Você está na página 1de 106

DIREITOS REAIS

TEÓRICAS

COMISSÃO DE CURSO 3º ANO


FDUP – 2018/2019

Este instrumento de trabalho carece de complemento de outros materiais de estudo


indicados pelos docentes.
Nota prévia: este instrumento de trabalho foi elaborado com base nos apontamentos
das aulas do professor Liberal Fernandes, no documento disponível no Sigarra e em 4
manuais: Orlando de Carvalho – Direito das Coisas, Santos Justo – Direitos Reais,
Antunes Varela – Código Civil anotado (III Volume) e Mota Pinto – Teoria Geral do Direito
Civil. Foram incluídas as aulas práticas em que se abordou matéria teórica.

1. Noção de direito real


1.1. O direito patrimonial. As grandes formas de ordenação do domínio

Para poder subsistir o homem necessita de meios de subsistência, de bens, que,


sendo económicos, são naturalmente objeto de conflitos de interesses, o que reclama
uma regra que arbitre a utilização daqueles meios.
A maior parte do Direito é um “direito dos bens” ou um “direito das coisas”, visto
que se destina a permitir ou o acesso a estas últimas ou a pacífica e direta utilização de
tais coisas. No Direito Civil, é o que acontece com todo o direito patrimonial.
No âmbito do Código Civil, existe uma distinção entre direitos patrimoniais e
direitos não patrimoniais. Em suma, os primeiros são os redutíveis a um valor
pecuniário, enquanto que os segundos não são passíveis dessa redução. Por outras
palavras, os direitos patrimoniais são aqueles avaliáveis em dinheiro. Na sua violação, o
ofendido vai ter direito a uma retribuição que, do ponto de vista jurídico, é equivalente
ao bem lesado. Por outro lado, no âmbito dos direitos não patrimoniais, se o bem da
pessoa for lesado, esse bem (dignidade, honra, bom nome) não é traduzível num
equivalente, não é avaliável em dinheiro. Quando são lesados, a única forma é
compensar esse dano. Está numa ideia de natureza jurídica do direito.
Como tal, os direitos reais são direitos patrimoniais, podemos ver o objeto sobre
os quais incidem, são direitos que os bens objeto são avaliáveis em dinheiro, são
traduzíveis do ponto de vista jurídico em dinheiro.

Uma outra classificação relativa ao Direito do Código Civil é entre direitos


absolutos e direitos relativos. Os primeiros são aqueles que se dirigem à generalidade
das pessoas, que podem interferir com o respetivo exercício. São oponíveis erga omnes,
contra todos. Por outro lado, os direitos relativos dirigem-se a uma pessoa certa e
determinada. É o caso do Direito das Obrigações, em que há um credor e um ou vários
devedores, mas determinados. Já os direitos reais são direitos absolutos, tal como os
direitos de personalidade. A partir daqui já se deduz que o direito real é um direito que
confere poder ao titular que todos os outros devem respeitar, tem eficácia contra todos
os não titulares.

Quando falamos nos direitos reais, convém referir o seguinte aspeto: são direitos
que têm por objeto os bens económicos (aqueles que têm valor de mercado), o direito
que versa sobre estes bens num sentido mais amplo que os direitos reais chama-se
direito patrimonial. Isto permite-nos distinguir direitos reais e direitos de crédito, apesar
de estes também terem por objeto bens económicos, bens suscetíveis de avaliação
pecuniária.
Quando falamos em bens, há que fazer uma distinção. O direito patrimonial não
abrange os bens da personalidade, não patrimoniais, os bens ligados à pessoa, são
direitos absolutos, mas que não se enquadram no ramo do direito patrimonial.

2
Quando falamos no direito patrimonial que tem por objeto bens económicos, há
dois tipos de normas que, tendo embora por objeto o mesmo bem, têm natureza
diferente, o objeto ou funcionalidade é diferente. Podemos ver a forma como é regulado
o acesso aos bens, como as pessoas podem aceder aos bens, uma dimensão deste
direito patrimonial regula o acesso da pessoa aos bens; outro regula o efetivo domínio
dos bens, como são fruídos.
O Direito das Obrigações regula o acesso aos bens através dos contratos de
compra e venda, através de toda a panóplia de conceitos e institutos, todos eles se
dirigem à obtenção de um bem económico e, portanto, são normas que regulam o
acesso aos bens. Os direitos reais, por sua vez, regulam a chamada apropriação dos
bens, a imediata utilização dos bens. Têm este aspeto comum de serem ambos direitos
patrimoniais, mas enquanto um regula o acesso aos bens, por sua vez, o direito real
regula o domínio e a utilização desses bens. 1
Vejamos o exemplo da locação, do arrendamento: um bem imóvel, sendo objeto
de um direito de propriedade no âmbito dos direitos reais, estes regulam a apropriação
do bem, a forma como a pessoa vai utilizar a casa. Se alguém celebra um contrato de
arrendamento com o dono desse bem, este contrato de arrendamento é o meio jurídico
que lhe permite aceder e utilizar o bem. Enquanto o contrato de arrendamento é o meio
que permite aceder ao bem, o direito de propriedade é o conjunto de normas que regula
o domínio e utilização do bem. Muito embora o bem seja usado em pleno, a situação
jurídica é diferente. Enquanto o inquilino tem um mero direito de crédito, o proprietário
goza de um direito de propriedade, os poderes são diferentes, embora versem sobre o
mesmo objeto. Concretamente, o arrendamento regula a relação entre o inquilino e o
senhorio (relação entre credor e devedor), está em causa uma relação entre pessoas
que tem pelo meio um bem; a relação entre o senhorio e o bem é de pleno domínio, é
uma relação com a coisa. Os bens circulam no âmbito das obrigações, mudam de dono,
dinâmica do domínio das obrigações. Nos direitos reais, são relações com as coisas; nos
direitos das obrigações, são relações entre pessoas. Falamos de obrigações de dare, que
têm como objeto imediato a coisa.
Do ponto de vista dos interesses, o direito sobre as coisas vem a responder,
essencialmente, a dois interesses basilares: ao interesse de imediação – o interesse na
satisfação das necessidades sem intervenção ou mediação de outra pessoa –, o qual
preside ao seu licere ou ao conteúdo do direito; e ao interesse de estabilização – o
interesse numa maior estabilidade ou segurança –, o qual preside à protectio ou à
sanção que o acompanha. Ao passo que as obrigações servem interesses de alteração,
isto é, principalmente a circulação dos bens ou a dinâmica jurídica, os direitos sobre as
coisas servem interesses de conservação, isto é, principalmente a dominação dos bens,
a estática jurídica.

1
Nas palavras de Orlando de Carvalho: “Se o Direito do património é claramente um Direito “dirigido aos
bens”, não está, relativamente a esses bens, no mesmo e único grau de proximidade. Há um Direito do
património que propicia e regula singelamente o acesso às coisas – que apenas regula o caminho para a
sua direta utilização – e um Direito do património que está no termo deste caminho, que regula esta
direta utilização das coisas. O Direito das Obrigações é o primeiro desses Direitos, pois se alguma
utilização já consente dos bens é uma utilização tão-somente indireta, uma utilização derivada do
compromisso do devedor e continuamente condicionada à prestação que ele prometeu. O Direito das
Coisas é esse específico direito patrimonial que regula o domínio dos bens ou das coisas, como um
autêntico e autónomo poder sobre os mesmos.”

3
O Direito das Coisas é aquele direito patrimonial que regula o próprio domínio
dos bens em si mesmos, a direta e imediata relação com as coisas. Tratam-se de direitos
particularmente relativos às coisas, de direitos que incidem diretamente sobre as coisas.
Não incidem diretamente sobre pessoas ou sobre bens incindíveis da pessoa, opondo-
se desta sorte aos direitos de personalidade e aos direitos sobre pessoa de outrem.

1.2. Distinção entre direitos reais e direitos de crédito: a teoria realista e a teoria
personalista. A doutrina monista de Demogue

O que caracteriza o direito das coisas em contraposição ao direito de crédito,


sabendo que se trata em ambos os casos de direito patrimonial, ou seja, de direitos
tipicamente dirigidos às coisas, que se situam no caminho de acesso do homem às
coisas?
Na distinção entre direitos de crédito e direitos reais, utiliza-se como critério a
natureza da estrutura do direito, da forma de ser do direito e é por essa diferente
estrutura que se distinguem os direitos de crédito dos direitos reais.2
Há duas teorias: a teoria clássica ou realista e a teoria personalista ou
obrigacionista.
De acordo com a teoria clássica3, no direito real há uma relação direta entre o
homem e a coisa, daí falar-se num poder direto e imediato, ou seja, no plano jurídico
temos uma relação direta com a coisa, não carece da colaboração de ninguém. No
direito de crédito, por outro lado, temos uma relação de uma pessoa com uma coisa,
mas que só é possível com a intervenção de um terceiro. De acordo com esta teoria, no
direito de crédito, há uma relação indireta e mediata com as coisas, porque essa ligação
à coisa está dependente da prestação de um terceiro que, neste caso, será o devedor.
Até ao século XIX esta doutrina foi unânime e encontra expressão bem patente na
Exposição de Motivos do BGB. Esta diferenciação pressupõe uma certa realidade
empírica. Se é dono de uma coisa, tem um poder direto e imediato sobre a coisa. Do
ponto de vista jurídico, é uma natureza que distingue os dois direitos, mas não deixa de
corresponder à situação empírica do dia-a-dia.
No entanto, esta teoria foi posta em questão: as relações jurídicas são entre
pessoas, são intersubjetivas e temos de encontrar essa intersubjetividade que não é
dada pela doutrina supracitada que assenta na relação homem-coisa. Temos aqui uma
relação de pessoas com as coisas em que a doutrina realista distinguia as obrigações dos
direitos reais. E o lado passivo? Numa relação jurídica, tem de existir o lado passivo face
ao lado ativo.4

2
Nas palavras de Orlando de Carvalho: “Em todo o direito de crédito existe um direito sobre uma
prestação, prestação essa que, como comportamento de uma pessoa (positivo ou negativo), é
evidentemente incindível dessa pessoa, é sempre um facere ou um non facere dessa pessoa.”
3
Segundo Orlando de Carvalho, a primeira demarcação que conheceu a doutrina foi a da chamada teoria
realista, que atende, antes de tudo, à relação homem-coisa. Característico do direito real é ser um poder
direto e imediato sobre uma coisa, é exprimir uma relação entre uma pessoa e uma coisa. Isto significa
que não há intermediário entre o titular e o objeto do direito, ao invés do que se passa com o direito das
obrigações, em que o objeto só acede ao titular por mediação de outro indivíduo, que é justamente o
devedor. Estrutura simples e linear e não intersubjetiva, na relação do direito das coisas; estrutura
complexa ou triangular e intersubjetiva, na relação do direito das obrigações.
4
De acordo com Orlando de Carvalho, com Planiol, esta teoria é sujeita a uma crítica de fundo, que põe
a nu a relação intersubjetiva que é necessariamente a relação de direito e, por conseguinte, também a do

4
Daí a nova teoria ser designada personalista, porque põe em destaque as pessoas
que intervêm na relação real ou obrigacional. Trata-se igualmente de uma perspetiva
estrutural ou anatómica – de uma mera correção das estruturas a distinguir. De acordo
com esta teoria, os direitos de crédito são relações entre pessoas certas e determinadas,
relação homem-homem determinados. No direito real, conhecemos o titular, mas não
conhecemos os sujeitos passivos obrigados a respeitar este direito real, relação homem-
sujeitos desconhecidos. A perspetiva mudou, deixou de ser uma relação das pessoas
com as coisas, para ser uma relação das pessoas com as pessoas. O que contradistingue
a relação de direito das coisas é que não há um outro homem, um contra-sujeito
particularmente individualizado. O que a contradistingue é que há uma multidão de
contra-sujeitos, ou de sujeitos passivos, em semelhante relação: todos, em suma, com
exceção do titular do próprio direito em concreto. A característica da obrigação do
direito das coisas é ser ela uma obrigação passiva universal. Esta obrigação tem um
conteúdo preciso – o dever de abstenção do devedor, sendo apenas distinta da do
direito de crédito em não incidir sobre a pessoa A ou B, mas incidir sobre todos os
indiscriminados concidadãos. Será, portanto, uma relação homem-homem, só que, no
direito de crédito, este último é concretamente determinado; no direito real, é
concretamente indeterminado, ou seja, qualquer homem conflituante com o domínio
do homem A. De todo o modo, uma estrutura, num caso e noutro, intersubjetiva,
embora, no primeiro, por via de regra, bilateral e, no segundo, naturalmente
multilateral.
Levada ao extremo, esta segunda teoria leva a uma outra conceção que, na
prática, acabava com a distinção entre direitos de crédito e direitos reais, pois acaba por
reduzir o direito real a um direito de crédito. Em sua substituição, optou-se pela
dicotomia direitos fortes e direitos fracos. Verificava que entre os direitos de crédito e
direitos reais não existe uma diferença fundamental de estrutura, a diferença
subsistente é uma diferença apenas quantitativa. O que distingue os dois direitos não é
uma diferença qualitativa, mas quantitativa. Um autor francês, Demogue, adotou esta
conceção no sentido de os direitos distinguirem-se pelo número de sujeitos passivos. Os
direitos fortes eram aqueles que eram oponíveis a uma infinidade de pessoas, enquanto
que os direitos fracos têm lugar entre pessoas certas e determinadas. Na prática, deixa
de ter sentido distinguir direitos reais e direitos de crédito, porque é uma questão de
número de pessoas.5
Se o absurdo de uma relação homem-coisa é indiscutível em face da noção de
dever-ser, se o Direito postula necessariamente alteridade ou intersubjetividade, não é

homem com as coisas. Todo o direito supõe alteridade ou intersubjetividade. A relação que se estabelece
tem de ser sempre relação homem-homem, e o que, quando muito, poderá acontecer é, como no direito
das coisas, um desconhecimento do sujeito passivo, desconhecimento que leva então a pensar numa
relação pura e simples da coisa com o homem. Assim surgiu a teoria personalista que salienta a relação
do homem com os homens que necessariamente se oculta atrás daquela aparente relação.
5
Nas palavras de Orlando de Carvalho: “Demogue, num desenvolvimento da teoria personalista, defende
que, havendo em ambos os casos uma relação entre pessoas, obrigação passiva universal não é senão um
cambiante da obrigação geral de respeito que existe para os créditos como para os direitos de outra
ordem. A diferença é só quantitativa: há certos direitos – direitos fracos em que a obrigação ou a relação
só se estabelece diretamente com alguns, e é o caso dos direitos de crédito; e há outros direitos – direitos
fortes – em que a obrigação ou a relação se estabelece diretamente com todos, e é o caso dos direitos
reais. Uma diferença de força ou simplesmente de grau.”

5
menos certo que a simples relação homem-homem esvazia de sentido a ligação densa
e íntima, esse peso dos bens, que é a contra-senha do direito sobre as coisas.

1.3. A pertinência das doutrinas realista (lado interno ou conteúdo do direito real) e
personalista (lado externo ou sanção do direito real)

Se tomarmos qualquer das duas posições, é manifesto que qualquer delas não
chega, que qualquer delas é uma posição unilateral. A visão clássica da teoria realista é
manifestamente uma visão empírica, que sobrevaloriza o conteúdo do direito, com
menosprezo do momento da sanção. Só há direito na medida em que há uma protectio
e, portanto, na medida em que a relação e poder com a coisa, a vinculação direta da
coisa ao sujeito, é garantida por essa ordenação, delimitação ou tutela. Por seu turno, a
teoria personalista é uma visão jurídica, uma teoria que desconhece o conteúdo do
direito e sobrevaloriza o momento sancionatório. A sanção que acompanha a obrigação
é instrumento de efetivação do acesso do homem ao bem, sendo a nota decisiva em
qualquer caso, do direito, não a protectio que o sanciona, mas o poder em si, o licere, o
conteúdo da atuação que se permite ao titular.
Atualmente, entende-se que cada uma das doutrinas tem a sua razão de ser,
porque o direito real é uma realidade complexa que carece destes dois momentos ou
duas formas de estruturar os direitos reais, no sentido de que da sua consagração é que
se retira uma compreensão do direito real. De facto, o direito real tem de ser uma
relação intersubjetiva e um dos aspetos que o distingue da relação obrigacional é o que
diz a teoria obrigacionista em que se conhece o sujeito passivo, mas em ambos os casos
há uma intersubjetividade.
Mas a diferença não se esgota aí, o elemento de compreensão não é apenas esse.
Para existir um direito que se impõe à generalidade das pessoas, é porque a lei
reconhece um poder que exclui todos os outros titulares e é por isso que este elemento
de poder direto e imediato é necessário. Verdadeiramente, o que está na origem da
configuração do direito real é o facto de ser um poder direto e imediato que leva à
exclusão de todos os outros. Mas tal não é compreensível sem introduzir a dimensão
intersubjetiva deste fenómeno. E é por a ordem jurídica reconhecer esse poder direto e
imediato que há esta consequência de ser um poder erga omnes.
Cada uma das doutrinas é unilateral, só olha para um aspeto, mas ambos são
necessários para compreender o direito real. A existência de um poder direto e imediato
leva a que todos os outros estejam obrigados a não interferir. Este realismo e a
intersubjetividade são essenciais para compreendermos o direito real. A teoria realista
olhava ao poder direto e não atendia a quem eram os sujeitos abrangidos, os
personalistas olhavam apenas à intersubjetividade e esqueciam o conteúdo do direito.
Destas considerações resulta que, como em todos os direitos, é preciso atender,
no direito real, à sanção e ao conteúdo, à protectio e ao licere, ao lado externo e ao lado
interno, ou com mais precisão, ao seu lado instrumental e ao seu lado essencial.
Quando olhamos ao direito real, temos o elemento interno6, o conteúdo (o
poder direto e imediato) e o elemento externo7, a eficácia externa (erga omnes). Da

6
Quanto ao lado interno, diz Orlando de Carvalho que, no direito real, o poder incide imediatamente
sobre uma coisa, é um poder direto e imediato sobre uma coisa.
7
Quanto ao lado externo, diz Orlando de Carvalho que, no direito real, a tutela é absoluta, erga omnes –
dirigida contra a generalidade das pessoas que podem interferir com o exercício do direito.

6
eficácia erga omnes parte o poder direto e imediato. Isto significa que, para
percebermos o que é um direito real, não podemos dissociar o aspeto interno do
externo, só da sua conjugação podemos ter uma compreensão plena do direito real, não
se esgota nessa coisa, na medida em que o poder sobre a coisa vai interferir na esfera
jurídica de todos os outros. Quem são esses todos os outros? São todas aquelas pessoas
sobre as quais recai a obrigação universal passiva, é uma não interferência, é um non
facere8.
Há normas mais dirigidas ao lado interno e que têm reflexos no lado externo e o
oposto. Do lado externo, temos que o direito real é um direito absoluto, com eficácia
erga omnes. Do lado interno, temos o direito real como poder direto e imediato,
autónomo sobre a coisa.
Em suma, quanto ao lado externo, fala-se, no direito real, de uma eficácia
absoluta ou erga omnes, e, no direito de crédito, de uma eficácia relativa; e, quanto ao
lado interno, fala-se, no direito de crédito, de um poder de exigir ou de pretender um
certo comportamento específico, que só reflexa e eventualmente propicia o bem ao
interessado, e, no direito real, de um poder de usar, de fruir ou de dispor de uma coisa,
de um domínio parcial ou total dessa coisa, que só reflexamente vincula o
comportamento de outras pessoas.

1.4. A moderna noção de direito real: a síntese entre o lado interno e o lado externo
do direito real

Deste contraste entre os dois direitos, retira-se, portanto, a ideia de que o direito
real é (acentuando-se o lado interno) o que impõe a qualquer pessoa a obrigação de
respeitar o poder jurídico que a lei confere a uma pessoa determinada de extrair de bens
exteriores todas ou parte das vantagens que permite a sua posse; ou (acentuando-se o
lado externo) o que, atribuindo a uma pessoa um poder jurídico direto e imediato sobre
uma coisa, é, por isso mesmo, suscetível de ser exercido, não apenas contra certa pessoa
determinada, mas contra todos e em confronto de todos.
O direito real9 é um direito que confere o domínio soberano, é autónomo no
sentido de que não está dependente de ninguém. Quando falamos no domínio dos bens,
o poder direto e imediato dos bens, falamos no âmbito de direitos absolutos, é a lei que
o determina, podemos estar a falar naquele tipo de regulação que se faz através dos
direitos reais, quando a ordem jurídica reconhece um poder jurídico, um direito que é
qualificado como direito real sobre um bem, a questão de domínio sobre esses bens não
apresenta dificuldades, na medida em que os diversos titulares são conhecidos, mas
pode haver situações em que o titular ou titulares da coisa não sejam conhecidos ou
levante problemas de definição e aqui é que está a questão central.

8
Segundo Santos Justo: “direito real como o poder direto e imediato sobre uma coisa que a ordem jurídica
atribui a uma pessoa para satisfazer interesses jurídico-privados nos termos e limites legalmente fixados.
Trata-se de um poder de domínio ou de soberania que o seu titular exerce direta e imediatamente sobre
uma coisa certa e determinada sem a interferência de qualquer pessoa, a quem corresponde uma
obrigação de non facere.”
9
Nas palavras de Orlando de Carvalho: “poder direto e imediato sobre uma coisa, impondo-se à
generalidade dos membros da comunidade jurídica e constituindo uma aproximação, derivação ou
expressão da forma plena de domínio sobre os bens – com vista a organizar solidamente as infraestruturas
socioeconómicas dadas.”

7
No primeiro caso em que o domínio (poder sobre as coisas) é regulado através
dos direitos reais, não há qualquer lacuna conhecido o titular da coisa, falamos de
ordenação dominial definitiva dos bens, porque não muda, é operada através dos
direitos reais e estes são a forma extrema de regular o direito sobre as coisas, sobre os
bens económicos.
Conhecidos os direitos reais sobre determinada coisa e quem são os respetivos
titulares, não se levantam problemas. Mas pode haver situações em que não se
conheçam os titulares dos direitos ou existem dúvidas sobre os respetivos titulares –
são as lacunas dominiais. O funcionamento dos direitos reais não deixa de apresentar
lacunas, pois, por vezes, não se sabe quem são os titulares ou mesmo os direitos reais
que versam sobre determinada coisa. São lacunas dominiais neste sentido, a coisa existe
e não é o desconhecimento da coisa, é o desconhecimento dos titulares e os direitos
que têm. Enquadram-se no âmbito da posse que surge para regular estas lacunas dos
direitos reais. Por isso é que Orlando de Carvalho denomina esta situação por ordenação
dominial provisória. Sabemos já que sobre as coisas podemos ter 2 tipos dominiais:
- serem conhecidos os direitos e os respetivos titulares sobre essa coisa;
- ou não serem conhecidos os titulares ou mesmo os direitos reais que incidem sobre a
coisa, estamos no âmbito da posse, das lacunas dominiais.

1.5. O direito de propriedade como paradigma do direito das coisas

Toda a estrutura dominial, toda a história do domínio sobre as coisas assenta no


específico poder do direito de propriedade que tem dado a configuração a este sistema
de domínio real sobre as coisas. Por isso, quando falamos num direito real, temos
sempre como matriz e por referência o direito de propriedade, porque o seu conteúdo
é o direito que integra todas as especificidades do direito real, todas as suas
características se encontram plasmadas na sua forma mais correta e absoluta na
propriedade. A propriedade, em princípio, é o mais amplo dos direitos, visto o seu
conteúdo englobar todos os outros direitos possíveis, que são ramos ou partes
destacadas do mesmo. Além de ser a matriz dos outros direitos das coisas, a
propriedade é o suporte de toda a organização do domínio – o que lhe confere um
caráter essencial – e a única forma com capacidade expansiva para realizar plenamente
e autonomamente esse domínio – para extrair todas as vantagens do bem que este
inclui atual ou potencialmente na sua posse.
O direito real é o direito de propriedade, por isso é que todo o sistema dominial
parte e tem por base o direito de propriedade. Está no início e no fim da lógica dominial
dos bens, significa que todo o domínio tende para ser individual e imediato. Está
presente uma lógica individualista do direito de propriedade, configurada no Código
Civil. É o direito que comanda toda a lógica e vicissitudes dominiais, são determinados
pelo direito de propriedade.

Com efeito, verifica-se uma centralidade concetual e regimental do direito de


propriedade – há uma identificação do direito real com o direito de propriedade,
significa que, na génese de toda a relação dominial, assenta e parte do direito de
propriedade. Todo o sistema de direitos reais é uma circulação do e para o direito de
propriedade.

8
2. Obrigações reais e ónus reais: breve distinção

Residualmente, há algumas figuras que não se pode dizer que sejam com
precisão direitos reais nem direitos de crédito, porque têm características destes dois
tipos de direitos. A doutrina nacional tem agrupado esse conjunto de relações jurídicas
sob a designação de obrigações reais10 e ónus reais.
No que diz respeito às obrigações reais, veja-se o exemplo da propriedade
horizontal. Paga-se condomínio porque se é proprietário de uma fração que tem
despesas que têm de ser suportadas pelo responsável imediato por elas. Isto é uma
obrigação de contribuir para as despesas do condomínio, que está ligada
incindivelmente a um direito real. Este é o exemplo que melhor traduz o que é uma
obrigação real. São encargos sobre quem é titular do direito real. O que tem de
particular é que a razão de ser desta obrigação é a titularidade do direito real, a
obrigação surge porque se é titular de um direito real. Por outro lado, para além desta
relação causal entre direito real e obrigação, há também uma relação subjetiva – é
titular do direito real quem é titular da obrigação. Há, portanto, uma relação estrutural
e funcional entre ambos.
Um outro exemplo: obrigação de os comproprietários contribuírem para as
despesas da coisa comum. Também o usufrutuário está obrigado a reparar as despesas
relativas à fruição normal do bem. Dada esta relação estrutural e funcional da obrigação
com o direito real, significa que com a transmissão do direito real, transfere-se a
obrigação. Significa que, no exemplo do condomínio, o adquirente da fração só é
responsável pelas obrigações vencidas após a respetiva aquisição, as obrigações
vencidas anteriormente continuam a ser da responsabilidade do vendedor. Por outro
lado, o devedor, para se desonerar da obrigação, tem de transmitir, tem de alienar o
direito real.
Quanto aos ónus reais, não há uma noção inequívoca, porque nesta designação
estão incluídas determinadas relações jurídicas que não têm uma natureza única,
unitária, há situações que são divergentes entre si, mas dado que a doutrina recorre a
esta designação para abranger todas estas situações, mantém-se a mesma. Não
obstante, o ónus real pode definir-se como uma relação que se traduz num gravame
especial, num peso ou ónus sobre uma coisa.
O que tem de comum? A existência de um encargo, de uma obrigação que versa
sobre a coisa que lhe serve de objeto. Aqui também temos uma certa inerência de uma
obrigação com direito real, simplesmente o enquadramento é diferente porque o
encargo versa sobre uma coisa que lhe serve de objeto. Por outro lado, esse encargo
tem eficácia erga omnes, enquanto que a obrigação real é oponível apenas a certos
sujeitos.
No artigo 959.º do CC, no âmbito da doação, esta norma diz, no nº 1, que o
doador pode reservar para si o direito de dispor. Temos alguém que transmite a
propriedade, o novo proprietário fica com o encargo e este tem por objeto a coisa sobre

10
No entendimento de Santos Justo: “A obrigação real é um vínculo jurídico em que o titular de um direito
real se encontra adstrito, para com outra pessoa, à realização de uma prestação positiva. Ou seja, a pessoa
obrigada determina-se por ser titular de um direito real. Já o seu titular ativo pode ser ou não titular de
um direito real.”
“As obrigações reais são estruturalmente verdadeiras obrigações: vínculos jurídicos por virtude dos quais
uma pessoa (titular de um direito real) fica adstrita, para com outra, à realização duma prestação.”

9
a qual ele é titular de um direito real. Neste caso, o encargo é a obrigação de transmitir
por morte o bem doado a outra pessoa ou o direito de auferir determinada quantia
sobre os bens doados. Há aqui uma obrigação por parte do novo adquirente que tem
por objeto o bem sobre o qual recai o direito real. Aqui temos também uma obrigação
que é imposta ao titular de um direito real.
Veja-se, a título de exemplo, o apanágio do cônjuge sobrevivo, em que,
falecendo um dos cônjuges, o outro tem o direito de ser alimentado. Temos aqui uma
obrigação que recai sobre os sucessores e que consiste em atribuir uma certa quantia
por conta dos bens recebidos. Há aqui já uma diferença entre o ónus real e a obrigação
real – enquanto na segunda a obrigação está relacionada com a titularidade, mas tem
por objeto o património do devedor, não incide sobre a fração, quem responde é o
património do titular; no ónus real, o cumprimento dessa obrigação decorre dos
rendimentos que a coisa objeto desse direito real proporcionar. Também no ónus real
o titular está obrigado a realizar determinada prestação, mas, por outro lado, o encargo
está ligado à coisa que é objeto do direito real, o que significa que esse encargo é
garantido pelo próprio rendimento da coisa. Na medida em que temos um encargo que
incide diretamente sobre uma coisa, tem eficácia real, é oponível erga omnes. Qualquer
posterior adquirente do bem continua obrigado ao cumprimento da obrigação, tem
eficácia externa, fica obrigado às obrigações vencidas posteriores e anteriores. Esta
eficácia erga omnes não existe na obrigação real.
Portanto, o devedor é o titular do direito real sobre a coisa onerada na data do
vencimento da prestação. Por isso, se o direito real que a tem por objeto for cedido, o
devedor das obrigações vencidas é o alienante; e das vincendas, o adquirente. Porém,
porque o ónus incide sobre a coisa, o credor pode proceder à sua execução
independentemente do seu titular, gozando de prioridade sobre os credores (do atual
titular do direito real) que não disponham de melhor garantia.

II - O objeto dos direitos reais


3. O objeto dos direitos reais
3.1. Noção jurídica de coisa

O que é uma coisa? O nosso Código Civil define coisa, no artigo 202.º nº 1, como
“tudo aquilo que pode ser objeto de relações jurídicas”. Uma coisa é um bem, é algo
que tem valor, mas é um bem que é passível de um estatuto permanente de domínio,
ou seja, só é coisa aquilo que pode ser objeto de um direito real, estamos no âmbito da
ordenação dominial definitiva que não oferece contestação. E é importante este
elemento de permanência, porque sobre as pessoas também há um poder de domínio,
mas não é permanente, veja-se o caso do Direito do Trabalho.
Que bem é este? Em primeiro lugar, são bens cuja existência é separada da
pessoa, são bens externos à própria pessoa. Claro que a pessoa integra bens corpóreos
e não corpóreos, por exemplo, a honra e a dignidade, que não têm separação da pessoa.
Ao proteger-se a honra, protege-se a pessoa, não é externa à pessoa.
Por outro lado, os bens económicos opõem-se aos bens livres, já que só é uma
coisa aquilo que possa ser objeto de uma apropriação exclusiva, que se processa através
do direito real, falamos, portanto, de bens que não são livres (a água é um bem livre,
mas uma garrafa de água não). Só é coisa o bem apto a satisfazer necessidades.

10
O que é que não são coisas? A pessoa e os direitos sobre a pessoa. São objeto
dos direitos de personalidade ou dos direitos sobre a pessoa de outrem (poder-dever
imediato sobre a pessoa de outrem). Por isso se fala de estatuto permanente de
domínio, porque a pessoa pode ser objeto de estatuto de domínio, mas não é
permanente, só enquanto a pessoa precisa e sempre no seu interesse.
Também não são coisas as prestações, estão ligadas às pessoas, pois são seus
comportamentos e indissociáveis destas. Também não o são as situações económicas
não autónomas. Se é económico, podia ser objeto de direito real, mas sobre elas não há
um estatuto direto permanente de domínio.
Quando se trata dos direitos de personalidade, temos a pessoa que é
simultaneamente titular e objeto. Esta tutela pode-se conceber através de uma tutela
geral de personalidade ou através de direitos específicos de personalidade.
Depois há o direito sobre a pessoa de outrem – há uma pessoa que tem um
direito que tem por objeto uma outra pessoa, como é o caso dos pais em relação aos
filhos. O representante legal dos maiores acompanhados tem um direito absoluto que
tem por objeto uma pessoa, não é do mesmo tipo que o direito real; do ponto de vista
funcional, também não é o mesmo que os direitos de personalidade. Mas há limites,
porque o direito é exercido em favor do objeto desse mesmo direito, deve exercê-lo na
tutela dos interesses do objeto e não do titular do direito.

Quanto à classificação das coisas, remete-se para o que se aprendeu em Teoria


Geral do Direito Civil, sendo que ora se fará uma breve exposição sobre o referido
tópico11.

Coisas imóveis e coisas móveis

O nosso legislador não define coisas imóveis e coisas móveis. Limita-se a fazer
uma enumeração taxativa das coisas imóveis e a considerar, por exclusão, que as outras
são imóveis – artigos 204.º nº 1 e 205.º nº 1 do CC.

Prédios rústicos e prédios urbanos

São as primeiras coisas imóveis referidas no nosso Código Civil, no artigo 204.º
nº 1 alínea a).
Os prédios rústicos, que são imóveis por natureza, são definidos como “uma
parte delimitada do solo e as construções nele existentes que não tenham autonomia
económica”, conforme o disposto no artigo 204.º nº 2.
Por sua vez, os prédios urbanos, que são imóveis por ação do homem, são
definidos como “qualquer edifício incorporado no solo, com os terrenos que lhe sirvam
de logradouro”. Portanto, o edifício é elemento essencial do prédio urbano e é possível
defini-lo como uma construção que pode servir para fins diversos, constituída
necessariamente por paredes que delimitam o solo e o espaço por todos os lados e por
uma cobertura superior e se encontra unido ou ligado ao solo, fixado com caráter de
permanência por alicerces, estacas, colunas ou qualquer outro meio.

11
Seguimos a exposição de Santos Justo.

11
Águas

Em segundo lugar, o Código Civil refere, como coisas imóveis, as águas, no artigo
204.º nº 1 alínea b). Trata-se, naturalmente, de águas particulares e desintegradas dos
prédios por lei ou negócio jurídico: de contrário, são partes componentes ou integrantes
do prédio em que se integrem (artigo 204.º nº 1 alínea e) do CC).
Mesmo que tais águas estejam em movimento, não deixam de se considerar
imóveis, porque se encontram delimitadas pelo leito e pelas margens do respetivo
curso.

Árvores, arbustos e frutos naturais

As árvores, arbustos e frutos naturais surgem em terceiro lugar na enumeração


legal das coisas imóveis, na condição de se encontrarem ligadas ao solo (ou, tratando-
se de frutos, estarem pendentes): exige-se uma conexão material.
Enquanto ligadas ao solo, as árvores, arbustos e frutos naturais têm um destino
jurídico unitário e, por isso, a venda do solo abrange-os, se o contrato expressamente
não os afastar.

Direitos inerentes a imóveis

Como quarta categoria de imóveis, o Código Civil refere os direitos inerentes aos
prédios rústicos e urbanos, às águas e às árvores, arbustos e frutos naturais, enquanto
estiverem ligados ao solo. Trata-se, portanto, de direitos de natureza real.

Partes integrantes de prédios rústicos e urbanos

O nosso Código Civil define-as como “toda a coisa móvel ligada materialmente
ao prédio com caráter de permanência” (artigo 204.º nº 3).
A doutrina distingue as partes integrantes das partes componentes. Estas são as
coisas que pertencem à estrutura dum prédio que, por isso, não se pode considerar
completo sem elas ou é impróprio para o uso a que destina. Por seu lado, as partes
integrantes não se ligam à estrutura do prédio que, portanto, não deixa de, sem elas,
estar completo e prestável ao uso a que se destina: tão-só aumentam a sua utilidade,
proporcionando-lhe maior produtividade, segurança, comodidade ou embelezamento;
por isso, desempenham uma função auxiliar ou instrumental.
As partes integrantes perdem esta qualidade e recuperam o estatuto de móveis
logo que sejam separadas materialmente do prédio, ou seja, quando sofram uma
desimobilização ou mobilização.

Coisas simples e coisas compostas

O nosso Código não define coisa simples. Refere, no artigo 206.º, que “é havida
como coisa composta, ou universalidade de facto, a pluralidade de coisas móveis que,
pertencendo à mesma pessoa, têm um destino unitário”; e dispõe que “as coisas
singulares que constituem a universalidade podem ser objeto de relações jurídicas
próprias”.

12
A doutrina considera que as coisas simples constituem uma unidade natural ou
têm uma individualidade corpórea unitária quer por natureza, quer por ação do homem
que as produziu através da fusão ou compenetração íntima de vários elementos cuja
existência física se perdeu no todo.
Entende ainda que as coisas compostas são as que se formam pela reunião ou
combinação de várias coisas simples, que conservam a sua individualidade física sem
prejuízo do nexo que as envolve.
No entanto, considera-se que este critério puramente físico ou naturalístico que
distingue coisas simples e compostas deve ser recusado e substituído por um critério
jurídico, segundo o qual as coisas simples constituem uma unidade (exemplos: relógio,
anel com pedras preciosas), enquanto as compostas resultam da reunião ou agregação
de várias coisas simples que conservam a sua individualidade económica (função e valor
próprio no comércio), não obstante o nexo que as envolve (exemplos: rebanho,
biblioteca, coleção de moedas).
A figura das universalidades suscita algumas dificuldades, como a de saber se
poderá ser objeto de uma única relação jurídica, diferente das que incidem sobre cada
um dos seus elementos.
Segundo a teoria unitária, a universalidade globalmente considerada pode ser
objeto de uma única relação jurídica. É possível doar uma universalidade de facto (artigo
942.º nº 2) e constituir um usufruto (artigo 1462.º).
Já a teoria atomista considera que só as partes podem ser objeto de relações
jurídicas, ainda que a sua conexão económica que as une possa justificar alguns desvios
na sua regulamentação.
O nosso Código Civil consagrou a teoria unitária: por um lado, fala de destino
unitário (artigo 206.º nº 1); e, por outro, poder-se-á entender que se “as coisas
singulares que constituem a universalidade podem ser objeto de relações jurídicas
próprias” (artigo 206.º nº 2), também podem ser objeto de uma relação jurídica unitária.
Finalmente, é de considerar que a universalidade de facto não perde a sua
individualidade se, em qualquer momento, os seus elementos se alterarem (exemplo:
um rebanho não de ser a mesma universalidade de facto se morrerem algumas cabeças,
entretanto substituídas pelas crias que nasçam).

Coisas fungíveis e coisas não fungíveis

O Código Civil define coisas fungíveis como aquelas “que se determinam pelo seu
género, qualidade e quantidade, quando constituam objeto de relações jurídicas”
(artigo 207º).
A doutrina considera fungíveis as coisas corpóreas que intervêm nas relações
jurídicas não in specie, isto é, individualmente determinadas, mas in genere, ou seja,
enquanto identificadas somente através de certas notas genéricas (mais ou menos
precisas) e da indicação duma quantidade a verificar por meio de contagem, pesagem
ou medição. E entende que não fungíveis são as outras.

Coisas consumíveis e coisas não consumíveis

O nosso Código Civil define coisas consumíveis como aquelas “cujo uso regular
importa a sua destruição ou a sua alienação” (artigo 208.º).

13
A doutrina considera que são consumíveis as coisas (corpóreas) cuja utilização
de acordo com o seu destino importa o seu consumo; e entende que este consumo pode
ser material ou civil (ou jurídico): aquele traduz-se na destruição da integridade física da
coisa; este, tão-só na alienação da coisa que sai do património de quem a usa e se
transfere para o de outra pessoa.
Por sua vez, as coisas não consumíveis são aquelas cuja utilização de harmonia
com o seu destino não importa consumo nem material, nem civil. Há, sim, uma
deterioração mais ou menos lenta que, com o tempo, lhes faz perder a sua primitiva
fora e préstimo.
Esta distinção tem especial interesse prático no regime do usufruto, falando-se
de quase usufruto quando o seu objeto é constituído por coisas consumíveis.

Coisas divisíveis e coisas indivisíveis

O Código Civil define coisas divisíveis as “que podem ser fracionadas sem
alteração da sua substância, diminuição de valor ou prejuízo para o uso a que se
destinam” (artigo 209.º). A contrario, são indivisíveis as que não satisfaçam estes
requisitos.
A nossa doutrina refere que são divisíveis as coisas corpóreas que se podem
seccionar em partes distintas sem alteração da sua substância (forma, aptidão para
satisfazer certo género de necessidades) ou diminuição do valor.

Coisas principais e coisas acessórias

O Código Civil considera que “são coisas acessórias ou pertenças as coisas móveis
que, não constituindo partes integrantes, estão afetadas por forma duradoura ao
serviço ou ornamentação de uma outra” (artigo 210.º nº 1); e determina que “os
negócios jurídicos que têm por objeto a coisa principal não abrangem, salvo declaração
em contrário, as coisas acessórias” (artigo 210.º nº 2).
Diferentemente do que ocorre nas coisas componentes ou integrantes, há, nas
coisas acessórias, uma ligação não material, mas simplesmente económica (exemplos:
animais e alfaias agrícolas afetados à exploração de certo prédio rústico).

Coisas futuras

Na definição do nosso Código Civil, “são coisas futuras as que não estão em
poder do disponente, ou a que este não tem direito, ao tempo da declaração negocial”
(artigo 211.º).
Esta definição inspira-se em dois critérios (a existência da coisa e a existência da
titularidade do direito em causa), que permitem distinguir coisas absolutamente futuras
(critério da existência) e coisas relativamente futuras (critério da titularidade).

Frutos

O Código Civil define “fruto de uma coisa o que ela produz periodicamente, sem
prejuízo da sua substância” (artigo 212.º nº 1); e classifica os frutos em naturais e civis:
aqueles “provêm diretamente da coisa”; estes são “as rendas ou interesses que a coisa

14
produz em consequência de uma relação jurídica” (artigo 212.º nº 2). Tratando-se de
universalidades de animais, são frutos “as crias não destinadas à substituição das
cabeças que por qualquer causa vierem a faltar, os despojos, e todos os produtos
auferidos, ainda que a título eventual” (artigo 212.º nº 3).

Benfeitorias

O Código Civil considera benfeitorias “todas as despesas feitas para conservar ou


melhorar a coisa” (artigo 216.º nº 1). Seguidamente, classifica-as em necessárias, úteis
e voluptuárias (artigo 216.º nº 2). E finalmente define as necessárias como “as que têm
por fim evitar a perda, destruição ou deterioração da coisa”; úteis “as que, não sendo
indispensáveis para a sua conservação, lhe aumentam, todavia, o valor”; e voluptuárias
“as que, não sendo indispensáveis para a sua conservação nem lhe aumentando o valor,
servem apenas para recreio do benfeitorizante” (artigo 216.º nº 3).

