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Acórdãos TRC Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra

Processo: 94/14.1T8LRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA TERESA ALBUQUERQUE
Descritores: INCAPACIDADE ACIDENTAL
ÓNUS DA PROVA
ANULAÇÃO DO ACTO
VÍCIO DE FORMA DA DECLARAÇÃO
NULIDADE
ROGADO
Data do Acordão: 22-10-2019
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA – J.C. CÍVEL DE LEIRIA – JUIZ 3
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE REVOGADA
Legislação Nacional: ARTºS 257º E 947º DO C. CIVIL; 41º, Nº 2, 70º, Nº 1, ALS. C) E E), E Nº 2, E 154º DO CÓD.
NOTARIADO
Sumário: I - Não incumbe ao A. fazer prova inequívoca de que a doadora no
momento da celebração da doação não se encontrava na plenitude
das suas faculdades intelectuais, mentais e cognitivas que lhe
permitissem entender o sentido da sua declaração negocial, mas
apenas demonstrar ser altamente provável que assim tivesse sido,
visto que a prova stricto sensu se basta com essa alta probabilidade.
II - Na incapacidade acidental há declaração e há vontade, mas esta
apresenta-se, no momento da prática do acto, viciada por
insuficiente esclarecimento e liberdade.
III - Tendo-se provado que a doadora, no dia e hora da doação, não
tinha o discernimento e a vontade suficientes para proceder à
doação em causa, e tendo-se provado, igualmente, que essa falta de
discernimento e vontade eram notórias, impunha-se, à luz do art
257º C. Civil, a anulação de tal doação.
IV - Mas a doação em causa, alem de anulável, mostra-se também
nula por sofrer de vício de forma, na medida em que tendo sido
realizada por documento particular, este carecia, por razões de
forma (cfr. art 947º CC, na redacção do DL 116/2008, de 4/7, e arts
22º e 24º desse DL), e de conteúdo (arts 373º/1, 3 e 4 CC, visto que a
doadora não podia assinar e não sabia ler), de ser autenticado e se
verifica que o termo de autenticação se mostra ele próprio nulo.
V - Com efeito, na sua segunda folha, e na 1ª linha desta, está
rasurada uma data, não tendo tal rasura obedecido ao disposto no
nº 2 do art 41º CN, o que, nos termos da al c) do nº 1 do art 70º e nº
2 desta norma, implica a nulidade do acto notarial em causa.
VI - Por outro lado, não foi ressalvado todo o texto entrelinhado
que se encontra entre a expressão «Este termo foi lido e explicado o
seu conteúdo aos outorgantes» e as assinaturas, o que implica que
todo esse texto se tenha por não escrito, e que, consequentemente,
não conste do termo de autenticação o nome completo, a
naturalidade, o estado e a residência do rogado, e tão pouco, e mais
relevantemente, a menção de que o rogante confirmou o rogo no
acto da autenticação, tudo em desarmonia com os arts 152º e 154º
do CN.
VII - A não confirmação, perante o notário, da assinatura a rogo,
acarreta a sua invalidade e, por acréscimo - já que ela é elemento
integrante essencial e formalidade ad substantiam do documento
particular onde consta - a nulidade da declaração negocial neste
ínsita — art°s 373º, n°s 1 e 4, 220º e 286º do C. Civil e 154° do C.
Notariado, outra não podendo ser a conclusão perante a
importância que no acto em causa o rogante desempenha.
VIII - Ao rogado deve atribuir-se uma posição idêntica à do
rogante/outorgante, na medida em que, por definição, a assinatura
daquele é destinada a suprir a falta da assinatura deste, pelo que é
natural que a falta de assinatura do primeiro tenha o mesmo efeito
do da segunda, devendo assim entender-se, nos termos da alínea e)
do nº 1 do artigo 70º do CN, que a falta de assinatura do rogado no
termo de autenticação é causa de nulidade do mesmo.
IX - É causa de nulidade do acto notarial a circunstância da rogada
ser funcionária do solicitador autenticador do acto, pois se, nos
termos do nº 2 do art 71º do CN, a incapacidade ou a inabilidade
dos intervenientes acidentais determina a nulidade do acto notarial
- sendo que é causa de incapacidade ou inabilidade relativamente a
«abonadores, intérpretes, peritos, tradutores, leitores ou testemunhas»
a circunstância de, nos termos da al d) do art 68º do CN,
corresponder nessas pessoas a qualidade de funcionários em
exercício no cartório notarial - ter-se-á de concluir, por maioria de
razão, que será causa de nulidade do acto notarial a circunstância
da rogada ser funcionária do solicitador autenticador do acto.

X - Esta nulidade não pode ser sanada ao abrigo do art 71º/3 al c)


do CN, visto que a rogada tem uma função única, que se move num
plano superior ao daqueles intervenientes acidentais, pelo que a
idoneidade destes não pode suprir a falta de idoneidade desta.
Decisão Texto Integral:

I – M..., interpôs ação declarativa de processo comum contra G... e I...,


pedindo que a condenação das mesmas a:
a) reconhecerem que o documento particular de doação outorgado a seu
favor padece de vício de forma, por falta de cumprimento dos requisitos
legais do termo de autenticação que o compõe e, em consequência, ser
aquele declarado nulo;
b) para o caso de assim não se entender, sejam as mesmas condenadas a
reconhecerem que o contrato de doação outorgado a favor delas foi
efectuado sem que a A... tivesse consciência do seu conteúdo ou
pretendesse a ela vincular-se e, em consequência, ser o mesmo
declarado nulo;
c) ou ainda serem as RR. condenadas a reconhecerem que, na data e no
momento em que foi outorgada a doação por A... a favor delas, esta se
encontrava incapacitada de entender e querer, designadamente quanto
ao sentido das declarações que prestou e à vontade de a elas se vincular
e, por consequência, seja declarada a anulação da doação outorgada a
favor delas, RR., condenando-se as mesmas a restituírem à herança da
doadora todos os direitos/bens doados de que beneficiaram;
e) e que, em qualquer caso, seja ordenado o cancelamento de todos os
registos a favor das RR. constantes dos prédios registados a favor da
doadora ou da herança ilíquida e indivisa aberta por óbito do seu
falecido marido, inscritos nas competentes Conservatórias de Registo
Predial.
Alegou, em síntese, que ela e as RR. são irmãs e filhas de A..., que veio
a falecer em 23/11/2013, viúva, intestada, e deixando-as como únicas
herdeiras, e que a mesma, em 23/10/2013, celebrou no Hospital de
Leiria, no respectivo serviço de urgências, onde dera entrada na
véspera, um contrato de doação às RR. do quinhão hereditário e da
meação que lhe pertencia na herança aberta por óbito de seu marido, e
pai daquelas, tendo tal documento sido assinado a rogo, constando dele
a impressão digital da donatária e a assinatura, como rogada, de P...,
bem como a das duas RR., como beneficiárias e segundo outorgantes,
contrato este que foi acompanhado de termo de autenticação realizado
por solicitador presente. Sucede que este termo não contém todas as
menções necessárias para que seja considerado válido, nomeadamente
no que respeita à identificação do rogado, nos termos previstos na lei,
pois constata-se que no mesmo foi aposto, por punho do Sr. Solicitador,
a menção do nome, local de residência e estado civil da rogada (P...),
que aquele refere como sendo sua conhecida, mas não consta a
naturalidade da mesma, a morada completa e ainda a forma como
efectivamente foi verificada a sua identidade (art 46º/1 al. d), do Código
do Notariado), sendo manifestamente insuficiente a menção de “minha
conhecida”, bem como, a rogada não assinou o mesmo, como se
impunha, concluindo, por isso, ser o termo de autenticação em causa
nulo por vício de forma, mais referindo que a mencionada nulidade
retira ao documento particular (deficientemente autenticado) a aptidão
para se considerar o contrato de doação validamente efectuado,
atendendo ao disposto no art 22º do Decreto-Lei 116/2008, de 04 de
Julho, sendo a mesma nula por falta de cumprimento dos requisitos
legais, devendo a nulidade em causa ser declarada e em consequência, a
doação efectuada ser considerada inválida e sem qualquer efeito.
Mais alegou que o contrato de doação é igualmente nulo, na medida em
que, à data de 23/10/2013, a doadora não se encontrava capaz de
entender e querer, pois que entrara no serviço de urgências do Hospital
de Leiria na véspera, e pelas 9h 10 m do dia 23 o médico que a
observou classificou o estado da doente como de “prognóstico muito
reservado”, tendo referido à aqui A. e à 1ª R. que a situação clinica da
doente era muito grave e que esta poderia vir a falecer a qualquer
momento, tudo indicando – desde logo o facto do termo de autenticação
se encontrar aposto em inscrição caligráfica manuscrita e de não se
mostrar possível ou razoável a presença de oito pessoas num espaço
físico como o das urgências – que o contrato em causa foi “pré-
fabricado”, não tendo a doadora intervindo na elaboração do respectivo
texto que, aliás, não entenderia, muito menos no estado em que se
encontrava, tendo-lhe apenas sido colhida a sua impressão digital.
Ainda que assim não se entenda, deverá concluir-se pela anulabilidade
do dito contrato, em função da notória incapacidade da doadora,
referindo, para o efeito, a A., que ela e a sua irmã no dia da realização
do mesmo tinham verificado o estado de confusão e desorientação em
que a mãe se encontrava, sendo notório que esta não se encontrava
capaz de prestar quaisquer declarações. Mais refere que o médico que a
examinou nesse dia, Dr. ..., confirmou o estado confusional da paciente,
avançando que a situação de saúde desta era muito grave. Entende, por
isso, a A. que a incapacidade estava medicamente identificada e era
notória, pelo que no momento da celebração da doação existia uma
manifesta incapacidade por parte de A... para entender e querer o
sentido da declaração negocial que formalmente prestou com a
aposição de impressão digital e assinatura a rogo.
Contestaram ambas as RR, em separado, alegando, em suma, que a
doadora, de acordo com o registo clínico, estava “consciente e
colaborante”, e que, apesar do seu estado grave de saúde, a mesma
sempre esteve consciente nos dias 22 e 23 de Setembro, com reacção à
estimulação e tentando colaborar com a equipa médica, tendo a
necessária capacidade para entender e querer a declaração negocial que
prestou, sendo, por isso, que, no momento em que fez a doação estava
consciente e lúcida para entender o conteúdo do acto em causa, o qual,
para além de ter lido, o solicitador também explicou, sendo que a
mesma referiu a terceiros e ao solicitador que queria fazer aquela
doação e que há muito a queria fazer, tendo insistido com as RR. para
que a mesma fosse concretizada. Referem ainda que os médicos, ...,
fizeram os necessários exames para averiguar o estado mental da
doadora - a sua capacidade de entender e o domínio da sua vontade.
Relativamente aos vícios do termo de autenticação as RR. alegaram que
não se encontra verificada qualquer nulidade, porque apenas podem
ocorrer as nulidades taxativamente previstas no artigo 70.º do CN,
vigorando o princípio da tipicidade, sendo que, nos termos do art 152º
CN, não tem sequer que constar do termo de autenticação a assinatura
da rogada.

