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Acórdãos STJ Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça

Processo: 19/20.5JBLSB.L1.S1
Nº Convencional: 5.ª SECÇÃO
Relator: ANTÓNIO GAMA
Descritores: RECURSO PENAL
METADADOS
QUESTÃO NOVA
CASO JULGADO PARCIAL
CASO JULGADO FORMAL
IRRECORRIBILIDADE
DUPLA CONFORME
IN DUBIO PRO REO
DIREITO AO SILÊNCIO
CONFISSÃO
ARREPENDIMENTO
REJEIÇÃO DE RECURSO
Data do Acordão: 03-11-2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO.
Sumário : I - Num processo de estrutura contraditória, como acontece com a fase
de recurso no processo penal português, pressupõe-se que as questões
postas em recurso tenham sido objeto de decisão e de prévia discussão.
II - Salvo os casos de conhecimento oficioso, o recurso não é o meio
processual próprio para suscitar questão nova, relativamente à qual não
discretearam os sujeitos processuais e que , por isso, não foi objeto de
pronúncia pela decisão recorrida.
III – Os recursos destinam-se a reexaminar decisões proferidas por
jurisdição inferior e não a obter decisões sobre questões novas, não
colocadas perante aquelas jurisdições, posto que, como remédios
jurídicos que são, com eles não se visa o conhecimento de questões
novas não apreciadas pelo tribunal recorrido, mas sim apurar da
adequação e legalidade das decisões sob recurso.
IV – Em processo penal, o caso julgado formal atinge as decisões que
visam a prossecução de uma finalidade instrumental que pressupõe
estabilidade – a inalterabilidade dos efeitos de uma decisão de
conformação processual ou que defina nos termos da lei o objeto do
processo – constituindo um efeito de vinculação intraprocessual e de
preclusão.
V – O in dúbio pro reo não é uma regra de apreciação da prova, aplica-
se, posteriormente, quando depois de produzida e valorada toda a prova
persiste uma dúvida inultrapassável, um non liquet. Em todos os casos
de persistência de dúvida razoável após a produção e valoração da
prova, o facto em dúvida deve ser decidido em sentido favorável ao
arguido.
VI – O direito ao silêncio não tem só consagração legislativa ordinário
sendo uma emanação do princípio do Estado de Direito. A confissão e o
arrependimento são circunstâncias, quando se verificam, favoráveis ao
arguido; não confessando o arguido, nem demostrando arrependimento,
deixa de poder contar com essas circunstâncias favoráveis, mas isso não
equivale a que se contabilize como agravantes a não confissão e não ter
demonstrado arrependimento pela prática dos factos.

VII – Constitui erro na determinação da medida da pena considerar


contra o arguido circunstâncias derivadas do exercício de um direito.
Decisão Texto Integral:

Processo n.º 19/20


Acordam, em audiência, no Supremo Tribunal de Justiça:
I
1. No Juízo Central Criminal ... do Tribunal Judicial da Comarca de
Lisboa foram os arguidos AA, BB, CC e DD condenados, por acórdão
de 24/11/2021, nos seguintes termos (transcrição parcial):
«AA, pela prática, em co-autoria, concurso efectivo e na forma
consumada, de:
Um crime de homicídio qualificado, p. e p. pelos artigos 131º e 132º,
nºs 1 e 2, alínea h), do Código Penal, na pena de 20 anos de prisão;
Um crime de roubo agravado, p. e p. pelo artigo 210º, nº 1 e nº 2, alínea
b), com referência ao artigo 204º, nº 2, alínea f), do Código Penal, na
pena de 7 anos de prisão;
Um crime de sequestro, p. e p. pelo artigo 158º, nº 1, do Código Penal,
na pena de 1 ano e 6 meses de prisão;
Um crime de profanação de cadáver, p. e p. pelo artigo 254º, nº 1,
alínea a), do Código Penal, na pena de 1 ano de prisão;
Um crime de furto qualificado, p. e p. pelos artigos 203º, nº 1 e 204º, nº
2, alínea e), com referência ao artigo 202º, alínea f), todos do Código
Penal, na pena de 4 anos de prisão.
Após cúmulo jurídico, foi condenado na pena única de 23 anos de
prisão.
BB, pela prática, em co-autoria, concurso efectivo e na forma
consumada, de:
Um crime de homicídio qualificado, p. e p. pelos artigos 131º e 132º,
nºs 1 e 2, alínea h), do Código Penal, na pena de 20 anos de prisão;
Um crime de roubo agravado, p. e p. pelo artigo 210º, nº 1 e nº 2, alínea
b), com referência ao artigo 204º, nº 2, alínea f), do Código Penal, na
pena de 7 anos de prisão;
Um crime de sequestro, p. e p. pelo artigo 158º, nº 1, do Código Penal,
na pena de 1 ano e 6 meses de prisão;
Um crime de profanação de cadáver, p. e p. pelo artigo 254º, nº 1,
alínea a), do Código Penal, na pena de 1 ano de prisão;
Um crime de furto qualificado, p. e p. pelos artigos 203º, nº 1 e 204º, nº
2, alínea e), com referência ao artigo 202º, alínea f), todos do Código
Penal, na pena de 4 anos de prisão.
Após cúmulo jurídico, foi condenado na pena única de 23 anos de
prisão.
CC, pela prática, em concurso efectivo e na forma consumada, de:
Um crime de homicídio qualificado, em co-autoria, p. e p. pelos artigos
131º e 132º, nºs 1 e 2, alínea h), do Código Penal, na pena de 20 anos de
prisão;
Um crime de roubo agravado, em co-autoria, p. e p. pelo artigo 210º, nº
1 e nº 2, alínea b), com referência ao artigo 204º, nº 2, alínea f), do
Código Penal, na pena de 7 anos de prisão;
Um crime de sequestro, em co-autoria, p. e p. pelo artigo 158º, nº 1, do
Código Penal, na pena de 1 ano e 6 meses de prisão;
Um crime de profanação de cadáver, em co-autoria, p. e p. pelo artigo
254º, nº 1, alínea a), do Código Penal, na pena de 1 ano de prisão;
Um crime de furto qualificado, em co-autoria, p. e p. pelos artigos 203º,
nº 1 e 204º, nº 2, alínea e), com referência ao artigo 202º, alínea f),
todos do Código Penal, na pena de 4 anos de prisão.
Um crime, em autoria material, de detenção proibida de munições, p. e
p. pelo artigo 86º, nº 1, alínea e), com referência ao artigo 2º, nº 3,
alínea p), todos do Regime Jurídico das Armas e suas Munições,
aprovado pela Lei nº 5/2006, de 23/02, com a redação introduzida pela
Lei nº 17/2009, de 06/05, pela Lei nº 12/2011, de 27/04, pela Lei nº
50/2013, de 24/07 e pela Lei nº 50/2019, de 24/07, na pena de 1 ano de
prisão.
Após cúmulo jurídico, foi condenado na pena única de 23 anos e 3
meses de prisão.
DD, pela prática, em co-autoria e na forma consumada, de um crime de
roubo agravado, p. e p. pelo artigo 210º, nº 1 e nº 2, alínea b), com
referência ao artigo 204º, nº 2, alínea f), do Código Penal, na pena de 4
anos e 6 meses de prisão.
Foram ainda condenados os arguidos/demandados AA, BB e CC, no
pagamento à demandante/assistente EE da quantia de € 4.370,86, a
título de indemnização por danos patrimoniais e da quantia total €
260.000, sendo € 80.000 a título de indemnização pelos danos não
patrimoniais próprios, € 100.000 a título de indemnização pelo dano
morte e € 80.000 a título de indemnização pelos danos não patrimoniais
sofridos pela vítima antes da morte, acrescidas dos juros de mora
vencidos desde a notificação a que alude o artigo 78º, do CPP e
vincendos até integral recebimento, à taxa legal».
2. Inconformados com o decidido no acórdão da 1.ª instância
recorreram os arguidos para o TRL que, por acórdão de 26 de abril de
2022, negou provimento aos recursos.
3. Ainda inconformados, recorrem os arguidos AA e BB, para este
Supremo Tribunal, apresentando as seguintes conclusões (transcrição):
AA:
«1- A questão previa deve ser deferida e consequentemente considerar
nula da a prova recolhida de forma ilegal com o recurso aos metadados
fornecidos pelas Operadoras -sem mandado prévio de Juiz (para crimes
específicos)
2- Por conterem elementos qualificados como prova obtidos de forma
Ilegal devem de ser declarados Nulos para tais efeitos e destruídos os
anexos Apensos I, IV e V referentes aos reportes de trafego de IP BT
fornecidos pelas operadoras Altice e Nós
3- São prova proibida a transmissão de números de telemóvel dos
arguidos obtidos com recurso aos metadados (nos termos do acórdão de
19 de Abril de 2022 do TC aplicável para casos futuros e processos em
curso que ainda não transitaram em julgado.
4- O arguido AA nunca foi possuidor ou utilizador dos telemóveis com
os nº ...04 e ...95
5- O arguido AA não estabeleceu contato telefónico na madrugada do
dia 14 e 15 de Março de 2020 com nenhum dos co arguidos
6- O arguido AA no período dos fatos não estabeleceu contato nem
recebeu qualquer mensagem ou telefonema dos telemóveis nº ...51;
...47; ...95
7- Durante o mês de março de 2020 o arguido AA nunca esteve nas
zonas da ..., .../...; ...; ... nem na ...
8- O arguido AA desde pelo menos o dia 01 e 16 de Março de 2022 a
nunca contatou por telefone nem esteve a falar no interior da sua viatura
com a testemunha FF sobre qualquer tipo de situações os fatos relativos
aos presentes autos.
9- O Tribunal a quo não fez boa apreciação e utilização da prova
produzida em audiência de julgamento e demais elementos de prova
(utilizando prova obtida ilegalmente), valoráveis e constantes do
processo, erro em que o Tribunal da Relação reincidiu ao apreciar o
recurso interposto mesmo após já ter sido publicado o Acórdão do TC.
10- Tribunal da Relação manteve como provados atos que o arguido
não cometeu e comportamentos que lhe não são imputáveis,
designadamente os que tipificam a conduta punível nos termos da
norma incriminadora pela qual o arguido foi punido (Homicídio
Qualificado; Roubo; furto Qualificado; Sequestro; Profanação de
Cadáver))
11 - A sua interpretação extrapola as regras do princípio da livre
apreciação da prova sustentando-se em meras presunções, meios
lógicos ou mentais sem suporte na prova disponível no processo, e
colhida em audiência de julgamento.
12 - O arguido recorrente exerceu o direito ao silêncio, e o tribunal
recorrido e mesmo a 1ª instância consideraram indiretamente que tal
atitude seria negativa para o mesmo ou seja, com tal consideração
mesmo que indireta, fez o tribunal a quo e a Relação confirmou; uma
prognose ilegal de como deverá ser tratado tal direito constitucional.
13 - Violou além disso e entre outros o disposto nos artigos 127º, 340
nº1 do CPP integrando a previsão do disposto na alínea c) do nº2 do
artigo 410º do mesmo diploma - erro notório na apreciação da prova -
que é um dos fundamentos deste recurso.
14 - O processo não contém factos objetivos ou objetiváveis, que
apoiem as singelas declarações da testemunha duvidosamente
reconhecida pela assistente e pelas demais testemunhas da acusação que
com a mesma privaram
15 -O Processo está de tal forma eivado de depoimentos contraditórios
e mantidos em sede de audiência de julgamento que deu origem aos
vários requerimentos do MP (no sentido de se extraírem certidões para
futuros procedimentos criminais por perjúrio contra as testemunhas por
si apresentadas)
16 Inexistem nos autos elementos materiais de prova, ou perícias que
permitam, concretamente e seriamente identificar o arguido AA como o
autor coautor ou cúmplice de qualquer dos fatos de que está acusado e
pronunciado nomeadamente os crimes de Homicídio Qualificado,
Roubo, Furto Qualificado, Sequestro e Profanação de Cadáver
17 - Não existe nos autos qualquer tipo de prova que coloque o arguido
na área do crime no dia e hora do mesmo nem no dia seguinte (14 e 15
de Março de 2020)
18 -Não existe nos atos qualquer tipo de prova que em algum momento
dia ou hora o arguido AA tenha tido contato direto com a vítima GG em
vida ou com este já cadáver
19 -Não existe nos autos qualquer prova seja qual for a sua natureza
que o arguido tenha alguma vez entrado na casa da vítima sita na
Avenida ... no ...
20- Os autos em relação ao arguido AA e recorrente estão feridos de
nulidade por inexistência de corpo de delito (o que constitui violação
dos princípios da tipicidade da Lei Penal – art. 1º nº1 do CP e art. 29º
nº1 da Constituição da República Portuguesa -), nulidade invocada e
sempre aflorada em sede do recurso da 1ª instância e aqui atendendo ao
acordão do TC
21-O Tribunal A Quo e TRL ponderarem e decidiram sob a influência
das redes social (Internet) e mass media (tv e jornais)
22- Se não houve investigação adequada e se mantiveram até final tais
contradições deveriam as instâncias inferiores (tribunal a quo e relação)
determinarem a existência do vício da insuficiência para a decisão da
matéria de facto provada, previsto no artigo 410º nº2 alínea c) do CPP
23-A não ter revelado factos dos quais pudesse configurar-se a
inocência do arguido perante os factos que lhe são imputados deveria o
tribunal em apelo ao forte grau de incerteza da autoria dos mesmos pelo
recorrente ter lançado mão do princípio do in dubio pro reo absolvendo;
com base nele; o arguido (agiu assim com violação no art. 32º nº2 da
CRP
24-Não tendo o recorrente praticado os factos pelos quais foi
condenado como resulta da inexistencia de prova “obtida legalmente”
nos autos; e por todas as demais conclusões antecedentes impõe-se de
acordo com a prova produzida ou pela ausência dela a absolvição do
recorrente e quando assim se não entender o que só por mera hipótese
académica se admite, então
25-O tribunal recorrido não ponderou nem considerou a inexistência de
agravantes para através delas e por interpretação à contrário segundo o
princípio do tratamento mais favorável ao arguido, par e caso entende-
se pela condenação aplicar-lhe o mínimo legal do único crime que se
entende o mesmo tenha praticado com cúmplice: RECETAÇÃO dos
objetos vendidos por um terceiro, testemunha destes autos (HH)
26-O tribunal não relevou factos que deu como provados para a
demonstração da reintegração social do arguido, as suas condições de
vida, hábitos regulares de trabalho; violou desta forma na determinação
da medida da pena o art 40º nº1 e 2º CP
27-O tribunal na linha da violação do acima mencionado art 40º.
28º-Finalmente, o Tribunal da Relação ao ser chamado a decidir
manteve a decisão do tribunal A Quo (sem prejuízo de nessa data) saber
da existência do Acordão de 19 de Abril do TC quanto à prova ilegal
(METADADOS)
2º-Pelo que este acórdão deverá ser revogado com as necessárias
consequências para a decisão anterior considerando a pertinência das
questões legalidade da prova o arguido requer que proferida em
audiência a serem apreciadas quanto à a decisão deste Tribunal seja
Neste Estado de Direito nos termos da Lei Fundamental deve o arguido
AA Ser absolvido atendendo ao principio do in dubio pro reo. Assim
Julgando, farão Vossas Excelências JUSTIÇA».
BB:
«Emerge o presente recurso da discordância em relação ao acórdão que
condenou o recorrente na pena única de 23 anos de prisão em cúmulo
jurídico das penas parcelares pela prática de um crime de homicídio
qualificado, previsto e punido pelo artigo 131º e 132º, n.º 1 e 2 al. h) do
Código Penal (na pena de 20 anos de prisão); um crime de roubo
agravado, previsto e punido pelo artigo 210º, n.º 1 e 2 alínea b) com
referência ao artigo 204º, n.º 2 alínea a) todos do Código Penal (na pena
de 7 anos de prisão) um crime de sequestro, previsto e punido pelo
artigo 158º, n.º 1 do Código Penal (na pena de 1 ano de prisão), um
crime de profanação de cadáver, previsto e punido pelo artigo 254º, n.º
1 alínea a) do Código Penal (na pena de 1 ano de prisão); um crime de
furto qualificado previsto e punido pelo artigo 203º, n.º 1 e 204º, n.º 2
alínea e) com referência ao artigo 202º, alínea f) todos do Código Penal
(na pena de 4 anos de prisão).
