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TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA | PENAL

Acórdão

Processo Data do documento Relator


165/20.5GDLRA.C1 17 de março de 2022 Maria José Guerra

DESCRITORES
Apreensão de bem > Validade > Violência doméstica > Homicídio na forma
tentada > Concurso real

SUMÁRIO
I. A apreensão de um computador portátil quando os elementos dos OPC se deslocaram - por ordem do
Mmo. Juiz de Instrução após o primeiro interrogatório judicial do arguido no decurso do qual foi
determinada a sujeição deste à medida de coação de prisão preventiva – à residência onde se situava o
quarto arrendado pelo arguido, para aí receberem todos os bens pertença deste, entre os quais, se contava
o aludido computador, por suspeitarem que o mesmo pudesse conter ficheiros com conteúdo relevante
para a investigação dos factos em apreço nos autos, tendo os mencionados elementos dos OPC contactado
a Magistrada do Mº Pº titular do processo no sentido de saber qual o destino a dar àqueles, tendo-lhes por
esta sido ordenada a respectiva apreensão com vista a realização de perícia, porque realizada ao abrigo do
disposto pelos art.ºs 249º, nºs 1 e 2, alínea c) do CPP, e obedeceu aos requisitos legais previstos no art.
178º, nºs 1, 3, 5 e 6 do CPP, não está, por isso, inquinada de qualquer nulidade.
II. Para aferir da existência ou não de concurso aparente de crimes em relação às condutas levadas a cabo
pelo arguido em causa nos autos tipificadas como crimes de violência doméstica e de homicídio
qualificado, na forma tentada, o que há a ponderar, são essas concretas condutas.

III. Perante elas há que dizer que o objectivo do arguido perante os factos ocorridos no dia 18 de Janeiro de
2021 era o de matar a vítima como está expresso no ponto 92. do elenco dos factos provados constantes
do acórdão recorrido, enquanto que em relação às demais condutas que o arguido levou a cabo em relação
à mesma vítima, algumas delas anteriores à referida data e outra posterior, o seu propósito foi o de a
maltratar física e psiquicamente a mesma, atingindo a tranquilidade, a honra e a dignidade pessoal desta,
como deflui do ponto 90. do mesmo elenco dos factos provados.

IV. Tratam-se, pois, inequivocamente, de condutas diferenciadas, atacando bens jurídicos com uma
inescapável pluralidade de sentidos de ilicitude, ou seja, pluralidade de infracções diferencialmente
valoradas para efeito da sua punição.

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V. Ao nível do bem jurídico a actuação do recorrente ocorrida no dia 18 de Janeiro de 2021 (que integra o
crime de homicídio qualificado na forma tentada), atenta contra a vida da vítima CP, enquanto que as
demais condutas perpetradas pelo recorrente, ocorridas antes e despois da referida data (que integram o
crime de violência doméstica) violam não apenas a saúde, seja ela física, psíquica e mental, mas, antes a
integridade pessoal, ligado à defesa da dignidade da pessoa humana, em todas as suas dimensões, da
vítima, sua mulher.

VI. Resulta, assim, estarmos perante uma pluralidade de processos resolutivos, com violação de bens
jurídicos diferentes. Razão pela qual devem ser autonomizados.

VII. Isto é, impõe-se concluirmos não existir um sentido autónomo de ilicitude em relação à globalidade da
sua conduta à qual possa corresponder, citando Figueiredo Dias, in Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, 2ª
Edição, pág. 989-990, uma “predominante e fundamental unidade de sentido dos concretos ilícitos típicos
praticados” caso em que se estaria perante uma situação de concurso aparente de crimes.

VIII. Mas antes, que, perante o quadro factual assente, se verifica que o crime de homicídio qualificado na
forma tentada, que tutela um bem jurídico distinto e resulta de uma diferente resolução criminosa, ganha
autonomia e está numa relação de concurso efectivo, e não apenas aparente, com o crime de violência
doméstica, pelo que, verificando-se uma pluralidade de processos resolutivos, com violação de bens
jurídicos diferentes, tais condutas criminosas devem ser autonomizadas.

IX. Por isso, destacando-se os actos que materializam a tentativa de homicídio daqueles que integram a
prática do crime de violência doméstica, descortinando-se diferentes sentidos de ilicitude, com pluralidade
de bens jurídicos afectados e pluralidade de resoluções criminosas, há concurso efectivo entre os crimes de
homicídio na forma tentada e de violência doméstica.

X. Pelo que, o crime de violência doméstica e o crime de homicídio qualificado agravado, na forma tentada,
cometidos pelo recorrente assumem autonomia, encontrando-se tais crimes numa relação de concurso real
efectivo.

TEXTO INTEGRAL

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Acordam em conferência os juízes do Tribunal da Relação de Coimbra

I- Relatório

1. No Processo Comum Colectivo Nº 165/20.5GDLRA, o MºPº deduziu acusação contra o arguido AA


imputando-lhe a prática de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo art. 152º, nº1, alínea a), nº2
alínea a), nº 4 e nº 5 do Código Penal e de um crime de homicídio qualificado, na forma tentada, p. e p.
pelos arts. 22º, 23º, 132º, nº1 e nº2, alínea a) do Código Penal, com base nos factos constantes da
acusação de fls. 728-742, requerendo, ainda, o arbitramento de indemnização a favor da vítima BB.

2 . A assistente B B , acompanhou a acusação pública e deduziu pedido de indemnização civil contra o


arguido/demandado, peticionando a condenação do mesmo no pagamento da quantia global de €
60.000,00, referente a danos de natureza não patrimonial, acrescida de juros, à taxa legal, desde a citação
e até integral pagamento.

3 . Realizada a audiência de julgamento, com intervenção do Tribunal Coletivo, foi proferido acórdão, em
29.11.2021, no qual se decidiu:

- CONDENAR o arguido AA, pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de
violência doméstica, p. e p. e p. pelo artigo 152º, nº 1, alínea a), nº 2, alíneas a) e b), nº 4 e nº 5 do
Código Penal, na pena de 2 (dois) anos e 8 (oito) meses de prisão;

- CONDENAR o arguido AA, pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de
homicídio qualificado tentado, p. e p. pelos artigos 22º, 23º, 73º, 131º e 132º, nº 1 e nº 2, alínea b) do
Código Penal, na pena de 5 (cinco) anos de prisão;

- Em CÚMULO JURÍDICO das penas aplicadas, CONDENAR o arguido na PENA ÚNICA DE 6 (SEIS)
ANOS DE PRISÃO;

- CONDENAR ainda o arguido na pena acessória de proibição de contactos, por si ou por


interposta pessoa, e por qualquer meio, com BB, pelo período de 4 (quatro) anos (artigo 152º, nºs

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4 e 5 do Código Penal);

- Não arbitrar a indemnização peticionada pelo Ministério Público, em face do pedido cível formulado pela
assistente nos autos;

- Julgar parcialmente procedente, por provado, o pedido cível formulado, e, em consequência,


CONDENAR o arguido/demandado a pagar à assistente/demandante BB a quantia de €
20.000,00 (vinte mil euros), pelos prejuízos causados, acrescida de juros de mora vencidos e vincendos
contados da notificação para contestar até integral pagamento, ABSOLVENDO o arguido do demais
peticionado;

(…).

2. Inconformados com o decidido, recorreram o arguido e a assistente, extraindo da motivação dos


recursos por si interpostos as conclusões que, na parte com interesse, se transcrevem:

2.1. Do recurso do arguido:

(…)

III – A fls. ... dos autos, resulta que o computador pessoal do arguido, objecto de perícia, foi apreendido, a
14 de Abril de 2021, no quarto em que este habitava sem que, para o efeito tenha sido ordenada por
autoridade judiciária ou validada pelo Mmº JIC, busca domiciliária nos termos do Art. os 177º nos 3 e 4 CPP.

IV – O arguido também não prestou consentimento, documentado nos autos, para tal – Art.º 174º nº 5 b)
CPP, nem tampouco a dita perícia foi realizada em contexto de flagrante delito – Artº 174º nº 6 CPP.

V – Como melhor decorre do auto de apreensão do aludido computador, a fls. ..., “Os objectos acima
mencionados foram apreendidos após deslocação dos elementos deste núcleo à residência sita em Rua ... –
... – ... ..., onde se encontrava hospedado o arguido, AA, para efeitos de recebimento de todos os bens
ali existentes...” (sublinhado e negrito nossos).

VI – Os elementos do OPC, a 14 de Abril de 2021, apenas se deslocaram àquela residência uma vez que o
arguido fora sujeito à medida de coacção de prisão preventiva a partir do dia 08 de Abril de 2021 e não ter
havido nenhum familiar ou conhecido deste que dali recolhesse os seus bens (de notar que o arguido é
cidadão estrangeiro, não tendo, em Portugal, quaisquer amigos ou familiares para além de mulher – a
Assistente – e filhos).

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VII – A pedido do arguido, e como também decorre do Termo de Entrega a fls. ..., os seus pertences ali
existentes foram entregues – à excepção do referido computador – ao seu filho CC..

VIII – Deste modo, aquela apreensão é nula porque consequência directa de uma busca domiciliária
também ela contrária aos preceitos acima enunciados, vício que desde já se argui para todos os efeitos
legais.

