriz Marques Borges - Relatora
Martinho Cardoso

__________________________________________________

[1] Cf. Ac. RE de 25.9.2018, P. 33, proferido no processo 55/17.9JAPTM.E1, relatado por Ana
Brito.

[2] SERRA, Teresa – “Homicídio Qualificado: Tipo de Culpa e Medida da Pena”. Almedina.
Coimbra. 1990. P. 102. ISBN 972-40-0571-2.

[3] Acórdão da Relação Lisboa de 28.11.2018, P. 1, proferido no processo 542/17.9PEOER.L1-3 e


relatado por João Lee Ferreira; Ac. RE de 25.9.2018, P. 33, proferido no processo
55/17.9JAPTM.E1, relatado por Ana Brito.

[4] A alínea b) constitui um aditamento aos exemplos padrão operada pelo regime do Código Penal
de 2007.

[5] Ac. RE de 25.9.2018, P. 1 e 35, proferido no processo 55/17.9JAPTM.E1, relatado por Ana
Brito.

[6] DIAS, Jorge Figueiredo (direção) – “Comentário Conimbricense do Código Penal: Parte
Especial: artigos 131.º a 201.º. Tomo I. Coimbra Editora. 1999. P. 37. ISBN 972-32-0854-7.

[7] Ob. cit. pag. 37.

[8] Exemplo: Incêndio, explosão, libertar gases tóxicos, emitir radiações, provocar
desmoronamento, inundação, propagar doença, etc.

[9] ALBUQUERQUE, Paulo Pinto – “Comentário do Código Penal: À Luz da Constituição da


República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem”. 3.ª edição atualizada. Universidade
Católica Editora. P. 515. ISBN 978-972-54-0489-8.

[10] SERRA, Teresa – “Homicídio Qualificado: Tipo de Culpa e Medida da Pena”. Almedina.
Coimbra. 1990. P. 102. ISBN 972-40-0571-2 refere a este propósito que “Não pode aceitar-se a
existência de problemas de concurso nem entre a verificação de diversos exemplos padrão, nem
entre tipo fundamental (artigo 131.º) e regra de determinação da moldura penal do grupo valorativo
de homicídios especialmente grave” (132.º) nem a do artigo 133.º “(…) em virtude destes preceitos
não conterem verdadeiros tipos de crimes, mas apenas regras modificativas da moldura penal do
homicídio. Daí que não possa encarar-se como concurso ideal o caso de homicídio qualificado em
que se verifica o preenchimento de dois ou mais exemplos-padrão. (…) Mais correcta será (…) a
eleição de uma das circunstâncias como decisiva para a determinação da moldura penal aplicável,
enquanto a outra será tomada em consideração, como agravante, na fixação da medida concreta da
pena.”.

[11] Uma censurabilidade ou perversidade distintas daquelas que em maior ou menor grau, se
revelam na autoria de um homicídio simples.

[12] Cf. designadamente DIAS, Figueiredo – “Direito Penal: Questões Fundamentais; A Doutrina
Geral do Crime”. Parte Geral. Tomo I. 2.ª edição. Coimbra Editora. 2007. P. 37. ISBN 978-972-32-
1523-6; ALBUQUERQUE, Paulo Pinto – “Comentário do Código Penal: À Luz da Constituição da
República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem”. 3.ª edição atualizada. Universidade
Católica Editora. P. 515. ISBN 978-972-54-0489-8; SILVA, Fernando – “Direito Penal Especial:
Crimes Contra as Pessoas”. 3.ª edição revista e atualizada. Quid Juris. P. 81. ISBN
9789727245635.

[13] Cf. neste sentido nomeadamente Ac. RE de 20.12.2011, proferido no Processo


159/10.9GDCTXS1.E1, relatado por Carlos Berguete; Acórdão RP de 30.9.2015, a pag. 1 e 23 e
24, proferido no processo 1223/14.0JAPRT.P1, relatado por Neto de Moura.

[14] Cf. Acórdão do STJ de 11.2.2016, proferido no P. 205/14.7PLLRS.L1.S1 e relatado por Isabel
S. Marcos.

[15] O Tribunal recorrido condenou o arguido pelo crime de detenção de arma proibida, mas
relativa a uma outra arma que o agente tinha na sua posse (não a utilizada para tentar matar a
mulher) bem como nos cartuchos encontrados na casa do agente.