As razões de discordância com a decisão são, simultaneamente, de facto
e de direito:
I. Desde logo, por seu entender, haver insuficiência da matéria de facto,
dada como provada para a condenação do recorrente - alínea a) do n.º 2
do artigo 410º do C.P.P.
II. Por outro lado, há contradição insanável na fundamentação ou entre
esta e a decisão a propósito dos factos provados sob o artigo 1º a 68º
dos factos provados, por um lado, e o facto a) e ab) dos factos não
provados - alínea b) do nº 2 do artigo 410º do C.P.P; há também
contradição insanável na fundamentação entre os factos supra indicados
- alínea b) do nº 2 do artigo 410º do C.P.P.
III. Acresce que o Tribunal a quo valorou erradamente a prova
produzida em audiência quanto à matéria de facto tendente à formação
da convicção de que o recorrente era o utilizador do número de
telemóvel ...47 e que praticou em co-autoria os crimes de que foi
condenado, mostrando-se erradamente julgados a propósito os factos
provados provados sob o artigo 1º a 68º.
IV. Por outro lado, o acórdão recorrido é nulo por falta de
fundamentação relativamente à matéria dada como assente provados
sob o artigo 1º a 68º dos factos provados, existindo mesmo contradição
insanável na fundamentação expendida a propósito da subsunção da
matéria de facto ao preenchimento dos elementos objectivos e
subjectivos dos tipos de crimes de que foi condenado.
V. Adicionalmente, independentemente disso, o acórdão em crise
enferma ainda do vício de insuficiência para a decisão da matéria de
facto provada sob o artigo 1º a 68º, quanto ao nexo de causalidade entre
os factos dados como provados e a respectiva dinâmica e a
identificação do recorrente como um dos alegados autores, existindo
erro de julgamento dos referidos factos.
g) Existe clara nulidade da prova e de todo o processado posterior
resultante da pesquisa ao telemóvel com o número SIM ...43, utilizado
pela cidadã II, por violação do disposto na alínea b) do n.º 4 e 6 do
artigo 15º da Lei do Cibercrime conjugado com os artigos 253º e 126º,
n.º 3 do Código de Processo Penal.
VI. Existe clara violação dos direitos de defesa do recorrente em virtude
da ausência da junção da prova documental (registo das localizações
celulares do telemóvel do recorrente indicado a fls. 257 dos autos) o
que constitui uma nulidade, nos termos do artigo 120º, n.º 2, alínea d)
do C.P.P. uma vez que implica uma verdadeira omissão de diligência
essencial para a descoberta da verdade sendo inconstitucional, por
violação das garantias de defesa consagradas no artigo 32º, n.º 1 da
Constituição da República Portuguesa, que desde já se argui a
inconstitucionalidade.
VII. Existe nulidade da análise aos metadados efectuados aos números
de telemóveis indicados nos autos - objecto de análise por parte da
investigação -por força da aplicação do acórdão n.º 268/2022, do
Tribunal Constitucional.
a) Com efeito, da matéria dada com assente sob os artigo 1º a 68º dos
factos provados no acórdão em crise, não se pode concluir, de acordo
com as regras de experiência comum e de acordo com o princípio do
homem médio, que o recorrente tenha praticado os factos nos locais de
... (...), ... e ... quando no período temporal compreendido entre o dia 13
de Março de 2020 e o dia 15 de Março de 2020, até às 09H45 o
recorrente esteve com a namorada deste, JJ, na residência desta sita na
..., a largos quilómetros dos locais onde ocorreram os factos.
b) Consequentemente não foi dada como provada matéria fáctica que
demonstre a clareza, a notoriedade e a censurabilidade exigidas para
que o recorrente fosse condenado pela prática dos crimes que foi
condenado assente em presunções que foram contrariadas em audiência
e que exigiam a aplicação do princípio da presunção de inocência atente
a existência de dúvidas razoáveis sobre a alegada intervenção do
recorrente nos factos na perspetiva da acusação.
c) Assim, neste particular, existe insuficiência para a decisão da matéria
de facto provada (artigo 410º, n.º 2, al. a) do C.P.P.) já que não estão
preenchidos os elementos objectivos e subjectivos dos tipos de crimes
em que o recorrente foi condenado (disso sendo exemplo o caso do
crime de sequestro; de furto qualificado, de roubo agravado, de
profanação de cadáver e de homicídio qualificado).
Das contradições insanáveis – al. b) do nº 2 do artº 410º, do C.P.P.
d) Há contradição insanável entre os factos provados no artigo 1º a 68º
dos factos provados e os factos a) a ab) dos factos não provados - alínea
b) do nº 2 do artigo 410º do C.P.P
e) Com efeito, do confronto dos mesmos fica-se com a clara perceção
de que tanto a testemunha FF como a co-arguida DD nas declarações
que prestaram nas diferentes fases processuais referiram-se ao arguido
como alguém que não conhecem, que não sabem se esteve presente nos
dias e horas; se fez o que o co-arguido AA afirmou ter feito e, bem
assim e mais importante, se aquilo que diz ter feito se o fez e em caso
afirmativo de que modo e com quem. São manifestamente depoimentos
indirectos que não podem ser valorados pelo Tribunal como meios de
prova o que desde já se argui.
f) No entanto, em face da matéria dada como não provada facto a) a ab)
dos factos não provados apresenta-se absolutamente contraditório com
o artigo 1º a 68º dos factos provados de difícil compatibilização
designadamente em face da prova documental junta aos autos
nomeadamente a de fls. 257.
g) Por outro lado, há também contradição insanável na fundamentação
entre os factos provados nos artigos 1º a 68º com os factos a) a ab), dos
factos não provados e entre estes.
h) Com efeito as contradições insanáveis são inúmeras, quer entre a
matéria de facto provada, quer entre esta e a não provada referida.
i) Como melhor se alcança do local próprio no corpo da presente
motivação, por mais que uma vez se dá como assente uma coisa e o
contrário a propósito do recorrente ter alegadamente entrado na casa da
testemunha KK no dia dos alegados factos - quando é a mesma a dizer
que não sabe quando ocorreu mas que sabe que foram três dias após
aparecerem as notícias nas redes sociais sobre o desaparecimento do
ofendido - e/ou o facto da testemunha não ter visto sangue nas roupas
do recorrente; de não ter visto trocar de roupa; não ter sequer assistido a
qualquer afirmação por parte do arguido e/ou de ter constatado que o
recorrente estava ferido num dedo.
j) Estas contradições são um amontoado de factos redundantes, sem
nexo, onde tudo foi dado como assente e o seu contrário também.
k) Em face delas, pese embora inexista qualquer prova segura de que o
recorrente tenha agredido a vítima e de que forma, não tendo o Tribunal
forma de resolver as preditas contradições, outro caminho se não
lobriga que não seja o de determinar a anulação do julgamento e o
consequente reenvio do processo para novo julgamento quanto às
questões fácticas mencionadas - cf. al. c) do n.º 2 do artigo 410º, 426º e
426ºA todos do C.P.P.
Do erro de julgamento – factos provados sob o artigo 1º a 68º dos factos
provados:
K) O tribunal a quo valorou erradamente a prova produzida em
audiência quanto à matéria de facto tendente à formação da convicção
de que o recorrente praticou factos materiais e instrumentais com vista
à apropriação de bens pertencentes do ofendido e, bem assim, de atentar
contra a sua liberdade ambulatória, integridade física ou contra vida.
L) Com efeito, para além das contradições insanáveis já assinaladas a
propósito, a verdade é que do depoimento dos arguidos e das
testemunhas supra indicadas resulta claramente que o arguido não
praticou os factos porque não se encontrava no local uma vez que nesse
dia e a essa hora estava com a namorada JJ em casa desta.
N) A melhor apreciação da prova produzida, mormente do depoimento
prestado pelas testemunhas infra, cotejam e confirmam o depoimento
do arguido, ora recorrente, o que impõem diferente resposta quanto aos
referidos factos.
Da nulidade do acórdão por falta de fundamentação e da contradição
insanável da mesma a propósito do facto provado sob o artigo 1º a 68
dos factos provados e da subsunção dos provados à inexistência dos
elementos objectivo e subjectivo dos tipos de crime de homicídio
qualificado; de sequestro; de roubo agravado; de furto qualificado; de
profanação de cadáver.
O) O acórdão é nulo por falta de fundamentação relativamente à
matéria dada como assente sob o artigo 1º a 68 dos factos provados,
pois não deixa transparecer suficientemente os motivos que
fundamentam a mesma, nulidade que aqui se argui nos termos do
disposto no artigo 374º, n.º 2, ex - vi al. a) do n.º 1 do artigo 379º,
ambos do C.P.P.
P) Sendo certo que na tentativa de fundamentar a decisão tomada
quanto ao preenchimento do elemento objectivo e subjectivo dos tipos
de crimes em que o recorrente foi condenado o Tribunal a quo deixa-se
enredar-se na apreciação que faz de uma e outra circunstância,
concluindo que o número de telemóvel ...47 era utilizado pelo
recorrente - quando não existe nenhuma prova directa ou indirecta desta
alegação e quando em tribunal é referido, expressamente, que o referido
número de telemóvel pertencia a uma cidadã do sexo feminino que
nada tem a haver com o aqui arguido.
Q) Não obstante, apesar disso, numa clara contradição insanável da
fundamentação e entre esta e a decisão, o tribunal entendeu dever
condenar, erradamente, o recorrente.
Da insuficiência da matéria de facto provada para a decisão de condenar
o recorrente pelo preenchimento dos elementos objectivos e subjectivos
dos tipos de crimes de homicídio qualificado, de roubo agravado, de
furto qualificado, de sequestro, de profanação de cadáver.
R) Acresce que a matéria dada como provada a propósito,
designadamente o artigo artigo 1º a 68º dos factos provados é
claramente insuficiente para a decisão de condenar o recorrente, vício
que deve ser declarado (al. a) do n.º 2 do artigo 410º do C.P.P.)
S) Existindo também erro de julgamento do mesmo, desde logo em face
à prova documental junta aos autos e às imagens de videovigilância,
assim como os documentos/pareceres técnicos juntos aos autos que
põem em crise o relatório pericial efectuado pela Polícia Judiciária
quanto à atribuição unilateral do número de telemóvel ...47 ao arguido
BB e, bem assim, à total inexistência de prova testemunhal, documental
e pericial que comprove a alegada intervenção do recorrente nos factos
descritos nos artigos 1º a 68º da matéria dada como provada.
O acórdão recorrido violou por erro de interpretação e aplicação o
disposto nas disposições legais supracitadas.
Considera incorretamente julgados os factos provados sob os n.º 1º a
68, e toda a matéria de facto tendente à formação da convicção de que o
recorrente teve qualquer participação nos factos. O arguido não os
praticou, não sabe quem os cometeu nem o móbil de tal actuação. À
data dos mesmos estava em casa com a namorada JJ a larga distância de
...; de ...; ou de ....
Impõem solução diversa:
- uma melhor apreciação do conjunto da prova produzida,
designadamente:
- Toda prova documental junta aos autos, em especial o documento de
fls 257 (registo de pedido de passaporte junto do SEF Aeroporto ...) e
consequente prova documental.
- A prova pericial - relatório de autópsia
- Filmagens e fotogramas recolhidos do sistema de videovigilância do
... do dia 15 de Março de 2020.
- E uma correcta apreciação daqueles elementos no cotejo com o teor
dos depoimentos prestados pelas testemunhas FF (..., 00:01 a 35:02) ,
KK (... 00:51:06) e JJ (..., 00:46:08) ...)
- A correcta apreciação do conjunto da prova levará necessariamente a
uma diferente resposta aos factos em crise, com as legais
consequências, como é de justiça.
Requer:
- a realização de audiência para debate da matéria referida nas
motivações, o que faz nos termos e para os efeitos do n.º 5 do artigo
411º do C.P.P.
Em suma:
-há insuficiência da matéria de facto provada para a decisão de
condenar o recorrente, assim como pelo preenchimento dos elementos
objectivos e subjectivos dos tipos de crimes de homicídio qualificado;
de roubo agravado; de sequestro; de profanação de cadáver e de furto
qualificado.
- Há contradição insanável na fundamentação, entre os factos assentes e
entre esses e a decisão (artigo 410º, n.º 2, alínea a) do C.P.P.)
- Há errada valoração do conjunto da prova produzida e, consequente,
erro de julgamento quanto aos factos tendentes à formação da
convicção de que o recorrente foi co-autor dos factos n.º 1º a 68º da
matéria dada como provada.
- Deve ser declarada nula a prova que foi determinante para a
condenação do recorrente recolhida através da análise dos metadados
(geo-localização celular) efetuada pela Polícia Judiciária e cuja recolha
foi já considerada inconstitucional pelo acórdão com força obrigatória
geral n.º 268/2022 do Tribunal Constitucional.
- Em qualquer circunstância, deve revogar-se o acórdão recorrido e
substituí-lo por outro que, fazendo correcta apreciação e valoração da
prova produzida, o absolva da prática de todos os crimes em que foi
condenado ou, quanto muito, condene o recorrente, apenas e somente,
pelo crime de furto qualificado (ou que proceda à comunicação de
alteração da qualificação jurídica de eventual prática de um crime de
recetação) numa pena de prisão inferior a 5 anos sendo esta pena
suspensa na execução mediante o cumprimento de injunções.
Termos em que deverá ser julgado procedente o presente recurso com
as legais consequências, assim, se fazendo
JUSTIÇA!
4. O Ministério Público no Tribunal da Relação, na parte que aqui
releva, respondeu (transcrição):
«2 - Com o presente recurso, os Recorrentes vêm apresentar perante o
Supremo Tribunal de Justiça motivação e conclusões praticamente
idênticas às que apresentara perante o TRL, no recurso que interpôs do
acórdão proferido pela 1ª Instância.
3 – Com o que os Arguidos/Recorrentes não vêm suscitar ao Venerando
Supremo Tribunal de Justiça quaisquer questões que não tenha já
colocado e sido objeto de conhecimento e decisão no Tribunal da
Relação, o que integra “falta” de motivação conducente à rejeição do
recurso, nos termos do disposto nos arts. 412º n.º 1, 414º n.º 2 e 420º n.º
1 al. b), todos do C. de Processo Penal.
4 – Com os presentes recursos, os Recorrentes vêm impugnar perante o
Venerando Supremo Tribunal de Justiça a decisão do tribunal sobre a
matéria de facto provada, invocando que o acórdão proferido pelo TRL
padece do vício do erro notório (erro esse que não se verifica e que o
Recorrente nem sequer concretizou).
5 – Ora, conforme dispõe o art. 434º do C. de Processo Penal, o
Supremo Tribunal de Justiça conhece apenas matéria de direito, sendo
as questões de facto decididas definitivamente pelo Tribunal da
Relação.
6 – Assim, não pode constituir fundamento de recurso para o Supremo
Tribunal de Justiça a aludida invocação dos Recorrentes de que o
acórdão proferido pelo TRL se encontra inquinado de vício de erro
notório, o que constitui causa de rejeição da respetiva apreciação, nos
termos dos arts. 414º n.º 2, primeira parte, e 420º n.º 1 al. b), do C. de
Processo Penal.
7 – Relativamente à alegada nulidade da prova obtida através da análise
dos metadados (geo-localização celular) efetuada pela Polícia Judiciária
a que faz referência o acórdão do Tribunal Constitucional, n.º 268/2022,
remetemos para a declaração de voto de vencido do ilustre conselheiro
Lino José Ribeiro, cujo teor, damos aqui por reproduzido.
8 - Os Arguidos Recorrentes vêm pugnar pela absolvição dos crimes
pelos quais foram condenados por falta de fundamentação da decisão.
9 – Não têm, porém, razão, pois no acórdão recorrido fez-se correta
subsunção dos factos provados ao Direito, nenhuma censura merecendo
a condenação dos Recorrentes pela prática dos crimes por que foram
condenados, nos precisos termos em que o foi, máxime quanto ao crime
de homicídio qualificado.