IX – De facto, nos termos do Art. 126º nos 2 a) e 3 CPP e do Art.º 32º nº 8 da CRP, a busca domiciliária e
consequente apreensão constituem um método proibido de prova e, como tal, não deveria ter sido
valorado pelo D. Tribunal recorrido.

X – Neste sentido, vide Ac. STJ de 27.08.2021, relatado por Nuno Gonçalves, assim sumariado:

IX. Quando os dados ou documentos apreendidos tenham conteúdo suscetível de revelar dados pessoais ou
íntimos, que possam pôr em causa a privacidade dotitular oude terceirosão, sobpena de nulidade,
apresentados ao juiz, que ponderará da junção aos autos tendo em conta os interesses do caso – Art. 16º
n.º 3. da citada Lei.

X. A nulidade resultante da não apresentação ao juiz de instrução dos dados e documentos apreendidos em
suporte ou sistema informático, que tenham aquele conteúdo particular, consubstancia a proibição de
obtenção de prova, estatuída nos Arts. 32º n.º 8 da Constituição da República e 126º do CPP.

XI. As provas obtidas com intromissão na vida privada, na correspondência e nas telecomunicações não
são nulas se o seu titular nisso consentir, livre e esclarecidamente - art.º 126º n.º 3 do CPP – porque não
são obtidas por método proibido, não advindo ao processo por “abusiva intromissão” naqueles direitos
fundamentais.

XI – Apesar de autorizada pela Digna Mag.ª MP, nos termos do Art.º 16º nº 1 da Lei do Cibercrime (L.
109/2009 15.09), a perícia ao computador foi-o no pressuposto, errado, s.m.e, de que as formalidades para
obtenção do sistema informático em causa haviam sido respeitadas, o que, na realidade, não aconteceu
como exposto supra.

XII – Daí que, nos termos do Artº 122º nº 1 CPP, a dita perícia, imediatamente subsequente a uma
apreensão nula, consubstanciadora de prova proibida, se encontra também ferida de nulidade, em
obediência à Teoria do Frutos da Árvore envenenada.

XIII – Ainda que assim não fosse – o que só por mera hipótese académica se concede – sempre o conteúdo
procurado e susceptível de ser encontrado através da mencionada perícia poderia lesar a intimidade do

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arguido e/ou da vítima, levando a que se tivesse dado cumprimento aos comandos dos Art.o 16º nº 3 LCC,
o que, compulsados os autos, comprovadamente, também não aconteceu.

XIV – Razão por que, mais uma vez, a apreensão dos dados informáticos contidos no computador do
arguido constitui proibição de prova nos termos do Artº 126º nº 3 CPP.

XV – Assim, não deveria o D. Tribunal Colectivo a quo ter dado por provado o facto 86, nem
argumentar/concluir que, o arguido “detinha tais vídeos íntimos, não merecendo credibilidade o referido
pelo arguido quanto à perda da pen que continha tais vídeos e sendo o arguido o único com conhecimento
do nome da assistente (note-se que dos vídeos consta expressamente o nome e a nacionalidade da
assistente) e com interesse nessa divulgação, a que acresce o fato de o arguido ser consumidor de
conteúdos pornográficos (cfr. assumido pelo mesmo em audiência e corroborado pela perícia efetuada ao
seu computador, não obstante a formatação do disco),resulta evidente ao Tribunal que foi o arguido quem
publicou, nos sites descritos na listagem de fls. 515 e 516, vídeos íntimos do casal (embora não saibamos
em concreto quantos, uma vez que a assistente não conseguiu precisar e tal não decorre igualmente do
depoimento do filho CC), sem a autorização ou consentimento da assistente.”

XVI – Até porque do ponto de vista das regras da experiência, a inferência lógica (?) plasmada na
fundamentação do D. acórdão recorrido - segundo a qual o arguido é “consumidor de conteúdos
pornográficos” e, por isso, o único penalmente responsável pela difusão de vídeos íntimos da Assistente
sem o consentimento desta - não parece ter muito sentido.

XVII – Por outro lado, das declarações do arguido, não resulta, como afirmado no D. Acórdão recorrido, que
o mesmo tenha assumido ser consumidor de conteúdos pornográficos – audite ficheiro MP3
20210916095416_4047060_2870943, 1:14:30 até 1:17:07, nem a testemunha CC, do arguido e da
Assistente, soube dizer quem tenha sido o autor da divulgação dos aludidos vídeos. Senão vejamos:

Mm.ª Juiz Presidente – E quem é que publicou? Sabe?

Test. CC – Nós não sabemos.

Ficheiro MP3 20210916155527_4047060_2870943, 39:05 até 39:07

XVIII – Deste modo, e pelo que vem de se dizer, nomeadamente porque assente em prova proibida, deveria
o arguido ter sido absolvido da prática de um crime de violência doméstica, p.p. Artº 152º nº 2 b) CP
deverá ser revogada.

(…)

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XXX – No entanto, e quando assim se não entenda, sempre o Art.º 152º nº 1, parte final, prevê que “...é
punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra
disposição legal.”, tendo o legislador introduzido aqui uma cláusula de subsidiariedade expressa
relativamente a outros tipos de crime.

XXXI – Neste sentido, vide Ac. Rel. Porto de 16.02.2021, relatado por José Adriano, in www.dgsi.pt:

“Perante a expressão que consta da parte final do n.º 1 do artigo 152.º do CP, em que, a seguir à pena
aplicável, se refere «se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal», entendeu o
tribunal recorrido que há um concurso aparente (subsidiariedade expressa) entre o crime de violência
doméstica e o crime de violação agravada, punindo-se o arguido com a pena deste último, por ser a mais
grave. Tal acontecerá sempre que com o de violência doméstica concorrerem outros crimes puníveis com
pena superior a 5 anos de prisão, o que fará com que a punição por algum destes crimes afaste a punição
pelo crime de violência doméstica, posição que tem sido amplamente defendida, quer na doutrina, quer na
nossa jurisprudência (cfr. a título exemplificativo, os acórdãos da Relação de Guimarães de 17/05/2010 e
de 21/10/2010, nos processos 1379/07.9PBGMR.G1 e 353/11.5GDGMR.G1, respetivamente; desta Relação
de Lisboa de 13/12/2016, no processo n.º 1152/15.0PBAMD.L1 e da Relação do Porto, de 27/9/2017, no
processo n.º 1342/16.9JAPRT.P1, todos em www.dgsi.pt; Paulo Pinto de Albuquerque, “Comentário do
Código Penal …”, 2008, pagina 407, onde podem ser encontradas referências a outras posições, no mesmo
e em diferente sentido, na doutrina).

e ainda Ac. Rel Porto de 27.09. 2017, relatado por José Carreto, in www.dgsi.pt, com o Sumário seguinte:

“Ocorrendo factos integradores do crime de violência doméstica e de violação, entre cônjuges e, apesar
dos factos integradores deste último revestirem autonomia, indo para além do ambiente de violência
doméstica até aí existente – o que justificou a condenação por ambos em concurso real na 1.ª instância - o
certo é que a lei, cfr. artigo 152.º/1 C Penal, quis expressamente e criou uma relação de subsidiariedade
entre ambos, devendo o agente ser punido, pela globalidade dos factos, apenas pelo crime de violação, por
ser o mais grave.”

XXXII – Nesta linha, no caso em apreço, atentos os factos provados, deveria a condenação do arguido por
homicídio na forma tentada, na pessoa da Assistente, ter absorvido o crime de violência doméstica, uma
vez que os crimes se encontram, expressamente, numa relação de concurso aparente (subsidiariedade).

XXXIII – Pelo que mal andou o D. Tribunal a quo ao condenar o arguido, em concurso efectivo, pela prática
de um crime de violência doméstica e de um crime de homicídio na forma tentada.

XXXIV –Deverá, assim, em conformidade com o exposto, o arguido recorrente ser absolvido da prática do
crime de violência doméstica, p.p. pelo Art.º 152º nos. 1 a), 2º a) e b), 4 e 5 CPP na redacção dada pela L.

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44/2018 de 09.08, a qual é a aplicável in casu.

XXXV – Não se entendendo ter faltado dolo homicida ao arguido recorrente aquando da prática dos factos
de 18 de Janeiro de 2021, deverá a tentativa de homicídio qualificado prevalecer, nos termos das regras de
concurso aparente por subsidiariedade, sobre a violência doméstica.

XLII – Pelo exposto, violou o D. Acórdão recorrido os Art.os 122º nº 1; 126º nos 2 a) e 3; 177º nos 3, 4, e 5,
todos do CPP e o Art.º 16º LCC; Artº 32º nº 8 CRP e Art.os 50º, 70º, 71º e 152º nos 1 in fine, 2 a) e b), 4 e 5,
na redacção dada pela L. 44/2018 de 09.08, todos do CP.

(…)

Termos em que, não certamente pelo alegado mas principalmente pelo D. suprimento de V. Ex.as,
revogando-se o D. Acórdão recorrido e substituindo-o por outro no sentido das alegações ora expendidas,
ou seja, absolvendo-se o arguido da prática do crime de violência doméstica previsto no Artº 152º nº 2 a) e
b) CP (redacção dada pela L. 44/2018 de 09.08) e do crime de homicídio qualificado na forma tentada em
concurso efectivo com o crime de violência doméstica, bem como reduzindo o montante indemnizatório
arbitrado, se fará a tão costumada JUSTIÇA”.