3.2. Classificação dos animais

Até agora nos direitos patrimoniais distinguimos as prestações das coisas. Surge
agora uma figura jurídica que são os animais, introduzida pela Lei nº 8/2017, e os artigos
201.º-B, 201.º-C e 201.º-D do CC identificam um outro tipo de bem. A referida Lei
também introduz modificações no Processo Civil, no Direito Penal (tutela penal dos
animais) e no Direito da Família (partilha dos animais de estimação).
Os animais são seres vivos dotados de sensibilidade – o que está em causa, do
ponto de vista jurídico, é a tutela da sensibilidade, enquanto natureza jurídica especial
que confere um tratamento autónomo aos animais no plano jurídico. A proteção jurídica
opera nos termos do Código Civil e da legislação especial e depois temos a questão do
regime subsidiário – a natureza é a sua sensibilidade que autonomiza os animais. A
questão está em saber se podemos englobar no conjunto das pessoas ou se são coisas
com regime especial. Parece ao professor que a razão de ser desta autonomização
reside numa característica que a lei introduziu no ordenamento jurídico (a
sensibilidade), a natureza deste bem não tem a mesma dimensão da sensibilidade das
pessoas, tem uma característica que não é das coisas. Por outro lado, apesar de um bem
não ser qualificado como coisa, não significa que não seja objeto de tutela jurídica.
Temos esta questão – aplica-se o regime das coisas e, se aplicarmos o Código
Civil à letra, aplicamos o regime das coisas físicas materiais, mas desde que não sejam
incompatíveis com a sua natureza. Parece ao professor que, do ponto de vista da
classificação, há um terceiro género, porque o que se salvaguarda aqui é a sensibilidade.
A lei fala em animais em geral, mas quando analisamos os interesses mais em
concreto costuma reduzir-se este objeto para os animais de companhia. Por outro lado,
qual o tratamento jurídico a dar aos animais que não são de companhia? De todo o
modo, o que interessa aqui realçar, no âmbito do Direito Civil, é um aspeto que nos
coloca neste terceiro género. O que está aqui em causa, se salientarmos que esta tutela
tem a ver com os animais de companhia, é que temos um novo direito de proteção da
pessoa humana – direito de afetividade que as pessoas nutrem pelos animais. Não
podemos dissociar esta interpelação legal dos animais na falta de outros regimes legais
da tutela indireta dos animais que se traduz para a sensibilidade das pessoas. A

15
sensibilidade que se reconhece nos animais não é mais do que uma manifestação da
personalidade humana.
Subjacente a esta lei merece também a tutela da afetividade das pessoas que
também poderá explicar este terceiro género. Os animais não são tutelados per si
porque são sensíveis, mas é um complemento ao desenvolvimento do bem-estar da
pessoa humana e, nessa medida, há aqui um objeto que não se identifica com a pessoa
e que o Direito protege, são os laços afetivos entre os animais e pessoas.
Temos um regime que coisifica o animal, mas não é uma coisificação completa,
porque há aquela ressalva de se aplicarem as regras de acordo com a natureza própria
dos animais e, por outro lado, nos termos da Lei nº 8/2017, o dono dos animais tem um
direito de propriedade não goza dos mesmos poderes que goza de uma certa coisa que
não seja animal. Uma das características dos direitos reais é o poder de gozar, fruir e
destruir a coisa, o poder absoluto sobre a coisa manifesta-se nestas faculdades. Isso não
acontece com os animais, a referida lei obriga os donos a um especial dever de cuidado,
como a obrigação de alimentar. Portanto, há esta diferença, temos um direito de
propriedade com um conteúdo claramente diferente do clássico direito sobre as coisas
e que tem algumas semelhanças com os direitos de personalidade, nomeadamente com
os poderes sobre pessoa de outrem. A lei introduz poderes-deveres, na medida em que
obriga não só os donos, mas também terceiros, e, nessa medida, poderemos dizer que
estamos perante um regime especial de coisas, mas como a lei nos remete e coisifica,
teremos de continuar a falar em direito de propriedade com um dever de cuidado.
Se o artigo 202.º-D remete para o domínio das coisas, significa que os animais
continuam a ser objeto de posse, de usucapião, de aquisição originária (ocupação), de
usufruto, ou seja, de todos os direitos inerentes a coisas móveis.

3.3. As situações economicamente vantajosas

A conceção de coisa clássica não abrange direitos de personalidade, nem


prestações, nem as situações economicamente não autónomas.
A propósito do estabelecimento comercial é que se fala destas situações
economicamente não autónomas – não têm existência própria, ou melhor, a sua
existência está dependente da titularidade de outros bens. Por exemplo, as escolas
privadas são estabelecimentos comerciais. O valor de um estabelecimento depende das
vendas que efetue, ou seja, da clientela. Esta é o público que consome os bens de
fornecimento. O valor do estabelecimento depende muito dos clientes e das vendas que
se façam, mas não se controla a clientela, pode atrair-se simplesmente, o que vai
determinar o desenvolvimento e a falência do estabelecimento.
A tutela do estabelecimento reclama que este seja protegido contra
determinadas formas ilícitas de subtração da clientela, como a concorrência desleal.
Seja como for, a clientela é uma situação economicamente não autónoma, ninguém tem
um direito real sobre a clientela, pois isso seria um direito real sobre as pessoas. São
valores e interesses não coisificáveis.

3.4. As coisas incorpóreas: criações artísticas, invenções industriais, estabelecimento


comercial - caracterização geral

16
Nos direitos reais sobre direitos, por exemplo, o penhor não tem por objeto o
objeto do direito, tem apenas como direito o direito em si mesmo. Esse valor dado pelo
direito não é uma coisa, na medida em que é uma situação económica ligada a uma
titularidade que é objeto do direito. Entre nós há 5 situações em que são admitidos
direitos sobre direitos, entre elas o penhor de direitos e a hipoteca de direitos.

Surgem outras classificações de coisas, que distinguem:


- coisas móveis
- coisas imóveis (artigo 204.º do CC): elenco taxativo. É de destacar a alínea d) do
referido artigo em que se refere a direitos inerentes a prédios rústicos. Entre nós esta
classificação de direito inerente não tem grande expressão, tem origem no Direito
italiano. O que se tem entendido é que o direito inerente é necessariamente um direito
real. O que se discute é se naqueles créditos que têm por objeto uma obrigação de dare
também se pode falar em direitos inerentes, ao que se tem entendido que só se se
debruçarem sobre coisas imóveis.

- coisa acessória
- parte integrante (artigo 204.º nº 3 do CC)

- coisa futura (artigo 211.º): não se pode dizer que seja uma noção correta. Se olharmos
à letra deste preceito, são coisas que não estão no poder do disponente, estão no poder
de outrem, não existem ou o sujeito não tem direito sobre elas. Esta noção aproxima-se
muito mais de coisa inexistente ou de coisa alheia. De acordo com Orlando de Carvalho,
esta noção não pode ser lida à luz deste texto legal. Uma coisa futura é uma coisa que
se espera vir a adquirir e esta sim pode ser alheia ou inexistente. Para alguém poder
dispor de uma coisa, do ponto de vista do comércio jurídico, só faz sentido que, ao
tempo em que dispõe a coisa, dá a conhecer ao adquirente que é uma coisa que não
possui, mas espera possuir, senão estamos no contrato sem objeto ou com objeto de
coisa alheia. A própria ideia de dispor coisas futuras tem em si subjacente a ideia de
dispor de uma coisa que espera vir a possuir. Esta ideia é inerente à própria
admissibilidade do negócio sobre coisa futura. Não faria sentido alguém alienar uma
coisa que não existe, ou se vai vender uma coisa alheia, o que levará a um negócio nulo,
está a condenar o ato jurídico ao fracasso. O que parece mais lógico ao professor é,
admitindo que está subjacente a ideia de que quem dispõe, dispõe de algo que ainda
não é dele, mas legitimamente espera adquirir, só assim serão admissíveis os negócios
reais e obrigacionais de coisas futuras – é a coisa esperada, assim distinguindo-se entre
coisas relativamente futuras e absolutamente futuras. Ambas têm o mesmo
denominador – coisas que o declarante espera vir a obter. Será absolutamente futura
se a coisa não existir, mas o sujeito a vier a adquirir, como uma casa a ser construída;
será, pelo contrário, relativamente futura uma coisa que já existe, mas está na esfera de
terceiro, como adquirir os bens em sede sucessória. A essa ideia de coisa ainda não
existente no património do alienante, mas que espera adquirir, é que caracteriza o
regime e noção de coisa futura.

- coisas corpóreas: são as suscetíveis de serem sentidas (pelos 5 sentidos). Nos termos
do artigo 302.º do CC, só são direitos reais as coisas corpóreas. Há exceções, pois o
direito não é uma coisa corpórea;

17
- coisas incorpóreas: há 2 tipos de coisas incorpóreas, sendo tudo o que se agrupa no
âmbito dos direitos de autor (Código dos Direitos de Autor e Direitos Conexos, Decreto-
Lei nº 63/85, tendo já sofrido várias alterações) e o que se agrupa no âmbito da
propriedade industrial (Decreto-Lei nº 110/2018, de 10 de dezembro, que substitui um
anterior de 2003, facilitando o registo deste tipo de propriedade).
As coisas incorpóreas são aquelas que não têm existência física, podendo apenas
ser percebidas pela mente humana, estamos perante valores que só as pessoas através
do espírito humano se apercebem, um sentimento intelectual, psíquico. Dentro das
coisas incorpóreas, serão postos de parte os direitos que são objeto de outros direitos
reais, ou seja, o direito quando é objeto de um direito real é uma coisa incorpórea. E
depois temos 2 grandes grupos:
- ideações: são objeto da propriedade intelectual e industrial;
- valores ligados ao estabelecimento comercial: o estabelecimento comercial é um bem
incorpóreo, mas sui generis.
São sinais associados ao estabelecimento comercial ou sinais distintivos de
comércio as figuras, cores, que individualizam produtos ou os estabelecimentos que
vendem esses produtos ou serviços. Na medida em que são elementos de atração de
clientela, na medida em que o estabelecimento comercial é objeto de tutela jurídica,
estes valores também beneficiam de tutela jurídica. Por exemplo, a marca, são sinais
nominativos ou figurativos que individualizam o produto. A proteção do
estabelecimento passa pela proteção da marca. Só com a autorização do titular da
marca é que outros produtores podem utilizar essa marca nos seus produtos. Se for uma
marca que atrai clientela, tem muito valor. A marca individualiza o produto e distingue-
o dos restantes. Depois temos o logótipo que identifica o estabelecimento, enquanto
que a marca, como já se viu, identifica o produto. Aqui também temos figuras, cores,
símbolos, que individualizam o estabelecimento. A sua tutela é indispensável ao
desenvolvimento do estabelecimento comercial. São bens protegidos que podem ser
objeto de transmissão e passam a estar associados a outro estabelecimento comercial.
Para além dos sinais distintivos do comércio, temos:
- obras de engenho: ideias artísticas, obras literárias, musicais;
- criações industriais: ou ideias inventivas, sendo que o professor prefere pela primeira
designação.
A patente representa a invenção de um produto ou de um certo processo de
fabrico. Hoje em dia as patentes são objeto de valor muito mais elevado, na medida em
que o mercado era mais regional. Quando alguém descobre um novo processo, a forma
de proteger essa invenção é a patente.
Os modelos de utilidade também são invenções, mas enquanto o registo da
patente e o seu conhecimento é um processo moroso, os modelos de utilidade gozam
de uma tutela mais expedita, também são invenções, mas são o título de criação à qual
se confere uma tutela mais abreviada e expedita e é uma antecâmara da patente.
Depois temos os desenhos industriais e as indicações geográficas/denominações
de origem, que designam a região ou localidade de onde vem o produto ou onde é
fabricado, como por exemplo o Vinho do Porto.
Isto tudo serve para a mesma ideia e mesmo fim: cativar clientela. Na medida
em que se cativa clientela, vigora a lei da oferta e da procura, ou seja, se há muita gente
a procurar, o preço sobe. Estamos no âmbito da atividade mercantil, são coletores de
lucro, dirigem-se à obtenção de excedente. Por outro lado, os sinais distintivos do

18
comércio são instrumentais, com exceção da marca do produto. Estes não são valor em
si, na medida em que estão ligados incindivelmente a um estabelecimento comercial,
portanto são instrumentais, não têm autonomia jurídica ou patrimonial.
A transmissão (embora não relativamente à marca) do logótipo está associada à
transmissão do estabelecimento. Já as obras de engenho e as patentes industriais são
valores em si, são independentes.
Nas obras de engenho, estamos perante bens que são prolongamento, uma
manifestação da personalidade, têm um conteúdo pessoal, mas também têm conteúdo
patrimonial. As obras de engenho e obras industriais são fruto da inteligência humana,
têm uma natureza pessoal, mas enquanto criação da mente humana não são relevantes
para os direitos reais, só o são na medida em que são objeto de exploração económica
e é esta que os torna objeto de um direito real, não o elemento pessoal que só se
protege através do direito de personalidade. É o direito de explorar uma coisa
incorpórea.
Quando falamos nas obras de engenho ou industriais, falamos em conceitos ou
formas que, saídas da mente do respetivo autor ou criador, adquirem autonomia
relativamente a este e nesse sentido é que são suscetíveis de ser objeto de exploração
económica. Veja-se o exemplo de um pintor que pinta o quadro, parece que sem a tela
não há pintura e aqui estamos perante um quadro em que vemos os diferentes objetos
do ponto de vista jurídico que nos deparamos. Primeiro temos a ideia, a criação artística
que só existe juridicamente quando é exteriorizada. Quando o criador pensa na ideia,
não existe quadro nenhum, não existe um bem jurídico, só existe quando se
autonomiza, através da concretização na tela. A criação artística é aquele conjunto de
conceitos, de linhas, de cores que o autor previu, é essa a ideia inventiva, simplesmente
há uma relação de necessidade entre a existência daquela criação artística e a tela. Mas
esta só incorpora as ideias do autor e esse é o bem corpóreo. Temos, portanto, dois
bens: a ideia em si mesma e o corpo (corpus mecanicus) em que essa ideia foi
concretizada. Esta ideia de exteriorização dá existência à obra, à ideia, ao processo de
fabrico. Portanto a ideação, ou a coisa incorpórea, ou a criação artística é independente,
do ponto de vista jurídico, da forma em que o corpo a concretiza ou reveste ou
exterioriza, esta ideação enquanto manifestação do género criador que é a coisa e esta
ideia não se confunde com a pintura que se fez, porque já pode ser objeto de exploração
económica, porque pode ser vendida. É por isso que, quando estamos a falar nas
ideações, importa distinguir a ideação enquanto bem separado do respetivo autor sob
pena de inexistência jurídica e de um bem independente da respetiva encarnação física.
É esta suscetibilidade de exploração económica que torna estes bens relevantes
para os direitos reais. Isto significa que a exploração económica pode ser objeto de um
direito real e não o aproveitamento do gozo estético. Este pode ser exclusivo do autor
quando não torna público o quadro ou pode permitir que terceiros possam gozar. É o
direito de explorar de forma exclusiva, ter o poder direto e imediato sobre o rendimento
que essa coisa possa produzir. Quando estamos neste âmbito, estamos perante 2
direitos indissociáveis: direito de personalidade, ou seja, o direito moral de autor (direito
que o criador tem de tutela da obra moral); e o direito patrimonial de autor. A tutela do
plágio tem como objetivo proteger a integridade intelectual da obra do respetivo autor.
Questão diferente é a exploração da coisa. É o autor que é simultaneamente titular dos
dois direitos, daí serem indissociáveis. No âmbito destas coisas incorpóreas, importa,
como tal, distinguir o direito pessoal do direito patrimonial. Nos direitos reais, quando

19
falamos nos direitos incorpóreos, não falamos na fruição estética dos bens, não é isso
que retira o caráter real que se pode estabelecer sobre uma ideação, porque tem a ver
com a exploração económica em modo exclusivo, na medida em que só pode ser
efetuada nos termos em que o respetivo autor o permita.

O que caracteriza o estabelecimento comercial, no âmbito de uma economia de


mercado, é ser um bem especialmente apto a gerar lucro, é o bem que, por excelência,
gera lucro. É composto por pessoas, por coisas, pelas instalações, automóveis,
computadores, entre outros, e também por elementos incorpóreos, como a marca, o
logótipo, a patente, o modelo. Mas o estabelecimento comercial não é cada coisa
isoladamente. A organização de todos estes elementos faz funcionar o estabelecimento
comercial. Daí que se o entenda como uma coisa incorpórea, porque é a organização
desses elementos corpóreos e incorpóreos e as pessoas que torna o estabelecimento
comercial um bem mais ou menos apto ou especialmente apto para gerar lucro. Quanto
maior for a obtenção de lucro, maior é o valor do estabelecimento comercial, porque se
mede pela capacidade lucrativa.
É a organização dos fatores produtivos que define o estabelecimento comercial
enquanto bem com capacidade lucrativa. É por isso que se designa como coisa imaterial
sui generis. É uma ideia organizatória indissociável dos bens móveis que constituem o
respetivo património. Enquanto ideia de organização não existe no vazio, sem pessoas,
sem coisas materiais e sem bens imateriais, daí ser um bem incorpóreo, mas diferente
dos que falámos a propósito das invenções artísticas. Aqui não há autonomia jurídica. O
estabelecimento comercial, enquanto gerador de lucro, significa que o valor não se
mede pelos elementos que o compõem, mas pela capacidade lucrativa que vai definir o
valor do estabelecimento comercial. Ou seja, o estabelecimento comercial pode ter
património de 100, mas ter clientela que permita obter lucro de 1000.
Por isso se diz que é uma coisa composta funcional, funcional porque tem um
objetivo, mas, por outro lado, é uma coisa composta porque o valor não decorre do
valor dos seus elementos, mas decorre da posição que o estabelecimento tem no
mercado e quanto maior for essa posição, maior será o valor do estabelecimento. O
valor do estabelecimento comercial oscila pelo valor de mercado. Na medida em que é
algo distinto do valor da soma dos elementos que o integrem, é por isso que é uma coisa
autónoma relativamente aos bens que o integram. Essa autonomia decorre da sua
capacidade lucrativa e é o que verdadeiramente caracteriza o estabelecimento. Falamos
no estabelecimento comercial enquanto coisa composta, por contraposição à
universalidade12 (exemplo da biblioteca em que o seu valor é dado pelo conjunto dos
elementos que a integra).

12
Temos um conjunto de coisas que pertence ao mesmo bem, trata-se de um conjunto de coisas móveis
e a universalidade é caracterizada por ter o mesmo destino. São os exemplos paradigmáticos da biblioteca
e do rebanho. O que temos aqui é um conjunto de cosias com natureza mais ou menos semelhante e que
concorrem para o mesmo fim. Discute-se se são tratadas pela lei como coisa única ou como pluralidade.
Também há uma certa indefinição na nossa doutrina relativamente à natureza jurídica da universalidade,
se é uma coisa plural ou simples. Podemos dizer que, tendo um destino unitário, parece que podem ser
tratadas como uma coisa só. No entanto, parece que esta ideia de unidade de fim talvez não seja
suficientemente densa para daí extrairmos que aquele conjunto é uma coisa única, ou seja, uma coisa é
a natureza do bem a analisar, outra coisa é saber do que se distingue. Não se pode aferir que a lei, na
última parte do artigo 206.º nº 1, adotou a teoria universalista – teoria unitária das universalidades. Aqui
seguimos a opinião de que o princípio de que cada coisa é objeto é autónomo de um direito, ou seja, um

20
4. A posse
4.1. Distinção entre posse e direito real

A posse é o poder de facto exercido sobre uma coisa, poder que está
cronologicamente na origem de todo o domínio. Rapidamente se percebeu que o direito
pode ver-se subtraído do poder de facto a que tende, que o poder jurídico não é
necessariamente poder empírico. Daí que, além de origem cronológica e de meta
psicológica do direito, a posse seja, não só a sombra deste, a sua projeção e aspiração,
mas também uma contínua força de subversão e de contestação do direito real.
Paradoxalmente, porém, é este caráter de sombra simultaneamente fiel e hostil
que predispõe a posse a, havendo brechas na ordenação dominial definitiva, por
qualquer dúvida sobre a titularidade ou a identidade dos direitos, instituir uma
ordenação dominial provisória, colmatando essas brechas e promovendo, em campo
tão sensível das relações socioeconómicas a necessária integração do estatuto dos bens.
Heck define a posse como “a entrada factual de uma coisa em certa órbita de
senhorio ou de interesses”. A posse implica intencionalidade ou voluntariedade, porque
a posse é sempre expressão de uma autoridade fáctica, de um potis sedere (“sentar-se
como dono”), conforme revela a sua etimologia.

Para percebermos a lógica da posse, temos de partir da tutela do ladrão, que


tem tutela possessória. Para um civilista, esta afirmação é um espanto. Isto significa que
estamos perante um fenómeno muito característico, com uma especificidade muito
própria, sui generis. A posse tem sido o fundamento jurídico da titularidade dos direitos
reais, designadamente a propriedade. Esta fundamentação da propriedade na posse
tende a ser limitada com o registo obrigatório. Entre nós, concretamente o registo da
propriedade sobre imóveis. A partir do momento em que as transmissões passam a ser
registadas por iniciativa das partes ou por obrigatoriedade da lei, as transmissões
deixam de ser fundamentadas na posse. Há um direito registado e o que se passa depois
na vida do imóvel acaba por não tornar necessário o recurso à posse e usucapião para
fundamentar. Não obstante a maior ou menor prática do registo predial, há sempre
necessidade de recorrer à posse e usucapião para justificar a titularidade do direito.
O ladrão tem tutela possessória, isto é, quem se apropria ilegitimamente de um
direito alheio tem tutela possessória. Porque a posse é uma situação de facto, há quem
chame direito provisório, mas disso não tem nada, é uma situação de facto que o direito

direito uma coisa. Outro aspeto que as caracteriza e vai no sentido da teoria mista (os 1000 livros são
tratados como 1000 coisas) é o nº 2 do artigo 206.º, o facto de cada coisa poder ser objeto de relações
jurídicas próprias, isso confere uma certa individualidade económica e jurídica. Isto permite afirmar de
que, ao conferir esta possibilidade de autonomia, parece que a lei está a considerar mais as coisas de per
si do que o conjunto no que diz respeito a matéria de transmissão. A possibilidade de cada coisa de per si
ser objeto de titularidade autónoma, isso sugere que a lei não unifica numa coisa simples as
universalidades. O valor das coisas é igual ao somatório de cada coisa. Daí princípio uma coisa, um direito.
O que não quer dizer que depois quando se transmita uma biblioteca seja preciso identificar um livro per
si. Aqui podemos ter uma situação semelhante à traditio brevi manu, em que o comprador vai conhecer.
Isto tudo vem a propósito do artigo 1462.º (remetemos para o tópico do usufruto – 7.3). Significa que o
número de coisas existente ao tempo de constituição do usufruto tem de ser idêntico ao número de coisas
existente ao tempo da extinção do usufruto, o que significa que a lei trata a universalidade como um
conjunto de coisas, e não como coisa simples. No caso do nº 2 da mesma norma já não conta o número
de unidades.

21
protege, porque só é protegida na medida em que apresenta as características do direito
real. Apresenta-se como um poder direto e imediato e com eficácia erga omnes. Na
grande maioria dos casos, às situações de posse correspondem situações de direito, ou
seja, de aquisição legítima. Porém, nem sempre assim o é e, quando isso não acontece,
é que estamos no campo por excelência da posse.
Quando há uma correspondência jurídica entre a posse e o titular, a posse
enquanto situação de facto permite uma facilidade de prova que nem sempre o direito
dá. É por isso também que a posse é importante, na medida em que é um elemento de
prova do direito. Muitas vezes a prova do direito apresenta-se difícil. Em homenagem a
esta realidade que se manifesta no facto de, na grande maioria das situações, quem tem
a posse tem o direito real, é esta coincidência ou esta relação imediata entre titularidade
de direto e posse que justifica grande parte das soluções da nossa lei.
Há um conjunto de presunções, o efeito principal da posse é a presunção do
direito real que assenta no elemento social, na correspondência. Não podemos perder
de vista a realidade que se caracteriza como uma correspondência entre quem tem o
direito real e o titular. A sua natureza distintiva e específica tem um campo de
intervenção marginal ou secundário em termos sociológicos. Mas nem por isso menos
importante. Porque o jogo dos direitos reais em si mesmo permite a existência de vazios
normativos no sentido de vazios quanto à existência de direito real e, por outro lado,
também porque, sendo o direito real um poder jurídico, não tem necessariamente de
corresponder ao poder físico. São faculdades empíricas que surgem em situações em
que não há uma correspondência entre o poder jurídico e o poder de facto.
No caso do ladrão, temos uma dissociação entre quem tem poder de facto e se
comporta como proprietário (ladrão) e o proprietário titular do direito que não tem os
poderes de facto. Como se resolve este conflito? Esta situação vai resolver-se através
do instituto da posse.
Talvez mais frequente é uma outra situação. Os negócios para serem válidos
carecem de um conjunto de requisitos, há muitos negócios translativos de direitos reais
em que faltam requisitos formais ou substanciais, ou seja, a transmissão é inválida,
significa que não há aquisição do direito real. No entanto, não obstante essa invalidade,
acontece muitas vezes que o bem passa para a esfera do adquirente e aqui também
temos uma dissociação idêntica – o transmitente tem o direito e o adquirente não tem
o direito, mas tem o poder de facto. Temos uma dicotomia que são a cara e a coroa do
mesmo fenómeno jurídico.
O que têm de comum as situações de apropriação ilícita (caso do ladrão) e de
apropriação ilegal (negócio inválido)? Quem exerce os poderes de facto exerce-os em
modo direto e exclusivo, como se fosse titular de um direito real. É nisto que reside a
importância da posse e a posse conflitua com o direito, há aqui um conflito entre o
direito e o poder de facto. Este conflito não existe quando quem tem o poder de facto
tem o direito. Quando isso não acontece, significa que temos aqui um conflito: numa
esfera jurídica o direito, noutra o poder que acabam por ser incompatíveis porque
ambos possuem uma natureza idêntica – um possui uma natureza jurídica que confere
um caráter erga omnes, outro usa de poderes de facto que lhe confere uma situação de
imediação com eficácia erga omnes.
Por sua vez, em transmissões de pais para filhos em que não há documentação
da partilha surge esta questão. Muitas vezes se alienam bens sem qualquer documento
seja público, seja particular, porque há uma relação de confiança e as pessoas julgam

22
que não é necessário e depois colocam-se problemas. E ainda com esta dificuldade
acrescida: alguém doa a um irmão uma determinada casa, mais tarde foi pedida a
devolução da casa, quem estava na casa dizia que lhe tinha sido doada pois tinha
dificuldades. Mas como se prova que foi doada? Resolvem-se estes problemas através
da posse que é o instituto que vai solucionar este conflito de interesses entre alguém
que pensa que é dono e outrem que, de boa ou má fé, entende que aquilo lhe foi doado.
Não são problemas tão infrequentes. Há a coexistência de um direito e de um poder que
é incompatível, pois ambos se afirmam de acordo com a mesma natureza, esta situação
não pode coexistir, pois é incompatível, deve ser solucionada pelo Direito, pela ordem
jurídica.
Quando alguém perde a coisa, não se extingue o direito, simplesmente é um
direito sem objeto de facto, é um poder jurídico em abstrato e temos depois alguém
que adquiriu um bem de que não tem a titularidade. Por outro lado, é muito frequente
alguém começar a ocupar um pedaço de terreno vizinho, também temos aqui uma
situação de conflito. Todas estas situações são resolvidas pela posse.
Perante estas situações, que existem e não se podem negar, não são eliminadas,
mas podem ser restringidas, a ordem jurídica visa resolver 2 problemas: esta situação
merece tutela possessória ou não e que consequências podem advir do prolongamento
desta situação de conflito, deve ou não ser resolvida? Este segundo problema tem a ver
com a usucapião.
A posse não é um direito real. Há autores que dizem que sim, que é um direito
real provisório. É uma situação de facto. Mas, por outro lado, é uma situação de facto
(poder de usar e fruir uma coisa) à qual aspira todo o direito real em sentido próprio
que tende a manifestar-se através dos poderes de facto da coisa. A posse não deixa de
constituir toda a atuação do direito real.

Historicamente, o domínio jurídico teve como precedente histórico a ocupação


dos bens, em sentido amplo, a apropriação física dos bens. Nas ex-colónias, o grande
proprietário era o Estado, na medida em que tinha um direito que decorria da
apropriação. De facto, historicamente, o ocupante, na medida em que exercia os
poderes de facto, tornava-se proprietário desses bens. Podemos dizer que a posse é a
raiz cronológica do direito real, isto é, historicamente todo o direito real assentou na
posse.
A fundamentação do direito real vem através da posse e da usucapião, que
legitima e reconhece a titularidade dos direitos reais exatamente por esta matriz
histórica. É esta ideia de que a posse surge como raiz cronológica do direito real, o que
significa que o direito real se identificou como o poder físico dado pela conquista e
ocupação material do bem, passou a ser uma situação intocável, incontestável.
Historicamente, o direito real confundia-se com o poder físico empírico. Surge
depois uma autonomização do jurídico relativamente ao físico, o jurídico passa a ser um
poder que não tem necessariamente de se manifestar fisicamente. Significa que
também historicamente os poderes físico e jurídico autonomizaram-se. Ao
emprestarmos algo a alguém, não perdemos a titularidade. Ter o poder jurídico é ter o
reconhecimento que pode não corresponder necessariamente ao poder empírico. Isto
foi fruto da evolução do poder físico para o Direito como poder jurídico e abstrato.
Simplesmente a partir do momento em que há essa separação, que na maioria das
situações tem como titular a mesma pessoa, gera-se um conflito entre direito e posse.

23
O poder de facto pode ser usado em termos de contestação do próprio direito, em
termos de oposição ao próprio direito. Nessa medida, o poder de facto pode
transformar-se numa ameaça ao direito.
A posse tem esta dupla dimensão: por um lado, é uma manifestação do direito,
é a sombra do direito, o poder jurídico manifesta-se através do poder empírico; mas a
posse também pode ser um meio de oposição ao direito, quando não há uma sintonia
entre o poder jurídico e físico. Quando há esta divergência de posições entre poder
jurídico e físico, é que se verifica a autonomia do instituto da posse, a posse acaba por
visar os mesmos fins do direito real: dispor da coisa sem intervenção de terceiros. Há
uma estrutura semelhante, embora sejam situações distintas, têm conteúdo
semelhante – é o exercício de um poder direto com efeitos erga omnes, é assim que a
posse e o direito real se manifestam. Há aqui uma relação de tensão, de oposição.
Posse significa sentar-se na coisa como dono (podes cedere), ter a posse ou ser
possuidor é a entrada de um bem ou consiste no facto de um bem estar na
disponibilidade empírica ou fáctica de uma pessoa. É esta disponibilidade física em
termos exclusivos que confere à posse uma substância material idêntica à do direito
real.

4.2. Os problemas da tutela possessória e da usucapião

Seguindo o entendimento de Santos Justo, a posse cumpre fundamentalmente


duas funções: protege o possuidor enquanto não houver certeza sobre o verdadeiro
titular do direito real a cujo exercício corresponde, concedendo-lhe a necessária tutela;
e constitui um caminho de acesso a esse direito real. Por isso, considera-se que a posse
é um bem no presente e um sinal no futuro: um índice do próprio direito, para o qual se
encaminha.
Mas então por que se protege a posse? Há várias teorias que justificam o
reconhecimento jurídico da posse1314.

13
Diz Orlando de Carvalho: “Na sua função de estabelecer uma ordenação dominial provisória que evite
o colapso da ordenação definitiva, a posse desempenha um duplo papel: cobre desde logo a lacuna,
suprindo a falta do direito, e permite o trânsito para um direito novo, reconstituindo aquela ordenação.
Donde os dois problemas básicos que suscita ao Direito como norma: o problema da tutela possessória e
o problema da posse como caminho para uma autêntica dominialidade. A posse tem de ter certa tutela
ou proteção. E tem-na em qualquer sistema jurídico. Discute-se a razão de ser dessa tutela possessória.
Uma teoria, muito estendida, vê-a na paz pública que desse modo se garante. As brechas na ordenação
dominial são causa de conflitos, e a posse permite evitá-los. Heck nega essa razão publicística não só
porque pouco coerente com os interesses fundamentalmente individuais que presidem à regulamentação
jurídico-civil, mas ainda porque intrinsecamente discutível. Daí que veja a razão da tutela da posse no
“valor de continuidade” ou no “valor de organização” que a posse realiza. A posse é um bem porque
permite a continuidade patrimonial que a lacuna do domínio interrompe, assegurando valores de
organização que aliás se perderiam.”
14
Santos Justo dizia que “no cumprimento destas funções, a posse afirma-se como um instituto que,
segundo alguns autores, assegura a paz jurídica quando há dúvidas sobre o direito; segundo outros serve
valores de organização e de continuidade da coisa possuída na esfera do domínio em que se encontra; e,
ainda segundo outros, é também um valor de conhecimento, porque é normalmente um sintoma de que
se tem um direito sobre as coisas. Enfatizando os interesses de organização e de conhecimento, Orlando
de Carvalho considera que o regime do instituto possessório deve obedecer a duas funções fundamentais:
assegurar a tutela à posse; e permitir que, através dela, se atinja um domínio jurídico autêntico. E destaca
uma diferença: vista como valor de organização, a posse é tratada mais como facto, vista como valor de
conhecimento, tende a revestir-se de dados ou notas especificamente jurídicas.”

24
A doutrina mais clássica é por uma questão de promover a paz social ou paz
pública, porque o reconhecimento de uma esfera empírica dominial acaba, de certa
forma, por ser uma medida que atenua a conflitualidade que pode surgir quando não
há um reconhecimento normativo por parte da ordem jurídica relativamente à
titularidade de determinado bem. Ao proteger a posse e o possuidor previnem-se
conflitos sociais e jurídicos, daí falar-se em paz pública. Vem contribuir para a paz social.
Por outro lado, uma outra corrente, para que se inclinava Orlando Carvalho,
determina que a posse deve ser protegida porque é um valor de organização e
continuidade. Quem é possuidor exerce poderes de facto, proteger a posse é proteger
este valor económico que se vai manifestando através do exercício da posse. Através da
posse protege-se este valor de exploração económica. A lei, ao conferir tutela
possessória, está a garantir que as pessoas possam continuar a exercer uma atividade
económica sobre os bens, possam continuar a aproveitar-se, a posse protege esse tipo
de organização, exploração, atividade, daí Orlando Carvalho chamar valor de
organização. Os valores podem manter-se através da posse. Mas, na medida em que se
protege a posse e na medida em que tem o licere semelhante ao direito real e na medida
em que à sombra da posse se mantêm ou se formam valores económicos que importam
regular, tudo isto conjugado faz com que a posse seja um instrumento apto para
permitir a reintegração do domínio jurídico. Ou seja, a lei, atendendo a esta natureza da
posse e sob determinadas condições, permite que o poder de facto se transforme em
poder jurídico e aí acabou aquela lacuna e oposição entre poder jurídico e de facto. A
transformação num novo poder jurídico é feita à custa do anterior titular, mas, do ponto
de vista formal, esta nova titularidade tem por base a inércia do anterior titular, do
ponto de vista formal pelo menos que pressupõe uma abstenção ou omissão do anterior
titular. Esta transformação é a usucapião. A posse, quando reúna determinadas
características que permitem esta convolação, já que a lei exige um conjunto de
requisitos e exige uma temporalidade, uma duração, que vai conferir consistência
jurídica para se transformar num direito e essa transformação é uma forma de proteger
os tais valores de continuidade e de organização económica à sombra da posse. Nesse
sentido, características mais tempo, quando estão reunidas, permite-se (e não se
impõe) a substituição do poder físico por poder jurídico. Temos a usucapião que é uma
forma originária de adquirir o direito real e cai a titularidade do direito anterior porque
são incompatíveis, tem a ver com o licere. A usucapião é a coroação do facto de a posse
ser um caminho para a autêntica dominialidade no sentido de adquirir o direito real.
Se há tradicionalmente uma correspondência entre a posse e o direito, significa
que a posse é um sinal do direito, porque quem tem a posse tem o direito, a posse é um
valor de conhecimento do direito real. A usucapião acaba por ter lugar quando não há
a equiparação entre a posse e o direito.
Na sua força jurísgena, a posse aspira ao direito, tende a converter-se em direito.
Daí que o ordenamento, não somente a proteja, como a reconheça como um caminho
para a autêntica dominialidade, reconstituindo, através dela, a própria ordenação
definitiva. É o fenómeno da usucapião. Conclui-se que às posses correspondem, em
regra, direitos e que às mudanças de posse correspondem mudanças de domínio. A
posse é assim um indício do direito, um valor de conhecimento do direito. Donde não
só a presunção de direito que se liga à posse, mas também a admissão de que a posse,
por certo lapso de tempo e com certas características, deve conduzir ao direito real que
indicia.

25
4.3. Os sistemas possessórios

Os sistemas possessórios apontam como se enquadra nos ordenamentos


jurídicos a posse. Há 2 conceções/sistemas: o sistema objetivo e o sistema subjetivo. O
sistema português é subjetivo, e é prevalente na generalidade dos Direitos modernos;
enquanto que podemos encontrar o sistema objetivo na Áustria, por exemplo, ou
corporizado no Código Alemão de 1900, bem como no Direito suíço e no Direito
brasileiro.
Até agora falámos num poder de facto, um sucedâneo ao direito real, a partir do
momento em que o direito é visto como poder jurídico e não físico a possibilidade da
sua separação.
São, então, dois sistemas possessórios que se defrontam nos ordenamentos de
raiz continental europeia: o sistema subjetivo e o sistema objetivo.
Ambos se baseiam na experiência jurídica de Roma, onde a posse era concebida como
o poder de facto exercido sobre uma coisa, em termos de propriedade ou pleno
domínio.
Esta possessio ou possessio rei não era, pois, um mero exercício de poderes de
facto, não era uma simples detenção, implicando uma certa intencionalidade e,
justamente, a intenção de se haver a coisa para si, de a ter como sua. O seu modelo era
a posse do ladrão ou do usurpador.
Com o renascimento do Direito Romano, os Glosadores distinguem, na possessio
rei, o aspeto físico ou empírico (corpus) e a intenção de domínio (animus) e admitem,
ao lado da mera detenção, uma posse meramente intencional.
O Direito canónico e o Direito comum praticaram uma progressiva
“espiritualização” ou abstratização da posse e do respetivo objeto, descaracterizando
gravemente o fenómeno possessório.
Savigny deu particular ênfase ao momento espiritual ou intencional sobre o
momento factual ou empírico, ao animus sobre o corpus, defendendo que a posse
romana exigia, não apenas um poder de facto sobre a coisa, mas que esse exercício fosse
em termos de pleno domínio. Chamou-se a esse sistema de posse sistema subjetivo, por
força de tal elemento intencional.
A esta “espiritualização” da posse, opôs-se Ilhering, que entendia que a essência
da posse era o poder de facto sobre a coisa, poder que tinha, sem dúvida, de ser
voluntário ou intencional, mas sem uma intencionalidade específica, sem ser
necessariamente em termos de domínio ou sequer de um jus in re. Donde uma não
distinção entre corpus e animus e a admissão como posse do poder de facto tanto a
título de direito real como a título de direito de crédito e, por conseguinte, tanto do que
se exerce em nome próprio, como do que se exerce em nome alheio. Chamou-se a este
sistema objetivo.
A grande diferença é quanto à tutela possessória, que, no sistema subjetivo, só
existe na posse e não na mera detenção, ao passo que, no sistema objetivo, existe para
quem quer que exerce poderes de facto intencionalmente, proprio nomine ou alieno
nomine. A posse, no sistema objetivo, só se exclui no que possui manifestamente para
outrem, que se designa “servidor da posse” ou “detentor subordinado”. Mas isso tem
de resultar objetivamente da situação, pois, na dúvida, entende-se que há posse.

26
Segundo o sistema subjetivo, a posse compreende dois elementos: o corpus e o
animus. O corpus é o exercício dos poderes de facto sobre uma coisa. O animus é o
exercício no âmbito do direito real. Estes dois elementos são necessários para haver
posse, basta não se verificar um que não há posse, tem de existir o poder de facto e a
intenção específica. De acordo com este sistema, a posse é um poder de facto
voluntário, é um poder de facto relativamente ao qual não se exigem as características
ou intencionalidade que se exige no sistema objetivo.
O artigo 1251.º do CC define a posse, é esta norma que permite enquadrar o
Direito português no sistema subjetivo, como já acontecia no Código Civil de 1867. Nesta
definição, são sensíveis a nota do corpus (“quando alguém atua”) e a nota do animus
(“por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito
real”). Portanto, quando alguém atua é um poder de atuação, um corpus por
correspondente ao direito real, tem uma intencionalidade específica de que esse poder
corresponde ao exercício do direito real/propriedade.
Isto significa, portanto, de acordo com o nosso ordenamento jurídico, que a
atuação ou corpus não tem que ser um poder físico. É um poder meramente empírico
nos termos do qual um determinado bem se encontra na esfera de disponibilidade de
um indivíduo, é mais esta esfera de disponibilidade exclusiva sobre certa coisa. Por outro
lado, esta disponibilidade é erga omnes, a ela corresponde o exercício do direito real, é
um poder de exclusão à semelhança do direito real. Significa que, por exemplo, alguém
que tenha uma casa na Polónia, só lá vai a cada 2 anos, não deixa de ser possuidor; ou
quando emprestamos algo a alguém, não deixa a coisa de estar na nossa disponibilidade,
continuamos a ter o corpus sobre essa coisa, a posse não tem de ser exercida
diretamente, pode ser exercida por intermediário (artigo 1252.º). A posse é compatível
com a possibilidade de uma pessoa que não o possuidor exerça o seu poder sobre o
bem. O animus é uma intenção específica, é uma vontade de exercer um poder de facto
como se fosse titular de um poder real. Daí que haja uma relação de coexistência
necessária entre corpus e animus.
Não existe corpus sem animus nem animus sem corpus. Há uma relação
biunívoca. Corpus é o exercício de poderes de facto que intende uma vontade de
domínio, de poder jurídico-real. Animus é a intenção jurídico-real, a vontade de agir
como titular de um direito real, que se exprime em certa atuação de facto.
No nosso Direito, há hoje excecionalmente situações de mera detenção que
gozam da defesa possessória: locatário (artigo 1037.º nº 2), parceiro pensador (artigo
1125.º nº 2), comodatário (artigo 1133.º nº 2) e depositário (artigo 1188.º nº 2). Não já
assim para outros detentores ainda que por título jurídico: mandatário, administrador,
gestor de negócios. São, decerto, exceções objetivas, mas que confirmam, por isso
mesmo, a subjetividade do sistema.
Criticamente, o sistema subjetivo é fruto de uma conceção individualista, e,
depois, voluntarístico-individualista, do direito dos bens, que sobrevaloriza o vínculo
formal de pertença das reservas de domínio e desvaloriza a efetiva utilização das coisas.
Serve assim privilegiadamente os interesses do capitalismo.
Por sua vez, no sistema objetivo, há posse sempre que há poder de facto, sempre
que há certa voluntariedade, certa intencionalidade. Há posse ainda que o poder de
facto corresponda a um direito de crédito (ao invés do sistema subjetivo que rejeita
isto). Mas nem todo o poder de facto corresponde à posse, há situações onde falta a
estabilidade do exercício desse poder (ler um jornal do café ou requisitar um livro da

27
biblioteca). Também não há posse neste sistema quando alguém utiliza o bem de
outrem que emprestou, por exemplo quando alguém empresta o carro para ir buscar
alguém – são chamados servidores da posse, agem no interesse do possuidor. De grosso
modo, a diferença reside em termos de âmbito relativamente às situações que
garantem direitos de facto, mas esses direitos situam-se no crédito. É o caso do
arrendatário, que para nós não é possuidor, mas neste sistema sim. Apesar desta
diferença teórica, na prática o nosso sistema acaba por parcialmente se aproximar de
um sistema objetivo, porque naquelas situações em que claramente não há posse, a lei
confere tutela possessória a não possuidores, permite que os detentores exerçam
poderes da posse para proteger uma situação de detenção mesmo contra o
proprietário. Veja-se, a título de exemplo, os artigos 1037.º nº 2, 1125.º nº 2, 1121.º e
ainda o regime do depositário.
Há detentores que gozam de tutela possessória e como vimos esta tutela é um
problema importante para o reconhecimento da posse.

4.4. Noção de posse

Posse é o exercício de poderes de facto sobre uma coisa em termos de um direito


real. Envolve, portanto, um elemento empírico – exercício de poderes de facto – e um
elemento psicológico-jurídico – em termos de um direito real. Ao primeiro é que se
chama corpus e ao segundo animus. Elementos interdependentes ou em relação
biunívoca.
O poder de facto é menos um contacto com a coisa do que uma imissão desta
na zona de disponibilidade empírica do sujeito. Postula-se uma certa estabilidade. Tudo
depende da afetação concreta do bem. A intenção de domínio em sentido amplo não
tem de explicitar-se e muitos menos por palavras. O que importa é que se infira do
próprio modo de atuação ou de utilização.
A posse distingue-se da mera detenção (artigo 1253.º), isto é, do exercício de
poderes de facto sem animus possidendi. Aos meros detentores chama-se também
possuidores precários ou possuidores em nome alheio.
O possuidor, ou possuidor em nome próprio, pode agir por força do direito real
de que é titular, caso em que a sua posse é uma projeção ou expressão de um jus in re
existente. Tal posse não é então uma posse autónoma, pois constitui uma faculdade
jurídica secundária do direito subjetivo. É a posse causal, porque tem causa no direito.
Mas o possuidor pode também agir sem direito real nenhum (ou porque nunca intentou
adquiri-lo, ou o intentou adquirir por ato inválido ou inexistente), posto aja, mesmo
assim, como se o tivesse. Tem então uma posse sem fundamento, sem causa, num
direito dado, uma posse autónoma a que se chama posse formal. É esta posse formal
ou autónoma que constitui um fenómeno jurídico sui generis, fonte de consequências
de direito que não logram imputar-se senão a ela e só a ela.
O titular de um jus in re pode igualmente invocar a sua posse casual como se
fosse formal, abstraindo do direito com que se titula. É o que acontece,
frequentemente, quando a sua posse é perturbada ou usurpada e ele quer beneficiar
dos meios de defesa da posse, e não nos meios de defesa do direito, já que a prova deste
é mais difícil do que a prova daquela.

