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FDUC – DIREITO DAS COISAS 2017/2018

Dr. Paulo Mota Pinto

I PARTE – DIREITOS REAIS EM GERAL


CAPÍTULO I – CONCEITO E CARACTERÍSTICAS DOS DIREITOS REAIS

A expressão direito das coisas e direitos reais são usadas como sinónimos, mas em rigor não é

assim: direito das coisas refere-se a um ramo do direito patrimonial; quando se fala de direitos reais
estamos a pensar nos direitos em particular (direito de propriedade, usufruto, etc.).

Porque é que surgiu o direito patrimonial? Surge porque é incontroverso que o homem,
para subsistir, precisa de bens, que são escassos - ou porque há uma momentânea impossibilidade

de os aceder ou porque são efetivamente escassos. Naturalmente surgiriam conflitos, daí surgir o
direito patrimonial para regular o acesso e a apropriação e utilização desses bens.

"Bem" é tudo aquilo que é apto a satisfazer necessidades humanas, não é sinónimo de coisa.
Todas as coisas são bens, pois todas as coisas servem para satisfazer as necessidades do homem;

mas nem todos os bens são coisas. Por ex., nós satisfazemos necessidades através de outras pessoas,
de comportamentos de outras pessoas - e as pessoas e os comportamentos não são coisas.

Dentro do direito patrimonial, encontramos o direito das coisas e o direito das obrigações (há
ainda o direito das sucessões, mas em rigor o fenómeno sucessório não altera a estrutura das

relações). Como é que distinguimos estes dois grandes ramos? O direito das obrigações regula

apenas o acesso à coisa, e não a sua apropriação e utilização. No âmbito do direito das
obrigações, mesmo quando há utilização de uma coisa, há sempre antes uma relação entre duas

pessoas, uma relação que se estabeleceu entre aquele que vai ter a utilização da coisa e aquele que a
permite. A pessoa só acede ao bem porque se estabeleceu uma relação prévia. Ex: na relação de

arrendamento, o arrendatário só utiliza a coisa porque celebrou um contrato de arrendamento. É o


estabelecimento de uma obrigação e o seu cumprimento que vai permitir a utilização da coisa.

Já o direito das coisas regula a direta e imediata utilização da coisa, regula o poder que o
homem tem e exerce sobre a coisa, independentemente de qualquer relação prévia sobre a coisa.

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Mas o que verdadeiramente nos interessa é a distinção entre os direitos reais e os direitos de
crédito. Antes de fazermos a distinção, vamos identificar as normas que servem de pano de fundo ao

direito das coisas:


1. Livro III do Código Civil.

2. Livro II em parte (direitos reais de garantia). Note-se que o direito do promitente


comprador e o direito do preferente, mesmo quando os contratos sejam dotados de

eficácia real, não são direitos reais de aquisição.


3. Depois temos um direito real que não está no Código Civil, que é o direito real de

habitação periódica (time sharing); ainda regras que alteraram o próprio Código Civil,
nomeadamente a propriedade horizontal, e ainda o Código de Registo Predial e Código

do Notariado.

Qual a distinção? Quanto a saber o que é um direito de crédito, é simples, porque a lei o diz
– o art. 397.º diz-nos o que é uma obrigação. O direito de crédito é o vínculo jurídico por virtude do

qual uma pessoa (credor) pode exigir de outra (devedor) a realização de certa prestação que pode
ter por objeto uma coisa (dare), uma atividade (facere) ou uma abstenção (non facere).

Mas o que é um direito real? Qual é a relação típica que existe nestes direitos? Ao longo da

história foram surgindo várias teorias, sendo que estas teorias interessam por contraposição aos
direitos de crédito.

TEORIA REALISTA

 DISTINÇÃO ENTRE DIREITO REAL E DIREITO DE CRÉDITO


Historicamente, a primeira teoria que surgiu foi a teoria realista. De acordo com esta, o direito
real traduz-se num poder direto e imediato sobre uma coisa:

 poder direto no sentido de ser um poder que não envolve o estabelecimento de uma relação
intersubjetiva;

 poder imediato no sentido de que o titular do direito atua sobre a coisa autonomamente sem
mediação, sem um terceiro ou o comportamento de um terceiro.

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O direito real exprime assim a relação entre a pessoa e uma coisa. Ao invés, o direito de crédito é

uma relação intersubjetiva, traduzindo-se no poder de exigir de outrem uma prestação: se no


direito real não existe nenhum mediador, no direito de crédito, quando o sujeito do direito acede ao
objeto, há sempre a mediação de um indivíduo, um intermediário – o devedor.

Se o direito real é um poder direto e imediato e o direito de crédito exprime uma relação entre

pessoas, o direito real traduz-se numa relação simples, linear e não intersubjetiva; o direito de

crédito exprime uma relação complexa, triangular e intersubjetiva. No primeiro caso, temos dois
polos, o homem e a coisa; e no segundo, três polos, dois sujeitos e uma coisa.

 ORIGEM HISTÓRICA
Esta conceção encontra as suas raízes no direito romano: apesar de os jurisconsultos romanos
não terem feito esta teorização, souberam aplicá-la no campo do direito processual: para obter o

cumprimento de uma obligatio recorria-se à actio in personam, em cuja intentio constava o nome do
demandado; já para a defesa de um direito real recorria-se à actio in rem, em cuja intentio não

figurava o nome do demandado.


Enquanto que na primeira o credor pretendia o cumprimento de um dever a que estava adstrito

o devedor, na segunda o demandante reclamava de um terceiro o respeito do seu direito sobre uma

coisa, de se abster de o perturbar.


Mais tarde, esta conceção de direito real foi explicitado pela escola dos glosadores, que

elaboraram pela primeira vez uma noção de direito real, e desenvolvida pelos comentadores:
enquanto que o ius in re seria o direto que incide diretamente sobre um coisa, sem a mediação de

qualquer sujeito, a obligatio, vista pelo lado ativo, seria o direito que permite exigir uma prestação a
determinada pessoa.

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TEORIA PERSONALISTA

 O DIREITO REAL COMO RELAÇÃO INTERSUBJETIVA


No século XIX, uma corrente da doutrina, inspirada no pensamento kantiano, veio defender uma

posição diferente, a teoria personalista. Esta teoria vem dizer que não existem relações entre homens
e coisas, todas as relações são relações intersubjetivas – assim, se a intersubjetividade é um elemento

essencial de todas as relações jurídicas, o direito real não pode deixar de se traduzir num vínculo
entre pessoas. O núcleo de um direito subjetivo é sempre uma pretensão dirigida a um

comportamento humano.
Os personalistas acrescentavam ainda que, nos direitos reais, os realistas caíram no engano de

achar que não havia nenhum sujeito do lado passivo porque não o conseguiam identificar. E não o
conseguiram fazer por uma razão simples: porque os obrigados do lado passivo são todos os que

não são titulares do direito real, pensaram que não era nenhum. Por outro lado, os realistas caíram
naquele erro porque todos os que não são titulares do direito real não estão obrigados a realizar um

comportamento positivo, mas sim a uma obrigação passiva universal.

Partindo desta premissa, o direito real foi definido como o poder de afastar, de excluir,

ingerências de terceiros incompatíveis com o conteúdo do direito, ou seja, o direito real passou a

ser visto como o vínculo entre o titular do direito e todas as outras pessoas, impondo a estas a

chamada obrigação passiva universal.


Na teoria personalista houve uma evolução: inicialmente dizia-se que era uma relação entre o

titular e todos; e depois entre o titular do direito e todos aqueles que possam praticar atos de
ingerência incompatível com o conteúdo do direito.

 SEGUNDA CRÍTICA: HÁ DIREITOS REAIS QUE NÃO CONFEREM UM PODER DIRETO E

IMEDIATO SOBRE A COISA


Para além desta forte crítica à teoria realista (não há relações entre homens e coisas), os

defensores da teoria personalista ainda vinham acrescentar outras – nomeadamente, que há direitos

reais que não convocam nenhuma relação entre o homem e uma coisa, que não conferem

nenhum poder direto e imediato sobre a coisa. É o caso das servidões negativas e de alguns
direitos de garantia, como a hipoteca. A hipoteca é um direito real de garantia que atribui ao seu

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titular o poder de satisfazer o seu crédito à custa do valor de uma coisa com preferência face aos

demais credores.

Imaginemos que A precisa de dinheiro para comprar uma casa: pretende celebrar com o

banco um contrato de mútuo, sendo que o banco exige uma garantia, o direito de hipoteca sobre
a casa que vai comprar. Se A não pagar, o banco pode satisfazer o seu crédito à custa da coisa, ou

seja, pode promover a venda judicial da coisa: com o produto da venda, é pago o titular da
hipoteca e só depois os restantes. O banco não fica com a casa em seu poder: o credor

hipotecário não tem um poder direto e imediato sobre a coisa (no sentido de poder material).

Esta é uma crítica que veremos que não procede: dizer que o direito real é um poder direto
e imediato sobre a coisa não é a mesma coisa que dizer que a coisa está nas mãos do titular, que

pode usar diretamente. O núcleo típico do direito real de garantia é o poder de promover a venda
judicial da coisa.

 TERCEIRA CRÍTICA: O PODER DIRETO E IMEDIATO NEM SEMPRE CONSTITUI O

INSTRUMENTO ATRAVÉS DO QUAL O TITULAR SATISFAZ O SEU INTERESSE


Uma terceira crítica avançada é a de que há direitos reais que se traduzem num poder direto e
imediato sobre a coisa, mas não é através desse poder que o seu titular satisfaz o seu interesse que o

levou a adquirir o direito. Os personalistas dão aqui como exemplo o penhor de coisa, que também
é um direito real de garantia mas que incide sobre coisas móveis. No penhor de coisa há uma

especificidade: só se constitui havendo entrega da coisa.


Os personalistas vieram dizer que há direitos reais que dão ao credor um poder direto e imediato

sobre a coisa (a coisa está nas suas mãos), mas não é esse poder que satisfaz o seu interesse: é a
venda judicial que satisfaz o interesse do credor pignoratício; ou seja, apesar de ter a coisa na sua

mão, não o usa. A garantia pignoratícia assume uma função acessória ou instrumental.
Mais uma vez, esta crítica não assume grande relevância para aqueles que entendem que o poder

direto e imediato não significa necessariamente o poder de usufruir da coisa.

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 QUARTA CRÍTICA: HÁ DIREITOS DE NATUREZA NÃO REAL QUE ENVOLVEM UM PODER

DIRETO E IMEDIATO SOBRE A COISA

Por fim, os personalistas diziam ainda que há direitos de natureza não real, os direitos pessoas de
gozo, que no entanto também envolvem um poder direto e imediato sobre a coisa.

Ex: A pede emprestado a B uma casa de praia e B acede, entregando a chave. Celebraram um

contrato de comodato, mas apenas com a celebração do contrato e a entrega da chave A satisfaz
o seu interesse? Não: o comodatário satisfaz o seu interesse atuando diretamente sobre a coisa.

De facto, estes direitos satisfazem-se sem a interferência de terceiro, mas estes são direitos

pessoais de gozo, como iremos ver.

Em suma: para os personalistas, o direito de crédito é assim o poder perante uma pessoa,
pelo que os direitos de crédito e os reais distinguem-se apenas pela eficácia relativa dos primeiros

e eficácia erga omnes dos segundos.

TEORIA ECLÉTICA OU MISTA

Esta teoria surgiu na Alemanha e procura conciliar as teorias anteriores, mostrando que as
suas divergências não são irredutíveis. Para isso, considera que há nos direitos reais dois lados: o

interno, que se traduz no poder direto e imediato sobre a coisa; e o externo, que se identifica com a
relação entre o titular do direito e as demais pessoas.

No fundo, esta teoria junta as duas: no lado interno, adota a teoria realista; no externo, a
personalista.

Existem divergências no seio desta teoria, havendo quem dê mais importância ao lado interno
e quem, pelo contrário, acentue o lado externo.

Podem tecer-se críticas a esta teoria. Este compromisso não só não evita as críticas às
doutrinas que procura conciliar, como ainda se podem fazer outras. Refere-se que não podem haver

lados num direito ou numa relação, sendo a harmonia apenas verbal e aparente.

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A nossa posição, apesar das possíveis críticas, é a de que a teoria eclética é a que retrata com
maior fidelidade o regime jurídico dos direitos reais. O lado interno mostra-nos um poder que incide

imediatamente sobre uma coisa e, por isso, permite distinguir os diversos direitos reais; e o lado
externo revela-nos que a sua tutela é absoluta, dirige-se contra a generalidade das pessoas que

podem interferir com o exercício desse poder.

TEORIA DE HENRIQUE MESQUITA: REALISMO RENOVADO


Em 1990, HENRIQUE MESQUITA avançou uma posição diferente, que MÓNICA JARDIM

subscreve na íntegra - veio defender a teoria realista mas atualizada, afastando as críticas da
personalista. Para o autor, o direito real seria uma relação jurídica através da qual uma coisa fica
subordinada ao domínio ou soberania de uma pessoa, segundo um certo estatuto ou conjunto de
regras, estatuto esse que é fonte de poderes mas também de obrigações.

 CRÍTICAS À TEORIA PERSONALISTA


1) AS OBRIGAÇÕES REAIS

A teoria personalista, tal como a realista, foram as duas definidas na perspetiva do poder,

abstraindo dos deveres de conteúdo positivo que impendem sobre o titular de um direito real. A
primeira grande novidade do realismo renovado foi a de trazer para o conteúdo dos direitos reais as

obrigações reais: os titulares dos direitos reais, pelo simples facto de o serem, estão adstritos à
realização de várias prestações de conteúdo positivo, logo faz sentido trazer essas obrigações para o

conteúdo dos direitos reais. São exemplos de obrigações reais:


1. Se uma pessoa é proprietária de um imóvel, tem de pagar IMI; se for proprietária de um

carro, IUC.
2. O titular do direito de superfície (art. 1530.º) tem direito a construir ou plantar no terreno

que é proprietário de outro. Pode-se prever que o superficiário tenha de pagar um preço; se ficar
assim estabelecido, este está obrigado a realizar uma prestação pecuniária pelo simples facto de ser

superficiário.
3. Os comproprietários estão obrigados a contribuir para a realização das benfeitorias (art.

1411.º) e a dar preferência aos outros na alienação da sua quota.

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2) A INTERSUBJETIVIDADE
Para além de abstrair das obrigações reais, a teoria personalista descaracteriza a essência do

direito real, ao negar o carácter de relação entre a pessoa e a coisa. O ponto de partida da teoria
personalista é a de que todas as relações jurídicas são necessariamente intersubjetivas. HENRIQUE

MESQUITA veio dizer que isto é algo que se afirma mas que está por demonstrar: uma relação
creditória pressupõe cooperação, logo é necessariamente intersubjetiva. Ponto é saber se isto se

impõe naturalmente no âmbito dos direitos reais: nos direitos reais, não há qualquer relação de
cooperação, o que existe é uma relação de domínio, soberania.

Assim, temos:
1. A tutela dos interesses humanos pode ser alcançada por via das relações de cooperação ou

pela via da ordenação direta dos bens – nos direitos reais, estão em causa relações ordenadoras ou
atributivas.

2. O que a categoria de relação jurídica exige não é a intersubjetividade, mas sim a existência
de dois polos que a ordem jurídica interliga.

Mas o grande argumento avançado por HENRIQUE MESQUITA foi o seguinte: qual é o

conteúdo do direito que permite satisfazer o interesse do titular? Se virmos nesta perspetiva, do
interesse do titular do direito, chegamos à conclusão de que o direito real é um poder direto e

imediato sobre a coisa. Não é afastando ingerências de terceiros que se satisfaz o interesse do titular:
logo, este é um aspeto secundário; é atuando sobre a coisa que se satisfaz o interesse.

Isto não significa que se negue o poder de afastar ingerências de terceiros, apenas se
reconhece que este é uma mera decorrência da atribuição de determinada soberania sobre uma

coisa. “Na atribuição de determinada soberania sobre uma coisa vai incluído um duplo sentido: por
um lado, a subordinação dessa coisa ao domínio do direito ...; por outro lado, e implicitamente, a

exclusão de terceiros relativamente à mesma esfera de soberania”. A subordinação de uma coisa ao


domínio do titular do direito é o aspeto positivo da soberania; enquanto que a exclusão de terceiros

é o aspeto negativo.

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O dever de não cometer ingerências não é verdadeiramente uma obrigação (não há uma

relação intersubjetiva), devendo-se antes falar de um dever geral de abstenção. O legislador, ao


proibir a terceiros ingerências, não quer relacionar as pessoas mas sim afastá-las.

Em suma: HENRIQUE MESQUITA afasta-se da teoria personalista pois vem dizer que o núcleo
do direito real não é o poder de afastar ou excluir ingerências de terceiros: do ponto de vista prático,

económico, do titular do direito, o que faz com que o titular do direito consiga satisfazer o interesse
que o levou a adquirir o direito é poder usar, fruir a coisa. O núcleo essencial do direito real estará

assim no poder direto e imediato sobre a coisa – o que não significa que HENRIQUE MESQUITA
negue o poder de afastar as ingerências de terceiro, uma vez que todos os outros estão vinculados

pelo dever de geral de abstenção. Mas este dever é imposto pelo legislador não para relacionar os
demais com o titular, mas para os excluir: é uma decorrência do facto de atribuir a soberania ao

titular do direito.

 CRÍTICAS À TEORIA REALISTA CLÁSSICA


E em relação à teoria realista clássica? Desde logo, há a diferença das obrigações reais; mas há

ainda uma explicitação a fazer. Uma das críticas da teoria personalista à realista é a de que há direitos
de crédito que envolvem um poder imediato sobre a coisa: então porque é que dizemos que é o

poder direto e imediato sobre a coisa que caracteriza o direito real? Pois estes direitos não são
direitos de crédito, mas sim direitos pessoais de gozo.

Assim, para caracterizar os direitos reais como direitos que conferem poderes diretos e imediatos
sobre uma coisa, é necessário distingui-los dos direitos pessoais de gozo. HENRIQUE MESQUITA fá-

lo com base no fundamento jurídico deste poder: enquanto que, nos direitos reais, o poder direto e
imediato surge com base na relação de domínio ou soberania estabelecida entre o titular do direito e

a coisa, nos direitos pessoais de gozo assenta numa obrigação assumida por quem tenha
legitimidade para dispor do gozo da coisa.

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CARACTERÍSTICAS DOS DIREITOS REAIS. CONFRONTO COM OS DIREITOS DE CRÉDITO.


Encontrado o conceito de direito real, tem lógica justificação apurarmos agora as suas principais

características, para o que recorremos, nesta análise, à perspetiva de um confronto dos direitos reais
com os direitos de crédito.

1. EFICÁCIA ABSOLUTA

Os direitos reais são eficazes erga omnes, o que se traduz, por um lado, na atribuição ao seu
titular do poder de os exercer em face de todos os outros e, por outro, na imposição a estes de

restrições, ou, melhor, da necessidade de respeitarem o direito que em face deles se apresenta.
É esta eficácia absoluta dos direitos reais uma das razões que levaram à sua sujeição ao

princípio da tipicidade ou numerus clausus (art. 1306º CC). Este princípio resulta da
impossibilidade em que se encontram os particulares de criar direitos reais de um tipo ou com um

conteúdo que não correspondam aos tipos e conteúdos desenhados na lei. Não há, assim, liberdade
de conformação interna dos direitos reais diversamente do que sucede nos direitos de crédito.

Este princípio da tipicidade surge-nos como uma resposta a uma exigência derivada da
eficácia absoluta dos direitos reais pelas seguintes razões: em primeiro lugar, se os direitos reais

gozam de eficácia real, devem ser respeitados por todos, o que implica, por sua vez, a sua
cognoscibilidade por todos os restantes membros da coletividade. Por sua vez, esta cognoscibilidade

só é possível se se proceder à tipicização desses direitos. Em segundo lugar, esta proteção absoluta
só deve ser garantida pelo ordenamento jurídico se se verificar a existência de uma real necessidade

nesse sentido, pois vão ser criadas restrições à liberdade de ação de todos à exceção do titular
desses direitos e isto explica não ser permitida a criação de direitos reais de tipo ou conteúdo

determinados pela sua vontade.


Os tipos dos diferentes direitos reais e respetivos conteúdos devem, pelas razões expostas,

encontrar-se pré-determinados e descritos na lei.

Concluindo, a primeira nota distintiva dos direitos reais em face dos direitos de crédito

resulta da circunstância de aqueles gozarem de uma eficácia absoluta, enquanto que a destes é
meramente relativa.

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2. DIREITO DE SEQUELA
O direito de sequela ou seguimento constitui uma consequência da eficácia absoluta dos

direitos reais. Isto significa que o direito segue a coisa, acompanha-a, podendo fazer-se valer seja
qual for a situação em que a coisa se encontre. O titular do direito real pode sempre exercer os

poderes correspondentes ao conteúdo do seu direito, ainda que o objeto se encontre no domínio
material ou esfera jurídica de outrem.

A hipótese tipicamente indicada para exemplificar o direito de sequela: O proprietário

pode reivindicar a coisa de um terceiro que dela se tenha apoderado e isto, tanto no caso de essa
apropriação ter resultado de um ato material, como no de provir de um ato de natureza jurídica.

Assim, figure-se que um indivíduo comprou um prédio a A, mero locatário, julgando ser este o
proprietário respetivo. O proprietário pode reivindicar a coisa da pessoa que a adquiriu por um

título – compra e venda – normalmente idóneo para transferir a propriedade, mas que, não o é, no
caso em apreço, por o transmitente não possuir legitimidade para alienar uma coisa que lhe não

pertence. Não fica, por isso, o proprietário inibido de reivindicar a coisa, podendo fazê-lo, exceto se,
como é óbvio, entretanto se tiverem verificado os pressupostos de usucapião a favor de terceiro

adquirente. Pode, com efeito, muito bem suceder que a reivindicação da coisa seja paralisado por
uma exceção - a da aquisição por usucapião – oposta pelo seu possuidor desde que tenham já

decorrido os pressupostos dessa forma de aquisição da propriedade.

Retomando agora a hipótese referente ao exemplo utilizado, poderá dizer-se que o


proprietário exerce uma ação de reivindicação, constituindo este o meio processual pelo qual a

sequela se manifesta. Note-se, porém, que não é a ação de reivindicação o único meio processual de
manifestação da sequela, embora o facto de esta ser correntemente exemplificada com hipóteses de

tipo daquela que assinalámos pudesse sugerir o contrário.


No exemplo citado a sequela revestirá efetivamente a veste processual corresponde à ação de

reivindicação. Isso deve-se à circunstância de aí a coisa se encontrar numa situação material


incompatível com o direito, uma vez que ela se situa, não na posse do seu proprietário ou de quem a

detivesse com permissão deste, mas na de um terceiro que a adquiriu de quem, sem autorização do

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seu proprietário, não tinha legitimidade para a alienar. Ora, nestes casos em que a coisa se encontra

numa situação material incompatível com o direito, a sequela vai manifestar-se precisamente através
da ação de reivindicação.

Nas hipóteses em que, não se verificando essa situação de incompatibilidade, mas apenas a
existência de uma situação jurídica suscetível de perturbar o direito real, não havendo, por isso, lugar

à ação de revindicação, não deixa, porém, também aí, de se manifestar a sequela.

Assim, por exemplo, tanto ao usufrutuário como ao titular de um direito real de garantia
(v.g. a hipoteca) assiste o direito de sequela, se a coisa for alienada a terceiro pelo seu

proprietário; isto na medida em que esses direitos reais podem ser opostos ao terceiro adquirente
para quem a coisa se transmitiu. Não há, todavia, nestes casos qualquer razão que justifique o

exercício de uma ação de reivindicação, desde logo porque, por exemplo, na hipótese do
usufruto, o usufrutuário até está na posse da coisa, não tendo assim nada a reivindicar.

Então, pergunta-se: em que se manifesta aqui esse direito de sequela?

Manifesta-se na circunstância referida, ou seja, na de o usufruto poder ser exercido em relação


ao novo adquirente da nua propriedade ou propriedade de raiz. Só que, agora, o exercício de

sequela não vai traduzir-se numa ação de reivindicação, mas no de uma ação de simples apreciação.
O usufrutuário está, como já dissemos, na posse da coisa, não obstante esta ter sido

transmitida do proprietário da raiz para um outro, podendo afirmar o seu direito de usufruto em face
do novo proprietário. É nesta possibilidade que assiste ao usufrutuário de fazer valer o seu direito

contra qualquer adquirente da propriedade, limitada pelo usufruto, que precisamente reside a
sequela. Só que aqui este direito de sequela não vai manifestar-se através de ação de reivindicação,

uma vez que – insistimos – não há nada para reivindicar, mas mediante uma ação de simples
apreciação intentada pelo usufrutuário, se surgirem dúvidas sobre a existência do seu direito, para

que este venha a ser declarado.


Daqui resulta que a ação de mera apreciação constitui em hipóteses do tipo que prefiguramos

– o usufruto – o meio processual idóneo para o direito de sequela se manifestar.


As coisas passam-se de forma idêntica em relação ao outro exemplo citado – a hipoteca.

Também ao credor hipotecário, ao titular do direito real de garantia, assiste a possibilidade de

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continuar à execução a coisa, objeto do seu direito, independentemente de esta pertencer ainda ao

proprietário que constitui a hipoteca, ou já a um posterior adquirente. E é precisamente nessa


possibilidade que o titular da hipoteca tem de fazer valer o seu direito, independentemente da

transmissão da propriedade, que reside esse direito de sequela.


Destas considerações arranca uma segunda nota específica dos direitos reais em face dos

direitos de crédito. É que ao titular de direitos de crédito, diversamente do que vimos acontecer em
relação ao titular de direitos reais, não assiste o direito de sequela. Este surge-nos, assim, como

privativo dos direitos reais.

Figure-se, neste sentido, um exemplo extraído do contrato de comodato ou de um


contrato-promessa de comodato. O credor desta promessa não pode opor o seu direito ao novo

proprietário da coisa sobre que este incide, se, entretanto, aquela for alienada. Concretizando: se
A promete emprestar-nos o seu automóvel no próximo fim-de-semana é-nos lícito exigir-lhe,

chegando esse momento, o cumprimento da obrigação a que se acha adstrito, facultando-nos o


uso do veículo. Se, no momento do cumprimento, o devedor – A – tiver, porém, alienado o

automóvel, não podemos exigir ao novo proprietário que nos faculte a utilização do veículo. A
nossa posição de credor não aderiu, assim, à coisa, não a acompanhou na transmissão da sua

propriedade para um terceiro adquirente; o que conduz necessariamente à conclusão de não nos
assistir aqui o direito de sequela que permanece, assim, exclusivo dos direitos reais.

Aliás, já vimos, em momento anterior, ser a falta deste requisito que nos leva a repudiar

aquela conceção que vê no direito de crédito um direito real sobre o património do devedor. O
direito de crédito não proporciona, como então dissemos, um direito real sobre património do

devedor, uma vez que o seu titular, diferentemente do titular deste, não pode perseguir os bens que
saem do património do devedor, exceto através da chamada impugnação pauliana, verificados os

pressupostos deste instituto (p.ex. má fé nas alienações onerosos). Não se trata aqui – como se vê –
do direito de sequela.

No nosso direito positivo atual, as coisas não se passam inteiramente desta forma. Não deixa,
porém, de ser exata a afirmação de que a sequela se não se confunde com a impugnação pauliana,

uma vez que esta implica, diferentemente do que resulta do exercício do direito de sequela, a

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anulação do ato do transmissão da coisa para um terceiro adquirente, exigindo ainda, para que

possa ser exercida, a verificação de certos e determinados requisitos. Não é, portanto, a impugnação
pauliana uma manifestação do direito de sequela.

ENTÃO: A sequela está presente na ação de reivindicação que permite ao titular de um

direito real de gozo obter o reconhecimento do seu direito e a restituição do que lhe pertence.
Se o direito real não envolver um contacto direto com a coisa, a sequela manifesta-se noutros

sentidos. Se estivermos perante uma hipoteca, a sequela traduz-se na possibilidade de o credor


hipotecário fazer vender a coisa, quer pertença ao proprietário que a constituiu, quer venha a

pertencer a um terceiro. Num caso de um direito real de aquisição, a sequela consiste na


possibilidade de o seu titular adquirir a coisa alienada por quem, num contrato-promessa com

eficácia real, num pacto de preferência também com essa eficácia, ou por força da lei (p.ex. art.
1380º CC) esteja vinculado a dar preferência e não cumpre a sua obrigação.

Cumpre, agora, na continuação da análise desta segunda característica privativa dos direitos
reais – e que vale para todos eles – versar uma outra questão.

Comportará o direito de sequela exceções? Haverá situações em que, pelo menos,


substancialmente, se verifiquem equivalentes a exceções ao direito de sequela?

Existem exceções à sequela. Quando se dá a alienação de imóvel (ou de móvel sujeito a


registo), precedida de negócio jurídico cujo vício justifica que seja declarada a sua invalidade.

Declarado nulo ou anulado esse negócio, os direitos adquiridos por terceiro não são prejudicados,
desde que a ação de declaração de nulidade ou anulação não seja proposta dentro dos três anos

posteriores à conclusão do negócio e o terceiro registe a sua aquisição antes do registo da ação ou
do acordo entre as partes acerca da invalidade do negócio. Esta solução é um compromisso entre os

interesses que justificam a invalidade do negócio e os legítimos interesses de terceiros e do tráfico.


Outra exceção relaciona-se com a prioridade do registo. A sequela não existe quando a lei

faz depender do registo a eficácia do direito em relação a terceiros que adquiram um direito real
total ou parcialmente incompatível.

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Não constitui exceção à sequela a aquisição a non domino de coisa móvel porque, apesar da
boa-fé do adquirente, o proprietário pode reivindicá-la. No direito francês, está consagrado o

princípio segundo o qual quem, de boa-fé, adquirir uma coisa móvel a comerciante, torna-se seu
proprietário, não lhe podendo ser exigida a restituição. Embora o nosso legislador não tenha

acolhido este princípio que se fundamenta na necessidade de proteger os interesses do comércio,


consagrou uma solução que serve de compromisso, não sendo, mesmo assim, uma exceção à

sequela: o proprietário pode exigir a coisa ao terceiro que, de boa-fé, a comprou a comerciante que
negoceie em coisa do mesmo ou semelhante género, desde que lhe restitua o preço prago, gozando

do direito de regresso sobre quem culposamente lhe causou o dano.

3. DIREITO DE PREFERÊNCIA

Prevalência ou preferência consiste na prioridade dos direitos reais sobre os direitos de


crédito e sobre os direitos reais constituídos posteriormente quando total ou parcialmente

incompatíveis com o anterior (prior in tempore, potior in iure). O art. 408º/1 CC apoia de alguma
forma este princípio pois transferindo-se a titularidade de um direito real, por mero efeito do
contrato (princípio da consensualidade), a sua eficácia absoluta confere automaticamente preferência

sobre qualquer outro direito real incompatível que tenha por objeto a mesma coisa.
Existe, no entanto, divergência doutrinal quanto à prevalência como característica dos direitos

reais. MENEZES CORDEIRO considera-a como característica dos direitos reais, enquanto que PINTO
COELHO a vê como característica exclusiva dos direitos reais de garantia, negando a sua existência

fora deles.
Mas a prevalência também se encontra em alguns direitos de crédito. Caso disso é o

privilégio mobiliário geral que não incide sobre coisa certa e determinada, mas sobre o património
do devedor, sendo um direito de crédito e não um direito real. Mas confere ao seu titular a

prevalência sobre os credores comuns do devedor. Se o titular for o Estado ou autarquia local (como
acontece para garantia de créditos resultantes de determinados impostos – art. 736º CC), esse

privilégio atribui ao credor a preferência mesmo sobre privilégios mobiliários especiais, que são já
direitos reais.

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FDUC – DIREITO DAS COISAS 2017/2018

Outro caso é a concessão sucessiva de direitos pessoais de gozo incompatíveis a diferentes


pessoas, em que vai prevalecer o direito mais antigo, sem prejuízo das regras próprias do registo.

Exemplo: dois comodatários adquirem, por contratos sucessivos, o direito à entrega da

coisa para o mesmo dia. Há aqui uma incompatibilidade, já que o devedor não pode cumprir
simultaneamente os dois contratos, ou não pode, por exemplo, facultar a utilização do seu

automóvel, no mesmo dia, a duas pessoas diferentes. O art. 407.º resolve a questão fazendo
prevalecer o direito mais antigo em data. Ora, é esta solução, uma consagração do direito de

preferência.