(…)

6. Colhidos os vistos legais, os autos foram a conferência.

II- Fundamentação
A) Delimitação do objecto dos recursos

Dispõe o art. 412º, nº1, do Código de Processo Penal, que “a motivação enuncia especificadamente os
fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o
recorrente resume as razões do pedido”.

Decorre de tal preceito legal que o objecto do processo se define pelas conclusões que o recorrente extrai

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da respetiva motivação, onde deverá sintetizar as razões da discordância do decidido e resumir as razões
do pedido - arts. 402º, 403º e 412º- naturalmente sem prejuízo das matérias do conhecimento oficioso (
Cfr. Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, Vol. III, 1994, pág. 340, Paulo Pinto de
Albuquerque, in Comentário do Código de Processo Penal, 3ª edição, 2009, pág. 1027 a 1122, Simas
Santos, in Recursos em Processo Penal, 7ª edição, 2008, pág.103).

Como expressamente afirma o Professor Germano Marques da Silva, in obra citada, “São só as questões
suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas conclusões que o tribunal tem que apreciar”.

Pese embora as conclusões recursórias vertidas nos recursos apresentados pelo arguido e pela assistente
denotem uma falta esforço de sintetização que se impõe de registar, constituindo, no essencial, uma mera
reprodução do alegado no corpo da Motivação, não fazendo qualquer sentido e só prejudicando a clareza
exigível da posição dos recorrentes a enumeração a esmo das conclusões que nada têm a ver com as
exigências contidas no art. 412º do CPP, como acontece no caso concreto, fazendo-se tábua rasa da
disciplina contida no nº1 do mesmo, ainda assim, parece-nos ser, na prática, de dispensar o convite ao
aperfeiçoamento de tais conclusões, por razões de economia processual e celeridade, por serem facilmente
perceptíveis as questões que nelas vêm suscitadas.

Assim sendo, estando a apreciação dos recursos balizada pelas conclusões apresentadas pelos recorrentes,
as questões a decidir nos presentes recursos são as seguintes:

- Do recurso do arguido:

- A incorrecta decisão proferida sobre a matéria de facto/ nulidade da busca e da apreensão do computador
pessoal do arguido/ inverificação do elemento subjectivo do crime de homicídio qualificado na forma
tentada;

- O concurso aparente entre o crime de violência doméstica e o crime de homicídio qualificado na forma
tentada;

(…)

B) Da decisão recorrida

Para a resolução destas questões, importa ter presente o que de relevante consta do acórdão recorrido.

(…)

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a. Nele foram considerados provados os seguintes factos:

“ (…)

DA ACUSAÇÃO:

1. No dia 31 de Maio de 2003, o arguido AA e BB casaram civilmente em ....

2. Deste casamento, nasceram dois filhos: CC (a 15.06.2002) e DD (a 01.03.2006), de 19 e 15 anos de


idade atualmente.

3. Durante o casamento, o arguido, BB e os filhos viveram em ... e, depois, no ....

4. No dia 4 de Julho de 2018, o casal e os filhos vieram viver para Portugal, tendo passado a residir na Rua
(…).

5. Desde o início do relacionamento, sempre que era contrariado ou por qualquer motivo fútil, o arguido
descontrolava-se e era agressivo para com BB, sua mulher.

6. Em consequência, e porque o comportamento do arguido se foi agravando em território nacional, no ano


de 2019, preocupada com a situação, BB convenceu o arguido a ir ao médico, para tomar alguma
medicação para o acalmar, o que sucedeu.

7. O arguido passou a tomar a medicação prescrita e, desde então, os episódios passaram a ser menos
frequentes, mas mais graves.

8. No dia 7 de Janeiro de 2020, pelas 23h00m, após terem tido uns amigos franceses a jantar em casa, o
arguido enervou-se com BB, alegando que esta não lhe tinha dado atenção e que era feliz com as outras
pessoas, e não com ele.

9. De imediato, o arguido desferiu duas chapadas de mão aberta em ambos os lados da face de BB.

10. Em consequência do descrito em 9, BB sofreu dores e incómodos.

11. No dia 27 de Setembro de 2020, pelas 01h00m, estando BB e o arguido na cama a falar, este
começou a dizer àquela que era uma pessoa fria, ao que BB lhe respondeu que tal não correspondia à
verdade, mas que a relação entre ambos estava deteriorada.

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12. De imediato, o arguido tentou aproximar-se fisicamente de BB, que, de imediato, o rejeitou, afastando-
se dele.

13. Após, o arguido enervou-se, atirou uma almofada para cima de BB e agrediu-a com a costa da mão na
face daquela.

14. Em consequência, os filhos do casal acordaram e deslocaram-se ao quarto dos pais, a fim de se


inteirarem do sucedido, tendo-se o arguido acalmado.

15. Nesse dia, ao almoço, em casa dos pais de BB, estando presentes os filhos do casal, o arguido, BB e os
pais desta, ao falarem sobre a situação da noite anterior e do fato de o arguido ter agredido BB, o arguido
disse ter-se tratado de uma brincadeira.

16. No dia 5 de Outubro de 2020, cerca das 16h00m, BB, o arguido, os dois filhos do casal e os pais de
BB encontravam-se na pastelaria (…), mais concretamente numa esplanada exterior.

17. A dada altura, em virtude de ter contado uma anedota e ninguém se ter rido, o arguido ficou muito
exaltado, levantou-se violentamente, fazendo com que alguns dos copos que se encontravam em cima da
mesa entornassem e tudo abanasse.

18. Em consequência, todos os presentes sentiram bastante medo do arguido, pelo que se levantaram e
afastaram.

19. De seguida, e ainda bastante exaltado, o arguido disse a BB e aos filhos para entrarem no carro, tendo
BB dito aos filhos para ficarem com os avós, que ia tentar acalmar o arguido.

20. Nesse momento, BB temeu pela integridade física e pela vida dos filhos.

21. De seguida, o arguido dirigiu-se para a sua viatura, e, ao estar com a mesma junto de BB, disse-lhe, em
tom de voz alto, sério e ameaçador, em francês: ‘Entra no carro, senão passo por cima de ti e mato-te’.

22. Ao ouvir tal expressão proferida na presença dos filhos e dos pais, BB ficou com bastante receio do que
o arguido pudesse vir a fazer e decidiu entrar na viatura.

23. Assim que BB entrou na viatura, o arguido iniciou a marcha da mesma, a alta velocidade, conduzindo
de forma agressiva durante cerca de 10 minutos, após o que parou na localidade da ....

24. Durante o percurso efetuado, o arguido dizia a BB que também conseguia conduzir rápido.

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25. Durante o referido trajeto, BB ficou muito assustada e temeu pela sua vida.

26. No dia 10 de Outubro de 2020, pelas 22h00m, quando BB e o arguido se encontravam no interior da
residência comum do casal, e sem que nada o fizesse prever, o arguido levantou-se do sofá e foi à cozinha.

27. Na cozinha, o arguido muniu-se de uma faca, com uma lâmina larga e comprida, com cerca de 20 cm, e
sentou-se no sofá ao lado de BB.

28. De seguida, o arguido começou a fingir que se estava a espetar com a faca no coração e na sua própria
barriga, o que deixou BB assustada, o que a levou a levantar-se e afastar-se do arguido, receando pela sua
própria vida.

29. Após, sem dizer nada, o arguido levantou-se e deslocou-se para junto de BB, e encostou, durante
alguns segundos, o bico da referida faca no meio do pescoço desta, após o que parou.

30. Logo após, e já sem a faca encostada, o arguido fez com as mãos o gesto e o movimento de que lhe iria
cortar o pescoço, sempre munido da referida faca, movendo-a da esquerda para a direita de BB, ao longo
do pescoço desta, sem nada dizer.

31. Em consequência do descrito em 27 a 30, BB ficou muito receosa, temendo, uma vez mais, pela sua
vida.

32. No dia 16 de Outubro de 2020, pelas 00h00m, encontrando-se o arguido e BB em casa, deitados na
cama, o arguido disse a BB que estava a ficar muito forte devido à medicação que tomava.

33. Após, o arguido dirigiu-se a BB e disse-lhe, em tom de voz alto, sério e ameaçador, em francês: ‘Vou
fazer jejum para perder peso e, se não conseguir, vou matar a família toda!’, usando para tal um tom de
voz enraivecido, causando em BB receio do que pudesse vir a fazer contra si e os filhos.

34. Ao longo do casamento, o arguido disse a BB, várias vezes, em tom de voz alto, sério e ameaçador,
que, caso esta algum dia o deixasse ou apresentasse queixa, a iria matar e suicidava-se de seguida.

35. Cerca de pelo menos duas vezes, após 2019, o arguido pediu a BB para esta o matar.

36. No dia 24 de Outubro de 2020, pelas 14h00m, não suportando mais a situação, BB saiu de casa com os
filhos, sem dizer ao arguido, tendo sido apoiada por instituições de apoio à vítima, deslocando-se para local
desconhecido do arguido.

37. Nesse dia, pelas 19h10m, BB telefonou ao arguido, dizendo-lhe que pretendia terminar definitivamente

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a relação, separar-se dele e que não podia mais estar em casa com o arguido, pedindo-lhe para sair de
casa.