Foi realizada audiência prévia, na qual, gorada a conciliação das partes,


foi proferido despacho saneador e seleccionada a matéria de facto.
Realizada a audiência final, foi, na sua pendência, ordenado pelo Exmo
Juiz a realização de uma perícia singular.
A fls 659 encontram-se as conclusões dessa perícia, relativamente às
quais veio a incidir subsequente esclarecimento por parte do perito.

Após foi proferida sentença que julgou a ação parcialmente procedente,


condenando as RR. a reconhecerem que no momento da realização da
doação a favor delas, por A..., esta se encontrava incapacitada de
entender e querer o sentido das declarações que prestou e à vontade de
a elas se vincular, e por assim ser, declarou anulada a doação outorgada
em 23 de Outubro de 2013 a favor das RR., e, em consequência,
condenou-as a restituírem à Herança da doadora A... todos os
direitos/bens doados de que aquelas beneficiaram, ordenado ainda, em
consequência, o cancelamento de todos os registos a favor das RR.
constantes dos prédios registados a favor da doadora ou da herança
ilíquida e indivisa aberta por óbito de seu falecido marido, inscritos nas
competentes Conservatórias de Registo Predial, absolvendo as RR. dos
demais pedidos formulados, condenando em custas ambas as RR. (cfr.
art. 527º/1 do CPC).
II – Do assim decidido, apelou a R. G..., que concluiu as respectivas
alegações nos seguintes termos:
...
xlvi. Termos em que deverá a sentença proferida ser revogada e
substituída por outra que, dando como provados os factos constantes de
I a VI retro referidos e como não provados os factos A) a E)
[igualmente retro-referidos], absolva as Rés do peticionado, com as
legais consequências.

Apresentou a A. contra alegações à apelação das RR., em que conclui,


em síntese, no sentido de que se deve manter inalterada a matéria de
facto, improcedendo o recurso apresentado.
IV - E, por sua vez, recorreu subordinadamente, concluindo as
respectivas alegações do seguinte modo:
....
20- Deve, por todo o exposto, ser julgado procedente o presente
Recurso, condenando-se as Recorridas, e caso mereça provimento o
recurso já apresentado pela Recorrida G..., a reconhecer que o
documento particular de doação outorgado a favor daquelas padece de
vício de forma, por falta de cumprimento dos requisitos legais do termo
de autenticação que o compõe, atendendo ao vício de nulidade de que
padece;
21 -Nestes termos, deve ser dado provimento ao presente recurso, por
provado, e em consequência, condenar-se as Recorridas, a reconhecer
que o documento particular de doação outorgado a favor daquelas,
padece de vício de forma, por falta de cumprimento dos requisitos
legais do termo de autenticação que o compõe, atendendo ao vício de
nulidade de que padece, tudo com as legais consequências.

A R. produziu contra-alegações à apelação subordinada da A., que


concluiu nos seguintes termos:
...
XVI – Termos em deve o presente recurso subordinado ser julgado
improcedente, com as legais consequências.

V – O tribunal da 1ª instância julgou provados os seguintes factos:


...
IV – Do confronto da decisão recorrida, com as conclusões de uma e
outra das apelações, advêm para apreciação, correspondendo ao objecto
desses recursos, as seguintes questões:
- Na apelação da R. G..., a alteração da matéria de facto no sentido por
ela pretendido, e saber se em função dessa alteração se impõe a
improcedência do pedido no referente à anulação do contrato de
doação; e se, de todo o modo, a decisão de custas deve ser alterada.
-na apelação da A., se o termo de autenticação se deve ter como nulo e
em consequência dessa nulidade, se deve ter nulo o contrato de doação.