10– Na verdade, e como se vê da respetiva fundamentação, que é clara,
congruente e abundante, o Tribunal da Relação de Lisboa considerou,
com ponderação e bom senso, todas as circunstâncias suscetíveis de
interferir na determinação da medida da pena, tendo valorado, na
determinação da medida da pena, todas as circunstâncias que, não
fazendo parte do crime, depunham a favor e contra os arguidos, tendo
considerado os factos e a personalidade dos agentes.
11 – As penas aplicadas (penas parcelares e pena única) mostram-se
adequadas, justas e proporcionais, não deixando transparecer a violação
de qualquer norma atinente à determinação da medida da pena, nem de
qualquer princípio jurídico aplicável.
12 – Deve, pois, ser mantido o douto acórdão proferido pelo TRL.
13 - Em face de todo o exposto, o presente recurso deve ser rejeitado; a
não se entender assim, deverá ser julgado improcedente, confirmando-
se o douto acórdão recorrido.
Porém, Vossas Excelências apreciarão e decidirão como for de
JUSTIÇA!
5. Na audiência realizada neste Supremo Tribunal de Justiça os sujeitos
processuais mantiveram no essencial as posições constantes dos
articulados de recurso e resposta ao recurso. Nada obsta a que se
conheça de mérito.
II
A
Factos provados (transcrição):
1. Em data não concretamente apurada, mas, pelo menos, nas semanas
que antecederam o dia 14 de março de 2020, os arguidos AA, BB, CC e
DD formularam o propósito de se apropriarem, mediante o uso de arma
de fogo, da superioridade numérica e da força física, dos bens e objetos
em ouro de GG, e bem assim das quantias monetárias que este tivesse
na sua posse e/ou na respetiva residência.
2. Na execução desse plano, a arguida DD aproximou-se de GG e
estreitou a sua relação com o mesmo, adquirindo a sua confiança e
tornando-se mais próxima dele.
3. Tendo os arguidos acertado que o seu plano seria concretizado no dia
14 de março de 2020, a arguida DD contactou GG, combinando um
encontro com o mesmo para esse mesmo dia.
4. Mais ficou acordado que assim que o GG fosse abordado pelos
arguidos BB e CC, no seguimento do plano que todos engendraram, a
arguida DD de imediato abandonaria as imediações da casa do
primeiro, através de transporte – ... – providenciado pelo arguido AA
junto de LL.
5. À data dos factos, os arguidos utilizavam, pelo menos, os seguintes
contactos telefónicos:
5.1. O arguido AA, o número ...04;
5.2. O arguido BB, o número ...47;
5.3. O arguido CC, o número ...51; e
5.4. A arguida DD, o número ...95.
6. Nesse mesmo dia 14 de março de 2020, quando o arguido AA
almoçava com FF no interior do seu veículo automóvel da marca BMW,
modelo ..., com a matrícula ..-ZS-.., efetuou uma chamada telefónica
para o arguido BB, pelas 14h33m29s, com a duração de 1m55s, em que
lhe disse, entre o mais, “hoje é um bom dia para apanharmos o nosso
menino!”.
7. No seguimento do referido plano, o arguido AA encontrou-se com a
arguida DD, junto à casa desta, na zona da ..., após as 22 horas do dia
14 de março de 2020, combinando os últimos pormenores relativos ao
plano que executariam de seguida.
8. Por sua vez, e em circunstâncias não concretamente apuradas, a
arguida DD e GG acertaram que o local do encontro seria junto à
Escola ..., em ....
9. Nessa mesma noite, GG encontrava-se na sua habitação, sita na
Avenida ..., em ..., aí se encontrando igualmente a sua mãe, EE, a sua
irmã MM e o seu amigo NN.
10. Cerca das 23h30m, GG deixou a referida residência na companhia
de NN, para levá-lo a casa e ir ao encontro da arguida DD, na senda do
plano traçado por esta e pelos arguidos AA, BB e CC, deslocando-se,
para o efeito, no seu veículo da marca Mercedes Benz, modelo ..., com
a matrícula ..-NS-...
11. Depois de deixar o amigo na paragem de autocarro junto da
residência do mesmo, o GG dirigiu-se à Escola ..., em ..., para se
encontrar com a arguida DD.
12. Por seu turno, a arguida DD, depois de se ter encontrado com o
arguido AA, conforme descrito em 7), cerca das 23h14m21s minutos,
dirigiu-se para ..., na companhia da amiga OO, que a transportou no seu
veículo automóvel.
13. Tal como combinado com o arguido AA, a arguida DD enviou-lhe, a
essa mesma hora, uma mensagem de texto, enviando ainda, às
23h14m38s, 23h14m41s e 23h14m41s, três mensagens de texto para o
número ...84, utilizado por LL, que habitualmente prestava serviços de
transporte ... ao primeiro, com o teor: “E o AA”, “liga p este nr” e
“...84”.
14. Mais enviou a arguida DD, pelas 23h21m22s e pelas 00h36m10s,
duas novas mensagens de texto para o arguido AA.
15. Às 00h41m46s, uma vez que ainda não havia sido contactado por
LL, como era expectável na sequência das mensagens enviadas pela
arguida DD, conforme referido em 13), o arguido AA contactou LL para
tentar obter um transporte para a arguida DD
16. GG chegou ao local combinado com a arguida DD pelas 1h05m29s
do dia 15 de março de 2020, onde esta o aguardava.
17. Daí, GG e a arguida DD seguiram até ao estabelecimento comercial
denominado M..., sito no ..., em ..., e daí seguiram para casa de GG.
18. Após ter aparcado a viatura, GG e a arguida DD entraram no prédio
onde o primeiro residia e dirigiram-se para os elevadores.
19. Os arguidos AA, BB e CC já se encontravam nas proximidades da
casa de GG, pelo menos desde as 00h17m54s do dia 15 de março de
2020.
20. O arguido AA ficou no carro, a controlar a chegada de GG e da
arguida DD a casa daquele, e os arguidos BB e CC deslocaram-se para
o interior do prédio, onde aguardaram, escondidos, a sua chegada.
21. Quando GG e a arguida DD se encontravam no hall de entrada do
prédio, de acordo com o plano gizado, foram abordados pelos arguidos
BB e CC, empunhando um deles, de acordo com o que os quatro
arguidos haviam previamente acordado, uma arma de fogo, que apontou
à arguida DD, a quem ordenou “sai daqui”, o que esta, igualmente de
acordo com o que havia sido previamente combinado, fez.
22. Ato contínuo, os arguidos BB e CC desferiram murros que
atingiram o GG no rosto.
23. Perante a resistência oferecida pela vítima, que se tentava soltar e
defender, os arguidos BB e CC deixaram o edifício e levaram GG
consigo, deslocando-se na direção de um túnel existente em frente ao
prédio em questão.
24. No referido túnel, os arguidos BB e CC, e também o arguido AA,
que aí se havia igualmente dirigido, desferiram, repetidamente, vários
murros e pontapés que atingiram GG na cabeça, no rosto e no corpo,
atingindo-o ainda com a arma de fogo que empunhavam, provocando-
lhe vários ferimentos, bem como abundante sangramento.
25. Após, os arguidos AA, BB e CC levaram GG para o veículo em que
se faziam transportar, e que não foi possível concretamente identificar,
tendo-lhe, em circunstâncias não concretamente apuradas, amarrado as
pernas com fita adesiva e colocado na bagageira.
26. Entretanto, e enquanto o arguido AA se manteve no veículo, os
arguidos BB e CC dirigiram-se novamente ao prédio onde morava o
GG, com vista a subirem à residência do mesmo, no seguimento do
plano concertado, e dali retirarem os bens e as quantias monetárias que
encontrassem.
27. Não tendo os arguidos BB e CC conseguido subir até à casa de GG,
face à presença, no local, de PP e QQ, regressaram ao veículo
automóvel, onde se mantinha o arguido AA, e aí entraram, fugindo do
local em direção a ..., com a vítima na respetiva bagageira.
28. Entre as 1h53m08s e as 2h06m09s, os arguidos AA e BB trocaram
catorze comunicações, três delas de voz, a última das quais com a
duração de 4 segundos, tendo igualmente trocado SMS e efetuado
chamadas de voz pelas 2h08m36s, 2h10m05s, 2h16m54s e 2h19m05s.
29. Logo após a factualidade descrita em 21), e porque LL não se
disponibilizou a providenciar transporte para a arguida DD, como
tentado pelo arguido AA, esta pediu ajuda a OO para a transportar do
local, acabando, no entanto, por ser transportada pela ..., a pedido do
seu namorado RR.
30. No hall de entrada do prédio foram encontrados, deixados pelos
arguidos BB e CC, os seguintes bens, pertença da vítima: um telemóvel
da marca Apple, modelo IPhone, com o IMEI ...46, um chapéu da
marca Nike, de cor preta, com uma chapa metálica com os dizeres “...”,
e um par de chinelos da marca Nike, de cores azul e branca.
31. Mais retiraram os arguidos AA, BB e CC outros objetos que o GG
trazia consigo, designadamente, três anéis em ouro, que fizeram seus.
32. Dali, os arguidos AA, BB e CC dirigiram-se para a residência de
KK, sita na ..., em ..., onde o primeiro se encontrava, à data, a pernoitar,
e onde os dois primeiros rapidamente entraram, apresentando-se ambos
com um comportamento bastante alterado, nervosos e sobressaltados, e
com as roupas ensanguentadas.
33. O arguido BB apresentava um ferimento num dedo.
34. Cerca de pouco tempo depois, os arguidos AA e BB saíram do local.
35. Quando entraram na residência de KK, o arguido AA disse,
repetidamente, “merda, merda!”.
36. Dali, os arguidos AA, BB e CC seguiram para as proximidades da
casa do arguido BB, onde estiveram, pelo menos, entre as 3h16m19s e
as 3h16m22s,
37. Após, dirigiram-se novamente os arguidos AA, BB e CC para as
proximidades da residência de GG, onde estiveram, pelo menos, entre
as 4h46m25s e as 5h04m53s, tendo regressado à zona envolvente à casa
do arguido BB, onde estiveram, pelo menos, pelas 5h41m35s.
38. Deste local, viajaram até ... – localidade que o arguido AA bem
conhecia, tendo tido casa de férias na zona –, para se desfazerem do
corpo de GG que continuava na bagageira do veículo.
39. Já em ..., entre as 6h23m56s e as 6h56m30s, chegados a um local de
mato nas proximidades da Estrada ..., ..., os arguidos AA, BB e CC
retiraram o corpo de GG, sem vida, da bagageira do veículo.
40. Após, transportaram o corpo de GG até cerca de cinco metros de
distância da estrada em terra batida situada a cerca de 160 metros da
referida estrada ..., onde o depositaram no chão, por entre a vegetação
densa, local onde as respetivas ossadas vieram a ser encontradas, em
avançado estado de decomposição, no dia 18 de maio de 2020, e
abandonaram o local em fuga, regressando a ....
41. Nessa mesma madrugada do dia 15 de março de 2020, o arguido AA
contactou FF, dizendo-lhe que precisava de falar pessoalmente com a
mesma.
42. Na senda do plano traçado entre, pelo menos, os arguidos AA, BB e
CC, entre as 9h29m17s e as 9h53m55s do mesmo dia 15 de março de
2020, os mesmos, fazendo-se transportar na viatura da marca BMW,
modelo ..., com a matrícula ..-ZS-.., propriedade do primeiro, e na posse
das respetivas chaves, que haviam retirado à vítima GG, aproveitando a
ausência dos familiares (mãe e irmã), que se encontravam em
diligências na Polícia Judiciária, em ..., dirigiram-se à residência deste
último, logrando aceder ao seu interior.
43. Dali retiraram diversas peças de ouro, um relógio da marca Guess,
no valor de € 200, e ainda quantia indeterminada em numerário, após o
que abandonaram o local, levando consigo tais objetos e fazendo-os
seus, aos quais deram o destino que entenderam.
44. Mais tarde no mesmo dia, pelas 11h10m, os arguidos AA, BB e CC,
fazendo-se transportar na viatura do primeiro, da marca BMW, modelo
..., com a matrícula ..-ZS-.., dirigiram-se à urbanização da ..., onde
foram buscar HH, a quem solicitaram que os acompanhasse para
proceder à venda do ouro subtraído ao GG.
45. Entre as 11h56m e as 12h16m do dia 15 de março de 2020, os
arguidos AA, BB e CC, acompanhados de HH, dirigiram-se ao Centro
Comercial ..., sito em ..., no ..., onde tentaram vender as peças de ouro
subtraídas à vítima GG, bem como da sua residência, na loja n.º ...9,
denominada “P...”.
46. Para o efeito, o arguido AA deslocou-se com HH à loja “P...”,
dirigindo-se os arguidos BB e CC para a zona de restauração, onde os
aguardaram.
47. O valor oferecido para a venda do ouro não foi aceite pelos arguidos
AA, BB e CC, e regressaram a ....
48. Na tarde do dia 15 de março de 2020, o arguido AA encontrou-se
com FF no parque de estacionamento do estabelecimento comercial
denominado C..., sito em ..., para onde se dirigiu ao volante do veículo
da marca BMW, com a matrícula ..-ZS-.., e a quem disse “FF, em matei
o GG!”, referindo-lhe que o havia feito com o arguido BB e com um
indivíduo da ..., chamado “SS”, e que o corpo estava “longe”.
49. No interior do veículo, o arguido AA trazia consigo uma caixa de
cor branca e cinzenta, com a inscrição “...”, utilizada por GG para
guardar alguns dos seus objetos em ouro, e que a vítima mantinha na
sua residência.
50. Do local onde se encontravam, o arguido AA e FF seguiram para
casa de KK.
51. No dia 17 de março de 2020, pelas 17h48m, o arguido AA e HH
dirigiram-se de novo ao Centro Comercial ..., em ..., no ....
52. Permanecendo o primeiro no exterior, e a pedido dos arguidos AA,
BB e CC, HH dirigiu-se à loja “P...”, onde vendeu as peças de ouro pelo
valor de € 1.600 (mil e seiscentos euros), conseguindo que lhe fosse
entregue, no momento, a quantia de € 500 (quinhentos euros) em
numerário, sendo o remanescente pago mediante depósito ou
transferência bancária, entregando ao arguido AA, em termos não
apurados, a quantia em numerário recebida.
53. No dia seguinte, 18 de março de 2020, HH recebeu, na conta
bancária de que era titular junto do Montepio Geral, a quantia em falta
relativa à venda do ouro, no montante de € 1.100 (mil e cem euros).
54. O arguido AA, na companhia da arguida DD e de FF, foi ter com
HH, junto do Centro Comercial ..., tendo-lhe este entregado quantia
monetária não concretamente apurada.
55. Após, seguiram os quatro até ao Aeroporto ..., onde o arguido AA
solicitou a emissão, com urgência, do seu passaporte.
56. Também nesse dia 18 de março de 2020 o arguido BB dirigiu-se ao
Aeroporto ..., onde solicitou a emissão, com urgência, do respetivo
passaporte.
57. Os arguidos BB e AA fugiram do território nacional,
respetivamente, nos dias 19 e 20 de março de 2020, tendo viajado para
..., em ....
58. Em consequência direta e necessária dos golpes infligidos pelos
arguidos AA, BB e CC, por ação de natureza contundente, nos termos
descritos em 24), a vítima GG sofreu as seguintes lesões traumáticas:
a) Mancha de descoloração claramente corada no frontal direito,
consistente com infiltração hemorrágica, que também se confirmou na
zona de escalpe correspondente;
b) Solução de continuidade no arco zigomático direito. Dobragem óssea
do osso malar direito, na zona de impacto. Linha de fratura na base do
processo zigomático direito, na zona da fossa temporal;
c) Fratura dos ossos nasais, direito e esquerdo, e do maxilar direito na
zona que rodeia a abertura nasal, do lado direito; fratura do vómer (cuja
lâmina óssea central já não se podia observar);
d) Diástase (afastamento) da sutura escamosa esquerda, de toda a zona
do ptérion esquerda; da sutura fronto-malar; da sutura zigomático-
temporal e zigo-maxilar, com cabelos entalados, demonstrativos do
desnivelamento ósseo das zonas afetadas;
e) Apófises estiloides ausentes por destruição as mesmas, i. e., fratura
das apófises estiloides;
f) Fratura transversa no dente 21;
g) Ao nível da fossa craniana média, fratura do rochedo direito (parte
petrósea do temporal);
h) Ao nível da fossa anterior do crânio, fratura da grande asa do
esfenoide direita, na fronteira com a asa menor;
i) Fratura no corpo do esfenoide, na zona adjacente à base do vómer, do
lado direito do mesmo;
j) - Fissura esfenopetrosa mais separada;
k) Fratura da raiz dos nasais, na base dos mesmos;
l) Fratura completa na parte distal do corpo do esterno, com dobragem
óssea e separação de um pequeno fragmento;
m) Fraturas adjacentes nas 2ª e 3ª costelas direitas, nos arcos anteriores,
junto às articulações esternais, sendo a fratura completa na 2ª costela e
incompleta na 3' costela.
n) Forte coloração do úmero direito, consistente com infiltração
hemorrágica.