28
Há por isso que distinguir posse causal da posse formal. A causal para nós não é
relevante, ela é uma faculdade do direito real. Autonomamente a posse não
corresponde à titularidade.
Isto porquê? Quando estamos a identificar os casos de detenção, na alínea c) do
artigo 1253.º, em que se exercem poderes de facto em nome de outrem, do titular,
quem é detentor nesses termos não pode emprestar a outrem. Exercem poderes de
facto sem correspondência a um direito real.
Esta alínea supõe uma relação em que há um título jurídico. Daí dizer-se que na
alínea c) temos os detentores por título jurídico. Temos uma relação pré-jurídica, existe
consentimento com efeitos vinculativos, que legitima o exercício dos poderes de facto.
Nas alíneas a) e b) da mesma norma, estão previstas situações de detenção em que não
há uma relação jurídica.
Na alínea a), está prevista a hipótese de quando alguém exerce poderes de facto.
São os chamados detentores por título facultativo, a posse não concede qualquer direito
ou poder, mas resulta de uma faculdade atribuída sem qualquer intencionalidade
jurídica.
Na alínea b), falamos na posse por atos de tolerância. Por exemplo, alguém que
deixa outrem passar pela sua propriedade sem lhe atribuir qualquer poder para isso. O
possuidor não oferece qualquer oposição e o terceiro aproveita essa inércia para, por
exemplo, passar pela propriedade ou apanhar fruta da árvore do vizinho que caiu na sua
propriedade. Há uma substituição meramente empírica, há uma omissão do possuidor
e uma ação de um terceiro. Temos poderes de facto que não correspondem a um direito
real e muitas vezes nem sequer correspondem a um direito de crédito.
Já na alínea c), como vimos, temos um título jurídico, segundo o qual são
detentores que exercem poderes de facto sem lhes corresponder um direito real. Nas
outras duas alíneas, não temos qualquer vínculo jurídico, resultam de uma mera cortesia
ou então um ato que resulta da inércia.

4.5. Direitos em termos dos quais se pode possuir

Este tópico versa sobre que outros direitos reais em termos dos quais pode haver
posse. Só pode possuir-se em termos de jura in re que conferem poderes de facto sobre
a coisa, o que não ocorre apenas com os direitos reais de gozo. Ocorre também com
certos direitos reais de garantia, ou seja, com o direito de penhor e o direito de retenção.
Terão de ser direitos que configuram poderes de facto, nomeadamente direitos
reais de gozo, o que significa que, à partida, os direitos reais de garantia e de aquisição
não atribuem poderes de facto. Os direitos reais de aquisição não atribuem qualquer
poder de facto, o titular desse direito espera exercer direitos de facto sobre a coisa, mas
ainda não exerce. Nos direitos reais de garantia temos de ser mais cuidadosos, pois há
alguns que implicam direitos de facto sobre a coisa, sem os quais não se podem
constituir, como o penhor e a retenção. Nestes casos, pode existir posse dentro do seu
âmbito, pois temos posse de penhor, posse de retenção, etc.
Onde não há posse, evidentemente, é na hipoteca, nos privilégios e nos direitos
reais de aquisição – pelo que não se pode possuir em termos desses direitos.
Na consignação de rendimentos, em que se atribuem poderes de facto, é a lei
que qualifica esse poder de facto como poder creditício, é a própria lei que retira o

29
animus ao determinar que o credor fica equiparado ao locatário (artigo 661.º nº 1 alínea
b)), pelo que a posse se exclui.

4.6. Objetos passíveis de posse

Passíveis de posse são todos os bens passíveis de domínio, ou seja, e


genericamente, todas as coisas. Hoje o conceito de coisa estende-se às coisas
incorpóreas e complexas. No artigo 1302.º nº 1, diz-se que são objetos suscetíveis de
posse os bens corpóreos, pelo que se levantava a questão dos bens incorpóreos.
Na perspetiva de Orlando de Carvalho, pode existir posse sobre eles, tendo a ver
com a exploração económica do bem e não com o bem em si. Há posse apenas no
sentido em que há exploração do bem incorpóreo.

4.7. Capacidade para adquirir posse

O artigo 1266.º diz respeito à capacidade para adquirir posse. Da natureza fáctica
da posse resulta que, para a adquirir pessoalmente, não é necessário um especial
amadurecimento da vontade, bastando que o sujeito tenha a capacidade natural de
entender e de querer suficiente para exercer os poderes de facto sobre a coisa, como
se fosse titular de um jus in re. Daí que a lei não exija a capacidade de exercício de
direitos, ou a capacidade negocial, e fale apenas de “uso da razão”.
A única dificuldade que oferece é saber o que é o uso da razão. Tem-se recorrido
a uma norma-tipo nesta matéria que é o artigo 488.º nº 2 acerca da imputabilidade, que
foi alterada em 2018. Dado que esta norma relativamente à imputabilidade acaba por
ser uma norma estruturante do nosso sistema de Direito Civil, na medida em que tem
sido usada para definir o elemento da imputabilidade ou não das pessoas e na medida
em que estamos no âmbito de relações de facto (posse), o uso da razão tem-se
entendido como sinónimo de capacidade. Assim, nestes termos, presume-se que não
têm uso da razão os menores de 7 anos, pelo que, em princípio, só eles é que não
poderão adquirir pessoalmente posse. Trata-se, porém, de uma presunção ilidível ou
juris tantum (artigo 350.º nº 2).
Por outro lado, esta incapacidade para adquirir posse pode ser suprida pela
representação e aqui também se aplica esse regime do representante, do intermediário,
com ou sem poderes de representação, o que importa é que atue no interesse do
incapaz.

A lei dispensa o uso da razão para as coisas suscetíveis de ocupação, porque,


quanto a elas, a simples apreensão como operação jurídica, com fruste mediação da
vontade do sujeito, verificados ou não certos requisitos ulteriores, é uma forma de
aquisição da propriedade.
Exceção à regra do uso da razão será também, na sucessão mortis causa, o caso
em que a aceitação (artigo 2050.º) para o domínio e posse dos bens da herança
efetivamente se dispense. Assim também no caso no artigo 1890.º, que prevê a
aceitação ou rejeição das liberalidades. Se houver uma doação relativamente a um
incapaz, que não tem capacidade para adquirir, a lei recorda aos pais ou representantes
legais para a aceitarem em nome do incapaz. Caso os representantes não se
pronunciem, o nº 3 diz que a liberalidade se tem por aceite. Aqui temos uma ficção de

30
capacidade. Foi a forma que a lei encontrou para suprir a inércia ou omissão dos
representantes. Isto é no caso de sucessão mortis causa, a lei ficciona, não presume.
A aquisição da posse por intermédio de outrem é perfeitamente possível, como
consequência da admissibilidade de exercício da posse em nome alheio (artigos 1252.º
nº 1 e 1253.º alínea c)). Será mesmo o modo normal de se suprir a incapacidade de
aquisição dos menores de 7 anos e dos incapazes, bem como das pessoas jurídicas
stricto sensu (pessoas coletivas).
A capacidade para a posse é menos ampla do que a capacidade para adquirir por
usucapião, como há-de ver-se adiante.

4.8. Caracteres da posse

Situação de facto juridicamente relevante, a posse tem maior ou menor relevo


jurídico conforme as características que assume e que, da perspetiva da lei, merecem
um diverso tratamento. Têm elas que ver com o nexo da posse com o direito em termos
do qual se possui, com a consciência com que é adquirida, bem como com a pacificidade
e a cognoscibilidade com que se adquire e exerce (artigo 1258.º).
Aqui a lei apresenta algumas incorreções técnicas na perspetiva de Orlando
Carvalho. São 4 as características da posse, qualquer uma é declarada por exclusão. Não
há situações intermédias, a posse é titulada ou não titulada, violenta ou pacífica, de boa
ou má fé, pública ou oculta. Embora a lei não seja muito precisa, a caracterização da
posse afere-se ou determina-se no momento da aquisição da mesma. Cada uma das
características coexiste em qualquer forma de aquisição da posse.
Apesar de terem este elemento comum, duas delas são permanentes, ou seja,
não sofrem alteração durante o período em que dura a posse, são insensíveis a qualquer
mutação ulterior, fixam-se em definitivo no momento da aquisição e outras duas são
não permanentes, ou seja, a sua caraterização pode mudar ao longo do tempo de posse.
As características permanentes são a posse titulada e a posse de boa fé, significa que
uma posse adquirida com boa fé e que seja não titulada mantém-se assim enquanto
durar essa posse. Já serão não permanentes a posse pacífica e a posse pública, ou mais
concretamente a posse violenta e a posse oculta. Uma posse adquirida ocultamente,
pode depois ser exercida de forma pública. Essa alteração é relevante para efeitos de
tutela. O mesmo se diga em relação à posse oculta, que pode ser exercida de forma
pública e depois ser oculta.
Ainda há uma outra classificação: há características que são absolutas e que são
relativas. São características autónomas, embora possam coexistir. São absolutas as que
são oponíveis erga omnes. Incluem-se aqui a posse titulada e boa fé. A posse pacífica e
a posse pública são características relativas, pois operam nas relações imediatas. O que
significa que, quando falamos de posse pacífica e violenta, falamos na relação do
adquirente da posse e o anterior possuidor.

a) posse titulada e não titulada

Talvez a característica mais complicada é a posse titulada (artigo 1259.º).


Importa corrigir alguns aspetos da lei.

31
Artigo 1259.º do Código Civil
1. Diz-se titulada a posse fundada em qualquer modo legítimo de adquirir,
independentemente, quer do direito do transmitente, quer da validade substancial
do negócio jurídico.

Como estamos no âmbito da posse, a lei fala em “modo legítimo de adquirir”,


refere-se aos negócios reais, trata-se de uma posse que advém ou tem como fonte um
ato translativo do direito real. Quanto à expressão “de qualquer modo legítimo”, a lei
na segunda parte do artigo corrige, falamos num ato que não tem invalidades, já vimos
que a própria aquisição de posse (posse formal) assenta na falta de negócio jurídico e
em invalidades, portanto não podemos entender este termo “legítimo” como
entendemos no âmbito de negócios jurídicos. Podemos entender como forma existente,
porque se há um ato que transmite um direito real que é legítimo, adquire-se o direito
real e não a posse. Nunca esquecer que quando falamos de posse, falamos de uma posse
que não corresponde a um direito real, é um fenómeno autónomo, independente,
contrário ou oponível a um direito real. Daí a imprecisão técnica que a lei pode induzir
se interpretarmos alguns destes termos tendo por base o modelo do negócio jurídico.
O que se quer dizer, então, é qualquer modo legítimo de adquirir o direito em termos
do qual se exerce o poder de facto, o direito a que o animus se ordena.
Quando falarmos a propósito das regras da aquisição da posse, vemos que o
termo “legítimo” tem como significado existente, a questão da existência ou não dos
negócios jurídicos também se reflete na inexistência dos factos jurídicos. Se dissermos
que a posse foi adquirida de forma juridicamente inexistente, isso vai interferir com a
característica da posse, porque a existência tem a ver com a produção de efeitos. Este
conceito quer dizer, então, existente e suscetível em abstrato de atribuir ou constituir
aquele direito.
Vejamos agora o termo “modo”. Quando falamos em modo, falamos num ato
material, portanto feita a transmissão da posse. Num sistema de título como o
português15, o termo em análise só pode significar título, isto é, uma justa causa de
atribuição ou constituição do jus in re, produtora, em princípio, daquele efeito jurídico-
real. Em suma, qualquer título abstratamente idóneo para a aquisição do direito real em
cujos termos se visa possuir.
O termo “fundada” da lei significa apenas que a posse tem atrás de si, como
causa legitimante da sua aquisição, um titulus adquirendi (abstratamente idóneo) do
direito, e, por isso, se diz titulada ou com título. Os negócios jurídicos não transmitem
posse, a posse tem formas específicas de aquisição e o negócio jurídico válido ou nulo
não transmite posse. É um ato ligado à compra e venda que transmite a posse, não é a
declaração negocial em si mesma. Isto tem importância para vermos o que é a posse
fundada. Se a posse deriva de um ato legítimo de adquirir, aí acabou a posse enquanto
fenómeno autónomo, temos o direito real. Por outro lado, os negócios jurídicos não
transmitem a posse, mas podem desencadeá-la. Portanto, traduzindo isto, aqui a lei
utilizou o termo “fundada” e não “derivada”, estamos perante vocábulos diferentes,
mas atendendo a que, no âmbito da aquisição derivada da posse, há sempre uma
manifestação da vontade entre quem transmite e adquire, o termo “fundada” aqui

15
Ver, quanto ao sistema de título, o princípio da causalidade.

32
significa que a posse é titulada quando tem atrás de si um negócio jurídico, que será,
como sabemos, inválido. A posse vai adquirir-se de uma certa forma e é em função disso
que iremos determinar se é titulada ou não titulada, mas quando a lei se refere a posse
“fundada” é aquela que tem por detrás um negócio jurídico inválido.
Esta norma refere-se apenas às aquisições derivadas. Mas a posse pode ser
originária e aí pode ou não ser titulada. Esta primeira parte da norma tem em vista as
aquisições derivadas, aquelas que se fundam num negócio jurídico, o tal modo jurídico
legítimo de transmitir o direito real. Muito embora depois tenhamos que aplicar esta
posse titulada no âmbito das aquisições originárias. A perspetiva que a lei coloca aqui
para saber se é titulada ou não titulada tem a ver com a maior ou menor aproximação
que existe entre a aquisição do direito real e da posse. Porque se a forma de adquirir a
posse se aproximar da transmissão do direito, a posse será titulada; se se afastar dessa
transmissão regular do direito, será não titulada. Daí a parte final do preceito. A lei
considera a posse titulada aquela em que o negócio real em que se funda essa mesma
posse é legítimo/existente de acordo com os critérios dos negócios existentes ou não
existentes16. Sempre que há um ato jurídico capaz ou suscetível de transmitir a posse,
não é uma transmissão direta, a posse será titulada ainda que o ato em que se funda a
posse seja nulo ou inválido formalmente. Uma compra e venda em que se funda a posse
em que há vícios substanciais do negócio, nem por isso a posse deixa de ser titulada.
A posse é titulada quando se funda no modo legítimo em abstrato de adquirir o
direito real. O que significa em abstrato? Significa que, ainda que esse negócio fundante
seja nulo substancialmente, incluindo a legitimidade, a posse que daí advém é titulada,
mas tem de ser um modo existente juridicamente, um ato que juridicamente produza
efeitos, mesmo a nível de poder de facto, por exemplo a coação não produz qualquer
efeito. Esta norma refere-se às aquisições derivadas, que têm de ter como causa
fundante um negócio jurídico, e esse ato jurídico tem de ser existente do ponto de vista
das regras do negócio jurídico, mas não carece de ser válido substancialmente. A posse
será titulada quando o grau de aproximação pode sofrer algumas vicissitudes que são
essas que a lei contempla. A contrario, diremos que não é titulada quando se funda num
negócio formalmente inválido. Uma vez que a lei apenas se refere à falta de legitimidade
ou a vícios substanciais, quando o ato é formalmente inválido, a posse é não titulada,
porque enquanto os vícios substanciais podem não ser cognoscíveis, os vícios formais
são-no necessariamente, a lei fixa quais as formas a serem observadas para todos os
atos translativos de direitos reais, quando há violação de forma escrita, a lei presume
absolutamente que é conhecido das partes, uma vez que não há observância do
requisito, aí as partes têm conhecimento de que se estão a afastar das regras do direito
real.
A posse é titulada quando se funda num negócio translativo substancialmente
inválido. Temos, porém, de interpretar esta norma em termos mais restritos. Não
deveremos incluir aqui todos os vícios substanciais e dizer que qualquer que seja o vício
substancial, tirando os vícios de existência, a posse será titulada. Há causas substanciais

16
A inexistência é uma figura autónoma, com consequências mais graves do que a nulidade e a
anulabilidade. Afirma-se estarmos perante esta figura quando nem sequer aparentemente se verifica o
corpus de certo negócio jurídico ou, existindo embora essa aparência material, a realidade não
corresponde a tal noção. A categoria geral do negócio jurídico em análise é de admitir, pois, com efeito,
pode haver hipóteses em que nem certos efeitos secundários dos negócios devam ter lugar, mas, por
outro lado, exista a aparência da materialidade correspondente à noção do negócio respetivo.

33
de invalidade que excluem a posse e, por conseguinte, nem sequer se pode pôr o
problema do título17. Referimo-nos concretamente à simulação18 absoluta, relativa e à
reserva mental19. No âmbito da posse, não nos interessam tanto os terceiros, mas as
relações entre as partes. Na simulação, o que há entre as partes? Não há vontade de
transmitir nem de adquirir, não há posse, exatamente porque não há animus. Isso é
válido para a simulação absoluta, para a simulação relativa quando o negócio
dissimulado é obrigacional, e na reserva mental quando é conhecida. Isto significa que,
para além da forma dos atos, temos de atender à vontade das partes e é por isso que,
havendo simulação, não há posse. Se a simulação for relativa e o negócio dissimulado
for real, há posse. Havendo simulação, como não há vontade e não há posse, há
detenção. Isto significa que temos de restringir esta invalidade substancial e não incluir
a simulação absoluta e situações equiparadas para efeitos possessórios.
Para já, podemos dizer que a posse será titulada, no âmbito das aquisições
derivadas, quando se funda num ato translativo de direito real que não tem vícios
formais (requisito negativo) e será titulada quando se funda num ato, em abstrato, apto
a transmitir direitos reais (requisito positivo).
No entanto, muito embora este artigo 1259.º se refira e nos diga apenas, no
âmbito da aquisição derivada, o que é posse titulada e não titulada, como já fomos
dizendo também há formas tituladas de adquirir a posse por via originária. O artigo sub
judice não trata dos requisitos que a lei estabelece para o titulus adquirendi não
negocial. Sabemos que ter posse é ter um poder de facto, exercê-lo no âmbito como se

17
Como preceitua Orlando de Carvalho: “É o que acontece com a simulação absoluta, que, supondo um
acordo simulatório entre declarante e declaratário, faz com que o pretenso accipiens não tenha qualquer
animus possidendi, ainda que a coisa lhe haja sido entregue. Ele não quer adquirir nenhum direito real e,
se fica com a coisa, é em termos de mera detenção. O mesmo ocorre com a simulação relativa sempre
que o negócio dissimulado não é um negócio real quoad effectum, ainda que atributivo do gozo da coisa
(locação, parceria, comodato) ou de poderes de facto sobre a coisa (depósito, mandato, contrato de
trabalho). E identicamente, por força do artigo 244.º nº 2, com a reserva mental conhecida do
declaratário: desde que se trate de reserva mental absoluta ou de reserva mental relativa em que o
negócio oculto não seja um negócio abstratamente translativo ou constitutivo de direitos reais. O
conhecimento efetivo da não seriedade da declaração faz com que o declaratário accipiens não tenha
animus possidendi.”
18
O conceito de negócio simulado está explicitamente formulado no artigo 240.º nº 1. Os elementos
integradores do conceito são: 1- intencionalidade da divergência entre a vontade e a declaração; 2-
acordo entre declarante e declaratário (acordo simulatório); 3- intuito de enganar terceiros. A simulação
apresenta duas modalidades – simulação absoluta e relativa. Na primeira, as partes fingem celebrar um
negócio jurídico e na realidade não querem nenhum negócio jurídico. Há apenas o negócio simulado e,
por detrás dele, nada mais. Na simulação relativa, as partes fingem celebrar um certo negócio jurídico e
na realidade querem um outro negócio jurídico de tipo ou conteúdo diverso. Por detrás do negócio
simulado/aparente/fictício/ostensivo, há um negócio dissimulado/real/latente/oculto. Enquanto o
negócio simulado é nulo, e na simulação absoluta não se põe mais nenhum problema, na simulação
relativa surge o problema do tratamento a dar ao negócio dissimulado ou real que fica a descoberto com
a nulidade do negócio simulado.
19
O artigo 244.º nº 1 define a reserva mental, sendo duas as notas que definem este conceito: 1- emissão
de uma declaração contrária à vontade real; 2- intuito de enganar o declaratário. Os efeitos desta figura
são determinados pelo nº 2 da mesma norma, onde se estatui a irrelevância da reserva mental, exceto se
for conhecida do declaratário. Por consequência, a declaração negocial emitida pelo declarante, com a
reserva, ocultada ao declaratário, de não querer o que declara, não é, em princípio, nula, o que
corresponde a uma exigência elementar de justiça e de segurança. O negócio já será nulo se o declaratário
teve conhecimento da reserva, pois não há confiança que mereça tutela. Não bastará para a relevância
da reserva a sua cognoscibilidade, sendo necessário o seu efetivo conhecimento.

34
fosse titular do direito (o corpus e o animus). Tem de exercer o poder de facto como se
fosse dele. Se exercer em nome de outrem, é detentor. Sendo a posse um poder
exercido no âmbito de um direito real próprio, há também formas originárias de
aquisição da posse que se devem considerar tituladas. A ocupação e a acessão, na
medida em que são formas legítimas de adquirir direito real, também são formas
legítimas de adquirir posse, quem pode o mais pode o menos, logo a posse é titulada.
A lei não releva os vícios substanciais, só os vícios formais. Há casos patológicos
do negócio jurídico que nada têm a ver com a forma e que retiram o título da posse,
posto não excluam esta última. É o que se passa com todas as causas de inexistência do
negócio jurídico, como a coação física, o contrato sob nome de outrem, as declarações
jocosas ou não sérias, o dissenso total ou patente e, em geral, todos os casos de falta de
vontade de ação, falta de vontade ou consciência da declaração ou de falta completa de
vontade de efeitos ou vontade negocial (artigos 245.º e 246.º). Se bem que o aparente
accipiens tenha poderes de facto sobre a coisa e até vontade de se apropriar dela,
mesmo, pois, havendo corpus e animus e, por conseguinte, posse, esta não é titulada
porque, não existindo um negócio jurídico abstratamente idóneo para se adquirir o
direito, falta o requisito do artigo 1259.º nº 1. Tirando estes casos, os vícios não formais
do negócio ou titulus adquirendi não afetam o título da posse. Os vícios de forma (não
observância de formalidades ad substantiam) é que determinam a falta de título da
posse.
Estamos também no âmbito da aquisição dos poderes de facto que exerce
porque é titular de um direito real correspondente ao seu exercício. Na ocupação, a
posse será titulada se aquele que adquire por ocupação está convencido de que ocupa
a coisa na convicção de que é o respetivo dono, quando não o é. Aqui temos uma
aquisição titulada da posse por ocupação. O artigo 1323.º (que se insere na secção da
ocupação de coisas e animais) é um artigo muito rico. Um dos aspetos relevantes neste
regime do artigo em questão é que aquele que encontra uma coisa, se souber quem é o
dono, deve entregar ou comunicar. Se não o fizer, adquire posse, comporta-se como
sendo dono daquela coisa. Neste caso, há aquisição de posse, mas por uma forma
originária que não é a ocupação, mas sim a usurpação. Na medida em que há um dever
de comunicar ou de entregar, adquire-se um bem contra a vontade do anterior dono.
Também sabemos que, se não se souber quem é o dono ou se souber, deve informar as
autoridades. Sabendo quem é o dono e não informando as autoridades, há aquisição
por usurpação. No entanto, quem encontra uma coisa e não sabe a quem pertence e
não informa as autoridades, aqui vai adquirir a coisa por ocupação. Se é por ocupação,
a posse é titulada. Se, pelo contrário, anunciar o achado ou comunicar às autoridades,
ou pode ficar como fiel depositário do bem ou entrega às autoridades. Se o achador ficar
com o bem depois de ter comunicado, é mero detentor durante 1 ano, findo o qual
adquire o direito real.
Na acessão, vimos que há várias formas de acessão e que a lei faz distinção entre
boa e má fé, mas só haverá aquisição da posse por acessão se o adjuntor estiver de boa
fé, ou seja, estar convencido de que o bem é dele. Se estiver de má fé, haverá usurpação.
Quando a posse é adquirida por ocupação e acessão, é titulada, porque são formas
legítimas de adquirir direito real.
O título da posse, como se diz no artigo 1259.º nº 2, “não se presume, devendo
a sua existência ser provada por aquele que a invoca”. Exclui-se assim o chamado título
putativo, ou seja, o que só existe na imaginação do possuidor. O possuidor goza, em

35
princípio, da presunção da titularidade do direito (artigo 1268.º nº 1), mas isso não
equivale a presunção do título da posse.

b) posse de boa fé e de má fé

A outra característica é a posse ser de boa ou má fé. Diz-se de boa fé nos termos
do artigo 1260.º nº 1. A noção de boa fé é meramente subjetiva. É um conceito
psicológico, é a ignorância de que se está a lesar um direito. A lei é exigente, porque não
podemos confundir interesse com direito. A lei tem o cuidado de falar em direito, não é
um mero interesse. Por outro lado, e de acordo com o que se infere desta norma, não
podemos fazer distinção entre ignorância culposa e não culposa, havendo culpa, desde
que haja essa ignorância, há boa fé. Estes conceitos são de difícil prova, daí que o
legislador tenha estabelecido uma presunção no nº 2: a posse titulada presume-se de
boa fé. Estamos perante presunções iuris tantum, ou seja, ilidíveis mediante prova em
contrário (artigo 350.º nº 2). Já a presunção do nº 3 é inilidível, absoluta, iuris et de iure,
em que a lei manifesta o seu desfavor pela posse violenta.
Quer a posse titulada, quer a de boa fé, são caracteres permanentes e avaliam-
se no momento da aquisição da posse. No entanto, aqui a lei estabelece duas exceções,
ou seja, admite que a posse de boa fé possa, em determinadas situações, passar a
produzir os efeitos da posse de má fé, tem a ver com a tutela possessória e a usucapião.
Um desses casos enquadra-se no artigo 1270.º (frutos na posse de boa fé). O artigo
seguinte diz que o possuidor de má fé deve restituir os frutos, significa que a lei admite
a inversão ou mudança da boa fé. Em matéria de fruto, o possuidor só fica de boa fé até
ao momento em que sabe que está de a lesar o direito de outrem. Na posse adquirida
de boa fé, pode passar a produzir os efeitos da posse de má fé, a partir do momento em
que sabe que está a lesar direito de outrem. A posse continua a ser de boa fé, mas para
efeitos de fruto passa a má fé. É uma mutação parcial, só nesta situação é assim. Por
extensão deste regime dos frutos, esta alteração superveniente também se verifica no
regime dos encargos (artigo 1272.º). Por outro lado, temos a citação judicial (artigo
323.º) – se o proprietário citar o possuidor para ele lhe devolver a coisa, então a lei, nos
termos do processo civil (artigo 564.º alínea a) do CPC), transforma o possuidor de boa
fé em possuidor de má fé. São estes 2 os casos em que a posse que era de boa fé passa
a ser considerada de má fé.

c) posse pacífica e posse violenta

Esta característica da posse violenta ou posse pacífica está prevista no artigo


1261.º. Não se pode levar à letra esta norma, tem de ser interpretada em termos mais
amplos. Quando a lei remete para as normas de coação física20 ou moral, remete para
os negócios jurídicos, estamos no âmbito da aparência do negócio jurídico.

20
Na coação física ou absoluta o coagido tem a liberdade de ação totalmente excluída, enquanto na
coação moral ou relativa a liberdade está cerceada, mas não excluída. O Código Civil prevê, sob a epígrafe
“coação física” (artigo 246.º), a hipótese de o declarante ser “coagido pela força física a emitir” a
declaração. Tem-se em vista as hipóteses em que o declarante é reduzido à condição de puro autómato.
São exemplos de coação física a hipótese de uma votação por levantados e sentados, quando alguém é
forçado irresistivelmente a levantar-se ou permanecer sentado. A coação física importa, nos termos do
artigo 246.º, a ineficácia da declaração negocial.

36
Sucede que no domínio dos factos pode haver situações de aquisição de posse
de todo a todo alheia de encontro de vontades. O “roubo por esticão” não entra na
distinção de coação física ou moral21, quando a pessoa quer manifestar vontade já não
tem a coisa em si, não podemos falar sequer de negócio jurídico. Isto ficaria de fora do
contexto da violência. É por isso que Orlando Carvalho vai alargar o conceito de violência
e invoca o Código Penal, designadamente o artigo 154.º. Devemos alargar a noção de
violência aos casos de coação que não se integram no âmbito negocial da coação moral
ou física. Há coação de facto quando alguém está constrangido a suportar um ato,
quando a posse é adquirida contra ou sem a vontade do titular, então a posse é violenta,
adquirida com coação. Quando a posse é adquirida em termos tais que o titular é
colocado numa situação de sujeição, contra ou sem a sua vontade, aqui também a posse
será violenta. Temos de ir além da remissão do Código Civil do nº 2 do artigo 1261.º e
teremos de alargar para qualquer fenómeno de desapossamento com constrangimento
do anterior titular.
A coação pode ser exercida por terceiros, obviamente que a posse será violenta.
Há aqui também uma outra situação que não está propriamente contemplada nas
normas do artigo 255.º e seguintes que é a chamada violência sobre a coisa. Falámos na
violência sobre a pessoa. O artigo 261.º refere-se à violência sobre as coisas, que
também pode ser relevante. Quando se fala em coação física, é a ameaça sobre a sua
pessoa. E sobre as coisas será relevante do ponto de vista sucessório? Orlando Carvalho
entende que a violência sobre as coisas é relevante para a aquisição da posse quando
coloca a pessoa na posição de sujeição ou quando tem de suportar determinado
comportamento, ou seja, quando alguém não ameaça a pessoa diretamente, mas um
bem dessa pessoa e se tinha ou devia ter conhecimento de que estava a constranger a
pessoa com aquela ameaça, então a posse é violenta. Por outras palavras, este autor
entende que a violência sobre as coisas que estorvam a privação apenas relevará para
este fim quando o agente usou, pelo menos, de dolo eventual, quando previu, como
normal consequência da sua conduta, que iria constranger psicologicamente o
possuidor e, todavia, não se absteve de a assumir, conformando-se com o resultado. Há
aqui um alargamento do âmbito da ideia de coação moral, mas que quando o resultado
de uma pessoa do desapossado é semelhante, tem de ser uma ameaça ilegítima, quando
é feita sobre as coisas, mas produz o mesmo efeito e o adquirente tem ou devia ter
conhecimento desse efeito psicológico, então aí a posse é também violenta. É
necessário, portanto que se verifique o dolo eventual.

A coação moral consta do artigo 255.º nº 1 e consiste no “receio de um mal de que o declarante foi
ilicitamente ameaçado com o fim de obter dele a declaração”. É, portanto, a perturbação da vontade,
traduzida no medo resultante de ameaça ilícita de um dano, cominada com o intuito de extorquir a
declaração negocial. Só há vício da vontade quando a liberdade do coato não foi totalmente excluída,
quando lhe foram deixadas possibilidades de escolha, embora a submissão à ameaça fosse a única escolha
normal. Só cairemos no âmbito da coação física quando a liberdade exterior do coato é totalmente
excluída e este é utilizado como puro autómato ou instrumento. Não basta um simples medo ou receio;
a lei exclui, desde logo, o chamado temor reverencial (artigo 255.º nº 2). Torna-se necessário que o receio
provenha de uma ameaça ilícita. Exige-se igualmente que a cominação do mal vise extorquir a declaração
negocial. Por exemplo, A é ameaçado de morte ou de agressão ou de difamação, se não emitir certa
declaração negocial. Quanto aos efeitos, a coação física dá lugar à inexistência do negócio (artigo 246.º)
e a coação moral à mera anulabilidade (artigo 256.º).
21
Orlando de Carvalho define-a como “a que coloca o coato em situação de absoluto automatismo,
retirando-lhe qualquer liberdade de escolha, com a leitura que os atuais conhecimentos permitam fazer”.

37
d) Posse pública e posse oculta

Neste contexto, há logo uma redação diferente, pois nas 3 modalidades


anteriores a lei refere-se ao momento da aquisição, aqui é ao modo de exercício. A lei
dá relevo à distinção do momento da aquisição do momento do exercício, porque pode
ser a posse exercida de modo diferente e aí ganha mais relevo do que a forma como foi
adquirida. Daí a norma falar da posse que é exercida.
Quando diz “de modo a poder ser conhecida dos interessados”, a lei parece que
é restritiva, pelo que se deve dizer que é conhecida ou cognoscível dos interessados. A
publicidade mede-se pelos padrões da cognoscibilidade, não pelo efetivo
conhecimento. À semelhança da doutrina da impressão do destinatário que a lei acolhe
em sede de declaração negocial (artigo 236.º), pode dizer-se que a posse é cognoscível
se um interessado razoável (medianamente diligente e sagaz), colocado na posição do
real interessado, dela tivesse perceção.
O caráter oculto ou clandestino da posse pode resultar da própria natureza da
forma de aquisição, ou de factos praticados pelo agente para a encobrir. Há formas de
aquisição da posse que excluem a publicidade: é o caso da inversão do título de posse
por oposição implícita. Porém, ainda quando a natureza do objeto facilite a sonegação
ou dificulte o conhecimento da sua posse, nem por isso esta deixará de ser pública se
for exercida com a exteriorização correspondente à normal utilização da coisa. Para que
haja publicidade, basta que se o indivíduo se comporte, não de um modo especial, mas
de acordo com os usuais critérios empíricos; em suma, comportando-se como
naturalmente o faria quem não tivesse qualquer intenção de o esconder.
A cessação da ocultação verifica-se quando a posse é conhecida ou cognoscível
dos interessados. A prova também é difícil. Por outro lado, não interessa se a posse é
oculta pelo simples facto da ocultação, não importa se há intencionalidade em ocultar,
não há nenhum animus específico.

e) Posse sob violência e posse sob ocultação

A violência ou não violência constitui uma característica relativa e não


permanente. Para qualificar a posse, o que interessa é o momento da aquisição desta
(artigos 1261.º nº 1 e 2, 1267.º nº 2 in fine e 1297.º). Só que uma posse pode adquirir-
se de modo pacífico e, todavia, estar sob violência com todas as inerentes
consequências legais. Em relação ao ex-possuidor, ou nas relações imediatas, é pacífica,
e, todavia, em relação a anteriores possuidores ou a alguns deles – nas relações
mediatas –, prolonga uma situação de violência. A violência com que uma posse se
adquiriu pode cessar e a lei dá relevo à sua cessação. Trata-se, pois, de uma
característica não permanente, que não marca de modo indelével a situação possessória
(artigos 1267.º nº 2, 1282.º, 1297.º e 1300.º nº 1).
É esta situação que se retira da lei, designadamente do artigo 1300.º nº 2, que é
aquilo que Orlando de Carvalho designa por posse sob violência. Posse violenta são as
relações entre novo possuidor e anterior. A questão da violência pode produzir efeitos
relativamente à esfera de terceiros. Antes disso, vamos falar no sujeito objeto de
violência, ameaça, coação. É uma pessoa, enquanto coagido ou ameaçado, que não tem
liberdade plena de defesa dos seus interesses ou direitos. A ordem jurídica protege essa
pessoa que não tem condições materiais, substantivas para defender os seus direitos,

38
tendo o receio de ser ameaçado/coagido tem a liberdade constrangida. Essa coação ou
situação de constrangimento e de menor liberdade jurídica, menor poder de
autodeterminação reflete-se não apenas nas relações diretas, mas também tem
repercussões a nível de terceiros, ou seja, A adquiriu violentamente a posse de B, se
transmitir a posse a C e continuar com ameaças a B, continua a ter o poder de
autodeterminação limitado, o que significa que a sua esfera de interesses não está em
condições de garantir os seus interesses, deve continuar a ser protegido. É essa situação
que se passa com esta designação mais ampla de posse sob violência.
Dos termos expostos resulta que o coator é o adquirente da posse, podendo
também ser um terceiro, mas, que o coato é necessariamente o que sofre a privação ou
usurpação. Não é, porém, concebível o inverso? Que, por exemplo, A coaja B a comprar-
lhe uma coisa, caso em que o coator será o tradens e o coato o aparente accipiens da
posse? Concebível é, só que nessa hipótese, tratando-se de coação física, o aparente
accipiens, mesmo que admita a entrega da coisa, não é possuidor por falta de animus.
Logo, não se põe o problema de posse violenta. E ainda que o coato queira depois ficar
com o objeto, já não é por força do ato de coação que se torna possuidor, mas por outra
causa (designadamente, por inversão do título da posse). Tratando-se de coação moral,
não pode dizer-se que se não há animus; o que não devem é assacar-se-lhe as
consequências da coação que o violentou.
A violência pode ser instantânea ou duradoura, vai significar que prazos para
tutela da posse e usucapião começam a correr logo que cesse a violência. Mas pode
acontecer que a ameaça praticada no momento se prolongue. Quem é desapossado
continua a receber ameaças, a situação de violência mantém-se. Mas vamos supor a
situação de que B continua a ameaçar A, mas, entretanto, transmite a posse a C. Temos
aqui uma forma de aquisição entre B e C que tem as suas características, mas muito
embora C seja alheio à situação A-B, se C adquire a posse e A continua a ser ameaçado,
entende-se que, para efeitos de usucapião, a posse de C que é pacífica relativamente a
B, mas está sob violência relativamente a A, não é relevante, ou seja, os prazos para a
usucapião não começam a contar. Ou seja, a posse violenta caracteriza-se como tal no
momento da aquisição, mas o facto de após a aquisição a posse passar a ser exercida
sem violência, produz todos os seus efeitos como se fosse uma posse não violenta. Mas
pode acontecer ser adquirida com violência e depois continuar a ser exercida, e se nesse
período que se mantém a violência, for transmitida a posse a terceiro que é alheio à
posse anterior, considera-se que está sob violência relativamente a A. O estar sob
violência significa que a lei continua a proteger A em virtude da limitação do poder de
autodeterminação, este direito de personalidade tem eficácia relativamente a terceiros,
e é por isso que esse terceiro está sob violência relativamente a A, não produz
relativamente a este os efeitos em matéria de tutela ou de usucapião. Esta situação
pode acabar quando B cessar as ameaças sobre A, a posse de C passa a ser pacífica
relativamente a A e B. A posse sob violência só se mantém enquanto a esfera do anterior
possuidor/desapossado for restringida de forma ilícita.
Há um outro aspeto a ter em conta com a posse violenta e por arrastamento com
a posse sob violência. Quando cessa a violência? Já vimos que pode ser instantânea ou
continuada. Cessa quando o anterior possuidor assim o considerar. As ameaças são de
3 em 3 meses, considera-se a posse violenta? Daí que haja alguma dificuldade de prova.
O critério adotado assenta nesta ideia de que a posse passa a ser pacífica quando o
coagido deixou de se sentir ameaçado. Depois é preciso fazer prova, que vai condicionar

39
o momento da cessação da violência. Do ponto de vista substantivo, importa realçar o
sentimento do ameaçado de que essas mesmas ameaças cessaram. Pode haver uma
discrepância entre uma coisa e outra. Não é o fim material ou objetivo da ameaça, é a
sensação de não se sentir ameaçado, é esse momento que determina que a posse passa
a ser exercida de forma pacífica ou deixa de haver violência, consoante as situações. O
ameaçado tem o interesse de continuar a ameaça, isso só o protege para efeitos de
usucapião.
Este é um princípio geral. Contudo, por razões de comércio jurídico e segurança
jurídica, esta regra tem uma exceção relativamente à posse de bens móveis, o que
significa, em rigor, muito embora isso não decorra diretamente da lei, que este princípio
da tutela sem limites do possuidor desapossado e mantido de forma violenta só vale
para a posse sobre imóveis. Para a posse sobre móveis, temos um problema que decorre
do Código, a lei entende que manter este regime para os móveis iria criar uma certa
insegurança jurídica dada a transmissibilidade, as sucessivas transmissões a que os bens
móveis podem estar sujeitos. Compreende-se que, nas relações de terceiros, porque há
maior proximidade, poder-se-ia aceitar o fenómeno, mas podia repercutir-se a muitos
mais e a lei foi sensível a isto.
Relativamente aos móveis simples, a lei, no artigo 1300.º nº 2, diz que a forma
de proteger o desapossado sob violência e mantido sob violência é: aquela posse não é
relevante para efeitos de usucapião ou amplia-se o prazo normal para usucapião. É isso
que a lei faz quando a posse sob violência versa sob móveis simples. É daí que Orlando
de Carvalho retira a posse sob violência e oculta. Para percebermos o artigo 1300.º nº
2, veja-se o artigo anterior que prescreve que, quando se trata de móveis simples, a
usucapião adquire-se ao fim de 3 anos, se for de boa fé. Se se tratar de má fé, o prazo
sobe para 6 anos. Em princípio, a lei protege o desapossado por violência – no artigo
1297.º, temos um princípio inserido na parte de usucapião de imóveis que diz que,
enquanto houver violência, o prazo não começa a correr, embora a lei não faça distinção
entre o adquirente e terceiros. Será que se pode fazer? Pode-se, porque o artigo 1300.º
diz que é aplicável o artigo 1297.º, o que significa que o regime em geral é válido tanto
para imóveis, como para móveis. Agora é que vem a exceção, que se refere aos terceiros
adquirentes de boa fé e refere-se apenas aos móveis, o que significa que se a única
exceção é relativamente aos móveis, deve interpretar-se a contrario que não vale para
imóveis. Como sabemos que é excecional? Primeiro, admite o início do prazo se esse
terceiro estiver de boa fé, mas depois aumenta o prazo para a usucapião, porque passa
a ser 4 e 7 anos, respetivamente, isto é que é o regime excecional, aumenta em 1 ano o
prazo para a usucapião. É a partir daqui, conjugando os nº 1 e 2 do artigo 1300.º, que se
retira deste regime de tutela de terceiros que o prazo começa a contar a partir do
momento da aquisição da posse para efeitos de usucapião.
Esta norma do artigo 1300.º está inserida nos móveis, não se faz distinção dos
móveis quanto ao registo e, portanto, os prazos são de 4 e 7 anos. É no artigo 1298.º
que se encontra uma certa incoerência da lei que nos leva a dizer que não se aplica o
artigo 1300º aos móveis sujeitos a registo. A posse, para ser registada, tem de ter uma
determinada duração, daí que na alínea a) do artigo em questão se refiram 2 ou 4 anos
a partir do registo. Mas agora comparamos a alínea b) com o nº 2 do artigo 1300.º. Há
aqui incoerência, porque o regime excecional consagra um prazo inferior e é uma posse
obtida com violência. Não podemos aplicar o regime excecional, porque é menos

40
defensor da posição do regime geral. O regime geral não pode ser mais benéfico do que
um regime especial.

Na ocultação, também se pode verificar o mesmo que acima se expôs: durante


a ocultação, pode transmitir-se a terceiro e a posse de terceiro está sob ocultação
relativamente a A. Aqui só muda a caraterística da posse, de resto é tudo igual ao regime
anterior, a lei não faz distinção. O caráter público ou oculto da posse é, também, uma
característica relativa e não permanente. Relativa porque a cognoscibilidade é apenas
em confronto dos interessados, e não das pessoas do círculo social onde a posse se
localiza. Mas é ainda relativa porque uma posse pode ter sido tomada publicamente,
ser, portanto, pública em relação ao ex-possuidor, e prolongar uma ocultação prévia,
estar sob ocultação. É, ainda, uma característica não permanente, pois a clandestinidade
da posse desaparece se esta vier a exercer-se de modo público. A lei atribui efeitos a
essa alteração superveniente, tal como decorre dos artigos 1267.º nº 2, 1282.º, 1297.º
e 1300.º nº 2. Na posse que se adquiriu publicamente, o caráter público subsiste mesmo
que a posse se exerça depois a ocultas; na adquirida ocultamente, é que a sobrevinda
alteração tem relevo.
A clandestinidade cessa já porque a posse passa a exercer-se publicamente, já
porque o atual possuidor a leva, de qualquer modo, ao conhecimento dos interessados
ou ela se lhes torna por qualquer modo cognoscível.