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[16] Sublinhado nosso.

[17] Cf. por exemplo Ac. STJ 31.3.2011, relatado por Manuel Braz no P. 361/10.3GBLLE
dgsi.pt/jstj; Ac. RE de 20.12.2011, proferido no Processo 159/10.9GDCTXS1.E1 a pag. 1 e 11 e
relatado por Carlos Berguete;

[18] É o que sucede, de acordo com o Acórdão da RE de 21.5.2013 (cujo sumário se encontra
disponível para consulta em http://www.pgdlisboa.pt/leis em anotação ao artigo 86.º) com o crime
de furto e de roubo com a utilização de arma oculta ou aparente, cujas molduras não poderão ser
agravadas nos termos do disposto no artigo 86.º, n.º 3 do RJAM.

[19] Idem sublinhado e negrito nosso.

[20] Cf. designadamente Acórdão do STJ de 31.3.2011, proferido no P. 361/10.3GBLLE, relatado


por Manuel Braz e o de 25.11.2020, proferido no processo 1302/19.8JABRG.S1 e relatado por
Gabriel Catarino.

[21] No Acórdão da RL de 28.6.2011, proferido no processo 232/10.3PCLRS.L1-5 e relatado por


Filomena Lima chegou a considerar-se ter ocorrido concurso efetivo numa situação em que o
arguido formulou a intenção de tirar a vida à vítima, preparando a execução de tal objetivo
comprando uma arma e guardando-a durante alguns dias.

[22] Cf. neste sentido Acórdão RC de 22.11.2017, proferido no processo 5/16.0GACVL.C1 a pag.
52 e 53 e relatado por Maria José Nogueira; Acórdão RP de 30.9.2015, a pag. 1 e 23 e 24, proferido
no processo 1223/14.0JAPRT.P1, relatado por Neto de Moura.

[23] Cf. neste sentido pag. 2 e 13 do Acórdão STJ de 11.2.2016, proferido no P.


205/14.7PLLRS.L1.S1, relatado por Isabel São Marcos.

[25] Proferido no processo 5/16.0GACVL.C1 a pag. 52 e 53 e relatado por Maria José Nogueira.

[26] No mesmo sentido Ac. STJ de 30.10.2013, proferido no processo 40/11.4JAAVR.C2.S1 e


relatado por Pires da Graça e Ac. da RP de 10.10.2016, proferido no P. 1223/14.0JAPRT.P1 e
relatado por Neto de Moura.

[27] Proferido no Processo 82/13.5GCFVN.C1, relatado por Luís Coimbra

[28] Proferido no P. 91/09.9PFSTB.E1 e cujo sumário é possível consultar no site da PGR na


anotação 20. ao artigo 86.º do RJAM disponível em http://www.pgdlisboa.pt/leis/l.

[29] Cujo sumário é possível consultar no site da PGR na anotação 26. ao artigo 86.º do RJAM
disponível em http://www.pgdlisboa.pt/leis/l.

[30] Proferido no Processo 341/09.1PBCHV.P1 e relatado por Donas Botto.

[31] Antes de terem sido deflagradas estiveram na posse do arguido, tal como as restantes sete
munições intactas.

[32] DIAS, Jorge Figueiredo – “Direito Penal Português: As Consequências Jurídicas do Crime”.
Parte Geral II. Aequitas Editorial Notícias. 1993. P. 208. ISBN 972-9485-17-8.

[33] Ob. cit. p. 208.

[34] 25+ 1/3 = 25:3 = 8,333 ; 25 + 8,333 = 33,333 o que equivale a 33 anos 3 meses e 29 dias, pois
0,333 x 12 meses = a 3,996 e 0,996 x 30 dias = 29, 88).

[35] 22,222 equivale a 22 anos 2 meses e 19 dias, pois 0,222 x 12 meses = 2,664 meses e 0,664 x
30 dias = a 29,88 dias).

[36] 3,2 equivale a 3 anos 2 meses e 12 dias, pois 0,2 x 12 meses = 2,4 meses e 0,4 x 30 dias = 12
dias.

[37] No caso tal solução até aparenta ter mais lógica.

[38] 22 A 2 M 19 D - 3 A 2 M e 12 D = 19 A 7 D : 2 = 9 anos 6 meses 7 dias.

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