Pretende a R/apelante que este Tribunal, essencialmente em função da


consideração das conclusões da perícia que entende que o tribunal a
quo desconsiderou, altere a matéria de facto, de tal modo que julgue
como não provados os factos 41 a 45 da mesma, e, em contrapartida,
provados os respectivos factos constantes das als a) a e) e g).
Concreta e respectivamente:
...
Para a reavaliação da prova no referente aos pontos de facto
impugnados importa ter presente o conteúdo do relatório da perícia
realizada nos autos e, naturalmente, o depoimento das testemunhas, mas
não apenas do convocado pela apelante – o de ... – mas também os das
testemunhas ...
Importando, antes de mais, e para o efeito, fazer acrescer à matéria de
facto provada as seguintes circunstâncias factuais extraíveis do
processado e do conteúdo do relatório pericial:
- O Exmo Juiz a quo, que determinou oficiosamente a realização da
perícia, fez-lhe corresponder o seguinte objecto: saber se no momento
da celebração da escritura de doação realizada no dia 23/10/2013,
considerando o quadro clinico objectivo resultante da documentação
clinica, A... estava com a necessária capacidade e consciência de
entender e querer o sentido da declaração negocial que formalmente
prestou com a aposição de impressão digital – assinatura a rogo?
-Determinou que se solicitasse à Ordem dos Médicos em Lisboa a
indicação de um médico da especialidade que a mesma entendesse ser o
mais adequado para a realização da perícia em causa, considerando o
seu objecto – acta da sessão de julgamento de 23/6/2016, cfr fls 609 –
determinando ainda que lhe fossem remetidos os documentos de fls 55
a 68, fls 551 e 552, fls 383 a 386 e da escritura constante de fls 50 a 52
(que se referem, respectivamente, às observações registadas no serviço
de urgência geral referentes à falecida A..., desde a sua entrada no
hospital até 24/10/2013, bem como dos fármacos ministrados, o
resultado de análises feitas à mesma pedidas no dia 23, a nota de alta, o
contrato de doação e o respectivo termo de autenticação).
- A fls 634 mostra-se junta a resposta da Ordem dos Médicos, na qual se
refere; «…encarrega-me o Senhor Bastonário de informar que com os
dados fornecidos não é possível à Ordem dos Médicos indicar qualquer
especialista como perito para o processo».
-Tendo sido solicitada à referida Ordem informação a respeito «dos ou
dos elementos necessários para poder ser indicado medico idóneo para
a concretização da perícia /parecer pretendido (para avaliação da
capacidade) fazendo-se destacar que a visada faleceu, e que, por isso,
resta apenas a análise dos registos clínicos da mesma à data dos
factos», veio a mesma informar, a fls 648, que «(…) consultado o
Colégio de Medicina Interna este nos informou que “o Conselho
Directivo do Colégio de Medicina Interna, na sua última reunião,
analisou o pedido de parecer acerca da capacidade de A... para assinar
documentos, entendendo que um parecer dessa natureza exige um
cuidadoso exame psiquiátrico, o que não se enquadra no âmbito do
nosso Colégio. Além disso, pela consulta dos dados do processo clinico
que nos foram fornecidos, em que não consta parecer pericial do foro
da psiquiatria, não nos é possível emitir opinião fundamentada como
especialistas de Medicina Interna».
- Em função da demora da Ordem dos Médicos a responder, o Exmo
Juiz a quo tinha já, entretanto, determinado, que se averiguasse junto do
Centro Médico-Legal Prof. Dr. ... se era possível realizar a perícia
solicitada, e tendo este respondido positivamente – fls 645 –, perante a
indisponibilidade manifestada pela Ordem dos Médicos, o Exmo Juiz
atribuiu a tal Centro a realização da referida perícia – fls 649.
- Em 3/11/2017 foi junto aos autos o relatório da perícia efectuada.
- Do item “DISCUSSÃO”, constante da avaliação efectuada, consta o
seguinte: “O compromisso cognitivo é condicionado pela alteração
hemodinâmica, e é perfeitamente possível dada a flutuação do estado
de consciência e a melhoria progressiva ao longo de 48 horas e
atendendo à natureza tratável do choque séptico e forma reversível
como compromete as capacidades cognitivas do individuo, concluir-se
que é possível que a doente estivesse capaz de compreender o ato em
que participou; no entanto, acrescento que não consta da
documentação nenhuma observação do estado mental da paciente ,
nem está expressa a hora da assinatura, o que é relevante neste caso ,
esclarecimentos que poderão ser solicitados aos dois peritos médicos
que foram intervenientes .
Relativamente às análises é natural que a melhoria clínica possa
anteceder a melhoria laboratorial, pelo que a observação clinica é de
primazia.
Na altura do internamento no SU, a intervenção fulcral seria reverter a
situação clinica, pelo que os dados fornecidos não se focalizaram na
observação da capacidade cognitiva, nem na capacidade em termos de
pensamento, sendo por isso muito difícil um parecer á posteriori».
Do item “CONCLUSÕES” constante da avaliação efectuada, consta o
seguinte: “1. Diagnóstico compatível com quadro de choque
séptico/urossépsis e pneumonia esquerda. 2. Existe nexo de causalidade
entre o ocorrido e o compromisso cognitivo. 3. Ao longo das 48 horas
(dia 22 a 23/10/2013) houve flutuação do estado de consciência e
melhoria progressiva ao longo deste período. 4.Atendendo à natureza
tratável do choque séptico e forma reversível como compromete as
capacidades cognitivas do individuo, pode concluir-se que é possível
que a doente estivesse capaz de compreender o ato em que participou.
5. Pelo que a resposta ao quesito de saber se “no momento da
celebração da escritura de doação realizada no dia 23/10/2013,
considerando o quadro clinico objectivo, resultante da documentação
clinica fornecida, relativa a A..., e se esta estava com a necessária
capacidade e consciência de entender e querer o sentido da declaração
negocial que formalmente prestou com a aposição de impressão digital-
assinatura a rogo?” A resposta é sim, é possível que estivesse, embora
tal não possa ser inequivocamente afirmado com base na
documentação fornecida”.
- Foi solicitado ao Exmo Solicitador a indicação da hora da realização
da escritura e, tendo este respondido que «terá sido entre as 16 h e 30 e
as 17 h e 30, uma vez que a minha funcionária,..., me acompanhou e
assinou a rogo da doadora no contrato em apreço, e o seu horário de
expediente é até às 18 h», pediu-se ao Sr Perito que esclarecesse «se,
considerando que a doação em causa foi realizada entre as 16h30m e
as 17h30m, bem como que, como consta do acto de doação, a visada
não podia assinar, se tais factos alteram as conclusões do relatório
apresentado».
- O esclarecimento solicitado foi prestado pelo Sr. Perito, por
comunicação de 18/04/2018, referindo o mesmo: «Em resposta à vossa
referência ..., relativa a processo comum 94/14.1TLRA, em que foi
solicitado pedido de esclarecimento, relativo a informação dada a
posteriori de que a doação foi realizada entre as 16.30 e as 17.30 do
dia 23.10.2013, tendo sido feita assinatura a rogo com aposição de
impressão digital da visada. Questiona-se se tais factos alteram a
conclusão do relatório. A resposta é não. Mantenho as conclusões
elaboradas no parecer de 15/10/2017. Conforme descrito no relatório
(página 4), no decurso do dia 23 o descrito no diário clinico é de que a
paciente estaria consciente, ao contrário do escrito no dia anterior.
Esta constatação relatada no diário clinico foi feita por mais de uma
técnico de saúde. Para além deste aspecto, quando da realização da
doação estariam presentes dois médicos que terão constatado a
capacidade da paciente em questão (A...)».
Entende a R/apelante ter sido «inexplicavelmente» desconsiderado o
valor probatório do resultado desta perícia - conclusão 6ª - insistindo
nessa «inexplicável desconsideração» na conclusão 27, onde sugere
que o Exmo juiz a quo não teria justificado o seu afastamento
relativamente às conclusões da perícia.
Ora, não é exactamente isso que resulta da fundamentação da decisão
da matéria de facto, onde o Exmo Juiz a quo, reportando-se às
conclusões da perícia, pôs o acento tónico na circunstância de, do
esclarecimento fornecido pelo perito, resultar que o mesmo, afinal, terá
concluído, como concluiu, muito em função da presença no acto
notarial de dois médicos que «terão constatado a capacidade da
paciente em questão», referindo concretamente aquele Julgador: «Ou
seja, esta última afirmação do perito significa que na sua perspectiva
já estavam presentes dois médicos que constataram a capacidade da
visada; o problema é que o perito nessa altura não estava na posse do
conhecimento da circunstância de que os dois médicos (Dr....) que
atestaram a sua capacidade não possuíam a necessária credibilidade,
pelas razões já acima expostas».
Como é sabido – e a apelante, apesar de tudo, não o oblitera - a prova
adveniente da perícia é livremente apreciada pelo tribunal - cfr art 489º
CPC - livre apreciação esta que significa que o juiz não está obrigado a
decidir em função do resultado da perícia, antes o deve conjugar com a
demais prova produzida sobre os factos que dela foram objecto,
podendo o seu juízo final a respeito desses factos vir a ser em absoluto
contrário ao advindo da perícia. O resultado de uma perícia não é nunca
vinculativo estando sempre sujeito à livre apreciação do julgador feita
perante o confronto de todas as provas produzidas. E se, de facto, deve
o julgador justificar o afastamento daquele resultado, não pode dizer-se
que o Exmo Juiz a quo não tenha sido claro relativamente às razões, em
função das quais, e no seu essencial, postergou o resultado pericial: as
testemunhas ... não mereceram do tribunal a necessária credibilidade.
No que respeita à testemunha ... é muito fácil compreender porquê,
visto que a mesma assumiu claramente no seu depoimento que não
verificou os registos clínicos referentes à paciente e que não procedeu a
uma mínima observação da mesma.
Com efeito, perguntada se tinha chegado ver a ficha clínica da paciente,
respondeu, «não, não cheguei a ver», e perguntado se analisou em que
estado estava a mesma, referiu, «Não, não analisei, não.» (…)
Repetindo essas considerações mais adiante -«Não, não, não, não.
Parte clínica não. (…) Não, não analisei a ficha clínica, não. Não
analisei ficha clínica nenhuma, não», referindo ainda que não
perguntou nada relativamente ao estado da mesma ao médico assistente
- apenas «falei com a doente». Toda a sua intervenção no acto em causa
resulta resumida nestas suas palavras: «Eu fui ao hospital, no final da
tarde, entrei e aproximei-me da cama da senhora, cumprimentei-a e
perguntei…, ela olhou para mim e eu disse, sabe quem eu sou, sei, e eu
disse, sabe o que é que eu venho fazer, sei, sei, vem ajudar-me a fazer
aquilo que prometeu, pronto». Tendo afirmado que, várias vezes, em
consultas domiciliárias, a A... lhe tinha pedido a sua colaboração para
atestar a sua lucidez em acto que era da sua vontade vir a fazer para
«corrigir uma injustiça» - afirmação esta que não se afigura, desde
logo, crível, na medida em que a própria médica em questão afirmou
que a doente sempre tinha estado lúcida e nenhum motivo tinha para
duvidar da sua lucidez… - a testemunha em causa justificou a sua
presença no acto em referência enquanto mero cumprimento de um
compromisso anteriormente assumido nessas visitas domiciliárias. Para
o efeito, entendeu bastar que a doente estivesse «lúcida», como
entendeu que o estava em função da pequena troca de palavras que se
referirá, tendo-lhe sido indiferente o conteúdo concreto do acto a
realizar, e de cuja aptidão para corrigir a injustiça que referira de que
aquela se queixara, também não cuidou minimamente, como resulta
destas suas afirmações: «A senhora está lúcida, a senhora falou
comigo, a senhora conheceu-me, portanto. A senhora soube o motivo,
portanto, de porque é que eu estava ali», referindo mais adiante: «(…)
depois houve uns senhores que fizeram lá uns papéis, não sei, pronto, e
eu assinei, em como a senhora estava… » Não escondeu a testemunha
em causa que era amiga da família há muito tempo (foi “médica de
família” da mesma) e que se prontificou a intervir no acto a pedido da
R. G..., que a contactou para esse efeito, de manhã, «para ir atestar a
sanidade da A...».
Justifica-se, pois, a observação do Exmo Juiz a quo a respeito da atitude
«algo displicente» desta testemunha, dando «de barato» que A... estaria
«perfeitamente lúcida, até porque já a conhecia».
Resulta assim esvaziada de conteúdo a abonação desta testemunha a
respeito da sanidade mental da «primeira outorgante» constante do
termo de autenticação, já que, como é por demais evidente, o que dela
se pretendia – que assegurasse a capacidade da paciente, naquele dia e
hora para proceder a uma doação – não foi cabalmente feito.
No que se reporta à testemunha ..., a sua não credibilidade não advém
de imediato do conteúdo do seu depoimento, mas da circunstância,
primeira, de ser, então, namorado da filha do solicitador (sendo à data
do depoimento já marido da mesma), e da sua presença no acto se dever
precisamente à solicitação deste (ainda que se desse o caso - que não foi
comprovado - desse médico estar efectivamente de serviço nesse dia e
hora, como referiu). A verdade é que, pese embora a muita