4.9. Quadro geral das formas de aquisição da posse

A aquisição22 da posse pode ser:

I. Originária
A. ocupação
B. acessão
C. usurpação
1. prática reiterada
2. inversão do título da posse
a) por oposição do detentor
b) por ato de terceiro
3. esbulho (residual)
II. Derivada
A. tradição real
1. tradição explícita
a) tradição material
i) tradição direta
ii) tradição à distância (longa manu)
b) tradição simbólica

22
Importa relembrar a distinção dos conceitos de aquisição originária e derivada. Na primeira, o direito
(doravante deve ler-se posse onde se diz direito) adquirido não depende da existência ou da extensão de
um direito anterior, que poderá até não existir; quando o direito anterior exista, o direito não foi adquirido
por causa desse direito, mas apesar dele. Na segunda, o direito adquirido funda-se ou filia-se na existência
de um direito na titularidade de outra pessoa; a existência anterior desse direito e a sua extinção ou
limitação é que geram a aquisição do direito pelo novo titular, é que são a causa dessa aquisição.

41
i) entrega documental (traditio documental)
ii) entrega da chave (traditio per clave/clavium)
c) imissão na posse
2. tradição implícita
a) traditio brevi manu
b) constituto possessório
i) bilateral
ii) trilateral
B. tradição ficta

É das formas aquisitivas de posse formal que curamos aqui, e não das formas
aquisitivas de posse causal23.
São duas as notas comuns à aquisição originária e derivada da posse: os negócios
jurídicos não transmitem posse e todos os atos aquisitivos têm de integrar o corpus e o
animus, senão não há transmissão da posse.
O elenco do artigo 1263.º não é taxativo, o que resulta da própria lei, visto não
incluir formas de aquisição que esta expressamente reconhece, como o caso da
sucessão por morte (artigo 1255.º) e o caso do esbulho (artigos 1276.º e seguintes).

I. Aquisição originária da posse

A aquisição originária de posse é aquela em que a posse do adquirente surge ex


novo na esfera de disponibilidade empírica do sujeito, porque não depende
geneticamente de uma posse anterior, depende apenas do facto aquisitivo. Mesmo que
uma posse anterior tenha existido, a posse do adquirente não provém dela, não tem
causa nela, mas adquire-se contra ela ou apesar dela. Nas palavras de Santos Justo, a
aquisição originária decorre duma relação de facto entre o adquirente-possuidor e a
coisa, sem a intervenção do antigo possuidor; por isso, a posse do adquirente não está
dependente nem quanto à existência nem quanto à extensão da posse anterior. Trata-
se de um poder ex novo.
São formas legítimas de adquirir a posse, porque são formas legítimas de adquirir
o direito. São as formas típicas, porque a lei as prevê, mas a posse pode ser adquirida
de qualquer forma, em termos originários. Tirando as formas típicas, uma posse pode
ser adquirida de qualquer forma – usurpação da posse. Ou seja, vamos incluir neste
nome todas as formas originárias que não sejam ocupação e acessão. As duas
modalidades da usurpação são tipificadas, as restantes são esbulho.

A. Ocupação

É uma forma de aquisição da propriedade de coisas móveis sem dono, já porque


nunca o tiveram, já porque foram abandonadas, já porque se perderam, ou esconderam
ou enterraram, não podendo sem mais determinar-se a quem pertencem. A sua
apropriação dá-se pela simples operação jurídica de apresamento ou apreensão
material, o que significa que nesse ato a coisa entra na disponibilidade fáctica do sujeito.
Se não se preenchem os requisitos estabelecidos pela lei (artigos 1318.º e seguintes)

23
Sobre esta distinção ver 4.4.

42
para a aquisição da propriedade, estamos perante posse formal. Se a apreensão é tal
que a coisa não se houve nem podia ter-se havido como sem dono, deu-se verdadeira
usurpação do domínio. Se se verificar o inverso, a aquisição da posse é a ocupação, que
constituindo um titulus adquirendi, em abstrato, do direito, faz com que a posse seja
titulada (artigos 1320.º nº 1 in fine, 1322.º nº 2 antes de decorridos os 2 dias, e 1323.º
nº 1 segunda parte se e enquanto não se anunciar o achado).
Por força do artigo 1266.º, a aquisição da posse por ocupação dispensa o uso da
razão. O que se pretende dizer é que a ocupação dá posse independentemente de
animus relevante. O simples facto da apreensão material confere posse, ainda que seja
possível excluir esse efeito provando-se que a apreensão ou apresamento é
manifestamente para outrem.
O artigo 1318.º tem o regime e as características da ocupação, tudo o resto são
regimes específicos. Trata-se de coisas móveis, agora teremos de alargar aos animais
que também são móveis, estamos a falar de coisas e animais que nunca tiveram dono
ou foram perdidos ou abandonados. Esta forma de aquisição consubstancia-se na
ocupação, no âmbito material. É um facto constitutivo, aquisitivo. Questiona-se se a
ocupação é automática ou tem de haver uma manifestação de vontade. A vontade
aquisitiva não tem de estar implícita. Diz-se “podem”, há uma faculdade de apreender
ou não. A regra é essa: a mera apreensão origina a aquisição, salvo o que dizem as
normas seguintes. O artigo 1321.º foi revogado porque se entendeu que não há animais
ferozes.
A norma com mais interesse é o artigo 1323.º. Temos aqui várias figuras, este
artigo comporta diversas situações: desde aquisições de direito, de furto, de posse. O
nº 1 estabelece um regime especial, assente num princípio da convivência solidária: se
encontrarmos alguma coisa que não nos pertence, devemos entregá-la, temos um dever
social relacionado com a boa fé, mas com um ónus, a lei fala num dever de restituir, mas
só se a apreender/ocupar, aí terá a obrigação de entregar se conhecer o dono ou, se não
o conhecer, de entregar às autoridades. Se não o fizer e ficar com a coisa,
independentemente do Direito Penal, estamos perante uma forma de aquisição de
posse. Do ponto de vista penal, pode haver furto, mas ao mesmo tempo há posse. Neste
caso, não há aquisição do direito, falamos de ocupação enquanto aquisição de direito.
Relativamente aos animais, é que se acrescenta algo novo. Mas aqui no nº 3 há
um dever de identificação e depois não se diz onde se deixa o animal. São situações
onde ainda não há aquisição do direito por ocupação. No nº 4, está subentendido que o
achador deve entregar às autoridades, não está obrigado necessariamente a ficar com
o animal. Então aí é que há aquisição automática, fica pendente até que haja esta
tramitação toda. Depois temos uma outra realidade que tem a ver com o direito de
garantia nos nº 6 e 7. Há um direito de retenção: enquanto a indemnização não for paga,
pode reter a coisa. Há um direito de garantia, enquanto o dono do animal ou da coisa
não pagar as despesas, o achador não está obrigado a entregar. No nº 7, temos um
direito diferente do anterior e mesmo o direito de retenção no nº 6 pode levantar alguns
problemas quanto aos animais. O direito de retenção é o direito do credor ficar com a
coisa enquanto o devedor não pagar as despesas. Mas o achador pode vender a coisa e
com a venda ressarcir-se, é para isso que serve o direito real de garantia. Temos aqui
um animal que pode ser adquirido por terceiro, ficando o dono sem ele. O que está no
nº 7 não é um direito real de garantia. Aqui, verdadeiramente, é quase um direito de
guarda, é só para prevenir danos, verdadeiramente há uma mera faculdade do achador

43
não entregar o animal porque está em causa a própria integridade deste. Não tem por
objetivo o pagamento de qualquer dívida, tem por finalidade a tutela do animal. Temos
um mero direito de crédito, não há nenhum contrato, temos uma mera faculdade,
temos um direito de retenção de natureza obrigacional/creditícia e não real. Temos uma
norma muito rica do ponto de vista dominial.
Em suma, nos termos do artigo 1323.º nº 1, quem encontra uma coisa deve
restituir e comunicar. Em termos de posse, não haverá aquisição de posse, é um caso de
esbulho, não é aquisição por ocupação. Será por ocupação relativamente às coisas
referidas no nº 2 em que o achador deve comunicar às autoridades ou anunciar o
achado e, se não o faz, aí há posse por ocupação, posse titulada, mas oculta, que terá
um regime especial. Por outro lado, se o achador anunciar o achado, a lei faculta-lhe um
direito de retenção no caso de ter de suportar danos ou despesas como forma de ser
ressarcido dessas despesas. Neste caso, em que o achador que retém a coisa enquanto
não for ressarcido, é detentor em termos de propriedade, não é possuidor, reconhece
que o direito pertence a outrem, mas o direito de retenção é suscetível de posse. Temos
uma detenção em termos de propriedade e posse em termos de direito de retenção.
Relativamente aos animais, no caso em que se admite direito de retenção, aqui estamos
no âmbito de uma forma de detenção que não tem natureza real, mas apenas
obrigacional, não há posse, não passa de detenção.
Como sabemos se o bem foi abandonado ou perdido? Porque a norma do artigo
1323.º aplica-se apenas às coisas perdidas, o abandono rege-se pela aquisição
originária, nos termos do artigo 1318.º com a mera apreensão. Aqui temos de entrar
com critérios comuns, de mera convivência para saber se foi abandonado ou perdido.
Há indicadores. O critério do achador médio – se encontrarmos uma carteira com
dinheiro e documentos será um bem perdido e não abandonado. Serão critérios de
razoabilidade.
As coisas imóveis são insuscetíveis de ocupação, pois as que não tenham dono
conhecido revertem automaticamente para o património do Estado, ainda que sobre
elas não se exerça um efetivo domínio (artigo 1345.º).

B. Acessão

É também uma forma de aquisição do direito de propriedade, tanto sobre


móveis como sobre imóveis, e que decorre da adjunção, por obra da natureza ou por
obra do homem, de uma coisa (objeto enriquecedor) a outra coisa (objeto enriquecido).
Por outras palavras, a acessão da posse é a faculdade de, para efeitos designadamente
de usucapião, o possuidor juntar à sua a posse do seu antecessor (artigo 1256.º nº 1).
Estamos perante junção de coisas, que pode ser provocada pelas forças da natureza
(acessão natural) ou pelo homem (acessão industrial). Têm em comum a junção de
coisas de diferentes donos. O problema só se coloca quando se junta – a quem pertence
o resultado, a coisa que resultou da junção? O regime da acessão pressupõe a junção de
coisas de donos diferentes e depois regula a atribuição da coisa resultado dessa junção.
Na acessão natural, a entrada do bem adjunto na área de disponibilidade
empírica do sujeito depende de o objeto enriquecido, que é propriedade daquele, estar
na sua posse, estar já na sua disponibilidade fáctica. A acessão natural é, então, a que
se dá por fenómenos da natureza. A regra é a do artigo 1327.º, é o princípio geral. Nas
outras quatro normas temos regimes especiais. A aquisição parece ser imediata. No

44
aluvião, temos terras que são retiradas de uns prédios para outros. Sendo impercetível
como fenómeno da erosão, percebe-se que a lei não permita. A avulsão dá-se quando
há tempestades ou cheias, são situações episódicas que retiram materiais de um prédio
para outro. Como temos fenómenos violentos já há possibilidade de saber o que se
perdeu e a lei já não prevê a aquisição imediata porque estabelece um período para se
poderem reaver as coisas.
Na acessão industrial, uma vez que esta implica indústria humana, o adjuntor
exerce sempre poder de facto sobre as coisas ou, pelo menos, sobre o objeto
enriquecido, pelo que, mesmo que a propriedade não se adquira por não
preenchimento dos requisitos legais, se interceder a intenção de apropriação haverá
corpus e animus e, por isso, posse. Também na acessão industrial mobiliária temos o
homem a juntar coisas que não são suas – a união, ou a confusão, ou a especificação,
no caso de um indivíduo que pinta com tintas e uma tela que não são suas. Em todas as
normas se fala de boa fé e má fé e os regimes são completamente diferentes. Estamos
perante coisas que pertencem a donos diferente. Será de boa fé, se o adjuntor ignorar
que o bem que juntou não era seu. Compreende-se que, enquanto na boa fé a lei admita
a acessão, possa haver a aquisição, mas compreende-se que tenha de indemnizar.
Depois a lei também faz depender isso do valor e faz também depender isso de um outro
fator – se é ou não possível a separação dos bens. Se for possível, obviamente que a lei
dá prioridade a este critério, separam-se os bens e cada um fica com o seu. Se não for
possível a separação, fica com a coisa o dono daquela que tiver maior valor antes da
junção. Temos aqui um critério da aquisição originária que primeiro atende à separação
da coisa sem dano (físico ou económico). Na união ou confusão de má fé, também vale
a separação, diz a lei que o autor deve restituir o valor da coisa e indemnizar o dono se
este não preferir ficar com ambas. Quando há união, a separação é mais fácil. Na união
os elementos mantêm a sua individualidade, mas na confusão perdem esta sua
individualidade. Na especificação temos um critério semelhante.
Para nós o que é relevante é a acessão industrial. Também aqui temos vários
regimes distintos. Na acessão imobiliária, temos a junção de coisas móveis a coisas
imóveis. Temos sempre um bem imóvel à qual se juntaram coisas móveis. Aqui também
temos a distinção entre boa e má fé, em casos em que é relevante e em casos em que
não é relevante. O caso geral é aquele que planta ou constrói com materiais alheios em
terreno próprio. A lei diz que adquire os materiais, pagando o valor dos bens e uma
eventual indemnização. Aqui também se coloca a questão de saber se é automática ou
não: uma vez operada a acessão, a lei parece que faz atribuir um direito sobre esses
bens ao acessor. É indiferente se aquele que acede estiver de boa ou má fé. Admite-se
que, se estiver de má fé, de acordo com juízos de equidade, a indemnização será maior,
pois o valor dos bens é sempre o mesmo. No artigo 1340.º nº 4, a lei dá uma noção de
boa fé – é o desconhecimento de que o bem que acedeu era alheio ou se foi autorizado
à incorporação pelo dono do terreno. Esta última parte é importante.
Aquele que de boa fé plantar em terreno alheio adquire-o, mas não é sempre.
Não se sabe bem a quem cabe o ónus da prova, mas parece que será a quem acedeu, a
quem obteve o consentimento. Para além da boa fé, é necessária outra coisa: o valor
ser superior ao que tinha antes. A lei estabelece como critério de definição da
propriedade o critério de maior valor. Se o valor do terreno for 100, tem de ser 201,
porque os 100 já lá estavam. Se o valor acrescentado for igual, haverá licitação. Se for
menor, as obras pertencem ao dono do terreno, pagando este pelo valor que elas

45
tenham. Se for de má fé, os critérios invertem-se, o dono do terreno tem direito que a
obra seja desfeita à custa do acessor.
Depois temos uma terceira hipótese: construir em terreno alheio com materiais
alheios. Cabem ao autor da incorporação os direitos conferidos no artigo 1340.º, quer
esteja de boa ou de má fé. O artigo 1343.º refere-se ao prolongamento de construção
em terreno alheio. A lei só fala na boa fé, pelo que a aquisição não se verifica se houver
má fé. Se houver boa fé, o construtor adquire o terreno do vizinho, se houverem
decorrido 3 meses sem oposição do proprietário. Temos uma norma um pouco
desajustada da realidade, que são os 3 meses, porque o ónus de saber recai sobre o
proprietário. Compreende-se isto quando os terrenos eram ocupados, agora passam-se
anos sem as pessoas irem às terras. A lei quis proteger o proprietário do bem com maior
valor, pois as casas valem mais do que as terras. Há sempre obrigação de pagar pelos
prejuízos. Se houver má fé, teremos de aplicar por analogia os regimes anteriores. O
proprietário poderá pedir a destruição da coisa ou chegar-se a um acordo.
Só existe acessão se o adjuntor não souber que o objeto é alheio ou que o seu
dono não autoriza a adjunção. Não existindo acessão verdadeira, haverá usurpação. Por
outras palavras, no caso da acessão industrial, se houver boa fé por parte do acessor e
se estiverem reunidos os pressupostos, haverá acessão. No caso de má fé, haverá
esbulho, uma vez que há apropriação de um bem que se sabe que é de outro.

C. Usurpação

A usurpação é uma designação genérica na qual vamos incluir todas as formas


de aquisição originária da posse, excluindo a ocupação e a acessão que são formas lícitas
de adquirir a posse, o que não quer dizer que não haja formas ilícitas. A ocupação e a
acessão são formas próximas de aquisição do direito, daí a distinção pela sua maior
proximidade do modo de aquisição da posse relativamente à aquisição do direito. O que
podemos dizer é que na usurpação vamos incluir todas as formas de aquisição contra a
vontade do anterior possuidor, ao contrário da aquisição derivada.

1. Prática reiterada ou aquisição paulatina

A primeira modalidade de usurpação é a prática reiterada de atos materiais


correspondentes ao exercício do direito. Convém salientar que estamos no âmbito das
formas de aquisição, ainda não estamos na posse. A prática reiterada parece que já
envolve posse, temos de distinguir este facto da posse propriamente dita, porque isto é
uma antecâmara da posse. Encontra consagração legal no artigo 1263.º alínea a) do CC.
Existem alguns requisitos de que depende esta forma de aquisição:
- prática de atos materiais: é uma atuação material, direta sobre uma determinada coisa,
significa que os atos meramente jurídicos desacompanhados de qualquer facto ou
atuação não consubstanciam esta forma originária de aquisição. É o exercício de atos
suscetíveis de integrarem o corpus que aqui se exige, trata-se, pois, de atos que
exprimam essa factualidade, esse poder de facto. O que se exclui são simples
manifestações de um poder formal-jurídico, só exequíveis ou possíveis através da
intervenção reguladora da norma;
- reiteração: esta atuação tem de ser reiterada, duradoura, o bem tem de estar na esfera
de disponibilidade de atuação do agente, uma atuação que permita concluir que a

46
pessoa usa o bem com uma certa estabilidade. Esta forma de aquisição não é
instantânea, mas paulatina, pelo que não basta um ato para a posse se adquirir. Exige-
se uma repetição ou reiteração, o que não significa atuação ininterrupta ou contínua ou
sequer uma periodicidade determinada. Não só se admite a existência de intervalos
regulares de harmonia com o ritmo da normal utilização do bem, mas é compatível com
interrupções do contacto com o objeto provocadas por circunstâncias anormais
transitoriamente impeditivas dele – desde que não imputáveis a ato humano
intencionalmente constituinte de um poder empírico antagónico ou conflituante com o
que através dessa prática visa apossar-se da coisa;
- correspondência dos poderes de facto ao exercício do direito: esta prática tem de ser
correspondente ao exercício de um direito real, tem de antecipar ou ser equivalente ao
exercício de um direito real. Tem as mesmas características, mas ainda não há um
efetivo corpus nem um efetivo animus, na medida em que estes dois elementos se têm
de consolidar na esfera do titular e não só, porque a norma acrescenta “com
publicidade”. Este acaba por ser o elemento que acaba por dar alguma certificação ao
pré-corpus e ao pré-animus do agente. O agente tem de atuar em termos semelhantes
ao exercício de um direito real, não tem de ter corpus nem animus, tem de ter uma
atuação reiterada, constante, duradoura que permita dizer-se que tem corpus. Sendo a
aquisição paulatina uma forma de aquisição da posse que assenta numa pré-posse,
numa verdadeira experiência pré-possessória, tem de específico não só uma
prefiguração de corpus (a prática reiterada de atos empíricos), como uma prefiguração
de animus (uma intenção de direito, a intenção de exercer um direito real);
- publicidade24: a lei exige o reconhecimento dessa prática reiterada e esse está na
fórmula “com publicidade”, não tem o mesmo sentido de posse pública pela natureza
desta forma de aquisição. Estamos no âmbito de aquisição paulatina que vai ganhando
intensidade e só pode reconhecer-se de forma autónoma a aquisição de posse, quando
o meio social no qual esses atos são praticados reconhecem a exclusividade dessa
atuação, reconhecem que essa pessoa atua como titular de direito real, em modos
exclusivos. Mas não basta a intenção do agente, é preciso que as pessoas afetadas por
essa prática reiterada reconheçam que essa prática consubstancia um poder exclusivo.
Quando estão reunidos estes dois fatores, então é que há aquisição pela prática
reiterada – é preciso esta publicidade que significa o reconhecimento pelo meio social
e que é exercido de modo exclusivo. Temos uma vontade de ter o poder exclusivo e, por
outro lado, o reconhecimento da comunidade, estão reunidos os dois fatores para se
dizer que o agente é possuidor. Temos uma pré-posse, porque contém elementos
semelhantes à posse, mas que precisam de alguma reiteração e consubstanciação
material fáctica para serem reconhecidos como tal.

2. Inversão do título de posse

A segunda modalidade é a inversão do título de posse, que pode dar-se por


oposição do detentor do direito contra aquele em cujo nome possuía ou por ato de

24
Nas palavras de Orlando de Carvalho: “Do que se trata aqui é de que a prática de poderes empíricos
sobre a coisa se processe publicamente, à luz de quantos participam no círculo social em que o domínio
se exerce. O consenso público a que se refere o artigo 1263.º alínea a) não implica que se crie a convicção
de que o exercente é o titular do direito que os poderes empíricos inculcam. (A publicidade) Busca apenas
excluir a clandestinidade da prática reiterada em que ela assenta.”

47
terceiro capaz de transferir a posse – artigos 1263.º alínea d) e 1265.º. Seja de uma
forma ou de outra, o que tem de comum? Em primeiro lugar, só pode inverter quem for
detentor, só quem exercer poderes de facto como detentor é que pode inverter, é uma
alteração, inversão do animus, da causa pela qual se exerciam poderes de facto. Um
detentor exerce poderes de facto em termos de um direito de crédito, a partir de certo
momento passa a exercer poderes de facto em termos de um direito real, é esta
alteração que é designada por inversão. O que altera é o animus, o elemento
psicológico, os poderes de facto já existiam. Verdadeiramente o título é causa dos
poderes de facto, exerce os poderes porque se considera proprietário. Quando se fala
de inversão de detentor, estamos perante atos que têm lugar na esfera jurídica do
detentor, a inversão é sempre provocada, tem origem pelo detentor e só por ele, só ele
pode inverter, por sua iniciativa ou por influência de terceiros. Daí que estejamos no
âmbito da inversão do título da posse25.
A inversão pode dar-se por oposição do detentor. Pelo menos nesta modalidade
(na outra modalidade de inversão pode não ser assim), quando é o próprio detentor que
por sua iniciativa se autointitula possuidor, é irrelevante a causa que desencadeia essa
inversão, a lei não atende de todo em todo à causa que motiva essa inversão, quando é
desencadeada pelo próprio detentor. Sabemos que estamos no âmbito da usurpação, é
uma aquisição contra a vontade do anterior possuidor. O motivo é alheio ao fenómeno
da inversão. Ainda assim, esta modalidade de inversão por iniciativa exclusiva do
detentor pode ter lugar de duas formas: a chamada inversão explícita e a inversão
implícita.
É explícita quando o detentor dá conhecimento ao ex-possuidor de que agora
ele é o possuidor. É uma oposição formal, por meios notificativos diretos e levada ao
conhecimento do possuidor. Em regra, acompanhará atos que confirmam a sua
seriedade, o propósito de se traduzir na prática efetiva da utilização ou disposição
empírica da coisa, mas atos que não têm outra essencialidade além dessa: de serem
índice ou confirmação da seriedade do propósito. A declaração é importante, e só ela,
até porque na sua ausência os atos complementares seriam equívocos. A declaração
tem de ser levada ao conhecimento do possuidor, e não apenas para que a posse do
inversor seja pública, mas para que a própria inversão se verifique e, por conseguinte,
se adquira a posse. Só que a notificação não tem que ser individualizada e muito menos
presencial. É implícita quando o detentor pratica um ato de transmissão para o qual não
tem legitimidade, só o pode fazer quem tem um direito real sobre o bem. Por exemplo:
o inquilino dirige-se ao senhorio e diz que herdou a casa (oposição explícita). O inquilino
vende em nome próprio a casa a terceiro (oposição implícita). Haverá inversão implícita

25
Orlando de Carvalho diz que se trata “da conversão de uma detenção em posse por ato do próprio
detentor. Alguém que exerce poderes de facto sobre uma coisa com simples animus detinendi converte
a sua detenção em verdadeira posse, passando a agir com animus possidendi ou verdadeiro animus. Trata-
se de um processo fundamentalmente psicológico. É uma forma de aquisição originária e instantânea de
posse. Originária porque a posse antecedente apenas precede, mas não causa, a posse do inversor – que,
ao invés, se adquire apesar dela e contra ela. Instantânea porque se adquire uno actu, quer dizer, no
preciso momento em que se verifica o processo de inversão. Este tem dois pressupostos: que o inversor
já esteja antes numa situação de detenção; que passe a agir em termos de um direito real, ou de um
direito real mais denso do que aquele em termos do qual agia, e essa intenção seja não só inequívoca
como sindicável. O inversor pode já ter antes um jus in re, ou possuir em termos de um jus in re, e praticar
a inversão. Basta que o direito em cujos termos atua, atribuindo-lhe embora poderes de facto, não seja o
direito de propriedade.”

48
quando está subjacente necessariamente a um ato que só possa ser praticado por
alguém que tenha direito real. Há oposição implícita se, através de um ato inequívoco,
o detentor revelar que se arroga uma posição jurídica real, ou uma posição mais densa
do que aquela de que já desfruta.
A inversão é sempre desencadeada pelo detentor, só ele é que inverte e só ele é
que pode transformar o elemento psicológico que caracteriza os poderes de facto.
Temos de fazer uma correção à lei quando se refere à inversão por ato de terceiro: se
fosse por ato de terceiro capaz de transferir a posse, estaríamos no âmbito da aquisição
derivada. Se aplicássemos à letra, alguém que era detentor por ato de terceiro tornou-
se possuidor, isto era posse derivada. Portanto, onde está posse deve ler-se direito.
Vejamos um exemplo que nos ajudará a perceber melhor esta modalidade de inversão:
A é senhorio e B é inquilino. Suponhamos que C se arroga perante B dono da coisa e
vende. Se confia nesse negócio, o terceiro transmite-lhe o direito, não pode transmitir-
lhe a posse porque essa está naquela pessoa que transferiu a detenção a B. O terceiro o
que pode fazer é praticar um ato que só pode ter natureza jurídica, só pode ser um
negócio jurídico em que B, como confiou no negócio, passe a ser proprietário ou, pelo
menos, possuidor do bem. O terceiro, pelo ato que pratica, é que determina a inversão,
desencadeia a inversão, mas é sempre causada pelo detentor, decorre da alteração do
animus do detentor. Por isso é que, diferentemente da anterior em que era irrelevante
a causa, aqui já não podemos dizer isso porque temos de partir do princípio de que terá
de haver um ato de confiança no ato praticado entre o terceiro e o detentor. Aqui
teremos de estar perante um ato que de acordo com critérios de normalidade, desde
que o detentor atribua as consequências normais decorrentes daquele ato, então
inverte o título de posse, o terceiro desencadeia, provoca a inversão, que só pode
ocorrer na esfera do detentor. Trata-se de uma oposição provocada. Um terceiro, isto
é, um sujeito estranho à relação possessória (à relação entre o possuidor e o detentor
do bem em causa) e, por conseguinte, alguém que não tem posse, arrogando-se por
qualquer motivo, ou sem ele, a titularidade da coisa, transfere ou constitui um direito
real em benefício do referido detentor, que, ao participar em tal transferência ou
constituição, assume essa posição real, colocando-se numa atitude antagónica e
usurpadora da posição do possuidor. A inversão dá-se justamente no momento em que
o detentor participa no ato atributivo, pois nesse momento substitui ipso facto o seu
animus detinendi por animus possidendi, arrogando-se uma posição real que não tinha.
O ato de terceiro tem de ser um ato abstratamente capaz de atribuir (transferir ou
constituir) um direito real que confira poderes de facto sobre a coisa, tem de ser um
negócio translativo-real ou real-obrigacional, um negócio real quoad effectum – e um
negócio existente, um negócio que não sofra de nenhuma das causas de inexistência do
ponto de vista jurídico. O ato de terceiro faz deflagrar o processo psicológico de inversão
na medida e só na medida em que o detentor o assume seriamente. O ato de terceiro,
na inversão do título da posse, não causa ou funda, verdadeiramente, a posse do
inversor. Apenas a desencadeia. A aquisição de posse está na mutação psicológica do
ânimo de quem inverte, pelo que se trata de uma aquisição originária, sendo a posse
que dela resulta independente, no plano jurídico-genético, de qualquer posse anterior.
De se tratar de um ato meramente desencadeante, e não fundante, da aquisição da
posse, deriva que o ato do terceiro nunca titula a posse do inversor. A posse do inversor
é sempre não titulada, porque a inversão não é um meio abstratamente idóneo de
aquisição de direito real, não é um titulus adquirendi.

49
3. Esbulho

O esbulho é a aquisição da posse contra ou sem vontade do anterior possuidor


que não se configure prática ou inversão, todas as formas que não se insiram nas duas
anteriores são esbulho. Pouco há a dizer, na medida em que o que temos de saber é que
abrange todas as outras modalidades de usurpação e que se caracteriza pela aquisição
de posse sem consentimento e vontade do anterior possuidor. Visa-se aqui a usurpação
da posse de outrem (privação ilícita da posse de outrem contra a vontade do possuidor)
não enquadrável nas formas específicas de usurpação já referidas. É, portanto, uma
noção residual, que engloba todos os casos de usurpação não especificamente
previstos.
Entrarão aqui, pois, todas as privações ilícitas da posse de outrem, contra a
vontade do possuidor, não especificamente previstas na lei. Não serão ilícitas as
privações com consentimento prévio do possuidor ou as que traduzem o exercício de
um direito. Só há aquisição de posse por esbulho se houver animus e corpus. Só se
houver animus spoliandi por parte do esbulhador, intenção de ficar com a posse de
outrem, de ficar com a coisa em termos de um direito real, privando outrem dessa
mesma posição.
A generalidade, se não a totalidade, dos esbulhos em sentido estrito, preenche
tipos legais de crime, quer do Direito Penal geral, quer do Direito Penal especial.
Todavia, não é necessária essa ilicitude criminal para que haja usurpação ou esbulho
latu sensu e se desencadeiem as consequências da defesa da posse.
A posse que ele cria originariamente surge como uma posse antagónica da posse
do esbulhado. Durante um ano, a lei permite, porém, que o esbulhado reaja pelos meios
de defesa da posse e, se for restituído a esta, a usurpação tem-se como não acontecida
e a posse que se usurpou como nunca interrompida (artigo 1283.º).

II. Aquisição derivada da posse

A aquisição derivada tem como radical a traditio da coisa. Aqui há colaboração


do anterior possuidor, o que significa que não levanta os mesmos problemas que pode
colocar uma aquisição originária, exatamente porque decorre da vontade dos diretos
interessados. A lei facilita, em determinadas situações, a aquisição derivada.
Nas palavras de Santos Justo, a aquisição derivada caracteriza-se pela
transferência da posse do anterior para o novo possuidor. Por isso, além de um negócio
jurídico, é também necessária a existência dos elementos material (corpus) e intencional
(animus).

A. Tradição real

Significa que há uma entrega do bem.

1. Tradição real explícita

A aquisição derivada diz-se explícita, quando existe um ato exterior que


materializa ou simboliza a entrega ou transmissão da coisa.

50
A primeira modalidade é a que está no artigo 1263.º alínea b) – tradição material
ou simbólica da coisa efetuada pelo anterior possuidor26. Naquela classificação da
posse, referimos várias situações desde a tradição real à tradição ficta e esta alínea b)
do artigo 1263.º encerra algumas das modalidades do esquema. Decorre da lei que a
tradição real pode ser explícita ou implícita. Esta alínea b) refere-se claramente à
tradição explícita. Também pode ser material ou simbólica, o que está expressamente
referido na norma.
A tradição é a entrega da coisa, o possuidor entrega a coisa, não tem de ser
entrega física, mas tem de haver vontade de entrega e vontade de aceitação, há uma
conciliação de vontades, que têm de estar em consonância. A tradição faz-se com a
entrega da coisa. Quando são coisas de pequeno volume, pode ser feita a tradição
direta, de mão em mão. Também pode haver uma tradição material efetuada à
distância, que é quando a coisa está no campo de visão dos intervenientes, por exemplo:
“aquele andar era meu e passa a ser teu”. Supondo que ambas as partes veem o bem e
estão a reconhecer o que se quer transmitir e o que se quer adquirir, também se
designando por tradição longa mano27.
Na tradição simbólica, a entrega da casa, por exemplo, faz-se através da entrega
da chave, são atos simbólicos que representam a vontade de transmitir todo aquele
objeto e a vontade de receber todo aquele objeto, também pode ser a entrega dos
documentos do automóvel. É uma tradição explícita, é objeto de uma declaração de
vontade de transmissão e aceitação.
Há uma terceira figura que Orlando de Carvalho criou que é a imissão na posse,
é uma tradição explícita, mas este autor identificou-a essencialmente para a
transmissão de estabelecimento comercial. Este é formado por um conjunto de
elementos, para haver transmissão da posse é preciso conhecer quem trabalha lá, quem
são os credores, fornecedores, devedores, é preciso ter conhecimento de um conjunto
mais ou menos vasto dos elementos que compõem o estabelecimento. Por isso, a
transmissão da posse só se dá quando o adquirente entra no conhecimento dos
elementos que o compõem. Esta é uma forma que pressupõe um conjunto de atos que
levem ao conhecimento do bem.

a) Tradição material

Prevista no artigo 1263.º alínea b), a posse transmite-se através da entrega da


coisa, sendo através deste ato que se manifesta a intenção de transmitir e adquirir a
posse.
A tradição material pode ser:
- direta: quando a coisa passa de mão em mão (coisas móveis), ou quando o novo
possuidor toma contacto direto com a coisa, como, por exemplo, entrar no prédio
(coisas imóveis);

26
Segundo Santos Justo, “na tradição material, há uma atividade exterior que se traduz nos atos de
entregar e receber; na tradição simbólica, tudo se passa a nível da comunicação humana, sem direta
interferência no controlo material da coisa”.
27
A coisa não é materialmente entregue, mas é posta à disposição do adquirente através da sua indicação
à distância.

51
- à distância ou longa manu: quando a tradição da coisa não é feita diretamente, mas
com a coisa à vista. Tem lugar, por regra, em relação a coisas imóveis.

b) Tradição simbólica

Dá-se quando decorre da transmissão de bens que simbolizam a coisa que se


pretende transmitir. Por exemplo, através da entrega das chaves (traditio clavium) ou
da entrega de um documento (tradição documental) que confira poderes empíricos
sobre a coisa (por exemplo, os artigos 669.º e 937.º). Tem lugar em relação a coisas
corpóreas (móveis ou imóveis) e incorpóreas.

c) Imissão na posse

Dá-se quando se realiza através de um conjunto de atos destinados a colocar o


adquirente em condições efetivas de poder explorar ou fruir a coisa. Verifica-se
relativamente à transmissão do estabelecimento comercial, em que é necessário o
adquirente tomar conhecimento dos segredos de fabrico, os clientes, os fornecedores,
etc.

2. Tradição real implícita

Diz-se implícita porque não há qualquer ato que sensibilize ou materialize a


transmissão da posse; a posse transfere-se solo consensu. Esta forma de aquisição é
admitida por razões de economia procedimental, permitindo, assim, evitar atos
materiais que, atendendo à situação possessória existente, seriam desnecessários.
Dentro desta modalidade, encontramos a traditio brevi manu e o constituto
possessório. A traditio brevi manu não vem no Código Civil. Chama-se implícita porque
previamente à transmissão da posse já há um fenómeno de detenção, mas nem sempre.
Se possuidor e detentor exercem posse e poderes de facto respetivamente sobre a
mesma coisa, compreende-se que a lei, por uma questão de economia processual, não
é tão exigente como é para as outras formas. Na medida em que já há uma relação de
natureza possessória entre as partes, a lei dispensa um conjunto de atos que eram os
atos através dos quais se manifestava explicitamente a vontade de transmitir o corpus
e o animus.

a) Traditio brevi manu

A tradição brevi manu28 consiste na conversão do detentor em possuidor por


acordo entre aquele que detém a coisa e o possuidor, isto é, aquele em nome de quem
detém.
Vejamos a título de exemplo: A é detentor (por locação, comodato, etc.) de uma
coisa pertencente a B; se B transmitir a posse da coisa a A, este adquire a posse sem se

28
Realiza a conversão da detenção em posse por acordo entre o detentor e o possuidor. Sucede, por
exemplo, quando o proprietário-possuidor vende a coisa depositada ao depositário ou o prédio arrendado
ao arrendatário. Esta traditio tem a grande vantagem de, encontrando-se alguém na posição de detentor
de coisa que pertence a outrem, não ser necessário que volte às mãos deste para depois a entregar
àquele.

52
verificar qualquer ato externo de transmissão da posse. Para B transmitir a posse a A,
teria que se verificar um ato de transmissão e aceitação (aquisição derivada), como o
possuidor não tem poderes de facto sobre o bem, o A teria de devolver os poderes de
facto ao B e depois este transmitia o corpus e o animus, ou seja a posse. Este ato é
desnecessário, na medida em que já há relação entre as partes, daí que a lei considera
que a transmissão da posse está implícita na declaração de vontade, quando, em rigor,
só há transmissão do animus por desnecessidade, já que não se levantam problemas de
consenso, daí que a lei torne mais expedita a transmissão. O detentor transforma-se em
possuidor por ato do anterior possuidor.

b) Constituto possessório

O constituto possessório29 é a aquisição da posse sem efetivo empossamento,


isto é, sem entrada na posse e na detenção material da coisa – artigo 1264.º.
Pode ser:
- bilateral (artigo 1264.º nº 1): A transmite a posse a B de uma coisa, convencionando as
partes que A continua a manter ou a dispor da coisa. B adquire a posse, apesar de não
se verificar qualquer ato explícito que a materialize. Temos aqui uma mistura de posse
com direito. Se transmite o direito, não transmite a posse, será uma faculdade
secundária do direito. Temos de isolar esta formulação do constituto possessório do
direito, estamos na posse formal, na posse o possuidor ou não tem o direito ou não o
invoca, portanto é como se não o tivesse. A, possuidor decide transmitir a posse da casa
a B, convencionando ambos que A continua detentor da coisa – isto é o constituto
possessório. A lei considera que se transmita a posse por mera declaração de vontade,
não são necessários duplos atos. Há uma coincidência de vontades e desnecessidade de
obrigar as partes a praticar atos, porque já há uma situação de posse, esse poder de
facto vai continuar a manter-se, embora a outro título, pelo que não há necessidade de
duplicação de atos. B vai adquirir a posse sem ser transmitido diretamente o poder de
facto sobre o bem, o efetivo empossamento do bem, não há um empossamento efetivo
e direto. O possuidor transforma-se em detentor por acordo com o novo possuidor;
- trilateral (artigo 1264.º nº 2): A transmite a posse a B de uma coisa, convencionando
as partes que essa coisa passa (ou continua) na disponibilidade de C, ou seja, a posse é
transmitida do possuidor para terceiro, mas a detenção mantém-se em B. Aqui já
intervêm 3 pessoas: o anterior possuidor, o novo possuidor e o detentor que se mantém
o mesmo.
Há outra modalidade de constituto possessório que não está prevista neste nº 2
e que não há dificuldade em admitir. Pode acontecer que A possuidor transmite a posse
a C, mas convencionam que o detentor passa a ser B. É diferente, porque antes já existia
a relação A-B, e só depois intervinha o terceiro. Agora ambos concordam que B passa a
ser detentor, que não o era antes. Acontece que A transmite a posse a C, mas porque
ambos concordam que B passa a ser detentor e A limita-se a transferir os poderes de

29
O constituto possessório é uma forma de aquisição da posse solo consensu, ou seja, sem necessidade
de ato (material ou simbólico) de entrega da coisa. Como se tem observado, a posse é atribuída sem a
detenção. Menezes Cordeiro refere a explicação de Savigny: “o constitutum possessorium é, de certo
modo, o inverso da traditio brevi manu; nesta, o detentor passa a possuidor; naquele, o possuidor passa
a detentor, sendo a posse adquirida pelo beneficiário da operação”.

53
facto para B, o que significa que C adquire a posse sem exercer efetivamente os poderes
de facto, na medida em que por vontade sua passam a ser exercidos por terceiro.

B. Tradição ficta

A posse adquirida por sucessão mortis causa constitui uma posse ficta, porque a
lei ficciona que há corpus e animus (artigo 1255.º). Com base neste preceito, considera-
se que a lei ficciona não só o corpus, mas também o animus, vencendo, assim, um hiato
na posse: há uma sucessão na posse sem interrupção. Com a morte do possuidor, a
posse só é adquirida no momento em que o herdeiro aceita a herança (artigo 2050.º).
Anteriormente, a herança permanente jacente, pelo que não há qualquer apreensão
material da coisa, logo não há corpus; de igual modo, como o herdeiro não tinha
manifestado vontade de adquirir, não há animus.
A existência e reunião destes dois elementos apenas se verifica no momento em
que o herdeiro aceita a herança. Logo, entre a abertura da herança (o momento da
morte – artigo 2031.º) e a aceitação não há posse; no entanto, a lei considera que, uma
vez aceite, a posse considera-se adquirida (continua) desde o momento da abertura da
sucessão, ficcionando assim a posse entre aqueles dois momentos. Enquanto não
houver partilha dos bens, não se pode dizer que haja possuidores dos bens. Alguém
morre, compreende-se que só quando se dá aceitação e partilha da herança é que os
herdeiros ficam com a posse dos bens. Sem a divisão não pode haver posse.
Simplesmente entre o momento da partilha e da aceitação pode haver um grande lapso
de tempo em que não há posse. O artigo 1255.º vem dizer que há uma retroação ao
momento de abertura e aí compreende-se a norma nos termos do qual a posse
continua, tudo se passa como se não tivesse havido interregno, daí se chamar posse
ficta, a lei ficciona entre o momento da aceitação e da posse. Há uma clara ficção entre
corpus e animus. Esta situação só pode ser criada por lei.
A posse adquirida por via sucessória tem as mesmas características da posse do
de cujus.
Na sucessão contratual e testamentária, há um título intercorrente dirigido à
transmissão da posse autónomo daquele que fundamenta a posse do de cujus. Neste
caso, pode o sucessor, se isso lhe convier, invocar esse título e arrogar-se uma posse
autónoma relativamente à do de cujus.
Esta solução é um efeito da noção de sucessão por morte (artigo 2024.º) e, por
isso, retiram-se várias consequências: a posse continua nos herdeiros; o sucessor não
precisa de praticar qualquer ato material de apreensão ou de utilização da coisa,
podendo até ignorar que a posse existe; a posse continua com os seus caracteres; e a
continuação da posse não é prejudicada pelo facto de o sucessor não ter tido, de facto,
a posse da coisa durante o período entre a abertura da sucessão e a aceitação da
herança.

4.1.2. Conjunções da posse: posse simultânea, composse, posse" in solidum", acessão


na posse

As conjunções da posse apontam para a coexistência em diversos titulares de


uma situação possessória sobre o mesmo objeto.

54
A posse sincrónica consiste na existência de várias posses no mesmo plano
temporal. Dentro desta podemos identificar:
- posse simultânea: quando sobre a mesma coisa existem duas ou mais posses em
termos de diferentes direitos reais, como por exemplo, em termos de propriedade, de
usufruto, de servidão, etc.;
- composse: é a situação correspondente à compropriedade nos direitos reais. Consiste
numa contitularidade de posses em que cada compossuidor tem uma posse autónoma
sobre uma quota ideal ou alíquota da coisa;
- posse in solidum: é a figura que corresponde à comunhão de direitos, ou seja, verifica-
se uma contitularidade na posse, mas é o conjunto dos contitulares que encabeça a
única posse que incide sobre o objeto indiviso.
Fala-se em posse diacrónica, quando existe uma junção de várias posses situadas
em planos temporais diferentes:
- sucessão na posse (artigo 1255.º): no caso da sucessão legal, o sucessor mortis causa
da posse adquire a mesma posse do de cujus;
- acessão na posse ou junção da posse (artigo 1256.º): o adquirente da posse junta à sua
posse a posse do anterior possuidor, desde que ligadas por um nexo de derivação. A
acessão serve basicamente para facilitar a aquisição do direito real por usucapião,
permitindo ao atual possuidor interessado em usucapir encurtar o respetivo prazo.