A prevalência tem exceções, pelo que nem sempre o direito real mais antigo prefere sobre o
mais recente. Isto acontece devido à prioridade do registo, quando a lei atribui eficácia ao registo

perante terceiros, se o primeiro adquirente não registar a sua aquisição, não prefere sobre o segundo
adquirente que, apesar de posterior, registou a sua aquisição.

Também é uma exceção à prevalência o art. 291.º do CC.


A última exceção reside nos privilégios creditórios imobiliários. É esta uma figura já

conhecida: constituem os privilégios creditórios garantias reais das obrigações, direitos reais de
garantia, definidos no art. 733.º CC traduzindo-se na faculdade que a lei, em atenção à causa do

crédito, concede a certos credores de serem pagos pelo valor de certos bens com preferência a
outros e isto independentemente do registo.

Os privilégios creditórios não estão sujeitos a registo, produzindo a sua eficácia sem
necessidade deste. É a lei que os atribui diretamente, não resultando, assim, de uma convenção das

partes. São privilégios legais concedidos em atenção à causa de crédito. Ora, os privilégios
imobiliários que são regulados nos arts. 743.º e 744.º - crédito por contribuição predial devida ao

Estado ou às autarquias locais o créditos por despesas de justiça feitas diretamente no interesse
comum dos credores – beneficiam de um privilégio sobre os bens imóveis com os quais estão

relacionados. Os titulares desses créditos são, assim, simultaneamente titulares de um direito real de
garantia – um privilégio creditório imobiliário sobre esses bens.

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FDUC – DIREITO DAS COISAS 2017/2018

Ora nos termos do art. 751.º CC, estes privilégios imobiliários preferem à consignação de
rendimentos, à hipoteca, ao direito de retenção, ainda que estas garantias tenham sido

anteriormente constituídas.

Quer isto dizer, portanto, que se um indivíduo dá certo prédio em hipoteca, registando-a,
mas, posteriormente assume uma dívida que é garantida por lei com um privilégio creditório

imobiliário sobre esse prédio, o beneficiário deste privilégio, embora o crédito garantido seja
posterior à hipoteca, tem preferência sobre o titular da hipoteca anteriormente constituída – isto,

repetimos, apesar de o privilégio ser posterior e até não se encontrar registado, dado que,
segundo o regime de privilégios, o registo não é exigido.

Aqui reside uma nítida exceção ao princípio da preferência ou da prevalência.

Já o mesmo não sucede em relação aos privilégios mobiliários especiais, uma vez que o art.
750.º CC determina o acatamento do direito de preferência, ao estatuir que “no caso de conflito

entre o privilégio mobiliário especial e um direito de terceiro, prevalece o que mais cedo se houver
adquirido”. Daqui decorre que havendo, nesta hipótese, um acatamento do direito de preferência, as

exceções a este restringem-se, neste domínio, aos privilégios imobiliários especiais previstos nos arts.
743.º e 744.º referidos.

4. INERÊNCIA.

Uma outra característica dos direitos reais é a que designaremos por inerência da coisa ao
seu titular. Formula-se mais correntemente esta ideia dizendo-se que os direitos reais conferem um

domínio ou soberania sobre a coisa, seu objeto. Porém, esta expressão – domínio ou soberania -, é
de aplicação mais correta aos direitos reais de gozo, não surgindo com tanta nitidez nos restantes.

Daí que seja, talvez, preferível falar-se nesta relação de inerência da coisa do seu titular, como
propomos.

É a característica que se exprime ao falar-se do lado interno do direito real.

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FDUC – DIREITO DAS COISAS 2017/2018

Em última análise, não é senão um corolário da eficácia absoluta do direito real,


representando, como tal, uma síntese das ideias de sequela e de preferência. A coisa adere ao seu

titular.
Em conclusão: A inerência traduz a ligação íntima dos direitos reais às coisas que constituem

os seus objetos. Por isso, não se pode manter um direito real se o seu objeto mudar: “não é
juridicamente possível transferir o mesmo direito real de uma coisa para outra; caso semelhante
operação fosse tentada, o efeito seria a extinção do direito real e a constituição de novo direito real”.

5. OUTRAS CARACTERÍSTICAS.
A doutrina refere outras características.

A violação dos direitos reais resulta de um comportamento positivo (ação; facere), enquanto
que a dos direitos de crédito resulta geralmente de um facto negativo (omissão; non facere). Assim,

estes direitos têm por objeto prestações de facto positivo ou de prestação de coisa, enquanto que
aos direitos reais corresponde uma obrigação passiva.

Considera-se que a maioria dos direitos reais de gozo é suscetível de aquisição por usucapião,
o que não sucede com os direitos de crédito.

Fala-se, ainda, na característica da permanência dos direitos reais, por oposição à

transitoriedade dos direitos de crédito, mas esta ideia deve ser rejeitada. Se entendermos
permanência como perpetuidade, existem direitos reais temporários, como o direito de usufruto (art.

1439º CC). Se entendermos permanência como estabilidade, chegamos à conclusão de que esta é
meramente tendencial, visto haver direitos reais que se extinguem pelo seu exercício, como os

direitos reais de garantia e de aquisição. Além disto, a transitoriedade nem sempre se encontra nos
direitos de crédito, visto termos obrigações de facto negativo e positivo permanentes.

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CONFRONTO DOS DIREITOS REAIS COM OS DIREITOS DE CRÉDITO


Não é pacífica a distinção entre os direitos reais e os direitos de crédito, afirmando-se mesmo

que não há critério indiscutível para distinguir o direito real do direito pessoal.
Existem mesmo autores que recusam a distinção, integrando esses direitos num conceito

unitário que enfatiza ora o elemento obrigacional ora o elemento real.


Dentro das doutrinas da unidade, temos o monismo personalista, defendido por DEMOGUE

que defende não haver distinção, correspondendo a ambos os direitos uma obrigação passiva
universal, uma eficácia erga omnes. A única diferença seria que o direito real era um direito forte,

porque a relação jurídica é estabelecida diretamente entre o seu titular e as demais pessoas,
enquanto que o direito de crédito é um direito fraco, visto estar apenas o devedor adstrito à

realização da prestação, devendo as demais pessoas abster- se de dificultar ou impedir o seu


cumprimento. É facilmente refutável, visto o nosso sistema jurídico não admitir o efeito externo das

obrigações.
Temos, ainda dentro das doutrinas da unidade, o monismo realista, defendido por

GAUDEMET que vê nos direitos de crédito direitos reais, porque são igualmente direitos sobre coisas.
Estes incidem sobre coisas determinadas, enquanto que aqueles têm por objeto o património do

devedor. Como argumento invoca-se a impugnação pauliana, cujos efeitos só aproveitam ao credor
que a requeira (art. 616º CC) e que permite ao credor executar os bens no património do terceiro

adquirente, gozando este direito de crédito da sequela, tal como um direito real. É criticável visto a
impugnação pauliana exigir a prova da titularidade do crédito e depender de vários requisitos, como

a boa ou má fé das partes.


Existe, finalmente a doutrina eclética (mista), que defende a distinção entre direitos de crédito

e direitos reais. Distinguem-se nos seguintes termos:


1. Os direitos reais são direitos absolutos, i.e., impõem-se a todas as pessoas que são

obrigadas a respeitá-los, gozando, assim, de eficácia erga omnes; os direitos de crédito são relativos,
vinculando pessoas determinadas (o/os devedor/es).

2. Os direitos reais são direitos de exclusão, traduzem a subordinação direta e imediata de

coisas determinadas ao domínio ou soberania dos seus titulares; os direitos de crédito são relações

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de cooperação entre os seus titulares e os devedores pelas quais passa a satisfação do interesse dos

credores.

3. Os direitos reais têm como objeto coisas corpóreas individualizadas (certas e determinadas),

por isso sendo, em regra, acompanhados de publicidade; os direitos de crédito têm por objeto
prestações, só sendo conhecidos pelos devedores respetivos.

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CAPÍTULO II – CLASSIFICAÇÃO DOS DIREITOS REAIS


Dentro da sistematização adotada cumpre traçar, agora, um quadro classificatório dos direitos
reais, visto que, seguidamente, iremos estudar alguns direitos reais em especial. Neste contexto usa

fazer-se uma clássica distinção entre direitos reais de gozo e direitos reais de garantia. Esta distinção
não é, porém, uma “summa divisio” ou seja, uma distinção que cubra toda a universalidade dos

direitos reais. Trata-se, de facto, de uma distinção incompleta, dado haver direitos reais que não
cabem nos quadros desta classificação, nomeadamente os direitos reais de aquisição como, v.g., o

direito de preferência. Esses – direitos reais de aquisição – não podem rigorosamente dizer-se nem
direitos reais de gozo, nem direitos reais de garantia.

Daí que optemos por uma outra classificação. Vamos distinguir entre posse, a propriedade e
os direitos reais limitados, subdividindo estes últimos em direitos reais de gozo, direitos reais de

garantia e direitos reais de aquisição.

1. POSSE
A posse é definida pelo art. 1251º CC como “o poder que se manifesta quando alguém atua por

forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real”.


Mas será a posse um direito? Ou será um mero facto, uma pura e simples situação de facto? A nossa

posição é a de que estamos perante um direito real provisório.


É um direito por constituir uma situação jurídica subjetiva que confere um poder sobre uma

coisa e que é tutelada pelo direito objetivo, desde logo na medida em que é hereditável, alienável e
registável e na medida em que ele confere ao seu titular uma garantia jurídica.

A lei confere vários meios judiciais, como a ação de prevenção, a ação de manutenção da
posse e a ação de restituição da posse, unicamente por ele ser possuidor e sem averiguar se, por

detrás da posse, existe ou não um outro direito real. Isto acontece por razões de paz jurídica e
porque, normalmente, o possuidor é proprietário e seria muito complicado provar essa propriedade

a tempo de tutelar a posse.


Tudo isto mostra que a posse é um direito e, além disso, um direito real. Direito real porque

goza de eficácia erga omnes, o possuidor pode perseguir a coisa através das ações mencionadas
acima.

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Além disso, é provisório. Os seus efeitos são independentes de saber quem é o titular do
direito real sobre a coisa que está na esfera do possuidor. A proteção possessória é provisória, só

atuando enquanto não for definitivamente apurado quem é o autêntico titular do direito real sobre a
coisa.

Quer isto dizer, portanto, que à pessoa que detém ou frui uma coisa basta provar a posse e se
ela for uma posse de ano e dia (superior a um ano), não tem que se averiguar mesmo mais nada (art.

1278º/2 CC). Basta, assim, a simples prova desta posse para que o indivíduo possa exigir a restituição
da coisa.

Só depois é que se irá, então, discutir se a posse é ou não legítima, se o possuidor detém ou
não um direito real definitivo sobre a coisa. Há, assim, portanto uma tutela apenas provisória; dái que

autonomizemos esse direito – a posse – de todos os outros.


O exposto mostrou porém, que na posse há algo mais do que um simples facto: há um direito

real, embora provisório.

2. DIREITO DE PROPRIEDADE
O direito de propriedade é o direito real pleno e o direito real mais importante. Está definido no

art. 1305º CC como sendo o poder de que o proprietário detém de gozar “de modo pleno e
exclusivo dos direitos de uso, fruição e disposição das coisas que lhe pertencem, dentro dos limites

da lei e com observância das restrições por ele impostas. A lei acentua aqui a propriedade em termos
praticamente iguais à classificação romana do “ius utendi, ius fruendi, ius abutendi”.

A propriedade pode revestir diferentes formas. Há, com efeito, várias espécies que, para efeitos
de regulamentação, merecem ser autonomizadas – e a lei autonomiza com efeito algumas. Assim,

por exemplo, a lei indica e regulamenta separadamente a propriedade de imóveis, visto haver toda
uma série de problemas que só se põem para os imóveis. Só se põe o problema do direito de

demarcação para os imóveis, os móveis estão demarcados por natureza. Só se põe o problema do
direito de tapagem, do direito de edificar valas, muros ou sebes para os imóveis, tal como os

problemas da construção e plantação.


Depois a lei foca em especial a propriedade das águas, que também, pela sua natureza, põe

problemas específicos.

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Por último, a lei distingue ainda a compropriedade e a propriedade horizontal.

3. DIREITOS REAIS LIMITADOS


São direitos que não conferem a plenitude dos poderes sobre uma coisa. Conferem apenas a

possibilidade de exercer certos poderes sobre uma coisa, mas não a plenitude dos poderes
correspondentes à clássica tripartição “ius utendi, ius fruendi, ius abutendi”. São, portanto, direitos

sobre coisas que em propriedade pertencem a outrem. São direitos que pressupõem uma
concorrência de direitos. Quando eles existem, incide também sobre a mesma coisa uma

propriedade que é restringida por este direito real limitado (e limitador). São, portanto, iure in re
aliena (direitos sobre coisa alheia) ou, pelo menos, sobre coisa não própria.
Dentro dos direitos reais limitados distinguem-se os direitos reais de gozo, os direitos reais de
aquisição e os direitos reais de garantia.

3.1 DIREITOS REAIS DE GOZO


Os direitos reais de gozo são aqueles que conferem um poder de utilizar, total ou

parcialmente, uma coisa e, por vezes, também o de apropriação dos frutos que a coisa produza.
No nosso direito, são o usufruto, o uso e habitação, o direito de superfície e as servidões

prediais. Esta enumeração é exaustiva, visto vigorar o princípio da tipicidade ou numerus clausus.
No usufruto não há só o poder de utilizar a coisa, mas também o poder de apropriação dos

seus frutos, enquanto, por exemplo, no direito de uso e habitação há apenas o direito de usar a
coisa.

3.2 DIREITOS REAIS DE GARANTIA


Os direitos reais de garantia são direitos que conferem o poder de, pelo valor de uma coisa ou

pelo valor dos seus rendimentos, um indivíduo obter, com preferência sobre todos os outros
credores, o pagamento de uma dívida de que é titular ativo.

Esta distinção entre direitos de gozo e de garantia tem como critério a função económica do

direito real.

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FDUC – DIREITO DAS COISAS 2017/2018

Os direitos reais de garantia são o penhor, a hipoteca, os privilégios creditórios especiais (são
todos os privilégios imobiliários e certos mobiliários, excluindo-se os privilégios mobiliários gerais

que não são direitos reais), o direito de retenção e a consignação de rendimentos.

Já se sustentou entre nós que os direitos reais de garantia não constituíam verdadeiros
direitos reais, mas meros acessórios dos direitos de crédito. Mas são, indubitavelmente, direitos reais.

Há, de facto, uma conexão funcional entre os direitos reais de garantia e os direitos de crédito. Os
direitos reais de garantia estão ao serviço do pagamento ou da satisfação do interesse do credor.

Quando se extingue o direito de crédito, extingue-se o direito real que garantia esse crédito.
Mas isto não quer dizer que os direitos reais de garantia não tenham natureza jurídica própria.

Por apresentarem as características dos direitos reais, nomeadamente, a sequela e o direito de


preferência, entendemos hoje serem direitos reais.

3.3 DIREITOS REAIS DE AQUISIÇÃO


Os direitos reais de aquisição são direitos reais que conferem a determinado indivíduo a

possibilidade de se apropriar de uma coisa, de adquirir a coisa.


Note-se, porém, que estas situações não se identificam com a faculdade geral de adquirir, que

é uma mera emanação da capacidade jurídica. Não é esta faculdade geral que se está a tratar, mas
antes aquelas situações específicas em que certas pessoas podem exercer uma especial faculdade de,

em determinadas circunstâncias, adquirir uma coisa.

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FDUC – DIREITO DAS COISAS 2017/2018

Exemplo de direito real de aquisição é o direito real de preferência, que confere a pessoas
em certas situações a possibilidade de adquirirem uma coisa, no caso de o proprietário dela a

pretender alienar e o preferente estar disposto a pagar por ela a mesma importância que o terceiro
adquirente se propõe pagar. É, portanto, o direito de fazer suas certas coisas, dando o valor pelo

qual se projeta negociar a coisa.


Este direito real de preferência pode ser legal ou convencional. A possibilidade de um direito

convencional de preferência está referida no art. 421º CC, sendo possível atribuir eficácia real aos
pactos de preferência celebrado entre pessoas em qualquer circunstância. Já o direito de

preferência legal existe nos seguintes casos: art. 1380º; art. 1409º; art. 1535º; art. 1555º; art. 2130º
CC. Fora destas situações não se pode verificar o direito real de preferência, a não ser que haja um
pacto de preferência com eficácia real.
Outro exemplo de direito real de aquisição é a nosso ver, o direito do promissário no

contrato-promessa de compra e venda a que foi atribuída eficácia real, “rectius”, o direito do
promissário num contrato-promessa da alienação onerosa de bens imóveis ou de móveis sujeitos a

registo, se as partes atribuírem eficácia real.

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CAPÍTULO III - HIPÓTESES DE QUALIFICAÇÃO REAL CONTROVERTIDA E FIGURAS

LIGADAS AOS DIREITOS REAIS


Há certas situações acerca das quais se discute se têm ou não a natureza de direitos reais.

Nalgumas delas, no termo da discussão, não se chega a uma conclusão segura e continua assim a
sua qualificação a ser duvidosa.

1. A QUESTÃO DA NATUREZA DO DIREITO DO LOCATÁRIO

Uma das questões que suscitou mais o debate é a do direito do locatário. Será este direito um
direito real ou um direito de crédito?

Há uma solução que qualifica o direito do locatário como um direito de crédito - o locatário não
tem um poder direto e imediato sobre a coisa, as suas possibilidades de gozo da coisa passam pela

mediação de um outro sujeito, o locador. Tem o direito de exigir do locador que lhe proporcione o
gozo da coisa, mas não um direito sobre a coisa em face de todos os outros.

Outros autores defendem estarmos perante um direito real; o direito do locatário seria um direito
real. E existem ainda outras soluções intermédias, salientando existirem aqui notas típicas dos dois

grandes grupos de relações jurídicas, afirmando a prevalência de uma ou de outra dessas categorias.

Para que se trate de um direito real, terá a posição do arrendatário de possuir as notas próprias
desse grupo de relações. Uma dessas notas, exclusiva dos direitos reais, é o chamado direito de

sequela – ou seja, a possibilidade que o titular do direito real tem de exercer os poderes
correspondentes ao conteúdo do seu direito, onde quer que a coisa se encontre, mesmo que esta

entre na esfera jurídica ou material de outrem.


Ora, o direito de sequela existe na locação, como claramente o revela o art. 1057º CC – “o

adquirente do direito com base no qual foi celebrado o contrato sucede nos direitos e obrigações do
locador”. Quer isto dizer que o locatário pode continuar a exercer os seus poderes sobre a coisa,

pode continuar a utilizá-la mesmo depois de ter sido vendida a terceiro. O seu direito tem eficácia
perante o novo adquirente da coisa.

Isto é nitidamente o direito de sequela. Não se pode pretender, como já se pretendeu, não ter
esta solução nada a ver com o direito de sequela, por ser uma manifestação da cessão da posição

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contratual, pelo que a transmissão da posição do locador verificava-se, do alienante para o

adquirente do prédio arrendado, porque acompanhando a alienação do prédio havia a cessão da


posição do locador. Esta solução não é aceitável porque este efeito é imperativo – impõe-se “volens

nolens”, sem a sua vontade ou mesmo até contra ela.


Se se tratasse de uma cessão da posição contratual, teria que ser acordado entre o alienante e o

adquirente que este adquiria a posição de locador e teria que haver consentimento da outra parte,
isto é, do locatário. Aqui não se torna necessário o consentimento de ninguém; estamos perante um

efeito que a lei liga automaticamente à transmissão do prédio. O adquirente do prédio fica sub-
rogado legalmente na posição do locador.

Concluindo, esta solução imperativa é uma expressão do direito de sequela. Semelhante é a


situação do usufrutuário, pois para a manutenção do seu direito é irrelevante a alienação da

propriedade.
O direito de preferência faz parte das notas características dos direitos reais, mas neste caso, e

para esta distinção, não é decisivo, pois o art. 407º CC mostra-nos que pode existir também nos
direitos de crédito, que confiram o gozo de uma coisa.

Os defensores do caráter de direito de crédito do direito do locatário aceitam estas soluções e


têm de reconhecer a existência de sequela. São, pelo menos, obrigados a reconhecer aqui a

existência de fortíssimas notas típicas da situação de realidade, da situação do direito real. Excluem,
contudo, a qualificação desse direito como real por não existir um poder direto e imediato sobre a

coisa. Para eles, o locatário não teria uma ligação direta e imediata com a coisa, mas apenas mediata
– as suas probabilidades de gozo da coisa passariam pela cooperação do senhorio. Teria somente o

poder de exigir deste que lhe proporcionasse o gozo da coisa. No fundo, com isto negam a inerência
da coisa ao seu titular (uma característica dos direitos reais). Este não teria o poder direto e imediato,

a ligação direta com a coisa; tê-la-ia por intermédio do locador.


Esta afirmação era concretizada através da enunciação de certas obrigações que cabem ao

locador. Este tem certas obrigações especiais, contrapondo-se à obrigação passiva geral própria dos
direitos reais, o que tornaria o direito do locatário um puro direito de crédito.

Não nos parece decisiva esta maneira de ver as coisas. Sem dúvida que, p.ex., o art. 1031.º impõe
obrigações ao senhorio (a obrigação de entregar a coisa ao locatário, de lhe assegurar o gozo desta

para os fins a que se destina) e daqui se pode desentranhar toda uma série de obrigações, v.g., ter

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de fazer obras de conservação de coisa; o art. 1037.º prescreve-lhe a abstenção de prática de atos

que diminuam ou impeçam o gozo da coisa pelo locatário.


Não cremos, porém, que o facto de poder haver deveres especiais do senhorio para com o

locatário seja incompatível com a qualificação com direito real da posição deste.
Situações deste tipo parece surgirem também noutras hipóteses ou em hipóteses nítidas de

direitos reais. Assim, p.ex., no usufruto podem estar a cargo do proprietário da raiz obrigações para o
usufrutuário, como a decorrente do art. 1473.º;

Sempre que existam uma concorrência de direitos reais sobre a mesma coisa – propriedade e um
direito real limitado – podem surgir deveres especiais a cargo de um dos titulares desses direitos

reais limitados. Isto parece não excluir decisivamente a qualificação do direito do locatário como real.
Não é forçoso concluir, a partir desses deveres especiais, a não existência de uma inerência da coisa

ao seu titular; onde a inerência encontra expressão é na circunstância de o titular do direito poder
perseguir a coisa, acompanhá-la em todas as suas deslocações. Será um sistema nítido de aderência

do direito à coisa, da inerência – e isto acontece no direito de arrendatário, nos termos do art.
1057.º.

Não pode, também, invocar-se como argumento decisivo a favor da qualificação creditícia do
direito do locatário, o facto de este ter de pagar uma renda ou aluguer, pois isso também acontece

em muitas hipóteses de direito real. Temos o exemplo do direito de superfície, onde se pode ter
convencionado que o superficiário pague uma importância periódica ao proprietário do solo, em vez

de pagar uma importância global. E isto não exclui a classificação real do direito do superficiário.
Acontece, por vezes, e agora isto com a finalidade de fazer apelo às intenções do legislador, que

se utiliza um argumento extraído do art. 1307.º - se o legislador considerasse o direito de locatário


como um direito real, não teria facultado a este expressamente os meios de tutela possessória, que

lhe confere no nº2 desse artigo. E isso porque, como titular do direito real, ele já teria a posse e
genericamente nele incluídos estes poderes.

Este argumento está longe de ser decisivo. Podemos dizer que o legislador fez isso por ser
duvidoso que se tratasse de um direito real ou de um direito de crédito. Não implica uma tomada de

posição decisiva por parte dele. Se ele sabia que era um ponto duvidoso, uma questão não resolvida
com argumentos definitivos em nenhum sentido, pode ter querido conferir ao locatário, por esse

motivo, expressamente, esses poderes. Teremos de passar além desta pesquisa de intenções do

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legislador, até porque este não vai decidir uma questão científica. Isto porque pode este entender

cientificamente que uma dada questão reveste determinada natureza e teremos nós depois que
concluir outra coisa, à face do regime do Código, na totalidade da regulamentação do instituto em

que ela se integra, confere a essa situação jurídica.


O que se pode concluir é que o locatário tem esses poderes, e que tais poderes são, em princípio,

privativos do titular de um direito real.


Há, um outro problema de regulamentação ainda não focado e que tem conexão com esta

classificação do direito do ainda não focado e que tem conexão com esta classificação do direito de
arrendatário com direito real ou como um direito de crédito – a questão de saber se o direito, a

posição jurídica do arrendatário pode ser adquirida por usucapião. O STJ já se pronunciou no
sentido de que o direito do locatário não se pode adquirir por prescrição aquisitiva ou usucapião.

Esta posição é apoiada por VAZ SERRA na Revista de Legislação e Jurisprudência.


Esta questão revela-se muito importante nos arrendamentos para fins comerciais, que será nulo

se não for reduzido a escritura pública. Em face do problema, a corrente maioritária da doutrina
portuguesa entende que a resposta deve ser negativa, isto é, que o arrendatário não pode adquirir

por usucapião a sua posição.

2. O DIREITO DO BENEFICIÁRIO DE PROMESSA DE TRANSMISSÃO COM EFICÁCIA EM


RELAÇÃO A TERCEIROS

Há quem saliente que não se trata de um verdadeiro direito real, mas sim de uma espécie de pré-
anotação registal, tendo prioridade sobre qualquer outra posterior. Apesar de aqui não haver um

poder direto e imediato sobre a coisa, MOTA PINTO defende que a posição deste beneficiário deve
ser equiparada à posição do beneficiário de um direito real de preferência, valendo aqui a sequela,

possivelmente.

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3. PRETENSÕES REAIS
3.1. NOÇÃO

A pretensão legal é uma relação jurídica decorrente, em regra, da violação de um direito real,
que atribui ao seu titular o poder de exigir uma determinada prestação (positiva ou negativa). Pode,

em determinadas situações, não resultar de um facto ilícito.


A pretensão real não se confunde com as obrigações reais: embora ambas as relações tenham

como fonte o estatuto de um direito real, nestas o devedor é determinado pela titularidade de um
direito real e o credor pode ser ou não titular de um direito real, enquanto que nas pretensões reais

é o credor que se encontra necessariamente ligado a um ius in rem. Mas pode mesmo haver uma
pretensão real que se fundamente no incumprimento de uma obrigação real.

EXEMPLOS:

1. A possui ou detém ilegalmente um automóvel que pertence a B;

2. C depositou, sem autorização, materiais de construção num prédio de D;

3. E passa abusivamente no prédio de F e protesta que continuará a fazê-lo.

 No primeiro caso, o proprietário pode reivindicar o automóvel, exigindo que A lho entregue;

 No segundo, D tem o direito de exigir que C retire os materiais do seu prédio;


 No último, F pode exigir, além do mais, que E se abstenha de continuar a passar o seu prédio.

Como se verifica, as pretensões reais protegem os direitos em que se fundamentam.

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3.2. PLANO PROCESSUAL


As pretensões reais mais importantes realizam-se através da ação de reivindicação e da ação

negatória.

 A primeira utiliza-se quando a violação do direito real origina uma situação de posse ou de

detenção ilegítima por parte do terceiro demandado: o proprietário exige que a coisa lhe seja
restituída.

 A segunda é simultaneamente declarativa, reparadora e preventiva: aplica-se em atos de


interferência ou intromissão na coisa, sem que o interferente seja possuidor ou detentor e visa que

seja, judicialmente, declarada a inexistência do direito que o autor da violação invoca; condenado a
eliminar a situação material criada; e, ainda, se forem receados novos atos de violação, a abster-se de

os realizar.

3.3. REGIME JURÍDICO

Através da ação de reivindicação e da ação negatória, as pretensões reais protegem os direitos


reais em que se apoiam e, por isso, o regime jurídico a que se encontram sujeitas há-de harmonizar-

se com os direitos que tutelam. Assim, são imprescritíveis, sem prejuízo dos direitos adquiridos por
usucapião e da extinção por não uso nos casos legalmente admitidos.

3.4. NATUREZA JURÍDICA

Há quem considere que as pretensões reais têm natureza obrigacional, reconhecendo-se, ainda
assim, que a sua origem está nos estatutos dos direitos reais.

Mas se a proteção de um direito real passa por uma relação obrigacional, os direitos reais são
postos num estado de dependência ou de inferioridade em relação aos direitos de crédito: não são

auto - suficientes, carecem de direitos de crédito que assegurem a sua proteção.


O sujeito passivo não é o devedor duma relação de crédito, mas o violador de um direito real e

só nesses termos é que nasce a obrigação, pelo que se entende serem direitos reais.

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4. OBRIGAÇÕES REAIS OU PROPTER REM


Obrigações reais são obrigações que estão ligadas à titularidade de um direito real. É um vínculo
jurídico em que o titular de um direito real se encontra adstrito, para com outra pessoa, à realização

de uma prestação positiva (dare ou facere). Ou seja, a pessoa obrigada (devedor) determina-se por
ser titular de um direito real. Já o seu titular ativo (credor) pode ser ou não titular de um direito real.

Se o lado ativo estiver ligado a um direito real, fala-se de crédito propter rem.
Note-se que não devemos confundir as obrigações reais com as que integram a responsabilidade

civil extracontratual (ou aquiliana), decorrentes de danos causados culposamente a um direito real.
Com efeito, embora se trate da violação de um direito desta natureza, tais obrigações incidem sobre

indemnizações. Supõem um ato ilícito e danoso e a culpa do agente e integram-se no instituto da


responsabilidade extracontratual, enquanto as obrigações reais não pressupõem necessariamente um

ato ilícito, um dano e a culpa do agente.

Exemplos:

1. Se o proprietário do prédio onerado com uma servidão assumiu, no título constitutivo desta
servidão, a obrigação de pagar as despesas referentes às obras necessárias ao exercício da servidão,

essa obrigação é real: quem quer que venha a ser proprietário do prédio onerado (dito serviente) é
obrigado a suportar essas despesas;

2. O titular de um direito de habitação periódica é obrigado a pagar anualmente ao


proprietário do imóvel uma prestação pecuniária fixada no título constitutivo. Quem quer que seja

titular desse direito real é obrigado a satisfazer aquela prestação;

3. O proprietário de edifício ou obra que ameace ruir e, em consequência, possa causar danos
a um prédio vizinho, é obrigado a tomar as providências necessárias para eliminar o perigo. Será

devedor da obrigação quem seja o proprietário.

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Já não pertencem ao âmbito das obrigações reais, por terem conteúdo negativo, os seguintes
casos:

1. O proprietário não pode construir nem manter no seu prédio quaisquer obras, instalações ou
depósitos de substâncias corrosivas ou perigosas, se for de recear que possam ter sobre o prédio

vizinho efeitos nocivos não permitidos na lei. Quem quer que seja proprietário dum prédio tem
aquela obrigação;

2. O dono do prédio inferior e o dono do prédio superior não podem fazer obras que,
respetivamente, estorvem ou agravem o escoamento natural das águas. Não importa que o

proprietário de qualquer desses prédios seja A ou B;

3. O proprietário não pode abrir, no seu prédio, minas ou poços e fazer escavações que privem
os prédios vizinhos do apoio necessário para evitar desmoronamentos ou deslocações de terra.

Problema discutido relaciona-se com as situações decorrentes da violação do estatuto de um

direito real. Referimos dois casos:

1. O proprietário de prédio rústico desviou o curso normal das águas pluviais, agravando a
situação dos proprietários de prédios inferiores, sem haver servidão de escoamento;
2. O proprietário de prédio urbano abriu janela voltada para o prédio vizinho, a menos de
metro e meio da linha divisória.

Nas duas hipóteses, o proprietário violou limitações impostas ao seu direito real: a de não

desviar as águas fluviais; e a de não abrir janela para o prédio vizinho sem deixar espaço legalmente
fixado.

Na primeira, deve repristinar a situação material anterior às obras; na segunda, é obrigado a


tapar a janela ou a transformá-la numa abertura cujas medidas obedeçam aos limites estabelecidos

na lei.
Simplesmente, a lei não refere expressamente essas obrigações. Por isso, se considerarmos

que as obrigações reais são apenas as que a lei direta e expressamente prevê e as que permite criar

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por via negocial, aquelas obrigações não serão reais. Mas há também quem entenda que são

igualmente reais as obrigações que resultam da violação do estatuto de direito real. É a doutrina que
nos parece preferível e mais adequada aos interesses dos proprietários dos prédios vizinhos: quem

for proprietário (seja o antigo que lesou o vizinho, seja outro que adquiriu o prédio onde as obras
foram feitas) tem o dever de destruir a obra realizada ou de a pôr em sintonia com a lei.