circunspecção com que depôs, aspectos houve no seu depoimento que
não conseguiu justificar: não sendo naturalmente simples o parecer que
lhe estava a ser confiado, e não podendo desconhecer a importância do
mesmo sobretudo perante a atitude displicente da outra médica
convocada para igual função à dele, a prudência e ponderação que fez
questão de mostrar ao longo do seu depoimento, justificariam que o não
tivesse fornecido sem se fazer valer de outra opinião médica, mais
ainda porque não podia desconhecer que sobre ele pudesse vir a recair
futura suspeição visto o seu laço com a filha do solicitador, autenticador
do acto. Não obstante, assumiu que não falou com qualquer médico do
hospital, apesar de, trabalhando nele, lhe ser certamente fácil aceder a
uma outra opinião, porventura mesmo dos médicos que tinham
acompanhado até aí o episódio de urgência em causa.
Por outro lado, veja-se que o resultado da perícia – para lá de, em
última análise, implicar o endossamento da responsabilidade para os
dois já referidos médicos – não implica, de todo, uma resposta positiva
à questão colocada. Afinal o que responde à questão de saber se, “no
momento da celebração da escritura de doação realizada no dia
23/10/2013, considerando o quadro clinico objectivo, resultante da
documentação clinica fornecida, relativa a A..., e se esta estava com a
necessária capacidade e consciência de entender e querer o sentido da
declaração negocial que formalmente prestou com a aposição de
impressão digital-assinatura a rogo?”, é que, «é possível que estivesse,
embora tal não possa ser inequivocamente afirmado com base na
documentação fornecida». Resposta esta que não correspondendo a um
«sim», acaba por nada ser, na medida em que sendo possível que
estivesse com a necessária capacidade e consciência de entender e
querer o sentido da declaração negocial, é igualmente possível que não
estivesse … o que nos remete para a mesma dúvida de que se partiu.
Há ainda outra circunstância que, a nosso ver, não pode deixar de
desvalorizar o resultado da perícia, e que advém do facto da Ordem dos
Médicos ter entendido «pela consulta dos dados do processo clinico
que nos foram fornecidos, em que não consta parecer pericial do foro
da psiquiatria não lhe ser possível emitir opinião fundamentada como
especialistas de Medicina Interna». Se não foi possível para um
Colégio de Medicina Interna aceitar dar um parecer da natureza do
pretendido perante a ausência indiscutível de um («cuidadoso») exame
psiquiátrico, haver-se-á de concluir que o parecer em causa – de modo a
ser conclusivo - não seria possível.
Ora, em face das dúvidas que o relatório pericial necessariamente
propicia e em face da falta de credibilidade, já analisada, dos dois
médicos que «abonaram, sob compromisso de honra, a sanidade
mental da primeira outorgante», como consta do termo de autenticação,
emerge necessariamente a circunstância de os médicos que observaram
A... - certo que, me momentos temporais algo antecedentes ao acto em
causa – ..., terem entendido ser altamente improvável que a mesma
tivesse a necessária consciência para realizar negócios jurídicos como a
doação em causa.
Veja-se com brevidade.
... – médico internista, autor da referência na ficha clinica da A..., pelas
9,46, da expressão «prognóstico muito reservado», cfr fls 61 dos autos -
referiu, logo no início do seu depoimento: «Esta senhora foi uma
senhora que de facto nos foi transmitido de manhã que tinha uma
situação clínica muito preocupante, talvez fosse a situação mais
preocupante, pelo menos na área amarela onde esta senhora se
encontrava (…) Estaria numa situação algo critica, atendendo a que o
diagnóstico mais provável na altura, que nos foi transmitido, seria um
choque séptico, um choque séptico é uma situação grave, uma situação
de hipotensão severa em que há compromisso de diversos órgãos e esta
senhora tinha particularmente compromisso na função renal, portanto
era uma senhora que estava no limite da falência renal total e portanto
de eventual morte, em falência renal». Confirmou o médico em causa
que pela hora do almoço falou com a família – como resulta da ficha
clinica da doente, onde se refere, p 66 dos autos, pelas 12,55: «Mantém
vigilância. Prognóstico explicado às filhas» -referindo ter a vaga ideia
que se dirigiu para esse efeito a duas pessoas. Explicou essa sua atitude
referindo que «devemos informar a família que o fim de vida está
próximo, não sabemos dizer a que horas». Foi esta testemunha do
entendimento – pese embora não tenha feito uma avaliação à paciente
em ordem a avaliar o seu raciocínio (« a minha avaliação foi
directamente ao órgão, ao dano de órgão, particularmente à dinâmica
renal e à parte respiratória, essas são as funções vitais que me importa
a mim manter») – que, com um valor de 7.4 de creatinina e com um de
ureia de 44.9, «a capacidade decisória poderia estar alterada, poderia
não estar alterada», opinando no sentido de 60%, 40% , num sentido
ou no outro. Sublinhando que «uma pessoa no estado da A... tem
flutuações, pode, nesta circunstância, neste quadro clínico, pode ter
alterações do estado de consciência», concluindo que uma doação feita
por pessoa no estado daquela paciente implicava que tivesse de ser
«muito bem circunstanciado e muito bem documentado por quem teve
essa atitude (…) Eu diria, se eu tivesse de quantificar, eu diria e devo
sublinhar isso, quantificar uma coisa desta natureza é uma coisa muito
subjectiva, não é? mas transmitir aquilo que me parece ser o quadro
clinico da utente para este valor, admitiria um 60, 40 no sentido da
dificuldade em que a senhora tivesse de fazer esse raciocínio».
Perante a objecção das RR. de que o registo na ficha clinica da paciente
que se mostra mais próximo da hora em que teria sido realizada a
escritura – 16,36, fls 66 dos autos – referia «doente consciente, calma,
pouco comunicativa» e o anterior constante das 12,28 – fls 65 dos autos
- «doente consciente e colaborante, refere não ter dores abdominais»,
explicou a testemunha em referência que, «consciente não significa
lúcido (…): é capaz de localizar a dor, é capaz de se queixar da dor, é
capaz de dizer que a tem e eventualmente ser capaz de a classificar. Se
perguntarmos dói muito ou dói pouco, a pessoa pode eventualmente ser
capaz de o dizer».
... que observou A... no dia 23 pelas 16,42 e que fez constar da
respectiva ficha clinica, «Doente incapaz de fornecer história»,
«Prostrada, não reactiva a estímulos verbais, reage à dor», a respeito
da “consciência” mencionou, entre o mais: «Consciente…ora bem, eu
da minha interpretação, não sei o que é que eu escrevi, mas da minha
interpretação, o estado de consciência define a capacidade de um
doente estar ciente do meio que o rodeia e de si próprio (…)».
Precisando mais adiante: «Do ponto de vista neurológico, um doente
para estar consciente deverá ter noção de si e do meio e portanto não
basta estar vígil e alerta. Portanto eu distingo as duas situações (… )
Na minha interpretação o doente pode estar vígil, reactivo e comunicar,
mas se aquilo que diz for totalmente absurdo, desconexo e não fizer
sentido… o doente não está consciente». Concluindo que «o doente
está vígil, se está acordado, se está reactivo, se está de olhos abertos,
de uma forma muito grosseira (…). Outra coisa é eu comunicar com o
doente e ele dizer-me o seu nome, dizer-me o estado, que está no
hospital e saber o dia, isso é um doente que está consciente, orientado
no tempo e no espaço», explicando ainda, que, «quando digo que o
doente está consciente» (…) essa informação só se dirige à capacidade
cognitiva do doente saber que está ali e que está orientado do ponto de
vista de si próprio e do ambiente. Exclui se o doente tem capacidade de
fazer compras por exemplo, se tem capacidade de avaliar o seu
dinheiro se tem capacidade de nomeadamente assinar» (…) «Uma
coisa é uma doente estar consciente, sabe quem é, que idade tem, que
está ali, outra coisa é ter capacidade para ter autonomia nas decisões
do dia a dia, tomar conta do seu dinheiro, fazer as compras ou ter
noção do que é que é necessário para o fazer ou fazer», concluindo que
«uma doente consciente e colaborante é uma doente, analisando a
expressão é uma doente que está consciente de si e do ambiente, que
colabora naquilo que nós lhe pedimos, nomeadamente naqueles testes
que nós fazemos, levante os braços, aperte-nos os dedos, o doente
colabora nesse tipo de acções simples». Conclui, por isso: «Pode estar
consciente, mas para executar tarefas complexas num momento desses
acho difícil».
A respeito da conteúdo a dar a “consciente”, a opinião desta testemunha
coincide com a de ..., que foi a autora da acima mencionada referência
na ficha clínica de, «Doente, consciente e colaborante refere não ter
dores abdominais». Também para esta testemunha uma doente
“consciente” apenas significa que sabe responder com acerto a
perguntas muito simples, «sabe onde é que está? , como se chama, onde
mora, com quem mora, que dia é hoje?»
Com o que excluiu que a circunstância da ficha clinica referir a A...
como consciente implicasse que a mesma estivesse capaz de outorgar
um contrato.
..., médico, especialista em saúde pública, como é assinalado na
fundamentação da decisão da matéria de facto, «explicou no essencial
que 24 horas não é tempo suficiente para recuperação do estado de
consciência de A... considerando o seu quadro clínico». Com efeito,
explicou as consequências de um choque séptico, referindo entre o
mais: «Na minha opinião é que esta senhora desenvolveu um quadro de
uma sepsis, de uma septicémia, portanto uma infecção generalizada
com choque, portanto um choque séptico, que o choque
independentemente da causa, são cinco as causas que nós temos de
choque, todas têm uma coisa em comum, que é a alteração do estado
de consciência, que pode ser maior ou menor consoante a patologia e é
revertida ou reversível também, independentemente da susceptibilidade
individual de cada pessoa, da idade, das outras patologias que possam
estar associadas, mas em que os diferentes estados de choque são
reversíveis, uns, podemos dizer quase instantaneamente, mas há um
que nunca é instantaneamente, nem é em meia dúzia de horas, que é
caso do choque séptico. Porquê? Porque o choque séptico resulta de
atingimento por toxinas ou bactérias de, de um modo geral, de diversos
órgãos, nomeadamente o cérebro, pulmão, rim, fígado, e quando nós
temos choques conseguimos revertê-los, ou seja a pessoa está em
choque e num minuto conseguimos pôr a pessoa a falar, no choque
séptico isso nunca é possível (…) se a pessoa tem uma quantidade de
oxigénio muito baixa no sangue se está no sangue também não chega
ao cérebro e o principal alimento do cérebro é o oxigénio, cerca de 24
horas depois (…) a pessoa não pode estar lúcida».
Do que se veio de referir, dever-se-á concluir que a A. logrou provar ser
muito provável que no momento da realização do aludido contrato de
doação A... estivesse incapaz de prestar as declarações que constam do
respectivo documento, como se refere no facto 45.
Vê-se conveniência em intercalar aqui, a propósito do que se acabou de
referir, uma consideração de carácter jurídico para melhor se
compreender a prova em causa..
È sabido que no que respeita às relações entre a vontade exteriorizada
na declaração negocial e os efeitos jurídicos do negócio, ultrapassadas
que foram a teoria dos efeitos jurídicos e a dos efeitos práticos a esse
respeito, aceitando a doutrina como mais correcta a teoria dos efeitos
prático jurídicos, em função desta teoria assume-se que os autores dos
negócios jurídicos «têm uma vontade de efeitos jurídicos», isto é, têm
vontade de atingir certos resultados práticos, materiais, e têm vontade
que esses efeitos práticos sejam juridicamente vinculativos, «bastando
no entanto, uma representação global prática – de profanos – dos
efeitos jurídicos e fundamentais do negócio» - «Teoria Geral do Direito Civil»,
Mota Pinto, 4ª ed, p 463.
Cita Mota Pinto, em nota, Manuel de Andrade - que foi quem propôs a síntese daquelas duas teorias
opostas-quando refere que «a teoria dos efeitos prático jurídicos basta-se com a volição dos efeitos
jurídicos na sua consideração prática, como um mera representação “de profanos”.
O que significa, nas palavras de Pais de Vasconcelos, «que não é
exigível que tenham uma percepção dos efeitos jurídicos do negócio
próprio de especialistas; basta que dela tenham a consciência comum
de leigos» - «Teoria Geral do Direito Civil», 2012, p 357.
Para Castro Mendes, «a teoria dos efeitos prático jurídicos exige na
vontade funcional dois elementos - vontade dos efeitos práticos e
vontade de os submeter à ordem jurídica». «Teoria Geral do Direito Civil», ed
AAFDL,1973, p 114
Do que de vem de referir resulta que seria suposto que, no mínimo, A...,
no momento em que proferiu a declaração negocial em apreço,
compreendesse basicamente os efeitos práticos inerentes a tal
declaração. Repare-se, no entanto, que essa declaração não é a de doar
este ou aquele bem a A e a B, mas algo obviamente muito mais
complexo do ponto de vista prático e jurídico: tratou-se de doar a
(apenas) duas das suas três filhas, «livre de ónus ou encargos, com
dispensa de colação, o quinhão hereditário e a meação que lhe
pertence aberta por óbito do seu marido».