38. No dia 28 de Outubro de 2020, o arguido aceitou abandonar a residência comum do casal, tendo, no
dia 1 de Novembro de 2020, BB e os filhos regressado àquela residência.

39. Contudo, o arguido não aceitou o fim do relacionamento com BB e estava obcecado com esta.

40. Desde então, o arguido telefonava constantemente para o telemóvel de BB, que a maioria das vezes
não atendia, e, quando atendia, o arguido insistia para BB voltar para ele, fazendo-o igualmente junto dos
filhos.

41. Desde então, o arguido enviou igualmente várias mensagens a BB, insistindo com esta para reatarem o
relacionamento e enviando-lhe fotografias de quando eram casados.

42. No dia 12 de Novembro de 2020, pelas 17h25m, o arguido foi detido.

43. No dia 13 de Novembro de 2020, o arguido foi sujeito a primeiro interrogatório judicial de arguido
detido, tendo-lhe sido aplicadas as seguintes medidas de coação:

o Proibição de contatar, presencialmente, com BB;

o Proibição de permanecer ou frequentar a residência de BB;

o Proibição de se deslocar ou permanecer no local de trabalho de BB e suas imediações;

o Proibição de se deslocar ou permanecer em locais onde saiba que BB se encontra.

44. No dia 14 de Janeiro de 2020, BB telefonou ao arguido, comunicando-lhe a sua intenção de se divorciar
dele.

45. No dia 16 de Janeiro de 2021, sábado, pelas 9h30m, estando BB em casa com os seus filhos,
deslocou-se à garagem, pelo interior da sua residência, para ir buscar o seu veículo e ir trabalhar.

46. Aí chegada, BB deparou-se com o arguido encostado à parede junto à porta, dentro da garagem.

47. De imediato, BB ficou em pânico e disse ao arguido para se ir embora, tendo o arguido dito que não ia e
que tinham de falar.

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48. De seguida, o arguido trancou duas portas existentes na garagem e tirou a chave do comando da
garagem a BB, insistindo para falar com esta.

49. De imediato, BB disse ao arguido que tinha de ir para o trabalho e que estavam à sua espera, abrindo o
portão da garagem para sair.

50. No entanto, de imediato, o arguido fechou o portão da garagem, procedimento que ocorreu durante
cerca de duas vezes, com o intuito de a impedir de sair.

51. Após, o arguido disse a BB que queria sair no carro com ela, pedindo-lhe para se deslocarem a um
parque para falarem.

52. Nessa sequência, BB pediu ao arguido para sair de sua casa, dizendo-lhe que falavam depois, ao
mesmo tempo que se ia aproximando da porta que dá acesso à garagem e por onde havia entrado, mas
que o arguido havia fechado à chave.

53. De imediato, o arguido deslocou-se para junto de BB.

54. Em pânico, BB recuou até ficar sentada num banco de musculação existente na garagem, mesmo em
frente à porta.

55. Quando o arguido já se encontrava à sua frente, de pé, sensivelmente a um metro de distância, o
arguido apontou a ponta de uma faca de cozinha preta, que empunhava na mão esquerda, à zona
abdominal de BB.

56. O arguido havia retirado a referida faca da cozinha da residência de BB, momentos antes, sem
ninguém ver.

57. Cerca de 10 minutos depois, e já sem a faca na mão do arguido, BB disse ao arguido que aceitava falar
com ele, num local escolhido por si, e que cada um se iria deslocar no seu próprio carro, pedido aceite pelo
arguido, ficando assim acordado encontrarem-se de seguida em frente à ..., que se situa a cerca de 3
minutos da residência de BB.

58. Posteriormente, BB conseguiu tirar o comando ao arguido, tirou a sua viatura da garagem, saindo no
carro e o arguido a pé.

59. Durante o percurso, BB ligou ao colega de trabalho EE, que sabia da sua situação, a pedir ajuda, e
como este não atendeu, deixou uma mensagem de voz a dizer que estava a ser perseguida pelo arguido,
que a havia ameaçado com uma faca, dizendo o local onde se encontrava e pedindo-lhe que chamasse a

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Polícia.

60. Estando BB e o arguido em frente à Igreja, conforme combinado, o arguido pediu-lhe para irem para
mais perto da Igreja, onde estivessem mais tranquilos e sem pessoas por perto, o que BB recusou, dizendo-
lhe que não tinha mais nada para falar com ele e que já havia ligado para a Polícia, tendo-lhe o arguido dito
que esta lhe tinha montado uma armadilha, após o que se ausentou do local.

61. De seguida, BB telefonou aos filhos, dizendo-lhes o que se tinha passado com o arguido.

62. Durante esse dia, o arguido telefonou a BB pedindo desculpa e dizendo que se iria embora para o ... na
segunda-feira, pedindo-lhe cerca de € 300,00 para comprar o bilhete de avião, o que BB aceitou.

63. No dia 18 de Janeiro de 2021, entre as 3h00m e as 4h00m da manhã, o arguido telefonou ao filho CC
a dizer-lhe que, nesse dia, tinha de apanhar um avião para o ... e que tinha de ir buscar roupa a casa de
imediato, pois de manhã tinha de ir fazer o teste Covid a ... e não tinha roupa, pelo que estava à porta da
residência.

64. CCdisse ao pai para ficar no exterior, informando-o de que lhe iria buscar a roupa e lha entregava no
exterior da habitação, pela porta da garagem.

65. Passados uns minutos, CCtrouxe alguma roupa ao pai.

66. Quando CCabriu o portão da garagem e lhe entregou a roupa, o arguido disse-lhe que precisava de
uma determinada roupa que gostava muito, pedindo a CCpara ir buscá-la, o que este fez, ficando o arguido
a aguardar na garagem.

67. De imediato, e aproveitando o fato de o filho se ter afastado, o arguido foi à cozinha buscar uma faca e
subiu aos pisos superiores da residência.

68. Após, o arguido dirigiu-se ao quarto de BB, onde esta dormia com a filha menor (na altura com 14 anos
de idade), munido, na mão direita, de uma faca de cozinha, com 27 cm.

69. Aí chegado, o arguido abriu violentamente a porta do quarto de BB, que acordou sobressaltada.

70. De seguida, o arguido dirigiu-se à cama onde BB se encontrava deitada, empunhando a referida faca
na mão direita.

71. Após, o arguido desferiu, com a referida faca, um golpe na zona do peito, e quatro golpes nas pernas
de BB.

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72. Enquanto isso, BB ia-se tentando defender dos golpes que o arguido lhe ia desferindo, desviando-se
deste e protegendo-se com os cobertores da cama.

73. De seguida, BB caiu da cama, tropeçando num dos cobertores em que estava embrulhada, batendo
com os dois joelhos no chão.

74. De imediato, apareceu o filho do casal, CC, que tentou agarrar a mão do arguido, que ostentava a faca.

75. Em pânico, CCinterveio para fazer cessar as agressões e evitar que o arguido matasse a mãe,
desferindo-lhe vários socos, conseguindo fazer com que o arguido se desequilibrasse e caísse ao chão,
deixando, dessa forma, cair a faca que tinha na mão.

76. Depois de o arguido se levantar, CCdesferiu um empurrão no mesmo, que foi projetado para o exterior
do quarto.

77. De seguida, CCconseguiu fechar a porta do quarto e impedir que o arguido entrasse.

78. Apavorada, BB abriu os estores e as janelas e começaram todos a gritar e a pedir ajuda, e chamaram o
112.

79. Após, o arguido abandonou o local para parte incerta.

80. Passados alguns minutos, a PSP de... compareceu no local e tomou conta da ocorrência.

81. Em consequência dos fatos descritos em 71 a 73, BB sofreu as seguintes lesões:

o Tórax: no terço médio da região esternal – equimose azulada, medindo 3 cm de diâmetro, sobre a qual
assenta ferimento, medindo 0,3 cm de diâmetro;

o Membro superior direito: na face palmar da base do polegar – ferimento medindo 0,2 cm de
comprimento, rodeada de coloração avermelhada, sugestiva de aplicação de eosina;

o Membro superior esquerdo: na face palmar da região tenar – equimose arroxeada, medindo 3 cm de
comprimento por 1 cm de largura;

o Membro inferior direito:

i. na metade distal da face anterior da coxa – 3 escoriações lineares – a mais pequena e mais superior com

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0,5 cm de comprimento; a intermédia, com 1,5 cm de comprimento; e a mais distal, com 2,5 cm de
comprimento – todas apresentavam diferentes orientações e encontravam-se rodeadas de equimose
arroxeada;

ii. no terço médio da face medial da perna – escoriação transversal, linear, medindo 6 cm de comprimento.

O Membro inferior esquerdo: equimose arroxeada no joelho esquerdo, medindo 5 cm de comprimento por 4
cm de largura.

82. As referidas lesões causaram dores e mal-estar psicológico a BB e foram causa direta e necessária de
um período de 7 (sete) dias de doença, com afetação da capacidade para o trabalho geral e profissional.

83. No dia 18 de Janeiro de 2021, o arguido adquiriu um bilhete junto da ... para viajar para ... (...),
contudo, não chegou a embarcar e saiu do país por fronteiras terrestres.

84. Desde esse dia, apavorada, BB e os filhos saíram de casa e estiveram duas semanas fora, em casa de
familiares, dormindo sempre trancados no quarto.