Finalmente, importa referir que as obrigações reais podem surgir fora do seu campo normal: o
das relações de vizinhança. Referimos, como exemplo, a demolição de uma obra não licenciada

ordenada por uma Câmara Municipal ao abrigo do Regulamento Geral das Edificações Urbanas,
porque o seu proprietário não a demoliu no prazo fixado. Não demolindo a obra, o proprietário

violou o dever imposto pelo direito público e incorre numa contra-ordenação punível com coima; e é
ainda obrigado a pagar à Câmara as despesas feitas. Esta (última) obrigação, porque tem a sua fonte

“no estatuto dos direitos sobre as coisas, deve ser qualificada como obrigação real”.

4.1. REGIME JURÍDICO


As obrigações reais são estruturalmente verdadeiras obrigações: vínculos jurídicos por virtude

dos quais uma pessoa (titular de um direito real) fica adstrita, para com outra, à realização duma
prestação. Todavia, a sua conexão com os direitos reais impõe alguns desvios ao regime geral das

obrigações. Destacamos a:
 Subordinação ao princípio do numerus clausus;

 Prescrição: enquanto persistirem os seus pressupostos, a obrigação real mantém-se, sem


prejuízo da constituição, por usucapião, de um direito incompatível;

 Renúncia liberatória: é o ato pelo qual o devedor põe o seu direito real à disposição do
credor, extinguindo a sua obrigação real. Uma vez levada ao conhecimento do credor, produz

automaticamente a extinção da obrigação real. Trata-se, portanto, dum direito potestativo: o


credor não pode impedir o seu exercício por parte do devedor.

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Importa, no entanto, distinguir:


A) O devedor é comproprietário ou titular de um direito de um usufruto, de servidão, de

superfície ou de habitação periódica e o credor é, respetivamente, comproprietário, titular da nua


propriedade, proprietário do prédio serviente, proprietário do solo ou do edifício: o credor adquire

automaticamente a parte do devedor e a propriedade plena por efeito do princípio da elasticidade


ou vis attractiva;

B) O devedor é titular de um direito de propriedade: há quem considere que este direito se


transmite ao credor por mero efeito da declaração de renúncia. Mas há também quem rejeite esta

solução por contrariar o princípio segundo o qual ninguém deve ser afetado na sua esfera jurídica,
mesmo favoravelmente, em consequência de uma declaração negocial de outrem. Segundo esta

doutrina, a renúncia libera o devedor da sua obrigação real, mas não impõe, por si só, a aquisição
por parte do credor. Por isso, a renúncia cumpre duas funções: libera o devedor daquela obrigação; e

põe o imóvel à disposição do credor que o poderá adquirir se for essa a sua vontade. Porém, a
declaração do devedor (renúncia) “tem o sentido de uma proposta contratual de transmissão ” e,

para se produzir a transferência do direito renunciado é necessário que o credor a aceite (art.
1567.º/1) e a proposta e declaração de aceitação obedeçam à forma legalmente exigida para a

transferência do direito real. O que significa que, satisfeitos estes requisitos, a declaração do devedor
propter rem não se pode qualificar como negócio de renúncia, porque se integra num negócio
jurídico bilateral.

4.2 NATUREZA JURÍDICA


A doutrina está dividida sobre a natureza das obrigações reais, dificuldades que alguma imprecisão

terminológica agrava. Há fundamentalmente, duas posições:


 A personalista, segundo a qual a obrigação real é um vínculo obrigacional, embora não

autónomo ou acessório da relação jurídica real, acessoriedade ou conexão que justifica os


desvios assinalados ao regime geral das obrigações;

 E a realista, que considera que faz parte do conteúdo de um direito real, embora
estruturalmente constitua uma verdadeira obrigação.

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A primeira doutrina pode dizer-se dominante. A segunda é defendida por Henrique Mesquita
para quem o seu conceito de direito real (relação jurídica de soberania entre o titular e a coisa,

subordinada a certo estatuto) compreende não só poderes que são conferidos ao seu titular e as
restrições ou limites a que a sua atuação deve obedecer, mas também as vinculações de conteúdo

positivo (ou seja, obrigações reais) a que se encontre adstrito.

Tende presente a nossa conceção de direito real como direito subjetivo, parece inadequado falar-
se de relação jurídica que compreende também as obrigações reais. Por isso, a doutrina dominante

considera-as verdadeiras obrigações, ou seja, afastadas dos direitos reais, embora reconheça, que
são acessórias ou não autónomas. Acresce que, na lição de ANTUNES VARELA, “o regime geral das

obrigações fixado pelo nosso Código prescinde deliberadamente do nexo que as prende ao facto
jurídico donde provierem” e, por isso, não afasta as obrigações reais sem prejuízo de se

reconhecerem alguns desvios.

4.3 OBRIGAÇÃO AMBULATÓRIA


Considerando que a obrigação real se encontra genericamente ligada a um direito real, a opinio

communis entende que o acompanha sempre que o seu titular o transmita a outra pessoa. Por isso,
FERINI considera-a obrigação ambulatória.

Há, no entanto, quem se oponha a esta doutrina, sustentando que, uma vez constituídas, as
obrigações reais são não ambulatórias: “radicam em certa pessoa, ganham autonomia em relação ao

direito real de que são conexas e seguem o regime das obrigações em geral”.
E também quem, considerando os interesses dos intervenientes, entenda que há obrigações

reais ambulatórias e não ambulatórias. Serve de exemplo a seguinte hipótese:

O administrador de um condomínio celebrou um contrato, no âmbito da sua competência

com um construtor que se obrigou a reparar o telhado do prédio em regime de propriedade


horizontal. Tendo o administrador assumido a obrigação de pagar as respetivas despesas e

devendo ser repartidas pelos condomínios, suponhamos que um dos condóminos vendeu a sua
fracção:

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1. Antes da reparação do telhado: o adquirente não ignorava que o telhado precisava de

reparação e, por isso, conhecia (ou devia conhecer) o encargo a que ficava sujeito. Ou seja, a
reparação do telhado não constitui surpresa e, por isso, não há razão para que a obrigação propter

rem não o vincule. Estamos, portanto, perante uma obrigação ambulatória: a obrigação real
acompanha a transferência do direito sobre a fracção e partes comuns;

2. Depois da reparação do telhado: O adquirente não dispõe de elementos objetivos que

denunciem a existência da obrigação. Por outro lado, a realização da reparação ampliou o valor do
prédio e, por isso, beneficiou o alienante da fracção que vendeu (ou podia vender) por maior preço.

Em consequência, deve pagar a sua parte naquelas despesas, sob pena de se trair a expectativa do
adquirente e de se enriquecer o alienante à sua custa. Estamos, neste caso, perante uma obrigação

real não ambulatória.

Esta solução é defendida por HENRIQUE MESQUITA e considerada aceitável por CARVALHO

FERNANDES, embora entenda que “em bom rigor, só as obrigações ambulatórias merecem o
qualificativo de reais”.

5. ÓNUS REAIS

Traduz-se esta figura numa situação jurídica cuja manifestação fundamental é o direito de obter
uma prestação periódica, geralmente pecuniária, que grava de forma especial e direta um bem

imóvel, em termos de o seu titular ser responsável por essa prestação.


Considerado do lado ativo, o ónus real é constituído por:

1. O direito de exigir, em regra periodicamente, determinada prestação a quem, na data do


seu vencimento, for titular de um direito real de gozo sobre a coisa onerada;

2. A faculdade de, em sede executiva, obter essa prestação à custa da coisa onerada, com

preferência sobre os respetivos credores que não disponham de melhor garantia.

A obrigação de efetuar a prestação periódica transfere-se, pois, com as deslocações do


imóvel. O titular do imóvel em cada momento é responsável por essa prestação, que destarte adere

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ao imóvel, o acompanha, grava sobre ela. Há aqui, assim, uma verdadeira sequela – a transferência

do bem importa a transferência da obrigação.


Por um lado, temos uma obrigação ligada a um direito real de gozo e, por outro lado, a

própria coisa garante a obrigação. O adquirente responde por todas as obrigações, inclusive as já
vencidas antes da aquisição. O IMI é um exemplo de ónus real. No direito privado, encontramos um

ónus real no crédito do cônjuge sobrevivo a alimentos da herança do falecido.

Quanto às obrigações anteriores, o adquirente só responde até ao valor da coisa; quanto às

posteriores, responderá com todo o seu património.

Os ónus reais são direitos reais, mas não parece revestirem autonomia em face dos direitos
reais de garantia, dos privilégios creditórios imobiliários.

AS COISAS

1. NOÇÃO

De acordo com o art. 202.º do CC, coisa é tudo aquilo que pode ser objeto de relações
jurídicas. O n.º 2 especifica que não é coisa aquilo que não for suscetível de apropriação individual; e

ainda aquilo que se encontre no domínio público.

Ora, a noção de coisa do art. 202.º é demasiado ampla. Nomeadamente, não cabe na noção

jurídica de coisa algo sem existência autónoma, que não seja uma entidade distinta e separada, ou
seja, não é coisa tudo aquilo existe como parte de uma coisa mais vasta. Assim, se por ex. uma

pessoa construir uma casa nas dunas, que são de domínio público, não pode invocar a usucapião.
Para além disto, podem ser objeto de relações jurídicas as pessoas, que porém não são coisas.

Assim, para estarmos perante uma coisa temos de estar perante um objecto...:
1. Impessoal;

2. Que tenha existência autónoma, que não faça parte de um todo mais vasto;
3. Apto a satisfazer necessidades;

4. E que seja um objeto suscetível de apropriação exclusiva, que possa estar subordinado ao
poder, à ação, de alguém.

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Podemos definir coisa como um objeto do mundo externo, destituído de personalidade

jurídica com suficiente economicidade (objeto apto a satisfazer interesses e a ser apropriado) e
individualidade (autonomia) para assumir o estatuto permanente de objeto do mundo – definição

de ORLANDO DE CARVALHO.

2. CLASSIFICAÇÕES

1) COISAS CORPÓREAS E INCORPÓREAS


São coisas corpóreas todas aquelas que têm existência física, e que por isso são suscetíveis de

serem percetíveis pelos sentidos. Note-se que não se compreendem aqui somente as coisas que
ocupem um lugar no espaço, mas também aquelas que podem ser apreendidas pelos sentidos – por

ex., a eletricidade.
São coisas incorpóreas aquelas não têm existência física, ou seja, não podem ser apreendidas

pelos sentidos, mas são percetíveis pelo intelecto. As coisas incorpóreas são suscetíveis de
aproveitamento económico apesar de não terem existência no mundo externo – é o caso dos direitos

ou ainda dos bens materiais, que constituem objeto da propriedade intelectual, industrial, etc.
Há quem defenda que os direitos reais incidem apenas sobre coisas corpóreas, pois a lei diz

que a propriedade só pode incidir sobre estas; porém, MÓNICA JARDIM, na linha de HENRIQUE
MESQUITA e ORLANDO DE CARVALHO, tem a opinião contrária.

2) COISAS MÓVEIS E COISAS IMÓVEIS

Esta classificação é a mais importante de todas, pela diversidade de tratamento que a nossa lei

dá a cada uma destas classes de coisas. Esta diversidade de regime jurídico manifesta-se em vários
aspetos:

 Forma: se em causa estiver um imóvel, a constituição, transmissão, modificação ou extinção só

pode obedecer a uma forma, escritura pública e, desde Janeiro de 2009, documento particular
autenticado. Ao invés, não há exigência de forma se em causa estiver uma coisa móvel. Isto decorre

do art. 80.º do Código do Notariado; do art. 947.º para a doação, valendo para os restantes
negócios gratuitos; e do art. 875.º para negócios onerosos.

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 Usucapião: o tempo de posse exigido para efeitos de usucapião no caso de imóveis é de 15 e


20 anos (boa ou má fé), muito maior que nas coisas móveis.

 Existem direitos reais que só podem constituir-se sobre imóveis: é o que sucede nos
direitos reais de garantia. A hipoteca tem por objeto coisas imóveis; o penhor de coisa tem por

objeto coisas móveis.

Qual é a ideia que subjaz a esta diversidade de tratamento? A lei procura rodear de cautelas a
propriedade e os outros direitos sobre imóveis – “continua a fazer-se sentir, apesar do extraordinário

incremento da riqueza mobiliária, a antiga tendência para considerar de importância primacial a


propriedade fundiária, e de valor bastante subalterno, e portanto, pouco necessitadas de proteção

jurídica, as coisas móveis”.


O legislador não formula o conceito de coisas imóveis, limitando-se a fazer uma enumeração

taxativa das coisas que engloba nesta categoria (art. 204.º), e considerando móveis, por
contraposição, todas as demais (art. 205.º). Esta distinção é muito difícil de fazer na prática, e por

isso as legislações têm fugido à formulação de conceitos: uma conceção física não basta para o
direito, pois há necessidade de integrar, para muitos efeitos jurídicos, numa ou noutra categoria,

coisas que fisicamente não são imóveis nem móveis, como os direito e, de uma maneira geral, as
coisas imateriais. Assim, são imóveis:

 Os prédios rústicos e urbanos (definidos no n.º 2).


 As águas: deixa assim de ter interesse a questão sobre a natureza mobiliária ou imobiliária das

águas. Entende-se que, enquanto incorporadas no solo, as águas são elementos deste – são partes
de um prédio rústico.

 As árvores, arbustos e frutos naturais, enquanto estiverem ligados ao solo: englobam-se aqui
todos os elementos de natureza corpórea que a coisa produz, periodicamente ou não, enquanto

mantiverem com ela uma ligação material. Excluem-se, pois, as utilidades produzidas pela coisa em
virtude de uma relação jurídica que atribua a outra o seu uso ou fruição (ex: as rendas). A lei

considera imóveis estes elementos porque quer que à conexão material existente entre eles e o
prédio corresponda um destino jurídico unitário (princípio da totalidade). Isto não exclui, note-se, que

as árvores, arbustos ou frutos possam ser objeto autónomo de relações jurídicas: a lei quer também

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que a constituição de relações de natureza real sobre árvores, arbustos e frutos naturais, quando

possa ter lugar, obedeça às mesmas formalidades a que estão subordinados os negócios reais sobre
a coisa principal. Quando sejam objeto de um negócio que envolva a sua separação do prédio (ex:

venda de frutos antes da colheita), a transferência apenas se dá no momento da separação material


(art. 408.º/2). Até ao momento da separação, o adquirente terá apenas um direito de crédito, uma

vez que estes contratos têm em vista as coisas não no seu estado atual de coisas imóveis, mas no seu
estado futuro, resultante da separação – coisas móveis (seria injustificável sujeitar a escritura pública

ou documento particular autenticado a alienação dos frutos pendentes de certa colheita).


 Direitos inerentes aos imóveis (estão aqui em causa direitos de natureza real).

 Partes integrantes dos prédios rústicos e urbanos: nos termos do n.º 3, é parte integrante toda
a coisa móvel ligada materialmente ao prédio com carácter de permanência. Se as partes integrantes

são imóveis, as partes componentes, por maioria de razão, também o são.

PARTES INTEGRANTES E PARTES COMPONENTES


As partes integrantes estão previstas no art. 204.º/3. São “coisas” móveis por natureza (ou
seja, no sentido físico), que têm uma ligação com carácter de permanência a outra coisa,

aumentando a sua utilidade. São elementos que aumentam as utilidades da coisa, ou porque tornam
a coisa mais produtiva, ou porque aumentam a segurança (ex: alarme de uma casa), ou porque

aumentam a utilidade (ex: a antena de televisão, fixa ao telhado) ou comodidade, ou porque


embelezam a coisa. Note-se que as partes integrantes não são coisas em sentido rigoroso, pois para

termos coisas temos de ter algo autónomo. Apesar de a lei entender que as partes integrantes têm
de estar ligadas a uma coisa imóvel, tal pode não suceder – é exemplo a antena de um carro.

Enquanto que estas partes estiverem ligadas à coisa, os negócios que tiverem por objeto a
coisa abrangem-nas. Assim, se se transmitir a propriedade da casa, transmite-se a antena fixada ao

telhado – as partes integrantes acompanham a coisa. Por outro lado, se alguém quiser celebrar um
negócio sobre as partes integrantes, com eficácia real, esse negocio só vai produzir efeitos reais

quando a coisa for separada (art. 408.º/2). Até lá, o adquirente terá um mero direito de crédito.
As partes integrantes distinguem-se das partes componentes na medida em que as partes

componentes são elementos estruturantes da coisas, sem a qual a coisa principal não está completa
ou é imprópria para o uso a que se destina. Do ponto de vista do regime, este é exatamente o

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mesmo para partes integrantes e componentes: o negócio que tem por objeto a coisa principal

abrange as partes integrantes e componentes; e o negócio que tem por objeto as partes integrantes
e componentes só produz efeitos reais quando estas são separadas.

3) COISAS FUNGÍVEIS E INFUNGÍVEIS


Esta distinção está pressuposta no art. 207.º. São coisas fungíveis as coisas que se determinam

pelo seu género, qualidade e quantidade, ou seja, são fungíveis coisas que são substituíveis por
outras. Os direitos reais têm de incidir sobre coisa certa e determinada, logo sobre coisas fungíveis

não há direitos reais. Só há direitos reais sobre coisas fungíveis depois de ter havido a sua escolha e
determinação (art. 408.º/2).

4) COISAS CONSUMÍVEIS E NÃO CONSUMÍVEIS


As coisas consumíveis estão previstas no art. 208.º: são consumíveis as coisas cujo uso regular

importa a sua destruição (consumo material) ou alienação (consumo jurídico). Por ex., os alimentos
são coisas consumíveis em sentido material; enquanto que um livro, apesar de não se destruir com o

uso, é suscetível de alienação.

5) COISAS DIVISÍVEIS E INDIVISÍVEIS


São divisíveis (art. 209.º) as coisas que podem ser fracionadas sem prejuízo da sua substância,

diminuição de valor ou prejuízo para o uso a que se destinam.

6) COISAS PRINCIPAIS E COISAS ACESSÓRIAS


As coisas principais são aquelas cuja existência ou qualificação jurídica não está na
dependência de outras coisas. Já as coisas acessórias ou pertenças estão previstas no art. 210.º: diz-

se que são partes acessórias as coisas móveis que, não constituindo partes integrantes, estão
afetadas de forma duradoura ao serviço ou ornamentação de uma outra.

Porém, as partes integrantes também podem estar ao serviço e ornamentação: qual a


diferença? As partes integrantes, como diz o art. 204.º/3, estão ligadas materialmente à coisa, com

carácter de permanência, ou seja, tem de haver ligação material com carácter de permanência; nas
coisa acessórias, estas não estão ligadas materialmente, mas apenas pelo fim, funcionalmente.

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Por ex., as alfaias agrícolas que existem numa quinta. Ultimamente, muitas coisas acessórias
têm passado a ser partes integrantes – tradicionalmente, uma televisão era uma coisa acessória; hoje,
um plasma ligado à parede é coisa integrante; a maior parte dos móveis e eletrodomésticos de uma
cozinha eram coisas acessórias, porém hoje está quase tudo ligado materialmente à parede. E uma

arca frigorífica? É uma coisa acessória, a ligação à eletricidade não é uma ligação material com
carácter de permanência.

O regime das partes integrantes e acessórias é completamente diferente: os negócio que


tenham por objeto a coisa principal não abrangem as coisas acessórias, a não ser que tal esteja

estipulado (art. 210.º/2), uma vez que são coisas distintas; por outro lado, os negócios que tenham
por objeto coisas acessórias, porque são coisas, têm efeitos reais.

Enquanto a parte integrante for parte, não pode ser objeto de direitos reais (art. 408.º/2). Mas
e a situação inversa? Se houver uma coisa autónoma que seja objeto de negociação e antes da

concretização passar a ser parte de outra coisa, deixa de haver coisa autónoma e o direito real que
existia sobre ela extingue-se.

Se uma coisa autónoma passar a ser uma parte integrante ou componente o direito que antes
existia sobre ela extingue-se. Há dois casos da jurisprudência típicos.

 Caso dos elevadores: A era dono de elevadores, vendeu-os a alguém que estava a construir
um edifício. Sabia que os elevadores iam passar a ser parte de um edifício; para garantir o

pagamento, introduziu uma cláusula de reserva de propriedade. O construtor construiu o prédio,


vendeu as frações e não pagou os elevadores. A veio exigir o dinheiro aos condóminos: A era

proprietário dos elevadores? A reserva foi feita no momento em que era coisa autónoma; a partir do
momento em que são integrados, a coisa extinguiu-se, e a extinção da coisa conduz à extinção do

direito de propriedade independentemente da cláusula de reserva de propriedade.


 Caso das telhas: os credores de um construtor nomearam à penhora os bens do construtor

que encontraram, nomeadamente s telhas que este usava. Quando são nomeados à penhora bens,
estes são entregues a um depositário, que deve zelar pela sua manutenção. O depositário não

cumpriu a sua função e o construtor aplicou as telhas aos telhados que estava a construir. No dia da
execução, as telhas não estavam no sítio: eram coisas autónomas mas passaram a ser componentes,

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logo o direito de propriedade que existia sobre as telhas extinguiu-se. O direito quer incidia sobre as

telhas passou a ser o direito que incidia sobre toda a coisa onde estas foram aplicadas.

7) COISAS PRESENTES, COISAS FUTURAS E COISAS INEXISTENTES


São coisas futuras as que não estão em poder do disponente ou que ele não tem direito ao
tempo da declaração negocial, art. 211.º. A finalidade deste artigo é evidenciar que não estão sujeitos

ao regime dos negócios sobre coisa alheia, mas antes ao regime dos negócios sobre coisas futuras,
os atos de disposição que versem sobre coisa alheia, mas em que esta seja tomada pelas partes em

tal qualidade e não como própria do adquirente.


Na noção de coisas futuras tal como está prevista na lei cabem as coisas inexistentes, alheias,

absolutamente futuras e relativamente futuras.


 Uma coisa é inexistente quando ainda não existe nem em poder do disponente nem de

qualquer outra pessoa, e o disponente não tem qualquer expectativa de a vir a adquirir.
 Uma coisa é alheia quando já existe, mas não está em poder do disponente e ele não tem a

legítima expectativa de a vir a adquiri. Os negócios sobre coisa alheia são nulos: art. 892.º, 893.º,
944.º e 956.º.

 Uma coisa é absolutamente futura quando ainda não existe mas é esperada. Por ex., uma
vinha que ainda não tem uvas. As uvas são coisas absolutamente futuras. É possível alienar coisa

futura, mas esse negócio só vai produzir efeitos obrigacionais, enquanto que a coisa não for
presente.

 Uma coisa relativamente futura é uma coisa que já existe mas ainda não está em poder do
disponente no momento em que emite a declaração negocial, mas este tem a legítima expectativa

de a vir a adquirir. Na coisa alheia a coisa também está na esfera de outrem, mas o disponente não
tem qualquer expectativa de a vir a adquirir. Isto é importante porque o art. 408.º/2 diz-nos que os

negócios que tenham objeto coisas relativamente futuras produzem efeitos obrigacionais; o art.
893.º diz-nos que é válida a venda da coisa alheia desde que as partes a tomem como coisa alheia

como futura; já as doações de coisa futura são inválidas, art. 942.º. Se a coisa for alheia, já existe na
esfera jurídica de outrem mas o disponente não em a legítima expectativa, logo o negócio é nulo,

quer seja oneroso, quer gratuito; ao invés, se estiver em causa uma coisa relativamente futura, o bem

já existe mas não está em poder do disponente, ele tem a legítima expectativa de o adquirir e por

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isso o negócio é válido se for oneroso e inválido se gratuito. Porém, enquanto a coisa não entrar na

esfera jurídica do disponente só produz efeitos obrigacionais. É necessário conjugar o art. 893.º com
o 408.º/2.

8) FRUTOS
Entende-se por frutos tudo aquilo que é produzido periodicamente sobre a coisa sem

prejuízo da sua substância (art. 212.º). Os frutos distinguem-se dos produtos: para estes, não vale a
característica da periodicidade, nem a de não importarem a redução da substância da coisas
principal. Por ex., os frutos da árvore são frutos; os ramos, que têm de ser cortados, podem ser

considerados produtos.

Os frutos podem ser naturais ou civis: os primeiros são aquilo que a coisa produz

periodicamente, sem prejuízo da sua substância, e provêm diretamente da coisa (coisas corpóreas,
como o fruto das árvores); já os segundos são aqueles que provêm de uma relação jurídica (rendas,

juros, etc.).
Os frutos produzidos por determinada coisa pertencem ao titular do respetivo direito de

fruição. As dificuldades surgem quando, dentro do mesmo período frutífero, duas ou mais pessoas
sucedam na titularidade do direito de fruição: como partilhar, neste caso, os frutos da coisa? O art.

213.º indica o critério a aplicar, sendo que não se partilham da mesma forma os frutos naturais e
civis. Os frutos pertencem a quem tem direito de fruição no momento da sua colheita; se forem

naturais, quem for titular do direito de fruição à data da sua colheita fica com eles – o usufrutuário, se
não colher os frutos e entretanto o usufruto terminar, perde-os. Já os frutos civis são divididos

proporcionalmente tendo em conta a duração do direito.


Para além desta classificação, devemos atender a outra (relevante para a matéria da posse):

 Frutos pendentes: são os frutos que não foram ainda colhidos.

 Frutos percebidos: são os frutos que já foram recolhidos.


 Frutos percepiendos: são frutos que nunca chegaram a ser produzidos, mas poderiam ter

sido se a coisa estivesse nas mãos do titular do direito de fruição, que se comportasse como
um bom pai de família, normalmente diligente.

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8. BENFEITORIAS
8.1 BENFEITORIAS E ACESSÕES

Costuma-se definir benfeitorias como as despesas feitas numa coisa para a melhorar ou
conservar – art. 216.º.

As benfeitorias distinguem-se das acessões. A acessão é uma inovação feita numa coisa, que
dá origem a algo novo. É necessário que a coisa se una a outra, sendo aqui a inseparabilidade
entendida num sentido económico e não material. Por ex., art. 1340.º: há uma obra que é

incorporada em coisa alheia, dando origem a algo novo. Se alguém tem um prédio rústico e outra
pessoa constrói aí alguma coisa, temos uma realidade nova. Segundo esta posição, tradicional, o

regime da acessão aplicar-se-ia, em detrimento do das benfeitorias, sempre que a intervenção em


terreno alheio lhe alterasse a substância.

Esta era a distinção tradicional: a benfeitoria traduz-se numa despesa; enquanto que a
acessão é uma forma de aquisição originária do direito de propriedade que envolve um ato de

inovação. No Código de Seabra começou a dizer-se que esta distinção era insuficiente, pois muitas
vezes há atos de inovação aos quais a lei manda aplicar o regime das benfeitorias (ex: inovações

realizadas pelo locatário ou usufrutuário). Surgiu assim um novo critério, avançado por PIRES DE

LIMA e ANTUNES VARELA: as benfeitorias são feitas por quem tem uma relação jurídica com a

coisa; enquanto que as acessões por quem não tem uma relação jurídica com a coisa.
MÓNICA JARDIM concorda, com esta ressalva: a acessão é sempre uma ato de inovação,
praticado por quem não tem uma relação jurídica com a coisa, mas também por quem tem apenas

uma relação possessória, por quem exerça posse, em termos de propriedade ou em termos de
propriedade superficiária.

Quem faz a obra é aquele que tem a propriedade ou a propriedade superficiária.


Isto é importante na prática. Imaginemos que A deu de arrendamento um prédio rústico e o

arrendatário pediu para construir um galinheiro. A dada altura, as obras que lá fez, que são atos de
inovação, valem mais que o prédio. Pode invocar a acessão para ficar com a coisa (art. 1340.º)?

Não: a acessão supõe um ato de inovação por quem não tem relação ou tem uma relação
possessória; o arrendatário tem uma relação jurídica com a coisa. Aplicar-se-á o regime das

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benfeitorias na medida em que a lei o permita, o que não sucede no arrendamento (só se aplica se

forem obras urgentes).

8.2 TIPOS DE BENFEITORIAS


Há três tipos de benfeitorias, previstas no n.º 2 e 3:

 Necessárias: são as benfeitorias que são indispensáveis, enquanto se dirigem à conservação


da coisa benfeitorizada, a obviar a sua perda, destruição ou deterioração. Por ex., a reparação de um

telhado que foi destruído com uma tempestade.


 Úteis: são as que, apesar de dispensáveis, aumentam o valor objetivo da coisa. Por ex., a

substituição de um telhado, que estava em bom estado, por um telhado mais condizente com a
arquitetura.

 Voluptuárias: não são imprescindíveis nem aumentam o valor objetivo da coisa, servindo
apenas o regalo ou gozo de aquele que os fez. Por ex., a substituição do telhado apenas pela

vontade do proprietário, que não gostava dele.

Quando o possuidor benfeitorizante não seja o proprietário da coisa, a lei distingue consoante a

espécie das benfeitorias e a boa ou má fé do possuidor.

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CAPÍTULO IV – PRINCÍPIOS ORDENADORES DOS DIREITOS REAIS

SENTIDO DOS PRINCÍPIOS ORDENADORES DOS DIREITOS REAIS


Os direitos reais são um domínio específico do ordenamento jurídico, uma zona do mundo

jurídico. Ora, todo o domínio específico do ordenamento jurídico assenta sobre determinados
princípios fundamentais.

Ora, os direitos reais também estão, portanto, submetidos a certos princípios, determinados

por ideias de caráter ideológico-político, histórico, económico, etc. e pela técnica jurídica.
Por entendermos ser a teoria eclética a que retrata melhor o regime jurídico dos direitos reais,

defendemos que estes têm dois lados:

 O lado interno – o lado interno relaciona-se com o facto de um direito real ser um poder
direto e imediato sobre uma coisa;

 O lado externo – o lado externo liga-se à obrigação geral passiva de todos os demais sujeitos

em relação ao titular do direito real, com a tutela absoluta destes direitos.

Assim, temos princípios que se relacionam com o lado interno, com o poder direto e imediato do
titular do direito real sobre uma coisa certa e determinada, e outros que dizem respeito ao lado
externo, ou seja, à tutela absoluta caracterizadora destes direitos.

PRINCÍPIOS LIGADOS AO LADO INTERNO DO DIREITO REAL:


1. PRINCÍPIO DA COISIFICAÇÃO. O PROBLEMA DOS DIREITOS REAIS SOBRE DIREITOS

O princípio da coisificação é o ponto de partida, isto é, o princípio de que todo o direito real é
um direito sobre coisas, que versa sobre coisas, e não sobre pessoas ou bens não coisificáveis

(prestações, situações económicas não autónomas). Às coisas stricto sensu não pertencem só as
coisas físicas ou corpóreas, mas igualmente as coisas incorpóreas, designadamente os objetos da

propriedade autoral e industrial e o estabelecimento ou empresa mercantil (que tem uma


incorporalidade sui generis).

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Sem dúvida que o art. 1302º CC declara que “só as coisas corpóreas, móveis ou imóveis, podem
ser objeto do direito de propriedade”. Mas o art. 1303º CC não só admite que pode haver

propriedade para lá da contemplada no código, como o que chama “propriedade intelectual”, como
admite que lhe pode ser estendido subsidiariamente o regime estabelecido, o que é dizer, que as

admite que sejam direitos das coisas. Para lá, porém, do art. 1303.º, há que lembrar que outras
coisas incorpóreas, presumivelmente não abrangidas e, uma tal disposição porque até hoje não

objeto de legislação especial, como é o caso do estabelecimento mercantil, são passíveis de


verdadeira propriedade – ou de verdadeiro domínio, se se prefere -, propriedade a reger, enquanto

outras normas não haja, tanto quanto possível pelo que o código estatui.
De resto, a restrição do art. 1302.º valeria, se valesse (e cremos demonstrado que não), apenas

para o direito de propriedade: não já assim para o usufruto (art. 1439.º: «uma coisa ou direito
alheio»), para o penhor (art. 666.º: «coisa móvel», «valor de créditos ou outros direitos»), para a

hipoteca (art. 688.º/1/ b)-e)), para os privilégios mobiliários especiais (art. 735.º/2: «determinados
bens móveis»), para o direito de retenção (art. 754.º: «certa coisa»), e, indiretamente, para a posse

(art. 1251.º).
Que ao falar-se de «coisa» se fala aqui, não só de toda a coisa em sentido estrito, e, portanto,

também das coisas incorpóreas, mas mesmo de coisa em sentido amplo e, portanto, dos próprios
direitos (quando suscetíveis de coisificação, obviamente), é algo tão líquido quanto o envolver-se o

estabelecimento mercantil naquele grupo de coisa stricto sensu. Nem de outro modo se entendiam
as disposições, como as dos arts. 94º/3, 1118.º, 1682º/3 e 1938º/f), que postulam o estabelecimento

como um objeto passível de alienação e oneração como qualquer espécie de coisas.