Continuando a apreciação da prova, há que referir ainda, que as RR.


prestaram declarações na audiência e nelas foram propositada e
repetidamente muito pouco explicitas relativamente à questão que lhes
foi colocada relativa à “logística” que terá permitido que oito pessoas
(as RR. donatárias, os dois peritos médicos, duas testemunhas, o
solicitador e a sua empregada) se tenham reunido na mesma hora
naquele inusitado local para o efeito em causa. Ficou-se a saber pelo
depoimento da testemunha ... que a sua presença lhe foi pedida pela R.
G... . Já a R. G... excluiu ter feito quaisquer contactos, referindo que
quem os fez foi a irmã; esta apenas admitiu ter telefonado ao
solicitador, referindo, para justificar esse seu telefonema, que a «doação
estava a ser preparada tempos antes». E é verdade, como o aponta a
Exma Juiza a quo na fundamentação da decisão da matéria de facto,
que a R. G... referiu que a mãe estava sentada na hora da doação e que a
R. I... referiu que a mesma estava deitada – contradição que no
enquadramento em causa não é despicienda, antes se mostra
significativa – acrescentando a R. G... que a mãe só não assinou,
«porque tinha fios nas mãos, não tinha óculos e estava muito trémula».
Mas o depoimento desta R. torna-se todo ele pouco credível quando
refere que «não lhes foi dito nesse dia que a mãe podia morrer»,
quando, como acima se mencionou, o Dr ... admitiu que o tinha feito,
dirigindo-se, segundo tem ideia, a duas pessoas da família, e essa
menção acaba por estar contida na ficha da paciente.
Impõe-se lembrar também que a prova “stricto sensu” – que é a que
está em causa nos factos em apreço - se basta com a probabilidade.
Referindo Teixeira de Sousa: «A prova stricto sensu não impede que o
tribunal forme a sua convicção com base na probabilidade estatística
da realidade do facto. O que é relevante é que o grau de convicção
permita excluir, segundo o padrão que na vida prática é tomado como
certeza, outra configuração da realidade que foi considerada
provada». De tal modo que um facto provável com esse grau de
convicção tornar-se-á um facto provado. Acrescentando: «Um facto
considerado provado com base numa regra de probabilidade é um facto
verdadeiro e não um facto provavelmente verdadeiro».
No mesmo sentido se pronuncia Anselmo de Castro, referindo: «Não se
trata de certeza absoluta, que elimine a possibilidade do facto não ter
ocorrido, nem também de mera probabilidade da sua verificação, mas
de algo intermédio – uma probabilidade forte (…) este será o grau de
certeza exigido para todos os casos em que a decisão haja de valer com
eficácia de caso julgado». - «Direito Processual Civil Declaratório», 1982,Vol III, p
344/345
Não é por isso correcto dizer-se, como o diz a apelante, que incumbia à
A. «fazer prova inequívoca de que a doadora A..., no momento da
celebração da doação, não se encontrava na plenitude das suas
faculdades intelectuais, mentais e cognitivas que lhe permitissem
entender o sentido da sua declaração negocial», e que essa prova não
foi feita.
È que não lhe incumbia tal prova – em termos, já se viu, de
inequivocidade- antes cabia às RR. em função da contraprova,
«neutralizarem» (a expressão é de Anselmo de Castro) aquela alta
probabilidade, «repondo o juiz no estado de dúvida ou incerteza
inicial», excluindo, por isso que, num quadro circunstancial como
aquele em que terá decorrido o acto em referência, a doadora, A..., no
momento da celebração da doação se não encontrasse na plenitude das
suas faculdades intelectuais, mentais e cognitivas que lhe permitissem
entender o sentido da sua declaração negocial.

Assim, em função do “grau” de prova exigível à A. – isto é, a medida


da convicção que é necessária para que o tribunal possa julgar
determinado facto como provado - face à prova produzida e acima
analisada, pode afirmar-se que a Drª. ... era médica de família de A... e
das relações pessoais de ambas as Rés e o Dr. ... era das relações
pessoais do solicitador que elaborou a doação, e que nem um nem outro
observaram A... de modo adequado e completo (facto 44 dos factos
provados); que no momento da celebração da doação – 23 de Outubro
de 2013, entre as 16h30m e as 17h.30m – existia uma manifesta
incapacidade por parte de A... para entender e querer o sentido da
declaração negocial que formalmente prestou com a aposição de
impressão digital e assinatura a rogo (facto 41 do factos provados); e
que o referido estado momentâneo de A... era conhecido de ambas das
Rés e de qualquer pessoa com normal diligência (facto 43 do factos
provado); bem como, que a realização da doação em causa, naquele
momento e lugar, foi previamente concertada entre as Rés, que
organizaram os actos necessários, contactaram o solicitador e a médica
de família da doadora, apresentando tal documento a A... que,
considerando o seu estado de saúde, não teve consciência do seu
conteúdo e nunca pretendeu a ele vincular-se (facto 42 dos factos
provados).
Pese embora do que se veio de decidir resulte genericamente a
improcedência da impugnação da matéria de facto também no que
respeita à matéria não provada que a apelante pretendia ver provada,
vejamos, no entanto, se algum segmento desta, merecerá a prova
pretendida.
Como é evidente de tudo o que se consignou não pode ter-se como
provado que no momento em que fez a doação a A... estava consciente
e lúcida para entender o conteúdo do acto em causa [facto a) dos factos
não provados]; igualmente, que, para além de ter lido, o solicitador
também explicou à doadora, de modo que esta percebesse, o conteúdo
da doação [facto b) dos factos não provados]; que o estado clinico de
A... não afectou as suas capacidades mentais [facto d) dos factos não
provados) e que os médicos, Drª. ..., fizeram os necessários exames
para averiguar a sanidade mental de A... e a sua capacidade de entender
e o domínio da sua vontade [facto g) dos factos não provados].
Também este Tribunal entende que não se provou a matéria dos factos
c) e e) da matéria de facto não provada, isto é, e respectivamente, que
A... referiu a terceiros e ao solicitador que queria fazer aquela doação
[facto c) dos factos não provados]; e que há muito que a A... queria
fazer aquela doação, tendo insistido com as Rés para que a mesma fosse
concretizada [facto e) dos factos não provados].
Com efeito, as referências feitas pelas RR. a estes aspectos, bem como
a feita pela testemunha ..., não mereceram credibilidade pelas razões já
referidas.
Por isso, improcede totalmente a impugnação da matéria de facto.