No que diz respeito à usucapião, o fenómeno da acessão tem em vista encurtar


os prazos para a usucapião que é a acessão da posse do artigo 1256.º (junção da posse).
Se alguém que é sucessor tiver sucedido, estamos no âmbito da aquisição derivada, a
lei vem permitir que o novo possuidor possa juntar à sua posse a posse anterior, juntar
a duração da sua posse à duração da posse anterior, juntar o prazo da sua posse para
perfazer mais rapidamente o prazo da usucapião. Só é possível nas posses imediatas, só
relativamente à posse anterior, nas posses consecutivas é que funciona a acessão.
Por outro lado, embora não se diga expressamente isso, os interesses em causa
apontam para que se aplique esse mecanismo da acessão na posse, só pode haver
acessão na posse desde que a posse anterior não seja exercida de forma violenta. Não
conta tanto a característica da aquisição nestas duas características, mas sim a forma
como a posse é exercida. O que significa que a acessão só é possível a partir do momento
em que a posse do antecessor deixa de ser violenta ou deixa de estar sob violência, as
mesmas razões levam a que se aplique o mesmo regime da posse sob ocultação – nº 2
do artigo 1256.º.
Pode acontecer que alguém que é possuidor em termos de propriedade
transmite a posse em termos de usufruto, o novo adquirente só pode exercer a posse
em termos de usufruto. A posse é facultativa, pode juntar quem apenas tenha interesse.
Há uma outra questão que parece não estar contemplada neste nº 2 do artigo 1256.º
que tem a ver com a posse de boa ou má fé, porque os prazos são diferentes. Pode
também acontecer que entre os possuidores sucessivos a posse de um seja de boa fé e
outro de má fé. Se forem ambas de boa ou má fé, não há alterações de prazos nem se
levantam problemas. A questão já se coloca quando uma posse é de boa fé e a outra é
de má fé, é saber como se faz essa correspondência, essa acessão, na medida em que
as posses de cada um dos sucessivos possuidores, o direito correspondente a essa posse
está sujeito a prazos diferentes. Orlando de Carvalho sempre defendeu que, no caso do
atual possuidor ter uma posse de boa fé e o anterior ter uma posse de má fé (só neste

55
caso, não no inverso em que se faz a correspondência normal), é preciso uma regra de
conversão dos tempos de posse e não propriamente das características. Ou seja, saber
como é que se acede, como é que o possuidor atual que é de boa fé quanto é que pode
juntar à posse do anterior que é de má fé. É preciso fazer uma regra 3 simples, vai-se
procurar fazer essa correspondência em termos de tempo, atendendo ao tempo que a
lei fixa para adquirir a usucapião de boa ou má fé.
Relativamente aos imóveis, a posse de má fé carece de 20 anos para se
transformar em direito, na boa fé são 15 anos. Nos móveis, são 6 e 3 anos,
respetivamente. Tendo por base esta diferença de prazos, o que se procura é saber em
relação aos anos anteriores a quanto corresponde em tempo de posse para o novo
adquirente, tendo sempre por base esta diferença de prazos. Vamos supor um bem
móvel, esta necessidade de conversão só se verifica quando era de má fé e a nova posse
é de boa fé, temos uma relação de 6 anos de má fé e 3 anos de boa fé. Vamos supor que
o anterior possuidor teve posse durante 4 anos, foi possuidor de má fé, findos os quais
transmitiu ao novo possuidor. 6 anos está para 3, como 4 anos vai corresponder, neste
caso, a 2 anos de boa fé. Se for 1 ano, a proporção é idêntica. No caso dos imóveis, a
mesma coisa, se o prazo é de 20 anos, e de 15 anos do novo possuidor, se o anterior
possuidor exerceu durante a posse durante 4 anos, essa conversão corresponde a 3 anos
para o novo adquirente de boa fé. Só neste caso de má fé anterior e boa fé posterior se
faz esta regra de 3 simples, em todos os outros casos da mesma natureza ou primeiro
boa fé e depois má fé faz-se uma contagem linear.
São requisitos da acessão:
- existência de um nexo de derivação entre as duas posses (a aquisição originária
quebraria a acessão), desde que essa derivação seja por título diferente da sucessão
mortis causa;
- só opera entre posses consecutivas, isto é, em relação ao anterior possuidor (relações
imediatas);
- a posse do acessor terá de ser pública e pacífica, ou melhor, não pode ser exercida ou
mantida com violência ou ocultamente, nem estar sob violência ou sob ocultação;
- tratando-se de posses diferentes, a acessão tem lugar dentro da posse de menor
âmbito;
- a acessão é facultativa.

4.13. Tutela possessória (breve referência)

A defesa da posse está prevista nos artigos 1276.º e seguintes. Pode ser
defendido por meios extrajudiciais, fala-se no artigo 1277.º na ação direta. Depois há os
meios judiciais. Os meios judiciais surgem quando a posse é contestada, quando alguém
contesta a posse do que se julga atual titular. Aí a lei prevê a ação de prevenção (artigo
1276.º), é uma previsão, uma antecipação fundamentada do perigo de lesão da
respetiva posse pode recorrer à ação preventiva. Diferentemente das outras duas ações
(de manutenção ou de restituição), na ação de manutenção, já há atos de perturbação,
a posse já é perturbada, na anterior havia o justo receio ou perigo de ser perturbado,
aqui já há turbação. Esta ação de agressão/turbação/perturbação há-de consistir em
atos materiais e não em atos jurídicos e, por outro lado, esse ato de turbação há-de ter
uma natureza tal que se traduza numa pretensão possessória antagónica ao possuidor.
Na ação de manutenção, o possuidor mantém a posse, apesar de agredida, não foi

56
desapossado. Na ação de restituição, já há desapossamento e, portanto, ela tem lugar
quando o possuidor é esbulhado, ou quando é usurpado. Essa usurpação ou esbulho
pode ser parcial, vai depender do objeto. Na ação de restituição ou manutenção (nº 2
do artigo 1278.º), no caso da posse do possuidor que é esbulhado não tiver mais de um
ano. Isto significa que a legitimidade ou a procedência de cada uma destas ações de
manutenção ou restituição supõe que o possuidor já o seja há pelo menos um ano,
entende-se que a posse não tenha a estabilidade suficiente para o possuidor esbulhado
recorrer a este tipo de ações, ainda não tem suficiente densidade temporal.
No caso de esbulho violento (artigo 1279.º), temos uma providência cautelar.
Tem lugar quando o possuidor foi privado violentamente da sua posse, vamos remeter
para aquilo que se disse da posse violenta. Tem uma particularidade: o esbulhador não
é ouvido. Tem-se entendido que não é uma ação possessória, quando, por exemplo, o
proprietário intenta uma ação para reaver a coisa objeto de propriedade. Aqui fala-se
numa ação de posse judicial avulsa que se considera uma manifestação do exercício do
direito de propriedade e não tutela possessória, pretende-se que ao proprietário seja
devolvido o bem objeto desse direito.

4.14. Efeitos da posse


a) Presunção da titularidade

Já falámos na posse enquanto valor de conhecimento, na medida em que, na


grande maioria das situações, o conhecimento da posse permite o conhecimento do
direito e do seu titular e, portanto, é nessa medida que a posse formal funciona como
um caminho para autêntica dominialidade. Há essa correspondência entre posse e
direito do ponto de vista sociológico, em que a lei, quando não há correspondência,
admite a usucapião, na medida em que não se pode provar o direito, mas há uma
legitimidade para exercer a posse e do ponto de vista formal faltam elementos de prova.
Esta correspondência genérica entre posse e direito conduz à admissibilidade da
usucapião. Há os casos de esbulho de privação da posse e aí não há legitimidade para o
bem e o ordenamento jurídico obriga a pagar para proteger a maioria das pessoas que
têm uma legitimidade que não podem provar ou o título é inválido.
O efeito imediato da posse30 vem consagrado no artigo 1268.º nº 1. Esta
presunção da titularidade que radica no tal valor de conhecimento, compreende-se na
medida em que em muitas situações de legitimidade em que a titularidade é legítima, o
titular tem dificuldade em fazer prova do seu direito, a prova da posse é muito mais
evidente do que a prova do direito. Esta presunção vem precisamente facilitar isso, na
medida em que se trata de uma presunção relativa, mas o certo é que quem for
possuidor goza da presunção da titularidade do direito. As presunções do artigo 1254.º
estão ligadas a esta presunção, são presunções de posse, não são de direito, mas
sabemos que a posse faz presumir o direito, significa que estas presunções de posse
também se refletem na presunção do direito. A presunção do artigo 1254.º é uma
presunção relativa, a lei presume que nesse intervalo também foi possuidor. Muitas

30
Diz-nos Santos Justo a este respeito que “A posse confere a presunção de titularidade do direito a cujo
exercício corresponde. Trata-se dum efeito com grande importância prática porque o titular de um direito
real nem sempre dispõe de elementos que lhe possibilitem a prova desse direito. E esta presunção
permite-lhe que, fazendo apenas a prova de que possui, obtenha a tutela possessória, cabendo ao terceiro
o ónus de impugnar aquela presunção.”

57
vezes a prova da posse também se pode não afigurar fácil, designadamente quando a
pessoa está longe do objeto. Há ainda outra presunção, talvez das mais relevantes,
consagrada no artigo 1252.º nº 2, o nº 1 diz que a posse pode ser exercida por
intermediário, a propósito da detenção por título jurídico. A prova do animus nem
sempre se afigura fácil, quem exerce poderes de facto só o é se o fizer no âmbito de um
direito real. Pode ser exercida num direito de crédito ou real, daí esta presunção, que é
relativa. É claro que tem de ser um poder de facto que não seja expressamente assumido
nos termos de um direito de crédito, se for não há qualquer presunção, ou haveria
inversão do título de posse por lei. Quando alguém exerce de forma mais ou menos
exclusiva, há uma relativa indeterminação, mas o certo é que aquele que exerce poderes
de facto presume-se possuidor, porque os direitos reais tendem a manifestar-se através
de poderes de facto sobre as coisas. São presunções em cadeia que a lei consagra.
A importância deste efeito é notória (artigo 1268.º nº 1), porque, em muitos
casos, o titular do direito real não tem elementos que lhe permitam provar com
segurança o direito. Assim, o titular de um direito real que esteja na posse da coisa
apenas tem de provar a posse, cabendo ao terceiro o ónus da impugnação. Havendo
colisão de presunções, a presunção que decorre da posse cede em face daquela que
derive de registo do título (do direito).

b) Frutos e encargos

Outro efeito da posse tem a ver com o regime dos frutos. Perguntar-se-á:
durante a posse, a quem pertencem os frutos da coisa possuída? Se o possuidor estiver
de boa fé, pertencem-lhe os frutos naturais colhidos até ao dia em que a boa fé cessar,
ou seja, em que souber que está a lesar, com a sua posse, o direito de outrem.
Pertencem-lhe igualmente os frutos civis correspondentes ao mesmo período (artigo
1270.º nº 1). Todavia, se a boa fé cessar quando os frutos ainda se encontram
pendentes, estes pertencem ao titular do direito sobre a coisa frutífera, embora seja
obrigado a indemnizar o possuidor das despesas de cultura não superiores ao valor dos
frutos que vierem a ser colhidos. Se o possuidor estiver de má fé, deve restituir os frutos
que a coisa produziu até ao termo da posse e responde, também, pelo valor dos frutos
que um proprietário diligente poderia ter obtido (artigo 1271.º).
A lei refere-se aos frutos na posse de boa fé e má fé e isso tem implicações a
nível de benfeitorias. Já falámos do artigo 1270.º a propósito da boa fé. A noção de
benfeitoria vem definida no artigo 214.º.
A noção de encargo prende-se com despesas que não têm a ver com a
frutificação do bem, mas com despesas inerentes à fruição do bem, por exemplo a
questão dos juros, amortizações, impostos, contribuições. Não são despesas de
frutificação, mas despesas feitas com a fruição do bem. Trata-se de despesas feitas não
para evitar a perda, destruição ou deterioração da coisa, mas dos encargos normais que
correspondem ou estão adstritos à sua fruição. Os encargos com a coisa objeto de posse
são pagos pelo titular do direito e pelo possuidor, na medida dos seus direitos sobre os
frutos no período a que esses encargos respeitam.

c) Perda da coisa

58
O possuidor de boa fé é responsável pela perda ou deterioração da coisa se tiver
procedido com culpa (artigo 1269.º).
Dir-se-ia, a contrario sensu, que o possuidor de má fé responde mesmo que
tenha atuado sem culpa. Porém, esta solução deve ser afastada, no entender de Santos
Justo, se provar que a perda ou deterioração se teriam igualmente verificado se a coisa
se encontrasse em poder do titular do direito: trata-se da doutrina consagrada em
relação ao devedor em mora, havendo bom fundamento para defender a sua aplicação
ao possuidor de má fé – a posse de má fé é um facto ilícito que constitui em mora o
possuidor quanto à obrigação de restituir a coisa ao seu titular, independentemente de
interpelação, de acordo com o entendimento de Orlando de Carvalho.
Ao possuidor cabe, no entanto, o ónus de fazer esta prova.

d) Usucapião

A usucapião consiste na aquisição originária do direito real decorrente do


exercício da posse com determinadas características, durante um certo lapso de tempo.
A aquisição do direito real é a correspondente aos poderes que o possuidor vinha
exercendo. A usucapião constitui um efeito particularmente importante da posse
porque permite que, verificados determinados requisitos, o possuidor adquira a
titularidade de certos direitos reais de gozo (artigo 1287.º).
Podem ser objeto de usucapião apenas os direitos reais de gozo, com exceção
dos direitos de uso e de habitação e das servidões prediais não aparentes (artigo
1293.º). A posse tem de ser pública e pacífica (artigo 1297.º). As restantes características
influem apenas no prazo necessário para a usucapião.
A usucapião é, então, uma forma originária de adquirir direitos reais e advém do
exercício ininterrupto da posse e da posse com determinadas características. Para haver
usucapião, tem de haver posse, tem de ser pacífica e pública, a questão de ser titulada
ou não e de boa ou má fé interfere apenas com os prazos. É necessário o decurso do
tempo. Os prazos estão taxativamente fixados na lei, não há nada duvidoso.
As disposições comuns encontram-se no artigo 1287.º. O primeiro aspeto é a
retroatividade da usucapião. Tem de ser invocada e a titularidade correspondente
retroage ao início da posse. Passa a ser considerado proprietário ou titular de outro
direito real a partir do momento em que há posse. A aquisição do direito faz extinguir o
direito anterior, o que significa que se houve uma indeterminação jurídica do bem
durante algum tempo, com a usucapião e sua retroatividade significa que deixou de
haver qualquer hiato em termos da dominialidade definitiva em termos de direitos reais
sobre aquele bem, aquele vazio em que o titular do direito real não exerceu o direito,
houve ali um período de indefinição do ponto de vista da dominialidade dos direitos
reais que não tinha objeto e com a usucapião refaz-se o percurso da dominialidade sobre
aquele bem. Alguém derivada ou originariamente adquire a posse há 10 anos, há um
conflito com essa aquisição com o anterior proprietário que não deixou de o ser e o novo
possuidor, a partir da usucapião, há uma continuidade normativa.

Quanto à capacidade para adquirir usucapião, podem adquirir todos aqueles que
podem adquirir posse. Simplesmente há aqui uma simplificação em matéria de
capacidade, uma menor exigência, porque os incapazes podem adquirir por usucapião
tanto por si como por intermediário. O que se admite é que quem foi capaz para adquirir

59
posse, se se tornar incapaz, considera-se que tem capacidade para usucapir. A usucapião
tem de ser invocada, mas reconhece-se a esse incapaz essa capacidade para usucapir. A
usucapião acaba por ser um efeito jurídico, uma consequência jurídica fruto de uma
posse duradoura e com determinadas características. A partir do momento em que já
se é possuidor, o efeito aquisitivo que a lei promove também o facilita relativamente
aos incapazes.
A norma do artigo 1290.º parece ser estranha, o detentor nunca pode usucapir,
só pode quem for possuidor. Não vem permitir isso, talvez está deslocada. Só o detentor
pode inverter, mas o tempo necessário só começa a correr desde a inversão. Só há posse
a partir dali, naturalmente o prazo só começa a contar aí. Na composse (artigo 1291.º),
aproveita aos restantes por causa do facto de o comproprietário ter o direito sobre uma
parte ideal da coisa e não sobre uma parte especificada da coisa, considera-se que todo
o bem é adquirido e os outros compossuidores também adquirem o direito por
usucapião.

4.14. d) A usucapião: (conclusão) suspensão e interrupção do prazo da usucapião

Há um conjunto de vicissitudes no decurso do prazo da usucapião previstas na


lei, as partes não têm aqui poder inventivo/criativo e são situações que interferem com
o decurso do prazo para a usucapião. Isto vem a propósito do artigo 1292.º que remete
para as regras da suspensão e da interrupção dos artigos 300.º e seguintes. É um regime
inderrogável, o que não deixa de estar concretizado no artigo 300.º que prevê essa
inderrogabilidade. Temos alguns aspetos comuns gerais à suspensão e interrupção. Em
primeiro lugar, a analogia com a prescrição dos atos jurídicos. Ainda é frequente ver na
doutrina dizer prescrição aquisitiva, é o decurso do prazo que leva à aquisição do direito
real. Outro aspeto relevante é que a usucapião tem de ser invocada (artigo 303.º), só
produz efeitos após ser invocada. A lei, no artigo 309.º, fala dos prazos.
Para além destas regras da inderrogabilidade dos prazos, há duas modalidades
ou dois tipos de vicissitudes que afetam a usucapião, ou melhor, o decurso do prazo: a
suspensão e a interrupção da usucapião. O que é que as distingue? As causas que
conduzem a um efeito ou outro estão previstas na lei, não há liberdade negocial aqui.
Há factos que suspendem a usucapião, significa que, verificando-se determinadas
situações, o prazo suspende-se, deixa de contar e, quando o facto suspensivo se
extingue, o prazo continua a correr, significa que os factos impeditivos não anulam o
prazo já decorrido até à sua ocorrência e, extintos, o prazo continua a correr. Na
interrupção, temos uma situação diferente, na medida em que, verificado o efeito
interruptivo, uma vez extinto, o prazo começa a contar do zero. Verificado um
fenómeno de interrupção, o prazo anterior é tornado ineficaz. O instituto da suspensão
supõe algumas das vezes uma relação entre pessoas, entre proprietário ou titular do
direito e possuidor, outras vezes a suspensão aplica-se a determinadas situações
jurídicas que têm a ver com alguma subjetividade que diga respeito ao dono do bem. Há
determinadas situações em que se verifica a suspensão quando há uma relação jurídica
entre possuidor e titular do direito contra o qual a posse poderá produzir efeitos a nível
da usucapião.
Há 2 tipos de classificação da suspensão: bilateral e unilateral. A primeira tem a
ver com uma relação entre possuidor e titular do direito real, daí a tal bilateralidade. Na
suspensão unilateral, a lei protege determinadas pessoas tendo em vista o respetivo

60
estatuto ou posição jurídica. Quer a interrupção, quer a suspensão destinam-se a
proteger o proprietário, funcionam sempre contra o possuidor, é dado mais tempo ao
dono para proteger a sua posição jurídica. A suspensão bilateral está contida no artigo
318.º. Vejamos a título de exemplo a alínea a) deste artigo em concreto: vamos supor
que determinada pessoa é proprietária de um bem e outra é possuidora. Enquanto isto
se mantiver assim, o prazo corre. As pessoas casam-se, com o casamento e tendo em
vista manter uma certa paz ou um certo funcionamento normal e equitativo nesta
relação, a lei determina a suspensão do prazo enquanto não houver divórcio. Se ao
tempo em que as duas pessoas eram proprietário e possuidor, mas nem eram casadas,
o tempo nem começa a contar, temos de ver sempre a situação cronológica. Daí a
designação bilateral, porque tem a ver com possuidor e proprietário titular do direito
real. Depois temos a suspensão unilateral, em que a lei visa proteger o proprietário em
determinadas situações (artigos 319.º e seguintes). Muito embora a designação da lei
seja a mesma, é uma suspensão em favor de uma determinada pessoa numa
determinada situação, não é uma proteção universal, é específica e dirigida a
determinadas situações em que a pessoa se encontre.
Quanto aos artigos 321.º e 322.º, também não levanta problemas nenhuns a
interpretação destas normas, tal como acontece com os militares, a lei quer proteger o
titular do direito colocado em determinada situação jurídica.
O que já levanta mais dificuldades é a suspensão do artigo 320.º31: relativamente
a esta situação dos menores e dos maiores acompanhados, há que fazer uma ressalva,
para além das suspensões unilaterais e bilaterais, o próprio instituto da suspensão
apresenta várias facetas, ou seja, a suspensão pode verificar-se em momentos
diferenciados e nessa medida tem efeitos diferenciados32, o denominador comum é
semelhante (protelar ou impedir a conclusão do prazo para a usucapião). Diz o artigo
320.º nº 1 que quando não começa nem corre, falamos da suspensão de início. A dos
cônjuges era a suspensão de curso, porque a relação familiar já é posterior ao início da
posse e aí estamos perante a chamada suspensão do curso da usucapião. A suspensão
será de início quando a situação possessória se constitui numa altura, convirá distinguir
aquisição de posse e usucapião. Depois há a terceira modalidade que é a chamada
suspensão de fim ou de término (parte final da norma), significa que há situações em
que o prazo já decorreu na totalidade, mas não se completa, o que significa que a
usucapião não pode ser invocada. O não se completar é em termos jurídicos. Significa
que, na suspensão de fim, verdadeiramente o prazo não se conclui, não está completo
enquanto se verificar uma determinada situação, só depois de extinta é que o prazo se

31
Diz-nos Santos Justo que “O prazo da usucapião não começa a correr contra menores enquanto não
tiverem representantes legais; nesse caso, o prazo para a usucapião não se completa antes de decorrido
um ano após o termo da incapacidade: isto é, atingida a maioridade ou adquirida a emancipação, o titular
do direito real tem ainda mais um ano para intentar a ação de reivindicação contra o possuidor. Ao
acompanhamento são aplicáveis as regras da menoridade. A incapacidade suspende o decurso do prazo;
este não se completa antes de decorrido um ano sobre o levantamento da incapacidade. Porém, se a
incapacidade não for levantada antes de decorrido o prazo necessário para usucapir, a lei ficciona o termo
da incapacidade decorridos três anos sobre aquele prazo (artigo 320.º nº 3). Como a lei manda aplicar aos
maiores acompanhados o regime dos menores, àqueles três anos soma-se o ano previsto no nº 1 do artigo
320.º.”
32
A suspensão impede que o prazo para a usucapião não corra durante o tempo em que se verifica a
causa, mas não inutiliza o prazo decorrido até à verificação desta. A suspensão pode ser de início (artigos
318.º, 319.º e 320.º), de curso (artigos 318.º, 319.º e 320.º) ou de termo (artigo 320.º nº 1 segunda parte,
2 e 3).

61
completa e é possível logicamente e imediatamente invocar a usucapião. No artigo 320.º
nº 1, protege-se o menor proprietário, daí ser causa unilateral. Mas se o menor tiver
representante, não haverá motivos para que o prazo da usucapião não corra. Porém, se
o menor não tiver representante, então o prazo não começa ou não corre conforme as
situações. Vamos então supor que alguém é possuidor, o proprietário é um menor e
completa 18 anos hoje, já decorreu o prazo no mesmo dia. A lei diz que o prazo não se
completa antes de decorrido 1 ano contado a partir do início da maioridade. A lei manda
diferir o prazo da usucapião. Isto significa que o menor (agora maior) tem 1 ano para
eventualmente defender o seu direito contra a posse de outrem durante o ano
subsequente à maioridade. O prazo da usucapião completou-se, simplesmente a lei dá
mais um período de 1 ano para o menor se defender. O representante seja por descuido,
ou ignorância, pode não acautelar a situação do menor e não reivindicar o direito e é
para prevenir esta situação de omissão, de inércia, de desconhecimento que se pode
verificar na esfera do representante que a lei dá um prazo ao menor para ele
autonomamente defender os seus interesses durante o ano subsequente. Se o prazo já
se venceu antes de atingir a maioridade, é a chamada suspensão de fim ou de termo.
No artigo 322.º também está patente uma situação de fim.
Muito próxima da situação dos menores é a situação dos maiores
acompanhados. São pessoas que sofrem vários tipos de anomalias. É uma situação
semelhante, porque juridicamente ao perfazer os 18 anos passámos a ser autónomos.
Alguém com anomalia psíquica é incapaz de gerir o seu património e pode acontecer ser
proprietário de bens e haver uma posse antagónica, são pessoas que carecem de uma
tutela. Também aqui se impõe o regime de tutela, na medida em que, em menor ou
maior grau, são pessoas com menor incapacidade de reger o respetivo património. É por
isso que, por regra, é aplicável ao regime dos maiores acompanhados o regime dos
menores, mas há a diferença de que a menoridade acaba e o acompanhamento pode
não acabar. É aqui que se gera a diferença de regimes contemplada no artigo 320º nº 3.
A diferença tem a ver com o risco de esse acompanhamento se prolongar no tempo, o
que significa que havia uma indefinição no tal prazo para se completar a usucapião.
Enquanto nos menores é 1 ano, aplicando este regime aos maiores acompanhados,
significava que o prazo de término da usucapião podia ser indefinido, com prejuízo para
a segurança do comércio jurídico. A usucapião pretende acabar com os hiatos dominiais
sobre determinado bem. É relativamente à suspensão de termo que a segunda parte do
nº 3 vem estabelecer um regime específico com a diferença de que a incapacidade se
considera finda, caso não tenha cessado antes, passados 3 anos sobre o termo do prazo
que seria aplicável se a suspensão se não houvesse verificado. Esta segunda parte
introduz um regime especial, ficcional, nos termos do qual fixa ou alarga a suspensão de
termo quando o proprietário ou titular do direito real seja maior acompanhado.
Vamos supor que hoje o menor perfaz 18 anos e finda o prazo para a usucapião.
Quando faz 19 anos, completa-se o prazo da usucapião, o possuidor pode invocar a
usucapião 1 ano depois, já tinha cumprido os 20 anos. O que acontece se for maior
acompanhado? Como o acompanhamento pode não terminar e nessa hipótese ou de se
ignorar quando vai terminar, a lei diz que ficciona que a incapacidade dele cessou 3 anos
após a usucapião que se verificaria se não tivesse havido aquela suspensão. Claro que
isto é uma ficção, porque a pessoa pode continuar a ser incapaz, mas a lei estabelece
um prazo para essa usucapião se completar, ficcionando que o incapaz deixa de o ser.
Temos aqui um prazo de 3 anos para a usucapião se completar. É esta a diferença entre

62
o regime dos maiores acompanhados e dos menores. O regime dos menores é aplicado
aos maiores acompanhados com a diferença supracitada, mas na medida em a lei
remete para os menores, significa que a estes 3 anos que a lei estabelece para ficcionar
o termo da incapacidade há que somar o ano que a lei prevê para os menores. É uma
ficção de termo de incapacidade.

A interrupção não levanta dificuldades de maior. Nos artigos 323.º e 324.º, a lei
refere-se aos factos interruptivos, o mais frequente é a citação, o titular do direito real
cita o possuidor para que devolva o bem, defende perante o possuidor o seu direito. Na
medida em que há uma vontade do proprietário exercer a partir dali o seu direito,
significa que todo o prazo anterior é tornado ineficaz, fruto do ato do proprietário em
defender a sua titularidade. O artigo 326.º é claro. A interrupção inutiliza, assim, o prazo,
começando a contar-se um novo prazo (artigo 326.º nº 1).

A invocação da usucapião faz-se nos termos do artigo 303.º ex vi artigo 1292.º,


cujos efeitos se encontram previstos no artigo 1288.º.

No artigo 1293.º, encontram-se previstas duas situações em que a lei proíbe a


usucapião – as servidões não aparentes e os direitos de uso e habitação. Destinam-se a
satisfazer apenas as necessidades do usuário, daí não ser permitido. A própria lei define
a servidão não aparente. Vamos supor que alguém tem um prédio encravado, só tem
acesso se passar pelo prédio vizinho. A lei permite que ele passe através do prédio
vizinho, é definido um corredor de passagem. Marca-se um corredor do prédio do
vizinho que tem de suportar aquela servidão, tem de deixar que o dono do outro prédio
passe pelo seu e é demarcado esse sítio, significa que o dono do terreno não o pode
aproveitar porque está destinado à passagem do vizinho. Esta não será uma servidão
não aparente, porque há sinais visíveis e permanentes de passagem (marcas de
automóveis por exemplo). A lei não permite a usucapião destas situações, porque não
se verificam sinais, o dono do território não tem meio de conhecer que há uma servidão,
de modo que a lei o proteja.

5. Os princípios constitucionais dos direitos reais

Havia dois meios de ordenação do domínio: provisória e definitiva. A ordenação


provisória é regulada através da posse e dos seus efeitos. A ordenação definitiva é
regulada por via dos direitos reais. Iremos ver o conjunto de princípios e regras que
presidem à constituição, transmissão e extinção dos direitos reais. Vimos a usucapião
que é uma forma de extinção dos direitos reais.
Quando falamos na ordenação através dos direitos reais, temos de partir da
noção de direito real, a tal distinção entre lado interno e externo, mas que não se esgota
num deles, é o conjunto dos dois aspetos, essa combinação ótima é que define o que é
o direito real. Mas iremos fazer uma divisão entre regras ou princípios mais
vocacionados para o lado interno e outros que se dirigem mais ao lado externo. Esta
exposição analítica só o é para efeitos positivos e sistemáticos, mas tudo isto funciona
de modo global, em conjunto. No entanto, há aspetos em que sobressai mais uma ou
outra nota e são esses aspetos que Orlando de Carvalho enunciou através de
determinados princípios.

63
Começaremos pelos princípios que comandam o respetivo lado interno, o facto
de esses direitos serem um poder direto e imediato, terem no âmago um tal conteúdo
ou um tal licere. A lei quer proteger o tal poder direto e imediato sobre uma coisa e por
isso impõe uma eficácia erga omnes aos restantes membros da comunidade jurídica.

5.1. Princípio da coisificação

O direito real versa sobre uma coisa. Todo o direito real é um direito sobre coisas,
que versa sobre coisas, e não sobre pessoas ou bens não coisificáveis. O que importa
agora referir, nos termos do artigo 1302.º, é saber qual o objeto do direito real. O
problema coloca-se em “só as coisas corpóreas”. Há algumas situações em que a própria
lei prevê a possibilidade de um direito real incidir sobre um direito. É a própria lei a falar
no usufruto de direito, em matéria de hipoteca (direito real de garantia), também aqui
é a própria lei que se refere a direitos como objeto deste direito real. Logo, à partida,
não podemos considerar este artigo 1302.º como tendo um valor universal, no âmbito
do Código Civil. Esta norma é contraditada em muitas outras normas do Código Civil, o
que nos leva a concluir que ou se trata de exceções, mantendo-se o princípio, ou então
o legislador disse menos do que queria dizer, porque são tantas as situações de direitos
reais sobre coisas não corpóreas que talvez seja considerar tudo como situações
excecionais.
O que interessa agora afirmar é que é o próprio Código Civil que admite coisas
incorpóreas como objeto de direitos reais. Depois temos a questão do estabelecimento
comercial, dissemos que era uma coisa incorpórea de organização, é indissociável dos
bens incorpóreos que entram na respetiva constituição e é um bem incorpóreo sui
generis. Também as coisas incorpóreas do direito de autor ou propriedade industrial são
objeto de direitos reais, isto decorre do artigo 1303.º. O nº 2 diz que são
subsidiariamente aplicáveis as disposições do Código Civil. Ou seja, estes regimes da
propriedade autoral e industrial preveem direitos de propriedade, não definem como
são esses direitos, preveem formas de transmissão e oneração e todos esses regimes
têm como núcleo regulador o que diz o Código Civil. Ou seja, o facto de ser uma lei
especial não quer dizer que seja autónoma do Código Civil, partilham do mesmo
paradigma dominial, simplesmente apresenta configurações diferentes. O Código Civil
aplica-se a estes bens, o tipo de domínio do Código Civil aplica-se a esses bens e os
restantes aspetos são regulados por esses Códigos respetivos.
Relativamente ao estabelecimento comercial, é o próprio Código Civil a aplicar-
lhe as respetivas regras. Por exemplo, no artigo 94.º (curadoria provisória) em que se
diz que o curador pode alienar ou onerar estabelecimentos comerciais, nos moldes
deste Código. Um outro exemplo, no artigo 1682.º que tem a ver com os efeitos do
casamento e concretamente quanto aos bens, também se fala de alineação ou oneração
de estabelecimento comercial. Esta afirmação do artigo 1302.º não é exaustiva, significa
que entre nós podem ser objeto de direitos reais as coisas corpóreas, as coisas
incorpóreas e também os direitos nas várias situações em que a lei o permite.

5.2. Princípio da atualidade

64
Também designado por princípio da imediação, encontra consagração legal no
artigo 408.º nº 2. O artigo refere-se aos negócios translativos dos direitos reais. Só há
direito real em face de coisas presentes – que existam já e em poder do alienante –, não
em face de coisas simplesmente futuras. Se a venda respeitar a uma coisa futura (artigo
211.º), o direito só se transfere quando a coisa for adquirida pelo alienante. Daqui
decorre que não há direitos reais sobre coisas futuras, só há direitos reais sobre coisas
presentes, daí a designação do princípio, o poder só pode ser exercido perante quem
tem a disponibilidade jurídica do bem. Este enunciado legal é importante, porque não
havendo muito embora um contrato de compra e venda, não produz efeitos translativos
quando tem por objeto coisa futura, no entanto esse negócio não é inválido, donde se
retira isto? Do facto de a lei dizer que o direito só se transfere quando a coisa for
presente e só se transfere pelo negócio anteriormente celebrado. O negócio é válido,
mas só produziu efeitos obrigacionais, porque uma vez adquirido o bem pelo vendedor
imediatamente se transfere para a esfera do comprador. Tem implícita a eficácia do
negócio que foi celebrado antes.
Há um aspeto que a própria lei distingue, que tem a ver com a venda de coisa
alheia (artigo 893.º). Uma coisa futura é alienada como sendo esperada; uma coisa
alheia é diferente, é uma coisa que não é própria. Contudo, numa coisa futura vende-se
uma coisa que não é própria, mas a lei estabelece uma diferença substantiva de regimes.
Se as partes tiverem conhecimento de que o bem é futuro, então não se aplica o regime
de coisa alheia, mas sim o regime do artigo 408.º. Há aqui uma diferença substancial de
vender uma coisa que não é própria, mas como sendo, e vender uma coisa que não é
própria, mas que se informa. São situações muito frequentes. A venda de coisa alheia
entra no campo de invalidade. O regime das coisas futuras entra no regime da validade,
havendo paralisação da eficácia inicial do negócio jurídico.
O princípio da imediação tem, por vezes, de ceder, em ordem a essas coisas
relativamente futuras. É o que sucede por força do instituto do registo ou dos artigos
143.º e 291.º.

5.3. Princípio da especialidade: enunciação e exceções

Também designado por princípio da individualização (artigo 408º nº 2). Este


princípio tem uma lógica idêntica ao princípio da atualidade. Estamos perante negócios
reais quoad effectum (em contraposição a quoad constitutione), só há transferência de
direitos reais quando as coisas estão determinadas, a ideia de coisa envolve essa
individualidade, seja física, seja jurídica. A lei determina que a constituição ou a
transferência de direitos reais sobre coisas indeterminadas, não delimitadas, implica
que esse negócio translativo não é nulo, é válido, produzindo efeitos apenas
obrigacionais. Quando a coisa se tornar determinada e certa na esfera do alienante, o
direito transfere-se de imediato, de forma automática sem carecer de qualquer outra
declaração negocial. É o primitivo contrato que, numa primeira fase, produz efeitos
obrigacionais e depois, numa segunda fase, efeitos reais, basta o bem se tornar certo
para esse efeito real se produzir.
Em matéria de frutos, há aqui uma especificidade que tem a ver com a noção de
fruto, enquanto ligado à árvore é uma coisa imóvel (artigo 204.º nº 1 alínea c)).
Relativamente aos frutos, só têm autonomia quando colhidos ou percebidos, daí esta
parte final do artigo 408.º. A separação diz respeito à parte integrante, é a separação

65
física, o desmembramento é jurídico no caso das pedreiras, mas aqui a lei está a referir-
se à separação física, por exemplo o radiador em relação ao edifício.
Os direitos reais não são coisas genéricas, é isso que se pode deduzir deste
princípio. Não há direitos reais sobre coisas genéricas, sendo necessária a especificação
dessas coisas, que elas se tornem certas e determinadas, para que nelas incida um juz
in re. Por definição, as obrigações genéricas e alternativas têm um momento de
indefinição quando o negócio é celebrado. Por outro lado, e como se diz na parte das
obrigações genéricas ou alternativas (artigo 539.º e seguintes), aí o momento da escolha
é que vai determinar a individualização, estamos perante operações materiais, físicas,
não há uma individualização jurídica. A especificação ou individualização jurídica não
corresponde necessariamente a uma individualização física; mas é necessário que essa
individualização jurídica se opere para que a relação intercedente deixe de ser só
obrigacional, para que se volva numa relação real.
O mesmo vale para as coisas já relativamente individualizadas, mas ainda não
separadas ou autonomizadas de outras coisas – é o que acontece com as partes
componentes e partes integrantes (artigo 204.º nº 1 alínea e) e nº 3). Como aqui se fala
em partes componentes ou integrantes, o negócio translativo sobre elas não produz
efeitos reais, porque enquanto tais não têm autonomia jurídica e supõem uma
autonomização, uma separação jurídica para poder ser objeto de direitos reais sobre
aquele bem específico. Pode-se vender um edifício e irem incluídas as partes
integrantes, não é preciso especificar, fazem parte da coisa principal, exige-se para
poderem ser objeto de negócios autónomos a separação física. Quando falamos no
âmbito de partes integrantes, o direito que recai sobre a coisa principal abrange
necessariamente cada uma dessas partes integrantes, o que sucede é que, no plano
jurídico, dada esta ligação e esta absorção em termos dominiais das partes integrantes
no direito que recai sobre a coisa principal, podemos designar que as partes integrantes
são coisas relativamente indeterminadas, porque apesar de não terem autonomia
jurídica, têm uma autonomia física percetível e é essa individualidade que vai permitir a
sua separação e o negócio jurídico sobre ela.
Em qualquer caso, trata-se de coisas passíveis de uma identificação na sua
individualidade, mas que, encontrando-se estreitamente conexas com uma coisa
diferente, não sofrem a incidência de direitos reais diversos dos que incidem sobre a
última. Ao produzir-se a desafetação ou separação é que serão objeto de um direito real
distinto, tendo o negócio que preveja a aquisição deste direito até esse momento só
eficácia obrigacional.
O direito que recai sobre a coisa principal abrange as partes componentes ou as
partes integrantes. O regime da acessão (artigos 1325.º e seguintes) está na linha de
aplicação deste princípio, que não só postula, para existir um jus in re, a individualização
de uma coisa, como supõe que, enquanto não individualizada, a ela se estenda o direito
que recai sobre o conjunto, definido pelo género ou pela coisa principal. Já vimos isso a
propósito da acessão natural, a própria lei diz que pertence ao dono do prédio tudo
aquilo que lhe acrescer por força da natureza.
Pode haver exceções a este princípio em homenagem à boa fé ou, pelo menos,
à solidez da ordenação do domínio. No regime da acessão, consequência lógica do
princípio seria a extensão ao valor adjunto do direito que incide sobre o objeto
enriquecido. Ora só em matéria de acessão natural é que esta regra tem aplicação
absoluta (com os desvios equitativos, na hipótese de avulsão dos artigos 1329.º nº 1 e

66
1331.º nº 2). Na acessão industrial, ela só vale para a má fé do acessor (artigos 1334.º e
1337.º), no caso de acessão mobiliária, seguindo-se quanto ao resto o princípio do valor
maior para se determinar a quem o conjunto pertence. Na acessão imobiliária, a regra
da primazia do solo vale, decerto, para a incorporação feita em terreno próprio com
materiais alheios (artigo 1339.º) e para os casos de incorporação de má fé (artigos
1341.º, 1342.º nº 2 e 1343.º); mas para os casos de incorporação de boa fé e para a
incorporação feita em terreno alheio com materiais alheios (desde que não haja culpa
do dono dos materiais), já vale a regra do maior valor (artigos 1340.º, 1342.º nº 1 e
1343.º).
Há outras exceções relacionadas com compropriedade, isto para quem defende
a compropriedade como coexistência de quotas, uma quota real é uma coisa certa e
determinada, no entanto admitem-se direitos reais sobre coisas não certas e
determinadas. A quota que é objeto em compropriedade de cada comproprietário é
definida pela coisa principal sobre a qual os comproprietários exercem um direito de
compropriedade. No entanto, sendo objeto uma quota ideal é uma coisa certa e
determinada (4 pessoas compram um automóvel, cada um é dono de ¼ do carro, mas
isso não está individualizado), temos uma exceção na medida em que temos direitos
reais sobre quotas ideais.
Também há outras exceções no âmbito do direito de superfície e propriedade
superficiária, a lei admite a coexistência de um direito sobre uma construção que não
abrange um imóvel. É um regime especial, mas aqui também temos um direito que versa
sobre a coisa principal que é o terreno, não abrange as partes integrantes ou
componentes.
Também nas servidões podemos encontrar uma exceção ao princípio da
especialidade. Nas servidões aparentes, numa servidão de passagem foi preciso fazer
obras para os automóveis poderem passar, temos obras, temos partes integrantes que
foram juntas ou incorporadas no prédio alheio. As obras pertencem ao dono do prédio
encravado, muito embora sejam partes integrantes do prédio onde foram realizadas,
também temos aqui outra exceção.
Temos outra também no regime da propriedade horizontal, temos o direito
sobre as partes comuns e depois temos o direito sobre as frações. As frações são partes
componentes daquele prédio sujeitas a um direito de propriedade autónomo sobre
aquele que versa sobre as partes comuns, temos aqui uma derrogação, porque temos
uma parte componente que não é abrangida pelo direito da coisa principal.
Não há exceção a este princípio quando é a própria lei a permitir o
desmembramento do objeto, não há coisa principal nem integrante, são coisas
juridicamente autónomas, no caso das minas por exemplo.

5.4. Princípio da compatibilidade. Concurso de direitos reais

Também designado por princípio da exclusão, tem a ver com a ideia de erga
omnes, o poder direto e imediato é incompatível com outro da mesma natureza. A
exclusividade dominial está subjacente à natureza do direito real e essa concretiza-se
através da imediação do poder que é conferida ao titular do direito real. A ideia de
direito real tirada do direito propriedade é que permite retirar esta ideia de direito real
exclusivo, na medida em que tem como matriz a propriedade. Em rigor, não se pode
falar em direito real em abstrato sem ter como suporte o direito de propriedade, é ele

67
que define o ADN do regime dominial e que permite compreender na sua essência e
funcionalidade o direito real, é este poder direto e imediato sobre uma coisa que o nosso
regime quer exclusivo por natureza, assenta na titularidade individual, significa que
tendo um direito real sobre esta coisa não pode mais ninguém ter um direito real sobre
essa mesma coisa com o mesmo conteúdo, porque se esgota o licere da coisa. Quando
falamos em direitos com outro licere, falamos em direitos incompatíveis, conflituantes
porque têm o mesmo conteúdo, tirando o regime da comunhão e da compropriedade.
Isto decorre da natureza absoluta do direito real que tem como matriz sempre o direito
de propriedade. Em suma, este princípio prescreve que só pode existir um jus in re sobre
determinada coisa na medida em que ele seja compatível com outro jus in re que recaia
sobre ela, ou na medida em que ele não seja excluído por força de um prevalente ou
pré-existente jus in re.
Contudo, o mesmo bem pode suportar vários direitos reais e a lei admite-o em
situações diversas, isto é, juridicamente a utilização de um bem pode ser fragmentada
e pode ser partilhada, ou seja, pode sobre a mesma coisa coexistir direitos reais desde
que com conteúdos diferentes, isto é o que se chama concurso de direitos – coexistência
de direitos reais com conteúdos diferentes. Se o direito real é um poder direto e
imediato, tende a excluir qualquer outro poder direto e imediato que atinja as
faculdades que ele se reserva sobre a coisa. Isso não obsta a vários graus de utilização
do objeto e, portanto, à possibilidade de compatibilização entre esses distintos poderes
diretos e imediatos.
A lei admite diferentes tipos de concurso de direitos reais, mas é sempre entre
direitos reais com natureza ou conteúdo diferente. Há 3 tipos de direitos reais: de gozo,
de aquisição e de garantia. Ou seja, é possível a compatibilização entre direitos reais de
função diferente ou género diferente (entre direitos reais de gozo e direitos reais de
garantia ou entre direitos reais de gozo e direitos reais de aquisição) e entre direitos
reais do mesmo género, designadamente os direitos reais de gozo entre si. Desde que
não se desnature o direito-matriz, esgotando-se o próprio cerne do seu licere, podem a
lei ou os interessados, nos limites da lei, estabelecer a partir dele um jus in re que é
sempre um jus in re aliena.
A possibilidade de sobre um bem existir um direito de usufruto, de servidão (nos
direitos de gozo o choque é mais evidente), é possível a existência de direitos
simultâneos sobre a mesma coisa, simplesmente têm de ter conteúdos distintos. No
usufruto há um conteúdo diferente do direito de propriedade, mas o conteúdo do
direito de usufruto na parte correspondente aos poderes e interesses que o usufruto
permite satisfazer tem como contrapartida uma diminuição correspondente do direito
de propriedade. A nível dos direitos reais de gozo, na medida em que cada um tem licere
autónomos e distintos, significa que podem coexistir diferentes direitos reais de gozo
porque cada um tem um conteúdo distinto, na medida em que obriga à contração dos
outros direitos. Será o direito de propriedade o mais sacrificado, mas continua a existir,
não se extingue. O usufruto é um poder pleno dentro daqueles limites, o que significa
que sobre a mesma coisa não podem existir dois usufrutos, na medida em que, sendo
um poder pleno, outro usufruto sobre a mesma coisa era incompatível, portanto a
incompatibilidade radical é entre propriedades e direitos reais de gozo menores, pois
há incompatibilidades entre os respetivos conteúdos.
Contudo, a lei admite a coexistência de direitos reais sobre a mesma coisa e com
o mesmo conteúdo. Não há conflitualidade entre direito de garantia e de aquisição.