Concluindo, o princípio da coisificação abrange, em regra, todos os bens coisificáveis – tanto as

coisas em sentido estrito como as coisas em sentido amplo (direitos) – mas nem todas essas coisas
são objeto de todas as situações reais, variando a área das coisas abrangidas com a situação

concreta. A propriedade e o direito de retenção valem para todas as coisas stricto sensu, e o usufruto
vale para todas as coisas lato sensu (envolvendo os direitos), já os outros direitos reais admitidos

valem só para certos tipos de coisas, conforme há-de ver-se adiante. Para já basta a ideia de que o
princípio exige a presença de coisas em sentido jurídico, de coisas como objetos e não de pessoas,

de prestações ou de situações económicas não autónomas (as chances de um negócio, meras

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titularidades jurídicas, etc.), embora, se exclua, relativamente a estas últimas, que possam ser

indiretamente convertidas em bens coisificáveis e domináveis, através da coisificação, que a lei


reconheça, daquilo de que são como que lastro ou acessório: o caso das chances em relação ao

estabelecimento, ou das titularidades jurídicas em relação a certos direitos.

2. PRINCÍPIO DA ESPECIALIDADE (OU INDIVIDUALIZAÇÃO). EXCEÇÕES. REFERÊNCIA AO


CHAMADO PRINCÍPIO DA ATUALIDADE (OU IMEDIAÇÃO). O DITO PRINCÍPIO DA

TOTALIDADE DA COISA
O princípio da especialidade ou individualização está consagrado na nossa lei no art. 408º/2

CC. Não há direitos reais sobre coisas genéricas, sendo necessária a especificação dessas coisas, que
elas se tornem certas e determinadas, para que sobre elas incida um jus in re. A especificação ou

individualização jurídica não corresponde necessariamente a uma individualização física, mas essa
individualização é necessária para que a relação deixe de ser obrigacional e passe a uma relação real.

A individualização não tem de ser física, pode ser meramente jurídica (como acontece com
imóveis, terrenos e lugares de estacionamento numa garagem em condomínio). Antes de haver

individualização, o direito não incide sobre cada coisa autonomamente; só no momento da


separação se adquire o direito (arts. 204º, 408º/2 in fine, 808º CC).

O mesmo vale para as coisas já relativamente individualizadas – já, de algum modo, certas e
determinadas –, mas ainda não separadas ou autonomizadas de outras coisas. É o que acontece com

o que se chama «partes componentes» e «partes integrantes», as últimas referidas no art.


204.º/1/e) e definidas no art. 204.º/3 CC, e as primeiras implicitamente aludidas no mesmo art.

204.º. É o que acontece ainda com os bens a que respeita o art. 204.º/1/c) – “As árvores, os arbustos
e os frutos naturais, enquanto estiverem ligados ao solo” -, seja qual for a classificação que se lhes dê

em sede da teoria das coisas. Em qualquer caso, trata-se de coisas passíveis de uma identificação na
sua individualidade, mas que, encontrando-se estreitamente conexas com uma coisa diferente, não

sofrem a incidência de direitos reais diversos dos que incidem sobre a última. Ao produzir-se a
desafetação ou separação é que serão objeto de um direito real distinto, tendo o negócio que

preveja a aquisição deste direito até esse momento só eficácia obrigacional.


O regime de acessão, dos arts. 1325.º e segs., está na linha da aplicação deste princípio – ou,

melhor, da outra face deste princípio, que não só postula, para existir um jus in re, a individualização

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FDUC – DIREITO DAS COISAS 2017/2018
(no sentido exposto) de uma coisa, como supõe que, enquanto não individualizada (e, nas coisas

conexas, desconexionada ou separada), a ela se estenda o direito que recai sobre o conjunto,
definido pelo género ou pela coisa principal.

O direito real só incide sobre uma coisa determinada, individualizada. As coisas corpóreas podem
ser objeto de propriedade. Quanto às coisas incorpóreas, o CC remete para legislação especial,

aplicando-se o regime do CC subsidiariamente. O estabelecimento ou empresa mercantil são coisas


incorpóreas que são objeto de direitos reais. Existem bens que são coisificáveis, nomeadamente os

direitos sobre direitos (art.1439º; art.1676º, 1679º, 1688º/b) e e)). Esta questão é debatida na
doutrina, há autores que defendem que estamos perante simplesmente transmissão. Há várias

situações em que o direito é visto como um objeto, existe esta coisificação dos direitos.
O facto de o direito recair sobre uma coisa certa e determinada não exclui a propriedade sobre

coisas compostas ou até universalidades. Estamos perante uma condição da determinação do objeto
que permite a sequela e a preferência.

A individualização diz respeito ao objeto e não ao direito, pelo que poderão haver direitos sobre
a mesma coisa, desde que compatíveis.

Em relação à ideia de atualidade ou imediação, diz-se que só há direito real em face de coisas

presentes, que existam já e em poder do alienante (no caso de aquisição derivada) e não em face de
coisas simplesmente futuras (art. 408º/2 CC combinado com o 211º CC). No fundo, é um

desenvolvimento do princípio da coisificação, pois não existem coisas enquanto elas não existem ou
não estão disponíveis no património do alienante. Todavia, não é inútil distingui-lo, porque se, como

o princípio da coisificação e pelas mesmas razões que ele, o princípio da imediação é infrangível para
as coias inexistentes – absolutamente futuras ou futuras stricto sensu já para coisas existentes mas
não disponíveis – relativamente futuras ou só futuras lato sensu – com facilidade se admite que possa
haver exceções. Não há uma impossibilidade, digamos, ontológica a que sobre elas se exerça um

poder direto e imediato. E assim, por força de outros princípios de que falaremos adiante,
designadamente do princípio da compatibilidade e do princípio da publicidade, com a correlativa

proteção da boa fé, o princípio da imediação tem, por vezes, de ceder, em ordem a essas coisas só
relativamente futuras. É o que sucede por força do instituto do registo ou dos arts. 243.º e 291.º.

Na venda de coisas futuras, o efeito real só se dá aquando da aquisição pelo alienante.

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Quanto à ideia de totalidade, o direito real abrange todas as partes integrantes do objeto do
direito. Os elementos componentes são aqueles que não se podem separar sem destruir a coisa (art.

204º/3 CC para os imóveis) e distinguem-se de elementos acessórios, integrantes, que não estão
ligadas à estrutura da coisa.

3. PRINCÍPIO DA COMPATIBILIDADE (OU DA EXCLUSÃO). SENTIDO E APLICAÇÕES

Só pode existir um jus in re sobre determinada coisa na medida em que ele seja compatível com
outro jus in re que recaia sobre ela: ou - o que é o mesmo - na medida em que ele não seja excluído

por força de um pré-existente jus in re.


O direito real, sendo um poder direto e imediato tende a excluir qualquer outro poder direto e

imediato que atinja as faculdades que ele se reserva sobre a coisa. Sem dúvida que isso não obsta a
vários graus de utilização do objeto – razões dos vários tipos de direitos reais admitidos – e,

portanto, à possibilidade de compatibilização entre esses distintos poderes diretos e imediatos. O


que não é apenas certo para as relações entre direitos reais de função diferente ou de género

diferente – entre direitos reais de gozo e direitos reais de garantia ou entre direitos reais de gozo e
direitos reais de aquisição -, mas certo, inclusive, para direitos reais do mesmo género,

designadamente os direitos reais de gozo entre si.


Todos sabemos que a partir da propriedade pode ser criado um direito de usufruto e a partir de

um usufruto, uma servidão, etc. Desde que não se desnature o direito-matriz (que é o que dá
acolhimento ao novo direito), podem a lei ou os interessados estabelecer à custa dele um jus in re,

que é sempre um jus in re aliena (a propriedade é que não onera a propriedade, pois
necessariamente colide com a substância desta última: o que ela pode é eventualmente substituí-la,

como acontece na usucapião ou por efeito do registo). Por outro via, não há concurso de direitos
nem problemas de compatibilização entre um direito real de certa espécie sobre uma parte alíquota

de um bem e um segundo direito real, da mesma espécie do primeiro, sobre outra parte alíquota
desse bem: o fenómeno diário da contitularidade de direitos reais divisíveis, nomeadamente o da

compropriedade. Aqui o objeto dos dois direitos é distinto, pelo que nem sequer tem sentido falar-se
de compatibilização de direitos concorrentes. O princípio não é igualmente posto em causa no

fenómeno de comunhão, como a propriedade coletiva. Só que o esquema, contrariamente ao

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FDUC – DIREITO DAS COISAS 2017/2018
anterior, é já não o de vários direitos da mesma espécie e simultâneos sobre várias quotas-partes

ideais suscetíveis de concretização, mas o de um único jus in re sobre o bem no seu conjunto, direito
que se encabeça em distintos titulares mas que deles desce unitária e globalmente sobre o todo.

O princípio, pois, de que a cada soma ou a cada espessura de utilidades corresponde em cada
momento só um jus in res, mantém-se assim, nessas hipóteses, infrangível, apenas parecendo não se

manter em casos, como o de concurso de direitos de preferência, ou como o de concurso de


penhores, ou como o de concurso de hipotecas, ou o de penhores e privilégios, ou de hipotecas e

privilégios, ou o de quaisquer deles e a consignação de rendimentos ou (e) o direito de retenção, ou


o de privilégios especiais entre si, em que sobre o mesmo bem e a mesma soma de utilidades

incidem direitos com idêntico conteúdo. Acontece, porém, que tal conteúdo é aí essencialmente um
direito de aquisição ou de execução privilegiada que admite a concorrência de direitos congéneres

desde que exista uma escala ou graduação. Ora é essa graduação que resulta, na nossa lei, para os
direitos de preferência, do art. 422.º, para a hipoteca, do art. 686.º/1, para os privilégios, dos arts.

745.º e segs., e, para o direito de retenção, do art. 752.º/2. Nem nestes casos, portanto, existirá
verdadeira exceção ao princípio, visto que é o próprio direito que faculta a concorrência que é em si

mesmo talhado para ser compatível com ela.

4. PRINCÍPIO DA ELASTICIDADE (OU DA CONSOLIDAÇÃO). ELASTICIDADE PASSIVA E


ELASTICIDADE ATIVA. APLICAÇÕES

Todo o direito sobre as coisas tende a abranger o máximo de utilidades que propicia um
direito dessa espécie. Isto significa que todo o direito real tende a expandir-se (ou a reexpandir-se)

até ao máximo de faculdades que abstratamente contém. Isto vale especialmente para o direito de
propriedade, caracterizado como um direito elástico, mas vale para toda a espécie de direito das

coisas que consinta o gravame de um direito mais restrito. Se a partir de um usufruto se constitui
uma servidão, a extinção dessa servidão favorece o usufruto, que se reexpande automaticamente até

ao seu máximo limite. Acontece o mesmo com um direito de hipoteca sobre um direito de usufruto
ou de superfície. É assim característica de toda a realidade esta estrutura elástica dos poderes, este

seu automatismo para a consolidação num direito mais espesso ou mais próximo do pleno. O que
está de acordo com a conceção hierarquizante que defendemos para este tipo de direitos e o que

explica, além disso, a importância que na sua constituição e extinção têm as figuras, respetivamente,

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FDUC – DIREITO DAS COISAS 2017/2018
da aquisição derivada constitutiva e da aquisição derivada restitutiva: regra, uma e outra, da

constituição e extinção de todos os direitos fundados no domínio por excelência – quer isto dizer,
grosso modo para todo o jus in re aliena, tanto de gozo como de garantia e de aquisição.

PRINCÍPIOS LIGADOS AO LADO EXTERNO DO DIREITO REAL

Presos agora ao lado externo do direito – isto é, ao facto de o direito sobre as coisas se impor à
generalidade dos membros da comunidade jurídica ou, como se disse, ter eficácia erga omnes.

1. PRINCÍPIO DA TIPICIDADE FECHADA (TAXATIVIDADE OU NUMERUS CLAUSUS) DOS


DIREITOS REAIS. FUNDAMENTO E APLICAÇÕES. O REGIME DO ARTIGO 1306.º, N.º 1, DO

CÓDIGO CIVIL
Os direitos das coisas têm a tendência de se oferecerem em tipos característicos, aproveitando o

Direito as formações consagradas pelos usos («tipos contentes»), ou, sempre que busca reagir contra
esses usos ou propor novos modelos socioeconómicos, criando, ele mesmo, de harmonia com tais

fins, os “protótipos” ou os “tipos normativos” que lhe interessam.


Os tipos são formas de aproveitamento pleno ou limitado das coisas. Não são conceitos obtidos

por abstração generalizante (como os conceitos de direito subjetivo, direito potestativo, dolo, culpa,
etc.), mas sim algo de mais concreto, acarretando o peso de uma experiência comum – quando se

trate de tipos correntes -, ou de uma representação facilmente acessível a um homem qualquer – no


caso dos tipos normativos ou ideais. Os direitos das coisas, mais do que representações para

técnicos, pretendem ser representações para os leigos, algo acessível e intuível por qualquer um.
Assim se explica a sua conformação em tipos. Há uma relação entre a evolução dos tipos de direitos

reais e os interesses económicos ao longo da história.


Esta característica é de extrema importância pois estes direitos têm eficácia erga omnes, têm de

ser imediatamente acessíveis a uma intuição de leigos, não técnicos. Tratando-se de um problema de
utilização de bens em grande parte corpóreos, meios materiais de subsistência, suscitam os conflitos

básicos de interesses, pelo que é essencial que estes direitos sejam imediatamente acessíveis a todos
os membros da comunidade.

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FDUC – DIREITO DAS COISAS 2017/2018

O direito das coisas não só se apresenta em tipos característicos, mas numa tipologia taxativa,
num elenco fechado de formas ou de direitos. É uma tipicidade fechada, uma taxatividade, que

encontramos nos direitos reais.


No domínio dos contratos, há uma tendência para a estereotipização (repetição dos tipos de

contratos encontrados), mas continua a existir possibilidade de firmar outros contratos. A


tipicidade/numerus clausus diz apenas respeito aos direitos reais e não aos contratos com eficácia

real. O contrato poderá ser atípico, desde que o direito real seja típico.
Alguns países consagram este princípio expressamente, como é o nosso caso no art.1306º CC,

mas outros não o fazem, apesar de ser doutrina maioritária que se aplica a este ramo do direito civil.
Heck é um dos autores que se opõe à taxatividade fechada dos direitos das coisas, defendendo o

numerus apertus.
Os tipos admitidos são, porém, tipos abertos (e não tipos fechados como os do direito criminal),

consentindo uma intervenção da vontade que não se afaste das linhas do tipo. Há mesmo um tipo
previsto, a servidão predial, que é intencionalmente compatível com um número indefinido de

concretizações desse direito.


A criação de direitos reais será nula. Quando há a criação de um direito real atípico, isto não é

oponível a terceiros (art.1306º/1, segunda parte). Entendemos, com Antunes Varela, que a lei, na
última parte do nº1 do art. 1306º CC, estabelece uma presunção iuris tantum de que a conversão

corresponde à vontade hipotética das partes, ficando sempre livre a possibilidade de prova em
contrário.

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FDUC – DIREITO DAS COISAS 2017/2018

2. PRINCÍPIO DA TRANSMISSIBILIDADE

OS SISTEMAS DE TRANSMISSÃO DE DIREITOS (OU EM GERAL DE PRODUÇÃO DE EFEITOS)

REAIS: SISTEMA DO TÍTULO E DO MODO, SISTEMA DO MODO, SISTEMA DO TÍTULO.

PERSPETIVA HISTÓRICA, INTERESSES SUBJACENTES E CARACTERIZAÇÃO DESSES SISTEMAS.

Para a compreensão deste princípio e dos seguintes, é necessário verificar as raízes do sistema
em que o nosso direito das coisas se insere, quanto à conciliação dos dois interesses subjacentes ao

interesse de estabilidade ou de estabilização.


Estabilização é a impossibilidade de contestação, o que implica regularidade da conformação –

da produção do direito real considerado – e indiscutibilidade dessa conformação. Há que conseguir


um compromisso entre a preocupação de regularidade e a preocupação de indiscutibilidade.

Três sistemas estão em confronto: o sistema do título e do modo, o sistema do modo e o sistema do
título. Título tem aqui o sentido de fundamento jurídico ou de causa que justifica a aquisição,

podendo abranger, em princípio, todas as razões em que se funda a aquisição de um ius in re, quer
de trate de lei, de sentença ou ato jurídico, unilateral ou contratual.

No direito de Roma distinguia-se entre o título – ato pelo qual se estabelece a vontade de
atribuir e de adquirir o direito real – e o modo – ato pelo qual se realizam efetivamente essa

atribuição e aquisição. O título era insuficiente para a produção do efeito real, exigindo-se o modo,
que só por si também não seria suficiente para a produção do mesmo efeito, necessitando este de

uma justa causa de atribuição. Aqui o compromisso entre os dois interesses (regularidade e
indiscutibilidade) consegue-se através da dupla dependência do efeito real – dependência de título e

de modo – e é ainda hoje seguido por várias legislações, como a espanhola.


O sistema de modo, consagrado no Código Alemão, caracteriza-se pela produção do efeito

real mediante a tradição ou entrega, para as coisas móveis, e, para as coisas imóveis, a inscrição no
registo fundiário, com o respetivo acordo de transmissão. Embora estes atos sejam normalmente

precedidos de um contrato prévio em que se manifesta a vontade de atribuir e adquirir o direito real
sobre a coisa, a atribuição e a aquisição não dependem em si mesmas disso, mas apenas do ato

através do qual a atribuição e a aquisição se efetuam. Ao interesse da indiscutibilidade sacrifica-se o


interesse da regularidade, resolvendo-se o problema através da irrelevância do segundo.

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FDUC – DIREITO DAS COISAS 2017/2018

Em França, Portugal, Itália, etc., prevalece o sistema do título, exigindo-se e bastando para
que o ius in re se transmita ou constitua sobre a coisa o ato pelo qual se estabelece a vontade dessa

transferência ou dessa constituição. Ao interesse da regularidade sacrifica-se, em princípio, o


interesse da indiscutibilidade, ficando a existência do direito em princípio em questão enquanto

estiver em questão o próprio ato que o titula.


Mas nenhum destes sistemas é levado às últimas consequências. O sistema do modo não

desatende por completo às causas de atribuição, admitindo o recurso à ação por enriquecimento
sem causa. O sistema de título, além das exceções que o aproximam por vezes do sistema do título e

do modo, admite, evidentemente, a usucapião e a proteção de terceiros de boa fé.


Os direitos reais, tal como os outros direitos, podem mudar de titular, são transmissíveis inter

vivos ou mortis causa. Significa isto que a ligação entre os direitos reais e o seu titular é cindível,
pode ser quebrada por vontade do titular ou por outra causa. Esta característica traduz no fundo a

alienabilidade e a hereditabilidade dos direitos reais, mas não tem carácter absoluto, é uma nota
tendencial que comporta exceções.

O CC não consagra este princípio expressamente, mas pode subentender-se da faculdade de


disposição conferida a todos os direitos reais.

Existem exceções a este princípio:

 O usufruto pode ser vitalício, mas já não perpétuo, não é hereditável (art.1444º CC).

 Outra exceção está presente no art.1488º, relativamente ao usuário. Este direito de uso tem
caráter pessoal, percebendo-se a ratio desta exceção. O cônjuge sobrevivo tem direito à habitação

da casa do falecido e de uso do seu recheio.


 As servidões prediais só são transmissíveis com a transmissão do prédio onerado (arts. 1543º

e ss., especialmente o art.1545º CC), visto serem caracterizadas por uma imposição de um encargo a
um prédio em benefício de outro. Os direitos legais de preferência não podem ser transmitidos

independentemente da situação a que se encontram ligados, havendo uma inseparabilidade


semelhante à das servidões prediais.

 Também há uma exceção na transmissão da hipoteca (arts.727º e ss. CC).

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FDUC – DIREITO DAS COISAS 2017/2018

Será que é possível uma limitação convencional à transmissão, uma cláusula de


inalienabilidade? Há casos em que a lei o permite, por exemplo, no caso das quotas em sociedades

comerciais, cuja transmissão pode necessitar de autorização. No âmbito obrigacional, é admissível.


Mas esta admissibilidade cessa quando esta cláusula adquira caráter real, por violação do princípio

da tipicidade fechada, pois estaria a ser criada uma restrição ao direito de propriedade (art. 1306º
CC). A regra é, então, que esta cláusula não é oponível a terceiros.

Mas também a isto existem exceções, como é o caso das substituições fideicomissárias (art.962º
e 2286º CC). Esta cláusula é oponível a terceiros e é uma exceção ao princípio da transmissibilidade.

Outra limitação convencional reside no art. 959º CC.

3. PRINCÍPIO DA CAUSALIDADE. SENTIDO DO PRINCÍPIO E EXCEÇÕES


Ao sistema de modo há de corresponder um princípio de abstração, abstração esta do efeito real

em face do título; ao sistema de título corresponde o princípio da causalidade.


Enquadrando-se o nosso sistema dentro dos sistemas de título, é evidente que a constituição ou

modificação de qualquer direito sobre as coisas depende da validade da causa jurídica que precede
essas mesmas consequências, isto é, depende da existência e validade do negócio que operou tal

vicissitude no mundo jurídico-real. Ao contrário do sistema germânico, em que o efeito real é


independente do negócio obrigacional, abstraindo-se deste, nos sistemas de título o negócio é um e

único, obrigacional e real, quanto aos efeitos. É o que resulta do art. 408º/1 CC. O negócio de efeitos
obrigacionais é a causa jurídica dos efeitos reais, mesmo que a produção destes esteja dependente

de uma ulterior formalidade, como a transmissão da coisa na doação de bens móveis, não havendo
um escrito entre as partes (art. 947º/2 CC).

A vigência da causalidade não postula forçosamente um numerus clausus das justas causas de
atribuição, sendo, pelo contrário, compatível com certa margem de improvisação dos disponentes.

Isto claro não se alterando o numerus clausus dos direitos reais em vigor e tendo essas causas de
atribuição o mínimo de consistência do ponto de vista dos interesses.

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FDUC – DIREITO DAS COISAS 2017/2018

4. PRINCÍPIO DA CONSENSUALIDADE. O ARTIGO 408.º, N.º 1, DO CÓDIGO CIVIL. SENTIDO


DO PRINCÍPIO E EXCEÇÕES

O princípio de que a constituição ou transferência de direitos reais sobre determinada coisa dá-se
por mero efeito do contrato (art. 408º/1 CC) significa, portanto, que apenas se necessita do mero

acordo das partes para produzir os efeitos reais pretendidos.


O contrato que é fonte de efeitos obrigacionais é a própria fonte dos efeitos reais, efeitos que só

não virão, consequentemente, a produzir-se, não havendo outra causa de suspensão desses efeitos,
se o contrato, como tal, for inválido.

Não se deve confundir esta consensualidade que vigora nos direitos reais, com o consensualismo
(art. 219º CC), que se opõe ao formalismo e que diz respeito à ausência de forma do negócio

jurídico. Este consensualismo é importante para a constituição ou atribuição de iura in re – pois a


falta de forma que excecionalmente se exija resulta na irregularidade do título e, por conseguinte, na

violação do princípio da causalidade – não é a aceção rigorosa do princípio consensual em matéria


de direito das coisas, princípio que, de acordo com o art. 408º/1, se limita a dizer que a produção

dos efeitos reais depende apenas do contrato, formalizado ou não, em que se manifesta a vontade
de produzir esses efeitos.

Se o princípio causal afirma que sem justa causa – isto é, nos direitos das coisas
convencionalmente estabelecidos, sem a existência e a validade do contrato-título - o efeito real não

se produz, o princípio da consensualidade só adianta que essa condição necessária é também


suficiente, dispensando-se, ao invés dos sistemas de modo ou de título e modo, o preenchimento de

qualquer outra exigência não reconduzível ao contrato: não reconduzível, em suma, a uma mera
documentação ou autenticação do consenso das partes.

Exceções a este princípio são:


 A doação de bens móveis quando não exista escrito – exigência de traditio

 Na transmissão de títulos ao portador – exigência também de traditio


 Na constituição do penhor de coisas – exigência de traditio, art. 669º CC

 Na constituição de penhor de créditos – exigência de notificação do devedor


 Na constituição de hipoteca – exigência de registo.

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FDUC – DIREITO DAS COISAS 2017/2018

5. PRINCÍPIO DA PUBLICIDADE
O princípio da consensualidade requer, como compensador, o princípio da publicidade: o

princípio de que, sendo um direito erga omnes, o direito das coisas deve ser conhecido ou
cognoscível das pessoas que virtualmente ele afete, designadamente de terceiros. Se inter partes o

efeito constitutivo ou translativo se produz, em regra, solo consensu, é obvio que o aspeto externo
do direito real tem de exigir uma publicidade suficiente para se dar a conhecer a terceiros um

fenómeno que por definição lhes diz respeito.

FORMAS DE PUBLICIDADE DOS DIREITOS REAIS, COM ESPECIAL REFERÊNCIA AO REGIME DO

REGISTO PREDIAL.

TRAÇOS FUNDAMENTAIS DO DIREITO DO REGISTO PREDIAL PORTUGUÊS.


É esta tutela de terceiros que preside aos meios de publicidade estabelecidos por lei, em
especial ao instituto do registo nas suas várias manifestações: predial, automóvel, de navios e de

aeronaves.
Esta exigência de tutela de terceiros sentiu-se principalmente para os imóveis, não só porque

tradicionalmente neles se via a grande base da riqueza comum, mas ainda porque, correspondendo
às maiores unidades de valor, mais facilmente admitiam a instituição de um sistema particularmente

dispendioso tanto para as finanças públicas como para a economia do indivíduo: a instituição do
registo fundiário ou de inscrição nos livros das conservatórias.

O sistema de registo que vigora entre nós é um registo meramente declarativo, sendo a
única exceção a hipoteca (art. 687º CC e art. 6º/2 do Código do Registo Predial). O registo, com

ressalva desta exceção, não é imprescindível à constituição, modificação ou extinção dos direitos
inerentes às coisas – não é, portanto, constitutivo –, visando apenas assegurar a publicidade em face

de terceiros.
A alínea a) do nº1 do art. 2º do Código do Registo Predial refere que estão sujeitos a

registo predial os factos que constituam ou transmitam direitos reais sobre imóveis. Este registo é
obrigatório, mas não é constitutivo, sendo a sanção ligada à falta de registo pecuniária. O ato

continua a ser eficaz. Pelo art. 5º do mesmo código, os factos sujeitos a registo só produzem efeitos
contra terceiros depois da data do respetivo registo.

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FDUC – DIREITO DAS COISAS 2017/2018

Terceiros, para fins de registo, são as pessoas que do mesmo autor ou transmitente adquiram
direitos incompatíveis (total ou parcialmente) sobre o mesmo prédio (MANUEL DE ANDRADE).

II PARTE – DIREITOS REAIS EM ESPECIAL

CAPÍTULO I – A POSSE
1. NOÇÃO E DISTINÇÃO DA TITULARIDADE DO DIREITO EM CUJOS TERMOS SE POSSUI.
A noção de posse é dada pelo art. 1251º CC, que a define como “o poder que se manifesta

quando alguém atua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro
direito real”.

Juridicamente, as noções posse e propriedade diferenciam-se de tal maneira que a posse pode
ou não coincidir com a propriedade.

A posse é admissível em relação a qualquer outro direito real que não a propriedade, o que
significa que pode haver uma posse traduzida na prática de atos correspondentes ao conteúdo, não

da propriedade, mas de outro direito real. Pode, assim, haver uma posse de uma servidão, de um
usufruto, etc.

Mesmo quando nos referimos a posse como prática de atos correspondentes ao direito de
propriedade, ainda assim posse e propriedade diferenciam-se.

Muitas vezes, é certo, a posse coincide com a titularidade do direito de propriedade ou do direito
de outro tipo a que corresponde. É o que acontece quando um proprietário habita o seu prédio,

sendo simultaneamente proprietário e possuidor, não tendo aqui a posse autonomia em relação à
propriedade. Se o proprietário tem o prédio arrendado e recebe as rendas é igualmente o seu
possuidor, uma vez que está a fruir as vantagens económicas da coisa, na espécie, do seu prédio. É
certo, que o prédio é habitado pelo locatário, mas este é um possuidor em nome alheio, pois está a

pagar as rendas ao proprietário. O que ocorre, aqui, é assim, nesta hipótese, um possuidor por
intermédio.

Existe, portanto, nestes casos, a reunião, na mesma pessoa, das qualidades de proprietário e
possuidor. Pode, contudo, não acontecer assim.

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FDUC – DIREITO DAS COISAS 2017/2018

Figure-se neste sentido um lavrador, um agricultor, que começa a cultivar para além das
estremas do seu terreno, começando, portanto, a cultivar o terreno vizinho e fazendo-o de forma

reiterada, sem que, para isso, tenha sido autorizado, afirmando, ainda, o seu intento de se
comportar como proprietário, recolhendo os frutos, etc.. Pois, em hipótese deste tipo, o agricultor

referido torna-se possuidor daquele terreno; tem a pose respetiva, mas não a sua propriedade. O
proprietário é o dono do prédio, que, por sua vez, não tem a posse correspondente.

Da mesma forma, se alguém acha uma coisa perdida, ou se furta um objeto e o guarda,

passando a frui-lo, surge, aí também, uma dissociação entre a qualidade de possuidor e de


proprietário. O proprietário é o lesado; este continua a ser proprietário da coisa, mas não seu

possuidor.

Se, numa outra hipótese, um indivíduo compra um objeto a quem não era proprietário, isto
porque o alienante não proprietário vende conscientemente uma coisa alheia, ou porque ele próprio

– o alienante – a tinha, por sua vez, adquirido por ato nulo. O adquirente não se torna proprietário,
dado o princípio segundo o qual “nemo plus juris in alium transferre potest quam ipse habet ”.

Este princípio implica a consequência de o comprador nada adquirir, visto o alienante não
possuir nenhum direito.

Não obstante, se a coisa lhe foi entregue, o adquirente, torna-se possuidor dela. Não é,
todavia, seu proprietário. Proprietário é o indivíduo cuja coisa foi vendida por outrem; esse, sim,

continua a ser o proprietário. Quanto ao adquirente, este, uma vez que a coisa lhe foi entregue, é,
apenas, o seu possuidor.

Em todos estes casos, estamos perante situações de posse que não coincidem com a
titularidade do direito real correspondente, uma vez que, neles, há um indivíduo que detém a coisa

em seu poder, mas que não tem a qualidade de proprietário da coisa.

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FDUC – DIREITO DAS COISAS 2017/2018

2. OBJETO DA POSSE
Podem ser objeto de posse as coisas que podem ser objeto de propriedade. Assim, estão

excluídos da posse as coisas que estão fora do comércio, isto é, as coisas integradas no domínio
público.

O art. 1267.º/1/b) sugere-o claramente. “De jure constituto” parece que entre nós estão excluídos
da posse os direitos reais de garantia. Pelo menos é o que “a contrario” pode inferir-se do art.

670.º/a).
Já, “de jure condendo” não seria impossível admitir-se a posse para estes, pelo menos naqueles

que conferem um poder de facto sobre uma coisa, como é o caso do penhor e do direito de
retenção.

Já quanto à hipoteca, que não confere um poder de facto sobre a coisa, ou quanto aos privilégios
creditórios, não se vê que pudesse haver uma posse. Mas, “de jure constituto”, parece que entre nós

os direitos reais de garantia estão excluídos da posse.


Os direitos reais de aquisição estão, também, excluídos da posse. Isto compreende-se visto estes

direitos serem não duradouros, traduzindo-se o seu exercício num só ato. Não há aquela situação
duradoura que a posse exige. Não se concebe, assim, a posse num direito de preferência. É que este

é um direito cujo exercício não se traduz em atos reiterados sobre uma coisa, mas é antes um direito
que se exerce de uma só vez.