Tendo sido correta, do ponto de vista deste tribunal, a apreciação da


prova levada a cabo pelo tribunal recorrido, como se veio de constatar,
correta é também a subsunção dos factos provados ao regime da
incapacidade acidental.
Não podendo falar-se, em face dos factos provados, de falta de
consciência da declaração, como se pressuporia no primeiro pedido
formulado na acção - Tudo indica que o que a A. pretendeu, em primeira linha, foi excluir a
existência de qualquer declaração por parte da A..., pelo que, o que pretenderia ver reconhecido em
termos principais, seria que os documentos em causa – contrato de doação e termo de autenticação
– haviam sido fabricados: quer dizer, não apenas realizados previamente em relação à presença de
todas aquelas pessoas no hospital para o efeito em causa, mas que aquelas pessoas não teriam
sequer chegado a estar presentes no hospital, não tendo, no entanto, o pedido em referência sido
claro a respeito deste real desiderato.
Note-se, no entanto, que a prova não foi tal que permitisse a total exclusão do encontro das pessoas
em causa no hospital – ou pelo menos de parte delas – pois que a neta da A... e o seu companheiro,
respectivamente, ..., depuseram com credibilidade no sentido de A... ter referido «ter estado no
hospital um senhor todo de preto com uns papéis do Banco», e a testemunha ... pareceu credível no
que se referiu à sua presença no hospital. -
«sejam as mesmas condenadas a
reconhecerem que o contrato de doação outorgado a favor delas foi
efectuado sem que a A... tivesse consciência do seu conteúdo ou
pretendesse a ela vincular-se» - pois que a falta de consciência da
declaração implica que «a pessoa emita voluntariamente uma
declaração objectivamente negocial sem o querer fazer», por outras
palavras, que «o autor do comportamento declarativo actue sem
vontade ou, melhor até, sem a consciência de emitir uma declaração
negocial» - Castro Mendes, obra referida, p 231 dá o exemplo clássico de numa sala de leilões,
onde levantar o braço é tomado como lance, alguém levantar o braço mas para cumprimentar um
amigo -os factos enquadram-se facilmente na incapacidade acidental, em
que há declaração e há vontade, mas esta se apresenta viciada.
Diz o art 257º do CC, sob a epigrafe “incapacidade acidental” que: «1-
A declaração negocial feita por quem, devido a qualquer causa, se
encontrava acidentalmente incapacitado de entender o sentido dela ou
não tinha o livre exercício da sua vontade é anulável, desde que o facto
seja notório ou conhecido do declaratário», acrescentando o nº 2 que
«o facto é notório, quando uma pessoa de normal diligência o teria
podido notar».
Comenta Castro Mendes a respeito deste vício na vontade que «o
regime actual é de equiparação aos restantes vícios da vontade, até no
prazo: indefinidamente não estando o negócio cumprido; um ano a
contar do momento em que cessou a anulabilidade desde que o negócio
haja sido cumprido (art 287º)». - Obra referida, p 204
Já Mota Pinto assinala que «o novo Código prevê e regula a
incapacidade acidental, não na secção das incapacidades, mas entre a
falta e os vícios da vontade, dado o facto de não se tratar de uma
situação permanente do individuo, mas antes de um desvio no processo
formativo da sua vontade em relação às circunstâncias normais do seu
processo deliberativo».
Sendo a capacidade das partes um dos pressupostos do negócio
jurídico, é sempre suposto para a validade do mesmo, como o acentua
Pais de Vasconcelos, que as partes tenham capacidade de gozo, de
exercício e não se encontrem em incapacidade acidental; isto é, «não
haja deficiência, na prática do acto, de suficiente esclarecimento e
liberdade por parte do autor» - Obra referida, p 369/370, pois havendo, e
sendo essa falta ou deficiência notória ou conhecida do declaratário, a
declaração negocial mostra-se anulável.
E note-se, como o faz sobressair Pais de Vasconcelos, que sendo a
liberdade e o esclarecimento pressupostos da validade negocial, a
verdade é que «não existem liberdade e esclarecimento que sejam
absolutos, que sejam perfeitos e ilimitados». A autonomia privada
contenta-se com a liberdade e o discernimento normais, isto é, que são
próprios de pessoas normais, das pessoas comuns. Para celebrar um
negócio jurídico não é, por isso, necessário estar completamente livre
de constrangimentos (…) O grau de discernimento necessário não é
superior ao da normalidade das pessoas. Para celebrar negócios
jurídicos não é preciso ser dotado de uma inteligência excepcional,
nem ter formação superior, nem sequer saber ler, escrever e contar.
Basta ter o discernimento suficiente para se compreender o que se está
fazer e a liberdade suficiente para se poder optar entre celebra-lo ou
não». - Obra referida, p 559
Ora, provou-se, em função da já referida alta probabilidade, que A..., no
dia e hora da doação não tinha o discernimento e a vontade suficientes
para proceder à doação em causa, e provou-se também que essa falta de
discernimento e vontade eram notórias, confirmando-se, pois, o juízo da
1ª instância, ao condenar as RR. a reconhecerem que no momento da
realização da doação a favor delas por A... esta se encontrava
incapacitada de entender e querer o sentido das declarações que prestou
e sem vontade de a elas se vincular, declarando anulada a doação
outorgada em 23 de Outubro de 2013 a favor das RR., improcedendo,
em consequência, a apelação interposta pela R. G...
Resta saber se o referido contrato de doação merecerá um valor
negativo superior ao da respectiva anulação, por se impor,
precedentemente, a declaração da sua nulidade, como o pretendeu a A.
na formulação do pedido, e como vem aqui insistir através do recurso
subordinado.
Com efeito, a A. sustenta na petição inicial que o termo de autenticação
não contém todas as menções necessárias para que seja considerado
válido, nomeadamente no que respeita à identificação do rogado (...),
relativamente a quem, constando pelo punho do Sr. Solicitador a
menção do respectivo nome, local de residência e estado civil, já não
consta a sua naturalidade e morada completa, tão pouco a forma como
foi verificada a sua identidade, invocando a este respeito o disposto no
art 46º/1 al d) do Código do Notariado. Mais refere, e ainda na petição
inicial, que a referida rogada deveria ter assinado o termo de
autenticação, o que não fez. E por isso pediu que as RR. fossem
condenadas a reconhecerem que o documento particular de doação
outorgado a seu favor padece de vício de forma, por falta de
cumprimento dos requisitos legais do termo de autenticação que o
compõe e, em consequência, que seja o contrato de doação que
corporiza declarado nulo.
Decidiu a 1ª instância pelo infundado deste pedido, julgando-o
improcedente.
Sucede que não obstante ter julgado improcedente este pedido – e
procedente aquele outro já acima analisado – fez incidir sobre as RR. a
totalidade das custas, contra o que estas se insurgem no seu recurso.
E com razão, visto estar em causa, no que se reporta ao pedido julgado
improcedente, um pedido autónomo, que até foi configurado pela A.
como principal e em que a A. saiu vencida, razão por que se impunha
fazer incidir sobre a mesma custas.
Porém, estando em causa nesta instância reapreciar (também) a
decidida improcedência desse pedido, apenas a final se verá se a A.
deverá também ser condenada em custas e, nessa circunstância, em que
medida.
Impõe-se, pois, conhecer do recurso subordinado, salientando-se, à
partida, e no que respeita ao correspondente objecto, que a A. nas
alegações do mesmo passou a invocar outros fundamentos para lá dos
que invocara na petição inicial para vir a concluir, como pretende, pela
invalidade do termo de autenticação, e consequentemente, pela
invalidade do contrato de doação.
Assim, invocou a A./recorrente, na sua apelação, que na segunda folha
do termo de autenticação o Exm.º Sr. Solicitador rasurou o prazo de
validade de um documento de identificação, escrevendo por cima do
texto anterior, o que levou a que eliminasse o texto que se encontrava
escrito, sem permitir a sua leitura, o que viola o disposto no nº 2 do
artigo 41º do Código Notariado (daqui para a frente, CN); e que desse
termo consta um bloco de texto, redigido pelo punho do Sr. Solicitador,
escrito em cursivo de letra minúscula e muito apertada, sendo que dele
não consta nenhuma ressalva, como expressamente impõe o art 41º do
CN.
A circunstância destes invocados vícios do termo de autenticação se
repercutirem no contrato de doação gerando a nulidade formal deste,
como melhor se analisará adiante, implica que sendo a nulidade de
conhecimento oficioso (art 286º CC) se imponha a este tribunal, nos
termos da segunda parte do nº 2 do art 608º CPC, também a apreciação
dos vícios em causa.
Dispõe o art 947º CC, no seu nº 1, na redação que lhe foi dada pelo DL
116/2008, de 04/07 - diploma que adoptou medidas de simplificação,
desmaterialização e eliminação de actos e procedimentos no âmbito do
registo predial e actos conexos – que, «sem prejuízo do disposto em lei
especial, a doação de coisas imóveis só é válida se for celebrada por
escritura pública ou por documento particular autenticado».
Como resulta das próprias alegações das RR. nos autos, a herança
indivisa de seu pai era composta, entre o mais, por imóveis.