68
Porque é que a lei admite que sobre o mesmo bem possam existir várias hipotecas? O
que caracteriza um direito real de garantia é uma prevalência no pagamento. É possível
a existência de diferentes direitos reais de garantia sobre o mesmo bem, desde que a lei
estabeleça uma graduação, uma preferência e a lei assim afasta a incompatibilidade. A
lei admite esta coexistência na medida em que gradua, estabelece uma hierarquia, a
regra é a da prioridade cronológica. Significa que o primeiro satisfaz o seu crédito e só o
valor remanescente é que fica para o segundo. Pode acontecer que o direito colocado
em primeiro lugar se extingue porque houve pagamento da dívida e o que era segundo
passa a primeiro. Não implicam poderes empíricos como os direitos de gozo, na garantia
não há qualquer poder empírico sobre o aproveitamento das utilidades do bem. Assim,
o princípio parece não se manter em certos casos como o de concurso de direitos de
preferência, concurso de penhores, concurso de hipotecas, entre outros. Acontece que
tal licere ou conteúdo é aí essencialmente um direito de aquisição ou de execução
privilegiada, que admite a concorrência de direitos congéneres desde que exista uma
escala ou graduação. Ora é essa graduação que resulta, na nossa lei, para os direitos de
preferência (artigo 422.º), para a hipoteca (artigo 686.º nº 1), para os privilégios (artigos
745.º e seguintes) e para o direito de retenção (artigo 759.º nº 2). Nem nestes casos,
existirá verdadeira exceção ao princípio, visto que é o próprio direito que faculta a
concorrência que é em si mesmo talhado para ser compatível com ela. Por exemplo, o
artigo 422º, são dois direitos de aquisição, um com origem contratual, outro com origem
legal. A lei vem estabelecer que sobre a mesma coisa podem existir direitos de
preferência de base convencional e de base legal, mas diz que os direitos legais de
preferência têm prevalência sobre os convencionais. No artigo 1380º, a propósito do
fracionamento dos prédios rústicos, o nº 2 estabelece o critério da preferência, da
graduação, aqui também temos concurso de direitos com o mesmo conteúdo. O que se
passa com os direitos de aquisição passa-se também com os direitos de garantia. Por
exemplo, o artigo 713º a propósito da hipoteca, também o artigo 685º, concretamente
o nº 3.

5.5. Princípio da elasticidade

Este último princípio ligado ao lado interno também pode ser designado por
princípio da consolidação. Corresponde a uma necessidade lógica do princípio da
compatibilidade, é uma consequência implícita deste, ou seja, existência de vários
direitos reais sobre a mesma coisa. Todo o direito sobre as coisas tende a abranger o
máximo de utilidades que propicia um direito dessa espécie: ou seja, todo o direito
sobre as coisas tende a expandir-se até ao máximo de faculdades que abstratamente
contém. Isto significa que quando se constitui, por exemplo, um usufruto, restringe-se
a propriedade. Assim, os direitos reais, especialmente o direito de propriedade é um
direito elástico, tem um conteúdo que pode ser limitado, restringido. O conteúdo não é
fixo, é elástico, pode ser limitado pela constituição de outros direitos, os direitos de gozo
são compatíveis por natureza e a existência de uns implica a retração ou restrição
daqueles donde brotam. A propriedade é base ou matriz de todos os outros direitos
reais (daí a sua importância para a definição do direito real). Significa que a possibilidade
de contração de um direito real permite a constituição de um direito – jus in res aliena
(direito sobre coisa alheia).

69
Apesar de o direito de propriedade se contrair, não se extingue, do ponto de
vista qualitativo o direito que suporta o outro direito ou a partir do qual se constitui
outro direito acaba por manter a mesma natureza, simplesmente o conteúdo está
limitado, mas não se descaracteriza o direito. Há quem entenda que o direito de
propriedade é um somatório de faculdades e, quando se retira uma, esse direito deixa
de ser o mesmo, tem uma natureza diferente. E há quem entenda, como Orlando de
Carvalho33, que não, que o direito de propriedade não é um depósito de direitos, mas é
um direito com um licere que abarca as faculdades todas que a coisa permite, quando
se constitui um jus in res aliena restringe-se o direito, sem perder a respetiva natureza.
O direito de propriedade pode contrair-se e pode expandir-se. Quando se
contrai, dá origem a um direito, em rigor é um direito novo. Quando se constitui um
usufruto, estamos perante um direito novo que se constitui derivadamente do direito
de propriedade, como todos os direitos reais. É novo porque verdadeiramente a
propriedade não se confunde com o usufruto, é um direito com determinada natureza
e não se pode dividir em usufruto, superfície, etc. Por isso, o usufrutuário é proprietário
das suas coisas, é partir do pressuposto que é um conjunto de faculdades amplo e pode
admitir contrações e depois expansões. Por isso se fala de aquisição derivada
constitutiva34 e extintiva.
Esta elasticidade, que tem a sua expressão máxima a partir do direito de
propriedade, não é exclusiva deste direito. Por isso a lei estabelece que o usufrutuário
pode onerar o seu direito, por exemplo podendo constituir servidões. O mesmo se passa
com o direito de superfície e com o direito real de habitação periódica. Contudo, há dois
direitos de gozo que não admitem contrações35: o direito de uso e habitação e o direito
de servidão. O direito de uso e habitação é amplo, tem uma natureza intuitu personae
que é contrária a qualquer tipo de aproveitamento por terceiro, a constituição de direito
real ia permitir que esse direito fosse aproveitado por terceiro e desvirtuava-se a sua
natureza. Quanto à servidão, tem um conteúdo tão limitado, que não permite outro tipo
de aproveitamento, tem a ver com o seu licere. Também não admitem contrações os
direitos reais de garantia e de aquisição, porque tem a ver com os seus conteúdos, é
muito específico e limitado, não se permitindo a participação de terceiros.
É assim característica de toda a realidade (no sentido de toda a dominialidade)
esta estrutura elástica dos poderes, este seu automatismo para a consolidação36 num
direito mais espesso ou mais próximo do pleno.

33
Diz este autor: “a elasticidade é um atributo do direito de propriedade, que vem assim a conceber-se,
não como uma estrutura estratificada ou sedimentar, um “depósito” de direitos ou faculdades diversas
que, no seu somatório, formam o pleno domínio, mas, ao invés, como uma estrutura homogénea com tal
força expansiva que lhe permite contrair-se e expandir-se – dando lugar aos vários jura in re aliena, e
retomando o seu volume, uma vez eles extintos – sem que sofra com isso uma verdadeira mutação, ou
sequer uma verdadeira diminuição de conteúdo.”
34
Na aquisição derivada constitutiva, o direito adquirido filia-se num direito (mais amplo) do anterior
titular. Forma-se à custa dele, limitando-o ou comprimindo-o. mas não preexiste como entidade
autónoma e específica na esfera jurídica dessa pessoa.
35
Diz-nos Orlando de Carvalho que “O direito de uso e habitação por causa da sua natureza intuitu
personae, que exclui toda a forma de aproveitamento que se traduza em direitos para outrem. As
servidões pela sua inseparabilidade “dos prédios a que pertencem, ativa e passivamente” (artigo 1545.º
nº 1), o que obsta à sua oneração a não ser como acessórios do direito de propriedade do prédio
dominante.”
36
Consolidação enquanto efeito positivo da elasticidade do domínio, isto é, a restituição do domínio, por
sua força intrínseca, à sua dimensão original, uma vez extinta a causa de oneração ou retração.

70
Vejamos agora os princípios ligados ao lado externo, isto é, o facto de o direito
sobre as coisas se impor à generalidade dos membros da comunidade jurídica ou ter
eficácia erga omnes.

Princípio da tipicidade

Não é o primeiro que Orlando de Carvalho desenvolve nas suas lições, mas
significa que os direitos reais não são conceitos, são tipos, são congregações ou
aglomerações de características jurídicas. São mais do que meros conceitos, o direito de
propriedade não é um mero conceito, mas envolve em si um aglomerado de situações
jurídicas que define esse direito real. É a tendência dos direitos das coisas para se
oferecerem em tipos característicos. Do que se trata é apenas de pôr em realce a
vocação das formas de domínio para se oferecerem, não como meros conceitos obtidos
por abstração generalizante, mas como algo de mais concreto, de mais preciso e de mais
vivo.
Os direitos reais são tipos de direitos, têm um conjunto de características que os
definem. Estão tipificados na lei, na medida em que estão previstos com um
determinado conteúdo. A lei não define o que é o direito de propriedade, mas consagra
o seu conteúdo. Daí dizer-se que o princípio que preside à previsão legal dos direitos
reais assenta na regra da tipicidade de modelos, são determinados modelos de direitos
reais, o que tem como implicação que a existência desses tipos, a descrição dos direitos
reais enquanto direitos reais, é limitativa das partes.

5.6. Princípio da taxatividade

Também designado por princípio do numerus clausus, encontra-se consagrado


no artigo 1306.º. Há quem também designe por princípio da tipicidade, mas não é isso
verdadeiramente que o artigo regula, o princípio da tipicidade está implícito, mas
verdadeiramente o que regula é o grau de liberdade das partes relativamente aos tipos
de direitos reais que a lei conhece. Neste sentido, diz o artigo que a lei prevê
taxativamente um conjunto de direitos reais. Isto significa que não só relativamente ao
direito de propriedade, mas em relação a todos os direitos reais estão previstos na lei e
o seu conteúdo essencial está fixado na mesma de forma imperativa. Esta norma, pela
sua letra, é claramente imperativa (“Não é permitida”). O direito das coisas tende a
oferecer-se numa tipologia taxativa, num elenco fechado de formas ou de direitos.
Muito embora a lei defina os tipos, não só na sua enumeração e no seu próprio
conteúdo essencial, esta opção normativa tem implicações na liberdade das partes,
limita-se, isso não significa que estes tipos que a lei tenha fixado todo o conteúdo
essencial, se ultrapassarem esses limites, deixem de ser tipo legal e passam a ser criados
pelas partes, a lei não permite isso. Seja constituição, seja restrição, tudo isto tem a ver
com a criação de direitos reais. Apenas nos casos previstos na lei se podem criar figuras
que disciplinem o domínio das coisas. Ainda assim, a lei confere alguma margem de
liberdade às partes. Embora a lei defina os elementos que caracterizam cada direito real,
há aspetos em que a liberdade das partes está incluída nesses tipos, daí se dizer que não
são fechados. Exemplo paradigmático é o direito de servidão, nomeadamente a servidão
predial, que é intencionalmente compatível com um número indefinido de

71
concretizações desse direito (artigo 1544.º). A intervenção modeladora da vontade das
partes é aqui, não apenas lícita, mas esperada pela lei.
Poucos países há que tenham uma norma como o artigo 1306.º, sendo que na
Europa somos os únicos. Diz-se princípio do numerus clausus, porque os tipos estão
fechados, são apenas aqueles que a lei prevê, em contraposição ao numerus apertus. O
nosso sistema é de numerus clausus, aliás a epígrafe do artigo é precisamente essa.
Quais os argumentos para a sua consagração? No domínio das infraestruturas,
influencia o domínio da sociedade e, portanto, se o domínio das infraestruturas tem
esse efeito natural, compreende-se que o Estado regule as formas de aproveitamento
ou ordenação dessas mesmas infraestruturas. E os bens de consumo, porque também
estão sujeitos a esta limitação? É uma consequência deste interesse de regular o
domínio das infraestruturas. Essa necessidade de controlo do domínio dos bens não
deixa de ser uma forma de o Estado disciplinar o controlo da sociedade, se isto não
tivesse sido estabelecido teria outro efeito – a possibilidade de as partes poderem
constituir direitos que poderiam ser desconhecidos dos potenciais interessados que
eventualmente entrassem em relação jurídica com esses bens, quis-se prevenir o risco
de insegurança que podia resultar se fosse conferida às partes liberdade de criar direitos
reais. Poderia constituir um entrave à circulação dos bens, quantos mais encargos
tiverem menor liberdade de circulação. Será este interesse em evitar onerações ocultas
que é um dos argumentos avançados para justificar este numerus clausus.
Há um argumento global de cariz económico e que contraria esta opção
legislativa: o numerus apertus teria como consequência a possibilidade de melhores
aproveitamentos das partes interessadas ou, pelo menos, um aproveitamento mais
dúctil das possibilidades de fruição da riqueza. Isto poderia trazer mais vantagens
económicas. Há sempre interesses que não são cabalmente satisfeitos com os direitos
reais assim previstos. O certo é que o nosso ordenamento adotou esta postura, mas,
por outro lado, a prática do nosso país, em comparação com outros países que não têm
esta norma, tem demonstrado que nesses países as partes raramente vão além dos tipos
que a lei prevê, há uma taxatividade prática, resultando a liberdade de modelação pouco
menos que marginal e restringindo-se quase sempre a combinações ou variações dentro
dos cânones estabelecidos pela lei.

Artigo 1306.º do Código Civil


1. Não é permitida a constituição, com caráter real, de restrições ao direito de
propriedade ou de figuras parcelares deste direito senão nos casos previstos na lei;
toda a restrição resultante de negócio jurídico, que não esteja nestas condições, tem
natureza obrigacional.

O que dá suporte à taxatividade é o regime restritivo das partes que a lei prevê.
O artigo 1306.º, na primeira parte, refere-se ao conceito de figuras parcelares. O Código
Civil revogou a enfiteuse e era um tipo de direito real em que havia um
desmembramento, uma figura parcelar. Na aquisição translativa, quando se constituía
um usufruto, o direito de propriedade mantinha-se na sua natureza com conteúdo
limitado. A enfiteuse dava origem a 2 domínios: direto (relativo ao enfiteuta) e útil. Eram
dois domínios paralelos, funcionavam um ao lado do outro, mas davam origem ao
desmembramento do direito real, dividia-se em 2 direitos reais autónomos. Daí a
expressão de figura parcelar, a lei divide sem aplicação prática os direitos reais menores

72
em restrições e figuras parcelares. Seja como for, só podem ser constituídas restrições
e figuras parcelares previstas na lei. Claro que agora só relevam as restrições.
Quanto à segunda parte do artigo 1306.º, há já aqui uma diferença, pois só se
fala na restrição, agora a questão não tem importância porque não há figuras parcelares.
Em primeiro lugar, há aquela proibição logo no início da norma. Uma proibição confere
esta natureza imperativa à norma e os negócios contra normas imperativas são nulos
(artigo 294.º). A redação desta segunda parte remete-nos para o instituto comum
previsto na parte geral do Código Civil que vale para todos os negócios jurídicos, mas
aqui de uma forma especial porque a lei remete para ele e é o instituto da conversão –
toda a figura que era direito real tem natureza obrigacional. A lei quer aproveitar aquele
negócio. Aqui claramente é o regime da conversão37 (artigo 293.º) porque não se trata
de retirar uma ou outra cláusula e fica uma outra figura. Trata-se de converter um
negócio que a lei permite, sob certos pressupostos, transformar-se noutro negócio com
outras características diferentes. O que está em causa são aspetos que criem direitos,
títulos fora dos quadros tipificados que a lei prevê. Para isso o artigo 293.º diz que é
preciso ver se os requisitos de forma e substância permitem constituir um novo negócio
jurídico do qual resulte um direito real válido previsto na lei.
Mas depois há um outro requisito, a lei recorre à vontade hipotética das partes,
não à vontade presumida nem real. Na conversão trata-se de aproveitar o que já existe,
não se vai buscar mais nada. Daí que a lei prescinda da vontade real e atenda apenas à
vontade conjetural ou hipotética que é aquilo que a lei define na última parte do artigo
293.º. No regime geral da conversão é preciso que se reúnam esses 3 requisitos:
substanciais, formais e a nível da vontade hipotética das partes. Simplesmente aqui é
que entra a segunda parte deste artigo 1306.º. De acordo com o artigo 293.º, a
conversão pode dar origem a direito do mesmo tipo ou conteúdo diferente: pode dar
origem a figura real ou obrigacional. A novidade introduzida pelo artigo 1306.º é que
esta norma introduz aqui uma presunção. Discute-se se é absoluta ou relativa, sendo
que Orlando de Carvalho, tal como o professor Liberal Fernandes, entende que é
relativa, ou seja, verificados os pressupostos formais e substanciais do artigo 293.º, no
caso de se tratar de uma restrição ao direito de propriedade não prevista na lei, esta

37
Trata-se de, dados certos requisitos, reconstituir-se, com os materiais do negócio totalmente inválido,
um outro negócio, cujo resultado final económico-jurídico, embora mais precário, se aproxima do tido em
vista pelas partes com a celebração do contrato totalmente inválido. Trata-se como que de uma
colaboração do ordenamento jurídico com a vontade das partes no sentido de dar expressão a uma
vontade potencial, não formulada, alargando assim o campo de ação da autonomia privada. São exigidos
certos requisitos de admissibilidade:
1- é necessário que o negócio inválido contenha os requisitos essenciais de forma e substância,
necessários para a validade do negócio sucedâneo;
2- exige-se que a vontade hipotética ou conjetural das partes seja no sentido da conversão. Só haverá
conversão, quando se imponha a conclusão de que as partes teriam querido o negócio sucedâneo se, na
hipótese de se terem apercebido do vício do negócio principal, não pudessem tê-lo celebrado sem essa
deficiência. A existência deste requisito deve ser averiguada à luz das particularidades do caso concreto.
Os efeitos económicos do negócio sucedâneo não podem exceder os efeitos visados com o negócio
inválido. A conversão terá, portanto, lugar sempre que seja de presumir que as partes, na falta de
obtenção do resultado económico completo, teriam pretendido ao menos a realização parcial ou
incompleta dos seus fins;
3- a conversão deve manter-se dentro do domínio negocial traçado pelas partes.
A conversão é genericamente regulada no artigo 293.º, sendo que exige a prova da vontade hipotética ou
conjetural das partes, não tendo lugar em caso de dúvida.

73
presume a vontade hipotética das partes no sentido de que, se tivessem previsto a
invalidade, teriam celebrado um negócio obrigacional.

5.7. Princípio da causalidade

Este princípio tem a ver com a validade dos negócios jurídicos e visa resolver o
problema da existência, do surgimento dos direitos reais, encontrando-se previsto no
artigo 408º. Do lado oposto encontramos o princípio da abstração, que funciona na
Alemanha, segundo o BGB.
Causa é todo o ato em que se manifesta a vontade de transmitir ou de adquirir
um direito real. Com esta noção referimo-nos às aquisições derivadas. Mas há formas
originárias de aquisição que a lei prevê e também podemos considerar a lei, a sentença,
a usucapião como causas legítimas de aquisição. Assim, com este princípio referimo-nos
à aquisição derivada e não propriamente à aquisição originária. Mas como aqui a lei
define os pressupostos, não se levantam o mesmo tipo de problemas quando é a
vontade das partes que está na origem da aquisição e transmissão dos direitos reais.
Não tem sentido estender o problema à aquisição originária de direitos, pois tanto na
usucapião como na ocupação, na acessão, na criação e na invenção, a causa adquirendi
é uma e única, brotando o jus in re de todo complexo e indissolúvel de elementos
psíquicos e físicos, se não empíricos e jurídicos, em que cada um desses processos se
analisa.
Quando estamos no âmbito da aquisição derivada, há aqui dois interesses mais
ou menos contrapostos que podemos definir por estas duas ideias: quando estamos
perante uma relação bilateral, a ordem jurídica pode dar prevalência à regularidade do
negócio jurídico e, se o negócio é regular, a transmissão produz-se. Mas, por outro lado,
essa regularidade pode não acautelar os interesses de terceiros, do adquirente. Porquê?
É que o mesmo transmitente pode transmitir a um terceiro, ou a um quarto. A questão
é: e nestes casos como reage o ordenamento? Se considerarmos que se produz a
transmissão apenas se o negócio for válido, temos a fácil resposta de que os negócios
supervenientes são incompatíveis e, por isso, inválidos. Pode acontecer que os terceiros
estejam de boa fé, acabando totalmente desprotegidos, o que faz com que tenham
repercussões negativas na segurança jurídica. Incindir toda a prevalência na questão da
validade pode prejudicar a boa fé de terceiros e, com isso, a segurança do comércio
jurídico.
Há dois interesses em conflito quando se trata da constituição dos direitos reais:
a regularidade e a indiscutibilidade. Em determinadas situações, se o ordenamento
jurídico garantir que um direito adquirido por terceiro se torne indiscutível e beneficia
de tutela jurídica, independentemente da regularidade do ato, temos interesses
contrapostos, porque terceiro pode adquirir por negócio que não seja regular, mas haja
interesse em protegê-lo, na medida em que esteja em causa um interesse geral de
segurança do comércio jurídico. A tutela da circulação dos bens não tem
necessariamente de se fazer, e entre nós não se faz, para assegurar a circulação dos
bens e a segurança do comércio jurídico às vezes torna-se necessário proteger os
terceiros em face da irregularidade do negócio. Para isso temos de recorrer ao artigo
408.º. A segurança jurídica faz-se por duas vias: ou o negócio é nulo ou através da tutela
do terceiro com alguns limites, independentemente da invalidade desse negócio jurídico
em que intervém. Por vezes também se cria um sistema intermédio, que é

74
verdadeiramente o nosso, assenta na regra da regularidade, mas também incorpora a
tutela dos terceiros.
Há 3 sistemas em confronto que enquadram estes tipos de interesses:
- sistema do título: assenta na regularidade e vigora em Portugal;
- sistema do modo: assenta na indiscutibilidade da aquisição e vigora na Alemanha, na
Áustria e na Suíça;
- sistema do título e do modo: tem aspetos dos dois sistemas anteriores e vigora em
Espanha.
O título38, em sentido amplo, é todo o fundamento jurídico que legitima a
aquisição de direitos reais. Em sentido estrito, estamo-nos a referir às aquisições
derivadas e, portanto, ao ato em que se firma a vontade de transmitir e adquirir. O título
é o contrato de compra e venda e representa e traduz estas vontades, remete para a
vontade. O modo é o ato em que se concretiza essa vontade, a atribuição do direito real.
Pode ser a tradição da coisa, mas também pode ser através do registo.
E é isso que acontece no sistema do modo. Este em que dá prevalência à
aquisição em si mesma, a aquisição só se concretiza, só é protegida, quando há entrega
do bem (móveis simples) e quando há registo (imóveis e móveis equiparados). Aquilo
que concretiza a aquisição do direito real é a entrega ou o registo. Claro que há vontade
antes disto, mas este negócio jurídico não produz o efeito real que só é consumado com
a entrega ou com o registo, tem apenas efeitos obrigacionais, obriga a entregar o bem
ao adquirente ou a criar as condições para o registo da aquisição. O sistema do modo
dispensa o título, assenta no princípio da abstração porque a aquisição é independente
de título. A aquisição real opera pela entrega e pelo registo. No sistema do modo,
consagrado no Código Alemão, a produção do efeito real não depende senão da tradição
ou entrega, para as coisas móveis, e, para as imóveis, da inscrição no registo fundiário,
com o respetivo acordo de transmissão. Ao interesse da indiscutibilidade sacrifica-se o
interesse da regularidade, resolvendo-se o problema através da irrelevância liminar do
segundo.
Em Portugal vale o sistema do título, ou seja, a transmissão é uma consequência
da declaração de vontade do transmitente e adquirente, é o encontro das vontades que
dá origem à transmissão do direito real – artigo 408.º nº 1. Daqui decorre que é o
contrato que dá origem à transmissão. Transmite-se com a simples declaração de
vontades, não é necessária a entrega da coisa. A transmissão da coisa está integrada na
declaração negocial, a transmissão de direito real é uma consequência automática da
declaração translativa e aquisitiva. Diferentemente do sistema do modo, o negócio,
entre nós, produz simultaneamente efeitos reais e obrigacionais. Em primeiro lugar,
efeitos reais porque o direito real transmite-se imediatamente; efeitos obrigacionais
porque implica a entrega da coisa que decorre do acordo de vontades, é uma obrigação
inseparável do negócio translativo, mas que não se confunde. Entre nós, na França, na
Itália, entre outros, exige-se e basta para que o jus in re se transmita ou constitua sobre
a coisa o ato pelo qual se estabelece a vontade dessa transferência ou dessa
constituição. Ao interesse da regularidade sacrifica-se, em princípio, o interesse da
indiscutibilidade. Em suma, os negócios com eficácia real não são negócios abstratos –

38
“Título de aquisição (titulus adquirendi) ou título (...) tem antes o sentido de fundamento jurídico ou de
causa que justifica a aquisição, podendo abranger, em princípio, todas as razões em que se funda a
aquisição de um jus in re, quer se trate de lei, quer de sentença, quer de ato jurídico, unilateral ou
contratual” – Orlando de Carvalho.

75
são negócios causais, como, em regra, todos os negócios jurídicos, implicando a
insubsistência deles a insubsistência daquela eficácia real.
Em Espanha, por exemplo, há uma dupla dependência, são necessárias a
declaração e a entrega da coisa. O negócio tem de ser regular e é necessária também a
entrega ou o registo. Este sistema em que o compromisso entre o interesse de
regularidade e o interesse de indiscutibilidade se obtém através de uma dupla
dependência do efeito real – dependência do título e dependência do modo – é ainda
hoje seguido por várias legislações, designadamente a espanhola que requer, como se
disse, nas aquisições de direitos reais que se fundam em contrato, não apenas que este
contrato seja válido, mas ainda que se verifique a entrega da coisa (tradição), tanto para
as coisas móveis como para as coisas imóveis.
É claro que o nosso sistema admite contemporizações que o aproximam, em
parte, do sistema do modo: nomeadamente a tutela dos terceiros de boa fé, para efeitos
de registo. Há uma aquisição independentemente da invalidade do negócio jurídico. É
uma cedência ao sistema do modo. Por outro lado, temos manifestações do sistema de
título e modo. Por exemplo, no artigo 947.º nº 2. No âmbito do penhor (artigo 669.º)
que é um direito real, só produz os seus efeitos com a entrega, mais a vontade. Por
exemplo, no penhor de direitos, concretamente de crédito (artigo 681.º nº 2), temos
aqui um modo que é a notificação, é algo que está para além da vontade.

Restrições ao princípio da causalidade

Se olharmos para o princípio da causalidade, não pensamos nas partes porque,


devendo ter conhecimento da regularidade do ato em que participam, acabam por
sofrer as consequências desse princípio; a questão coloca-se relativamente a terceiros,
ou seja, àqueles que não intervêm no negócio inválido, na medida em que a invalidade
não permite que se desencadeiem na esfera do adquirente os efeitos dos direitos reais,
a eventual situação dos bens que possa ter lugar entre o adquirente que toma posse
inválida relativamente a um terceiro, em princípio, essa relação seria afetada pela força
da falta de legitimidade, o negócio em que intervém o terceiro seria inválido por falta
de legitimidade.
Entre nós há dois princípios que, de certa forma, constituem uma derrogação,
não podemos falar verdadeiramente de exceção, mas há dois tipos de princípios ou de
interesses que estão na origem do facto de o nosso sistema da causalidade admitir
restrições, tem sempre a ver com terceiros, como se compreende, porque entre as
partes esse problema da proteção não se coloca, porque têm ou devem ter
conhecimento da invalidade. Dentro destes terceiros há dois grupos: o grupo em que se
protege a boa fé, é a ignorância de que anteriormente houve um negócio inválido,
ignorância de que esse negócio é afetado por invalidade anterior; o segundo é a
segurança do comércio jurídico, é um interesse geral, um valor jurídico a ter em conta,
se não houvesse confiança no sistema jurídico gerar-se-ia uma enorme desconfiança em
matéria de circulação de bens. Há este interesse de garantir que os bens circulem e que
essa circulação não seja sempre afetada. É por isso que, verdadeiramente, o que está
aqui em causa é uma determinação de certo tipo de invalidades nuns casos para
proteger o comércio jurídico, noutros casos para proteger terceiros de boa fé. É aí que
a nossa lei consagra algumas restrições ao princípio da causalidade, que é admitir a
aquisição de direitos reais, muito embora o negócio não seja válido, ou seja, não

76
obstante a invalidade do título. Mas são apenas certas invalidades do título, não são
todas.
Os artigos 243.º e 291.º39 têm em comum a noção de terceiro e a ideia de boa
fé. Sabemos que terceiro aqui são aqueles que se enquadram na cadeia linear de
transmissões em que as posteriores aquisições são afetadas pelas invalidades das
anteriores. Num sistema de título (ideia de título no âmbito negocial, em sentido
estrito), sabemos que os terceiros, para este efeito, são aqueles que são afetados, mas
só são protegidos se estiverem de boa fé – ignorância de que os negócios anteriores e o
negócio em que intervêm é inválido. No artigo 243.º, o terceiro é protegido
relativamente à simulação de negócio terceiro, a boa fé é a ignorância de que qualquer
dos negócios anteriores era simulado. Por outro lado, e por comparação ao artigo 291.º,
é irrelevante se o terceiro adquire de forma onerosa ou gratuita. Este artigo 291.º é mais
longo e contém mais requisitos, designadamente abrangendo outros vícios para além
da simulação, nomeadamente vícios substanciais e de forma, aqui já tem de adquirir de
forma onerosa. Ainda há um requisito complementar que não existe no artigo 243.º em
que a tutela é imediata – no artigo 291.º ainda há uma moratória de 3 anos.
Relativamente ao artigo 291.º, decorre da letra da lei que os negócios inexistentes não
são cobertos, não há uma relação juridicamente relevante, interrompe-se a cadeia de
transmissões. Quanto à questão da ineficácia, muito embora a lei proteja os terceiros
de boa fé, no entanto há um regime específico relativamente à eficácia, mas está fora
dela a tutela dos terceiros de boa fé, o artigo 291.º também cobre a simulação, mas
havendo uma tutela mais específica e benéfica para o terceiro de boa fé claro que se
deve aplicar. Resumindo, os negócios ineficazes e inexistentes estão fora do âmbito do
artigo 291.º.
O outro grupo de restrições tem a ver com a tutela do comércio jurídico real.
Essa tutela está limitada aos imóveis. Isso decorre do Código do Registo Predial
(doravante CRP), cujo artigo 1.º diz “tendo em vista a segurança do comércio jurídico
imobiliária”. Temos um Código do Registo dos Imóveis de 1995 que ainda não está em
vigor por força de uma portaria. Começamos e acabamos a matéria no artigo 5.º do CRP,
porque é aqui que se consagra a principal norma que reflete esta ideia de segurança do

39
O conceito de terceiros, para efeitos de invocação da simulação (sobre o conceito de simulação ver a
nota de rodapé nº 18), é normalmente definido de forma a abranger quaisquer pessoas, titulares de uma
relação jurídica e que não sejam os próprios simuladores ou os seus herdeiros. O artigo 243.º consagra
expressamente a regra da inoponibilidade da simulação a terceiros de boa fé. A simulação é oponível a
quaisquer terceiros de boa fé, quer derivem os seus direitos de um ato oneroso, quer os que derivem de
um ato gratuito. As anulabilidades bem como as nulidades provenientes de causa diversa da simulação
são inoponíveis a terceiros de boa fé, desde que se verifiquem certos requisitos, constantes do artigo
291.º; a inoponibilidade da simulação não depende, porém, desses requisitos (tratar-se de bens imóveis
ou móveis sujeitos a registo; boa fé, entendida como desconhecimento, sem culpa, da causa da
invalidade; onerosidade da aquisição e seu registo; decurso de um prazo de três anos sobre o negócio),
pelo que há um regime especial da inoponibilidade da simulação a terceiros de boa fé (artigo 243.º), em
confronto com o regime geral da inoponibilidade das nulidades e anulabilidades (artigo 291.º).
Esse regime especial, previsto no artigo 243.º para a inoponibilidade da nulidade por simulação, dispensa
alguns dos requisitos previstos no regime geral do artigo 291.º: inclui aquisições a título oneroso ou
gratuito, não exige o registo da aquisição, é aplicável também a aquisições de bens móveis não sujeitos a
registo, dispensa o decurso do prazo de três anos referido no artigo 291.º nº 3, e protege também os
terceiros que, embora culposamente, desconheciam a simulação. O conceito de boa fé é enunciado no nº
2 do mesmo artigo 243.º, consistindo na ignorância da simulação ao tempo em que se adquiriram os
respetivos direitos. Não basta, para haver má fé, a cognoscibilidade da simulação ou a suspeita ou dúvida
sobre a sua existência.

77
comércio jurídico, que é a inoponibilidade dos negócios translativos de direitos reais
quando não registados a terceiros. Aqui um terceiro é algo diferente, é alguém que
recebe do mesmo autor direitos incompatíveis. Este artigo 5.º apenas opera se o
primeiro negócio for válido. Se não for válido, não há aquisição pelo primeiro terceiro e
a aquisição pelo segundo terceiro já é válida. No nº 4 da mesma norma, definem-se os
terceiros, são direitos total ou parcialmente incompatíveis que relevam, dada a
simultaneidade de direitos reais que podem existir sobre a mesma coisa. Esta regra da
oponibilidade (no nº 2 é excecionada em alguns casos, designadamente na usucapião),
está aqui em causa o facto de uma pessoa transmitir a outra uma coisa e depois
posteriormente constituir um direito incompatível em benefício de um terceiro sobre
essa mesma coisa. O segundo negócio é inválido, na medida em que se trata de direitos
incompatíveis há sempre um grau de ilegitimidade que afeta o negócio do terceiro, do
segundo adquirente. Tudo depende se a incompatibilidade é total ou parcial. O segundo
negócio padece sempre de uma ilegitimidade, o que sucede é que o terceiro ou segundo
adquirente será sempre afetado por uma invalidade decorrente de uma ilegitimidade
do transmitente – este é o plano substantivo do fenómeno: validade inicial e depois uma
transmissão inválida posterior. Aqui é que intervém o interesse da circulação, porque o
nosso ordenamento jurídico consagra o regime de registo, que agora é semi-obrigatório
(artigo 8.º-A).
Estes fenómenos de aplicação do artigo 5.º tendem a ser cada vez mais raros,
porque foi-se corrigindo sucessivamente e, hoje em dia, só é possível celebrar um
negócio, do ponto de vista formal, sobre imóveis se o transmitente o tiver registado em
seu nome, significa que depois há formas semiautomáticas de o adquirente também
registar (artigo 8.º). Independentemente de o regime apertar a malha à aplicação do
artigo 5.º, não se esgotam todas as hipóteses atualmente.
Porque é que a lei cria o registo? Basicamente para isto, para qualquer
interessado poder conhecer que direitos existem sobre o imóvel. Este sistema de registo
e o conhecimento que lhe está implícito é visto como um interesse indispensável à
ordem jurídica, estamos perante interesses de tutela geral que ultrapassam meros
interesses casuísticos. E aqui surgem algumas divergências no sentido de saber se o
terceiro, para se aplicar o artigo 5.º, tem de estar de boa ou má fé. Tomamos a posição
de que a aquisição é independente de boa ou má fé, é um interesse que ultrapassa a
casuística do concreto caso, daí que se entenda que o terceiro adquire
independentemente de estar de boa fé. Se introduzíssemos o requisito da boa fé,
facilmente se provava que o terceiro sabia da anterior aquisição, criada essa dúvida não
havia boa fé. A prova de facto negativo é quase impossível. Deixava de ter aplicação a
regra da segurança jurídica, era praticamente impossível o terceiro provar que
desconhecia. O regime visa tornar cognoscível quais os direitos que versam sobre certa
coisa e os respetivos titulares. A lei atribui ao registo um duplo efeito, uma dupla função
que é um corolário da ideia de segurança jurídica: só os factos registados é que são
cognoscíveis ou só os factos registáveis é que dão a obrigação de conhecer, na medida
em que é um sistema público, de acesso livre, isto significa que só são cognoscíveis à luz
deste sistema de registo os direitos registados, só esses é que são oponíveis a terceiros
ou a todos os interessados; inversamente, os direitos não registados consideram-se
inoponíveis face a terceiros. Se um direito não registado não é oponível, significa que,
se o segundo adquirente registar primeiro, já pode opor ao anterior e o direito deste
cai, não é que tenha adquirido validamente, é uma questão de eficácia. Tudo se passa

78
como se o terceiro adquirisse de quem era dono, porque agora estamos no âmbito da
eficácia, não basta ter as coisas, é preciso opô-las a terceiro. Daí que a derrogação do
princípio da causalidade decorra de uma ilegitimidade do negócio anterior que era
válido.
Há um outro aspeto que pode prender-se com a causalidade e está relacionada
com a venda a retro, prevista nos artigos 927.º e seguintes. Se as partes estipularem que
é uma venda a retro, significa que o vendedor pode resolver o ato. A lei refere-se ao
prazo de resolução, limita-o a 5 anos, embora possa ser renovado. No artigo 932.º, a
cláusula pode ser oponível a terceiros se for registada. Porque se fala disto a propósito
do princípio da causalidade? No Código de Seabra, entendia-se como proibido. É um
negócio translativo de direitos reais. Não obstante ser legal a sua celebração, não deixa
de ser um negócio com possíveis efeitos indiretos, fraudulentos à lei. Porquê? Quando
falamos na venda a retro, alguém vende uma coisa, mas vislumbra a possibilidade de
voltar a querê-la. Mas este negócio tem efeitos translativos, é uma venda, adquire-se o
direito real correspondente, simplesmente sobre o direito do adquirente está suspensa
a possibilidade de resolução convencionada, ou seja, durante o prazo o vendedor pode
reaver a coisa. É um negócio oneroso, simplesmente pode ser utilizado com fins de
garantia ou de administração, isso supõe um conhecimento das circunstâncias. Sucede
que nos direitos reais de garantia há uma regra importante que é a proibição do pacto
comissório, não se pode convencionar que o credor ficará com a coisa se o devedor não
pagar, encerra uma possibilidade de enriquecimento sem justa causa. Acontece que a
venda a retro pode servir de meio a ultrapassar esta proibição. Isto, à partida, pode ser
lesivo do devedor e normalmente é-o. O devedor normal está sempre numa situação de
inferioridade porque precisa do dinheiro. Isto significa que um credor com poucos
escrúpulos pode, em vez de exigir a garantia da hipoteca, exigir uma venda a retro e
pode acontecer que, se o devedor não pagar, o credor fica com a coisa, simplesmente o
valor do empréstimo agora chamado preço pode ser muito inferior ao valor da coisa. É
para evitar esta fraude à lei que teremos de indagar se no caso da venda à retro está
uma venda com fins de garantia ou não. Se não estiver, não se levanta problema de
fraude à lei; se pelo contrário consistir num empréstimo, a venda é nula por fraude à lei.

5.8. O princípio da consensualidade

Encontra-se previsto no artigo 408.º nº 1. Já vimos a propósito do princípio da


causalidade que a transferência de direitos reais se dá por mero efeito do contrato.
Perfilha a transmissão ou constituição solo consensu, isto é, dependente do mero acordo
de vontades. Desta norma decorre que a tal transmissão (aquisição derivada) opera por
mero efeito do contrato, basta a reivindicação do título para se produzir o direito real.
Isto significa que o contrato, que é um negócio obrigacional, produz não só efeitos
obrigacionais, como efeitos reais. Estamos a falar dos negócios reais quoad effectum,
podemos concluir que o negócio obrigacional que está na origem do direito real produz
efeitos reais, não há nenhuma separação. Em rigor, entre nós, do ponto de vista
constitutivo ou translativo, não há qualquer distinção entre o negócio obrigacional e o
efeito real. Tem de ser um contrato válido, verificado um negócio translativo produz de
imediato um efeito real. Esse negócio tem de ser válido – tem a ver com a substância e
forma do negócio, pelo que os vícios desta natureza obstam à transmissão do direito
real. Quando se diz que o direito real se produz por mero efeito do contrato diz-se que

79
precisa de ser válido. Por outras palavras, o contrato que é fonte de efeitos obrigacionais
é a própria fonte dos efeitos reais, efeitos que só não virão, consequentemente, a
produzir-se, não havendo outra causa de suspensão desses efeitos, desde que o
contrato, como tal, seja inválido.
Não há nenhum ato intermédio entre o negócio obrigacional e o efeito real, daí
dizer-se que o nosso sistema é um sistema de título. Contudo, há alguns casos em que
isso não se verifica, para além da vontade negocial, é necessário um modo, um ato de
concretização dessa vontade, o que significa que não é uma consequência imediata. Já
falámos nisso a propósito dos sistemas: o nosso sistema é de título, mas é compatível
com algumas derrogações. Nos termos do artigo 947.º nº 2, na doação de bens móveis
(o chamado dom manual), é necessária a sua entrega. Também a propósito da
constituição do penhor, para a constituição do direito real, no penhor de direitos é
necessária a notificação (artigo 681.º nº 2). Também na hipoteca em que é necessário o
registo. E depois os títulos de crédito em que é necessária a traditio.
Para efeitos do artigo 408.º, há a distinção do princípio da consensualidade para
efeitos de negócio jurídico. Na norma do artigo 219.º temos o princípio da liberdade de
forma, ausência de obrigatoriedade de forma especial para a celebração de negócios
jurídicos. Aqui o consensualismo opõe-se a formalismo, na aceção de mera ausência de
forma. A este propósito importa ver o artigo 80.º do Código do Notariado em que se
exige um documento público, enumerando os atos suscetíveis a escritura pública. Antes
todos os imóveis estavam sujeitos a escritura pública. Importa não confundir, portanto,
o princípio da consensualidade do artigo 408.º com o artigo 219.º.