85. Dias depois, o arguido foi localizado em ... (...).

86. No ..., em data não concretamente apurada, mas certamente entre 18 Janeiro e 8 Abril de 2021, o
arguido publicou, em pelo menos 24 (vinte e quatro) sites pornográficos, vídeos íntimos com BB, sem a
autorização e consentimento desta.

87. No dia 8 de Abril de 2021, à tarde, uma amiga de BB telefonou-lhe dizendo que tinha avistado o
arguido num café na (…), em ....

88. Após, o arguido contatou telefonicamente o filho CC, dizendo-lhe que estava em Portugal ‘para fazer
uma coisa grave’.

89. Após, e nesse mesmo dia, o arguido foi avistado na Cidade ..., e, posteriormente, localizado e detido.

90. O arguido sabia que BB era sua mulher, que atuava no interior da residência comum do casal e na
presença dos filhos dos mesmos (um deles menor), tendo sempre atuado com o propósito concretizado e
reiterado de maltratar física e psiquicamente BB, atingindo a tranquilidade, honra e dignidades pessoais
desta.

91. O arguido sabia que, com a sua conduta, infligia maus tratos físicos e psicológicos em BB, sua mulher,
humilhando-a e sujeitando-a a tratamentos degradantes e causando-lhe um estado de humilhação,

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ansiedade e medo permanentes.

92. Agiu ainda o arguido, no dia 18 de Janeiro de 2021, com o intuito de matar BB, o que apenas não
conseguiu por motivos alheios à sua vontade.

93. O arguido agiu sempre de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que as suas condutas
eram proibidas e punidas por lei.

DO PEDIDO DE INDEMNIZAÇÃO CIVIL:

[não se responde aos fatos repetidos na acusação, genéricos, conclusivos, de direito, relativos aos filhos da
assistente (porque não são demandantes) ou a danos patrimoniais não peticionados]

94. Em consequência dos fatos descritos, BB mudou todas as fechaduras de casa e os comandos da
garagem.

95. Em consequência dos fatos descritos, BB sente medo do arguido.

96. Em consequência dos fatos descritos, nos meses que se seguiram, BB dormia com a porta do quarto
trancada à chave.

97. Em consequência dos fatos descritos, nos meses que se seguiram, BB não conseguia passear o cão à
noite, nos arredores.

98. Em consequência dos fatos descritos, nos meses que se seguiram, BB sonhava repetidamente que o
arguido a está a matar, acordando sem fôlego.

99. Em consequência da publicação pelo arguido de vídeos íntimos do casal em sites pornográficos, BB
sentiu-se publicamente humilhada.

100. O filho de BB efetuou pedidos de retirada dos vídeos íntimos do casal dos sites pornográficos onde o
arguido os publicara, numa exposição emocional e degradante da imagem da mãe perante o próprio filho.

(…)

DA CONTESTAÇÃO:

101. Na sequência do evento, BB não recebeu assistência médica.

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*

(…)

C) Apreciação dos recursos

(…)

I- Do recurso do arguido

- A incorrecta decisão proferida sobre a matéria de facto/ nulidade da busca e da apreensão do


computador pessoal do arguido [questão privativa do recurso interposto pelo arguido]

a . Ao insurgir-se contra a decisão do tribunal a quo a respeito da matéria de facto por este considerada
provada no acórdão recorrido, cinge o arguido recorrente a sua discordância em relação à factualidade
contida no ponto 86. da factualidade provada constante do mesmo – por entender que a perícia efectuada
ao seu computador pessoal é nula por tal computador ter sido apreendido em busca domiciliária que não
foi ordenada nem validada pelo Juiz de Instrução, pelo que tal perícia não podia ter sido valorada, como foi,
pelo tribunal recorrido para considerar tal factualidade provada, a qual, por outro lado, também não poderá
extrair-se das declarações por si prestadas na audiência de julgamento nem do depoimento prestado pelo
seu filho CC, cujos segmentos da gravação destes indica e transcreve.

(…)

Como bem resulta do exarado na motivação sobre a referida matéria de facto, contida no ponto 86. do
elenco fático provado, o único contributo, com relevo probatório, da perícia efectuada ao computador
pessoal do arguido que se mostra apreendido nos autos, cujo relatório se mostra junto a fls. 718-722,
traduziu-se, apenas, em detectar no mesmo referências da navegação na internet, a partir dele, em
websites de conteúdo pornográfico, e nada mais.

Mas, ainda, assim, pretende o recorrente que tal contributo probatório, carreado para os autos por via da
referida perícia, não podia ser valorado pelo tribunal a quo porque a apreensão do referido computador,
efectuada por elementos do OPC, que posteriormente foi alvo de tal perícia, ocorreu na sequência de uma
busca domiciliária que é nula porque não foi ordenada por autoridade judiciária ou validada pelo Mmo. Juiz
de Instrução.

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Diferente opinião têm, porém, a Digna Magistrada do MºPº junto da primeira instância e a assistente,
porquanto, segundo as mesmas, a apreensão do referido computador por parte dos elementos dos OPC
ocorreu com observância dos preceitos legais exigidos para o efeito.

E, na verdade, a primeira observação que tal questão nos merece é a de que, ao contrário do pretendido
pelo arguido ora recorrente, não estamos perante uma apreensão levada a cabo por elementos dos OPC na
sequência de qualquer busca domiciliária.

Com efeito, a apreensão do referido computador portátil ocorreu no dia 14 de Abril de 2021, quando os
elementos dos OPC se deslocaram - por ordem do Mmo. Juiz de Instrução após o primeiro interrogatório
judicial do arguido ocorrido no dia 9 de Abril de 2021 no decurso do qual foi determinada a sujeição deste à
medida de coação de prisão preventiva – à residência onde se situava o quarto arrendado pelo arguido,
para aí receberem todos os bens pertença deste [ para posterior entrega dos mesmos ao filho do arguido,
como por este pretendido ], os quais lhes foram entregues pela proprietária dessa residência, bens esses,
entre os quais, se contava o aludido computador.

E, ao constatarem a existência do referido computador portátil e também de 2 pen`s, por suspeitarem que
os mesmos pudessem conter ficheiros com conteúdo relevante para a investigação dos factos em apreço
nos autos, os mencionados elementos dos OPC contactaram a Magistrada do MºPº titular do processo no
sentido de saber qual o destino a dar àqueles, tendo-lhes por esta sido ordenada a respectiva apreensão
com vista a realização de perícia, apreensão essa que, então, pelos mesmos foi efectuada no mesma data (
14.04.2021 ).

Tudo isto, conforme se colhe da Cota lavrada nos autos em 14.04.2021, junta a fls. 680 dos autos, do Auto
de Recebimento de fls. 681, Termo de Entrega de fls. 682 e Auto de Apreensão junto a fls. 687.

E, na sequência de tal apreensão, veio a mesma a ser validada pela Magistrada do MºPº titular dos autos
no dia 15.04.2021, conforme despacho exarado com essa data no referido Auto de Apreensão.

Daqui se vê, pois, que a apreensão do referido computador portátil efectuada pelos elementos dos OPC
ocorreu ao abrigo do disposto no artigo 249º, nºs 1 e 2, alínea c) do CPP, e obedeceu aos requisitos legais
previstos no art. 178º, nºs 1, 3, 5 e 6 do CPP, não estando, por isso, inquinada de qualquer nulidade.

Nada impedindo, pois, que a posterior perícia efectuada ao aludido computador, cujo relatório se mostra
junto aos autos, a fls. 718-722, pudesse ser, como foi, valorada pelo tribunal a quo para formar a sua
convicção sobre a factualidade constante do ponto 86. do elenco fáctico provado que agora vem
impugnada pelo recorrente.

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Esclarecida que fica, assim, a legalidade da apreensão do computador pessoal do arguido que foi sujeito a
perícia, cujo conteúdo probatório nada impedia que fosse valorado pelo tribunal (…).

- O concurso aparente entre o crime de violência doméstica e o crime de homicídio qualificado,


na forma tentada.

Insurge-se, ainda, o arguido quanto à sua condenação decidida no acórdão recorrido pela prática, em
concurso efectivo, do crime de violência doméstica e do crime de homicídio qualificado, na forma tentada,
pretendendo que, a entender-se existir o dolo de homicídio, deverá a decisão relativa à sua conduta
pautar-se apenas pela condenação pela prática do crime de homicídio qualificado, na forma tentada,
porque este crime e o de violência doméstica se encontram numa relação de concurso aparente, e, por
essa razão, deverá o mesmo ser absolvido do crime de violência doméstica e condenado apenas por
aquele de homicídio qualificado, na forma tentada.

Vejamos, pois, como se expressou o acórdão recorrido quanto ao enquadramento jurídico-penal dos factos
que fundamentou a condenação imposta do arguido nos presentes autos pela prática dos referidos crimes.

A tal propósito, exarou-se no acórdão recorrido a respeito do crime de violência doméstica imputado na
acusação deduzida nos autos contra o arguido, da seguinte forma, que se transcreve:

“ Nos termos do disposto no artigo 152º do Código Penal:

1. Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais,
privações de liberdade e ofensas sexuais:

a) Ao cônjuge ou ex-cônjuge;

b) (…);

c) (…)

d) (…),

é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra
disposição legal.