Os direitos reais de gozo são suscetíveis de posse. É no seu domínio que se verifica a posse e
não só na propriedade. Também a servidão e o usufruto podem ser objeto de posse. A posse destes
direitos significa praticarem-se reiteradamente os atos correspondentes ao conteúdo da servidão ou

do usufruto (no caso de usufruto, é fazer seus os frutos).


Quanto ao corpus, a posse do usufruto é igual à posse da propriedade, mas o animus será

diferente. O indivíduo que está na posse como usufrutuário não atua com o intento de exercer o
direito de propriedade, nunca podendo adquirir o direito de propriedade por usucapião (mas pode

adquirir o direito de usufruto por usucapião!).


Não pode haver posse nas servidões não aparentes, como está previsto no art. 1280º CC,

embora com uma exceção, consagrada na segunda parte dessa disposição ao estatuir que não pode

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FDUC – DIREITO DAS COISAS 2017/2018
haver posse nas servidões não aparentes “… salvo quando a posse se funde em título provindo de

proprietário do prédio serviente ou de quem lho transmitiu”.

Qual a justificação deste regime de impossibilidade de posse nas servidões aparentes? É que

os atos correspondentes ao conteúdo das servidões não aparentes são normalmente atos de
tolerância do proprietário da coisa.

3. FUNÇÃO DA TUTELA JURÍDICA DA POSSE (DEFESA DA PAZ PÚBLICA, DIFICULDADE DE

PROVA DO DIREITO, VALOR ECONÓMICO)


Poderá parecer estranho que o possuidor seja protegido, que a lei proteja, às vezes, contra o

autêntico proprietário, o usurpador, ou o indivíduo que adquiriu sem se ter verificado sequer a
transferência da propriedade, por a coisa lhe ter sido vendida por quem era seu proprietário, ou até

proteja quem furtou. A tutela da posse pode, com efeito, conduzir a que este indivíduo seja
protegido. É claro que é sempre uma tutela provisória, visto que os meios de tutela da posse – o

chamado contencioso possessório – resolvem só de imediato, mas não definitivamente.

I – DEFESA DA PAZ PÚBLICA


Uma das justificações é a defesa da paz pública. A tutela da posse, a tutela desta situação de

facto resultante de um indivíduo estar em contacto com as coisas – detê-las, a explorá-las e a fruí-las
-, tem a vantagem de evitar a desordem, de garantir a paz pública por não forçar as pessoas à
autotutela dos direitos. Se o possuidor de um automóvel não pudesse recorrer aos tribunais para a
restituição do veículo no caso de alguém o ter furtado e tivesse que ir demonstrar a propriedade

para uma ação destinada a recuperar o objeto, então ele iria busca-lo por suas mãos.
Assim, a tutela da posse destina-se, desde logo, a impedir a desordem e a anarquia no que toca

ao domínio dos bens.

II – DIFICULDADE DE PROVA DO DIREITO DEFINITIVO


Há também outra justificação avançada por IHERING para justificar a sua conceção objetiva

(desenvolvido num ponto mais à frente).


A proteção da posse permite facilitar aos autênticos titulares dos direitos a continuação do

exercício dos poderes de facto correspondentes, sem necessidade de prova da existência do seu

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FDUC – DIREITO DAS COISAS 2017/2018
direito. A aparência, a visibilidade exterior, que é o facto de as pessoas estarem a ocupar o prédio ou

a comportar-se em face como proprietário, leva a que, provisoriamente, sejam tratados como
proprietários e, estatisticamente, são-no na maior parte dos casos. Facilita, assim, a defesa dos

titulares dos direitos reais que não têm sempre de os invocar ou de os provar para conseguir que a
coisa lhes seja entregue ou sejam mantidos na sua posse. Basta, para isso, provar essa situação de

facto; embora, como dissemos, seja uma proteção provisória.


Na verdade, se um indivíduo vem procurar reaver uma coisa, alegando que esta, por exemplo,

lhe foi furtada, o possuidor – até mesmo o autor do furto – pode imediatamente obter uma ação de
manutenção da posse, desde que prove que está na posse dela. Se estiver na posse dela há mais de

um ano, basta provar esse facto para que se não discuta mais e ele continue de posse da coisa. O
proprietário pode depois ir para o contencioso petitório, isto é, para a ação de reivindicação,

demonstrar que a sua propriedade lhe foi furtada e, provado isso, então torna a reaver a coisa. Isto
implica, porém, uma indagação mais demorada. Mediante a simples prova da posse, o indivíduo que

tinha a coisa em seu poder, obtém que ela seja mantida em seu poder, até contra o verdadeiro
proprietário.

Estas hipóteses de proteção possessória do autor de um furto ou de um usurpador são, porém,


pouco numerosas. O caso normal é o de possuidor ser o proprietário. Aqueles casos são, assim, um

preço que se paga para que, no comum dos casos, em que as pessoas que estão na posse não os
autênticos proprietários, estes possam, mais facilmente, e sem serem obrigados a provas dificílimas

ou mesmo impossíveis de conseguir, defender os seus poderes de facto sobre a coisa.

III – VALOR ECONÓMICO DA POSSE


Finalmente, a última justificação prende-se com o valor económico da posse. A posse é um

elemento importante do ponto de vista da produção e da economia em geral. A exploração das


coisas tem em si um valor económico e interessa mais à economia geral a exploração da coisa do

que a propriedade inerte, passiva, inativa. Deste ponto de vista, interessa que a posse seja protegida,
designadamente a atribuição ao possuidor de boa fé os frutos da coisa, etc.

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FDUC – DIREITO DAS COISAS 2017/2018

4. ELEMENTOS DA POSSE: DOUTRINAS OBJETIVISTA E SUBJETIVISTA; O ELEMENTO

MATERIAL E O ELEMENTO PSICOLÓGICO; POSIÇÃO DO CÓDIGO CIVIL PORTUGUÊS.

Numa situação de posse, distinguem-se dois elementos:

I - O elemento material – “corpus” - que se identifica com os atos materiais praticados sobre a
coisa, com o exercício de certos poderes sobre a coisa;

II - O elemento psicológico - “animus” - que se traduz na intenção de se comportar como titular

do direito real correspondente aos atos praticados.

I – ELEMENTO MATERIAL (“CORPUS”)


O elemento material, ou corpus, pode traduzir-se no exercício de poderes de detenção, ou seja,

em guarda a coisa em seu poder, conservá-la, se é móvel, ocupando-a, se é imóvel. Não é necessário
um permanente contacto físico com a coisa. Basta que a coisa esteja virtualmente dentro do âmbito

do poder de facto do possuidor (p.ex. quando se deixa o automóvel estacionado durante umas
horas, não se deixa de ser seu possuidor).

O corpus pode também traduzir-se em atos de fruição, ou até dos dois tipos, de detenção e
fruição conjuntamente.

Pode, assim, não haver propriamente uma detenção da coisa – esse contacto físico, real ou
virtual, que indicámos -, mas haver uma fruição da coisa mediante a recolha das vantagens

económicas desta. Nesta caso – por exemplo, o de um indivíduo recolhe os frutos de um prédio
rústico ou recebe as rendas de um prédio -, está o indivíduo que frui o prédio, a possuí-lo.
Nestas hipóteses não tem que haver contacto físico com a coisa em nenhuma circunstância. Mas
nos atos de detenção, não tendo que haver um contacto físico com a coisa em todos momentos,

esse contacto tem de existir em algum ponto. Assim, o indivíduo que está a receber as rendas
(retomando o exemplo) não tem em nenhum momento contacto com a coisa, estando, porém, na

posse desta.
A própria lei, no art. 1252º CC, fala na posse por intermédio de outrem. É, assim, uma aplicação

deste princípio, o exemplo referido, de se estar a receber as rendas do locatário, que é quem se

encontra em contacto físico com a coisa.

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FDUC – DIREITO DAS COISAS 2017/2018
Este – o locatário – não é possuidor por se encontrar a possuir em nome de outrem, não se

comportando, por isso, em relação à coisa como um proprietário.


Da mesma forma possui uma coisa o indivíduo que a faz cultivar por assalariados. Este indivíduo

possui-a, embora através de intermédios (os assalariados por ele contratados).

II – ELEMENTO PSICOLÓGICO (“ANIMUS”)


O outro elemento, o animus, traduz-se num elemento de natureza psicológica. É necessário, para

haver posse, além desta situação material de exercício de um poder de facto sobre a coisa, a vontade
de se comportar como titular do direito correspondente aos atos realizados. Não tem de ser

necessariamente um animus domini, visto que pode haver posse fora da propriedade, falando-se sim
de um animus possidendi. Pode haver posse de um direito de usufruto ou de um direito de servidão,

sem que o indivíduo que está na posse destes direitos – usufruto ou servidão – queira comportar-se
como proprietário, mas antes, no caso de usufruto, como usufrutuário.

Não tem, portanto, que existir um “animus domini” – este seria só para a posse correspondente à
propriedade -, mas apenas um “animus possidendi”, ou seja, o intuito de se comportar como o titular

do direito correspondente aos atos que se praticam.

Assim, é por falta deste “animus” que, por exemplo, uma pessoa que se senta numa cadeira de

outrem, não a possui, pois não tem a intenção de se comportar como proprietário.

Da mesma forma, para indicar um outro exemplo, uma pessoa que em casa de outrem é

convidado por este, bebe uma chávena de café, não é possuidor da chávena que segura,
precisamente por falta desse elemento psicológico. O elemento material existe, como se vê, mas

falta o elemento psicológico ou seja a intenção de, ao praticar aquele ato, se comportar como
proprietário.

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FDUC – DIREITO DAS COISAS 2017/2018

É, aliás, uma situação idêntica a que se verifica nas situações de locatário ou de

comodatário. Estes não são possuidores por lhes faltar o “animus” correspondente à propriedade,
embora pratiquem em relação à coisa atos equivalentes ao conteúdo da propriedade ou, pelo

menos, do usufruto. O locatário e o comodatário têm um contacto físico com a coisa, mas por
força de um título (o contrato) que é permanente reconhecimento de que não são proprietários.

Não há, portanto, nos exemplos que acabámos de referir, posse.

III – NECESSIDADE DE COEXISTÊNCIA DO “CORPUS” E DO “ANIMUS”

Existem duas conceções da posse, que vêm responder à questão da necessidade, para existir a
posse, da concorrência destes dois elementos: uma objetiva e uma subjetiva.

) CONCEÇÃO OBJETIVA

A conceção objetiva, defendida por IHERING, considera que basta para haver posse o elemento
objetivo, o corpus, o elemento material. Existindo este, existe posse. De acordo com esta conceção, o

locatário seria possuidor.

) CONCEÇÃO SUBJETIVA
A conceção subjetiva, com SAVIGNY, entende que são necessários os dois elementos, só

havendo posse quando existam animus e corpus conjuntamente. Se se perder algum destes
elementos, ou os dois, deixa de haver posse.

Assim, por exemplo, pode perder-se o elemento material, quando se perde a coisa, ou quando
esta é furtada ou ainda usurpada por um terceiro, v.g., quando o prédio rústico de um indivíduo

começa a ser cultivado por outrem, que se arroga a propriedade do prédio. Aqui, o antigo possuidor
perdeu a posse, não porque tenha perdido o animus, uma vez que continua a considerar-se

proprietário, mas porque perdeu o corpus, deixando, portanto, de ter contacto com a coisa.
Pode, também, acontecer que o que se perde seja o elemento psicológico, o animus, o que é,

aliás, vulgar verificar-se nas situações em que tem lugar o chamado constituto possessório. Nessas
situações o proprietário de um prédio vende-o a outrem, mas convencia simultaneamente, que

continua no prédio como locatário. Assim esse indivíduo permanece no prédio, já não como

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FDUC – DIREITO DAS COISAS 2017/2018
proprietário, uma vez que o vendeu, mas como locatário por força do contrato de arrendamento.

Aqui, o ex-proprietário, ora locatário perdeu o animus e, embora continue a manter contacto físico
com a casa (corpus), deixa de ser possuidor, porque deixa de a possuir em nome próprio, deixa de se

comportar em relação a ela com a convicção ou com a intenção de exercer o direito correspondente
aos atos que pratica.

) POSIÇÃO LEGAL

Ora estas duas conceções da posse explicam-se porqie cada uma delas parte de uma acentuação
prevalente de uma determinada justificação da posse.

Para Savigny o fim e a causa, ou seja, a justificação de uma proteção jurídica da posse era a
defesa da paz pública. A posse é protegida porque, se o não fosse, gerar-se-ia a desordem: os

possuidores teriam que recorrer à autotutela dos seus direitos. Se um possuidor não pudesse, sem
mais, recorrer ao tribunal, quando é perturbado ou quando é esbulhado da coisa, se esta situação de

facto – a posse – não pudesse ser protegida logo em si, o indivíduo então faria justiça por suas mãos,
o que implica a desordem. O indivíduo cuja posse não é protegida, sendo difícil ou pelo menos

demorado ir provar que é proprietário, se para defender a posse tivesse sempre que provar aquela
qualidade, então defendia-a por suas mãos. Ora não pode aceitar-se a autotutela dos direitos, se não

em termos limitados.
Para IHERING a razão pela qual todos os sistemas protegem a posse não seria a da proteção da

paz pública. É que a posse, para este autor, é o sinal visível ou exterior do direito real correspondente
– normalmente a propriedade.

A posse é, digamos, uma guarda-avançada, uma sombra da propriedade. Compreende-se,


portanto, que ela seja protegida desde logo. É certo que assim se protegem alguns não-proprietários

(o indivíduo que furta ou que usurpa, por exemplo) mas protegem-se apenas provisoriamente.
Simplesmente, a maioria estatística dos possuidores é mesmo formada por proprietários das coisas

possuídas. Se não se protegesse a simples posse as pessoas teriam que provar o seu direito, o que
exigiria, muitas vezes, a prova de uma cadeia ininterrupta de transmissão, e seria, assim, uma prova

dificílima ou mesmo impossível – uma “probatio diabolica”


Portanto, à custa de algumas vezes se proteger provisoriamente o usurpador, ou, de qualquer

maneira, o indivíduo que não está legitimamente na posse da coisa, consegue-se um rendimento

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FDUC – DIREITO DAS COISAS 2017/2018
geral, porque se facilita aos autênticos proprietários, que constituem a maioria dos possuidores,

defenderem o seu contacto com a coisa rapidamente só com base na prova da posse, sem que
tenham, portanto, de provar com títulos a propriedade.

A posição legal do nosso Código é a subjetiva, verificando-se que se exige o corpus e o


animus nos arts. 1251º e 1253º CC. Se faltar o animus possidendi, estamos perante uma mera
detenção ou posse precária. Mas foram consagradas soluções que se aproximam da conceção
objetiva, ao ser concedida a tutela possessória a meros detentores ou possuidores precários

(locatário – art. 1037º/2; comodatário – art. 1133º/2; depositário – art. 1188º/2). Contudo, não estão
equiparados aos possuidores, nomeadamente para efeitos de usucapião. O locatário ou o

comodatário, por exemplo, não podem adquirir por usucapião, salvo se houver inversão do título.
A nossa lei exige, então, o animus e o corpus para que se esteja perante posse e isso implica

que se tenha que provar a existência dos dois elementos para se poder, por exemplo, adquirir por
usucapião ou lançar mão das ações possessórias. A prova do animus pode ser especialmente difícil.

Para facilitar, o legislador estabeleceu uma presunção: em caso de dúvida, presume-se a posse
naquele que exerce o poder de facto (art. 1252º/2 CC). O exercício do corpus, faz presumir a

existência de animus.

5. CARACTERES DA POSSE: TITULADA E NÃO TITULADA, PACÍFICA E VIOLENTA, PÚBLICA E


OCULTA, DE BOA FÉ E DE MÁ FÉ. POSSE PRECÁRIA E MERA DETENÇÃO. OUTRAS

CLASSIFICAÇÕES.
I – POSSE TITULADA E NÃO TITULADA

A posse titulada é aquela que se funda “em qualquer modo legítimo de adquirir,
independentemente, quer do direito do transmitente, quer da validade substancial do negócio
jurídico”.
Trata-se, portanto, duma posse que tem a sua causa num negócio abstratamente idóneo para

transferir a propriedade ou outro direito real de fruição. Dispensa-se o direito do transmitente


(aquisição a non domino) e não é afastada por vício de fundo que não exclua o animus de a adquirir:

v.g. dolo, erro obstáculo, coação moral, etc.


Estão afastados os vícios formais, por isso, se o negócio for nulo por vício de forma, a posse que

daí deriva não se considera titulada. Esta posição legal mereceu reparos que se afiguraram

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FDUC – DIREITO DAS COISAS 2017/2018
pertinentes: sendo, em regra, um vício formal menos grave do que a generalidade dos vícios

substanciais, não se compreende por que motivo estes e não aquele hão-de titular a posse.
Assim, é necessário que não exista invalidade formal, pois a existir, o título não é válido, sendo a

posse não titulada – Por exemplo: uma venda verbal de um imóvel.


Em relação ao negócio jurídico viciado de simulação absoluta, levanta-se um problema: a posse

será titulada? Há quem entenda que o adquirente não é possuidor porque, intervindo no acordo
simulatório, não tinha qualquer espécie de animus de adquirir um direito real sobre a coisa. Quanto à

simulação relativa, porque destruído o ato simulado, fica a descoberto o ato dissimulado, se este for
nulo por vício de forma, existe posse não titulada. Porém, também há quem, embora reconheça que

esta é uma situação geral, não afaste a possibilidade de o simulado adquirente agir intencionalmente
como beneficiário do direito e, neste caso, a posse dever-se-á considerar titulada.

Se a posse for adquirida por sucessão mortis causa, é necessário atender ao modo por que o de
cuius a obteve, porque o sucessor não dispõe de título novo: tão-só continua a posse do autor da

herança.
O título tem um efeito imediato: faz presumir a boa fé. Trata-se, no entanto, de uma presunção

relativa (iuris tantum).


Quanto à sua existência, o Código determina que o título não se presume; por isso deve ser

provado por quem o invoca.


Pergunta-se: E a posse do adquirente, se a coisa lhe foi entregue? É titulada ou não titulada? Pois

bem, nos termos do nº1 do art. 1259.º citado, é não titulada, ou seja, só provoca a usucapião ao fim
de vinte anos, enquanto que, se fosse posse titulada, vigorariam prazos mais curtos.

À posse titulada contrapõe-se a posse não titulada ou mera posse que não se funda em qualquer
modo legítimo de adquirir. O Código utiliza indiferentemente as duas expressões: v.g., refere a mera

posse a propósito da usucapião de imóveis; e fala da posse não titulada dispondo que se presume de
má fé. Por sua vez, o Códigp do Registo Predial fala de mera posse, nos factos sujeitos a registo.

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II – POSSE PACÍFICA E POSSE VIOLENTA


A posse pacífica é aquela que foi adquirida sem violência (art. 1261º CC), contrapondo-se-lhe a

posse violenta, “a posse quando, para obtê-la, o possuidor usou da coação física, ou da coação
moral nos termos do artigo 255.º”.

Observa-se que, obedecendo a coação moral ao art. 225.º, estão afastadas a ameaça lícita (o
exercício normal de um direito) e o temor reverencial. Por outro lado, a violência pode ser exercida

sobre pessoas e coisas. Nota-se igualmente que a lei considera a posse como pacífica no momento
da sua aquisição, mas o seu o carácter pacífico ou violento pode projetar-se também durante o seu

exercício: a posse é violenta enquanto se mantiver a coação e passa a pacífica quando a violência
cessa.

A doutrina considera violenta a posse que foi obtida através de pressão espcial e, por isso,
entende que a posse de quem furta uma coisa não é violenta, contrariamente ao que normalmente

sucede no roubo. Mas já se tem considerado violenta quando se corta a eletricidade e se fecham os
portões ou se colocam pilares de madeira unidos por cadeado, impedindo a passagem de carro.

A distinção da posse em pacífica e violenta é muito importante: esta não pode ser registada e não
conduz à usucapião (ver art. 1297º CC)

III – POSSE PÚBLICA E POSSE OCULTA

A posse pública é a que se exerce de modo a ser conhecida pelos interessados (art. 1262º CC). A
contrario sensu considera-se oculta a posse que estes não podem conhecer.
Na base desta distinção reconhece-se um critério objetivo: é pública a posse de cujo ecercício se
teria apercebido uma pessoa de diligência normal, colocada na situação do titular do direito. Por isso,

não basta, para que a posse seja oculta, a simples intenção ou propósito de oocultar, é necessário
que os atos possessórios sejam praticados em termos que possibilitem o seu conhecimento pelos

interessados.
Como na posse de boa fé e má fé, também a posse pode passar de pública a oculta ou

inversamente.

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Também esta distinção interessa para efeitos do art. 1297º CC. Se foi constituída ocultamente,
os prazos para a usucapião só começam a contar-se desde que a posse se torne pública. Assim, um

indivíduo que furtou um objeto e o guardou por vinte anos não o adquire por usucapião. E o registo
da posse só pode ser feito fazendo-se a prova da sua publicidade.

IV – POSSE DE BOA FÉ E POSSE DE MÁ FÉ

Outra distinção que se faz é entre a posse de boa fé e a posse de má fé. A noção de posse de
boa fé encontra-se no art. 1260º CC, donde se infere a contrario sensu a noção de posse de má fé.

Esta distinção também importa para efeitos de usucapião, em matéria de prazos (arts. 1295º e 1296º
CC). Além disto, os direitos do possuidor de boa fé, quanto a frutos e benfeitorias, são diversos dos

do possuidor de má fé (art. 1270º, 1271º e 1275º CC).

V – POSSE PRECÁRIA OU DETENÇÃO


Embora o nosso Código não se ocupe desta posse no capítulo referente aos caracteres da

posse, não deixa de lhe dispensar particular atenção quando, embora sem a definir, considera que,
são detentores ou possuidores precários:

a) os que exercem o poder de facto sem intenção de agir como beneficiários do direito;
b) os que simplesmente se aproveitam da tolerância do titular do direito;

c) os representantes ou mandatários do possuidor e, de um modo geral, todos os que


possuem em nome de outrem.

A posição do possuidor precário ou detentor corresponde à situação de quem, tendo o

corpus da posse, não exerce o poder de facto com o animus de exercer o direito real que lhe
corresponde.

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VI – OUTRAS CLASSIFICAÇÕES
A doutrina ainda avança outras classificações:

1. Posse causal: o possuidor é simultaneamente titular do direito real a cujo exercício a posse
corresponde. Não se trata, então de uma posse autónoma, mas sim de um reflexo de um direito real.

É certo que, sendo a propriedade difícil de provar, frequentemente o proprietário-possuidor invoca a


posse e não o seu direito de proprirdade. Simplesmente, nesta hipótese a posse desmembra-se

deste direito real, surgindo como posse formal ou autêntica.

2. Posse formal: é a posse autêntica, autónoma, ou seja, aquela em que o possuidor não tem,

ou não invoca, a qualidade de titular de um direito real a que corresponda. É protegida pelo direito
como um bem no presente e um bem para o futuro.

3. Posse efetiva: é a posse que implica um controlo material sobre a coisa. A lei refere-a, por

vezes, ao falar de posse atual (art. 1278º/3 CC).

4. Posse não efetiva: é a posse que se conserva por via puramente jurídica, sem controlo

corpóreo. É exemplo a posse do esbulhado durante o ano subsequente ao esbulho (art. 1283º CC).
Há quem lhe chame posse ficta.

5. Posse imediata: é aquela que se exerce imediatamente, sem mediador.

6. Posse mediata: é aquela que se exerce através de outrem (comodatário, locatário,


depositário).

6. AQUISIÇÃO DA POSSE

A aquisição da posse pode ser originária ou derivada.


A aquisição originária decorre duma relação de facto entre o adquirente-possuidor e a coisa,
sem a intervenção do antigo possuidor, não estando a posse dependente nem quanto à existência

nem à extensão da posse anterior. É um poder ex novo.


Por outro lado, a aquisição derivada caracteriza-se pela transferência da posse do anterior para

o novo possuidor. Exige um negócio jurídico e depende da existência dos elementos material
(corpus) e intencional (animus). Porém, como a posse se adquire agora com o consentimento do

possuidor anterior, o ato material que integra o corpus não tem de revestir necessariamente a

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mesma intensidade exigida na aquisição originária: basta uma entrega simbólica da coisa e, em

alguns casos, admite-se a transferência solo consensu.


Têm capacidade para adquirir a posse “todos os que têm uso da razão” e mesmo os que não o

tenham “relativamente às coisas suscetíveis de ocupação” (art. 1266º CC). Há autores, que,
defendendo a orientação subjetivista do código, consideram que a exigência do uso da razão

“resulta do facto de o animus possidendi ser um elemento essencial da posse”, pois “o animus só
pode existir em quem tenha uma vontade e só tem vontade juridicamente relevante quem tiver o

uso da razão”. Só não é exigido em relação às coisas suscetíveis de ocupação pois estamos perante
res nullius, não havendo interesse de terceiro que importe proteger.

6.1. AQUISIÇÃO ORIGINÁRIA

6.1.1. PRÁTICA REITERADA


O Código refere a aquisição originária da posse através duma prática reiterada, com publicidade,

dos atos materiais correspondentes ao exercício do direito.


a) Prática reiterada: não basta a prática de um único ato, embora os atos possam ser diferentes.

No entanto, é possível que um só ato baste para evidenciar a posse;


b) Publicidade: os atos materiais devem ser suscetíveis de conhecimento pelos interessados; por

isso, não merecem proteção os atos possessórios clandestinos.


c) Atos materiais: só têm interesse os atos que incidem direta e materialmente sobre a coisa, ou

seja, atos que traduzam o corpus;


d) Correspondência com o exercício de direito: No entanto, adverte-se que a qualificação do

direito correspondente à posse nem sempre se faz com facilidade, porque há muitos atos
materiais que se integram no exercício de direitos reais diferentes. Por isso, é necessário

recorrer ao título (se houver) ou ao animus possidendi.

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6.1.2. INVERSÃO DO TÍTULO


O Código refere que a inversão do título “pode dar-se por oposição do detentor do direito contra

aquele em cujo nome possuía ” ou “por ato de terceiro capaz de transferir a posse” (art. 1265.º).
Trata-se, portanto, de conversão duma situação de posse precária numa verdadeira posse, de forma

que aquilo que se detinha a título de animus detinendi passa a deter-se a título de animus
possidendi.

Para ORLANDO DE CARVALHO: “a inversão do título da posse é uma inversão do animus: o


animus não relevante transforma-se em animus relevante”

A inversão do título pode ocorrer por dois meios:


1. OPOSIÇÃO DO DETENTOR CONTRA AQUELE EM NOME DE QUEM POSSUÍA: o caso mais

corrente é o de o arrendatário que, em certo momento, se recusa a pagar a renda, afirmando


que o prédio lhe pertence. Exige-se que a intenção do detentor de atuar como titular do

direito seja comunicada (por via judicial ou extrajudicial) à pessoa em nome de quem possuía;
e, ainda, que esta oposição não seja repelida;

2. POR ATO DE TERCEIRO CAPAZ DE TRANSFERIR A POSSE: sucede, v.g., se o arrendatário


comprar o prédio a um terceiro. A compra e venda inverte o título precário de arrendatário,

sendo igualmente necessário que este passe a comportar-se como possuidor,

6.2 AQUISIÇÃO DERIVADA


6.2.1. TRADIÇÃO MATERIAL E TRADIÇÃO SIMBÓLICA

O nosso Código refere a tradição material ou simbólica, efetuada pelo antigo possuidor. Na
tradição material, “há uma atividade exterior que se traduz nos atos de entregar e receber; na

tradição simbólica, tudo se passe a nível da comunicação humana, sem direta interferência no
controlo material da coisa”.

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De acordo com a tradição romana, a tradição simbólica pode ocorrer por:

1. Traditio longa manu: a coisa não é materialmente entregue, mas é posta à disposição do
adquirente através da sua indicação à distância;

2. Traditio brevi manu: realiza a conversão da detenção em posse por acordo entre o detentor
e o possuidor. Por exemplo, quando o quando o proprietário-possuidor vende a coisa
depositada ao depositário ou o prédio arrendado ao arrendatário. Esta traditio tem a

vantagem de não ser necessário que o detentor entregue a coisa ao possuidor para que este
lha volte a entregar em seguida;

3. Traditio ficta: consiste na entrega de um símbolo ou realização de um ato que simboliza a


coisa cuja posse se transfere. Por exemplo, quando se entregam as chaves de um armazém,

que funciona como traditio das coisas aí depositadas.

6.2.2. CONSTITUTO POSSESSÓRIO

O constituto possessório é uma forma de aquisição da posse solo consensu, ou seja, sem

necessidade de ato (material ou simbólico) de entrega da coisa. Como se tem observado, a posse é

atribuída sem a detenção.

O Código Civil considera duas espécies:

a) O titular do direito real e possuidor transmite o seu direito a outrem e reserva, para si, a

detenção (art. 1264º/1 CC): a causa possessionis do alienante torna-se causa detentionis;
b) O possuidor transfere o seu direito a outra pessoa, mantendo-se o seu detentor: o

proprietário-possuidor vende a coisa depositada e pretende-se que o depósito continue; ou


um prédio arrendado é vendido, mantendo-se o arrendamento.

6.2.3. SUCESSÃO MORTIS CAUSA


Por morte do possuidor, a posse continua nos seus sucessores desde o momento da morte,

independentemente da apreensão material da coisa (art. 1255º CC). Considera-se que a lei ficciona
não só o corpus, mas também o animus, havendo uma sucessão na posse sem interrupção. Isto

implica que a posse continua nos herdeiros, o sucessor não precisa de praticar qualquer ato material
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de apreensão ou utilização da coisa, podendo até ignorar que a posse existe, a posse continua com

os seus caracteres (boa ou má fé, titulada ou não, pacífica ou violenta) e a continuação da posse não
é prejudicada pelo facto de o sucessor não ter tido a posse da coisa durante o período entre a

abertura da sucessão e a aceitação da herança.


Será que o legatário sucede na posse? Apoiados na letra da lei, PIRES DE LIMA e ANTUNES

VARELA, consideram que não há nenhuma limitação a fazer no domínio da sucessão mortis causa e
que a posse continua sempre no chamado à sucessão dos bens, seja herdeiro ou legatário. Mas há

quem entenda (MENEZES CORDEIRO) que o legatário, ao contrário do herdeiro, pode aceitar ou
recusar a posse que lhe for legada, e que ao aceitar, mudam-se os seus caracteres. Por isto, defende

que não se poderá falar em sucessão na posse por parte do legatário e enquanto a coisa lhe não for
entregue, não existe posse.

ACESSÃO

A acessão da posse é a faculdade de, para efeitos designadamente de usucapião, o possuidor


juntar à sua posse do seu antecessor. Porém, se a posse deste for de natureza diferente da posse do

sucessor, a acessão só ocorrerá dentro dos limites daquela que tiver menor âmbito, por isso, o
possuidor na qualidade de usufrutuário pode sumar à sua posse a anterior do proprietário, e,

tratando-se de posses de boa fé e de má fé, a posse considerada deve ser a de má fé, por ter menor
âmbito.

Há, no entanto, uma divergência doutrinal: será necessário que haja um verdadeiro ato
translativo da posse, formalmente válido? A resposta afirmativa foi dada por MANUEL RODRIGUES e

é seguida por PIRES LIMA e ANTUNES VARELA.


Segundo MANUEL RODRIGUES, cuja opinião influenciou a nossa jurisprudência mesmo na

vigência do atual Código Civil, a junção ou acessão de posses está sujeita a certas regras: é
facultativa; as duas posses devem ser contínuas e homogénenas e deve haver um vínculo jurídico

enre o novo e o antigo possuidor, vínculo este que pode revestir várias modalidades: pode ser um
negócio jurídico (venda, troca, dação em pagamento), mas pode ser expropriação, uma execução,

etc. E sustenta que este vínculo deve ser válido.

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Esta doutrina foi acolhida por PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA que, depois de referirem
a natureza facultativa, a continuidade e a homogeneidade, consideram também que é necessário

que “haja uma relação jurídica entre os dois possuidores” que deve ser “formalmente válida”.

7. EFEITOS DA POSSE: EFEITO PROBATÓRIO, REGIMES DA PERDA OU DETERIORAÇÃO DA


COISA, DOS FRUTOS, DOS ENCARGOS E DAS BENFEITORIAS. A USUCAPIÃO.