Por outro lado, o referido DL 116/2008, de 4/7, no seu art 24º, veio
determinar que «os documentos particulares que titulem actos sujeitos
a registo predial devem conter os requisitos legais a que estão sujeitos
os negócios jurídicos sobre imóveis, aplicando-se subsidiariamente o
Código aprovado pelo Decreto-Lei n.º 207/95, de 14 de Agosto» (que
corresponde ao CN) .
E o nº 2 desse preceito legal dispõe que «a validade da autenticação
dos documentos particulares, referidos no número anterior, está
dependente de depósito electrónico desses documentos, bem como de
todos os documentos que os instruam».
O contrato de doação em causa nos autos foi outorgado por documento
particular que foi autenticado e após submetido a depósito electrónico,
cumprindo verificar, na sequência do assinalado pela A., se foi
deficientemente autenticado e se os vícios nessa autenticação importam
a nulidade da mesma.
De acordo com o nº 3 do art 363º CC no seu nº 3 «os documentos
particulares são havidos por autenticados, quando confirm0ados pelas
partes, perante notário, nos termos prescritos nas leis notariais»,
valendo antes de mais a este respeito o art 150º CN (que refere que os
documentos particulares adquirem a natureza de documentos
autenticados desde que as partes confirmem o seu conteúdo perante o
notário e que apresentado o documento para fins de autenticação, o
notário deve reduzir esta a termo), sendo que desde o DL 76-A/2006 de
29/3 (respectivo art 38º/1) que advogados e solicitadores podem
autenticar documentos particulares.
Importa registar, no entanto, que se a autenticação do documento em
apreço se impunha como formalidade ad substantiam em função das
normas do art 947º do CC (e 22º do DL 116/2008), se impunha também
enquanto exigência autónoma em função do disposto no art 373º CC.
Com efeito, de acordo com o nº 1 dessa norma, «os documentos
particulares devem ser assinados pelo seu autor, ou por outrem a seu
rogo, se o rogante não souber ou não puder assinar». Acrescenta o seu
nº 2 que «se o documento for subscrito por pessoa que não saiba ou
não possa ler, a subscrição só obriga quando feita ou confirmada
perante notário, depois de lido o documento ao subscritor», sendo que,
nos termos do nº 4 da mesma norma «o rogo deve (…) ser dado ou
confirmado perante notário, depois de lido o documento ao rogante».
Ora, desde o momento que A... não podia assinar (e não sabia ler,
consoante o referiu a neta), sempre seria necessária a autenticação do
documento, a qual se destina a que, mediante o cumprimento das várias
exigências constantes da lei notarial uma entidade dotada de fé pública
confira ao documento particular as garantias de verdade e autenticidade.
Note-se, consoante resulta do art 154º CN, que a assinatura feita a rogo
só pode ser reconhecida como tal por via de reconhecimento presencial,
sendo que o rogo deve ser dado ou confirmado perante o notário, no
próprio acto do reconhecimento da assinatura e depois de lido o
documento ao rogante, devendo o reconhecimento da assinatura a rogo
fazer expressa menção das circunstâncias que legitimam o
reconhecimento e a forma como foi verificada a identidade do rogante,
sendo aplicável à verificação da identidade do rogante o disposto no
artigo 48.º.
Resulta, por sua vez, do art 51º/1 CN que «os outorgantes que não
saibam ou não possam assinar devem apor, à margem do instrumento,
segundo a ordem por que nele foram mencionados, a impressão digital
do indicador da mão direita».
Refere ainda o nº 2 do art 152º CN que se o documento que se pretende
autenticar estiver assinado a rogo, devem constar, ainda, do termo o
nome completo, a naturalidade, o estado e a residência do rogado e a
menção de que o rogante confirmou o rogo no acto da autenticação.
Ainda a respeito do termo de autenticação, dispõe genericamente o art
151º do CN que «o termo de autenticação, além de satisfazer, na parte
aplicável e com as necessárias adaptações, o disposto nas alíneas a) a
n) do n.º 1 do artigo 46.º, deve conter ainda os seguintes elementos: a)
A declaração das partes de que já leram o documento ou estão
perfeitamente inteiradas do seu conteúdo e que este exprime a sua
vontade; b) A ressalva das emendas, entrelinhas, rasuras ou traços
contidos no documento e que neste não estejam devidamente
ressalvados», referindo o seu nº 2 que «é aplicável à verificação da
identidade das partes, bem como à intervenção de abonadores,
intérpretes, peritos, leitores ou testemunhas, o disposto para os
instrumentos públicos».
Por sua vez, o referido art 46º/1, nas respectivas alíneas a) a n) dispõe a
respeito do que o instrumento notarial deve conter, relevando para a
situação dos autos o disposto nas suas al c), d), h), l), m) e n),
respectivamente do seguinte conteúdo: «(…) c) O nome completo,
estado, naturalidade e residência habitual dos outorgantes, (…) d) A
referência à forma como foi verificada a identidade dos outorgantes,
das testemunhas instrumentárias e dos abonadores; (…) h) O nome
completo, estado e residência habitual das pessoas que devam intervir
como abonadores, intérpretes, peritos médicos, testemunhas e leitores;
l) A menção de haver sido feita a leitura do instrumento lavrado, ou de
ter sido dispensada a leitura pelos intervenientes, bem como a menção
da explicação do seu conteúdo; m) A indicação dos outorgantes que
não assinem e a declaração, que cada um deles faça, de que não assina
por não saber ou por não poder fazê-lo; n) As assinaturas, em seguida
ao contexto, dos outorgantes que possam e saibamassinar, bem como
de todos os outros intervenientes, e a assinatura do funcionário, que
será a última do instrumento».
Impõe-se ainda mencionar que nos termos do art 68º, «não podem ser
abonadores, intérpretes, peritos, tradutores, leitores ou testemunhas:
(…) al d)- «os funcionários e o pessoal contratado em qualquer regime
em exercício no cartório notarial».
É verdade que, como a apelante o acusa, na segunda folha do termo de
autenticação, e na 1ª linha desta, está visivelmente rasurada a data
referente ao cartão de cidadão de ... que interveio como abonadora da
identidade das outorgantes, apenas se vendo “03-5-2016”, mas não o
que estava colocado na origem, sendo pois, exacto que “o Exm.º Sr.
Solicitador rasura um prazo de validade de um documento de
identificação, escrevendo por cima do texto anterior, o que levou a que
eliminasse o texto que se encontrava escrito, sem permitir a sua
leitura”.
E que, como igualmente o acusa a apelante, no espaço que intermedeia
entre a expressão «Este termo foi lido e explicado o seu conteúdo aos
outorgantes» e as assinaturas, foi colocado pelo Exmo Solicitador, de
forma manuscrita, em caracteres minúsculos e de modo graficamente
condensado, os seguintes dizeres (que, dispondo-se nos autos apenas da
fotocópia do documento em causa não nos são inteiramente
perceptíveis, podendo até suceder que a leitura que se faz dos que se
nos afiguram perceptíveis não seja a correcta): «EM TEMPO –Pelo
facto da primeira outorgante não poder assinar, confirma o rogo dado
por ..., casada, residente no .., (não se percebendo a palavra seguinte),
minha conhecida, tendo a rogante confirmado perante mim o conteúdo
do documento anexo e do presente termo que lhe li, tendo ela rogante e
primeira outorgante que (não se percebe o vocábulo seguinte) o
documento anexo, Doação, como o presente termo de autenticação
respeita (?) a sua vontade». E à frente foi colocado: “EMENDEI:03-5-
2016”.
O art 41º do Código do Notariado estabelece no seu nº 1 que «As
palavras emendadas, escritas sobre rasura ou entrelinhadas devem ser
expressamente ressalvadas.» E no seu nº 2 estabelece a forma como
deve ser feita tal ressalva, dispondo que «a eliminação de palavras
escritas deve ser feita por meio de traços que as cortem e de forma que
as palavras traçadas permaneçam legíveis, sendo aplicável à
respectiva ressalva o disposto no número anterior».
Decorre da al c) do nº 1 do artigo 70º do CN que «O acto notarial é
nulo, por vício de forma, apenas quando falte algum dos seguintes
requisitos: (…) c) A observância do disposto na primeira parte do n.º 2
do artigo 41º».
Desde o momento em que visivelmente o Exmo Solicitador não
procedeu à eliminação do escrito que estaria sob o que agora consta –
03-5-2016 - fazendo-o por meio de traço que o tivesse cortado, mas de
forma que tal escrito permanecesse legível, dever-se-á concluir que não
observou a primeira parte do nº 2 do art 41º, pelo que, em
consequência, o termo de autenticação se terá que ter como nulo por
vício de forma, não obstando, obviamente, a esse resultado a
circunstância de na parte final do texto manuscrito e acima referido ter
sido colocado « EMENDEI:”03-5-2016”»
Por outro lado, resulta do nº 2 do acima referido art 70º do CN, por
exclusão de partes, que a nulidade prevista na al c) do número anterior
não é sanável - Dispõe o n.º 2 do referido art. 70.º do CN, que «as nulidades previstas nas
alíneas a), b), d), e), f) e g) do número anterior consideram-se sanadas, conforme os casos …»: a)
Se, em face da omissão do dia, mês, ano ou lugar da celebração do acto, for possível proceder ao
averbamento nos termos previstos no n.º 7 do artigo 132.º; b) Se as partes declararem, por forma