59. As lesões traumáticas cranianas anteriormente descritas, provocadas
pelos arguidos AA, BB e CC, nos termos igualmente referidos, foram a
causa direta da morte violenta de GG.
60. No dia 10 de novembro de 2020, o arguido CC tinha na sua posse,
na residência sita na Rua ..., no Bairro ..., na ...:
a) onze munições de calibre 7,65 mm;
b) um carregador de pistola, de calibre 6,35 mm;
c) um aparelho de descargas elétricas, de fabrico artesanal;
d) cento e trinta e seis cartuchos de caça, de calibre 12 mm;
e) uma faca/punhal de abertura manual, da marca Opinel, modelo
Carbone, com lâmina do tipo corto-perfurante, com um comprimento
de 100 mm, gume de 100 mm, com uma largura máxima de 21 mm e
uma espessura máxima de 2 mm.
61. Agiram os arguidos AA, BB, CC e DD de forma voluntária, livre e
consciente, em comunhão de esforços e intentos, na execução de um
plano previamente elaborado, com o propósito concretizado de retirar a
GG os seus pertences, fazendo-os seus, não se coibindo, para o efeito,
de usar de uma arma de fogo, de superioridade física e de violência,
para fazer valer os seus intentos e colocar o ofendido na
impossibilidade de reagir, o que conseguiram.
62. Agiram os arguidos AA, BB e CC de forma voluntária, livre e
consciente, em comunhão de esforços e intentos, cada um aceitando o
resultado das condutas dos outros, aproveitando-se da circunstância de
se encontrarem em superioridade numérica em relação a GG, que no
momento se encontrava sozinho, com o propósito concretizado de o
atingirem no corpo e de lhe tirarem a vida, não se coibindo de o atingir
repetidamente, com murros e pontapés e com a arma que empunharam,
causando-lhe ferimentos aptos àquele fim, bem sabendo que os golpes
que lhe infligiram, bem como as regiões do corpo que visaram e
atingiram, eram adequados a provocar-lhe a morte.
63. Os arguidos AA, BB e CC agiram colhendo o GG de surpresa e
indefeso, o que quiseram, de forma insensível e sem motivo plausível
que minimamente o justificasse, com total desprezo e indiferença pela
vida humana.
64. Mais agiram os arguidos AA, BB, CC de forma voluntária, livre e
consciente, unindo os seus esforços e vontade, de acordo com o plano a
que aderiram na execução dos factos, com o propósito concretizado de
privar GG da sua liberdade ambulatória.
65. Quiseram ainda os arguidos AA, BB, CC, ao agir da forma descrita
em 39) e 40), ocultar o cadáver de GG, o que concretizaram, fazendo-o
deliberada, livre e conscientemente.
66. Atuaram igualmente os arguidos AA, BB e CC com o propósito
concretizado de acederem à residência de GG, com a chave que lhe
retiraram nos termos descritos, e fazer seus, como fizeram, os bens e
quantias monetárias que ali encontraram, bem sabendo que os mesmos
não lhes pertenciam.
67. O arguido CC não possuía qualquer tipo de autorização para uso,
porte ou detenção de munições dos referidos calibres, bem como não
possuía licença de uso e porte de arma, e conhecia as características das
munições que lhe foram apreendidas, sabendo que não as podia deter,
como detinha, o que fez de forma voluntária, livre e consciente.
68. Em cada uma das situações descritas, os arguidos AA, BB, CC e
DD bem sabiam que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.
(Do pedido de indemnização civil)
69. A assistente EE é mãe da vítima GG, nascido a .../.../1991.
70. Durante o espancamento perpetrado pelos arguidos AA, BB e CC,
GG vivenciou horror, sofreu dores lancinantes e anteviu que ia deixar
de viver, o que lhe causou agonia, angústia e medo.
71. Nos últimos anos, e após a autonomização dos irmãos mais velhos,
GG era o principal apoio e conforto da sua mãe, vivendo apenas os
dois.
72. A vítima era muito dedicada à progenitora, a quem estava ligado por
laços de grande ternura e amor filial.
73. GG era um jovem alegre e com amigos com quem convivia
diariamente.
74. Era mais conhecido, no mundo da música “rap”, como “TT”, tendo
ascendido como artista, obtendo várias das suas canções sucesso
nacional e internacional, nomeadamente na ... e ....
75. Os seus concertos, sempre cheios, eram também difundidos nas
plataformas digitais, tendo o cantor vários milhões de visualizações
acumuladas no Youtube.
76. No Instagram acumulava mais de 150 mil seguidores, e em 2020
lançou o seu último trabalho, com o título “...”, do qual o single “...”
alcançou sucesso imediato.
77. A vítima era um indivíduo muito amável e respeitador, ao qual foi
abruptamente retirada a possibilidade de ter a sua vida, com trabalho,
saúde, família e amigos.
78. Nunca a assistente imaginou que estaria presente no funeral do
próprio filho, não existindo maior desgosto do que um enterrar um
filho.
79. Com a morte do filho GG, a assistente ficou sem família a viver na
respetiva residência, pelo que os outros dois filhos tiveram de ali passar,
alternadamente, a residir.
80. Encontra-se em permanente melancolia, pensa permanentemente no
filho e perdeu a capacidade de sorrir.
81. O profundo desgosto que a atingiu não a deixa pernoitar
devidamente, sendo atacada por insónias e por tremendos pesadelos.
82. Com o funeral do filho a assistente despendeu a quantia de € 2.175
(dois mil cento e setenta e cinco euros).
83. Com a inumação da vítima em sepultura perpétua despendeu a
quantia de € 1.880 (mil oitocentos e oitenta euros).
84. Com a escritura de habilitação de herdeiros a assistente EE
despendeu a quantia de € 225,86 (duzentos e vinte cinco euros e oitenta
e seis cêntimos).
85. Na sequência da morte do filho, a assistente frequentou, pelo
menos, três consultas de psiquiatria, no que despendeu a quantia total
de € 90 (noventa euros).
(Das condições pessoais dos arguidos)
(Arguido AA)
86. O arguido AA é o mais novo de dois filhos de um casal de estatuto
socioeconómico favorecido (o progenitor, de 74 anos de idade,
empresário, e a progenitora, de 58 anos, técnica da função pública).
87. O respetivo processo de desenvolvimento decorreu no seio do
agregado familiar de origem, residente numa zona suburbana da cidade
... e em contexto sócio residencial favorecido.
88. A dinâmica familiar vivenciada foi isenta de problemáticas dignas
de relevo, ainda que pautada por alguma discrepância nas atitudes e
comportamentos educativos entre os progenitores e dificuldades no
exercício equilibrado da autoridade: a mãe, mais exigente e
controladora, e o pai, mais permissivo e flexível.
89. O arguido sempre manifestou, desde a infância, alguma
desconcentração, rebeldia e irreverência nos comportamentos, o que
dificultava o seu acompanhamento educativo e parental, agravadas pela
crença/desculpabilização do progenitor, no sentido de que estes
comportamentos, “aceites em rapazes”, se alterariam com o seu
crescimento e desenvolvimento.
90. Este desencontro nos estilos educativos por parte dos progenitores
esteve subjacente a uma dinâmica parental pouco securizante e
consistente, favorecedora de dificuldades na interiorização de regras e
limites e, consequentemente, de comportamentos disruptivos.
91. Até aos 2 anos de idade, e durante o período laboral dos
progenitores, o arguido AA ficou aos cuidados da avó materna,
integrando, posteriormente, um estabelecimento de ensino privado, até
à conclusão do 40 ano de escolaridade.
92. Aos 8 anos de idade, e durante três anos, foi acompanhado no
Hospital ..., em consultas específicas para a hiperatividade e
dificuldades de concentração, tendo chegado a ser medicado com o
objetivo de melhorar esta problemática.
93. Integrou o ensino público no 5º ano de escolaridade, mas não
conseguiu obter sucesso no ano imediatamente seguinte, devido ao
elevado absentismo e ao incumprimento das suas obrigações escolares.
94. Na tentativa da obtenção da escolaridade obrigatória e de um maior
controlo do seu comportamento, os progenitores voltaram a integrá-lo
numa escola particular, onde concluiu o 6º ano. Contudo, não conseguiu
concluir o 9º ano, no âmbito de um curso de formação profissional de
informática, por desmotivação e abandono escolar.
95. O abandono da prática do futebol, como jogador federado, aos
14/15 anos, o convívio frequente com pares com elevado absentismo
escolar e a desocupação do tempo, bem como o consumo de haxixe
iniciado aos 17 anos de idade, e que é desvalorizado pelo próprio e
pelos familiares, são fatores que estiveram subjacentes a um estilo de
vida desregrado e sem a organização/ocupação do tempo de forma
estruturada.
96. Neste contexto, que o arguido descreveu como sendo uma fase em
que se sentia desinteressado pelas coisas, candidatou-se ao serviço
militar, aos 16 anos, mas sem sucesso, por ser ainda menor.
97. O contacto com práticas e comportamentos ilícitos, no âmbito dos
seus relacionamentos interpessoais, e a frequência de bairros conotados
com práticas criminais, onde conheceu o coarguido CC, levou a que o
arguido AA procurasse afastar-se desses meios e vivências,
alegadamente como forma de proteção pessoal.
98. Acabou, assim, por emigrar para ..., em 2013, aos 17 anos de idade,
onde se encontrava a residir um casal amigo. Em ..., onde fixou
residência, arrendou um quarto e, depois de um período de tempo de
adaptação à língua e de obter título de residência, angariou um posto de
trabalho na área da restauração, na qual evoluiu e trabalhou em dois
restaurantes, durante quase um ano.
99. Entretanto, estabeleceu uma relação de namoro com uma jovem
portuguesa, UU, e conheceu o seu coarguido BB, nomeadamente numa
fábrica de têxteis onde trabalhou, e da qual veio a ser despedido por
falta de assiduidade.
100. O arguido começou a viver em união de facto com a namorada,
junto do agregado familiar de origem desta, tendo-se autonomizado e
passado a residir numa habitação arrendada, com apoio estatal, quando
aquela ficou grávida.
101. Nessa fase, o arguido trabalhou numa empresa de distribuição,
como ajudante de motorista, em regime de part-time, durante alguns
meses.
102. A relação com a companheira, licenciada ... e ativa em termos
laborais, foi pautada pela conflitualidade, alegadamente pelos
sentimentos de ciúme mútuos e também devido à má gestão dos
recursos económicos por parte do casal.
103. Face à referida má gestão económica, eram os progenitores do
arguido que em momentos de dificuldade suportavam as despesas ou
dívidas contraídas por este.
104. Devido aos conflitos entre o casal e ao termo da relação conjugal,
o arguido veio para Portugal logo após o nascimento da filha, em 2017,
período em que obteve a carta de condução.
105. Algum tempo depois o arguido AA regressou a ..., restabeleceu o
relacionamento afetivo com a companheira e, com o apoio dos
progenitores, adquiriu viatura própria. Trabalhou ainda como motorista
na distribuição de vinhos, com contrato de trabalho, durante alguns
meses.
106. Há cerca de dois anos o arguido e a companheira terminaram
definitivamente o relacionamento, razão que o fez regressar a Portugal,
fixando residência junto dos progenitores e ajudando o pai na empresa
... de que é proprietário.
107. À data dos factos encontrava-se a residir em Portugal, mas em casa
de um amigo, em virtude de se ter incompatibilizado com o progenitor,
por motivos não concretamente especificados, mas correlacionados com
o facto de o arguido manter uma relação afetiva com FF, ... ..., cuja
entrada na residência dos pais não era permitida.
108. O arguido e respetivo agregado familiar mantêm um
relacionamento próximo com a filha e com a ex-companheira do
primeiro, sendo sobretudo os seus progenitores que asseguram a
estabilidade económica dos cuidados à menor.
109. O relacionamento entre o arguido AA e a filha é imaturo e baseado
na satisfação das necessidades imediatas da mesma, sobretudo através
da atribuição de presentes, não evidenciando, da sua parte, uma efetiva
responsabilidade parental.
110. O relacionamento familiar foi descrito, pelo próprio, como sendo
pautado por várias discussões, sobretudo pela discrepância entre os
vários elementos do agregado em relação à dinâmica que o arguido
mantinha com cada um: o pai, com uma postura de maior afastamento
em relação ao arguido, mas mais envolvido na concessão de benefícios
e na satisfação das necessidades do próprio, como forma de evitar
problemas e conflitos; a mãe, mais exigente e assertiva em relação à
conduta que desejava da parte do filho; e a irmã, de 33 anos, que não
falava com o arguido há dois anos, pela discordância com o respetivo
estilo de vida e com a sua forma de conviver com os restantes
elementos, que se caracterizava também pelo desrespeito dos direitos e
dos bens materiais dos outros, fazendo deles uso sem permissão.
111. No plano laboral, o arguido tinha assumido o exercício de
atividade na empresa do ramo ... de que o progenitor é proprietário,
nomeadamente ao nível da parte informática e do
relacionamento/comunicação com clientes estrangeiros, devido ao seu
domínio da língua inglesa; contudo, o mesmo nem sempre cumpria as
regras e os horários, apresentando elevado absentismo e dificuldade em
aguardar pelo dia de receber a remuneração acordada, solicitando
frequentemente o respetivo adiantamento (cerca de € 200/semana).
112. O arguido apresenta especial interesse por veículos motorizados e
pela condução, bem como por vestuário de marca e pela alimentação
em restaurantes, despendendo, nestas circunstâncias, os seus
rendimentos ou economias.
113. Em termos pessoais o arguido apresenta-se como um indivíduo
imaturo, pouco ponderado e com grande necessidade de validação e
reconhecimento pelo grupo de pares. É neste grupo que se sente
valorizado, zelando pela manutenção de uma boa imagem, quer pelos
bens materiais que apresenta, quer pela disponibilidade/lealdade para
ajudar os amigos, alguns de infância, e por quem revela especial
solidariedade, como por exemplo a coarguida DD, quer pela proteção e
conselhos que lhes proporciona, através da sua presença próxima e
atenta.
114. O arguido AA aparenta também ser um indivíduo que prioriza a
satisfação das suas necessidades imediatas em detrimento do respeito
ou cumprimento das normas e regras vigentes, denotando dificuldades
na internalização de limites/regras, patentes ao longo do seu percurso
vivencial desde idade precoce, e mais recentemente durante a sua
permanência no estabelecimento prisional.
115. O enquadramento e o suporte familiar de que dispõe, e que se
traduz nas visitas regulares da progenitora, da madrinha e,
pontualmente, do progenitor, denotam uma dinâmica marcada pela
permissividade, pela visão do arguido como um indivíduo com
necessidade de proteção e pela satisfação das suas necessidades e até
exigências. Deste modo, a família não se apresenta suficientemente
capacitada para promover no arguido a aquisição de um maior sentido
das responsabilidades, de pensamento consequencial e de capacidade de
descentração.
116. Em liberdade, face à mediatização do presente processo judicial e
a alegadas ameaças por parte de terceiros, o arguido e família
perspetivam que o mesmo volte a fixar residência em ... e mantenha o
atual relacionamento afetivo com a ex-companheira, mãe da filha,
entretanto, restabelecido.
117. A irmã do arguido, licenciada e já autónoma do agregado familiar
de origem, não visita o arguido no estabelecimento prisional, pelo facto
de se sentir muito penalizada pelo estilo de vida do mesmo e pelo
mediatismo deste processo, que a tem prejudicado e condicionado no
seu quotidiano.