A posse confere ao seu titular uma série de efeitos favoráveis. Quais as razões que explicam
certos efeitos favoráveis? Porque é que a situação de facto, ou seja, a prática reiterada de atos

materiais exercida sobre uma coisa com o “animus” de se exercer um direito, é protegida pela lei?
As razões desta solução legal são três:

1. As vantagens desta tutela possessória aproveitam sobretudo aos titulares autênticos dos
direitos reais, visto que, estatisticamente quem possui são normalmente os titulares de direitos

definitivos sobre as coisas possuídas – as situações em que á um desfasamento entre a posse e a


propriedade são minoritárias.

2. Esta solução – a de conferir logo certos efeitos favoráveis à posse – é preferível a cairmos na
desordem e na auto-tutela de direitos, dado que se não houvesse certa proteção possessória judicial,

o indivíduo cuja posse fosse ameaçada, recorreria à auto-defesa;


3. Há também um interesse geral em que se estabilizem certas situações correspondentes à

posse, em que, concretizando, quem esteja, durante muito tempo, a comportar-se em relação à coisa
como titular de um direito sobre ela, se torne titular desse direito sobre a coisa; no fundo isto é uma

justificação que logo nos faz pensar na usucapião, que é – ela também – um dos efeitos da posse.

Vejamos, então, agora quais são os efeitos da posse:

I - EFEITO PROBATÓRIO
Em primeiro lugar, o efeito probatório da posse, presente no art. 1268º CC, estatui que a posse

confere a presunção da titularidade do direito. Ou seja, presume-se que quem está na posse de uma
coisa, é titular do direito correspondente aos atos que se praticam sobre ela. Esta presunção foi uma

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opção do legislador e revela grande valor prático. De facto, pode ser difícil ou impossível provar

diretamente por uma cadeia ininterrupta de transmissões a titularidade do direito (prova diabólica).
Esta presunção significa, portanto, que numa ação de reivindicação, quem tem o ónus da

prova será o reivindicante e não o possuidor.

Figurando um exemplo: se A está na posse de um bem e B vem a juízo requerer que lhe

seja entregue esse bem, porque é seu proprietário, A, pelo facto de estar na posse, não tem o

encargo de provar que está legitimamente na posse, ou seja, que é o proprietário. Alega,
porventura “sou proprietário”, mas não tem de o provar, uma vez que beneficia dos critérios de

repartição do ónus da prova, que vai caber à outra parte.

Assim, pode ser atribuída a propriedade ao possuidor não porque se provou que ele é
realmente proprietário, mas porque o reivindicante não conseguiu provar que o possuidor o não era.

Em situação de dúvida, favorece-se o possuidor.

II – DIREITOS DO POSSUIDOR EM RELAÇÃO AOS FRUTOS


Em relação aos frutos da coisa possuída, os efeitos são diferentes consoante a posse seja de

boa ou de má fé. Se não fossem reconhecidos direitos aos frutos, o possuidor poderia perder o seu
interesse, com grave dano para a economia e comércio jurídico. Importa, no entanto, distinguir:

 Se o possuidor estiver de boa fé, pertencem-lhe os frutos naturais colhidos até ao dia em
que a boa fé cessar, ou seja, em que souber que está a lesar, com a sua posse, o direito de outrem.

Pertencem-lhe também os frutos civis correspondentes ao mesmo período (art. 1270º/1 CC). É uma
solução que a doutrina justifica: “Agindo o possuidor de boa fé na convicção de que é titular de um

direito sobre a coisa, não seria justo que a lei o obrigasse a restituir os frutos percebidos (ou o seu
valor), pois contava com eles e ordenou nessa base a sua vida” (PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA).

Se a boa fé cessar quando os frutos ainda se encontram pendentes, estes pertencem ao titular do
direito sobre a coisa frutífera, embora seja obrigado a indemnizar o possuidor das despesas de

cultura não superiores ao valor dos frutos que vieram a ser colhidos (art. 1270º/2 CC).

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FDUC – DIREITO DAS COISAS 2017/2018

Se os frutos tiverem sido alienados pelo possuidor, antes da colheita e ainda em boa fé, essa
alienação subsiste, mas o produto da colheita pertence ao titular do direito, deduzindo-se a

indemnização das despesas ao possuidor (art. 1270º/3 CC).


No caso de colheita prematura de frutos, o possuidor de boa fé deve restituí-los, se ainda os não

consumiu, tendo ainda assim direito à indemnização referida acima (arts. 214º e 215º CC).

 Já se o possuidor estiver de má fé, deve restituir os frutos que a coisa produziu até ao termo
da posse e responde pelo valor dos frutos que um proprietário diligente poderia ter obtido (art.

1271º CC). Esse proprietário diligente é colocado nas circunstâncias em que o possuidor atuou. Deve
ser ressarcido das despesas de cultura não superiores ao valor dos frutos, caso contrário estaríamos

perante um caso de enriquecimento sem causa do proprietário, pois ele teria que fazer essas
mesmas despesas se estivesse na posse da coisa.

III - PERDA OU DETERIORAÇÃO DA COISA

O possuidor de boa fé é responsável por perda ou deterioração da coisa se tiver precedido


com culpa (art. 1269º CC). A contrario sensu, o possuidor de má fé responde mesmo que tenha

atuado sem culpa. Mas esta solução deve ser afastada se provar que a perda ou deterioração se
teriam igualmente verificado se a coisa se encontrasse em poder do titular do direito (ORLANDO DE

CARVALHO). A posse de má fé é um ato ilícito que constitui em mora o possuidor quanto à


obrigação de restituir a coisa ao seu titular (art. 805º/2/b) CC), pelo que se aplica aqui a doutrina

aplicada ao devedor em mora (art. 807º/2 CC).


Cabe ao possuidor fazer esta prova.

IV- ENCARGOS

Os encargos com a coisa objeto de posse são pagos pelo titular do direito e pelo possuidor,
na medida dos seus direitos sobre os frutos no período a que esses encargos respeitam (art. 1272º

CC).

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Trata-se de despesas feitas não para evitar a perda, destruição ou deterioração da coisa

(benfeitorias necessárias), mas dos encargos normais que correspondem ou estão adstritos à sua
fruição.

V- BENFEITORIAS

No ajuste de contas final em que o possuidor é obrigado a ceder perante o titular do direito,

ou voluntariamente ou porque foi intentada com êxito uma ação de reivindicação, põe-se o
problema de saber se deve ser indemnizado ou se poderá levantar as benfeitorias feitas na coisa

possuída.

Porém, porque as benfeitorias podem ser diferentes, importa distinguir as que são necessárias, úteis
e voluptuárias:

1. Benfeitorias necessárias: o possuidor de boa ou má fé tem direito a ser indemnizado (art.


1273º/1 CC). Tem-se em vista evitar o enriquecimento em causa do titular do direito real sobre a

coisa benfeitorizada porque eram despesas que o titular teria de fazer, por serem indispensáveis à
subsistência da coisa.

2. Benfeitorias úteis: o possuidor de boa ou má fé pode levantá-las, se o puder fazer sem


detrimento da coisa (art. 1273.º/1); de contrário, o benfeitorizante terá direito a ser indemnizado

segundo as regras do enriquecimento sem causa (art. 1273.º/2). Ao possuidor pertence o ónus de
provar que o levantamento dessas benfeitorias causa esse detrimento. Entretanto, o possuidor de

boa fé goza do direito de retenção (arts. 754.º e 756.º, als. a) e b)). O crédito resultante dessas
despesas pode ser compensado com a responsabilidade do possuidor por deteriorações (art. 1274.º)

3. Benfeitorias voluptuárias: o possuidor de boa fé pode levantá-las se não causar detrimento

da coisa; de contrário, nem as poderá levantar nem terá direito a qualquer indemnização (art.
1275.º/1). Por sua vez, o possuidor de má fé nem as pode levantar (mesmo sem causa detrimento)

nem tem direito a indemnização (art. 1275º/2).

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FDUC – DIREITO DAS COISAS 2017/2018

VI - USUCAPIÃO
A usucapião permite que, verificados determinados requisitos, o possuidor adquira a

titularidade de certos direitos reais de gozo (art. 1287º CC).


O nosso CC exige dois elementos: a posse e o tempo. A posse deve ser pública e pacífica

(arts. 1293º/a); 1297º; 1300º/1 CC). O tempo depende do caráter móvel ou imóvel da coisa possuída
e de outras características da posse, tais como ser de boa ou má fé, titulada ou não e estar ou não

registada.
Podem ser adquiridos por usucapião os direitos reais de gozo, excetuando as servidões não

aparentes e o direito de uso e habitação (art. 1293º CC).


À usucapião são aplicáveis as regras relativas à prescrição (art. 1292º CC) e os seus efeitos

retrotraem-se à data de início da posse (art. 1288º CC).


Observando mais de perto o regime jurídico, regista-se o afastamento da expressão prescrição

positiva ou aquisitiva, substituída por usucapião (art. 1287.º). E assinala-se a restrição a direitos reais
de gozo, com as exceções já referidas: as servidões prediais não aparentes e o direito de uso e

habitação (1293.º).
Incluem-se, nos direitos reais de gozo a nua propriedade (201.º) porque o seu titular, além de

poder praticar diretamente sobre a coisa determinados atos materiais (arts. 1471.º e 1473.º), exerce a
sua posse por intermádio do usufrutuário – o usufrutuário é possuidor em nome próprio quanto ao

direito de usufruto; e detentor ou possuidor em nome alheio quanto à propriedade de raiz. E, se a


coisa for possuída livre de quaisquer direitos ou encargos que sobre ela incidem, adquirir-se-á

exatamente como é possuída: é a denominada usucapio libertatis.


Quanto à capacidade, a usucapião aproveita a todos os que podem adquirir (art. 1289º/1 CC).
Os incapazes podem adquirir por usucapião, por si ou por intermédio de quem os represente (art.

1289º/2 CC). Devem ter o uso da razão, isto é, a consciência de que estão a praticar atos materiais de
posse (art. 1266º CC). Dispensa-se o uso da razão nas coisas suscetíveis de ocupação pois, tratando-

se de res nullius, a usucapião não suscita problemas em relação a terceiros.


Os detentores ou possuidores precários não podem adquirir para si, salvo se o título se achar

invertido e o prazo começa a contar dessa inversão (art. 1290º CC). Mas poderão adquirir para a
pessoa que representam (art. 1252º/1 CC).

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FDUC – DIREITO DAS COISAS 2017/2018

Em relação aos prazos, distinguem-se a posse de coisas imóveis e de coisas móveis. Quanto às
primeiras surge considerar ainda:

I – Existência de título de aquisição e registo: a posse deve durar dez e quinze anos
contados da data de registo, respetivamente se o possuidor estiver de boa ou de má fé (art. 1294º

CC);
II – Inexistência do título de aquisição, mas registo da mera posse: os prazos são de cinco

e dez anos contados da mesma data, respetivamente no caso de boa e de má fé (art. 1295º CC);
III – Inexistência de registo: quando não exista registo do título (ou quando este falte, com

PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA), os prazos são de quinze e vinte anos, contados desde o início
da posse, respetivamente em caso de boa ou de má fé (art. 1296º CC).

Quanto aos bens de domínio privado do Estado, a usucapião só se cumpre quando tiver

decorrido o prazo fixado na lei civil acrescido de metade.


Na posse obtida por violência ou ocultamente, os prazos só começam a contar quando a

violência cessa ou a posse se torna pública (art. 1297º CC): consagra-se o princípio de que a violência
ou a posse tomada ocultamente impede a usucapião.

Em relação à usucapião de coisas móveis, importa distinguir:

I – MÓVEIS REGISTÁVEIS - art. 1298º CC:

a) Há título de aquisição e registo: os prazos são de dois anos e quatro anos, contados
desde o início da posse, respetivamente se o possuidor estiver de boa ou de má fé;

b) Não há registo: o prazo é de dez anos, independentemente da boa ou má do possuidor e


da existência de título.

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II –MOVÉIS NÃO REGISTÁVEIS – art. 1299.º CC:


a) Há título de aquisição: o prazo é de três anos desde o início da posse, se o possuidor estiver

de boa fé;
b) Independentemente da existência de título de aquisição e da boa fé do possuidor: o

prazo é de 6 anos, contados desde o início da posse.

Mantém-se, nas coisas móveis, a proibição da usucapião na posse violenta ou oculta (art.
1300º/1 CC). Porém, admite-se a possibilidade de, antes da cessação da violência ou da ocultação, a

coisa possuída passar a terceiro de boa fé: neste caso, o interessado pode adquirir direitos sobre ela,
decorridos quatro ou sete anos a partir da constituição da posse, consoante seja titulada ou não

titulada (art. 1300º/2 CC). É um caso especial que necessitou de uma solução baseada na equidade.

8. CONSERVAÇÃO E DEFESA DA POSSE


A posse mantém-se enquanto durar a atuação correspondente ao exercício do direito ou a

possibilidade de a continuar (art. 1257º/1 CC). Além disso, presume-se que a posse continua em
nome de quem a começou (art. 1257º/2 CC).

Mas será que a posse se mantém se o direito real a que correspondem se extinguir por não
uso? A solução prende-se com a conceção de posse adotada: Segundo SAVIGNY, o possuidor

conserva a posse; para IHERING, a posse desaparece logo que o direito a que corresponde deixar de
existir. MANUEL RODRIGUES E MENEZES CORDEIRO consideram que a posse não pode subsistir

nesses casos, tal como ORLANDO DE CARVALHO. PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA defendem
que enquanto não for declarada a extinção do direito real, o possuidor pode defender a sua posse.

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FDUC – DIREITO DAS COISAS 2017/2018

AS AÇÕES POSSESSÓRIAS
A posse constitui um bem no presente e um bem para o futuro, satisfazendo dois interesses

fundamentais: um, de organização (ligado à continuidade da coisa possuída na esfera do domínio


em que se encontra); o outro, de conhecimento (ligado à presunção de dominalidade que se prende

ao facto da posse). Portanto, deve ser protegida para cumprir a sua função. É uma tutela rápida e
provisória, não tendo o possuidor de fazer prova do direito sobre a coisa possuída de que se afirma

titular: basta-lhe provar que possui (art. 1252º/2 CC).

1) AÇÃO DE PREVENÇÃO
O possuidor, que tiver justo receio de ser perturbado ou esbulhado por outrem, pode requerer

que este seja intimado para se abster de lhe fazer agravo, sob pena de multa e responsabilidade pelo
prejuízo que causar (art. 1276º CC). Este receio deve ser sério, apoiando-se em razões objetivas e os

atos devem ser materiais.

Exemplo: Fazem-se obras no terreno vizinho e delas advém o grave receio de vir a ser

perturbada a posse sobre o terreno contíguo. Pois bem, num hipótese deste tipo, o ameaçado
pode requerer que o autor da ameaça seja intimado para se abster de lhe fazer agravo, sob pena

de multa e responsabilidade pelo prejuízo causado.

2) AÇÃO DE MANUTENÇÃO

Esta ação permite que o possuidor perturbado seja mantido na posse enquanto não for resolvida
a questão da titularidade do direito (art. 1278º/1 CC). Se a posse não tiver mais de um ano, só pode

ser mantida contra quem não tenha melhor posse, sendo melhor posse a titulada ou, na falta de
título, a mais antiga. Se tiverem antiguidade igual, prefere-se a posse atual.

Estamos perante um ato de simples perturbação: o possuidor não chega a ser esbulhado. O ato
de turbação pode caracterizar-se por três elementos: (1) ato material (não jurídico); (2) pretensão

contrária à posse; (3) conservação da posse.


Tem legitimidade para instaurar a ação de manutenção da posse o perturbado ou seus herdeiros,

mas apenas contra o perturbador. Daqui resulta que nenhum terceiro, embora prejudicado pela

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FDUC – DIREITO DAS COISAS 2017/2018
turbação, pode defender a posse de outrem. E quando a lei faculta o exercício das ações

possessórias a meros detentores, estes defendem a sua posse precária. Em relação à legitimidade
passiva, só o perturbador deve ser demandado, mas deve considerar-se que perturba não só quem

executa materialmente o ato (autor material), mas também quem o ordena (autor moral).
A ação de manutenção caduca se não for intentada dentro do ano subsequente ao facto da

turbação (art. 1282.º). Este prazo relativamente curto justifica-se não só pela necessidade de se
esclarecer rapidamente uma situação duvidosa cuja prova o decurso do tempo pode tornar mais

difícil, mas também pela presunção de que desiste da sua pretensão o possuidor que não reage
prontamente contra o perturbador.

A partir de que momento deve contar-se esse prazo? Trata-se duma questão que pode
suscitar dificuldades quando estejamos perante uma série de atos perturbadores da posse. Entende-

se que se estes atos são isolados, desconexos, cada um deles constitui um facto novo e, portanto, o
prazo de proposição da ação corre autonomamente em relação a cada um deles; se, pelo contrário,

os atos de turbação são complementares uns dos outros, por se dirigirem ao mesmo fim, e se deles
resultar a constituição de uma posse contrária, o prazo deverá contar-se a partir do primeiro ato.

Importa referir, finalmente, a possibilidade de o possuidor perturbado recorrer ao procedimento


cautelar comum.

3) AÇÃO DE RESTITUIÇÃO DA POSSE

Está prevista igualmente no art. 1278º CC. O possuidor esbulhado será restituído enquanto
não for resolvida a questão da titularidade do direito. Se a posse não tiver mais de um ano, o

possuidor só pode ser restituído contra quem não tiver melhor posse. E considera-se melhor posse a
que for titulada; na falta de título, a mais antiga; e, se tiverem igual antiguidade, a posse atual.

Estamos agora estamos perante uma situação de esbulho que supõe a privação total ou
parcial da posse, embora não seja essencial que o esbulhador tenha o animus spoliandi. Todavia, a

distinção entre a perturbação e o esbulho nem sempre é fácil na prática e “isso explica o desvio de
certas regras processuais que presidem ao pedido e se projetam nos limites da sentença”: se o

possuidor tiver recorrido à ação de manutenção em vez de ação de restituição e vice-versa, o juiz
não deixará de condenar “no que ao caso convier de acordo com a situação verificada”.

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FDUC – DIREITO DAS COISAS 2017/2018
Quanto à legitimidade ativa, a ação de restituição de posse pode ser intentada pelo esbulhado

ou seus herdeiros não só contra o esbulhador e seus herdeiros, mas ainda contra quem esteja na
posse da coisa e tenha conhecimento do esbulho (art. 1281.º/2). A legitimidade passiva do terceiro

de má fé justifica-se por ser impossível, em muitos casos, reaver a coisa das mãos do esbulhador.
Uma última observação: falando a lei em terceiro que “esteja na posse da coisa e tenha

conhecimenro do esbulho”, a ação de restituição não pode ser intentada contra o mero detentor que
possua em nome do esbulhador.

A ação de restituição da posse caduca se não for intentada dentro do ano subsequente ao
esbulho ou ao conhecimento dele quanto praticado a ocultas (art. 1282.º). À justificação dada na

ação de manutenção, junta-se outra: se o esbulhado não reage prontamente contra o autor do
esbulho é porque reconhece a posse de outrem.

Tratando-se de esbulhos sucessivos, o prazo deve contar-se a partir do último: há um novo


facto, com o seu prazo próprio.

O possuidor esbulhado pode também recorrer ao procedimento cautelar comum.

4) AÇÃO DE RESTITUIÇÃO NO CASO DE ESBULHO VIOLENTO


Se o esbulho for violento, o possuidor é restituído provisoriamente à sua posse, sem audiência

do esbulhador. Estamos perante um procedimento cautelar que difere a audiência do esbulhador. O


Código de Processo Civil exige apenas que o possuidor esbulhado violentamente “alegue os factos

que constituem a posse, o esbulho e a violência” e determina que “o juiz ordenará a restituição, sem
citação nem audiência do esbulhador” (art. 383.º CPCivil). Há, portanto, três requisitos desta

providência cautelar: a posse, o esbulho e a violência.


A violência pode ser exercida sobre pessoas e coisas. O ónus da prova compete ao requerente

do procedimento em termis gerais, ainda que seja simplesmente sumária: para que a providência
seja decretada basta que a existência do direito seja uma probabilidade séria.

Quanto à caducidade deste expediente, a lei não a refere expressamente, mas parece razoável
que se aplique o prazo previsto na ação de restituição da posse: um ano, a contar da cessação da

violência, porque, enquanto existir, a violência pode impedir também o exercício da ação, por isso,
deve esperar-se que o esbulhado esteja em condições normais para poder reagir o que

normalmente só acontece quando a violência cessar.

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FDUC – DIREITO DAS COISAS 2017/2018

5) EMBARGOS DE TERCEIRO
O possuidor pode defender a sua posse, quando esta for ofendida por penhora ou diligência

ordenada judicialmente, mediante embargos de terceiro (art. 1285º CC). Nesta linha, o Código de
Processo Civil concede, a quem não for parte da causa, a faculdade de fazer valer o seu direito ou

posse incompatível com um ato judicial de apreensão ou entrega da coisa possuída.


Os embargos “são processados por apenso à causa em que haja sido ordenado o ato ofensivo

do direito do embargante” (art. 353.º/1 CPC) e o terceiro pode embargar no prazo de trinta dias
subsequentes à data da diligência ou do conhecimento da ofensa, mas nunca depois de os bens

terem sido judicialmente vendidos ou adjudicados (art. 353.º/2 CPC).


Uma vez recebidos, os seus efeitos são a suspensão dos termos do processo em que se

inserem e a restituição provisória da posse se o embargante a houver requerido (art. 356.º CPC). E a
sentença de mérito proferida nos embragos constitui, nos termos gerais, caso julgado quanto à

existência e titularidade do direito invocado (art. 358.º).


Podem também ser deduzidos embargos a título prevetivo, antes de realizada, mas depois de

ordenada, a diligência que se pretende embargar (art. 359.º/1). Portanto, os embargos de terceiro
podem cumprir uma função dupla: a restituição, quando o embargante já tenha sido privado da

posse; e prevenção, quando a diligência legal perturbadora esteja em marcha.

NATUREZA JURÍDICA DA POSSE. AS POSIÇÕES DEFENDIDAS NA DOUTRINA, ARGUMENTOS.


A natureza jurídica da posse tem sido discutida desde a Escola dos Comentadores. Estamos

perante um facto ou um direito?


Uma das doutrinas considera que a posse é um facto jurídico relevante, é a opinião mais

vulgar, sustentando-se mesmo que a própria natureza da posse é contrária à ideia do direito, pois
não há direito que não seja justo e a posse é, muitas vezes, resultado do dolo, violência e injustiça.

A outra doutrina considera que a posse é um direito real, um direito subjetivo porque há um
poder, um interesse e uma garantia jurídica.

MOTA PINTO acolhe a última doutrina, defendendo que a posse não é um mero facto porque
o seu regime revela ser um verdadeiro direito real (embora) provisório. É um direito real porque a

posse é uma situação jurídica subjetiva que confere um poder sobre uma coisa em face de todos os

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FDUC – DIREITO DAS COISAS 2017/2018
outros. Mas é um direito real provisório porque a sua proteção só se mantém até à ação de

reivindicação, se não houver usucapião.

CAPÍTULO II- A PROPRIEDADE


SECÇÃO I – A PROPRIEDADE EM GERAL.
1. NOÇÃO

O nosso Código Civil não define a propriedade, visto “toda a definição em direito civil ser
perigosa”, referindo-se apenas ao seu normal conteúdo no art. 1305º CC. Observa-se que o gozo

não é específico da propriedade e que podem existir proprietários sem o uso e a fruição (sucede com
a nua propriedade, em consequência da constituição de um usufruto ou uso e habitação) e também

sem o direito de disposição (propriedade doada com a reserva de o doador dispor, por ato mortis

causa ou inter vivos, da coisa doada – art. 959º CC).


Tudo depende da situação histórica considerada e entende-se que é fundamental a delimitação

negativa do direito de propriedade. Mesmo assim, muitos autores avançam definições de


propriedade. Para OLIVEIRA ASCENSÃO, a propriedade é o direito real que outorga a universalidade

dos poderes que à coisa se podem referir. MENEZES CORDEIRO fala de afetação jurídico-privada de
uma coisa corpórea, em termos plenos e exclusivos, aos fins de pessoas individualmente

consideradas.

2. BREVE REFERÊNCIA HISTÓRICA; EM PARTICULAR, A CONTROVÉRSIA EM TORNO DA


PROPRIEDADE INDIVIDUAL E DA PROPRIEDADE COLETIVA.

A propriedade é o molde jurídico onde se vaza o poder humano do usar, gozar ou dispor dos

bens de forma plena. Constitui o instrumento, por excelência, da realização de poderes sobre os
bens.

Existe grande controvérsia à volta da questão da titularidade da propriedade, se individual ou


coletiva.

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FDUC – DIREITO DAS COISAS 2017/2018

Os defensores da propriedade coletiva foram PLATÃO, ANTERO DE QUENTAL, MARX E ENGELS.


Já ARISTÓTELES, S. TOMÁS DE AQUINO, SAY, STUART MILL foram defensores da propriedade

privada.

Por um lado, como méritos da propriedade individual, argumenta-se com o estímulo económico
por ela representado e o seu valor como garantia de liberdade individual ou familiar. No lado oposto,

liga-se à supressão ou limitação da propriedade uma autêntica liberdade e critica-se a anarquia


económica da propriedade privada que deveria ser planificada, as desigualdades, etc.

Defende-se a tese da anterioridade da propriedade coletiva sobre a propriedade individual.


Segundo estes autores, numa sociedade primitiva, passou-se da comunidade de clã para a

comunidade de aldeia, da comunidade de aldeia para a propriedade familiar e desta para a


individual. Nas sociedades arcaicas, há um menor sentido do “tenho” do que nas sociedades

posteriores e há um âmbito mais amplo de apropriação coletiva dos diversos bens nessas
sociedades.

Na Roma clássica encontramos a propriedade individual como regra, mas também existem

indícios de uma propriedade coletiva e de uma propriedade familiar. A propriedade individual


aparece ligada ao chefe de família na qualidade de paterfamilias, que sobre ela tem um poder

absoluto. Esta propriedade definia-se na qualificação tripartida “ius utendi, ius fruendi, ius abutendi.
As escolas medievais esforçaram-se no sentido de obter uma definição de propriedade,

nomeadamente Glosadores e Comentadores. A enfiteuse foi muito importante nesta época, de


feudalismo, por força da qual a propriedade se desmembrava em domínio direto e domínio útil,
passando a pertencer, respetivamente, ao senhorio e ao enfiteuta.
Com a revolução francesa, houve uma superação da estrutura feudal da propriedade,

superando-se todos os encargos, prestações, privilégios do senhor sobre a terra, emergindo uma
terra livre conferida a um proprietário com plenos e absolutos poderes.

Tudo isto se dirige à implantação de uma propriedade livre e individual, coincidente com a
clássica res in potestas romana. Os países do sistema capitalista têm na sua base a propriedade

privada. Tornam-se necessárias algumas restrições por razões de interesse público ao direito de
propriedade individual.
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FDUC – DIREITO DAS COISAS 2017/2018
Já os sistemas socialistas têm como nota comum a propriedade sobre os bens por parte do

Estado ou das cooperativas, após a nacionalização do solo e dos meios de produção.

3. OBJETO DO DIREITO DE PROPRIEDADE


O Código Civil só regula o direito de propriedade sobre coisas corpóreas, móveis ou imóveis

(art. 1302º CC), determinando que os direitos de autor e a propriedade industrial estão sujeitos a
legislação especial (art. 1303º/1 CC).

A propriedade de imóveis abrange o espaço aéreo correspondente à superfície, bem como o


subsolo, com tudo o que neles se contém e não esteja desintegrado do domínio por lei ou negócio

jurídico (art. 1344º/1 CC). Mas o proprietário não pode proibir os atos de terceiros que, pela altura
ou profundidade a que têm lugar, não haja interesse em impedir (art. 1344º/2 CC).

Estas disposições seguem a doutrina de IHERING de que a propriedade se estende até onde
houver interesse prático, recusando a doutrina clássica segundo a qual a propriedade abrange o solo

em toda a sua profundidade e altura.

4. CARACTERÍSTICAS DO DIREITO DE PROPRIEDADE NO DIREITO PORTUGUÊS.

A doutrina apresenta algumas notas que se inferem do art. 1305º CC, para caracterizar a
propriedade.

Em primeiro lugar, a indeterminação. O proprietário tem poderes indeterminados, sendo a sua


base o “ius utendi, ius fruendi, ius abutendi”. Não se limitam os poderes do proprietário senão

através das concretas restrições impostas pela lei. No direito de propriedade, o proprietário tem, em
princípio, todos os poderes, ao contrário dos direitos reais limitados, cujo conteúdo é preciso,
determinado pela lei ou fixado pelos particulares em casos excecionalmente permitidos.
Como segunda nota, a elasticidade. O direito de propriedade é elástico, é dotado de uma força

expansiva. Extinto um direito real que limite a propriedade da coisa, reconstitui-se a plenitude da
propriedade sobre ela, não ficando vago o somatório dos poderes que se extinguiram. O proprietário

limitado recupera a plenitude do seu direito de propriedade.


Outra nota característica é a exclusividade, isto é, sobre a mesma coisa só pode haver um direito

de propriedade.

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FDUC – DIREITO DAS COISAS 2017/2018

Finalmente a perpetuidade diz-nos que a propriedade não se extingue pelo não uso, pois não
usar a propriedade é ainda uma forma de a usar. O proprietário pode querer estar inativo,

possibilidade que cabe no conteúdo do seu direito. Além disto, esta característica implica também a
não existência de propriedade temporária (art. 1307º/2 CC), apesar de existirem alguns casos

previstos na lei, como na venda com reserva de propriedade.

5. PROTEÇÃO CONSTITUCIONAL DA PROPRIEDADE.


O art. 62º CRP determina que a todos é garantido o direito à propriedade privada e a sua

transmissão, por vida ou por morte. A propriedade aqui referida é um conceito mais amplo daquela
que trata o CC, incluindo também a garantia dos direitos de crédito.

Esta proteção não é absoluta, deixando-se margem de conformação do regime para o legislador
ordinário. A própria CRP admite limitações ao direito de propriedade, p.ex., no que diz respeito a

bens do domínio público.

6. AQUISIÇÃO DO DIREITO DE PROPRIEDADE: AQUISIÇÃO ORIGINÁRIA POR OCUPAÇÃO, POR


ACESSÃO OU POR USUCAPIÃO.

Os modos de aquisição da propriedade estão referidos nos arts. 1316º e ss. CC.

6.1 OCUPAÇÃO
A ocupação é regulada nos arts. 1318º e ss. e consiste na apropriação ou tomada de posse

de uma coisa que não tem ou deixou de ter dono.

O nosso Código Civil dedica-lhe uma secção específica, mas observa-se que “sob uma
aparente uniformidade, trata como ocupação realidades que não podem ser consideradas como tal”.

Começa por determinar as coisas que se podem adquirir por ocupação: os animais e outras coisas
móveis que nunca tiveram dono ou foram abandonadas, perdidas ou escondidas pelos seus

proprietários (art. 1318.º). Foi o principal e mais antigo modo de aquisição da propriedade.

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FDUC – DIREITO DAS COISAS 2017/2018

A doutrina exige alguns requisitos ou elementos:


1) Pessoal: o ocupante deve ser uma pessoa com capacidade de gozo, embora não se exija a

capacidade de exercício;
2) Real: a coisa ocupável deve ser res nullius que, em sentido amplo, compreende as coisas que

nunca tiveram dono ou, porque abandonadas, deixaram de o ter. Só se considera abandonada a
coisa de que o proprietário se afastou (ato material) com intenção. Por isso, não se considera

abandonada uma coisa perdida, escondida ou que fuja ao dono.

Deve ser móvel, visto que os imóveis sem dono pertencem ao Estado (art. 1345º CC);

deve ser suscetível de apropriação privada, ou seja, estar no comércio (art. 202º/2 CC);

3) Formal: é a tomada de posse da coisa. A doutrina diverge sobre a exigência do animus


occupandi. Há quem o não exija porque “iria frontalmente contra a lei portuguesa que permite a
ocupação por parte de pessoas que não tenham discernimento”; e quem o dispense e, por isso,

recuse a possibilidade de aquisição por ocupação a quem não tem o uso da razão, “visto faltar-lhe
uma vontade juridicamente relevante”.

6.2 ACESSÃO

A acessão é regulada nos arts. 1325º e ss., e acontece quando se une ou incorpora outra
coisa que não lhe pertence na coisa de que se é proprietário. Pode ser uma acessão natural, como

um aluvião; ou industrial, mobiliária ou imobiliária, quando se dá por ato do homem.