autêntica, que foram cumpridas as formalidades previstas nos artigos 65.º e 66.º; c) Se os
intervenientes acidentais, cujas assinaturas faltam, se encontrarem devidamente identificados no
acto e declararem, por forma autêntica, ter assistido à sua leitura, explicação e outorga e que não
se recusaram a assiná-lo; d) Se os outorgantes, cujas assinaturas faltam, declararem, por forma
autêntica, que estiveram presentes à leitura e explicação do acto, que este representa a sua vontade
e que não se recusaram a assiná-lo; e) Se o notário cuja assinatura está em falta declarar
expressamente, através de documento autêntico, que esteve presente no acto e que, na sua
realização, foram cumpridas todas as formalidades legais; f) Se em face da inobservância do
disposto na alínea g) do n.º 1 do artigo 46.º, ou da incorrecta menção dos requisitos nele exigidos,
for comprovado, mediante exibição da certidão de registo ou do correspondente código de acesso,
que a mesma já existia à data da celebração do ato.
.
Tem também razão a A. no que se reporta ao que designa pela
colocação no termo de autenticação, de “um bloco de texto, redigido
por punho do Sr. Solicitador, que, certamente por esquecimento se não
consignou no texto anterior, escrito em cursivo de letra minúscula e
muito apertada”, quando conclui que – e outra conclusão não é
possível – “terá sido introduzida após as assinaturas dos outorgantes e
intervenientes (apertando-se a letra para que coubesse)”.
Dispõe o atrás referido art 41º CN, agora nos seu nº 4 que «As palavras
emendadas, escritas sobre rasuras ou entrelinhadas que não forem
ressalvadas, consideram-se não escritas, sem prejuízo do disposto no
n.º 2 do artigo 371.º do Código Civil».
O art 371º CC no seu nº 2 estabelece que «Se o documento contiver
palavras emendadas, truncadas ou escritas sobre rasuras ou
entrelinhas, sem a devida ressalva, determinará o julgador livremente a
medida em que os vícios externos do documento excluem ou reduzem a
sua força probatória».
Repare-se que a consequência primeira estabelecida no transcrito nº 4
do art 41º é a de se terem a palavras entrelinhadas como não escritas, do
que resulta que apenas depois, perante a ausência dessas palavras,
deverá o julgador ajuizar da força probatória do documento.
Na situação do documento em apreço não há qualquer ressalva
relativamente à presença de todo aquele bloco de palavras – em parte
imperceptíveis – colocadas depois da expressão, «Este termo foi lido e
explicado o seu conteúdo aos outorgantes» e as assinaturas, não se
podendo deixar de referir que, tal como a apelante também acusa, a
impressão digital da rogante se encontra ao nível desse texto
manuscrito, quando deveria estar abaixo dele, como resulta da atrás
mencionada norma do art 51º/1 do CN.
Considerando-se que todo o referido texto se deve ter por não escrito,
daí resulta que do termo não consta e o nome completo, a naturalidade,
o estado e a residência do rogado e tão pouco a menção de que o
rogante confirmou o rogo no acto da autenticação, tudo em desarmonia
com os acima referidas normas dos arts 152º e 154º do CN.
Não pode deixar de se concordar com a apelante quando, citando o
sumário do Ac. R. Porto de 17/2/2009 (Carlos Moreira), conclui que, «a
não confirmação, perante o notário, da assinatura a rogo, acarreta a
sua invalidade e, por acréscimo - já que ela é elemento integrante
essencial e formalidade ad substantiam do documento particular onde
consta - a nulidade da declaração negocial neste ínsita — art°s 373º
n°s 1 e 4, 220º e 286º do CC e 154° do C. Notariado».
Não pode ser outra a conclusão perante a importância que no acto em
causa o rogante desempenha. Não é já a ausência do nome completo,
naturalidade, estado e residência do rogado, é a própria essência da
assinatura a rogo, a finalidade a que a mesma se destina que é
substantivamente posta em causa pela circunstância do rogante não ter
confirmado o rogo no acto da autenticação - Sem embargo, obviamente, de se
aceitar que quando o rogo não tenda sido dado na presença do notário, possa ainda vir a ser
confirmado na presença dele, como se se tratasse de um reconhecimento presencial de assinatura,
caso em que a presença do rogante é essencial, devendo, nas palavras do A c desta Relação de
12/12 /2017 (Mª João Areias) o rogante confirmar na presença do autenticante que a assinatura a
rogo foi efectivamente nele aposta a seu pedido e que o autenticante faça constar tal declaração do
documento de autenticação.
Sucede que na situação dos autos não se mostra já possível esse “suprimento” , visto que a rogante
se mostra falecida. .
Evidentemente que essa omissão formal exclui toda a força probatória
ao termo de autenticação, não podendo deixar de acarretar a sua
insuprível nulidade, e por via dela, a do contrato de doação, por falta da
observância da forma devida, não sendo necessário para assim se
concluir que a situação em causa se subsuma a alguma das causas de
nulidade feitas constar do art 70º CN, até porque não se analisa, em
rigor, num vicio de forma, mas de substância. -No Ac STJ 17/3/1998 (BMJ nº
475, p 649) diz-se que «a assinatura a rogo apenas tem os mesmos efeitos da assinatura rogada
quando sejam respeitadas as exigências legais, conforme prevê o C N» (art 166º do CN de 1967 e
actualmente art 154º)
Acresce que também se regista a falta de assinatura da rogante no termo
de autenticação.
E constitui também requisito de presença obrigatória no termo de
autenticação, por força da remissão do proémio do artigo 151º do CN
para o disposto nas alíneas a) a n) do n.º 1 do artigo 46.º, «as
assinaturas, em seguida ao contexto, dos outorgantes que possam e
saibam assinar, bem como de todos os outros intervenientes (…)»
É certo que nesta alínea não se prevê a assinatura do rogante, mas como
o defende a apelante, ao rogado deve atribuir-se uma posição idêntica à
da rogante/outorgante, na medida em que, por definição, a assinatura
daquela é destinada a suprir a falta da assinatura desta, pelo que é
natural que a falta de assinatura da primeira tenha o mesmo efeito da da
segunda, devendo, pois entender-se que, nos termos a alínea e) do nº 1
do artigo 70º do CN - Onde se dispõe ser caso de nulidade do acto notarial por vício de
forma a assinatura de qualquer dos outorgantes que saiba e possa assinar , a falta de
assinatura da rogada no termo de autenticação é causa de nulidade do
mesmo.
Por último, e aqui fará todo o sentido apelar-se a um argumento a
fortiori, se, nos termos do nº 2 do art 71º do CN, a incapacidade ou a
inabilidade dos intervenientes acidentais determina a nulidade do acto
notarial - sendo que é causa de incapacidade ou inabilidade
relativamente a «abonadores, intérpretes, peritos, tradutores, leitores
ou testemunhas» a circunstância de, nos termos da al d) do art 68º,
corresponder nessas pessoas a qualidade de funcionários em exercício
no cartório notarial - então, ter-se-á de concluir, por maioria de razão,
que será causa de nulidade do acto notarial a circunstância da rogada
ser funcionária do solicitador autenticador do acto, como sucede
relativamente à pessoa de ...
Afigura-se-nos que a apelante tem também razão quando exclui que a
nulidade em causa possa ser sanada ao abrigo do art 71º/3 al c) do CN
(da qual resulta que «Quando o vício se referir apenas a um dos
abonadores ou a uma das testemunhas se possa considerar-se suprido
pela idoneidade do outro interveniente»), como o entendeu a decisão
recorrida, visto que a rogada tem uma função única que se move num
plano superior ao daqueles intervenientes acidentais, pelo que a
idoneidade destes não pode suprir a falta de idoneidade desta .
Tudo razões – cada qual de per si – para se concluir que o termo de
autenticação não pode ser considerado validamente efectuado, sendo
nulo nos termos das disposições consideradas, implicando a sua
nulidade que a doação – que deveria ter sido realizada através de
documento particular autenticado nos termos do art 947º CC – tenha
sido realizada à margem dessa exigência formal e por isso seja nula nos
termos do art 220º CC .
Assim se conclui pela procedência também do primeiro pedido
formulado nos autos - pedido esse, o principal - e pela consequente
procedência da apelação subordinada, impondo-se, ao invés de declarar
a anulabilidade do contrato de doação nos termos acima expostos,
declarar a sua nulidade (visto este valor negativo subsumir, pela sua
maior gravidade, aquele outro), por se reconhecer que o documento de
doação padece de vício de forma, por falta de cumprimento dos
requisitos legais do termo de autenticação que o compõe.
Procedência esta que implica que afinal sejam as RR. as únicas
responsáveis pelas custas da acção na 1ª instância, e nesta, apenas a R.
G..., por apenas ela ter recorrido.
V - Pelo exposto, acorda este tribunal em julgar improcedente a
apelação da R. G... e procedente a apelação subordinada da A.,
declarando a nulidade do contrato de doação por carecer da forma
legalmente prescrita, ao invés da sua anulabilidade em função da
incapacidade acidental de A..., mantendo no demais o decidido na 1º
instância.
Custas na 1ª instância pelas RR., e nesta, pela R. G...
Coimbra, 22/10/2019
(Maria Teresa Albuquerque)
(Manuel Capelo)
(Falcão de Magalhães)

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