118. Durante o período de reclusão o arguido AA tem revelado
dificuldade no cumprimento das regras internas, sendo que até à data
das entrevistas realizadas para elaboração do relatório social foi já alvo
de três sanções disciplinares, por posse de telemóvel, além de ter sido
igualmente encontrado na posse de haxixe.
119. O arguido AA foi anteriormente condenado:
119.1. No Processo Sumário n.º 904/14...., do Juízo Local de Pequena
Criminalidade ..., por sentença datada de 18 de agosto de 2014,
transitada em julgado a 30 de setembro de 2019, foi condenado pela
prática, no dia 30 de julho de 2014, de um crime de condução sem
habilitação legal, p. e p. pelo art. 3º do D.L. n.º 2/98, de 3 de janeiro, na
pena de 40 (quarenta) dias de multa, à razão diária de € 5 (cinco euros),
o que perfaz a quantia total de € 200 (duzentos euros), já julgada extinta
pelo pagamento.
120. Não assumiu a prática dos factos e não demonstrou qualquer
arrependimento, não evidenciando ainda qualquer ressonância
emocional face à vítima e juízo de autocensura.
(Arguido BB)
121. O processo de desenvolvimento e socialização do arguido BB
decorreu, na primeira infância, junto do agregado de origem, na zona de
... - ..., composto pelos pais e uma irmã germana mais nova.
122. Quando contava cerca de 4/5 anos de idade, o pai faleceu, vítima
de acidente, pelo que o arguido ficou aos cuidados da mãe e da avó
paterna, tendo sido o avô materno, no entanto, a constituir-se como
figura paternal de referência.
123. A dinâmica familiar foi pautada por laços de afetividade e
solidariedade entre os seus membros, num contexto relacional estável e
estruturado, sendo que os mesmos se descreveram como familiares
atentos e preocupados com a transmissão de valores e regras pró-sociais
aos descendentes.
124. A subsistência do agregado familiar era assegurada pela atividade
laboral exercida pela mãe, como auxiliar de educação e alguns
trabalhos em limpezas, e pela avó, empregada de limpezas, não sendo
referenciadas dificuldades relevantes no domínio da satisfação das
necessidades básicas da família.
125. Em 2007 a mãe e a irmã mais nova emigraram para ..., tendo o
arguido permanecido em Portugal, aos cuidados da avó paterna,
residente num bairro social em ..., numa habitação atribuída aos avós
paternos, onde permaneceu apenas um ano, para concluir o 8º ano de
escolaridade, sem historial de reprovações.
126. Após concluir, em 2008, o 8º ano de escolaridade, emigrou para ...,
para junto da progenitora, tendo dado continuidade aos estudos numa
escola ..., onde veio a concluir o 11º ano, em 2011.
127. Em 2012 o arguido voltou para Portugal, uma vez que nunca
gostou de viver naquele país, integrando o agregado dos avós maternos,
que habitavam em ..., que alternava com o agregado da avó paterna,
tendo concluído, em 2013/2014, o 12º ano de escolaridade, através de
um “Curso Técnico de Turismo” ministrado no Instituto de Educação e
Desenvolvimento Profissional, e obtido ainda formação em segurança.
128. Antes de concluir o 12º ano ainda se matriculou em vários cursos,
dos quais veio a desistir, por ter tido algumas dificuldades/dúvidas em
encontrar o seu caminho profissional.
129. O arguido BB passou por uma fase de instabilidade pessoal, sem
rumo definido, consumos de haxixe e acompanhamento com pares com
iguais consumos, a que ficou a dever-se, em parte, a pouca vigilância
exercida por parte das avós onde ia alternando a sua pernoita, ficando
assim mais livre para se movimentar sem algum controlo e autoridade.
130. Em 2014/2015 retornou a ..., tendo-se matriculado no ensino
superior, que não prosseguiu, por não estar disponível para
corresponder a uma exigência da universidade (melhoria de nota).
131. Deste modo, veio a integrar-se no mercado de trabalho, em várias
atividades indiferenciadas, como segurança de portarias, em armazéns,
na área de picking, e ainda em bares e restaurantes. Sendo esta última
atividade laboral a da sua preferência, veio a inserir-se, em 2016/2017,
e após formação, num restaurante ..., como chefe de cozinha da secção
“...”.
132. Em ... a vida do arguido afigurava-se estável, nomeadamente na
área laboral, trabalhando como chefe de cozinha, atividade que
complementava com a de segurança em portarias. Contudo, em 2019
decidiu regressar novamente a Portugal, perspetivando explorar um
restaurante, projeto que inicialmente não foi bem aceite pela mãe e pela
namorada, devido ao facto de o arguido não possuir ainda o montante
necessário para empreender o negócio e por ter a sua vida estruturada
naquele país.
133. No domínio afetivo, em 2015 encetou uma relação de namoro com
VV, sua amiga de infância, que residia em ..., tendo o casal iniciado
uma vida em comum em 2016, em .... O relacionamento entre o casal
foi descrito como equilibrado, coeso e estável, beneficiando de uma
relação próxima com a restante família alargada de ambos, com a qual
sempre mantiveram fortes laços de união e de interajuda.
134. Contudo, em Portugal o arguido BB teve uma outra relação
amorosa, que durou algum tempo, mas que não veio a ter
consequências na relação com a companheira, que desvalorizou esse
facto.
135. O arguido conheceu o arguido AA quando trabalhou numa fábrica
em ..., ..., tendo ajudado na sua integração laboral quando este ficou
desempregado, e veio a retomar o convívio com o mesmo aquando do
seu regresso a Portugal.
136. No que respeita à ocupação dos tempos livres, em Portugal, e
durante a adolescência, o arguido BB dedicou-se à prática desportiva,
nomeadamente futebol, jogging e kickboxing, frequentando ainda um
ginásio.
137. Iniciou o consumo de haxixe aos 15/16 anos de idade, numa fase
de experimentação, vindo, passados alguns meses, a abandoná-lo, por
considerar ser prejudicial ao seu bem-estar.
138. Na idade adulta, e durante o período em que viveu em ..., o seu
tempo livre era dedicado essencialmente à atividade profissional e ao
convívio com familiares e alguns colegas de trabalho.
139. No período que precedeu a presente situação jurídico-penal, o
arguido permanecia a residir com a avó materna, num bairro social da
zona de ..., mantendo com esta familiar uma relação de grande
proximidade, apesar de alguma permissividade e falta de supervisão
desta em relação ao mesmo.
140. Em termos económicos o arguido detinha uma situação estável,
uma vez que não tinha quaisquer encargos com despesas domésticas,
sendo a avó proprietária da habitação, e em caso de necessidade
contava com o apoio da mãe e das avós.
141. Uma vez que não logrou empreender o negócio a que se propunha,
em novembro de 2019 inseriu-se profissionalmente num bar, no
Aeroporto ..., como empregado de balcão, auferindo o salário líquido de
€ 715, acrescido de subsídio de refeição no valor de € 80.
142. Durante o período em que permaneceu em ... – entre 19 de março
de 2020 e 25 de maio de 2020, o arguido BB e a namorada
permaneceram desempregados, devido à situação económica e
sanitária, subsistindo com uma bolsa de estudo atribuída àquela e com
algum dinheiro do arguido.
143. Numa primeira abordagem o arguido tende a mostrar-se como uma
pessoa calma, simpática e cordial no contacto interpessoal,
evidenciando um discurso defensivo e por vezes confuso, esforçando-se
por passar uma imagem positiva/equilibrada de si e ajustada aos valores
da sociedade que integra. Em termos pessoais tenta igualmente
transmitir a imagem de que tem objetivos profissionais bem definidos,
que nunca conseguiu alcançar, demonstrando dificuldades na sua
concretização, passando a vida a alternar entre Portugal e ..., sem se
fixar num lugar, sem concluir os estudos a que se propõe e sem
integração profissional consistente.
144. Com alguma permissividade e facilitismo da parte dos seus
familiares, o arguido BB demonstra dificuldade em refletir nas
consequências das suas decisões, regidas primordialmente pelo
imediatismo e pela necessidade de reconhecimento social. Evidencia
ser um individuo ambicioso, com dificuldade em se firmar nos projetos
pessoais e profissionais e dificuldades em lidar com a frustração,
demonstrando instabilidade, inquietude e insatisfação, assim como
alguma impaciência na forma de agir e de fazer escolhas.
145. Em termos futuros, e em meio livre, perspetiva voltar a residir em
..., com a namorada, contando com o apoio desta e da mãe, regressar à
vida ativa em termos escolares e laborais, nomeadamente reintegrar-se
no restaurante onde laborava no período precedente à sua vinda para
Portugal em 2019.
146. Preso preventivamente no Estabelecimento Prisional ... desde o dia
.../.../2020, o arguido tem vindo a denotar uma postura consentânea com
as regras e normas vigentes, encontrando-se inativo devido à sua
situação jurídico-penal.
147. Recebe visitas da mãe e da namorada, que presentemente se
encontram a viver em Portugal (e que ficaram laboralmente inativas, a
primeira no gozo de uma licença sem vencimento e a segunda apenas a
estudar online, auferindo uma bolsa de estudo), tendo-se anteriormente
deslocado de ... apenas com o referido propósito.
148. Em meio prisional foi alvo de agressões por parte de outros
reclusos, situação que deu origem ao Nuipc n.º 80517/20...., no qual é
lesado/ofendido em crimes contra a integridade física.
149. O arguido BB não tem antecedentes criminais registados.
150. Não assumiu a prática dos factos e não demonstrou
arrependimento, não evidenciando ainda qualquer ressonância
emocional face à vítima ou juízo de autocrítica.
(Arguido CC)
151. De nacionalidade portuguesa e com ascendência ..., o processo de
socialização do arguido CC decorreu num bairro de ... - Bairro ..., na ...
-, local onde os avós paternos fixaram residência há várias décadas,
conotado com problemáticas sociais, de marginalidade e exclusão.
152. É filho único, fruto de uma relação que terminou quando o arguido
tinha poucos meses de vida, altura em que a mãe abandonou o agregado
composto pelo progenitor e pelos avós e tios paternos.
153. A progenitora continuou a residir, até ao momento presente, numa
outra habitação do mesmo bairro, destituindo-se, no entanto, do seu
papel parental, razão pela qual o arguido não estabeleceu qualquer
ligação com a mesma, embora mantenha contacto com os irmãos
uterinos, entretanto nascidos.
154. O progenitor veio posteriormente a autonomizar-se do agregado de
origem, para viver com outra companheira, tendo o arguido três irmãos
consanguíneos mais novos, com quem também mantém relação.
155. A mãe biológica manteve-se uma figura ausente da sua trajetória,
constituindo-se os avós paternos as figuras de substituição e os
responsáveis pelo respetivo acompanhamento socioeducativo, num
contexto intrafamiliar aparentemente equilibrado, coeso e de
entreajuda.
156. Apesar de o arguido CC ter estabelecido relações afetivamente
investidas e recompensadoras com os familiares, verificaram-se
constrangimentos ao nível da supervisão parental e ineficácia na
imposição de regras e limites, que tendia a ultrapassar.
157. Ainda que tivesse mantido inicialmente um comportamento de
ajustabilidade, precocemente começou a associar-se com pares
significativos do meio comunitário, conotados com comportamentos
desviantes, com quem estabeleceu vinculações pró-criminais,
comprometedoras do seu percurso vivencial posterior.
158. A família dispunha de uma condição económica humilde, que
permitiu garantir precariamente as condições de subsistência dos
diferentes elementos, decorrente, sobretudo, dos rendimentos do pai e
dos avós paternos, em áreas indiferenciadas, como a construção civil e
as limpezas.
159. O arguido iniciou a escolaridade em idade regular e, apesar da
adequação na interação com os pares e com os agentes educativos,
desde cedo revelou desinteresse e desmotivação pelas atividades
letivas, apresentando um acentuado absentismo, circunstâncias que
caracterizaram um percurso pouco investido e de abandono escolar aos
10 anos, durante a frequência do terceiro ano do ensino básico.
160. Sinalizado no âmbito de um processo de promoção e proteção, em
2008 foi-lhe aplicada uma medida de acolhimento residencial na “C...”,
registando recorrentes fugas desta instituição, após as quais tendia a
regressar ao agregado de origem e a perpetrar um estilo de vida
desregrado, sem respeito pelas normas educativas dos familiares, o que
motivou, em 2010, uma intervenção tutelar educativa.
161. Assim, aos 16 anos foi-lhe aplicada uma medida tutelar educativa
de internamento em centro educativo pelo período de dois anos, onde
concluiu, com aproveitamento, o segundo ciclo do ensino básico e
obteve a certificação profissional como operador de pré-impressão.
162. A referida institucionalização foi avaliada, pelo arguido, como
positiva, como forma de obter a sua estabilização e de encetar um
trajeto de mudança ao nível da aquisição e interiorização de regras e
limites, bem como a respetiva valorização formativo-profissional.
163. Após o termo da referida medida de internamento, aos 18 anos de
idade, o arguido CC regressou ao agregado de origem, no mesmo
enquadramento sociocomunitário e familiar, tendo integrado, em maio
de 2013, um curso de formação profissional de cozinha, num centro de
formação no ..., para dar continuidade ao Curso de Educação e
Formação para Adultos (...), iniciado em contexto institucional, de
modo a habilitar-se com o 9º ano de escolaridade e a obter uma
qualificação profissional de nível 3.
164. Foi igualmente encaminhado para a Associação ..., localizada no
Bairro ..., para ocupação dos seus tempos livres, tendo, nessa estrutura
comunitária, desempenhado funções na cozinha, o que fez com zelo,
assiduidade e pontualidade, e participado em diferentes atividades
ocupacionais.
165. Preso preventivamente, pela primeira vez, em 30 de janeiro de
2014, no âmbito de um outro processo judicial, foi restituído à
liberdade em 19 de dezembro de 2014.
166. Na impossibilidade de retomar a referida atividade formativa, o
arguido emigrou para a ..., alegadamente para se afastar do meio
comunitário e das suas referências sociais, integrando o agregado de
uma tia paterna, composto também por três primos menores.
167. O arguido CC manteve-se Maioritariamente desocupado,
responsabilizando-se pelo acompanhamento dos primos menores aos
estabelecimentos de ensino e dependendo, ao nível financeiro,
essencialmente da tia, empregada de limpezas, bem como de alguns
rendimentos obtidos com a realização de atividades pontuais e
indiferenciadas nas áreas da construção civil e da montagem e
desmontagem de palcos.
168. Naquele país, o arguido iniciou um relacionamento afetivo,
integrando posteriormente o agregado de origem da namorada (WW),
composto pelo pai e pelo filho desta, menor de idade, fruto de uma
anterior relação. Continuou a desenvolver funções indiferenciadas,
contribuindo para a economia do agregado, que incluía também os
rendimentos decorrentes do exercício profissional da namorada, como
funcionária de uma loja, e do pai desta, enquanto trabalhador da
construção civil.
169. O arguido veio a ser detido na ... no dia 1 de novembro de 2016, e
extraditado para Portugal, onde foi preso preventivamente, pela
segunda vez, a 11 de novembro de 2016, mantendo-se nessa situação de
reclusão até 11 de novembro de 2018.
170. Nessas circunstâncias, regressou ao mesmo contexto familiar e
sociocomunitário onde decorreu o respetivo processo de socialização,
reintegrando-se profissionalmente a 13 de novembro de 2018, numa
empresa de carpintaria denominada “E...”, com vínculo contratual, para
o exercício de funções como servente.
171. À data dos factos o arguido CC residia com o pai, no mesmo meio
sociocomunitário - Bairro ..., ... -, num registo relacional familiar e
vicinal adequado. Beneficiava igualmente de enquadramento familiar
por parte dos avós e dos tios paternos, residentes no mesmo bairro,
embora estes desconhecessem maioritariamente as suas rotinas e as
suas interações sociais.
172. O agregado paterno dispunha de uma situação financeira
equilibrada, decorrente sobretudo dos rendimentos do exercício
profissional do progenitor, funcionário de uma loja de decoração, a que
acresciam rendimentos pontuais na área da construção civil
desenvolvidos pelo arguido CC.