2. No caso previsto no número anterior, se o agente:

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a. Praticar o fato contra menor, na presença de menor, no domicílio comum ou no domicílio da vítima;

ou

b. Difundir através da internet ou de outros meios de difusão pública generalizada, dados pessoais,
designadamente imagem ou som, relativos à intimidade da vida privada de uma das vítimas sem o seu
consentimento;

é punido com pena de prisão de dois a cinco anos.

3. (…).

4. Nos casos previstos nos números anteriores, podem ser aplicadas ao arguido as penas acessórias de
proibição de contacto com a vítima e de proibição do uso e porte de armas, pelo período de seis meses a
cinco anos, e de obrigação de frequência de programas específicos de prevenção da violência doméstica.

5. A pena acessória de proibição de contato com a vítima deve incluir o afastamento da residência ou do
local de trabalho desta e o seu cumprimento deve ser fiscalizado por meios técnicos de controlo à
distância.

Todo o crime corresponde a uma conduta humana, voluntária e culposa, que se enquadra num dos
modelos ou tipos onde a lei inscreveu bens jurídicos considerados dignos de proteção. Ou seja, o crime é
constituído pela ação ou conduta material que preencha um tipo descrito na lei, que tenha sido praticado
culposamente e que seja lesivo de algum interesse juridicamente protegido.

O preenchimento do tipo legal importa a verificação cumulativa do elemento objetivo do tipo (a conduta
descrita no preceito incriminador) e do elemento subjetivo do tipo (a intenção subjacente à prática da
referida conduta).

O bem jurídico tutelado pelo preceito supra citado, e no que concerne aos maus tratos infligidos a cônjuge,
como refere Taipa de Carvalho “não está na proteção da comunidade familiar, mas sim na proteção da
pessoa individual e da sua dignidade humana”; assim, “deve dizer-se que o bem jurídico protegido por este
tipo de crime é a saúde – bem jurídico complexo que abrange a saúde física, psíquica e mental, e bem
jurídico este que pode ser afetado por toda uma multiplicidade de comportamentos que (…) afetem a
dignidade pessoal do cônjuge” – Comentário Conimbricense ao Cód. Penal, Tomo I, Coimbra Editora, 1999,
pág. 332.

O tipo objetivo pressupõe uma especial relação, no caso conjugal, entre agente e vítima, configurando-se

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por isso como um crime específico, que tutela integridade física – corporal – psíquica e a saúde das pessoas
que, atenta a especial relação de proximidade existente com o agente se encontram numa posição de
maior vulnerabilidade do que os restantes cidadãos.

As condutas típicas punidas, no que ao caso interessa, podem consistir em maus tratos físicos ou
psicológicos.

Não resulta da lei o que se deva entender por maus tratos físicos ou psicológicos. Serão, pois, todas as
condutas que inculquem a ideia de inflição de um mal – incompatível com a ideia da natural dignidade da
pessoa humana, independentemente da condição em que se ache investida – sendo aquelas, as ofensas
corporais e, estas, as humilhações, provocações, moléstias, ameaças, de entre outras.

No sentido médico-legal, toma-se, por ofensa à integridade física, a lesão corporal: a “perturbação ilícita da
integridade corporal e da saúde de outrem”, importando uma alteração morfológica ou do funcionamento
normal do organismo ou das suas funções psíquicas” (neste sentido vd. Pinto da Costa, in “Ofensas
Corporais- Introdução ao seu Estudo Médico-Legal”).

Tal realidade supõe, assim, um comportamento intencional dirigido à lesão do corpo ou da saúde; a
conduta consubstanciada no mau trato, por via do qual se atinge o bem-estar físico de outrem, de modo
relevante.

Trata-se de um crime de resultado (ou de dano), em que o elemento objetivo do tipo de crime em
evidência pressupõe a efetiva lesão do corpo ou da saúde de outrem, causada pela ação adequada a
produzi-la.

O resultado previsto no preceito supra citado pode ser conseguido por qualquer das duas modalidades, as
quais, em regra, acabam por se verificar em simultâneo, a ofensa do corpo e a ofensa da saúde.

Importa acrescentar que tanto se qualificam como maus tratos os factos que decorrem de forma reiterada
como aqueles que, não o sendo, comportam um grau de gravidade que é especialmente censurável atenta
a aludida relação de proximidade.

Escrevia-se em aresto do Tribunal da Relação do Porto, que “o que importa é que os factos, isolados ou
reiterados, apreciados à luz da intimidade do lar e da repercussão que eles possam ter na possibilidade da
vida em comum, coloquem a pessoa ofendida numa situação que se deva considerar de vítima, mais ou
menos permanente, de um tratamento incompatível com a sua dignidade e liberdade, dentro do ambiente
conjugal” – decisão de 29.01.2003, disponível in www.dgsi.pt.

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Ora, revertendo todas estas considerações ao caso em apreço, constata-se que resultou provado que, ao
longo da vida em comum do casal, o arguido agrediu, ameaçou (esta e a família), intimidou e apontou
facas a BB, provocando-lhe receio, sofrimento e dores.

Tais factos, sendo suscetíveis, quando considerados isoladamente, e em abstrato, de integrarem os tipos
de ofensa à integridade física, ameaça ou sequestro, foram, no seu conjunto, objetivamente incompatíveis
com a dignidade da ofendida, e causaram-lhe sofrimento.

Forçoso se torna, pois, concluir que, objetivamente, se verifica a prática do crime de violência doméstica
imputado.

Mas a punição do facto previsto na lei penal como crime (elemento objetivo do tipo legal) exige ainda a
verificação do elemento subjetivo traduzido na prática do mesmo de forma dolosa.

Com efeito, o tipo legal em causa pressupõe que o agente tenha conhecimento dos elementos objetivos do
tipo (maxime da lesão ao corpo ou da saúde de outrem) e que a sua vontade se dirija no sentido da sua
realização.

Ante os factos dados como provados, dúvidas não restam de que o arguido quis ofender a integridade
física e psíquica, assim como a tranquilidade de BB, o que conseguiu, tendo atuado com dolo direto de
preenchimento do ilícito.

Provou-se ainda que o arguido praticou os fatos em causa no domicílio comum do casal e, em algumas
situações (do dia 27.09.2020 ou 05.10.2020), na presença da filha menor do casal.

Mais se provou que, após a separação, e enquanto se encontrava no ..., o arguido publicou em pelo menos
24 sites pornográficos, e sem a autorização ou consentimento de BB, vídeos íntimos do casal.

Concluindo-se pelo preenchimento dos elementos objetivos e subjetivo do crime de violência doméstica p.
e p. pelo artigo 152º, nº 1, alínea a), nº 2, alíneas a) e b), nºs 4 e 5 do Código Penal, e não se tendo
provado qualquer facto que integre alguma causa de exclusão da culpa ou da ilicitude, deverá o arguido
pelo mesmo ser punido.”

E a propósito do preenchimento dos elementos constitutivos do crime de homicídio qualificado, na forma


tentada, p. e p. pelos artigos 22º, 23º, 132º, nº 1 e nº 2, alínea a) do Código Penal de que o arguido se
mostra acusado, discorreu-se no acórdão recorrido da seguinte forma, que, igualmente, se transcreve:

“ Nos termos do disposto no artigo 131º do Código Penal:

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Quem matar outra pessoa é punido com pena de prisão de oito a dezasseis anos.

Estabelece o artigo 132º do mesmo diploma que:

1. Se a morte for produzida em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade, o


agente é punido com pena de prisão de doze a vinte e cinco anos.

2. É suscetível de revelar a especial censurabilidade ou perversidade a que se refere o número anterior,


entre outras, a circunstância de o agente:

a. (…);

b. Praticar o fato contra cônjuge (…); (…).

Evitando a análise de todas as circunstâncias consagradas no nº 2 do artigo 132º do Código Penal [por ora
desnecessária, face ao teor da acusação], pode afirmar-se que à “especial censurabilidade” pretendeu o
legislador imputar «aquelas condutas em que o especial juízo de culpa se fundamenta na refração, ao nível
da atitude do agente, de formas de realização do facto especialmente desvaliosas, e à “especial
perversidade” aquelas em que o especial juízo de culpa se fundamenta diretamente na documentação no
facto de qualidades da personalidade do agente especialmente desvaliosas».

Dos fatos provados resulta que, no dia 18 de Janeiro de 2021, o arguido se dirigiu com uma faca de cozinha
de 27 cm ao quarto onde a assistente dormia e, com a referida faca, golpeou a mesma na zona do tórax,
no braço e nas pernas, provocando um total de cinco ferimentos (escoriações), com o intuito de a matar, o
que apenas não conseguiu porque esta se protegeu com o cobertor e porque foi socorrida pelo filho do
casal, de 18 anos de idade à data, que agarrou, empurrou e esmurrou o arguido, fazendo-o cair no chão e
empurrando-o para fora do quarto, onde se trancou com a mãe e irmã.

Perante estes factos, não resta senão concluir que o arguido procurou tirar a vida à assistente, na
mencionada data, e que agiu por forma a atingir tal desiderato.

Por razões alheias à sua vontade, o arguido não concretizou os seus intentos.