Trata-se de um efeito do princípio de que o direito de propriedade tem, em si, a virtualidade

de absorver tudo o que, por força da natureza ou por ação do homem, se incorporar na coisa que
constitui o seu objeto. O legislador decidiu não destruir coisas com a sua separação, atribuindo a

uma só pessoa a propriedade do todo constituído pelas coisas unidas.


A doutrina observa que a coisa que se une e incorpora pode ser uma res nullius ou pertencer

a outrem e não se exige a intenção de adquirir (animus adquirendi), pois a aquisição por acessão
resulta da lei.

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FDUC – DIREITO DAS COISAS 2017/2018

6.3. USUCAPIÃO
A usucapião pode considerar-se também um modo de aquisição originária da propriedade,

porque o usucapiente adquire o seu direito não por causa do direito do proprietário anterior, mas
apesar dele. (O regime está no ponto da posse).

7. AQUISIÇÃO DO DIREITO DE PROPRIEDADE: AQUISIÇÃO DERIVADA

7.1. CONTRATO
O direito de propriedade adquire-se por contrato (art. 1316º CC) e a constituição ou transferência

do mesmo direito dá-se por mero efeito do contrato (art. 408º/1 CC).

7.2. SUCESSÃO POR MORTE


A sucessão mortis causa é também um modo de adquirir a propriedade. O Código refere-o

expressamente no art. 1316º CC, mas isso já resulta da definição de sucessão do art. 2024º CC.

7.3. OUTROS MODOS DE AQUISIÇÃO


O Código determina que a propriedade se adquire através dos demais modos previstos na lei.

São exemplos a aquisição de frutos naturais pelo possuidor de boa fé (art. 213º CC); a expropriação
por utilidade particular; os arts. 1551º/1, 1560º/4 e 1567º/4; todos os casos em que é facultado o

direito de preferência na alienação de bens.


Além disto, será modo de aquisição a renúncia do comproprietário ao seu direito para se eximir

ao encargo de contribuir, renúncia que aproveita a todos os consortes (art. 1411º/3 CC); renúncia do
usufrutuário ao seu usufruto, que restabelece a plenitude da propriedade por efeito do princípio da

elasticidade; etc.

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FDUC – DIREITO DAS COISAS 2017/2018

8. DEFESA DO DIREITO DE PROPRIEDADE: MEIOS EXTRAJUDICIAIS E MEIOS JUDICIAIS


Constituindo o direito de propriedade um direito subjetivo que se traduz na faculdade de o

proprietário usar, fruir e dispor da coisa que lhe pertence dentro dos limites da lei (art. 1305.º), o
ordenamento jurídico não podia deixar de o defender, concedendo ao proprietário os meios

adequados para agir quer extrajudicial, por ação direta e legítima defesa, quer judicialmente, através
da ação de reivindicação, da ação confessória, da ação negatória e da ação de prevenção contra

danos.

MEIOS EXTRAJUDICIAIS

1. AÇÃO DIRETA
A ação direta encontra-se no art. 336º CC e pode revestir qualquer das formas do nº2,

incluindo a inutilização ou deterioração de coisa alheia, se for necessária e adequada para evitar a
perda da coisa que o proprietário pretende salvar.

2. LEGÍTIMA DEFESA

Contrariamente à ação direta, o Código não refere expressamente a legítima defesa, mas o
proprietário pode utilizá-la quer para defender coisa própria como coisa alheia.

MEIOS JUDICIAIS

1. AÇÃO DE REIVINDICAÇÃO

Quanto aos meios judiciais, a ação de reivindicação é uma ação declarativa condenatória que o
proprietário pode instaurar contra quem tenha a posse ou detenção da coisa que lhe pertence, para

pedir o reconhecimento do seu direito de propriedade e a restituição da coisa reivindicada (art.


1311º/1 CC). É um corolário do direito de sequela.

Perante esta ação, o demandado ou prova que a coisa lhe pertence por um dos títulos

legalmente admitidos, que tem sobre ela um direito real que justifique a sua posse ou que a detém
por virtude de um direito pessoal de gozo que a lei tutela.
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FDUC – DIREITO DAS COISAS 2017/2018

Esta ação está sujeita a registo, não produzindo efeitos em relação a terceiros sem ele.
O proprietário deve provar as aquisições dos sucessivos alienantes até à aquisição originária de

um deles, prova que será facilitada se a propriedade foi adquirida de forma originária ou pelo
registo, cujo titular goza da presunção de proprietário, invertendo o ónus da prova para o

demandado.
É para afastar estas dificuldades que os proprietários recorrem frequentemente à tutela

possessória porque lhes basta provar a posse, prova que a lei facilita: provado o corpus, presume-se,
em caso de dúvida, que existe o animus possidendi (art. 1252º/2 CC). Provada a posse, goza da

presunção de que é proprietário.


Esta ação não prescreve pelo decurso do tempo, consequência lógica da perpetuidade do direito

de propriedade.

2. AÇÃO CONFESSÓRIA
Em relação à ação confessória, esta ação permite ao proprietário obter o reconhecimento do

direito de propriedade que se tornou duvidoso por alguma circunstância. Entende-se que se trata de
uma ação declarativa de simples apreciação.

3. AÇÃO NEGATÓRIA

É uma ação que permite ao proprietário de uma coisa obter o reconhecimento de que não existe
o direito sobre ela que o demandado invoca, como o direito de usufruto, servidão, etc. É uma ação

declarativa de simples apreciação.

4. AÇÃO DE PREVENÇÃO CONTRA DANOS


Para prevenir danos à coisa que lhe pertence, o proprietário pode instaurar, contra o dono de

prédio vizinho, uma ação. Assim pode evitar a emissão de fumo, fuligem, vapores, cheiros, ruído, etc
(art. 1346.º); a construção de obras, instalações ou depósitos de substâncias corrosivas ou perigosas

(art. 1347.º); a abertura de minas ou poços e escavações que podem provocar desmoronamentos
(art. 1348.º).

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FDUC – DIREITO DAS COISAS 2017/2018

9. EXTINÇÃO DO DIREITO DE PROPRIEDADE

9.1. EXPROPRIAÇÃO
A expropriação implica a extinção do direito de propriedade sobre o imóvel em que recaia e

constitui um direito a favor da pessoa que tem a seu cargo a prossecução do fim de utilidade pública
que se teve em vista. É uma das limitações ao direito de propriedade por interesse público.

9.2. PERDA DA COISA

A propriedade extingue-se também com a perda absoluta ou total da coisa porque põe em
causa a sua afetação jurídica. Não devemos confundir isto com a deterioração, a menos que seja tão

profunda que torne impossível o exercício do direito de propriedade.


A perda restringe-se naturalmente a coisas móveis que, tornando-se res nullius, são suscetíveis

de ocupação (arts. 1318º e 1323º CC).

9.3. IMPOSSIBILIDADE DEFINITIVA DE EXERCÍCIO

O direito de propriedade extingue-se por impossibilidade definitiva do seu exercício. É uma


exigência da função social a que a propriedade está sujeita. Invoca-se o exemplo do tesouro que,

vinte anos de impossibilidade de exercício por não se saber onde se encontra escondido, cessa a
propriedade da coisa (art. 1324º/2 CC).

9.4. ABANDONO
O abandono é também uma causa de extinção do direito de propriedade. Enquanto que as
coisas móveis podem ser abandonadas, tornando-se res nullius e, assim, suscetíveis de ocupação, nas

coisas imóveis o único preceito em que a propriedade se extingue por abandono é o domínio sobre
as águas originariamente públicas cuja consequência é a sua reversão ao domínio público (art.

1397.º).
Quanto à natureza jurídica do abandono, sustenta-se que se trata de um negócio jurídico

unilateral não recipiendo.

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FDUC – DIREITO DAS COISAS 2017/2018

9.5. RENÚNCIA
A renúncia é outra causa de extinção do direito de propriedade. Constitui uma manifestação

da faculdade de disposição reconhecida ao proprietário (art. 1305º CC).

É admitida em relação a coisas móveis, dividindo-se a doutrina quanto à possibilidade de

incidir sobre coisas imóveis.

OLIVEIRA ASCENSÃO e MENEZES CORDEIRO defendem que as coisas imóveis são suscetíveis
de renúncia, passando automaticamente a ser bem do Estado. Já HENRIQUE MESQUITA,

considerando esta posição inteiramente razoável, entende que a interpretação sistemática da lei não
fornece apoio para a livre renunciabilidade do domínio sobre imóveis. Invoca os arts. 1476º/1/c) e

1569º/1/d), que permitem a extinção por renúncia do usufruto e das servidões, referindo que se isto
fosse aplicável à generalidade dos direitos de gozo, incluindo a propriedade, o legislador não teria

sentido a necessidade de reiterar o princípio em relação ao usufruto e às servidões.

9.6. CADUCIDADE
A caducidade é uma forma de extinção de direitos reais temporários. Por isso, não se suscita

dúvidas em relação ao direito de usufruto e de uso e habitação, mas o direito de propriedade levanta
algumas dificuldades.
No entanto, sendo a propriedade temporária admitida pela lei “nos casos especialmente
previstos, a caducidade extingue-a. Apontam-se, como exemplos, a substituição fideicomissária no

testamento (art. 2286º CC) e na doação (art. 962º CC).

9.7. NÃO USO


O direito de propriedade extingue-se por não uso “nos casos especialmente previstos na lei”

(art. 298º/3 CC).


Defende-se que o não uso constitui uma forma de uso, mas há autores que defendem que

não se deve manter um direito que não é exercido na esfera jurídica do sujeito. Por exemplo, a
propriedade sobre águas particulares que eram originariamente públicas caduca pelo não uso,

revertendo ao domínio público (art. 1397º CC).

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FDUC – DIREITO DAS COISAS 2017/2018

9.8. OUTRAS MODALIDADES


9.8.1. CONTRATO

Com a transferência do direito de propriedade, o alienante perde a sua propriedade que é


adquirida pela outra parte (arts. 1316º e 1317º/a)).

9.8.2. USUCAPIÃO
Com a usucapião, extingue-se o direito do proprietário, que o possuidor adquire.

9.8.3. ACESSÃO

Também através da acessão se extingue o direito sobre a coisa unida e incorporada noutra.

SECÇÃO II – PROPRIEDADES DE IMÓVEIS

1. ESPECIFICIDADES DA PROPRIEDADE DE IMÓVEIS


A propriedade de imóveis é regulada nos arts. 1344º e ss. CC. Esta figura abrange o imóvel,

rústico ou urbano, o espaço aéreo correspondente à sua superfície, bem como o subsolo ou tudo o
que nele se contém e não esteja desintegrado do domínio por lei ou negócio jurídico. Esta ressalva

entende-se pela existência de normas na CRP que integram no domínio público certas riquezas
subterrâneas.

Esses bens não pertencem ao proprietário do terreno, porque integrados no domínio público,
embora o proprietário tenha uma posição especial relativamente a esses bens - preferência na
concessão, se tiver capacidade económica para isso, ou um direito a receber uma prestação.
O nº2 do art. 1344º limita em certos termos os poderes do proprietário. Todos os dias as

companhias aéreas violam os limites dos prédios, mas é um ato que o proprietário não tem interesse
em impedir.

A propriedade dos imóveis é uma propriedade que existe sempre, não existem res nullius imóveis.
Se um móvel pode ser uma res nullius, pode perder-se a propriedade sobre ele por abandono, mas o

imóvel não fica vacante por se ter abandonado o direito sobre ele. O art. 1345º CC preceitua que as

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FDUC – DIREITO DAS COISAS 2017/2018
coisas imóveis sem dono conhecido consideram-se património do Estado, pelo que não pode haver

ocupação de res nullius imóveis.


A propriedade de imóveis confere certos direitos específicos gerados pela natureza desses bens,

como o direito de demarcação, tapagem, construção, plantação de arbustos, etc. Mas estes poderes
têm limitações, quer de direito público, quer de direito privado.

2. RESTRIÇÕES AOS PODERES DO PROPRIETÁRIO POR RAZÕES DE INTERESSE PÚBLICO

Este tipo de restrições encontra-se em numerosa legislação avulsa. Como exemplo, não se pode
impedir que sejam colocados postes para passagem de linhas elétricas de alta tensão, de linhas

telegráficas, telefónicas, etc.


Há restrições quanto ao direito de construção, por motivos de defesa militar nas zonas de

servidão militar, por motivos de higiene e salubridade, por razões históricas e artísticas, etc.
A possibilidade de expropriação e de requisição estão referidas na CRP (art. 49º/8, in fine) e no

CC (arts. 1308º e 1309º CC).

3. RESTRIÇÕES AOS PODERES DO PROPRIETÁRIO POR RAZÕES DE INTERESSE PRIVADO


Estas restrições estão, fundamentalmente, reguladas no CC e normalmente derivam de relações

de vizinhança. Por haver proximidade ou contiguidade entre prédios, o proprietário não é livre de
fazer tudo aquilo que se compreenderia num ilimitado “ius utendi, abutendi e fruendi”, sendo

necessário estabelecer-se restrições derivadas da necessidade de coexistência.


O art. 1346º CC proíbe a emissão de fumos, fuligem, vapores, cheiros, calor, ruídos, trepidações

que importem prejuízo substancial para uso do imóvel ou que não resultem de uma utilização
normal do prédio de onde emanam. Este preceito parece aplicar-se a qualquer vizinho e não apenas

ao contíguo.
O art. 1347º CC refere-se às instalações prejudiciais e o art. 1348º CC às escavações,

preceituando que não se pode escavar no próprio terreno em termos de provocar riscos de
desmoronamento do terreno contíguo.

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FDUC – DIREITO DAS COISAS 2017/2018

O art. 1349º CC impõe uma restrição importante, a obrigação de dar passagem forçada
momentânea. O proprietário de um terreno é obrigado a ceder passagem momentânea, se um

vizinho precisar. Aqui não se constitui uma servidão, mas apenas uma passagem momentânea, ainda
que forçada.

O art. 1351º CC preceitua que os prédios inferiores estão sujeitos a receber as águas que,
naturalmente e sem obra do homem, decorram dos prédios superiores, assim como a terra e

entulhos que elas arrastem na sua corrente. Quando exista um terreno inclinado, o proprietário de
parte inferior pode instalar um dique contra o qual a água de torrente natural ou chuva fique retida.

Isso prejudicaria o proprietário do terreno superior.


Os arts. 1357º e 1359º CC tratam do direito de tapagem, havendo várias restrições.

O art. 1360º/1 e 2 impõe restrições importantes em relação a abertura de janelas, portas, sendo
necessário deixar um intervalo de metro e meio em relação ao prédio vizinho, e em relação a

varandas e terraços. Não se aplicam estas restrições nos prédios que estejam dentro da situação
prevista pelo art. 1361º CC. Este é o regime geral, mas pode se constituir uma servidão de vistas por

acordo ou usucapião.
O art. 1365º CC refere o problema dos beirais, devendo deixar-se, na construção, um intervalo

mínimo determinado. Também aqui se poderá constituir uma servidão, de estilicídio, por usucapião
ou acordo.

O art. 1366º CC permite a plantação de árvores e arbustos até à linha divisória dos prédios, sendo
lícito ao vizinho arrancar ou cortar as raízes, troncos e ramos que se introduzam no seu terreno, se o

dono do prédio não o fizer quando notificado para isso.


Uma restrição importante na prática é a prevista nos arts. 1370.º e ss. relativa às paredes e muros

de meação – a concessão do direito de comunhão forçada no muro ou parede. Estas construções


podem ser feitas por acordo, pagando cada um dos proprietários metade do muro e do terreno. Ou

pode suceder que, no exercício do direito de tapagem, o proprietário mure o terreno, e inteiramente
à sua custa; nesta hipótese, o proprietário confinante, se quiser, pode adquirir metade do muro,

pagando metade do terreno e metade da construção. Há sempre a possibilidade de tornar comuns


os muros ou paredes feitas nna divisória. É um direito potestativo – o proprietário construtor como

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que é expropriado, há aqui uma expropriação forçada de metade do muro no interesse do

proprietário confinante.
Estas são as limitações gerais à propriedade derivados das relações de vizinhança que em

princípio existem, mas que podem extinguir-se por negócio jurídico, constituindo-se uma servidão
entre as partes (de estilicídio, de vistas, inominada, etc.).

SECÇÃO III – COMPROPRIEDADE

1. NOÇÃO E CARACTERÍSTICAS
O nosso CC considera que existe propriedade em comum ou compropriedade, quando duas

ou mais pessoas são simultaneamente titulares do direito de propriedade sobre a mesma coisa (art.
1403º/1 CC). Além, disso, o nº2 refere ainda que os direitos dos consortes ou comproprietários sobre

a coisa comum são qualitativamente iguais, embora podendo ser quantitativamente diferentes.
Apesar dessa possibilidade, as quotas presumem-se quantitativamente iguais, quando não haja

indicação diferente no título constitutivo.

2. BREVE REFERÊNCIA HISTÓRICA


A compropriedade foi um instituto muito utilizado em Roma, podendo ser constituída voluntária

ou não voluntariamente. Afasta-se a doutrina que defendia ser este instituto a coexistência de vários
direitos de propriedade sobre a mesma coisa, por não poderem incidir dois direitos de propriedade

sobre a mesma coisa. Podemos afirmar que cada comproprietário tem o direito de, livre e
independentemente, realizar atos jurídicos, agir judicialmente e adquirir diretamente os frutos.

Ainda no direito romano, cada consorte podia dispor da coisa comum dentro dos limites da sua
quota, alienar, hipotecar, constituir usufruto, etc. Não podia realizar atos jurídicos que modificassem
ou alterassem o direito dos outros, sem o seu consentimento. E podiam praticar atos materiais
enquanto os outros não o proibissem.

Este era um regime individualista e tolerante, que na época justinianeia foi substituído pela
exigência da adesão prévia, expressa e unânime dos comproprietários, que era muitas vezes

substituída pela decisão do juiz.


Na Idade Média, os povos germânicos consagraram a figura da comunhão de direito germânico

ou comunhão em mão coletiva que se caracteriza por cada um dos elementos do grupo poder

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FDUC – DIREITO DAS COISAS 2017/2018
exercer atividades restritas sobre a coisa. Não tinham a faculdade de dispor cada consorte da sua

participação, nem de provocar a divisão da coisa, tendo que haver mediação do grupo.
A comunhão romana constituiu a regra nos sistemas jurídicos atuais, nomeadamente no

português.

3. CONFRONTO COM FIGURAS PRÓXIMAS (SOCIEDADE, PROPRIEDADE HORIZONTAL,


COMUNHÃO DE MÃO COMUM)

3.1. SOCIEDADE

Pode haver, por vezes, dificuldade em distinguir a compropriedade da sociedade, pondo-se o


problema fundamentalmente em relação à sociedade civil, que não tem personalidade jurídica,

segundo o entendimento dominante. Se a sociedade tiver personalidade jurídica, não haverá


qualquer dificuldade pois estaremos perante uma pessoa jurídica autónoma.

Em matéria do uso da coisa comum, o art. 1406º CC diverge da norma referente ao uso das

coisas sociais, o art. 989º CC.


A sociedade tem, de acordo com o art. 1007º CC, certas causas de dissolução que não se

confundem com o direito de exigir a divisão, meio pelo qual se põe termo à compropriedade (art.
1412º CC).

A sociedade pressupõe uma atividade económica que não seja de mera fruição, uma atividade
dirigida a potenciar os rendimentos da coisa, não se bastando com fruir os rendimentos que a coisa

dá, mas também atuar sobre ela de forma a potenciar a sua produtividade. Este parece ser o critério
mais acertado para diferenciar sociedade de compropriedade.
Concluindo, estaremos perante compropriedade se é uma atividade de mera fruição; perante
sociedade se se tratar de uma atividade económica que vise mais do que a mera fruição.

3.2. PROPRIEDADE HORIZONTAL

A propriedade horizontal, ou condomínio (art. 1429º -A CC), caracteriza-se pela existência de


direitos que incidem sobre coisas comuns e sobre frações distintas e autónomas do mesmo prédio:

em relação àquelas, os condóminos são comproprietários; em relação a estas, cada condómino é


proprietário exclusivo da sua fração.
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FDUC – DIREITO DAS COISAS 2017/2018

3.3. COMUNHÃO DE MÃO COMUM


A comunhão de mão comum ou propriedade coletiva é um dos casos de comunhão que se

distinguem da compropriedade: desde logo, porque o direito dos contitulares não incide
diretamente sobre cada um dos elementos (coisa ou crédito) que constituem o património, mas

sobre este concebido como um todo unitário.


Os membros da comunhão individualmente considerados não são titulares de direitos

específicos sobre cada um dos bens que integram o património global e, portanto, não podem
dispor desses bens nem os onerar, salvo quando o possam fazer na qualidade de administradores. É

exemplo disto o património comum dos cônjuges, o património das sociedades não personalizadas e
a comunhão hereditária.

4. CONSTITUIÇÃO
A compropriedade pode ser constituída por:

 Negócio jurídico inter vivos ou mortis causa;

 Disposição legal: como exemplo, o art. 1357º + 1358º; 1359º/2; 1368º; 1324º/1; 1318º; 1286º
e 1287º CC;

 Decisão judicial: como exemplo, o art. 1370º CC.

5. REGIME JURÍDICO: ATOS QUE PODEM SER PRATICADOS ISOLADAMENTE POR UM DOS
CONSORTES; ATOS A PRATICAR PELA MAIORIA DOS CONSORTES; ATOS QUE EXIGEM A

UNANIMIDADE DOS CONSORTES


O problema principal aqui é o de saber quais são as possibilidades de ser praticado um ato sobre

a coisa comum, isoladamente, por um comproprietário ou por um grupo de consortes que não
represente a totalidade destes.

A possibilidade que todos têm, por unanimidade, de praticar quaisquer atos sobre a coisa, não
levanta problemas. Todos em conjunto, exercem os poderes que correspondem aos do proprietário

singular (art. 1405º CC)

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FDUC – DIREITO DAS COISAS 2017/2018

O problema é saber quais são os poderes dos comproprietários, por grupos parcelares. Há atos
que podem ser praticados isoladamente por um comproprietário, outros que exigem o acordo da

maioria deles e ainda outros que implicam a unanimidade dos consortes.

1. ATOS QUE PODEM SER PRATICADOS ISOLADAMENTE POR UM DOS CONSORTES


Cada consorte pode, nos termos do art. 1406º CC, usar a coisa comum na falta de acordo

sobre o seu uso, desde que não a utilize para fim diferente daquela a que a coisa se destina e não
prive os outros consortes do uso a que têm direito. Não havendo, portanto, acordo entre os

consortes quanto ao uso da coisa, cada um deles a pode usar dentro dos limites legais. E pode
também cada um deles, nos termos do art. 1408.º, dispor de toda a sua quota na comunhão, ou de

parte dela (por venda, doação, dação em pagamento, etc.). E, podendo dispor, pode também onerar
a sua quota, v.g., dá-la em hipoteca, o que está, aliás, previsto na lei (art. 689º/1 CC).

Não poderá isoladamente alienar ou onerar uma parte especificada da coisa comum, visto
que não tem direito a uma parte concreta, individualizada, enquanto não se proceder à divisão, mas

apenas a uma parte ideal. Se o fizer, aplicam-se as normas sobre a disposição ou oneração de coisa
alheia (art. 1408º/2, que remete para os arts. 892º e ss. CC). Isto compreende-se por a coisa não

ser inteiramente sua.


A forma de alienação da sua quota ideal é a forma exigida para a disposição da coisa,

segundo o nº3 do art. 1408º CC.


Nos termos do nº2 do art. 1405º, cada consorte isoladamente pode reivindicar de terceiro a

coisa comum sem que se lhe possa opor que ela lhe não pertence por inteiro. Cada comproprietário
pode exercer a ação de reivindicação da coisa comum em relação a terceiro que a possua

indevidamente.
Os comproprietários têm direito de preferência sobre as quotas ideais dos outros consortes

(arts. 1409º e 1410º CC), em caso de venda a um estranho, não se aplicando quando a venda seja
feita a outro comproprietário. No caso de troca, não existe este direito de preferência, por não haver

um preço. Também não existe preferência na doação, o que origina muitas vezes simulações, para se
frustrarem estes direitos de preferência que seriam exercidos em caso de venda.

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FDUC – DIREITO DAS COISAS 2017/2018

2. ATOS A PRATICAR PELA MAIORIA DOS CONSORTES


O art. 1407º remete para o art. 985º CC, estando os atos de conservação e de normal

frutificação da coisa submetidos ao regime de administração. A administração tanto pode pertencer


a todos como a apenas alguns dos consortes e, não havendo convenção, têm poderes iguais. Mas

pode haver estipulação em como apenas alguns deles possam administrar.


Quando a administração pertence a todos ou a alguns, qualquer dos administradores tem o

direito de se opor ao ato que outro pretenda realizar, cabendo depois à maioria decidir sobre o valor
da oposição. Isto significa que acaba por ser a maioria a decidir, quando há contestação de um ato

da administração. Para os efeitos do art. 1407.º, a maioria tem de ser, não numérica ou pessoal, mas
do valor das quotas, é necessário que ela represente pelo menos metade do valor total das quotas.

Parece que tem de ser a maioria do art. 985º (maioria pessoal), mais a maioria do valor total das
quotas.

Em relação aos encargos, têm de ser suportados com as benfeitorias necessárias feitas para
conservar o objeto. Estes encargos impendem sobre todos os comproprietários da coisa na

proporção das respetivas quotas. Estamos perante uma obrigação inerente ao seu direito.

Para se eximir destes encargos, cada comproprietário terá de renunciar ao seu direito, nos
termos do art. 1411º CC. No caso de alienar para terceiro, continua responsável pelos encargos. Ao

renunciar, os outros comproprietários adquirem a sua quota, sendo esta aquisição como que uma
compensação pelos encargos acrescidos que os restantes comproprietários terão nas despesas de

conservação ou nas benfeitorias necessárias.

3. ATOS QUE EXIGEM A UNANIMIDADE DOS CONSORTES


Nos temos do art. 1408º CC, a disposição de toda a coisa ou de parte especificada da coisa

exige o consentimento de todos os consortes ou comproprietários.


Não se pode vender, doar, trocar, toda a coisa ou parte especificada dela sem o

consentimento de todos os consortes, não bastando, então, a maioria. O mesmo se aplica ao


arrendamento de prédio indiviso (art. 1024º/2 CC). O arrendamento de uma coisa comum implica o

consentimento de todos os comproprietários. Só que a lei, neste caso, contenta-se com uma
manifestação posterior do seu assentimento, considerando-se o ato válido. Mas se for exigida
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FDUC – DIREITO DAS COISAS 2017/2018
escritura pública para o arrendamento (para fins comerciais ou profissão liberal), já se torna

necessário o consentimento de todos, simultâneo ou posterior, desde que conste da forma exigida
pela lei.

6. EXTINÇÃO

A compropriedade por extinguir-se por via negocial, qualquer um dos comproprietários pode
adquirir as quotas de quaisquer dos outros ou de todos.

Como forma de extinção especial, pode citar-se os arts. 1412º e 1413º, a extinção por divisão da
coisa comum. Qualquer dos consortes pode, a qualquer momento, requerer a divisão da coisa

comum, não sendo obrigados a permanecer na indivisão.


Mas a lei admite as cláusulas de indivisão, havendo interesse em limitar a possibilidade dos

consortes em pedir a divisão da coisa, por determinado período de tempo. A sua validade está
limitada ao máximo de cinco anos. Se ultrapassar este limite, a cláusula será nula.

Para valer em relação a terceiros, esta cláusula tem de ser registada, nos termos do nº3 do

art. 1412º CC. Se não estiver registada e um dos comproprietários vender a sua quota, o terceiro
adquire-a validamente.

A divisão amigável da coisa comum, ou seja, extrajudicial, requer a forma que a lei exige para
a alienação onerosa da coisa, p.ex., escritura pública se estivermos perante uma coisa imóvel.

7. NATUREZA JURÍDICA
O problema da natureza jurídica da compropriedade é passível de três soluções:

I. Uma doutrina tradicional, perfilhada entre autores como MANUEL RODRIGUES,


segundo a qual a compropriedade resulta da coexistência dos direitos de cada um dos consócios

sobre uma quota ideal ou intelectual do objeto de compropriedade. Cada comproprietário tem
direito a uma fração, uma quota ideal não especificada do objeto;

II. Para outra doutrina, não se trataria da coexistência de direitos incidindo cada um deles
sobre uma quota ideal, mas tratar-se-ia da coexistência de vários direitos de propriedade sobre todo

o objeto, que se limitavam reciprocamente. A compropriedade seria um feixe de direitos de


propriedade verdadeiros e absolutos sobre todo um objeto, mas que, como têm em comum o

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FDUC – DIREITO DAS COISAS 2017/2018
objeto, se autolimitam na mesma medida em que também existem outras limitações da propriedade

por outros direitos reais. Aqui haveria várias propriedades sobre o mesmo objeto, limitadas por
outras propriedades com idêntico objeto;

III. Uma terceira posição entende que estamos perante um só direito, um único direito
com vários titulares (posição de HENRIQUE MESQUITA).

Parece-nos que a doutrina tradicional oferece um enquadramento mais harmonioso do que as

posições ulteriores, não se produzindo contra ela nenhum argumento decisivo.


A possibilidade que cada um dos consortes tem de alienar a sua quota ideal e de requerer a

divisão da coisa comum, quando o quiser, supõe que cada um dos comproprietários tem um direito
autónomo, que não há apenas um direito para todos, mas que cada um deles tem um direito próprio

sobre uma quota ideal.

Alguns autores invocam contra ela o argumento de que o direito a uma quota ideal contradiz
princípios constitucionais dos direitos reais, argumento que negamos. Um desses princípios é o de

que os direitos reais têm de incidir sobre coisa determinada, mas neste caso, a coisa encontra-se
determinada, é uma quota ideal daquele objeto, que, potencialmente, incide sobre todo ele, mas que

não é exatamente um direito sobre todo o objeto, mas sobre uma fração dele.
Parece-nos isto oferecer um grau de determinação suficiente para que o princípio se

considere cumprido.
A segunda posição choca com a ideia de não se poder conceber mais doq eu um direito de

propriedade sobre a mesma coisa, sendo por definição um direito absoluto que opõe o seu titular a
todos os outros.

A última posição não dá expressão às diferenças de regime entre a compropriedade e a


comunhão de mão comum ou património coletivo. Neste ultimo caso sim, há um só direito com

vários titulares porque não se pode pedir a divisão, dada a afetação especial do património a um fim
específico, nem pode cada um dos contitulares alienar uma quota do objeto. Mas na

compropriedade não é assim, cada um dos contitulares tem certas liberdades para agir isoladamente.

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FDUC – DIREITO DAS COISAS 2017/2018

SECÇÃO IV – PROPRIEDADE HORIZONTAL


1. NOÇÃO E ÂMBITO DE APLICAÇÃO

O CC regula a propriedade horizontal nos arts. 1414º e ss., existindo legislação avulsa,
nomeadamente o Regime da Propriedade Horizontal (decreto-lei nº 268/94), que o desenvolve.

O nosso Código não define a propriedade horizontal, mas com base nos arts. 1414º, 1415º e
1420º, podemos defini-la como um conjunto de poderes, incindivelmente ligados, sobre cada uma

das frações autónomas e sobre as partes comuns do mesmo edifício.


A doutrina realça que cada fração é objeto de um direito de propriedade singular e as partes

comuns de um direito de compropriedade. Estes direitos estão de tal modo unidos que não é
possível aliená-los separadamente, nem se pode renunciar ao direito às partes comuns para

libertação dos encargos correspondentes (art. 1420º/2 CC).

E aponta os seguintes requisitos:

a) Existência de fracções num edifício, que constituam unidades idependentes;

b) Separação e isolamento das fracções autónomas;


c) Disposição de saída própria para cada fracção;

d) Pertença de duas ou mais fracções a proprietários diferentes.

2. BREVE REFERÊNCIA HISTÓRICA


Existem dúvidas quanto à existência da propriedade horizontal no direito romano.

Em Portugal, as Ordenações Filipinas contemplam a possibilidade de um edifício ter diferentes


proprietários. Também o Código de Seabra o previu.
Depois da 2ª Guerra Mundial, a projeção real destas disposições começou a aumentar, ao se
proporcionar o acesso à propriedade urbana a população com menos recursos económicos, visto

que o custo de cada fração autónoma num prédio de vários andares é muito inferior ao de um
prédio independente.