173. Formalmente desempregado, o arguido ocupava maioritariamente
o seu quotidiano a tomar conta da filha mais velha (nascida a
.../.../2019), e do irmão desta, na sua habitação sita na ..., assim como
no convívio com amigos de dentro e fora do respetivo meio
comunitário, e com outros que não vivendo no bairro, aí se deslocavam,
como é o caso do coarguido AA.
174. Beneficiava de suporte institucional por parte da Associação ...,
estabelecendo, nesse contexto, interações adequadas e dentro da
normalidade, frequentando as respostas sociais disponíveis e
participando na organização e realização do último evento (festival) do
bairro, como voluntário.
175. O arguido mantinha adequação comportamental nas interações que
estabelecia com a vizinhança, e proximidade afetiva sobretudo com os
avós paternos e com um dos tios, as suas referências familiares
significativas.
176. Em termos afetivos, foi mantendo relacionamentos pontuais, tendo
mais dois filhos de duas relações diferentes, que nasceram a ... de ... de
2021 e ... de ... de 2021, e que se encontram aos cuidados das respetivas
progenitoras, que residem em ... e no ..., respetivamente, tentando
acompanhar o desenvolvimento dos mesmos, dentro dos
condicionalismos atuais da sua privação da liberdade.
177. Ao nível das suas características pessoais, o arguido CC apresenta
adequação na interação e facilidade nas relações interpessoais,
capacidade de adaptação a diferentes contextos, de liderança, de
resiliência e autocontrolo, tendendo a uma atitude de retraimento na
partilha da vivência interna da sua emocionalidade.
178. Preso preventivamente no Estabelecimento Prisional ..., à ordem
dos presentes autos, desde o dia ... de ... de 2020, e reconhecendo
embora a gravidade da ilicitude dos factos em causa, neles não se revê,
apresentando um discurso consonante com o socialmente expetável e
normativo.
179. O arguido minimiza o seu anterior contacto com o sistema da
justiça penal e tende a minimizá-lo, revelando deficits na capacidade
crítica.
180. Em contexto institucional apresenta adequação e um
comportamento conforme às regras, sem registo de infrações
disciplinares, não mantendo qualquer ocupação formativo-laboral por
condicionalismos inerentes ao próprio estabelecimento prisional e
agravados pela pandemia por Covid 19. Continua a beneficiar do apoio
dos familiares, recebendo visitas regulares sobretudo de um tio paterno.
181. O arguido CC foi anteriormente condenado:
181.1. No Processo Comum Coletivo n.º 653/13...., do Juízo Central
Criminal ..., Juiz ..., por acórdão datado de 19 de dezembro de 2014,
transitado em julgado a 19 de janeiro de 2015, foi condenado pela
prática, no dia 15 de outubro de 2013, de um crime de detenção de arma
proibida, p. e p. pelo art. 86º, n.º 1 al. d), com referência ao art. 2º, n.º 3
al. p), todos da Lei n.º 5/2006, de 23 de fevereiro, na pena de 60
(sessenta) dias de multa, à razão diária de € 5 (cinco euros), o que
perfaz o total de € 300 (trezentos euros), já julgada extinta pelo
pagamento.
181.2. Por sentença proferida a 16 de janeiro de 2018, transitada em
julgado a 15 de fevereiro de 2018, no Processo Comum Singular n.°
32/17...., do Juízo Local Criminal ..., Juiz ..., foi condenado pela
prática, no dia 21 de janeiro de 2017, de um crime de tráfico de
estupefacientes de menor gravidade, p. e p. pelos arts. 21º, n.º 1 e 25º,
al. a) do D.L. n.º 15/93, de 22 de janeiro, na pena de 1 (um) ano e 4
(quatro) meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período
de tempo, com regime de prova, já julgada extinta nos termos do art.
57º do Código Penal.
183. Sem prejuízo desta extinção, e ainda que a avaliação da suspensão
da execução desta pena, com regime de prova, tenha sido globalmente
positiva no primeiro semestre de acompanhamento, em abril de 2019 a
situação inverteu-se negativamente, uma vez que o arguido CC
abandonou o referido acompanhamento, mantendo-se incontactável e
com paradeiro desconhecido.
184. O arguido não assumiu a prática dos factos e não demonstrou
arrependimento, não evidenciando ainda qualquer ressonância
emocional face à vítima e juízo de autocrítica.
(Arguida DD)
185. Por incapacidade dos progenitores, ambos toxicodependentes, a
arguida DD ficou entregue aos cuidados dos avós paternos, antes de
completar o primeiro ano de vida. A mãe, vítima de doença
infectocontagiosa, faleceu quando a mesma tinha 7 anos e o pai
emigrou para a ..., país onde se fixou e mantém integrado
profissionalmente.
186. Os avós, ambos com enquadramento sociocultural, constituíram-se
as figuras parentais da neta, tendo efetivado esforços no sentido de dar
respostas às suas necessidades educativas.
187. Porém, com a entrada na pré-adolescência, a arguida DD passou a
manifestar alterações comportamentais, com registos de adesão a
grupos de pares problemáticos, não detendo os avós ascendência sobre
a mesma.
188. A arguida sentia-se revoltada e com dificuldades em lidar com o
falecimento da mãe, acontecimento traumático vivenciado com
acrescida angústia, sentindo-se, além disso, distante das mentalidades
dos avós, o que dificultava a partilha de sentimentos e preocupações e
fazia com que se sentisse sozinha e não os respeitasse, assumindo
comportamentos desafiantes, de oposição e agressivos.
189. O seu percurso escolar decorreu de forma normativa até à
obtenção do 6º ano, altura em que passou a apresentar um elevado grau
de absentismo, privilegiando as vivências de rua, em zonas
problemáticas situadas nos arredores da respetiva residência.
190. Tais comportamentos foram-se agravando, chegando a pernoitar
fora de casa e sem que os avós conhecessem o seu paradeiro.
191. Neste contexto, os avós diligenciaram no sentido de a arguida ser
avaliada na especialidade de pedopsiquiatria, tendo iniciado terapêutica
medicamentosa na sequência de diagnóstico de perturbação de
hiperatividade e défice de atenção (PHDA) e sido encaminhada para a
área da psicologia.
192. Ainda que se tenha verificado uma ligeira melhoria, a arguida
manteve a instabilidade comportamental, adotando um estilo de vida
desregrado, sem rotinas organizadas e atividades estruturadas.
193. Este contexto promoveu a respetiva sinalização pela Comissão de
Proteção de Crianças e Jovens (C.P.C.J.), bem como o primeiro
contacto com o sistema de justiça, tendo-lhe sido aplicada uma medida
tutelar, em cujo âmbito foi integrada num colégio interno privado na
zona de ..., suportado pelos avós, onde permaneceu dos 14 aos 17 anos,
aí concluindo o 8º ano de escolaridade.
194. Entre os 17 e os 18 anos permaneceu em ..., integrada no agregado
de uma colega, tendo concluído o 9º ano de escolaridade. Entretanto
regressou a ... e reintegrou o agregado dos avós, tendo frequentado o
primeiro ano de um curso profissional com equivalência ao 12º ano,
que não concluiu.
195. A arguida regista consumos de haxixe e MDMA desde os 17 anos
de idade, embora pontuais e decorrentes de experiências em momentos
de convívio social.
196. Iniciou-se laboralmente aos 19 anos, como repositora e operadora
de caixa numa superfície comercial, funções que exerceu durante um
ano. Seguiu-se uma experiência de seis meses num café da associação
de moradores da sua área de residência. Há cerca de um ano exerceu
funções na área da estética, durante cerca de três meses, que
interrompeu devido ao confinamento decretado no âmbito do plano de
combate à pandemia por Covid19.
197. Ao longo do respetivo processo de desenvolvimento a arguida
manteve o acompanhamento regular na área da psicologia e da
psiquiatria, tendo-lhe sido diagnosticadas, desde os 15 anos, várias
depressões, crises de ansiedade e dificuldades acrescidas no controlo
dos impulsos, que a levaram à toma regular de terapêutica
medicamentosa, nomeadamente de antidepressivos, ansiolíticos e anti
psicóticos, e que mantém no presente.
198. À data dos factos a arguida DD integrava o atual agregado
familiar, constituído pelos avós paternos e por um primo. A família
reside numa zona residencial do concelho ..., beneficiando de uma
condição económica confortável, decorrente da pensão de reforma do
avô e dos rendimentos do arrendamento de imóveis de que são
proprietários.
199. Encontrando-se desempregada, a arguida ocupava o seu quotidiano
entre a prática de desporto num ginásio e o convívio com amigos da
área de residência, nomeadamente com o seu coarguido AA, com quem
mantém uma relação privilegiada.
200. Ao nível afetivo, a arguida DD destacou a relação que mantém no
presente, iniciada há cerca de dois anos, relativamente à qual se sente
vinculada e que descreve como gratificante e apoiante.
201. Sujeita à medida de coação de obrigação de permanência na
habitação, com vigilância eletrónica, desde o dia .../.../2020, beneficia
do apoio estruturado dos avós e do progenitor, sendo que este último,
apesar de se encontrar ausente, mantém, com a mesma, contactos
regulares, fornecendo suporte afetivo e financeiro. Para além disso, o
namorado tem-se constituído um forte apoio afetivo, frequentando a sua
casa com regularidade.
202. A arguida tem evidenciado capacidade de adaptação às regras e
obrigações a que está sujeita, ocupando o seu quotidiano com a
frequência de um curso online de unhas de gel.
203. No entanto, tem manifestado sintomatologia associada a altos
níveis de ansiedade, necessitando de recorrer com frequência aos
serviços de urgência hospitalar.
204. A arguida DD apresentou-se como uma jovem com capacidades ao
nível da comunicação, ainda que se mostre reservada, revelando o
estritamente necessário acerca das suas vivências, ideias e pensamentos.
Apresentando um discurso autocentrado, manifesta dificuldades em
reconhecer o impacto dos seus comportamentos em terceiros, revelando
fraca ressonância ao nível dos afetos e das emoções.
205. Em termos futuros, a arguida pretende reintegrar-se laboralmente,
de forma a autonomizar-se e a constituir agregado com o namorado.
Além disso, perspetiva emigrar, na procura de melhores condições de
vida, uma vez que considera que em Portugal será alvo de
estigmatização social, decorrente do mediatismo do presente processo
judicial.
206. A arguida DD não tem antecedentes criminais registados.
207. Não assumiu a prática dos factos e não demonstrou
arrependimento.
Quanto aos factos não provados, considerou como tal (transcrição):
a) No dia 10 de março de 2020 os arguidos tentaram pôr em prática o
seu plano de assaltar GG, não o tendo, no entanto, concretizado, por se
terem enganado no prédio.
b) A chamada referida em 6) foi efetuada em alta voz.
c) Perante os gritos da vítima, o arguido AA dirigiu-se para o prédio
onde GG residia.
d) No túnel, GG continuou a apresentar resistência.
e) Sem prejuízo da matéria de facto dada como provada, o arguido BB
aplicou um golpe de estrangulamento em GG, vulgo “mata-leão”, a que
se seguiu um forte empurrão dos arguidos AA, BB e CC, que o
projetou, de forma violenta, contra a parede do túnel.
f) Em casa de KK os arguidos AA e BB mudaram a roupa que trajavam
por outras peças de vestuário, colocando a roupa que despiram num
saco preto.
g) O arguido AA referiu a KK que as coisas não tinham corrido bem e
que o sangue que tinha na roupa era de GG.
h) O arguido BB referiu a KK que tinha sido mordido e desinfetou
rapidamente a mão.
i) Ao saírem da referida casa, os arguidos levaram consigo o saco preto
onde depositaram as roupas que despiram.
j) Na viatura, os arguidos AA, BB e CC dividiram, entre si, notas de €
20, em quantidade não apurada em concreto, e traziam consigo uma
mala de desporto de cor preta, com pertences de GG, designadamente
uns ténis da marca Nike, de cor rosa e azul, e um mealheiro de lata.
k) Os arguidos pretendiam a quantia de € 2.500 pelas peças em ouro
que no dia 15 de março tentaram vender na “P...”.
l) Os arguidos e HH regressaram a ... pela ..., pagando a portagem em
numerário.
m) Dali, deslocaram-se para a ..., onde o arguido CC tentou vender o
ouro, mas não encontrou no local quem fizesse o negócio.
n) Deslocaram-se ainda à loja denominada “O...”, sita em ..., cerca das
14h00m, para vender o ouro, mas não conseguiram.
o) No período em que seguiam no veículo, os arguidos AA, BB e CC
comentaram entre si que tinham “agarrado o gajo”, que tinha “corrido
bué mal” e que “tinham ido para uma serra e usado umas cordas”.
p) Mais alertou o arguido AA os arguidos BB e CC para o facto de,
depois do que se tinha passado, cada um ter de seguir o seu caminho,
não podendo comunicar mais entre si.
q) O arguido AA mostrou a FF o que se encontrava no interior da caixa
branca com os dizeres “...”.
r) Questionado por FF acerca do motivo de não ter enterrado o corpo, o
arguido AA referiu que a mata era muito densa e não tinha visibilidade,
terminando a dizer, “sabes o que é enterrar um corpo?”.
s) Num passado recente, o arguido AA tinha comentado com FF que
GG tinha muito dinheiro e seria um bom alvo para um assalto.
t) Nesse mesmo dia 15 de março de 2020, depois das 20h30m, a arguida
DD contou a KK que na noite anterior se encontrava com GG e que,
quando estavam junto do prédio dele, surgiram os arguidos AA, BB e
CC, que o agarraram, ordenando-lhe “sai mas é daqui, ó puta do
caralho!”.
u) Depois de saber por KK o que se passara na casa deste na noite
anterior, a arguida DD referiu que alguma coisa correra mal e que
precisava de saber o que tinha acontecido.
v) Os arguidos BB e CC voltaram à loja “P...” no dia 17 de março de
2020.
w) Para tanto, no dia 17 de março de 2020 o arguido AA foi buscar HH
a casa e, quando ali chegou no seu veículo, encontrava-se com o
arguido BB.
x) Referiu o arguido AA a HH que tinha pressa em receber o dinheiro,
para fugir para o estrangeiro.
y) Pelo caminho, pararam num posto de abastecimento de combustível,
para abastecer a viatura do arguido AA, e este ordenou a HH que
deitasse fora a caixa onde tinha transportado o ouro, com a indicação
“...”, o que aquele fez.
z) HH dirigiu-se, a mando do arguido AA e na sua companhia, ao
balcão do Banco Montepio Geral, sito no ..., nos ..., onde levantou e
entregou ao arguido AA a quantia remanescente.
aa) Após, os arguidos AA e DD, e HH e FF deslocaram-se ao Centro
Comercial ..., na ..., a fim de vender um telemóvel da arguida DD, e
almoçaram no carro.
ab) Sem prejuízo da matéria de facto dada como provada, a quantia
obtida através da venda do ouro e a quantia e objetos retirados da casa
da vítima foram divididos pelos arguidos AA, BB e CC, entre si, nos
termos acordados pelos três.
*
B
O Direito
Questão prévia.
1. Diz o recorrente AA:
«1- A questão previa deve ser deferida e consequentemente considerar
nula da a prova recolhida de forma ilegal com o recurso aos metadados
fornecidos pelas operadoras -sem mandado prévio de Juiz (para crimes
específicos).
2- Por conterem elementos qualificados como prova obtidos de forma
Ilegal devem de ser declarados nulos para tais efeitos e destruídos os
anexos Apensos I, IV e V referentes aos reportes de trafego de IP BT
fornecidos pelas operadoras Altice e Nós
3- São prova proibida a transmissão de números de telemóvel dos
arguidos obtidos com recurso aos metadados (nos termos do acórdão de
19 de Abril de 2022 do TC aplicável para casos futuros e processos em
curso que ainda não transitaram em julgado».
2. Diz o arguido BB:
«Existe nulidade da análise aos metadados efectuados aos números de
telemóveis indicados nos autos - objecto de análise por parte da
investigação -por força da aplicação do acórdão n.º 268/2022, do
Tribunal Constitucional.
a) Com efeito, da matéria dada com assente sob os artigo 1º a 68º dos
factos provados no acórdão em crise, não se pode concluir, de acordo
com as regras de experiência comum e de acordo com o princípio do
homem médio, que o recorrente tenha praticado os factos nos locais de
... (...), ... e ... quando no período temporal compreendido entre o dia 13
de Março de 2020 e o dia 15 de Março de 2020, até às 09H45 o
recorrente esteve com a namorada deste, JJ, na residência desta sita na
..., a largos quilómetros dos locais onde ocorreram os factos».