De acordo com o disposto no artigo 23º, nº 3 do Código Penal, “a tentativa [só] não é punível quando for
manifesta a inaptidão do meio empregado pelo agente ou a inexistência do objeto essencial à consumação
do crime”. À tentativa levada a cabo com meios inaptos ou sobre objeto essencial inexistente dá a doutrina

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o nome de tentativa impossível ou tentativa inidónea. Como indiscutivelmente resulta do preceito citado, a
nossa lei equipara em geral e em princípio a tentativa inidónea à tentativa idónea: salvo quando a
inaptidão dos meios ou a carência do objeto sejam manifestos (o que não sucede, in casu), a tentativa
continua a ser punível apesar de a realização do facto estar irremediavelmente destinada a não se
consumar.

A conduta do arguido integra, assim, a previsão do artigo 131º do Código Penal, na sua forma tentada.

Inexiste ainda dúvida acerca do preenchimento da qualificativa imputada (prevista na alínea b) do nº 2 do


referido artigo 132º), atento o modo de prática dos fatos e uma vez que resulta provado que o arguido e
assistente eram marido e mulher há cerca de 17 anos à data dos fatos.

Verificando-se o preenchimento dos elementos objetivos e subjetivo do crime de tentativa de homicídio


imputado (a título de dolo direto de preenchimento do tipo), e não se verificando qualquer fato que integre
alguma causa de exclusão da ilicitude e/ou da culpa, haverá o arguido de pelo mesmo ser necessariamente
punido.”

Sufragando-se o assim expendido no acórdão recorrido sobre o enquadramento jurídico-penal dos factos
atinentes à conduta do arguido no que respeita aos crimes de violência doméstica e de homicídio
qualificado, na forma tentada, de que vinha acusado, na esteira do ali decidido, há que concluir que,
mantendo-se inalterada a factualidade considerada provada no acórdão recorrido, como foi decidido, se
mostram preenchidos, na conduta do arguido que os suporta, os elementos objectivos e também os
subjectivos dos referidos crimes, como bem se decidiu na decisão da primeira instância.

Importa agora que nos debrucemos sobre a questão suscitada pelo arguido em sede recursiva relativa ao
concurso entre o crime de homicídio qualificado, na forma tentada, e o crime de violência doméstica, a
qual o acórdão recorrido se limitou a levar em conta, na perspectiva do concurso real efectivo de crimes,
aquando da ponderação do cúmulo jurídico das penas concretamente nele decididas para cada um de tais
crimes.

A argumentação do recorrente limita-se a apontar para a existência de uma relação de concurso aparente
entre o crime de violência doméstica e o crime de homicídio qualificado, na forma tentada, ancorado na
cláusula de subsidiariedade expressa contida no art. 152º, nº1, parte final, para defender que, sendo o
crime de homicídio qualificado, na forma tentada, punido com pena mais grave, deveria o mesmo ser
apenas punido por este e absolvido do crime de violência doméstica, apoiado tal argumentação em
jurisprudência que cita, nos quais se aborda, em concreto, a relação de concurso aparente, entre o crime
de violência doméstica e o crime de violação quando praticado entre cônjuges, situação que não é,

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manifestamente, a que está em causa nos presentes autos.

Diferente posição manifestaram a assistente e o MºPº junto da primeira instância, na resposta ao recurso
do arguido, pugnando ambos pela relação de concurso real efectivo entre os dois crimes, fundamentando
tais posições, a assistente, pela existência de dois sentidos de ilicitude típica distintos entre os dois crimes,
e, o MºPº, pela autonomia que um crime apresenta em relação ao outro tendo em conta a diversidade dos
bens jurídicos por eles protegidos.

Posições estas que são secundadas pelo Exmo. Procurador-Adjunto nesta Relação, no Parecer por este
emitido nos autos, no qual entende que “ o crime de violência doméstica e o crime de homicídio
qualificado, na forma tentada, cometidos pelo recorrente assumem autonomia, encontrando-se numa
relação de concurso real efectivo, pelo que devem ser autonomizados, tal como se fez no acórdão
recorrido, estando-se perante uma pluralidade de processos resolutivos, com violação de bens jurídicos
diferentes “.

Para além do que no acórdão recorrido se deixou expendido sobre os bens jurídicos tutelados pela
incriminação do crime de violência doméstica, afigura-se-nos importante acrescentar algumas notas sobre
a identificação e caracterização dos bens jurídicos protegidos pelo crime de violência doméstica, a respeito
do que vem sendo notada alguma flutuação doutrinal e jurisprudencial – neste sentido, Nuno Brandão, in “
A tutela penal especial reforçada da violência doméstica “, Revista Julgar, nº 12, pag. 9 e segs.

De forma, que poderemos considerar generalizada, apontam-se como tuteladas pela proteção da norma
incriminadora do crime de violência doméstica, a saúde e a dignidade da pessoa, entendida esta numa
dimensão garantística da integridade pessoal contra ofensas à saúde física, psíquica emocional ou moral
da vítima embora no estrito âmbito de uma relação de tipo intra-familiar pois é a estrutura “família” que se
toma como ponto de referência da normativização acobertada nas alíneas a) a d) do nº 1 do art. 152º o
que não significa, porém, que seja a “família” a figura central alvo de protecção mas antes essa pessoa que
nela se insere, individualmente considerada – a este propósito e de forma mais desenvolvida, vejam-se,
entre outros, Plácido Conde Fernandes, «Violência doméstica – novo quadro penal e processual penal» in
“Revista do CEJ, nº 8 (especial), pags 304-305, Augusto Silva Dias «Crimes contra a vida e a integridade
física», 2ª ed. aafdl, pag. 110.

A violência doméstica pressupõe um contacto relacional perdurável no seio dessa estrutura de tipo familiar,
com o sedimento tradicional que esta noção inevitavelmente comporta e também, claro está, com a
ponderação da realidade sócio-cultural hodierna o que se traduz numa multiplicidade de sujeitos passivos
inseridos nesse contacto, frisando-se, contudo, que a ideia de perdurabilidade nada tem a ver com uma
qualquer exigência de frequência ou repetição dos “actos violentos” para ter como verificado o crime.

E pressupõe, também, uma contundente transgressão relativamente à esfera de autonomia da vítima

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sujeita na maioria dos casos, como a experiência demonstra, a uma situação de submissão à vontade do(a)
agressor(a), «de alguém de quem possa depender, ao nível mesmo da vontade sobre as dimensões mais
elementares da realização pessoal» redundando «numa específica agressão marcada por uma situação de
domínio (…) geradora de um específico traço de acentuada censura» - neste sentido, Cfr. Pedro Maia
Garcia Marques, «Ora, trabalha sofre e cala … ou não» in “Direito e Justiça, Estudos dedicados ao Prof.
Nuno José Espinosa Gomes da Silva”, pags 332-333.

Podendo, assim, dizer-se que o crime de violência doméstica tutela uma pluralidade de bens jurídicos, que
encontram autónoma protecção noutros tipos legais e que a subsunção dos factos terá lugar em relação ao
crime de violência doméstica quando houver lugar a um agravamento do juízo de censura referente à
violação de pelo menos um dos bens jurídicos a que a norma alude, pela circunstância de esses bens
serem ofendidos no âmbito de uma relação de coabitação ou de uma relação familiar, ou análoga, ainda
que sem coabitação, ou após o termo dessa relação, mas como consequência dela.

É em função dessa circunstância que se determina a relação de especialidade entre cada um daqueles
tipos legais e o tipo de violência doméstica, aceitando-se, pois, que o crime de violência doméstica é uma
forma especial do crime de maus-tratos e que se encontra também numa relação de especialidade com os
crimes de ofensas à integridade física, de ameaças, de coacção, de sequestro, de importunação sexual, de
coacção sexual, de abuso sexual de menores dependentes e ainda com os crimes contra a honra – vide,
neste sentido, Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código Penal, 4ª Edição actualizada, pág. 646-
647.

Ou, como também se perfilha no acórdão do STJ, de 11.03.2021, disponível in www.dgsi.pt, “ no ilícito de
violência doméstica é objectivo da lei assegurar uma “tutela especial e reforçada “da vítima perante
situações de violência desenvolvida no seio da vida familiar ou doméstica que, pelo seu carácter violento
ou pela sua configuração global de desrespeito pela pessoa da vítima ou de desejo de prevalência de
dominação sobre a mesma, evidenciem um estado de degradação, enfraquecimento ou aviltamento da
dignidade pessoal quanto de perigo ou de ameaça de prejuízo sério para a saúde e para o bem-estar físico
e psíquico da vítima.

Em última instância, é ainda o conceito de integridade pessoal (física e psíquica) comum ao crime de
ofensa à integridade física simples, com a particularidade de, aqui, ser outra a caracterização da agressão
e da actuação do agressor, estabelecidas, ambas, em função do "ambiente e da imagem global do facto"
indiciador de um maior desvalor da acção e de um potencial perigo de prejuízos sérios para a saúde e para
o bem-estar da vítima. O importante é, pois, analisar e caracterizar o quadro global da agressão física ou
psíquica de forma a determinar se ela evidencia um estado de degradação, enfraquecimento, ou
aviltamento da dignidade pessoal da vítima que permita classificar a situação como de maus tratos, que,
por si só, constitui um "risco qualificado que a situação apresenta para a saúde física ou psíquica da
vítima". Nesse caso, impõe-se a condenação pelo crime de violência doméstica, do artigo 152°, do BB. Se

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não, a situação integrará a prática de um dos vários crimes comuns.”