5.9. O princípio da publicidade

Já falámos neste princípio no contexto das restrições à causalidade, é um


antídoto ou um contrapeso relativamente ao princípio da consensualidade. Já se disse
que os direitos reais têm eficácia erga omnes, pelo que o direito das coisas deve ser
conhecido ou cognoscível das pessoas que virtualmente ele afete, designadamente de
terceiros. É esta tutela de terceiros que preside aos meios de publicidade estabelecidos
por lei, em especial ao instituto do registo nas suas várias manifestações. A esse
propósito vimos qual era a necessidade ou interesse que o registo visava, enunciado
logo no artigo 1.º do Código do Registo Predial que é a segurança do comércio. Isso
significa que este interesse ligado à publicidade e segurança do comércio imobiliário não
deixa de compensar a eficácia translativa que decorre dos princípios da causalidade e
consensualidade, uma vez que o nosso sistema é de título. Vimos a propósito desses
interesses que a lei limita aos terceiros para efeitos de registo e aos terceiros para
efeitos de boa fé, aqueles que têm um interesse direto sobre o domínio de determinado
bem, em relação a eles a lei estabeleceu um mecanismo de proteção. Atualmente essa
questão do registo só pode ser colocada em relação aos bens imóveis, pois o Código do
Registo dos Bens Móveis ainda não entrou em vigor. A ideia de que o registo vem
contrabalançar a força ou eficácia quer da consensualidade, quer da publicidade
manifesta-se no facto de os direitos, não obstante a aplicação da consensualidade e
causalidade, se não forem registados os imóveis, não são oponíveis, não são eficazes
relativamente a terceiros.
Esta exigência de publicidade em determinados atos, designadamente atos
translativos sobre imóveis, não deixa de constituir um entrave (daí chamar-se

80
derrogação) ao princípio da causalidade e indiretamente ao princípio da
consensualidade. O registo, sendo um ónus relativo à eficácia dos negócios translativos
de direitos reais, pode paralisar a aplicação do princípio da causalidade e,
consequentemente, do princípio da consensualidade. O efeito tem natureza declarativa
com a única ressalva na questão da hipoteca que aqui surge como condição de validade
(artigos 687.º do CC e 6.º nº 2 do Código do Registo Predial). Assim, o registo não é
imprescindível à constituição, modificação ou extinção dos direitos inerentes às coisas
– não é, portanto, constitutivo –, visando apenas assegurar a sua publicidade em face
de terceiros. Há quem entenda que nas promessas com eficácia real, nos pactos com
eficácia real é preciso registo, há quem o entenda como registo constitutivo obrigatório,
mas o que está em causa verdadeiramente é a eficácia, e não a validade. Se não houver
registo do negócio, é válido, mas não é eficaz perante terceiros. Nos termos do artigo
7.º do Código de Registo Predial, o registo é presunção iuris tantum da pessoa em nome
do qual foi registado, presunção ilidível, porque o registo se faz com base no ato de
transmissão.
Há o efeito lateral a propósito dos terceiros de boa fé. Depois o efeito central
que decorre do artigo 5.º do Código do Registo Predial que se prende com a eficácia
perante terceiros. Aqui não se discutem duas questões que têm a ver com a aplicação
deste artigo 5.º, este artigo diz que os terceiros são os que adquirem do mesmo
transmitente direitos reais incompatíveis. Isto foi objeto de acórdãos de uniformização
de jurisprudência no Supremo Tribunal de Justiça. A questão que se coloca é saber se a
oponibilidade cede quando o terceiro está de má fé, ou seja, se o registo só é oponível
se o terceiro estiver de boa fé. A nível de jurisprudência houve modificação de acórdãos,
havia uns em que se exigia, outros posteriores em que se retirou isso. A modificação do
Código do Registo Predial levou a que não se aluda à boa fé, nem ao caráter oneroso
(que se alude no artigo 291.º do CC). Há quem entenda que o legislador quis afastar esse
regime. Se o terceiro sabe que houve uma venda anterior e inválida, deve ser premiado
por colaborar num ato que sabia que era ilícito? O que é que facilmente aconteceria? A
boa fé de terceiro seria posta em causa por meras declarações de testemunhas, dos
anteriores intervenientes e podia-se dizer, em última instância, que era uma boa fé
culposa e não merecia tutela. Podia-se introduzir facilmente uma não aplicação dos
interesses adjacentes ao artigo 5.º, caso a sua eficácia estivesse dependente da boa fé.
Ou pelo menos que o terceiro devia indagar se havia um ato anterior e, se não o fez, não
devia ser tutelado, o que deitaria por terra a segurança do comércio jurídico. É claro que
não se pode rejeitar de todo em todo esta ideia, mas só nos casos mais graves em que
o terceiro age com dolo especial, aí mesmo Orlando de Carvalho tinha algumas dúvidas.
Seriam casos limitados que entrariam eventualmente no abuso de direito. Vamos aplicar
à letra o que diz o artigo 5.º nº 4 que contém a noção de terceiro e vamos considerar
que, se adquire de má fé ou gratuitamente, deve prevalecer a segurança jurídica contra
os interesses específicos daquele negócio. Estas são as diferenças entre o registo
constitutivo e coletivo.
Uma outra classificação tem a ver com o caráter obrigatório ou facultativo. Entre
nós não se pode dizer que haja uma obrigatoriedade do registo, pois o negócio é válido
mesmo que não se o registe. Foram sendo introduzidas algumas normas no sentido de
conferir alguma obrigatoriedade ao registo. O artigo 8.º do Código do Registo Predial
fala da obrigatoriedade que às vezes pertence a terceiros ou a entidades que participam
no negócio. No mesmo diploma, estabelece-se o princípio do trato sucessivo (artigo

81
34.º), significa que nos atos sujeitos a registo é preciso que o transmitente tenha o ato
registado para o poder transmitir. Tudo isto concorre para a sua obrigatoriedade, pelo
menos indireta; só será obrigatório o registo quando for condição de validade.

6. Características dos direitos reais

As características dos direitos reais são corolários da natureza do direito real.


Também aqui há características que se ligam ao lado interno (ao facto de o direito das
coisas ser um poder direto e imediato) e características que se ligam ao lado externo (ao
facto de ele se impor à generalidade dos membros da comunidade jurídica).
Desdobramento do poder direto e imediato é a independência do direito em face
das pretensões positivas a que possa dar origem. Sendo o direito real um poder direto
e imediato sobre uma coisa significa que, se o direito for violado, é independente das
obrigações decorrentes dessa violação. É independente da indemnização a que tenha
direito eventualmente. Enquanto no direito de crédito é suposto um comportamento,
o cumprimento da obrigação por parte do devedor, aqui o poder direto é independente,
embora possa dar origem a um conjunto de pretensões, mas isso é para reintegrar o
direito, o que não descarateriza o poder direto e imediato.
Ligado ao lado externo é que as características têm uma aplicação mais evidente.
A sequela e prevalência dos direitos reais estabelecem uma diferenciação assinalável
entre os direitos de crédito e os direitos reais.
Quanto ao direito de sequela ou de seguimento, o titular do direito real tem o
direito de perseguir a coisa onde ela se encontra, designadamente reivindicando da
esfera de terceiro. É a faculdade de o titular perseguir o objeto onde quer que ele se
encontre, nomeadamente reivindicando-o de um terceiro adquirente. A sequela é um
corolário da eficácia erga omnes, se o direito real é oponível a quem quer que seja, se
alguém se apoderou do objeto, o titular pode segui-lo e reivindicá-lo. O mesmo não se
passa no direito de crédito, que tem uma relação intersubjetiva limitada e os terceiros
estão excluídos deste vínculo obrigacional. Designadamente nas obrigações de dare, se
A promete vender a B, mas depois vende a C, se A não cumprir, B não tem qualquer
direito à coisa, mas pode ter direito a indemnização. Isso não se passa com os direitos
reais, na medida em que a eficácia erga omnes permite ao titular perseguir a coisa,
pressupondo que não há transmissões válidas. No direito real, porque é um direito
absoluto, o titular pode vindicar o objeto de quem quer que se titule com um direito ou
situação de algum modo conflituante.
Nem sempre este direito de sequela é exequível, ou seja, há limites ao direito de
sequela. Todas as aquisições originárias são limites à sequela, porque temos um título
autónomo. Também a questão da tutela de terceiros de boa fé (artigos 243.º e 291.º),
o titular não pode perseguir a coisa, muito embora não tenha disposto validamente. E
depois também na questão do registo, no caso do registo declarativo, pois sendo este
condição de eficácia do direito em face de terceiros, a sua falta determina uma
paralisação da sequela e o direito não registado, ou registado depois, tem de ceder ao
direito registado ou registado antes.
A outra característica é a prevalência ou preferência, sendo que o professor
Liberal Fernandes prefere a noção de prevalência. Quando falamos na prevalência dos
direitos reais, convirá fazer uma distinção entre prevalência entre direitos reais e
direitos de crédito e prevalência entre direitos reais. Tendo uma eficácia erga omnes

82
(porque estamos no lado externo), o direito real prevalece sobre qualquer direito de
crédito e prevalece sobre os direitos reais posteriormente constituídos. Quando há
conflito entre direito real e direito de crédito, prevalece sempre o direito real, ainda que
o segundo seja anterior ao direito real. Temos uma prevalência sobre uma mera
pretensão relativamente a um poder direto e imediato sobre a coisa. Em suma, o direito
das coisas, como direito com eficácia erga omnes, é um direito que prevalece sobre
qualquer direito com eficácia relativa, mesmo constituído anteriormente, e sobre
qualquer outro direito das coisas constituído ulteriormente, que conflituem de algum
modo com ele.
Há exceções, nomeadamente no regime da locação, concretamente o
arrendamento, na medida em que, no artigo 1057.º, a lei mantém relativamente ao
novo titular do direito arrendado o arrendamento constituído anteriormente, vai
prevalecer sobre o direito real sobre esse prédio, ainda que seja posterior. Depois há
uma outra derrogação que tem a ver com o artigo 736.º (privilégios mobiliários gerais),
é um direito real de garantia, o que tem de especial é ter uma natureza obrigacional e
uma eficácia real. Já falámos na questão da compatibilidade no contexto dos direitos
reais de garantia, a lei gradua de acordo com certos critérios independentes do
momento da aquisição, são situações em que há uma derrogação à regra da prioridade
cronológica, porque os direitos são ordenados segundo critérios diferentes do momento
da aquisição. Temos uma situação em que um direito de crédito vai prevalecer sobre
um direito real. Por vezes, os privilégios estão moderados em termos de superioridade
ou hierarquia em relação a outros privilégios mobiliários especiais que são direitos reais,
a lei dá prioridade, no artigo 736.º, a um direito de crédito sobre um direito real. A regra
do registo afasta a regra da prioridade, o primeiro que adquirir não vai opor ao segundo.
Por outro lado, a questão da usucapião, a preferência também tem limites temporais,
na medida em que por usucapião se adquire um direito incompatível, a preferência
decorrente da primeira titularidade vai decair pela aquisição por usucapião que confere
uma titularidade incompatível. Nos termos do artigo 422.º (pactos de preferência), pode
o direito de preferência ter eficácia real e ser direito real de aquisição. É uma não
prevalência alheia ao momento de aquisição. Temos de incluir os direitos de preferência
seja de natureza convencional, com os com eficácia real que são direitos reais. Um
direito com eficácia real vai ceder perante um direito de preferência legal, ainda que
este seja posterior. Depois a propósito do direito de retenção, outro direito real de
garantia, o artigo 759.º estabelece uma exceção à prioridade cronológica. De seguida,
temos um grande número de exceções nos direitos reais de garantia, na hierarquização
dos privilégios. A lei gradua-os em primeiro lugar, uns são mais importantes do que
outros. Havendo conflito entre privilégios prevalece essa graduação (artigos 745.º, 746.º
e 747.º).

7. Os direitos reais em geral


7.1. Classificação

Os direitos reais apresentam-se em três modalidades distintas: direitos reais de


gozo, de garantia e de aquisição. Mas Orlando de Carvalho ensaia uma classificação mais
atenta à função que desempenham essas categorias de direitos dentro do projeto geral
de uma ordenação do domínio: direitos reais finais – os que permitem já um desfrute
das coisas (os direitos reais de utilização ou de gozo); e os direitos reais instrumentais –

83
os que não permitem um desfrute das coisas, mas são apenas instrumento para
assegurar outros direitos (os direitos reais de proteção ou de garantia) ou para assegurar
a aquisição de outros direitos (os direitos reais de aquisição).
É claro que só os direitos de utilização ou de gozo organizam estavelmente as
infraestruturas socioeconómicas ou realizam verdadeiramente a ordenação do domínio,
só eles têm uma existência não condicionada por direitos diferentes, daí que também
se designem por direitos reais principais. Diferentemente, os direitos reais de garantia
dependem da existência de um crédito e os direitos reais de aquisição preordenam-se a
outros distintos jura in re, daí se designando por direitos reais acessórios.
Todos estes direitos estão na órbita do direito de propriedade porque são suas
derivações, todos eles têm sempre na sua origem um direito de propriedade e são
constituídos a partir do direito de propriedade, daí a importância deste. A ordenação
dominial definitiva realiza-se através dos jura in re reconhecidos pela lei, que constituem
uma aproximação, derivação ou expressão da forma plena de domínio sobre os bens,
quer dizer, do direito de propriedade tout court – a raiz e o modelo de todo o direito das
coisas, sendo com ele que se cumpre a função de organizar estavelmente as
infraestruturas socioeconómicas.

Os direitos de gozo permitem a fruição efetiva da coisa, do bem. A fruição é a


apropriação dos frutos. Estes direitos reais de gozo têm existência própria, por isso é
que o segundo grupo de direitos reais é designado por direitos instrumentais. Todos eles
dependem do direito de propriedade, mas os direitos de gozo têm autonomia, ou seja,
não dependem de outros direitos, exceto o direito de propriedade. Porque é que os
outros são acessórios? Os direitos reais de garantia estão dependentes do direito de
crédito, existem por causa dele e extinguem-se quando ele se extingue. Os direitos reais
de aquisição, porque estão associados a outros direitos reais, esgotam-se quando essa
aquisição se consumar, estão dependentes de outro direito real. Os direitos de garantia
só são exercidos se houver incumprimento, aqui a dependência é maior, pois a sua
eficácia está dependente do incumprimento. Todos os direitos de gozo (excluindo o
direito da propriedade) são jura in re aliena, quer dizer, direitos constituídos sobre uma
coisa de outrem e a partir, em definitivo, da propriedade de outrem, que funciona, em
princípio, como direito progenitor. A propriedade é sempre o direito matriz, pois é ela
que suporta os diversos escalões.
São casos especiais o penhor de coisa em que se pode atribuir ao credor um
direito de usar a coisa.
São direitos reais de aquisição os pactos de preferência com eficácia real, as
preferências reais, que conferem ao titular o direito de, em consequência, usar a coisa
com esse poder. Conferem poder de adquirir posteriormente o direito real em
consequência desse direito real, é um direito cujo exercício permite adquirir outro. Na
liberdade negocial, não há um poder específico de aquisição. Aqui há um poder
específico com base no qual se pode adquirir um direito real.
Os direitos reais de garantia são acessórios dos direitos de crédito e estamos
perante um direito que cabe aos credores, que é constituído em benefício dos credores.
O exemplo paradigmático é a hipoteca. Constituído um direito real de garantia, só em
caso de incumprimento é que é exercido, confere ao titular/credor o direito de se fazer
pagar pelo valor do seu crédito sobre bens ou rendimentos do devedor ou de terceiro,
esse pagamento é feito com preferência sobre os demais credores que não tenham

84
garantias, ou que tenham garantias obrigacionais, ou que tenham garantias reais
adquiridas posteriormente. É esta preferência no pagamento que constitui o licere dos
direitos reais de garantia, porque sem ele qualquer credor também goza do direito de
se fazer pagar, mas está sujeito à concorrência dos outros credores.
Quer os direitos reais de garantia, quer os direitos reais de aquisição também
concorrem para a ordenação do domínio. Onde essa ordenação é mais imediata e direta
é nos direitos de gozo. Mas os de aquisição estão dirigidos à mudança de titularidade e,
nessa perspetiva de alteridade negocial, não deixam de contribuir para a organização
dominial.

7.2. O direito de propriedade: conteúdo, modalidades, restrições, meios de defesa

Os direitos reais de gozo são os únicos versados no Livro III do Código Civil,
expressamente relativo ao direito das coisas. O direito que surge logicamente à cabeça
é o direito de propriedade, que constitui o direito de gozo por excelência.
A lei não o define, embora estabeleça no artigo 1305.º o seu conteúdo. Todos os
direitos estão sujeitos a restrições. Quando se fala em disposição, fala-se ainda em
destruição. O artigo 1305.º com este poder pleno e exclusivo aponta para o facto de o
direito de propriedade se caracterizar pela indeterminação dos poderes, é dada pela
natureza do objeto.
Por outro lado, acentua a elasticidade do direito de propriedade – é um direito
a partir do qual se podem constituir outros direitos e admite contrações. É um poder
perpétuo, significa que não se extingue pelo não uso; já os direitos reais de gozo
extinguem-se pelo não uso.
Quanto às formas de aquisição, há formas originárias, derivadas, formas
específicas de aquisição de bens incorpóreos.
Quanto às modalidades, o direito de propriedade (artigo 1307.º) pode ser
temporário (constituído a termo) e resolúvel (sujeito a uma condição resolutiva). Um
dos casos mais evidentes é o direito de superfície. O nº 2 da mesma norma estabelece
uma taxatividade e são aplicadas as normas da resolução (artigos 272.º e seguintes).
Não há taxatividade para a propriedade resolúvel.
Como o artigo 1305.º diz “dentro dos limites da lei”. Há restrições de Direito
Público – artigos 1308.º e 1309.º (expropriação e requisição), são institutos de Direito
Público que são limites ao direito de propriedade. Depois também nos artigos 1346.º e
seguintes, há limites decorrentes de relações de vizinhança.
Quanto aos meios de defesa da propriedade, temos a legítima defesa e a ação
direta, as ações de prevenção, ação de reivindicação e ações de simples apreciação
quando alguém contesta a titularidade de um direito real.

O Código Civil regula os limites ao direito de propriedade, refere-se,


concretamente, aos limites materiais (artigo 1344.º). Temos a questão dos imóveis sem
dono conhecido que pertencem ao Estado (1345.º). O Decreto-Lei nº 15/2019, de 21 de
janeiro, regula o processo de reconhecimento da ausência de dono do imóvel, há aqui
um certo procedimento, são normas de Direito Administrativo, é uma questão
procedimental apenas.
Os artigos 1346.º a 1352.º consagram os limites ao direito de uso, de fruição dos
imóveis em homenagem à tutela dos imóveis contíguos, são limites de concordância, na

85
medida em que a tutela do direito de propriedade implica limitações ao exercício de
outros direitos com que possam conflituar. São os limites dos prédios contíguos,
vizinhos, é a questão do fumo, ruído, escavações.
No artigo 1349.º, temos um direito com origem legal, é um direito de servidão
legal. Estaremos ou não perante um direito potestativo, poderá ser duvidoso, mas de
facto é uma servidão.
Outro direito que tem a ver com o exercício do direito de propriedade é o direito
de demarcação e de tapagem. Em relação ao primeiro, há faculdades, direitos com
origem legal, porque o proprietário (artigo 1353.º) pode obrigar à demarcação. A lei
quer aqui duas coisas: que os vizinhos se entendam, façam a demarcação por acordo, e,
se houver despesas, que estas sejam partilhadas. Acabará por se justificar, por ser uma
obrigação estabelecida na lei que previne a conflitualidade e garante a paz social. O
direito de tapagem é o direito de murar, valar uma propriedade. Também aqui há um
direito, uma presunção de comunhão. Diz o artigo 1358.º que é uma presunção de
comunhão, aqui a lei acaba por impor o regime de comparticipação, para evitar
conflitos. Muitas vezes é difícil precisar onde acaba um prédio e começa o outro. Por
outro lado, muitas vezes implica despesas a conservação destes muros ou sebes, a lei
impõe uma compropriedade à qual está associada uma corresponsabilidade, quanto
mais não seja, patrimonial.
Seguem-se limites no artigo 1360.º relacionados com as distâncias entre prédios.
O que está aqui em causa é a distância que, nos termos desta norma, é um metro e
meio. Não se limita a construção, mas sim a distância, por razões de segurança, um
pouco desatualizada. As pessoas, se têm um prédio, podem construir na extrema, o que
não podem é abrir janelas, portas, etc., tem de ser recuado. Na prática, significa que as
pessoas têm de construir a metro e meio, para também preservar alguma intimidade.
São esses interesses que justificam essa distância. O artigo seguinte isenta esta distância
se os prédios forem separados por caminho público.
Há uma questão que se está a colocar nos tribunais: discute-se se este limite de
metro e meio tem de ser observado se o prédio do vizinho pertencer ao mesmo dono.
Nos termos do artigo 1362.º, a servidão de vistas é o direito de abrir ou manter uma
janela ou uma varanda a uma distância menor do que 1,5m. Pode ser adquirido por
usucapião ou por contrato, eventualmente por acessão. E se o prédio vizinho for do
mesmo dono? As câmaras municipais têm dito que não. O argumento que se pode
invocar é de que, se quiser vender o prédio, está a introduzir um limite ao comprador.
Pode fazê-lo ou não? É admissível. Ainda que o prédio seja alienado, pode sê-lo com um
encargo, terá que respeitar a servidão de vistas. Em regra geral, ou é por acordo ou por
usucapião, que supõe um acordo tácito durante 20 anos. Embora a lei fale em prédio
vizinho, supõe que seja dono diferente, que será a situação normal. Os artigos 1363.º e
1364.º acabam por ser uma exceção da regra da distância, a lei especifica as medidas,
serão aberturas muito mais pequenas, a visibilidade já não é tanta, nem o risco de
atravessar para o prédio vizinho.
Depois surge uma nova servidão no artigo 1365.º - o estilicídio. A lei quer impedir
que caia no prédio vizinho, obrigando à recolha/canalização das águas onde não há
limite, se a queda for natural por gravidade já há o limite de meio metro. A servidão de
estilicídio é o direito de manter o limite do telhado a menos de meio metro da extrema.
No artigo 1370.º, a lei estabelece mais uma situação de comunhão, que, por
norma, é sempre forçada. É mais uma situação excecional de comunhão em que a lei

86
impõe, por questão de conflitualidade, são construções que podem afetar a segurança
dos dois prédios e a melhor forma de salvaguardar a responsabilização pelas obras é
esta.
Um regime diferente é o do fracionamento e do parcelamento, são regimes de
direito de propriedade algo restritivos. O que estão aqui em causa são interesses ligados
à rentabilização da atividade agrícola. Essa rentabilização supõe áreas mínimas, o
excesso de fragmentação desmotiva. De forma a aumentar a rentabilidade da terra
promove-se o aumento das áreas de cultivo que se pretende com o emparcelamento e
com a proibição do fracionamento. O emparcelamento supõe uma delimitação, está
regulado em legislação especial, delimitação de uma área e depois é feito um inventário
dos proprietários e das frações que tenham nessa área e o objetivo é fazer com que cada
proprietário mantenha mais ou menos a mesma área que tinha antes do
emparcelamento com o menor número de propriedades. Pretende-se que se
mantenham os proprietários, mas que tenham apenas uma cada um, mantendo a
mesma área, mas mais concentrada. Nos termos do artigo 1376.º, quem tem um terreno
e quer dividi-lo, por exemplo, com os filhos em herança, não pode fazê-lo se daí
resultarem unidades inferiores ao mínimo legal. A Portaria nº 219/2016 vem substituir
uma de 1970 e fixa as unidades mínimas de cultura, mas são maiores do que eram nos
anos 70. Estas unidades não são iguais em todo o país. Confere aos vizinhos direito de
preferência a alineação. Isto não se aplica se a divisão tiver fins de construção (artigo
1377.º). A lei diz que são nulos os atos de fracionamento contrários ao disposto nestas
normas (artigo 1379.º). Simplesmente, aqui compreende-se que, em nome da tutela do
direito de propriedade, a lei estabelece um regime de invalidades misto (artigo 1379º),
com duas particularidades: há um prazo para invocar a anulabilidade e nem todos os
interessados a podem invocar, são derrogações ao regime geral. O Ministério Público
também pode invocar a nulidade, é o garante de que se incentive a concentração da
propriedade rústica. Mas também os vizinhos preferentes. A ação de anulação caduca
no fim de 3 anos.

Compropriedade e comunhão

São modalidades da propriedade:


- compropriedade;
- comunhão.

A nossa lei é um pouco imprecisa quanto à distinção entre compropriedade e


comunhão (matéria das combinações patrimoniais). A lei não define nem uma, nem
outra, daí muitas vezes utilizar como sinónimos. O certo é que quer a comunhão, quer
a propriedade são tipos de direitos de propriedade, mas que têm conteúdos distintos.
Têm de semelhante a contitularidade do mesmo objeto – pluralidade de sujeito e
unidade de objeto. O que as distingue: relativamente à compropriedade, há muitas
teorias, entre nós tem sido dominante a que concebe a compropriedade em que cada
comproprietário tem a quota ideal sobre a coisa. O objeto da propriedade é 1/5 ou 1/3
sobre a coisa. Significa que há uma contitularidade sobre o mesmo bem e essa quota
não está determinada, quando se quiser saber, põe-se fim através da ação de divisão da
coisa comum que é uma faculdade prevista no artigo 1412.º. Se forem 2 ou 3
comproprietários de um automóvel, como fazem a divisão? Vende-se e depois distribui-

87
se o dinheiro. Esta é a posição comum maioritária entre nós. Se lermos o artigo 1403.º,
parece que há um direito sobre a coisa – “direito de propriedade”. Mas no nº 2 diz-se
“direitos dos consortes”. Ficamos sem saber se há um único direito ou se há vários.
Há muitas noções de compropriedade, mas vamos adotar a chamada tradicional
que a entende como sendo uma contitularidade de direitos de propriedade sobre a
mesma coisa. Quer na compropriedade, quer na comunhão temos pressupostos
idênticos, que é o objeto ser a mesma coisa na titularidade de mais do que uma pessoa.
Independentemente das teorias, na compropriedade há uma quota ideal, na comunhão
entende-se que há um único direito encabeçado por um conjunto de titulares. Isto
depois reflete-se no respetivo regime.
No que diz respeito apenas às relações dominiais, em que se manifestam e como
essas diferenças? Isto está no Código Civil, designadamente no âmbito da
compropriedade – artigos 1403.º e seguintes. Em primeiro lugar, a lei consagra no artigo
1409.º um direito de preferência de cada um dos comproprietários em caso de venda
ou dação em cumprimento, ou seja, negócios onerosos que tenham por objeto a quota
ideal. Outro facto relevante é qualquer dos comproprietários poder pedir a divisão da
compropriedade e não do objeto. Mas importa distinguir as coisas divisíveis e as coisas
indivisíveis. Quando a coisa é divisível, facilmente se reconhece a possibilidade de o bem
ser dividido em parcelas, extintas as quotas, extingue-se a compropriedade na medida
em que cada pessoa tem um direito de propriedade sobre uma coisa autónoma do
ponto de vista jurídico. Se a coisa é indivisível, não pode haver divisão física, faz-se em
termos patrimoniais, divide-se o valor. São estas características, este direito de divisão
e a preferência legal que cada comproprietário tem relativamente à disposição onerosa.
Quando este direito de preferência seja violado, quando aliena uma quota sem notificar
e dar preferência aos comproprietários, estes através da ação de preferência podem
fazer caducar o negócio celebrado com terceiro e adquirirem a quota objeto de
alienação.
Na comunhão, há uma contitularidade também, mas os contitulares têm um
único direito sobre o bem. Compreende-se que são situações mais restritivas, aqui não
há um direito de divisão, há um direito sobre todo o património e compreende-se que
seja mais limitada do que é a compropriedade, que depende apenas da vontade das
partes. As situações de comunhão não estão taxativamente previstas na lei, mas a sua
classificação só é possível quando haja uma causa que determina esse regime. Esse
regime de relativa indivisibilidade tem como objetivo promover, garantir que os
interesses subjacentes sejam satisfeitos. No caso do património dos cônjuges, há uma
comunhão, porque na perspetiva do legislador é a melhor forma de proteger os
interesses patrimoniais do agregado familiar. Na propriedade horizontal, muito embora
a lei fale de compropriedade, consagra um regime de comunhão para obrigar que todos
os condóminos contribuam para as despesas, há um fim comum. Por isso a divisão só é
possível quando se extingue a causa que justifica a comunhão – quando há divórcio; na
propriedade horizontal quando o condómino aliene a fração, na medida em que há
correspondência necessária entre partes comuns e fração. De acordo com os artigos
1414.º e seguintes, na propriedade horizontal temos dois direitos de propriedade de
natureza diferente – direito sobre a fração e direito sobre a parte comum. Este direito
de comunhão obriga cada proprietário da fração a participar na gestão e administração
das coisas comuns. A esta ligação necessária entre a propriedade sobre a fração e as
partes comuns, esta coexistência física e social, a lei quer estabelecer aí uma certa

88
obrigação de fim que é garantir as despesas, para isso estabelece um regime de
comunhão em que a pessoa não pode sair da comunhão enquanto for proprietário
daquela fração e há uma obrigação legal que diz que não é possível a pessoa desobrigar-
se enquanto não alienar a fração.
Por outras palavras, a comunhão caracteriza-se por dois ou mais titulares terem
um único direito sobre o mesmo bem. Na compropriedade, são vários titulares sobre
vários direitos das quotas da mesma coisa. A lei tem regras relativas à compropriedade
e relativamente à comunhão é omissa. Existe a comunhão de adquiridos no âmbito do
casamento. Esta unidade jurídica tem como objetivo proteger os interesses patrimoniais
da família. A existência de um direito significa que a conflitualidade é muito mais
reduzida, há um objetivo comum que é proteger a unidade da família. Só se acaba ao
dissolver-se a família. Até lá a comunhão impõe-se em homenagem ao fim. E daí dizer-
se que, não obstante a lei dizer uma coisa e depois outra no número seguinte, não
invalida que se devam distinguir as situações de compropriedade e comunhão. Nas
primeiras, pode-se dividir a todo o tempo e, na comunhão, não. Isso é relevante na
propriedade horizontal, em que temos um regime de partes comuns para obrigar todos
os condóminos a participar nas despesas. A lei obriga, impõe a todos os condóminos a
propriedade sobre as partes comuns, quer queiram, quer não. Isso decorre dos artigos
1420.º e 1423.º. Com esta unidade é que há uma vinculação. Na propriedade horizontal,
a lei subordina a relação à prossecução desse objetivo de conservar o prédio, etc.
Enquanto a pessoa vive lá, está obrigada a prosseguir esse fim. Só pode deixar de o fazer
se alienar a sua fração.

7.3. Direito de usufruto (breve referência)

A lei regula primeiro o direito de propriedade e depois vem regulando os direitos


reais menores de gozo, porque têm um conteúdo mais restrito e limitado do que a
propriedade. Têm de estar previstos na lei, tal como os direitos reais de garantia. Por
outro lado, não só a respetiva previsão como o conteúdo essencial, daí que as partes
tenham uma liberdade muito limitada relativamente à modelação dos direitos reais,
qualquer um dos três. Referimo-nos aos limites legais normativos. Significa que temos
de atender ao que diz a lei. A ordenação que a lei estabelece relativamente aos direitos
de gozo é uma indicação de ordem decrescente do respetivo conteúdo, são as
faculdades e poderes que conferem ao titular por ordem decrescente. O que mais
confere é o direito do usufruto, a seguir ao direito de propriedade – artigo 1439.º. O
usufruto, uso e habitação são semelhantes e o regime é próximo, daí a aglutinação no
mesmo título destes 3 direitos.
Há que fazer uma distinção entre dois tipos de normas: as normas que definem,
limitam e caracterizam este direito e que são imperativas e outras normas em que a lei
confere alguma liberdade ou faculdade ao titular. Contudo, esta liberdade não vai ao
ponto de as partes poderem fugir ao modelo legal. A lei desenha um certo modelo e
dentro desse confere maior ou menor liberdade com respeito por esses limites
estruturantes.
O direito de usufruto (artigo 1439.º40) é um direito de gozar plena e
temporariamente uma coisa sem alterar a sua forma e substância. Pode incidir sobre

40
Uma das normas mais importantes é esta primeira do artigo 1439.º. Temos aqui duas notas: a natureza
temporária do usufruto e a sua natureza plena com limite da salvaguarda da sua forma ou substância.

89
coisas móveis e imóveis, corpóreas e incorpóreas e ainda sobre direitos. Temos um
direito de gozo pleno, mas já não um direito de disposição, como em termos de
utilização há um limite porque não se pode alterar a forma e substância da coisa. Tudo
o que envolva alterações substanciais à coisa não é permitido. Ao proprietário resta o
direito sobre a cosia na sua essência, na sua nudez, na sua raiz que é consubstanciada
no direito a manter a forma e substância da coisa que deu em usufruto. Temos um poder
pleno limitado pela natureza da coisa objeto daquele usufruto e a lei identifica natureza
com os conceitos de forma ou substância.
Por outro lado, é um direito temporário, o que significa que a sua constituição
tem de ser temporária, as partes são livres de fixarem o prazo que entenderem, mas há
um limite máximo – a vida do usufrutuário ou, no caso de pessoa coletiva, 30 anos
(artigo 1444.º)41. Admite-se também que (artigo 1441.º) o direito de usufruto possa ser
constituído em benefício de várias pessoas simultaneamente ou sucessivamente. Se for
simultaneamente, são A, B e C, pelo que o direito de usufruto só se extingue com a
morte do último, se não tiver sido estipulado um prazo – usufruto simultâneo. Há aqui
um co-usufruto. No usufruto sucessivo também são várias pessoas contempladas, mas
cada um dos beneficiários só exerce o usufruto com a extinção do anterior usufruto.
Porque é um direito pleno, naturalmente que o seu licere permite a constituição
de outros direitos que versem sobre o usufruto e alguns deles vão também incidir sobre
o objeto do usufruto. O seu licere ou conteúdo é o de maior indeterminação de entre os
jura in re aliena, porque embora consista só no uso e fruição, esta é suficientemente
ampla para admitir a constituição de outros direitos reais mais restritos, tanto de gozo,
como de garantia, e, inclusive, a cessão do próprio usufruto.
Por outro lado, a partir do artigo 1446.º até ao artigo 1475.º há um conjunto de
normas que, de acordo com o artigo 1445.º, são supletivas. O caráter pleno do usufruto
permite dispor dele e onerá-lo. Esta disposição e oneração extingue-se quando se
extingue o usufruto. O artigo 1445.º significa que enquanto as normas anteriores são de
natureza imperativa, são elementos indestrutíveis, as normas seguintes são normas
relativas, no sentido de que só se aplicam se não forem afastadas pelas partes. Um dos
limites ao direito do usufruto que é facultativo tem a ver com o dever de administrar,
gerir, exercer o usufruto como o faria um bom pai de família, respeitando o seu destino

Temos aqui 3 características do direito de usufruto: só pode ser temporário, o proprietário que o
transmite não pode permitir a alteração da forma ou substância, e respeitada esta reserva, este limite
legal, o usufruto tem um conteúdo pleno, abrange todas as utilidades que se possam extrair, quer
jurídicas, quer materiais.
41
Estes limites acabam por ser um reforço da salvaguarda da forma ou substância da coisa e, por outro
lado, a salvaguarda do direito de propriedade. Isto compreender-se-ia melhor se ainda estivesse em vigor
a enfiteuse. O que se pretende é preservar o direito à propriedade, porque quando se constitui o usufruto,
se for oneroso, praticamente a propriedade resume-se a essa renda, mas como direito corrente é um
direito em que o titular se limita à renda, se for oneroso. Na prática, o proprietário pouco pode atuar
sobre o bem e, de forma a preservar esse direito, a lei concebe um caráter temporário a este direito de
usufruto. No entanto, a lei prevê uma fórmula de alongar a duração do usufruto para além destes limites.
Tem a ver com o usufruto simultâneo ou sucessivo. No usufruto simultâneo, não há violação dos limites
máximos, no sucessivo já há – artigo 1441.º. No usufruto simultâneo, o proprietário concede a 2, 3 ou 4
pessoas o usufruto. Aplicamos o regime da contitularidade do usufruto. Nestes casos, acontece que o
usufruto só se extingue quando morrer o último usufrutuário. No usufruto sucessivo, o direito é
constituído em benefício de várias pessoas, há uma ordem de sucessão e aqueles que estão colocados
em 2º, 3º ou 4º grau só são titulares do direito de usufruto quando os direitos do anterior se extinguirem,
por efeito do prazo ou com a morte do usufrutuário.

90
económico – artigo 1446.º. Esta norma pode ser afastada, as partes podem
convencionar algo diferente, mas há sempre o limite da salvaguarda da forma ou
substância.
A existência de um fenómeno jurídico que tem a ver com a constituição de
usufruto que tem a ver com a exploração de minas, pedreiras ou águas, uma vez que
envolve a destruição da coisa, há prejuízo necessário desta, a lei admite que a parte se
possa autonomizar juridicamente e ser objeto de um direito de usufruto,
salvaguardando os limites e natureza do próprio usufruto. Por outras palavras, trata-se
de um desmembramento do objeto que a lei trata de forma autónoma. No usufruto de
árvores e de matas, a lei estabelece uma divisão, verdadeiramente o objeto do usufruto
são as árvores. Já nas minas, nas pedreiras e nas águas, a lei admite a constituição de
usufruto, mas são partes situadas no subsolo por definição. Como não é possível separar
os terrenos onde se situam, não se está propriamente a usar o prédio, significa que isto
só é admissível do ponto de vista jurídico com base numa ficção jurídica. É um
desmembramento jurídico do objeto, a pedreira ou mina são tratadas como objeto
autónomo distinto do direito de propriedade. Podem ser concebidos como frutos,
embora não se encaixem nessa definição. A constituição ou a admissibilidade das minas
pressupõe um desmembramento jurídico da propriedade do solo da propriedade das
minas.
Outro aspeto tem a ver com o usufruto de coisas consumíveis, porque a própria
noção de coisa consumível envolve a respetiva destruição. Daí que no artigo 1451.º se
estabeleça um regime a que obedece o usufruto de coisas consumíveis. A lei aqui acaba
por estabelecer um sucedâneo entre a coisa que é dada em usufruto e o respetivo valor
patrimonial ou então a própria restituição das coisas dadas em usufruto. Relativamente
ao direito de usufruto, importa referir 2 normas que devem ser interpretadas com algum
cuidado, designadamente os artigos 1451.º e 1452.º que se referem às coisas
consumíveis (artigo 208.º) e deterioráveis. O artigo 208.º aponta o contrário da
salvaguarda da forma ou substância. Uma coisa que se destina a ser consumida ou
vendida não permite manter a substância ou forma da coisa. Parece que estamos
perante uma anomalia. Podia-se proibir o usufruto das coisas consumíveis, mas
proibíamos o usufruto de um bem muito particular no âmbito do comércio jurídico: o
estabelecimento comercial. Porque assim é, não poderia haver usufruto do
estabelecimento comercial. Seria um entrave ao desenvolvimento da atividade
económica. O que significa “as coisas terem sido estimadas” no âmbito do artigo 1451.º?
Significa o cálculo do valor, aí compreende-se que depois se devolva o valor. Dada a
natureza jurídica das coisas consumíveis, sobre elas ou há devolução das coisas se for
possível, ou há devolução do valor, como estamos no âmbito dos direitos patrimoniais
há igualdade de interesses. Há alguma semelhança com as coisas deterioráveis. São as
coisas suscetíveis de diminuir de valor pelo seu uso, pode-se dizer que são parcialmente
consumíveis. Na medida em que, quando se constitui usufruto sobre coisa deteriorável,
o usufrutuário só é obrigado a entregar a coisa no estado em que se encontra no fim do
usufruto.
Ligada ao caráter temporário do usufruto, está a norma do artigo 1460.º. A
constituição de servidões está limitada pela duração do usufruto, são servidões a termo,
extinguem-se com a extinção do usufruto.
A extinção do usufruto está prevista no artigo 1476.º. O direito de propriedade
é perpétuo, não se extingue pelo não uso, pode-se extinguir pela usucapião, mas é por

91
intervenção de outrem. O usufruto, se não for exercido durante 20 anos, caduca
automaticamente. O usufrutuário tem liberdade de renunciar ao direito. Em suma, o
direito de propriedade é um direito perpétuo, mas todos os outros direitos de gozo não
têm este caráter, pelo que o não uso por 20 anos implica a sua extinção automática.
A destruição de edifícios está prevista no artigo 1479.º. Temos o proprietário da
raiz e o usufrutuário. O usufruto não se extingue pelo mau uso, muito embora as partes
possam estipular que o usufrutuário tem de o exercer segundo as regras do bom pai de
família.

7.4. Direitos de uso e habitação

É um direito (artigo 1484.º) que recai sobre coisas móveis e imóveis. Quando
recai sobre morada de família (imóvel), chama-se direito de habitação42. São dois
direitos que se distinguem pelo objeto.
Os artigos 1489.º e 1490.º mandam aplicar as normas do usufruto, remetem para
o regime do usufruto43. Está sujeito a um outro limite (artigo 1484.º) – tem por medida
as necessidades do titular e da respetiva família. Temos um direito que não é pleno, só
o é na medida das necessidades. É um direito que tem por finalidade satisfazer
necessidades pessoais. Isto estabelece logo uma diferença com o usufruto e que se
traduz nisto – enquanto o usufrutuário pode onerar ou transmitir o usufruto, aqui está
vedada ao usuário a constituição de direitos sobre o seu direito, porque a constituição
de outros direitos quebra o fim pessoal. Quando se constituem outros direitos, as
finalidades/utilidades podem ser aproveitadas por terceiros, o que está em contradição
com a natureza intuitu personae. Por isso é que a lei delimita o âmbito da família (artigo
1487.º) e, por outro lado, consagra a intransmissibilidade (artigo 1488.º). Esta norma
garante a finalidade, proíbe-se que o próprio usuário possa atribuir direitos a outrem,
isso seria desvirtuar a natureza jurídica do paradigma normativo deste tipo de direito
real. Também já vimos que ligada a esta intransmissibilidade está a usucapião que não
opera face a este direito de uso e habitação.

7.5. Direito de superfície. A propriedade superficiária

42
Pelas palavras de Orlando de Carvalho, “o simples direito de uso, que pode versar sobre móveis e
imóveis, e que, quando recai em moradias, se chama direito de habitação, trata-se de um direito ainda
com relativa indeterminação de conteúdo, mas que só se consente “na medida das necessidades, quer
do titular, quer da sua família”; o que implica a exclusão da transmissibilidade ou onerabilidade desse
direito e, além disso, da locação do seu objeto.”
43
O artigo 1485º apresenta a noção e o artigo 1490º manda aplicar o regime do usufruto, aplica-se em
tudo aquilo em que não seja afastado pelas normas seguintes. É também um direito temporário, pleno,
mas essa plenitude é determinada de forma diferente. O que difere é que o direito de uso é sobre prédios
rústicos, o direito de habitação é sobre prédios urbanos, o que difere é o seu objeto. Há aqui um aspeto
que distingue estes dois direitos do usufruto, é que o uso é o direito de usar plenamente, mas na medida
das necessidades pessoais apenas. Há um limite ao caráter absoluto no artigo 1486.º. O artigo 1487.º
refere-se ao que se deve entender por família e verifica-se a chamada intransmissibilidade do direito
(artigo 1488.º) – não o podem transmitir nem constituir encargos. Este limite tem a ver com o caráter
personae do uso. Tem natureza patrimonial, mas o seu fim destina-se a satisfazer necessidades da família,
que são determinadas segundo a sua condição social. A norma é inconstitucional, por violação do artigo
13.º nº 2 da Constituição da República Portuguesa.

92
É um direito recente, só nos anos 50 foi instituído entre nós. Nos termos do artigo
1524.º, consiste na faculdade de construir ou manter temporariamente uma obra em
terreno alheio ou fazer ou manter plantações. Estamos perante direitos sobre coisas
imóveis. É o direito de contruir obra ou plantação em terreno alheio e de a manter. O
artigo 1525.º diz que pode abranger uma parte do solo não necessária à sua implantação
desde que tenha utilidade para o uso da obra.
Sempre se criticou, designadamente Orlando de Carvalho, a conceção
geométrica da superfície. No nº 2, que foi alterado em 1991, diz-se que pode ter por
objeto obras no subsolo, a norma anterior dizia que não podia ter. Agora já se pode ter
direito de superfície no subsolo. Em todo o caso, estamos sempre perante uma obra ou
plantação em terreno alheio. Por isso temos o dono do terreno e o superficiário.
Embora a lei seja omissa, mas está subentendido em algumas das normas, há um
direito que é um corolário do direito de superfície – é um direito de propriedade
superficiária, não abrange o solo. Temos, portanto, duas propriedades – sobre o
edifício/plantação e sobre o solo. Portanto temos um direito de propriedade sobre
prédio alheio, o que significa que a lei estabelece um desmembramento do objeto. A
divisão jurídica implica o desmembramento do objeto.
Quer o direito, quer a propriedade podem ser temporários ou perpétuos.
O artigo 1526.º vem, de certa forma, alargar o âmbito do artigo 1524.º, pois já
fala em edifício alheio, o que significa que a superfície pode ter por objeto prédios
rústicos e prédios urbanos. Aqui a lei faz uma remissão para o regime da propriedade
horizontal. Esse alçamento (direito de subir) tem de obedecer às regras da propriedade
horizontal, que é a individualidade de partes comuns e frações. O que se compreende,
pois, se o superficiário é pessoa diferente do proprietário do prédio, temos interesses
diferentes, semelhantes à propriedade horizontal. Levantado o edifício, são aplicáveis
as regras da propriedade horizontal, passando o superficiário a ser condómino das
partes comuns. A superfície sobre edifício alheio é temporária, pois ele muda de figura
jurídica, passa a ser um regime de propriedade horizontal. Isto tem implicações – passa
a ser condomínio, passa a ser proprietário em comunhão do solo, passa a ter um bem
sobre terreno próprio em regime de comunhão.