3. Os recorrentes não distinguem a prova resultante de dados de tráfego
conservados em sistemas informáticos (disciplinada pelas Leis 32/2008
e 109/2009) e a prova resultante de dados de tráfego
intercetados/conhecidos em tempo real, a que é aplicável o regime das
escutas telefónicas (art. 189.º/2, CPP), quando nos autos há esses dois
tipos de prova.
4. A inferência que os recorrentes fazem do ac. TC 268/2022, no sentido
da nulidade da prova obtida a partir dos dados conservados pelos
operadores de telecomunicações, não resulta imediatamente daquela
decisão. O que declarou o acórdão do Tribunal Constitucional n.º
268/2022 – Diário da República n.º 108/2022, Série I de 2022-06-03,
foi a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma
constante do artigo 4.º, da Lei n.º 32/2008, de 17 de julho, conjugada
com o artigo 6.º, da mesma lei, por violação do disposto nos números 1
e 4 do artigo 35.º e do n.º 1 do artigo 26.º, em conjugação com o n.º 2
do artigo 18.º, todos da Constituição. Não declarou «nula a prova
recolhida (…) com o recurso aos metadados fornecidos pelas
operadoras» nem a «nulidade da análise aos metadados» nem disse que
toda e qualquer recolha e conservação dados e independentemente do
período de conservação constitui prova proibida.
5. Dito isto, de acordo com o estabelecido no artigo 410.º/1, CPP, o
recurso para o tribunal superior só pode ter como fundamento quaisquer
questões de que pudesse conhecer a decisão recorrida. No recurso para
o TRL não foi suscitada esta questão, que dela não conheceu. Assim, a
questão posta é nova, pois relativamente a ela não discretearam os
sujeitos processuais, não se cumpriu naquela instância o contraditório,
nem sobre ela se pronunciou a decisão recorrida o que é, num processo
de estrutura contraditória, pressuposto do recurso nessa parte, pois, o
tribunal superior, repete-se, não se pronuncia, salvo caso de questões de
conhecimento oficioso, sobre questões novas.
6. Acresce que as questões devem ser corretamente delimitadas no seu
recorte factual, não bastando a sua invocação genérica e a granel, pois o
tribunal de recurso – em recurso – está limitado aos factos objeto do
processo, não dispondo obviamente dos poderes de investigação que os
recorrentes pressupõem ou lhe outorgam. Ademais, o recurso para o
STJ visa exclusivamente o reexame de matéria de direito (art. 434.º,
CPP) e estamos perante questão típica de facto, não lhe cabendo no
presente contexto identificar que concretos meios de prova viabilizaram
a afirmação dos factos provados e, caso estejam entre esses meios de
prova dados de tráfego conservados, qual a consequência a retirar da
declaração de inconstitucionalidade.
7. Este tem sido o entendimento dos tribunais de recurso, mormente do
Supremo Tribunal de Justiça: os recursos destinam-se a reexaminar
decisões proferidas por jurisdição inferior e não a obter decisões sobre
questões novas, não colocadas perante aquelas jurisdições, posto que,
como remédios jurídicos que são, com eles não se visa o conhecimento
de questões novas não apreciadas pelo tribunal recorrido, mas sim
apurar da adequação e legalidade das decisões sob recurso (ac. do STJ
de 26.09.2007, disponível em www.dgsi.pt).
8. Decidiu o acórdão do tribunal de 1.ª instância (com realce da nossa
responsabilidade):
«Ainda antes de avançarmos para a análise, em concreto, dos vários
meios probatórios que foram atendidos, e porque tal questão foi
suscitada em sede de alegações, cumpre tecer alguns considerandos
prévios acerca da localização celular (e da obtenção de outros dados de
tráfego).
«(…) In casu, conforme facilmente se constata através da análise dos
autos, a Polícia Judiciária – Unidade Nacional Contra – Terrorismo,
após ter sido acionada perante o desaparecimento da vítima GG em
circunstâncias que denotavam violência e indiciavam a prática dos
crimes de, pelo menos, rapto e sequestro (ainda em curso), delas se
inferindo ainda a existência de grave perigo para a vida ou para a
integridade física daquela (relato, à data, da pessoa que o acompanhava
aquando da abordagem por dois indivíduos e da ameaça com arma de
fogo, a ora arguida DD, vestígios hemáticos encontrados no hall do
prédio onde a vítima residia e no túnel, para onde foi levada, deixando
para trás alguns dos seus bens pessoais, ilustrados pelas fotografias de
fls. 13 a 24 e 536 a 546, e relatos das testemunhas PP e QQ, que
visualizaram dois ou mesmo três dos suspeitos, em termos que adiante
melhor serão explicitados), diligenciou pela preservação dos eventos de
rede das células “BTS”, incluindo as antenas “UMTS” (Universal
Mobile Telecommunication System), ou seja, 3G, ativadas nas
imediações do imóvel sito na Avenida ..., em ... – ..., e na Rua ..., em ...
– ..., no período compreendido entre a 01h00m hora e as 02h30m do dia
15 de março de 2020, bem como nas imediações do M..., no período
compreendido entre as 00h00m e a 01h45m do mesmo dia, que
identificou – fls. 84 a 93.
Preservados tais eventos de rede, mediante promoção do Ministério
Público, por despacho judicial proferido no dia 17 de março de 2020,
foram autorizadas as operadoras de serviço telefónico a fornecer,
suporte digital e em formato Excel, os registos completos das
comunicações efetuadas e recebidas nas BTS, detalhe das
comunicações associadas e eventos de rede, relativos aos cartões que
operaram no período temporal compreendido entre a 01h00m e as
02h30m do dia 15 de março de 2020, relativamente à Avenida ..., em ...,
..., e à Rua ..., em ... – ..., e no período compreendido entre as 00h00m e
a 01h45m desse mesmo dia, relativamente à Estrada Nacional ..., onde
se situa o M..., por referência às BTS constantes do expediente
remetido pela Polícia Judiciária (fls. 123 a 125, 138 e 139).
E, conforme se referiu nesse despacho, “pese embora os factos tenham
ocorrido num aglomerado urbano de grandes dimensões, a hora em que
tiveram lugar reduz de forma substancial o número de alvos, por um
lado e, por outro, a possibilidade de localizar no mesmo lapso de tempo
os mesmos telemóveis em 3 locais distintos, poderá conduzir aos
suspeitos dos factos em investigação. Não sendo vasto o universo de
pessoas que podem ter acionado as células identificadas, estabelecida a
conexão entre os utilizadores dos telefones mormente pelo cruzamento
dos dados constantes das listagens solicitadas e informação sobre
localização celular é possível determinar a identidade dos autores dos
factos em investigação”.
Para além de concordarmos, na íntegra, com os fundamentos ali
expendidos, cumpra ainda realçar que as informações solicitadas e
fornecidas não são suscetíveis de violar a intimidade das pessoas,
porquanto se traduziram apenas nas listagens onde constam números de
telefone, não importando obter, relativamente aos mesmos, a
identificação dos respetivos titulares, com exceção dos suspeitos, ora
arguidos. E, nesta última parte, a restrição realizada – que permitiu
chegar à identificação desde logo, dos arguidos AA e BB -, fez-se
mediante o cruzamento dos dados de tráfego de dois dos números delas
constantes, que não só mantiveram conversações entre si, como
também as mantiveram, por um lado, com os cartões SIM associados à
arguida DD e à testemunha FF, e com o cartão SIM inicialmente
associado ao próprio arguido BB, com o número ...43, por outro (por ter
sido um dos contactos fornecidos no S.E.F. aquando do pedido de
emissão de passaporte, cf. fls. 257, e que chegou, por esse motivo, a
estar intercetado, nos termos do despacho judicial de fls. 303 e 304),
mas que depois veio a apurar-se pertencer à avó paterna daquele, II
(tudo conforme consta da análise constante dos Apensos I, IV e V e do
depoimento da testemunha XX, meios de prova que adiante serão
escalpelizados).
Deste modo, e por mais que o nosso processo penal seja garantístico,
não podemos perder de vista que a sua finalidade primeira “continua a
ser a perseguição de infrações criminais, como defesa dos direitos
fundamentais dos cidadãos e da comunidade que são lesados com essas
infrações criminais, sendo certo que, como foi já salientado, o meio de
obtenção de prova pretendido afetará de forma muito pouco
significativa terceiros à investigação, servindo em contrapartida para
propiciar a perseguição criminal de um delito com considerável
gravidade
e que causou forte alarme social” (cf., neste sentido, o acórdão do
Tribunal da Relação de Lisboa de 3 de novembro de 2020, Processo n.º
497/20.2PFCSC-A.L1-5, disponível em www.dgsi.pt).
Ademais, o princípio da inviolabilidade das comunicações privadas,
úbio das telecomunicações, tem necessariamente de recuar, à luz do
princípio da proporcionalidade, face às necessidades da justiça criminal
na procura da verdade.
Por todo o que deixou exposto, e porque tais considerandos são
igualmente válidos para todos os dados de tráfego (onde se incluem o
registo das comunicações) e de localização celular obtidos, quer por
referência aos cartões SIM com os n.ºs ...04, ...47, ...95, ...05 e ...95,
quer por referência ao cartão SIM com o n.º ...51 (cf. despachos datados
de 23 de março de 2020 – fls. 303 e seguintes, 8 de maio de 2020 – fls.
805 e 806, 22 de julho de 2020 – fls. 1814 e 1815, e 7 de agosto de
2020 – fls. 2005), importa concluir pela absoluta legalidade dos
referidos meios de obtenção de prova».
9. Podendo este entendimento, que pretendeu responder à questão
suscitada em alegações, ser impugnado perante o TRL, os recorrentes
não o fizeram, tanto quanto resulta do elenco das conclusões transcritas
pelo acórdão recorrido, quer das questões por ele enunciadas como
questões a decidir. E publicado o acórdão, os sujeitos processuais não o
arguiram de nulo por omissão de pronúncia. Assim, estamos perante
caso julgado parcial, relativo a uma parte decisória que se fixou, sendo
por isso, em regra, irrevogável e inalterável dentro do mesmo
procedimento. Em processo penal o caso julgado formal atinge, pois, no
essencial, as decisões que visam a prossecução de uma finalidade
instrumental que pressupõe estabilidade – a inalterabilidade dos efeitos
de uma decisão de conformação processual ou que defina nos termos da
lei o objeto do processo-, ou, no plano material, a produção de efeitos
que ainda se contenham na dinâmica da não retração processual,
supondo a inalterabilidade sic stantibus aos pressupostos de
conformação material da decisão. No rigor do procedimento, o caso
julgado formal constitui um efeito de vinculação intraprocessual e de
preclusão (ac. STJ de 20.10.2010, disponível em www.dgsi.pt).
10. No caso a preclusão de conhecimento tem um motivo acrescido, o
recurso para o Supremo tribunal de Justiça visa exclusivamente o
reexame de matéria de direito (art. 434.º, CPP), e a questão posta pelos
recorrentes tem uma dimensão fáctica cujo recorte os recorrentes não
delimitaram como lhes era exigido. Por esta dupla ordem de razões,
está arredada a possibilidade de conhecimento da questão posta pelos
recorrentes.
11. Os recursos dos arguidos AA e BB, foram interpostos do acórdão do
Tribunal da Relação de Lisboa que por sua vez conheceu e negou
provimento aos recursos interpostos do acórdão do tribunal coletivo que
julgou e condenou os recorrentes em 1.ª instância. Assim, o acórdão
recorrido é o do TRL e não o acórdão do tribunal de 1.º instância; as
questões a decidir são as suscitadas relativamente ao acórdão do TRL.
12. As alegações de recurso repetem em grande parte as apresentadas
no recurso para o TRL, suscitando os recorrentes no recurso para o STJ
as mesmas questões de facto que já tinham apresentado no recurso da
decisão de 1.ª instância, chegando a elencar as provas que na sua ótica
impõem decisão diversa.
13. Em tema de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça dispõe o
art.º 432.º, na parte aqui relevante:
1 – Recorre-se para o Supremo Tribunal de Justiça:
(…)
b) De decisões que não sejam irrecorríveis proferidas pelas relações, em
recurso, nos termos do artigo 400.º;
(…)
Segundo o art. 400.º/1/f, CPP, não é admissível recurso de acórdãos
proferidos, em recurso, pelas relações que confirmem decisão de 1.ª
instância e apliquem pena de prisão não superior a 8 anos.
14. O acórdão do TRL confirmou integralmente – sem qualquer
alteração da matéria de facto e da respetiva qualificação jurídica – a
decisão condenatória proferida pelo tribunal de 1.ª instância.
Excetuando a condenação pela coautoria do crime de homicídio e a
pena única, aos demais crimes foram aplicadas penas de prisão não
superiores a 8 anos. Assim, ao arguido AA, pela prática de um crime de
roubo agravado, p. e p. pelo artigo 210º, nº 1 e nº 2, alínea b), com
referência ao artigo 204º, nº 2, alínea f), do Código Penal, foi aplicada a
pena de 7 anos de prisão; pelo crime de sequestro, p. e p. pelo artigo
158º, nº 1, do Código Penal, a pena de 1 ano e 6 meses de prisão; pelo
crime de profanação de cadáver, p. e p. pelo artigo 254º, nº 1, alínea a),
do Código Penal, a pena de 1 ano de prisão; pelo crime de furto
qualificado, p. e p. pelos artigos 203º, nº 1 e 204º, nº 2, alínea e), com
referência ao artigo 202º, alínea f), todos do Código Penal, a pena de 4
anos de prisão.
15. Ao arguido BB foram confirmadas pelo TRL todas as condenações
proferidas pelo tribunal de 1.ª instância:
- pela prática de um crime de roubo agravado, p. e p. pelo artigo 210º,
nº 1 e nº 2, alínea b), com referência ao artigo 204º, nº 2, alínea f), do
Código Penal, a pena de 7 anos de prisão; - - - pelo crime de sequestro,
p. e p. pelo artigo 158º, nº 1, do Código Penal, a pena de 1 ano e 6
meses de prisão;
- pelo crime de profanação de cadáver, p. e p. pelo artigo 254º, nº 1,
alínea a), do Código Penal, a pena de 1 ano de prisão;
- e pelo crime de furto qualificado, p. e p. pelos artigos 203º, nº 1 e
204º, nº 2, alínea e), com referência ao artigo 202º, alínea f), todos do
Código Penal, a pena de 4 anos de prisão.
16. Estas condenações parcelares são irrecorríveis para o STJ (artºs
400.º/1/f, 432.º/1/b, CPP). A irrecorribilidade das penas parcelares não
significa, apenas, que a respetiva medida fica intocada, mas coenvolve
a insindicabilidade de todo o juízo decisório – absolvição ou
condenação – efetuado (ac. STJ 14.03.2018, disponível em
www.dgsi.pt), não podendo ser discutido o preenchimento dos seus
elementos «objetivos e subjetivos».
17. No caso, em relação às questões postas pelos recorrentes e atinentes
às penas parcelares, foi garantido o duplo grau de jurisdição consagrado
no art. 32.º/1, CRP. O que pretendem os recorrentes, na parte dos
respetivos recursos relativa às condenações em penas parcelares, é um
triplo grau de jurisdição e um duplo grau de recurso relativamente a um
conjunto de penas situadas entre um ano e sete anos de prisão, garantia
que a Constituição não lhe outorga (art. 32.º/1, CRP acs. TC 64/2006,
659/2011 e 290/2014, e ac. STJ 14.03. 2018, disponível em
http://www.dgsi.pt).
18. A inadmissibilidade de recurso, quando é total acarreta a rejeição do
recurso (art. 420.º/1/b, CPP); sendo parcial, como é o caso quanto às
elencadas questões implica o não conhecimento do recurso na parte
irrecorrível (ac. STJ 23.04.2015, disponível em http://www.dgsi.pt).