E, como ainda se deixou expresso no Ac. do Tribunal da Rel. de Coimbra, de 22-09-2021, disponível in
www.dgsi.pt., “ A opção do legislador na tipificação do ilícito actualmente constante do art. 152º do Código
Penal terá decorrido essencialmente da generalização da percepção de que as condutas hoje integradas
naquele tipo legal constituíam um grave problema social e familiar, transversal à generalidade das ordens
jurídicas, carecido de urgente atenção legislativa. Não terá sido alheio ao pensamento legislativo o
reconhecimento de que o tipo de relações em causa tem a potencialidade de gerar situações de dominação
e de sujeição ou dependência, criando uma vulnerabilidade que pode propiciar um tratamento humilhante,
de amesquinhamento, ou mesmo degradante. Porventura por força dessa constatação sectores
consideráveis da doutrina, como da jurisprudência, acentuaram a relação de domínio ou de dependência e
as vulnerabilidades daí resultantes. A evolução doutrinal e jurisprudencial veio apontar novos caminhos,
afastando a necessidade de verificação de qualquer relação de dependência, esgrimindo, entre outros
argumentos, a ausência de referência, na formulação legal, de semelhante requisito”.

Daí que, como se sufraga neste último aresto, “O elemento distintivo resultará necessariamente da
imbricação entre o crime cometido e a relação existente entre o seu autor e a vítima e, nessa medida, o
enquadramento será sempre casuístico. Sempre que as circunstâncias do caso evidenciarem que, apesar
da relação conjugal, familiar ou análoga, contemporânea da infracção ou anterior a ela, a prática do crime
se oferece como estranha a essa relação, poderemos estar perante um dos tipos de crime que tutelam a
integridade física ou psíquica, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou a honra, mas
não já perante um crime de violência doméstica. Na verdade, este último crime não traduz um tipo legal
qualificado ou, sequer, agravado, pela relação pessoal intercorrente entre o autor e a vítima, mas sim um
crime autónomo que, como já referimos, se encontra numa relação de especialidade e que visa responder
a uma impactante realidade social, multifacetada, é certo, mas suficientemente identificada, de frequente
verificação, geradora de consideráveis danos físicos, psíquicos e sociais, carecida de uma específica tutela
jurídico-criminal. A opção pelo tipo do art. 152º em detrimento da opção por um dos crimes que tutelam
singularmente os bens jurídicos por aquele abrangidos exige a verificação de um aliud, que consiste
precisamente na circunstância de a prática do crime ser indissociável da relação presente ou passada. “

Pode, assim, concluir-se que a esfera de proteção da norma incriminadora do crime de violência doméstica
abrange pressupostos que escapam aos tipos legais por ele abrangidos (de ofensas à integridade física,
coacção, ameaça, injúria, violação, abuso sexual, sequestro, etc.).

São, pois, estes os traços mais marcantes da natureza do crime de violência doméstica e da sua peculiar
estrutura, mais do que a discussão à volta do recorte preciso do bem jurídico protegido.

Isto dito.

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Impõe-se salientar que, para aferir da existência ou não de concurso aparente de crimes em relação às
condutas levadas a cabo pelo arguido em causa nos autos tipificadas como crimes de violência doméstica e
de homicídio qualificado, na forma tentada, o que há a ponderar, são essas concretas condutas.

E, perante elas há que dizer que o objectivo do arguido perante os factos ocorridos no dia 18 de Janeiro de
2021 era o de matar a vítima como está expresso no ponto 92. do elenco dos factos provados constantes
do acórdão recorrido, o qual, apesar de ter sido posto em causa no presente recurso, permaneceu
inalterado, enquanto que em relação às demais condutas que o arguido levou a cabo em relação à mesma
vítima, algumas delas anteriores à referida data e outra posterior, o seu propósito foi o de a maltratar física
e psiquicamente a mesma, atingindo a tranquilidade, a honra e a dignidade pessoal desta, como deflui do
ponto 90. do mesmo elenco dos factos provados.

Tratam-se, pois, inequivocamente, de condutas diferenciadas, atacando bens jurídicos com uma
inescapável pluralidade de sentidos de ilicitude, ou seja, pluralidade de infracções diferencialmente
valoradas para efeito da sua punição.

Ao nível do bem jurídico a actuação do recorrente ocorrida no dia 18 de Janeiro de 2021 (que integra o
crime de homicídio qualificado na forma tentada), atenta contra a vida da vítima BB, enquanto que as
demais condutas perpetradas pelo recorrente, ocorridas antes e despois da referida data (que integram o
crime de violência doméstica) violam não apenas a saúde, seja ela física, psíquica e mental, mas, antes a
integridade pessoal, ligado à defesa da dignidade da pessoa humana, em todas as suas dimensões, da
vítima, sua mulher.

Donde resulta, pois, estarmos perante uma pluralidade de processos resolutivos, com violação de bens
jurídicos diferentes. Razão pela qual devem ser autonomizados.

Pelo que, ao contrário do que propende o recorrente no sentido do concurso aparente dos crimes de
violência doméstica e de homicídio qualificado, na forma tentada, por ele cometidos, entendamos, não
existir um sentido autónomo de ilicitude em relação à globalidade da sua conduta à qual possa
corresponder, citando Figueiredo Dias, in Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, 2ª Edição, pag. 989-990, uma “
predominante e fundamental unidade de sentido dos concretos ilícitos típicos praticados “ caso em que se
estaria, então sim, perante uma situação de concurso aparente de crimes.

Sintetizando, concluímos, na esteira do acórdão do STJ supra citado [ também citado pelo MºP junto da
primeira instância e pela assistente nas respostas ao recurso apresentadas e também no Parecer emitido
nos autos pelo Exmo. Procurador-Adjunto neste Tribunal da Relação ], e também do Ac. do STJ, de
20.04.2017, disponível in www.dgsi.pt, que igualmente vimos seguindo de perto, que, perante o quadro
factual assente, verifica-se que o crime de homicídio qualificado na forma tentada, que tutela um bem
jurídico distinto e resulta de uma diferente resolução criminosa, ganha autonomia e está numa relação de

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concurso efectivo, e não apenas aparente, com o crime de violência doméstica, pelo que, verificando-se
uma pluralidade de processos resolutivos, com violação de bens jurídicos diferentes, tais condutas
criminosas devem ser autonomizadas.

E, por isso, destacando-se os actos que materializam a tentativa de homicídio daqueles que integram a
prática do crime de violência doméstica, descortinando-se diferentes sentidos de ilicitude, com pluralidade
de bens jurídicos afectados e pluralidade de resoluções criminosas, há concurso efectivo entre os crimes de
homicídio na forma tentada e de violência doméstica.

Pelo que, o crime de violência doméstica e o crime de homicídio qualificado agravado, na forma tentada,
cometidos pelo recorrente assumem autonomia, encontrando-se tais crimes numa relação de concurso real
efectivo, como se ponderou, e bem, no acórdão recorrido.

Pelo que, também nesta parte, soçobra a pretensão do recorrente.

(…)

III- DECISÃO

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes do Tribunal da Relação em:

1. Proceder às correções do acórdão recorrido na parte supra assinalada;

2. Negar provimento ao recurso interposto pelo arguido /recorrente AA quanto à parte criminal, e,
consequentemente:

2.1. Julgar improcedente a impugnação da matéria de facto deduzida pelo mencionado arguido AA e
manter a factualidade a tal propósito decidida no acórdão recorrido;

2.2. Manter a condenação do mencionado arguido AA, em concurso real e efectivo, pela prática, em autoria
material e na forma consumada, de um crime de violência doméstica, p. e p. e p. pelo artigo152º, nº 1,
alínea a), nº 2, alíneas a) e b), nº 4 e nº 5 do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos e 8 (oito) meses de
prisão, e, pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de homicídio qualificado
tentado, p. e p. pelos artigos 22º, 23º, 73º, 131ºe 132º, nº 1 e nº 2, alínea b) do Código Penal, na pena de 5
(cinco) anos de prisão, e, em cúmulo jurídico de tais penas, na pena única de 6 (seis) anos de prisão,
decidida no acórdão recorrido;

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3. Julgar procedente o recurso interposto pela assistente/demandante BB na parte relativa à nulidade por
esta invocada, e, consequentemente, anular o acórdão recorrido, ao abrigo das disposições conjugadas dos
arts. 379º n.º 1 a) e 374º n.º 2, do Cód. Proc. Penal, com a consequente obrigação de reformulação do
mesmo a respeito da factualidade atinente ao pedido de indemnização civil em relação à qual se verifica,
nos moldes supra decididos, expurgando-o do referido vício;

4. Considerar prejudicada a apreciação das demais questões suscitadas pelos recorrentes relativas ao
pedido de indemnização civil deduzido nos autos.

5. Tributação:

5.1. Condenar o arguido nas custas quanto à parte criminal, fixando-se a taxa de justiça em 4 UCs (artigos
513.º e 514.º do CPP e 8.º do RCP, com referência à Tabela III).

5.2. Sem custas quanto à parte cível (recursos do arguido e da assistente).

***

Coimbra, 17 de março de 2022

(Texto elaborado pela relatora e revisto por ambas as signatárias – art. 94º, nº2 do CPP)

(Maria José Guerra – relatora)

(Helena Bolieiro – adjunta)

Fonte: http://www.dgsi.pt

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