7.6. Servidões prediais: caracterização geral

A nossa lei fala em servidão predial, mas como não há servidões pessoais (pelo
menos legais) o professor não utilize o termo predial por ser desnecessário. As servidões
prediais são direitos reais sobre coisa alheia que gozam, no nosso ordenamento jurídico,
de um estatuto autónomo.
O artigo 1543º define servidão44. Esta noção não deixa de ser anómala e, por
isso, tem de ser interpretada. A lei refere-se a uma relação jurídica entre duas coisas. A
relação real supõe sempre uma pessoa, um titular. Então por que é que a lei fala num
prédio e num prédio? Não significa que as servidões não tenham um titular ativo e
passivo como há no usufruto, na superfície, temos também um direito que se constitui

44
Santos Justo prescreve que “A partir desta definição, a doutrina observa que a servidão predial: 1. é um
encargo (constitui uma restrição ou limitação ao direito de propriedade sobre o prédio dito serviente); 2.
recai sobre um prédio (é uma restrição ao gozo do prédio serviente, inibindo o seu proprietário de praticar
os atos que possam prejudicar o exercício da servidão); 3. beneficia outro prédio dito dominante; 4. os
prédios (serviente e dominante) devem pertencer a donos diferentes.”

93
a partir de um outro direito – o direito de propriedade, muito embora o usufrutuário
possa constituir servidões. Por que é que a lei utilizou esta linguagem? O artigo 1544º
diz “gozadas por intermédio do prédio”, o que reforça o que diz o artigo anterior. Com
esta linguagem, a lei quer evidenciar a natureza deste direito que se pode resumir na
palavra “predialidade”.
A lei diz que as servidões são entre imóveis, entre prédios (não se distinguem os
prédios rústicos e urbanos). Consiste no titular de um prédio dominante aproveitar
utilidades do prédio serviente. A predialidade, ou pelo menos a não subjetividade,
inscrita nestas duas normas decompõe-se numa subjetividade: é o titular do prédio
dominante que vai gozar, é o titular do prédio serviente que vai ter de sofrer. Por que é
que a lei omite aqui os sujeitos? Porque o que está aqui em causa não são
verdadeiramente necessidades. Falamos de utilidades que são aproveitadas pelo titular
do prédio dominante e são fornecidas pelo titular do prédio serviente. O que está aqui
em causa são interesses de natureza económica, nomeadamente a possibilidade de
explorar prédios que não têm acesso à via pública e a única maneira é sacrificar os outros
prédios que estão ligados ao prédio encravado, de modo que o respetivo dono possa
usufruir dele. É o titular do prédio encravado que vai beneficiar e é o titular do prédio
sacrificado que vai ter que deixar de passar. Simplesmente essas utilidades são
constituídas tendo em vista as necessidades de exploração do prédio dominante, não
diretamente as necessidades pessoais do titular do prédio dominante, mas o que está
em causa são as necessidades de exploração que vão justificar a imposição daquele
encargo/ónus.
Por outro lado, do ponto de vista passivo, aquilo que vai beneficiar o titular do
prédio dominante são as utilidades proporcionadas pelo prédio serviente, temos uma
relação inter-prédios. Quando a lei omite os sujeitos, o que quer indiciar é que a servidão
só pode ser constituída para o aproveitamento económico dos bens que tem de ser
proporcionado por aquilo que se pode propiciar. O objeto da servidão afere-se pelas
necessidades ou utilidades económicas do prédio dominante. O fundamento deste
direito tem a ver com as utilidades económicas do prédio dominante. São interesses que
estão apenas em causa e, por outro lado, o prédio serviente naturalmente que vê
reduzido o seu valor económico ou o seu valor de uso e fruição, na medida em que tem
de suportar as utilidades que aproveitam ao outro titular. Muito embora as servidões
possam ser onerosas, implicam sempre uma redução do valor.
Há outro elemento a ter em conta – não só o objeto, mas a medida do objeto
que é determinada pelas possibilidades do prédio serviente e pelas necessidades
económicas do prédio dominante. Temos dois aspetos que têm a ver com a
predialidade: o fundamento e o âmbito do direito.
O que diz o artigo 1544º é que podem ser objeto de servidão as utilidades atuais
ou futuras. Falámos disto a propósito do princípio da taxatividade, não quer dizer que o
conteúdo de cada direito esteja pré-definido na lei, estão os aspetos que caracterizam
o direito, mas não todo o conteúdo. Significa que este direito é caracterizado pela
atipicidade do conteúdo – são quaisquer utilidades.
Depois temos outras duas características que, de certa forma, têm a ver com a
predialidade, que são precisamente os artigos seguintes (1545º e 1546º) – a
inseparabilidade e indivisibilidade das servidões. A inseparabilidade tem a ver com a
origem da servidão: se é constituída, é porque o prédio precisa e o prédio serviente tem
de proporcionar essas utilidades, significa que essa relação essencial entre prédios, a

94
utilidade que um prédio tira do outro não pode ser transferida para um prédio terceiro,
porque este não está na relação de predialidade que deu origem e fundamenta a
servidão. Significa que a servidão não pode ser transmitida a terceiro, a não ser que
aliene o prédio ou constitua um usufruto. Se não pode ser transferida, significa que
também não pode ser onerada. Os direitos reais de garantia têm sempre subjacente a
possibilidade de oneração.
Por outro lado, nos termos do artigo 1546º, significa que a divisão de cada um
destes prédios não implica a multiplicação de servidões, ou seja, não atribui a cada
parcela direitos ou deveres mais amplos do que aqueles que tinha antes da divisão.
Significa que, dividido o prédio dominante ou serviente, tudo se passa como se não
houvesse divisão dos prédios. O que está em causa verdadeiramente é uma questão de
proteger o valor económico do prédio serviente e evitar que este fique sujeito a várias
servidões.
As servidões podem ser legais (decorrem da lei) ou voluntárias (decorrem do
acordo das partes, constituídas por negócio jurídico ou ato voluntário).
As servidões podem, ainda, ser aparentes e não aparentes, já falámos nisso na
posse, nos termos do artigo 1548º. Já se explicou a razão de ser desta proibição para as
servidões não aparentes45.
As servidões podem ser positivas (servidão de passar, de passagem), negativas
(servidão de não passar) e desvinculativas (a aquisição de servidão de vistas desvincula
o proprietário de ter aquela distância). As primeiras traduzem-se na permissão de atos
sobre o prédio serviente. Já as segundas impõem uma abstenção ao dono do prédio
serviente. Finalmente, as servidões desvinculativas libertam o prédio dominante de
restrições legais.
O que é uma servidão legal? No capítulo das servidões legais (artigos 1550º a
1563º), muito embora as utilidades possam ser indeterminadas, a lei refere-se a
servidões de passagem e a servidões de águas com vários fins (servidão de aqueduto,
escoamento, entre outras). Estas são as servidões legais, mas podem ser voluntárias.
Tendo em vista os interesses em causa, a lei estabelece que o titular do prédio
dominante tem o direito potestativo de constituição da servidão. Estas são as únicas
servidões (princípio da taxatividade) que a lei admite que possam ser constituídas de
forma potestativa. A lei quer admitir aos prédios que possibilite as condições para
exploração. Mas compreende-se que, como se sacrifica um direito de propriedade, a lei
seja muito restritiva quanto ao âmbito das situações em que esta limitação pode ser
imposta de forma potestativa. A lei não utiliza sempre a mesma linguagem, mas tem-se
entendido que ainda assim se trata de direitos potestativos. No artigo 1557º, a propósito
da servidão de águas, designadamente para gastos domésticos, a lei diz “podem ser
compelidos”, aqui não há dúvida de que a lei quer conferir um direito potestativo. Isso
já não é claro no artigo 1550º, onde se diz “têm a faculdade de exigir”, mas tendo em
conta a natureza e a sua utilidade, os fins que a lei pretende com base na constituição
das servidões legais, só seriam garantidos esses mesmos fins se as servidões pudessem

45
Ver páginas 58 e 62. De acordo com Santos Justo, “As servidões aparentes e não aparentes distinguem-
se por só aquelas se revelarem por obras ou sinais exteriores que, além de visíveis, devem ser
permanentes. A visibilidade destina-se a garantir a não clandestinidade e a permanência da obra ou de
sinais torna seguro que não se trata de ato praticado a título precário, mas dum encargo preciso, estável
e duradouro, próprio duma servidão. Esta classificação é particularmente importante para efeito da
usucapião: só é admissível nas servidões aparentes.”

95
ser impostas aos prédios servientes. De outro modo, os prédios não podiam ser
utilizados e a lei quer garantir aos proprietários essas utilidades. No artigo 1559º, diz-se
“podem fazer”. Já no artigo seguinte, diz “só pode ser imposta coercivamente”. Parece
que o significado da servidão legal é o facto de ser constituída de forma impositiva ou
potestativa. Isso decorre não só dos fins a que se destinam, da sua taxatividade, a única
solução para garantir estes fins é através de um direito potestativo.

7.7. Direito real de habitação periódica: os aspetos dominiais do direito

O direito real de habitação periódica é o único direito real que não vem no
Código e é também conhecido por time sharing. É um produto do turismo. As pessoas,
em vez de comprarem um andar nas zonas de férias, compram 15 dias ou 30 dias e
durante esse período utilizavam esse prédio. É a utilização de um prédio, está ligada à
constituição desta propriedade a fins turísticos. Está regulado atualmente no Decreto-
Lei nº 275/93 que foi objeto de republicação e muitas alterações pelo Decreto-Lei nº
37/2011. A nós vai-nos interessar apenas nas questões relacionadas com os direitos
reais.
O primeiro diploma que regulou este tipo de utilização dos bens foi um Decreto-
Lei de 1981 que depois sofreu alterações e depois veio este diploma de 1993 que alterou
substancialmente o regime e depois foi adequado aos tempos mais modernos em 2011.
A conceção realista deste direito não mudou, a sua substância não mudou. Para
percebermos este regime, temos de recuar no tempo, o Decreto-Lei de 1981 quis pôr
fim às múltiplas vigarices que se fizeram. Era uma prática que já era frequente no
estrangeiro, cá só a partir de 1974/1975 é que se despoletou. Não faltaram casos em
que as pessoas vendiam frações sem elas existirem. Muitas pessoas, quando iam visitar
o local, não encontravam nada. Assim o Decreto-Lei de 1981 introduziu um conjunto de
normas relativamente à construção e alienação deste tipo de propriedade que depois
teve de ser reforçada pelas normas de 1993 para garantir ao consumidor uma segurança
jurídica que o regime geral dos contratos se revelou ineficaz. O Estado e a Administração
Pública tiveram de intervir para evitar essas fraudes. Não podemos desligar estas
obrigações que a lei estabelece, designadamente ao construtor, sem olharmos a uma
época prolífera a enganos e fraudes.
O direito real de habitação periódica é um direito limitado de gozo que confere
ao titular o poder de habitar uma unidade de alojamento ou unidade habitacional. Diz
o artigo 1º do DL que é um direito de gozo limitado, na medida em que esse limite
decorre da duração, do período relativamente a cada ano civil. Só podem ser objeto
destes direitos este tipo de prédios cujas características a lei define, vai buscar muitas
normas à propriedade horizontal, mas depois adapta ao fim a que se destinam, mas não
há liberdade de constituição de habitação periódica. Supõe uma autorização por parte
da Administração Pública que se traduz na classificação dos prédios que podem ser
objeto deste direito real. São as chamadas unidades de alojamento que, na propriedade
horizontal, se chamam frações.
Este mesmo diploma, nos artigos 45º e seguintes, refere-se aos direitos de
habitação turística. Trata-se também do direito de usar determinado prédio que não
obedece às características de hotel-apartamento, aldeamento turístico e apartamento
turístico que sobre ele não são constituídos direitos reais, mas direitos de crédito de

96
alojamento, portanto importa não confundir, os meios são diferentes, embora os fins
sejam semelhantes.
Portanto, direito de usar uma unidade de alojamento durante certo período em
cada ano. O artigo 4º fixa as características, as condições de exploração do
empreendimento em regime de habitação periódica.
Era um direito periódico, mas agora temos de fazer uma distinção. Este direito
pode ser constituído de forma perpétua ou ser um direito temporário. O artigo 3º,
quanto à duração, diz que é perpétuo na falta de indicação em contrário. Uma coisa é
que quem adquire o direito adquire-o de forma perpétua, outra coisa é o objeto do
direito (nº 2 deste artigo). Pode-se adquirir o direito por 50 anos ou de forma perpétua
que permite utilizar em cada ano durante um certo período a unidade de alojamento.
Quanto à constituição deste direito, temos alguns aspetos peculiares que
convém referir e salientar. Há que distinguir, à semelhança da propriedade horizontal,
a constituição do regime do direito real de habitação periódica da constituição de cada
direito real de habitação periódica. Diz-se, no artigo 6º nº 1, que é constituído por
escritura pública ou documento particular autenticado. Esta exigência de forma tem a
ver com a constituição do regime. Um determinado prédio, para ser constituído como
aldeamento turístico, tem de reunir um conjunto de características e esse regime tem
de ser constituído por escritura pública ou documento particular autenticado. Com esta
escritura ou documento, determinado prédio pode ser alienado, usufruído em regime
de direito real de habitação periódica. Tal como se disse a propósito da propriedade
horizontal, verdadeiramente só quando há alienação destas unidades de alojamento, é
que se constitui o direito, enquanto o proprietário não o alinear, supõe que diferentes
pessoas tenham adquirido o direito sobre diferentes unidades. Este título constitutivo
tem de ser registado nos termos do artigo 8º. Trata-se provavelmente de um título
constitutivo não para atribuir direitos, mas para definir o regime, isto para garantir a
máxima segurança possível. Uma coisa é o regime, outra coisa é o direito singular, cada
direito real de habitação periódica.
Por razões de segurança e relativamente a cada direito real, é na escritura que
são definidos os períodos, as unidades de alojamento, à semelhança da propriedade
horizontal. Aí são definidos os períodos, a duração de cada direito, etc. Mas uma vez
tudo isso definido e registado, a fase seguinte é a transmissão desse direito real de poder
habitar e usufruir aquela unidade de alojamento. O que tem aqui de especial é que o
direito real versa sobre o gozo, sobre a utilização e não a coisa física, o prédio. A coisa
física continua a pertencer ao proprietário, o que, de certa forma, estamos aqui perante
um direito que, em rigor, tem por objeto uma coisa incorpórea que é o gozo de uma
coisa. O que se adquire é a utilização e não o bem em si.
Cada direito real de habitação periódica é titulado por um certificado predial que
é emitido pela Conservatória do Registo Predial. Estamos perante um direito sobre uma
coisa imóvel. O que há de especial é a certidão que define a titularidade do direito real
de habitação periódica, determina quem é o titular do direito e é através desse título
que se fica a saber quem tem legitimidade para transmitir ou onerar esse direito, nos
termos do artigo 10º. O que temos aqui é um direito que surge incorporado num título.
Exemplo do bilhete de cinema ou andante de metro. O direito de viajar está titulado
naquele documento; se perder o documento, perde o direito de viajar. Significa que o
direito está incorporado naquele documento, no título. Isto é uma situação anómala:
temos um direito real titulado por um documento e a transmissão desse direito supõe

97
a transmissão desse certificado predial e a inscrição do novo dono neste. No artigo 11º,
diz-se o que deve constar do certificado predial. Só a pessoa que figura nesse certificado
como titular é que é considerada titular desse direito, isto introduz uma segurança
enorme. Isto está nos antípodas da liberdade contratual que existia antes.
Se a propriedade tem de estar titulada nesse certificado predial, a transmissão e
a oneração (artigo 12º) fazem-se à semelhança dos títulos de crédito. Significa que a
transmissão se faz por endosso, por declaração no próprio título. Enquanto a venda de
uma casa se faz através de uma escritura, aqui é no próprio certificado que titula o
direito que tem de se declarar que se onera ou transmite o direito.
Temos aqui algumas particularidades que se distingue dos direitos reais: a
inscrição da pessoa no título é que determina a titularidade, e a alienação ou oneração
tem de estar inscrita no mesmo certificado. Isto remete para direitos associados a títulos
(os chamados títulos constitutivos do direito) e a lei foi buscar o regime dos títulos de
crédito para garantir alguma segurança.
Consagra-se um direito de resolução no artigo 16º. Isto é para evitar o marketing
agressivo, em que a lei dá um prazo de arrependimento.

7.8. Considerações gerais sobre o projeto relativo ao direito real de habitação


duradoura

Está na forja um novo direito – direito real de habitação perpétua.


Qualitativamente, serão situações semelhantes (em relação ao direito real de habitação
periódica). Muito embora naquele caso parece tratar-se de um direito de arrendamento
não sujeito a caducidade, um direito de crédito, eventualmente um direito real, está ali
o arrendamento e não a aquisição de um direito de usar, na medida em que pode haver
denúncia, mas o professor Liberal Fernandes acha difícil falar-se de um direito real.
O professor não entende porque lhe chamam direito real. Em princípio, é tirado
à imagem do direito real de habitação periódica, em que se atribui o direito real de usar
o prédio de outrem. Aqui do que se trata é de um arrendamento com regime específico,
não se fala em preço, mas em caução. Em poucas palavras, uma pessoa arrenda uma
casa para toda a vida. Exige-se que preste uma caução entre 10% e 20% do valor da casa
e depois pague uma renda mensal. A caução vai servir como garantia no caso de
incumprimento das prestações mensais e tem até um outro aspeto interessante: um
morador constituir uma hipoteca sobre o seu direito real para pedir um empréstimo
para pagar a caução (temos uma hipoteca específica para um empréstimo específico –
uma hipoteca consignada, só pode ter aquela finalidade). A caução serve para o caso de
a hipoteca não ser paga, a caução irá pagar essa dívida, depois o proprietário fica sub-
rogado na posição do credor.
Há aqui formas de extinção do direito que não existem nos direitos reais,
designadamente a falta de pagamento até um certo limite que concede a possibilidade
de fazer caducar o arrendamento. Também caduca com a morte do morador, não é
transmissível mortis causa, não é transmissível em vida, à semelhança do usufruto ou
do direito de habitação. Mas depois não podemos transpor o regime de cada um destes
direitos. Assim, acaba por ser um regime misto, híbrido, mas causa dúvidas de que possa
haver um poder direto e imediato sobre a coisa, que continua na propriedade do
senhorio tal como acontece no direito real de habitação periódica, em que o que se

98
compra é a utilização, o gozo. Aqui não se compra esse gozo, daí haver alguma
dificuldade em se considerar um direito real.
O que se pretende com esta medida é flexibilizar o arrendamento, pois cerca de
73% dos alojamentos são propriedade própria, significa que o arrendamento em
Portugal não tem o relevo que tem noutros países, condicionado pela falta de casas para
arrendar. O que é certo é que a flexibilidade não se consegue por esta via. Até porque
ainda há um regime que se aplica até aos 30 anos e outro após os 30 anos.
Há possibilidades de envenenar este regime, porque não há limites de renda, há
apenas alguns critérios para a sua determinação.

8. Os direitos reais de garantia: referência das principais características de cada um


dos direitos

Atendendo ao princípio da taxatividade, estão consagrados na lei e também fora


do Código Civil. Estão nos artigos 656.º e seguintes do Código Civil.

Consignação de rendimentos

A consignação de rendimentos, também designada por anticrese, é uma garantia


real que consiste na afetação dos rendimentos de certos bens imóveis ou móveis
sujeitos a registo ao cumprimento de uma obrigação e ao pagamento dos juros, ao
cumprimento apenas da obrigação ou só ao pagamento dos juros (artigo 656.º).
O que garante o cumprimento da obrigação são os rendimentos que a coisa
imóvel ou móvel sujeita a registo oferece. O que tem de particularidade este tipo de
direito, diferentemente dos outros, é que a consignação pode não só garantir o
cumprimento, mas também ela própria ser um meio de cumprimento, serem os
rendimentos proporcionados pelos bens amortizados na dívida. Pode garantir o
cumprimento ou só da obrigação ou só dos juros ou de ambos (artigo 656.º). O que se
passa aqui é que o credor titular de um direito destes fica com preferência no
pagamento apenas sobre o valor dos rendimentos, não da coisa.
Quanto à forma, esta está indicada no artigo 660.º e, no artigo 658.º, diz-se que
a consignação pode ser voluntária ou judicial. No primeiro caso, resulta de um negócio
jurídico inter vivos ou mortis causa, feito por quem puder dispor dos rendimentos
consignados. Será judicial quando é constituída por decisão judicial e utiliza-se para
evitar a venda (judicial) ruinosa dos bens.
Estes rendimentos são atribuídos ao credor durante certo prazo (nunca superior
a quinze anos se incidir sobre rendimentos de imóveis) ou até ao pagamento da dívida
garantida – artigo 659.º.
Também aqui no artigo 665.º remete-se para algumas normas que dizem
respeito à hipoteca e a do artigo 694.º diz respeito à proibição do pacto comissório, é
uma característica determinante do regime legal dos direitos reais de garantia, depois
veremos porquê.

Penhor

O penhor é a garantia real que confere ao credor o direito à satisfação do seu


crédito e juros, se os houver, com preferência sobre os demais credores, pelo valor de

99
certa coisa móvel, créditos ou outros direitos não suscetíveis de hipoteca pertencentes
ao devedor ou a terceiro.
Já falámos do penhor a propósito do princípio da consensualidade. O artigo 666.º
praticamente compreende a noção de direito real de garantia. É claro que quem pode
constituir o direito real de garantia é quem tem legitimidade para dispor desses bens.
Quando se trate de frutos, pode ser o usufrutuário ou o superficiário; quando se trate
da coisa, só pode ser o proprietário, porque o direito real de garantia tem em si mesmo
a possibilidade de o bem ser alienado, no caso de incumprimento. Havendo
cumprimento, o direito extingue-se, dado o seu caráter acessório. Na medida em que,
entre nós, a venda é feita sob controlo judicial, ainda há um terceiro que controla as
vendas, mas formalmente é um bocado difícil de impedir, mas o certo é que para
garantir que o valor do bem seja vendido por um preço de acordo com o seu valor de
mercado, essa venda é sempre coordenada por um terceiro imparcial, que não seja
credor ou devedor, exatamente para garantir esse preço de mercado. Com a venda pelo
preço de mercado, o titular do bem, em regra, o devedor acaba por ser menos
prejudicado. Daí que perante a possibilidade de alienação, que é a única forma de
dissolução do direito real de garantia, como o preço é sancionado por um terceiro
imparcial, pretende-se que seja o mais justo possível. Daí que perante esta possibilidade
natural ao exercício de direitos reais de garantia só tenha legitimidade para constituir o
direito real de garantia quem dispor dessa mesma coisa.
O penhor pode ter por objeto coisas móveis simples, créditos ou outros direitos
não suscetíveis de hipoteca. Temos um conjunto de disposições gerais e depois temos
penhor de coisas e depois penhor de direitos. Portanto há dois tipos de objetos: coisas
corpóreas e incorpóreas, ou seja, coisas e direitos. O que não pode ser objeto de
penhor? Os imóveis, os móveis sujeitos a registo, as universalidades, porque se
olharmos para o artigo 666.º diz “pelo valor de certa coisa móvel”. Do ponto de vista
jurídico, a universalidade não é coisa certa determinada. As coisas acessórias qual tale
(artigo 210.º) não podem ser objeto de penhor, na medida em que o direito que recai
sobre a coisa principal não recai sobre a coisa acessória. No entanto, o nº 2 do artigo
210.º admite a autonomização da coisa acessória. Havendo essa convenção, a coisa
deixa de ser acessória e aí já poderá ser objeto de penhor.
Como o artigo 668.º refere, há muitos regimes especiais em matéria de penhor,
mas aqui não vamos falar neles. Significa que podem haver penhores com regimes
bastantes diferentes do regime geral.
Um aspeto a ter em conta no penhor de coisas é o que consta do artigo 669.º,
que já falámos a propósito do princípio da consensualidade. Normalmente esses
regimes especiais do penhor afastam-se desta regra, designadamente no âmbito da
atividade comercial. A lei estabelece aqui que, para além do acordo, exige-se a entrega
da coisa para a constituição válida do penhor sobre a coisa46. É uma exceção à
consensualidade. Enquanto não se verificar um desapossamento, a tal entrega que pode

46
Veja-se o que diz Santos Justo a este propósito: “O penhor só produz efeitos com a entrega da coisa
empenhada ou de documento que confira a sua exclusiva disponibilidade. A entrega publicita o penhor
e, por isso, imprime a necessária proteção de terceiros. No entanto, porque priva o autor do penhor da
possibilidade de dispor materialmente da coisa, a entrega pode, em certos casos, consistir na simples
atribuição da composse ao credor. Quanto ao penhor de direitos, a sua constituição está sujeita à forma
e publicidade exigidas para a transferência desses direitos. E se o direito estiver sujeito a registo, só produz
efeitos a partir deste.”

100
ser do bem em si mesmo ou do documento que lhe confere a disponibilidade exclusiva,
não se produzem os efeitos do penhor. A lei equipara o desapossamento à transmissão
do título que confere essa disponibilidade. O que interessa é que o devedor fique
desapossado da coisa, são móveis simples que facilmente são alienados e transferíveis
sem rasto e, se ficasse na esfera do devedor, este podia aliená-lo e o credor ficava sem
a garantia. Para garantir a garantia é que a lei estabelece este desapossamento.
Subjacente a isto está a questão da eficácia do próprio direito.
Também no penhor de coisas, no artigo 678.º, temos a remissão para o pacto
comissório.
No princípio da consensualidade, vimos que no penhor de créditos há uma
exceção. Em princípio, a este regime é aplicável o regime do penhor de coisas e depois
há aqui algumas especificidades. Daí que se compreenda o artigo 680.º que diz que só é
admissível quando tenha por objeto coisas móveis suscetíveis de transmissão, inerente
ao próprio exercício do direito de garantia. À semelhança do penhor de coisas, diz o
artigo 681.º nº 2 que temos uma notificação para além do acordo, não se confunde com
ele. A lei exige que o credor seja notificado, que lhe seja comunicado que foi constituída
uma garantia sobre a sua dívida, embora não recaia sobre ele, mas sobre o credor dessa
dívida.
Relativamente à execução de penhor, seja num caso, seja noutro, também temos
um complemento da noção de direito real de garantia, temos a tal venda executiva pelo
tribunal, é uma entidade com poderes públicos.

Hipoteca

A hipoteca é uma garantia real que confere ao credor o direito de ser pago pelo
valor de certa coisa imóvel (ou móvel registável), pertencente ao devedor ou a terceiro,
com preferência sobre os demais credores que não gozem de privilégio especial ou de
prioridade de registo.
Também o artigo 686.º tem uma noção de hipoteca que é a concretização da
noção de direito real de garantia. Tem por objeto imóveis e equiparados, leia-se coisas
móveis sujeitas a registo.
A validade do acordo constitutivo da hipoteca supõe o respetivo registo, como
se diz no artigo 687.º, em que o registo é constitutivo, na medida em que é uma
condição de validade, sem ele, a hipoteca nem sequer produz efeitos inter partes.
Não havendo entrega, mas uma especial afetação da coisa hipotecada ao
cumprimento de uma obrigação, sobre esta podem constituir-se várias hipotecas (artigo
713.º). Neste caso, terá prioridade a hipoteca mais antiga; e, quanto às hipotecas
registadas na mesma data, concorrem, entre si, na proporção dos respetivos créditos.
A hipoteca é hoje muito corrente na vida económica e social, porque permite aos
proprietários de coisas imóveis o acesso rápido ao crédito e, ao mesmo tempo, confere
ao credor um risco reduzido de ver frustrado o seu crédito.
Relativamente ao objeto de hipoteca47, há algumas notas a ter em conta. Em
primeiro lugar, as partes integrantes em si mesmas, não obstante serrem coisas imóveis

47
Prescreve Santos Justo que “A hipoteca pode incidir sobre prédios rústicos e urbanos; o direito de
superfície; o usufruto; as coisas móveis registáveis; as partes dum prédio suscetíveis de propriedade
autónoma; e a quota de coisa ou direito comum. A hipoteca estende-se às acessões naturais; às

101
(artigo 204.º), não podem ser hipotecadas separadamente da coisa principal, a lei
introduz esse limite, o que decorre do artigo 691.º. São as partes integrantes enquanto
coisas não juridicamente autónomas da coisa principal, enquanto não obtêm autonomia
jurídica que se consegue com a separação física. Também as coisas acessórias o não
podem ser, a não ser nos termos do artigo 210.º nº 2. No artigo 688.º a lei refere-se aos
objetos suscetíveis de hipoteca. Depois temos no artigo 688.º a alínea b) que já se
considera abrogada devido à enfiteuse.
Há, contudo, no artigo 691.º, que se refere à extensão da hipoteca, a questão
das fábricas, ou seja, a hipoteca das fábricas. A lei não define o que é uma fábrica do
ponto de vista jurídico, apenas a noção de estabelecimento comercial e empresa. Temos
aqui um regime especial em que quando falamos do estabelecimento comercial, sendo
uma coisa móvel para este efeito de hipoteca, é equiparado como imóvel, porque é o
facto de a esse estabelecimento pertencer o local, o edifício onde ele está instalado,
mas nem sempre isso acontece, o prédio pode ser arrendado, não tem de ser próprio e,
nesse caso, a hipoteca sobre esse estabelecimento não irá abranger uma coisa que
pertence a terceiro. Mas a lei quase que estabelece uma unificação jurídica do objeto –
diz o nº 2 do artigo 691.º que, neste caso particular da hipoteca do estabelecimento
comercial, podem ser abrangidos por hipoteca bens móveis simples (matérias-primas,
produtos acabados). Por uma questão de segurança jurídica, desde que sejam
inventariados, são objeto de hipoteca quase por via acessória, porque verdadeiramente
é aquela organização que se dá em valor para garantir determinada dívida, essa
organização supõe todos os bens que a integram, são todos esses móveis que integram
a organização. O que tem de particularidade é a lei traduzir para a questão da hipoteca
a funcionalidade que caracteriza aquela organização e que está dependente de todo
este conjunto de bens, daí que a lei alargue a hipoteca aos bens móveis simples quando
em si mesmos não o poderiam ser, mas têm de estar arrolados/descritos.
Quanto à hipoteca de partes de prédio, rege o artigo 688.º nº 2. Naturalmente
que nos prédios urbanos isto só é possível quando as partes de um prédio sejam frações
autónomas, quando tenham a autonomia jurídica para a propriedade horizontal, o
direito real de habitação periódica, aí temos situações em que as partes de um prédio
têm autonomia jurídica e, nessa medida, geram direitos reais autónomos, de entre os
quais a hipoteca. Se estivermos a pensar na propriedade horizontal, a hipoteca da fração
não se fica só por aí – alarga-se também à eventual parcela de valor que, se for
transmitida a fração, é também incluída as partes comuns.
Também não pode ser constituída uma hipoteca relativamente aos prédios
rústicos inferiores à unidade de cultura48 (artigo 1376.º nº 1 e 2) também não é

benfeitorias e, tratando-se de hipoteca de fábrica, aos maquinismos e demais móveis inventariados no


título constitutivo.”
48
Os regimes do fracionamento e do parcelamento são regimes de direito de propriedade algo restritivos.
O que estão aqui em causa são interesses ligados à rentabilização da atividade agrícola. Essa
rentabilização supõe áreas mínimas, pois o excesso de fragmentação desmotiva. De forma a aumentar a
rentabilidade da terra é promover o aumento das áreas de cultivo que se pretende com o
emparcelamento e com a proibição do fracionamento. O emparcelamento supõe uma delimitação, está
regulado em legislação especial, delimitação de uma área e depois é feito um inventário dos proprietários
e das frações que tenham nessa área e o objetivo é fazer com que cada proprietário mantenha mais ou
menos a mesma área que tinha antes do emparcelamento com o menor número de propriedades.
Pretende-se que se mantenham os proprietários, mas que tenham apenas uma cada um, mantendo a
mesma área, mas mais concentrada. Nos termos do artigo 1376.º, quem tem um terreno e quer dividi-lo,

102
admissível se implicar um fracionamento do qual resulte um agravamento, na media em
que n é possível a transmissão desses prédios também não é admissível a hipoteca pois
esta supõe a possibilidade de transmissão. Nos termos do artigo 689.º é suscetível a
hipoteca de coisa comum ou de direito comum. Só com a execução em caso de
incumprimento é que se determina o valor da quota sobre coisa ou direito comum.
A hipoteca pode ser constituída por lei, decisão judicial e vontade do titular da
coisa hipotecada. Portanto, a hipoteca pode ser legal (resulta imediatamente da lei, sem
dependência da vontade das partes, desde que exista a obrigação a que serve de
segurança, mas deve ser registada – artigo 704.º), judicial (é a hipoteca cujo título
constitutivo é uma decisão judicial – artigo 710.º) e voluntária (é a hipoteca que
depende da vontade do titular da coisa hipotecada que pode manifestar-se num
contrato ou declaração unilateral – artigo 712º).

O artigo 694.º consagra o pacto comissório. Isto é aplicável a todos os direitos


reais. Pode haver este acordo entre credor e devedor, mas é nulo. Mas teria vantagens.
Alguém precisa de 100 e dá em garantia um automóvel ou um prédio x. Tínhamos 100
contra o automóvel ou prédio x. Se o devedor não pagasse, havendo este acordo, o que
acontecia? O credor ficava com a coisa, terminava o conflito, nem era preciso advogado.
Isto contribuía para a celeridade e desentupimento dos tribunais. As vantagens são
óbvias, mas há um risco de prejuízo do devedor que a lei quis acautelar. É o devedor
ficar com uma coisa por 100 e a coisa valer 200 ou 300. E é este dano do devedor que a
lei quer prevenir. O pacto comissório, em si mesmo, potencialmente constituiria um
dano, ou poderia transformar-se num dano económico para o devedor. Aqui entra a
vida: se há devedores que podem discutir e o Código Civil aplica-se ao cidadão normal,
o que acontece é que, na prática, as pessoas, quando precisam de dinheiro, estão numa
situação de debilidade contratual e essa pode ser aproveitada por terceiros menos
escrupulosos que nestes meios são muito frequentes. O que podia acontecer é face a
essa debilidade contratual (substancialmente, pois não a há formalmente) credores
menos escrupulosos podiam impor pactos comissórios com graves prejuízos para os
devedores. Na prática, os devedores não conseguem fazer esse pagamento naquelas
condições, o risco mantém-se. A lei quer proteger o património do devedor e, por um
lado, proíbe o pacto comissório, por outro lado, impõe que a venda seja judicial ou para-
judicial. São formas que estão articuladas no sentido de o devedor não ser prejudicado
desproporcionadamente. E é a tutela deste interesse patrimonial que justifica esta
proibição.

Privilégios creditórios

por exemplo com os filhos em herança, não pode fazê-lo se daí resultarem unidades inferiores ao mínimo
legal. A Portaria nº 219/2016 vem substituir uma de 1970 e fixa as unidades mínimas de cultura, mas são
maiores do que eram nos anos 70. Estas unidades não são iguais em todo o país. Confere aos vizinhos o
direito de preferência na alineação. Isto não se aplica se a divisão tiver fins de construção (artigo 1377.º).
A lei diz que são nulos os atos de fracionamento. Simplesmente, aqui compreende-se que, em nome da
tutela do direito de propriedade, a lei estabelece um regime de invalidades misto (artigo 1379.º), com
duas particularidades: há um prazo para invocar a anulabilidade e nem todos os interessados a podem
invocar, são derrogações ao regime geral. O Ministério Público também pode invocar a nulidade, é o
garante de que se incentive a concentração da propriedade rústica. Mas também os vizinhos preferentes.
A ação de anulação caduca no fim de 3 anos.

103
Os privilégios creditórios são faculdades que a lei, em atenção à causa do crédito,
concede a certos credores de, independentemente de registo, serem pagos com
preferência a outros. Desta noção legal resulta que os privilégios creditórios derivam da
lei e não de negócio jurídico; e mesmo que incidam sobre coisa imóvel, não estão
sujeitos a registo. Por outro lado, a lei concede-os em atenção ou à qualidade dos
credores ou à natureza do crédito que protegem.
Já falámos a propósito dos privilégios por causa do princípio da prioridade
cronológica com bastantes exceções a essa regra. Aqui estamos perante direitos reais
de garantia de fonte exclusivamente legal. A lei fixa determinadas condições de crédito
e débito e, verificadas essas condições, a lei determina na esfera do credor este tipo de
garantia. As partes contribuem para criar estas condições. Obedece ao princípio da
taxatividade, já que as partes não podem inventar. Daí dizer-se que é um direito de fonte
legal em que as partes têm de dar origem de uma forma indireta e a lei retira a
constituição do direito. Só há privilégios para determinados créditos, os que a lei indica.
Há duas espécies de privilégios creditórios: os privilégios mobiliários49 e os
privilégios imobiliários50 (artigo 735.º). Estes segundos só abrangem certo e
determinado bem.
Há aqui um aspeto a ter em conta que tem a ver com os privilégios mobiliários
gerais, que não são direitos reais de garantia, embora gozem dos privilégios dos direitos
reais de garantia, designadamente a sua prioridade no pagamento e eficácia erga
omnes. A lei diz que o objeto destes direitos são todos os bens móveis existentes à data
da penhora. Mas o direito não se constitui à data da penhora, mas à data da constituição
do direito de crédito. Temos aqui dois momentos: o da constituição e o da execução
(penhora) e a lei só releva para efeitos de determinar o conjunto de bens que integram
o privilégio o momento da execução/penhora. O que significa que entre os dois
momentos o conjunto de bens pode variar, o que significa que os bens não são certos e
determinados – o privilégio mobiliário geral não tem um objeto certo e determinado. O
direito que não incide sobre coisa certa e determinada não é um direito real, contudo
beneficia das vantagens dos direitos reais. Portanto, os privilégios mobiliários gerais são
garantias reais e não direitos reais de garantia. Depois a lei individualiza, especifica quais
os créditos sujeitos a privilégios mobiliários gerais, os que originam um privilégio
mobiliário especial e os imobiliários. Tudo isto obedece ao princípio da taxatividade.
Como já vimos, a lei relativamente aos privilégios estabelece uma ordenação, ou
seja, os privilégios são pagos pela ordem que a lei indica (artigos 745.º e seguintes),
estabelece a prioridade no pagamento destes direitos de acordo não com a regra da
respetiva constituição, mas de acordo com uma apreciação e valoração dos créditos que
a lei faz e vai hierarquizando independentemente do momento de constituição. Temos

49
Diz-nos Santos Justo que os privilégios mobiliários incidem sobre coisas móveis e podem ser:
- gerais: abrangem o valor de todos os bens móveis que existam no património do devedor na data da
penhora ou de ato equivalente. Todavia, porque não incidem sobre coisa certa e determinada, não
constituem garantias reais; por isso, não valem contra terceiros titulares de direitos que, recaindo sobre
alguma dessas coisas, sejam oponíveis ao exequente;
- especiais: compreendem só o valor de determinados bens móveis. São, portanto, verdadeiras garantias
reais e, por isso, vigora o princípio da prioridade, por força do qual, se o privilégio se constituir e depois a
coisa sobre que incide for alienada a terceiro, o credor goza do direito de sequela.”
50
Segundo Santos Justo “os privilégios imobiliários consagrados no nosso Código Civil são sempre
especiais. No entanto, a lei pode criar privilégios imobiliários gerais para garantia de determinados
créditos.”

104
muitas situações em que a regra da prioridade cronológica é afastada pela regra da
prioridade legal.
Mais uma vez se faz referência ao artigo 694.º (pacto comissório).

Direito de retenção

O direito de retenção consiste, nas palavras de Santos Justo, “na faculdade de o


detentor de uma coisa móvel ou imóvel não a entregar a quem lha pode exigir, enquanto
não cumprir a obrigação a que está adstrito para com o seu titular”.
Tem origem legal (artigo 754.º) e estamos perante uma situação de
reciprocidade. É a faculdade que a lei confere ao detentor de uma coisa, seja móvel ou
imóvel, de não entregar a quem a pode exigir, enquanto este não cumprir uma
obrigação a que está adstrito perante esse detentor e aqui entra a causa, porque esse
detentor adquiriu um crédito em consequência de despesas feitas com essa mesma
coisa.
Quanto aos requisitos, é necessário que alguém detenha licitamente uma coisa
(artigo 756.º). Por outro lado, que esse detentor esteja obrigado a entregar essa coisa.
Finalmente, que esse detentor seja simultaneamente credor da pessoa a quem está
obrigado a restituir a coisa.
Temos dois credores que estão em conflito: um porque tem direito a receber a
coisa e o outro porque tem a coisa e tem um crédito sobre o seu crédito em
consequência de despesas feitas por causa dessa coisa. Este é o elemento que une as
duas relações jurídicas: entre quem tem o dever de entregar a coisa e o crédito do
detentor dessa mesma coisa há uma relação de conexão e essa decorre do facto de o
devedor que está obrigado a entregar tenha realizado despesas com essa mesma coisa
ou por causa dela e o responsável é a pessoa a quem deve entregar a coisa. O elemento
de ligação é a coisa que se detém e está obrigado a entregar. A lei diz que enquanto
aquele que realiza despesas por causa da coisa pode reter a coisa, não está obrigado a
entregá-la enquanto não for ressarcido das suas despesas.
No artigo 755.º, temos situações especiais em que a lei alarga o direito de
retenção, mas que não preenchem os pressupostos do artigo anterior. Vejamos em
concreto a alínea a). Num contrato de transporte, enquanto não pagar, não pode
levantar a coisa. Há uma dívida que não é paga. Um cumpre a obrigação de transportar
e o outro não cumpre a obrigação de pagar.
No direito de retenção, não se faz uma remissão direta para o artigo 694.º, mas
indireta, pois os artigos 758.º e 759.º, ao remeter para as normas do credor pignoratício
e hipotecário, remetem para o artigo 694.º. Temos uma remissão indireta.

9. Os direitos reais de aquisição: caracterização geral

Já estudámos o contrato-promessa com eficácia real, que é um destes direitos,


como também o é o pacto de preferência com eficácia real. Em suma, as promessas de
alienação ou oneração e as preferências reais. Falta ainda a terceira categoria que são
os direitos potestativos de aquisição, que já falámos a propósito das servidões legais.
São direitos que conferem ao titular um poder em consequência desse mesmo direito
sobre determinada coisa. Distingue-se da liberdade jurídica em geral, que todas as
pessoas têm o poder de adquirir coisas. Mas uma coisa é essa liberdade de adquirir em

105
geral, outra coisa é a faculdade específica que permite adquirir uma coisa específica.
Claro que tem na sua base esse poder de autodeterminação jurídica, mas desse direito
brota o direito real de aquisição.

Direito de preferência com eficácia real

Atribui a uma pessoa a possibilidade de, em certas situações, adquirir uma coisa
no caso de o seu proprietário a pretender alienar e o preferente se dispuser a pagar a
importância que um terceiro oferece.
O direito de preferência com eficácia real pode ser:
- legal: resulta da lei;
- convencional: resulta de um pacto de preferência com eficácia real, ou seja, de um
contrato através do qual um dos contraentes assume a obrigação de, em igualdade de
condições, escolher determinada pessoa, no caso de decidir celebrar determinado
negócio.
Uma vez registado (se incidir sobre bens imóveis ou móveis sujeitos a registo), o
pacto de preferência assume a natureza de direito real de aquisição desde que se
observem os requisitos de forma e de publicidade legalmente exigidos (artigo 413.º).

Contrato-promessa com eficácia real

O contrato-promessa dotado de eficácia real é um negócio jurídico em que uma


das partes promete transmitir ou constituir um direito real sobre bens imóveis ou
móveis sujeitos a registo que, mediante declaração expressa e inscrição no registo, goza
de eficácia real (artigo 413.º nº 1).
Cumpridos os requisitos, o direito do promitente-comprador prevalece sobre
todos os direitos (pessoais ou reais) que posteriormente se constituam sobre a mesma
coisa.

Outros direitos reais de aquisição

Além das figuras anteriores, podem apontar-se outros direitos reais de aquisição
que atribuem aos seus titulares a faculdade de adquirirem coercivamente outros
direitos reais: são verdadeiros direitos potestativos.
Destacam-se o direito de o proprietário de prédio confinante com parede ou
muro alheio adquirir comunhão (artigo 1370.º); o direito de constituir uma servidão
legal de passagem (artigo 1550.º); o direito de aproveitar as águas dos prédios vizinhos
que estejam sem utilização (artigos 1558.º nº 1 e 1561.º nº 4); e o direito de servidão
legal de aqueduto (artigo 1561.º).

106

Você também pode gostar