19. Prosseguindo na delimitação do objeto do recurso, dispõe o artigo
434.º, CPP, em matéria de poderes de cognição, que o recurso
interposto para o Supremo Tribunal de Justiça visa exclusivamente o
reexame de matéria de direito, sem prejuízo do disposto nas alíneas a) e
c) do n.º 1 do artigo 432.º, CPP. As alíneas a) e c) do n.º 1 do artigo
432.º, CPP, reportam-se aos recursos (a) de decisões das relações
proferidas em 1.ª instância, visando exclusivamente o reexame da
matéria de direito ou com os fundamentos previstos nos nºs 2 e 3 do
artigo 410.º, o que não é o caso, e aos recursos (c) de acórdãos finais
proferidos pelo tribunal do júri ou pelo tribunal coletivo que apliquem
pena de prisão superior a 5 anos, visando exclusivamente o reexame da
matéria de direito ou com os fundamentos previstos nos nºs 2 e 3 do
artigo 410.º, o que também não é o caso.
20. Mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito é
jurisprudência deste STJ que é oficioso, pelo tribunal de recurso, o
conhecimento dos vícios indicados no artigo 410.º/2, do Código de
Processo Penal. Lida a decisão recorrida, concretamente a parte relativa
aos factos provados, não provados e motivação, não se descortina do
seu texto por si só ou conjugado com as regras da experiência comum:
(a) a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; (b) a
contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a
decisão; ou, finalmente, (c) erro notório na apreciação da prova (art.
410.º/2, CPP). Aliás, tal conclusão, já tinha sido deliberada no acórdão
recorrido.
Recurso do arguido BB.
21. Visando o recurso interposto pelo recorrente do acórdão da relação
(que conheceu, de facto e de direito, do recurso por si interposto da
decisão proferida em 1.ª instância) para este Supremo Tribunal de
Justiça o reexame de matéria de direito (art. 434.º, CPP), está votada ao
insucesso e legalmente vedada a pretensão do conhecimento da parte do
recurso interposto pelo arguido BB, em que ele pretende que o STJ
revisite e se intrometa na decisão da matéria de facto, concretamente:
- A insuficiência da matéria de facto, dada como provada para a
condenação do recorrente, o que, aliás, não se verifica conforme dito
em 20;
- A contradição insanável na fundamentação ou entre esta e a decisão a
propósito dos factos provados sob o artigo 1º a 68º dos factos provados,
por um lado, e o facto a) e ab) dos factos não provados;
- A contradição insanável na fundamentação entre os factos supra
indicados;
- O erro na valoração da prova pelo Tribunal de 1.ª instância, porquanto
a decisão recorrida é o acórdão do TRL e não a decisão da 1.ª instância;
- A falta de fundamentação relativamente à matéria dada como assente
sob o artigo 1º a 68º dos factos provados, porquanto a decisão recorrida
não é a da 1.ª instância e o acórdão do TRL, que nessa parte é
irrecorrível, entendeu que não há falta de fundamentação.
22. Porque no caso o recurso para o STJ não é um recurso em matéria
de facto está votada ao insucesso a pretensão do recorrente de analisar
«[t]oda prova documental junta aos autos, em especial o documento de
fls 257 (registo de pedido de passaporte junto do SEF Aeroporto ...) e
consequente prova documental; A prova pericial – relatório de autópsia
Filmagens e fotogramas recolhidos do sistema de videovigilância do ...
do dia 15 de Março de 2020. (…) [o] cotejo com o teor dos
depoimentos prestados pelas testemunhas FF (..., 00:01 a 35:02), KK
(... 00:51:06) e JJ (...» etc. etc.
23. É ininteligível a alegação de «contradição insanável na
fundamentação expendida a propósito da subsunção da matéria de
facto ao preenchimento dos elementos objectivos e subjectivos dos tipos
de crimes de que foi condenado», quando, no caso, os factos provados
preenchem os ilícitos típicos por que o recorrente foi condenado.
Acresce que o nexo de causalidade entre a ação e o resultado consta e
está estabelecido na factualidade assente.
24. Ao recorrente não assiste legitimidade para invocar a nulidade da
prova relativamente ao telemóvel com o número SIM ...43, utilizado
pela cidadã II, por violação do disposto na alínea b) do n.º 4 e 6 do
artigo 15º da Lei do Cibercrime conjugado com os artigos 253º e 126º,
n.º 3 do Código de Processo Penal. Reitera-se o já dito ao recorrente na
decisão recorrida:
«Com efeito, como retro ficou explicitado, o cartão SIM com o nº ...43
chegou a estar inicialmente associado ao recorrente, por ter sido um dos
nºs de contacto que forneceu ao Serviço de Estrangeiros e Fronteiras
quando do pedido de passaporte que efectuou, o que conduziu à
intercepção das respectivas comunicações, após prolacção de despacho
judicial.
Mas, posteriormente apurou-se nos autos que o mesmo pertencia a II –
avó paterna do recorrente -, que o utilizava, pelo que foi cessada a
intercepção, por destituída de interesse.
Por outro lado, conforme se pode constatar do “Termo de
Consentimento” de fls. 1249, II autorizou expressamente e por escrito “
a Polícia Judiciária a recolher para o presente Inquérito todos os
elementos relevantes relativos ao número de telefone ...43, da
operadora NOS, acima referido, incluindo registos de chamadas e de
mensagens e faturação detalhada, referentes ao primeiro trimestre do
ano 2020.”
E, como se mostra patente no acórdão censurado inexistem dados de
tráfego e de localização celular referentes a esse cartão que tenham sido
tomados em conta para a formação da convicção dos julgadores da 1ª
instância quanto à culpabilidade do recorrente.
De onde, inexiste valoração de prova proibida ou nulidade do
processado, não ocorrendo obliteração do artigo 32º (de que o arguido
não concretiza sequer qual a norma que entende ter sido violada em
concreto), da Constituição da República Portuguesa».
Acresce que constituindo essa questão matéria de facto foi
definitivamente arrumada pela decisão do TRL.
25. Quanto à alegada violação dos direitos de defesa do recorrente BB
em consequência da ausência da junção da prova documental,
contrariamente ao alegado e como o recorrente acaba por admitir, dos
elementos pedidos, os disponíveis foram fornecidos e juntos. Essa
questão de facto foi decidida pela 1.ª instância e teve posterior
pronúncia do TRL. Como questão de facto, não cabe no âmbito no
âmbito de cognição deste STJ. De qualquer modo não há qualquer
omissão de diligências essenciais para a descoberta da verdade. A
existir, como ocorreu durante a audiência de julgamento em 1.ª
instância, e oportunamente o recorrente não reagiu pelo meio próprio, a
mesma ficou definitivamente sanada (art. 120.º/2/d/3, CPP).

26. A pretexto de alegada «nulidade da análise aos metadados


efectuados aos números de telemóveis indicados nos autos» «por força
da aplicação do acórdão n.º 268/2022, do Tribunal Constitucional», sem
prejuízo do já referido na questão prévia, o que sindica o recorrente BB
é «a matéria dada com assente sob os artigo 1º a 68º dos factos
provados», porquanto segundo o recorrente «não se pode concluir, de
acordo com as regras de experiência comum e de acordo com o
princípio do homem médio, que o recorrente tenha praticado os factos
nos locais de ... (...), ... e ... quando no período temporal compreendido
entre o dia 13 de Março de 2020 e o dia 15 de Março de 2020, até às
09H45 o recorrente esteve com a namorada deste, JJ, na residência
desta sita na ..., a largos quilómetros dos locais onde ocorreram os
factos…». Discordando o recorrente da apreciação da prova realizada
em primeira instância e mantida pelo TRL, estamos em tema de
julgamento da matéria de facto que este STJ não pode revisitar, mesmo
na estrita medida dos vícios decisórios do art. 410.º/2, CPP, que, como
já decidido, não se verificam. Finalmente, a contradição insanável entre
os factos provados no artigo 1º a 68º dos factos provados e os factos a)
a ab) dos factos não provados, afere-se em vista do texto da decisão
recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum
(art. 410.º/2, corpo, CPP) e não em confronto com o depoimento de
testemunhas ou arguidos, como parece supor o recorrente.
27. Do recurso do arguido BB, sobra para apreciação a alegada
inexistência dos elementos objetivo e subjetivo do crime de homicídio.
O tipo objetivo do crime de homicídio consiste em matar outra pessoa.
O tipo subjetivo exige o dolo, em qualquer das suas modalidades, nessa
ação. Resulta dos factos provados (24.º, 39.º, 58 e 59.º) que em
consequência das agressões concertadas infligidas pelos arguidos AA,
BB e CC, à vítima esta sofreu lesões traumáticas de que veio a morrer.
Como provado em 62., a conduta foi dolosa: «agiram os arguidos AA,
BB e CC de forma voluntária, livre e consciente em comunhão de
esforços e intentos, cada um aceitando o resultado das condutas dos
outros, aproveitando-se da circunstância de se encontrarem em
superioridade numérica em relação a GG, que no momento se
encontrava sozinho, com o propósito concretizado de o atingirem no
corpo e de lhe tirarem a vida, não se coibindo de o atingir
repetidamente, com murros e pontapés e com a arma que empunharam,
causando-lhe ferimentos aptos àquele fim, bem sabendo que os golpes
que lhe infligiram, bem como as regiões do corpo que visaram e
atingiram, eram adequados a provocar-lhe a morte».
Recurso do arguido AA.
28. Consideram-se a qui reproduzidas as considerações gerais
constantes dos antecedentes n.ºs 11 a 20, relativas ao âmbito do recurso
e poderes de cognição do STJ, no caso de recurso do acórdão da relação
que conheceu de decisão do tribunal de 1.ª instância. Aplicando o
disposto nos artºs 432.º e 434.º, CPP, conclui-se que os pontos 4 a 22
das conclusões da sua alegação de recurso veiculam questões atinentes
à decisão da matéria de facto definitivamente decididas pelo TRL que
não compete a este tribunal revisitar.
29. Quanto à alegação, conclusiva, de violação do princípio in dúbio
pro reo, não é senão uma mera alegação sem que o recorrente tenha
convocada qualquer fundamento atendível. Segundo o princípio perante
uma dúvida deve decidir-se em favor do arguido. O in dúbio pro reo
não é uma regra de apreciação da prova, aplica-se, posteriormente,
quando depois de produzida e valorada toda a prova persiste uma
dúvida inultrapassável, um non liquet. Em todos os casos de
persistência de dúvida razoável após a produção e valoração da prova, o
facto em dúvida deve ser decidido em sentido favorável ao arguido
(Claus Roxin, Derecho Procesal Penal, 2000, p. 111 e ss, Jorge de
Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, 1974, p. 215). No caso, só o
recorrente afirma a dúvida, não resultando dos factos provados e não
provados e respetiva motivação, que relativamente aos pontos aqui em
causa o tribunal devesse ter feito aplicação do princípio.
30. Diz ainda o recorrente na conclusão 25.ª que «[o] tribunal recorrido
não ponderou nem considerou a inexistência de agravantes para através
delas e por interpretação à contrário segundo o princípio do tratamento
mais favorável ao arguido, par e caso entende-se pela condenação;
aplicar-lhe o mínimo legal do único crime que se entende o mesmo
tenha praticado com cúmplice: Recetação dos objetos vendidos por um
terceiro, testemunha destes autos (HH)». E na 26 ª. «O tribunal não
relevou factos que deu como provados para a demonstração da
reintegração social do arguido, as suas condições de vida, hábitos
regulares de trabalho; violou desta forma na determinação da medida da
pena o art 40º nº1 e 2º CP».
31. Confessamos dificuldade em descortinar o que, concretamente,
pretende o recorrente AA, o que não é esclarecido com a leitura, nessa
parte, do corpo da alegação. Arredada a questão da condenação por um
único crime de recetação, o recorrente realça o relevo, que a decisão
recorrida não deu, à sua reintegração social, às suas condições de vida,
hábitos de trabalho, em violação do art.º 40.º/1/2, CP.
32. Dispõe o art. 40.º em tema de finalidades das penas que:
1 – A aplicação de penas (…) visa a protecção de bens jurídicos e a
reintegração do agente na sociedade.
2 – Em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa.
Limita-se o recorrente a dizer que a decisão recorrida não deu relevo a
factos provados quanto à sua reintegração social, as suas condições de
vida e hábitos regulares de trabalho. Lendo a alegação do recorrente,
perpassa a ideia de que factos relevantes e favoráveis não foram tidos
em conta. Acontece que o recorrente não concretiza as omissões o que,
reconhece-se, não era tarefa fácil perante o retrato nada favorável
constante dos pontos 100 e ss. dos provados. Como a realçou a decisão
recorrida, citando a decisão de 1.ª instância que nesse relato segue os
factos provados, o AA apresenta[-se] como um indivíduo imaturo,
pouco ponderado e com grande necessidade de validação e
reconhecimento pelo grupo de pares, sendo neste que se sente
valorizado, zelando pela manutenção de uma boa imagem, quer pelos
bens materiais que apresenta, quer pela disponibilidade/lealdade para
ajudar os amigos. Por outro lado, aparenta também ser um indivíduo
que prioriza a satisfação das suas necessidades imediatas em
detrimento do respeito ou cumprimento das normas e regras vigentes,
denotando dificuldades na internalização de limites/regras, patentes ao
longo do seu percurso vivencial desde idade precoce, e mais
recentemente durante a sua permanência no estabelecimento prisional.
Perante este retrato é liminar a conclusão de que não assiste razão ao
recorrente.
33. Finalmente, diz o recorrente AA que «exerceu o direito ao silêncio,
e o tribunal recorrido e mesmo a 1ª instância consideraram
indiretamente que tal atitude seria negativa para o mesmo, ou seja, com
tal consideração mesmo que indireta, fez o tribunal a quo e a Relação
confirmou; uma prognose ilegal de como deverá ser tratado tal direito
constitucional».
34. Como se decidiu no ac. de 8.9.2022 deste STJ «[s]endo o arguido
senhor do direito ao silêncio (art. 343.º/1, CPP) a confissão e o
arrependimento são circunstâncias, quando se verificam, favoráveis ao
arguido; não confessando o arguido, nem demostrando arrependimento,
deixa de poder contar com essas circunstâncias favoráveis, mas isso não
equivale a que se contabilize como agravantes a não confissão e não ter
demonstrado arrependimento pela prática dos factos». Constitui «erro
na determinação da medida da pena considerar contra o arguido
circunstâncias derivadas do exercício de um direito».
35. Consta dos factos provados:
120. Não assumiu a prática dos factos e não demonstrou qualquer
arrependimento, não evidenciando ainda qualquer ressonância
emocional face à vítima e juízo de autocensura.
Não assumir a prática dos factos e não demostrar arrependimento não é,
obviamente, uma circunstância favorável ao arguido, mas resultando
esses factos do exercício de um direito, no caso, do direito ao silêncio e
sem que o seu silêncio possa desfavorecê-lo (art. 343.º/1, CPP) não
podem ser considerados contra o arguido. O direito ao silêncio não tem
só consagração legislativa ordinário sendo uma emanação do princípio
do Estado de Direito (Claus Roxin, Drecho Processal Penal, 2000, p.
108) Não confessando o arguido, nem demostrando arrependimento,
deixa de poder contar com essas circunstâncias favoráveis. Neste
contexto, considerar provado que o arguido não assumiu a prática dos
factos e não demonstrou qualquer arrependimento é um não facto para
efeito da escolha e medida da pena.
36. O recorrente sustenta, como vimos, que a decisão recorrida
considera indiretamente tal atitude e em sentido negativo. Lida a
decisão recorrida, do seu texto não se descortina premissa onde possa
radicar violação – mesmo na vertente de consideração indireta… – do
direito ao silêncio, concluindo-se que o provado no ponto 120, não foi
valorado contra o arguido.
III
Decisão:
Acordam em rejeitar os recursos na parte em que impugnam o
julgamento da matéria de facto; no mais, em julgar improcedentes os
recursos dos arguidos AA e BB.
Custas pelos arguidos, fixando-se a taxa de justiça em 8 (oito) unidades
de conta, para cada um deles.
Supremo tribunal de Justiça, 03.11.2022.
António Gama (Relator)
João Guerra
Orlando Gonçalves
Eduardo Loureiro (Presidente de seção)

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