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FDUC – DIREITO DAS COISAS 2017/2018

3. CONSTITUIÇÃO
O CC determina que a propriedade horizontal pode ser constituída por negócio jurídico,

usucapião, decisão administrativa ou decisão judicial proferida em ação de divisão de coisa comum
ou em processo de inventário (art. 1417º/1). E dispõe ainda que a constituição por decisão judicial

pode ter lugar a requerimento de qualquer consorte, desde que no caso se verifiquem os requisitos
exigidos pelo artigo 1415.º (art. 1417.º/2).

O título constitutivo tem de especificar as partes do edifício correspondentes a cada fração,


individualizando-as e terá, igualmente, de fixar o valor relativo de cada fração em relação ao valor

total do prédio (art. 1418º/1).


Além dessas exigências, o título constitutivo poderá ainda conter:

1. a menção do fim a que cada fração ou parte comum se destina (art. 1418º/2/a));
2. o regulamento do condomínio sobre o uso, fruição e conservação quer das partes comuns

quer das frações autónomas (art. 1418º/2/b));


3. previsão de compromisso arbitral para a resolução de litígios emergentes da relação de

condomínio (art. 1418º/2/c)).

O título constitutivo será nulo no caso de faltar a especificação exigida pelo nº1 e no caso de não
coincidência entre o fim referido na alínea a) do nº2 e o que foi fixado no projeto aprovado pela

entidade pública competente (art. 1418º/3).


A doutrina considera o título constitutivo uma declaração unilateral através da qual o proprietário

do edifício exprime a vontade de sujeitar o imóvel ao regime da propriedade horizontal, extinguindo


o seu direito de propriedade normal e constituindo um direito real novo: a propriedade horizontal. E

entende que se trata dum ato de mera administração porque não envolve a alienação de qualquer
fração do imóvel. Mas porque a propriedade horizontal pressupõe uma pluralidade de condóminos,

aquela declaração unilateral fica sujeita à condição suspensiva de alienação de alguma das frações
autónomas do edifício.

PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA entendem que se verifica a pluralidade de condóminos


mesmo quando as frações pertençam ao mesmo proprietário e uma ou algumas estejam oneradas

com o direito de usufruto.

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FDUC – DIREITO DAS COISAS 2017/2018

O título constitutivo pode ser elaborado em qualquer momento: quando o edifício já está
construído, em fase de construção e mesmo quando só esteja projetado.

Existem alguns efeitos que o título constitutivo pode produzir, antes de haver, pelo menos, dois
condóminos. Se o proprietário tiver necessidade de constituir alguma garantia real, poderá onerar

apenas uma ou algumas das frações. Pode também criar uma relação de usufruto ou arrendar
frações, resultando daí o direito de preferir do arrendatário.

Em relação à nulidade do título constitutivo que não cumpra as exigências legais acima referidas,
a doutrina entende que é necessário considerar algumas situações:

1. se o fim fixado pelo projeto não coincidir com o fim referido no título constitutivo, esta
nulidade será parcial, prevalecendo o fim fixado no projeto aprovado pela entidade pública

competente.
2. Se a nulidade se dever à falta de individualização devida das frações, deve admitir-se a

possibilidade de conversão em compropriedade, verificando-se o art. 293º CC.


3. No caso de o valor de cada fração não estar fixado, o título constitutivo pode ser completado

em documento autêntico, pelo que a nulidade só prevalece se não se recorrer a este meio.

Quanto à pluralidade de condóminos pode resultar de:

a) Negócio jurídico inter vivos: em regra, será o contrato de compra e venda, mas pode resultar
de doação, partilha extrajudicial, permuta, dação em cumprimento. No entanto, a lei notarial não
permite que as respetivas escrituras sejam lavradas sem a exibição de documento comprovativo da

inscrição do título constitutivo no registo predial;

b) Negócio jurídico mortis causa: o proprietário de um edifício composto de várias frações


autónomas pode deixá-las, em testamento, a diversas pessoas. Com a morte do testador, surge a
propriedade horizontal;

c) Usucapião: ocorre quando a pluralidade de condóminos assenta numa situação possessória.

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FDUC – DIREITO DAS COISAS 2017/2018

v.g. A proprietário de um edifício de dois andares, com os requisitos indicados no art. 1415.º, vende
ou doa um dos andares a B, consensualmente ou por documento particular: logo que comece a fruir

o andar, o comprador torna-se possuidor em termos correspondentes ao exercício do direito de


propriedade horizontal e, decorrido o prazo de usucapião, constituir-se-á um condomínio entre A e

B. O mesmo ocorrerá se, nas mesmas circunstâncias, A vender ou doar um dos andares a B e outro a
C. Entre estes surgirá, por efeito da usucapião, a propriedade horizontal.

d) Decisão judicial: tem lugar em sentença proferida em ação de divisão de coisa comum ou

em processo de inventário, desde que o prédio tenha os requisitos legalmente exigidos. Segundo
PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, poderá igualmente constituir-se por sentença quando haja

incumprimento de um contrato-promessa de compra e venda de uma ou mais frações autónomas e


seja possível, nos termos do art. 830º, a execução específica.

e) Direito de superfície: sucede quando alguém adquire o direito de construir sobre edifício

alheio. Pode existir uma situação de propriedade horizontal entre o construtor e o dono das frações
autónomas já existentes no prédio (art. 1526º CC).

4. MODIFICAÇÃO

A modificação do título constitutivo pode operar por escritura pública e acordo de todos os
condóminos (art. 1419º/1 CC). Assim, pode ser o administrador, em representação do condomínio, a

outorgar a escritura pública, desde que o acordo de todos os condóminos conste de ata assinada
pelos mesmos. Se não se verificarem os requisitos do art. 1415º, o acordo é nulo, podendo essa

nulidade ser declarada a pedido das pessoas e entidades do nº2 do art. 1416º (art. 1419º/3).

A doutrina observa que esta nulidade implica o retorno à constituição inicial da propriedade
horizontal ou, se isto não for possível, o prédio ficará sujeito ao regime da compropriedade (art.

1416º/1 CC).

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FDUC – DIREITO DAS COISAS 2017/2018

5. REGIME JURÍDICO: DIREITOS E OBRIGAÇÕES OU ENCARGOS DOS CONDÓMINOS

PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS
Cada condómino é proprietário exclusivo da fração que lhe pertence e comproprietário das
partes comuns do edifício (art. 1420º/1 CC). Além disto, o conjunto dos dois direitos é incindível, o

que significa que nenhum deles pode ser alienado separadamente nem se poderá renunciar à parte
comum para se eximir das despesas necessárias à sua conservação ou fruição (art. 1420º/2 CC).

A doutrina observa que, sendo proprietário exclusivo da sua fracção, o respetivo condómino
goza da faculdade de dispor livremente dela. Na falta de convenção em contrário e se a divisão

material e jurídica for possível (art. 1415.º), pode mesmo subdividi-la em novas fracções autónomas e
constituir sobre cada uma delas um direito de propriedade independente. Ademais, entre as várias

fracções autónomas podem constituir-se relações jurídicas de natureza real, como se se tratasse de
imóveis independentes. Assinalam-se, no entanto, limitações decorrentes da natureza das coisas: v.g.,

um condómino não tem a faculdade de demolir a sua fracção porque, relativamente às partes

comuns, não pode exceder os poderes de comproprietário.


A lei impõe ainda a incindibilidade entre o direito de propriedade sobre cada fracção e o

direito de compropriedade em relação às partes comuns. Por isso, não é possível alienar aquele sem
este e vice-versa. No entanto, a doutrina (PIRES LIMA E ANTUNES VARELA) entende que esta

proibição só se aplica quanto à alienação isolada ou separada, porque, em conjunto, os condóminos


podem alienar as partes comuns do edifício, excetuadas as que o são imperativamente por força da

lei (art. 1421.º/1)

LIMITAÇÕES
Os condóminos, nas relações entre si, estão sujeitos, de um modo geral, quanto às fracções
que exclusivamente lhes pertencem e quanto às partes comuns, às limitações impostas aos

proprietários e aos comproprietários de coisas imóveis (art. 1422.º/1). E determina que lhes é
especialmente vedado:

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FDUC – DIREITO DAS COISAS 2017/2018

1. Não podem prejudicar a segurança, linha arquitetónica ou o arranjo estético do edifício,


quer através de obras novas quer por não procederem a reparações (art. 1422º/2/a) CC). No

entanto, se não prejudicarem a segurança, as obras relacionadas com a linha arquitectónica ou o


arranjo estético podem ser realizadas mediante autorização da assembleia dos condóminos,

aprovada por maioria representativa de dois terços do valor total do prédio (art. 1422.º/3). As
limitações à estética do edifício só se aplicam aos elementos da fracção autónoma visíveis do

exterior.

2. Estão proibidos de destinar a sua fração a usos ofensivos dos bons costumes (art.

1422º/2/b) CC);

3. Não pode ser dado uso diverso do fim a que se destina a fração (art. 1422º/2/c) CC);
4. Não podem ser praticados atos ou atividades que tenham sido proibidos no título

constitutivo ou, posteriormente, por deliberação da assembleia de condóminos aprovada sem


oposição (art. 1422º/2/d) CC).

A sanção correspondente à violação destas proibições deve ter em conta a natureza da

própria violação (pode haver destruição da obra realizada, realização coerciva da obra necessária,
indemnização de danos, etc.).

Finalmente, aplicam-se as limitações derivadas das relações de vizinhança (arts. 1346º, 1347º,
1349º, 1360º CC) e as do regime de compropriedade sobre as partes comuns (art. 1406º/1 CC).

DIREITOS DE PREFERÊNCIA E DE DIVISÃO


Os condóminos não gozam do direito de preferência na alienação de frações nem do direito

de pedir a divisão das partes comuns (art. 1423º CC).


A justificação deste preceito prende-se com a necessidade de manter a propriedade

horizontal. Por um lado, há vantagens sociais, económicas e políticas que justificam a existência das
várias fracções. Por outro, o direito de compropriedade dos condóminos sobre as partes comuns do

edifício é um puro acessório da propriedade exclusiva que recai sobre cada fração.

115
FDUC – DIREITO DAS COISAS 2017/2018

Mas se os condóminos quiserem dividir as partes não imperativamente comuns ou atribuí-las


em exclusivo a um ou alguns ou em compropriedade a alguns, podem fazê-lo mediante modificação

do título constitutivo, observando as exigências do art. 1415º (art. 1419º CC).

ENCARGOS
Salvo convenção em contrário, as despesas necessárias à conservação e fruição das partes
comuns do edifício e o pagamento de serviços de interesse comum devem ser pagas pelos

condóminos em proporção do valor das suas fracções (art. 1424º/1 CC). No nº2 do mesmo artigo
prevê-se que se possa estabelecer coisa diferente no regulamento do condomínio.

Mas se as despesas disserem respeito a lances de escadas ou a partes comuns do prédio que
sirvam exclusivamente alguns dos condóminos, devem ser esses a suportá-las (art. 1424º/3 CC). Nas

despesas de elevadores, só contribuem os condóminos cujas frações sejam por eles servidas (art.
1424º/4 CC).

PIRES LIMA E ANTUNES VARELA observam que a responsabilidade dos condóminos por estas
despesas é ex lege e, por isso, subsiste mesmo que resultem de facto que seja imputável apenas a

um deles ou a terceiro, embora lhes seja lícito demandar o autor do dano de acordo com os
princípios gerais da responsabilidade civil.

O nosso Código não adotou a regra da utilidade na distribuição das despesas, mas sim o da
destinação objetiva das coisas comuns. O que interessa é o uso que cada condómino pode fazer

dessas coisas, que se mede, em princípio, pelo valor relativo da sua fração e não pelo uso que
efetivamente faça delas. Assim, continuam a ter que contribuir para as despesas de conservação,

mesmo que esses condóminos não utilizem as suas frações, não se servindo também das partes
comuns do prédio. Apesar disto, continua a haver liberdade dos condóminos para acordarem em

sentido diferente.
Se as coisas comuns proporcionarem receitas (p.ex. pelo arrendamento de uma garagem

comum), devem ser repartidas pelos condóminos na proporção do valor relativo das suas frações, se
não lhes for dada outra afetação (art. 1405º/1 CC).

116
FDUC – DIREITO DAS COISAS 2017/2018

INOVAÇÕES
As obras que constituam inovações dependem da aprovação da maioria dos condóminos,

devendo essa maioria representar dois terços do valor total do prédio (art. 1425º/1 CC). Nas partes
comuns do edifício não são permitidas inovações capazes de prejudicar a utilização, por parte de

alguns dos condóminos, tanto das coisas próprias, como das comuns (art. 1425.º/2).
As despesas ficam a cargo dos condóminos nos termos do art. 1424º CC.

Mesmo que alguns condóminos não tenham aprovado a inovação são obrigados a concorrer
para as respetivas despesas, salvo se a recusa for judicialmente havida como fundada (art. 1426º/2

CC). Será considerada como fundada a recusa quando as inovações sejam voluptuárias ou não sejam
proporcionadas à importância do edifício (art. 1426º/3 CC). O condómino cuja recusa seja havida

como fundada pode a todo o tempo participar nas vantagens da inovação, bastando, para isso,
pagar a quota correspondente às despesas de execução e manutenção da obra (art. 1426º/4 CC).

Da remissão para o art. 1424º, resulta que se a inovação servir exclusivamente certa zona do
prédio, só entre os condóminos dessas frações se fará a repartição dos encargos, na proporção dos

seus valores.

REPARAÇÕES INDISPENSÁVEIS E URGENTES


As reparações devem ser feitas, em princípio, pelo administrador como órgão executivo das

deliberações da assembleia dos condóminos ou como zelador dos bens comuns. Mas o art. 1427º
prevê que, na falta ou impedimento do administrador, essas reparações indispensáveis e urgentes

possam ser feitas por iniciativa de qualquer condómino. As despesas serão repartidas nos termos do
art. 1424º CC.

DESTRUIÇÃO DO EDIFÍCIO
Existem várias hipóteses:

1. Se a destruição for total ou de parte que represente, pelo menos, três quartos do seu valor,
os condóminos podem exigir a venda do terreno e dos materiais, pela forma designada em

assembleia (art. 1428º/1 CC);

117
FDUC – DIREITO DAS COISAS 2017/2018

2. Se atingir uma parte menor, assembleia pode deliberar a reconstrução (art. 1428/2 CC);
Se os condóminos não quiserem participar nas despesas de reconstrução, podem alienar os

seus direitos a outros condóminos, caso em que o alienante pode escolher a quem pretende
transmitir (art. 1428º/3 e 4 CC).

A hipótese de os condóminos se oporem à reconstrução do prédio se a destruição for total ou


de pelo menos três quartos do seu valor, constitui um regime contrário ao da

compropriedade, caracterizado pelo direito de exigir a divisão do terreno e dos materiais.


Pretende-se proteger os condóminos contra imposições da maioria, que podem envolver um

encargo excessivo.

SEGURO OBRIGATÓRIO
É obrigatório o seguro contra o risco de incêndio do edifício, quer quanto às fracções

autónomas, quer relativamente às partes comuns (art. 1429º/1 CC).


Este seguro visa facilitar a reconstrução do prédio, satisfazendo assim o interesse de todos os

condóminos.

FUNDO COMUM DE RESERVA


A constituição de um fundo comum de reserva para custear as despesas de conservação do
edifício ou conjunto de edifícios é obrigatória (art. 4º decreto-lei nº 268/94). Os condóminos devem

contribuir com uma quantia correspondente, no mínimo, a 10% da sua quota-parte nas restantes
despesas do condomínio. É criticado o facto de o valor ser tão baixo.

6. REGIME JURÍDICO (CONT.): ADMINISTRAÇÃO DAS PARTES COMUNS DO EDIFÍCIO

Existem dois órgãos administrativos na propriedade horizontal: a assembleia de condóminos, com


uma função deliberativa; e o administrador, que cumpre uma tarefa executiva (art. 1430º/1 CC).

Na assembleia, a atribuição de votos faz-se nos termos do art. 1430º/2, que remete para o art.
1418º. Esta assembleia administra as partes comuns, devendo reunir-se na primeira quinzena de

janeiro para discutir e aprovar as contas do último ano e aprovar o orçamento das despesas a efetuar
durante o ano (art. 1431º/1 CC). Pode também ser convocada pelo administrador ou por condóminos

118
FDUC – DIREITO DAS COISAS 2017/2018
que representem, pelo menos, vinte e cinco por cento do capital investido (art. 1431º/2 CC). Os

condóminos podem fazer-se representar por procurador (art. 1431º/3 CC).


A convocação e funcionamento da assembleia encontra-se previsto no art. 1432º CC. São

obrigatoriamente lavradas atas, redigidas e assinadas por quem tenha servido de presidente e
subscritas por todos os condóminos participantes (art. 1º/1 do decreto-lei nº 268/94). As

deliberações presentes nas atas vinculam todos os que tenham direitos relativos às frações
(condóminos ou terceiros). Quando tiver sido deliberado o montante das contribuições devidas ao

condomínio ou despesas necessárias à conservação e fruição das partes comum, isso valerá como
título executivo contra o condómino que deixar de pagar a sua quota-parte, dentro do prazo

estabelecido.
As deliberações não podem ser contrárias à lei ou a regulamentos de condomínio, podendo ser

anuladas a requerimento de qualquer condómino que as não tenha aprovado (art. 1433º/1 CC).
Mas nem todas as deliberações serão anuláveis. Se a assembleia infringir normas de interesse e

ordem pública, essas deliberações devem considerar-se nulas e, assim, impugnáveis a todo o tempo
por qualquer interessado. Se assim não fosse, estaria no poder dos condóminos derrogar os

preceitos legais, bastando que ninguém impugnasse as deliberações contrárias a eles no prazo do
nº4 do art. 1433º CC.

Se a assembleia deliberar sobre assuntos que não sejam da sua competência, devem

considerar-se essas deliberações ineficazes (PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA).


Por fim, a assembleia pode estabelecer a obrigatoriedade da celebração de compromissos

arbitrais para a resolução de litígios entre condóminos ou entre estes e o administrador, entre outros
(art. 1434º/1 CC).
O administrador é o órgão executivo das deliberações da assembleia dos condóminos (art.
1430º/1 CC), que o elege e exonera (art. 1435º/1 CC).

É nomeado pelo tribunal, a requerimento de qualquer dos condóminos, se a assembleia não o


eleger; e pode ser exonerado pelo mesmo se tiver praticado irregularidades ou agido com

negligência no exercício das suas funções.


O cargo de administrador é remunerável e, salvo estipulação em contrário, o período de

funções é de um ano renovável. Mantém-se em funções até que seja eleito ou nomeado o sucessor.

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FDUC – DIREITO DAS COISAS 2017/2018

A eleição e a exoneração fazem-se nos termos gerais em que a assembleia delibera, i.e., por
maioria dos votos representativos do capital investido (art. 1432º/3 CC).

As funções do administrador estão definidas na lei, nomeadamente nas alíneas do art. 1436º
CC, além de a assembleia lhe poder atribuir outras.

O administrador tem legitimidade para demandar qualquer dos condóminos ou terceiro, na


execução das suas funções ou se autorizado pela assembleia (art. 1437º/1 CC), podendo ser

demandado nas ações respeitantes às partes comuns. Se as ações forem relativas a questões de
propriedade ou posse dos bens comuns, só poderá agir em juízo se a assembleia lhe atribuir poderes

especiais.
Dos atos do administrador cabe recurso para a assembleia que pode, neste caso, ser

convocada por qualquer condómino (art. 1438º CC).

7. NATUREZA JURÍDICA
A natureza jurídica da propriedade horizontal é muito controversa.

Parece que nos encontramos perante uma situação de natureza dualista. A propriedade

horizontal é integrada por um concurso de dois direitos. Há um direito de plena propriedade sobre
partes privativas (cada condómino é pleno proprietário de cada uma das frações independentes de

que se compõe o prédio sujeito ao regime da propriedade horizontal), sendo pleno in re potestas,
conferindo os poderes do proprietário. Coexiste com esta plena propriedade, uma compropriedade

das partes comuns. Estão de tal forma ligados que na alienação do direito de propriedade horizontal
vão coenvolvidos a propriedade sobre a parte privativa e o direito de compropriedade sobre as
partes comuns.

Esta compropriedade é uma compropriedade forçada, não é possível sair da indivisão, ao

contrário do que sucede na compropriedade normal, em que é sempre lícito requerer a divisão da
coisa comum. A compropriedade das partes comuns dum edifício em propriedade horizontal é

forçosa, enquanto durar a propriedade horizontal. Assim, é forçosa e perpétua.

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FDUC – DIREITO DAS COISAS 2017/2018

CAPÍTULO III - USUFRUTO, USO E HABITAÇÃO


A) USUFRUTO
1. NOÇÃO E CARACTERÍSTICAS

O usufruto é definido no art. 1439º CC como o direito de gozar temporária e plenamente


uma coisa ou direito alheio, sem alterar a sua forma ou substância.

No termo do usufruto (é o direito de gozar temporariamente pelo que terá um termo), o


usufrutuário deve restituir a coisa ao proprietário, sem a sua substância estar alterada.

Esta definição é de origem romana, do jurista romano PAULUS. Acentuam-se os poderes de


uso e fruição, com ressalva da substância da coisa.

O usufrutuário detém apenas o ius utendi e o ius fruendi, não detendo o ius abutendi, o poder
de dispor da coisa.

Isto significa que onde existe um usufruto limitador de uma propriedade, tem de existir uma
propriedade limitada por esse usufruto (nomeadamente esvaziada do usus e do fructus). Esta

propriedade designa-se nua propriedade ou propriedade de raiz.

Mas os poderes do usufrutuário e do proprietário de raiz somados não perfazem os poderes


do pleno proprietário. Ninguém possui plenamente o poder de dispor da coisa. O ius abutendi não

abrange apenas o poder de alienar a coisa, pois isso ambos o podem fazer, na medida dos seus
direitos (tanto o nu-proprietário pode alienar a sua propriedade, como o usufrutuário pode alienar o

seu direito de usufruto.


Nenhum deles poderá destruir a coisa, apesar de ser uma faculdade abrangida pelo ius

abutendi. O usufrutuário não o pode fazer porque tem de ressalvar a substância da coisa e o
proprietário de raiz também não porque estaria a violar o usufruto.

O usufruto é, então, um ius in re aliena, um direito real sobre coisa alheia, um direito real
integrado pelas faculdades de uso e fruição sobre uma coisa que, em propriedade, pertence a

outrem. Segundo a velha conceção romanista, era classificado como uma servidão pessoal. Dá-se a
um indivíduo um direito sobre utilidades de prédio alheio, direito esse que não tem de ser utilizado

por intermédio de um prédio dominante.

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FDUC – DIREITO DAS COISAS 2017/2018

Da definição legal de usufruto resulta que é um direito:


1. Real de gozo: o usufrutuário pode usar, fruir e administrar a coisa ou direito como faria um

bom pai de família, embora deva respeitar o seu destino económico (art. 1466º CC). Pode também
trespassar a outrem o exercício do seu direito e onerá-lo, salvo as restrições impostas pelo título

constitutivo ou pela lei (art. 1444º/1 CC), mas responde pelos danos que as coisas padecerem por
culpa da pessoa que o substituir (nº2).

A cedência do usufruto a terceiro, referida como trespasse a terceiro, só pode ser efetuada
por negócio inter vivos, porque o usufruto extingue-se com a morte do cedente (arts. 1443º e

1476º/1/a) CC).
2. Não exclusivo: o usufruto implica a existência de outro direito real sobre a mesma coisa.

Esta característica permite compreender boa parte das obrigações do usufrutuário e distinguir
claramente o usufruto do direito de propriedade.

3. Limitado: o usufrutuário não pode alterar a forma ou substância da coisa usufruída e deve
também respeitar o seu destino económico. Todavia, esta impossibilidade deve ser entendida em

termos hábeis porque se o usufruto tiver por objeto coisas consumíveis, o seu uso implica, pela
própria natureza das coisas, o seu desaparecimento (art. 1451º/1 CC).

4. Temporário: o usufruto não pode exceder a vida do usufrutuário, quando se trate de


pessoa física; a sua duração máxima é de 30 anos, se for constituído a favor de pessoa coletiva (art.

1443º CC). Havendo prazo estipulado, extingue-se no seu termo, exceto se o usufrutuário falecer
antes. Esta característica tem a sua ratio na finalidade essencialmente pessoal (intuitu personae) do

usufruto que justifica também que se for trespassado, o usufruto se extinga com a morte do cedente
e não do adquirente.
O usufruto não tem caráter perpétuo por duas razões: a falta de estímulo para a conveniente

exploração económica dos bens; e o obstáculo à sua circulação.


5. Sobre objeto alheio: a lei refere que o usufruto pode incidir sobre coisa ou direito alheio.

Ora, segundo o princípio da coisificação, os direitos reais devem versar sobre coisas e, por isso, a
possibilidade de o usufruto incidir sobre um direito suscita algumas dificuldades. Há autores que

entendem que a função económico-social originária do usufruto (proporcionar alimentos ao


beneficiário mediante a fruição da coisa) pode ser cumprida pela fruição de direitos de crédito, partes

122
FDUC – DIREITO DAS COISAS 2017/2018
sociais, etc. (PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA). Outros entendem que o usufruto não recai sobre o

direito mas sim sobre o seu objeto, a prestação, considerando-o um direito de crédito (OLIVEIRA
ASCENSÃO).

2. CONSTITUIÇÃO

O usufruto pode ser constituído por contrato, testamento, usucapião ou disposição da lei (art.
1440º CC).

2.1 CONTRATO

Através do contrato, a aquisição do usufruto pode realizar-se por duas vias:

a) Constituição per translationem: o proprietário constitui o usufruto a favor de determinada


pessoa (contraparte ou terceiro), ficando com a nua propriedade;

b) Constituição per deductionem: o proprietário cede a nua propriedade sobre uma coisa e
reserva, para si (ou para terceiro) o direito de usufruto.

Esta distinção é importante porque o usufrutuário está dispensado da prestação da caução se

o usufruto tiver sido constituído per deductionem (art. 1469º/1 CC).


A doação é o contrato mais frequentemente realizado, mas nada impede que a constituição

se faça onerosamente.

2.2. TESTAMENTO
O testamento pode ser utilizado para constituir um usufruto sobre a universalidade da

herança, uma quota dela, coisas ou direitos determinados. A lei qualifica como legatário o
usufrutuário, ainda que o seu direito incida sobre a totalidade do património (art. 2030º/4 CC).

2.3. USUCAPIÃO

Este modo de aquisição do usufruto assinala o reconhecimento da doutrina considerada mais


razoável a decorre naturalmente dos termos amplos em que é definido o âmbito da usucapião,

quando refere “a posse (…) de outros direitos reais de gozo” (art. 1287º CC).

123
FDUC – DIREITO DAS COISAS 2017/2018

Houve autores que argumentaram ser a posse de propriedade e de usufruto idênticas, sendo
impossível distingui-las, concluindo que o usufruto não poderia ser adquirido por usucapião.

Defendemos que o animus possidendi permite distinguir as duas situações possessórias,


sendo perfeitamente concebível a aquisição do usufruto por usucapião.

Também a nua propriedade pode ser adquirida por usucapião, sendo a posse exercida por
intermédio de outrem (art. 1252º/1 CC).

2.4. DISPOSIÇÃO DA LEI

Destacava-se o usufruto dos pais sobre os bens do filho menor legítimo e o usufruto do
cônjuge sobrevivo quando a sucessão legítima fosse deferida aos irmãos ou sobrinhos do de cujus. A

reforma de 1977 suprimiu estes casos de usufruto legais.

3. REGIME JURÍDICO (EM PARTICULAR, DIREITOS E OBRIGAÇÕES DO USUFRUTUÁRIO)

Os direitos e obrigações do usufrutuário são regulados pelo título constitutivo do usufruto.

Quando o título seja insuficiente ou no que não regular, aplicam-se as disposições do Código (art.
1445º CC).

O título constitutivo do usufruto pode ser flexível, desde que se respeite a estrutura básica do
direito definido no art. 1439º, sob pena de se violar a regra básica da tipicidade dos direitos reais

(art. 1306º CC).


É possível estabelecer-se variados poderes, excluir uma ou outra utilidade, com um limite: o

usufruto não pode incidir sobre a fruição de uma só utilidade. Isto subverteria o princípio segundo o
qual não há servidões pessoais. Fala-se de um tipo relativamente aberto e considera-se que nem
todas as disposições legais têm caráter supletivo, algumas são efetivamente imperativas.
Quando o título constitutivo não o faça, quanto aos direitos e obrigações do usufrutuário, aplicar-

se-ão as normas que definem o conteúdo do usufruto:


1. O art. 1466º dispõe que o usufrutuário pode usar, fruir e administrar a coisa ou o direito como

faria um bom pai de família, respeitando o seu destino económico. A expressão bom pai de família é
intencionalmente imprecisa: concede a necessária flexibilidade na apreciação contenciosa para que a

decisão judicial se possa adaptar às especificidades do caso sub judice. O usufrutuário tem, também,
de respeitar o destino económico da coisa, o que não se confunde com a não alteração da forma ou
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FDUC – DIREITO DAS COISAS 2017/2018
substância da coisa ou direito (art. 1439º CC). Esta limitação é uma decorrência da falta do direito de

dispor da coisa.

2. O nosso direito determina que é o momento da colheita (perceção) que assinala o direito à

aquisição dos frutos naturais. Compreende-se que o usufrutuário e o proprietário tenham direito aos
frutos colhidos, respetivamente, durante a vigência do usufruto e depois da sua extinção.

Mas há um tratamento discriminatório: o usufrutuário não é obrigado a abonar, ao proprietário,


as despesas de produção que este fez antes da constituição do usufruto; mas o proprietário é

obrigado a ressarci-lo dessas despesas relacionadas com os frutos que, depois da extinção do
usufruto, vier a colher (art. 1447º CC).

A lei presume que a vontade do instituidor se manifestaria no sentido de pretender que o


beneficiário do usufruto passe, logo após a instituição, a colher os frutos da coisa, daí o beneficiário

não o ter de abonar; para evitar um locupletamento do proprietário da raiz à custa do usufrutuário,
percebe-se que o primeiro tem de ressarcir o usufrutuário. Além disso, afasta a possibilidade de o

usufrutuário ser inerte com o aproximar do termo do usufruto (MOTA PINTO).

FRUTOS ALIENADOS ANTES DA COLHEITA


A art. 1448º dispõe que se os frutos tiverem sido alienados antes da colheita que só deve

ocorrer depois da extinção do usufruto, a alienação subsiste, mas o produto da alienação pertence
ao proprietário que deve indemnizar o usufrutuário das despesas de produção. Isto deriva do

princípio de que a titularidade dos frutos se determina no momento da colheita; evita o


locupletamento do proprietário à custa do beneficiário do usufruto, contribuindo para evitar a inércia

deste.

ACESSÕES

O art. 1449º determina que o usufruto abrange as coisas acrescidas e todos os direitos
inerentes à coisa usufruída. Se a acessão amplia a coisa objeto de propriedade, é natural que o

usufruto se amplie também.

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FDUC – DIREITO DAS COISAS 2017/2018

BENFEITORIAS ÚTEIS E VOLUPTUÁRIAS


O usufrutuário tem a faculdade de fazer estas benfeitorias na coisa usufruída desde que não

altere a sua forma ou substância nem o seu destino económico (art. 1450º/1 CC). Aplica-se-lhe o
regime do possuidor de boa fé (nº2). O proprietário não se pode opor a que o usufrutuário

introduza melhoramentos na coisa usufruída, desde que as obras não excedam os limites dos seus
poderes, nem alterem a forma ou substância da coisa nem o seu destino económico (PIRES DE LIMA

e ANTUNES VARELA).

COISAS CONSUMÍVEIS
O usufrutuário pode servir-se das coisas consumíveis ou aliená-las. No termo do usufruto, terá

de restituir o seu valor, se tiverem sido estimadas, ou outras do mesmo género, qualidade e
quantidade (podendo optar também por restituir o valor) se não forem estimadas (art. 1451º/1 CC).

Apesar de as coisas virem a ser consumidas, não se opera a transferência da propriedade das
coisas para o usufrutuário (art. 1451º/2 CC). Assim, o risco pelo perecimento da coisa antes de ser

consumida onera o proprietário da raiz e este poderá defender o seu direito real contra os credores
do usufrutuário (mediante embargos de terceiro, p.ex.).

COISAS DETERIORÁVEIS

O usufrutuário terá de as restituir no estado em que se encontrarem no fim do usufruto,


desde que as tenha utilizado para o fim que lhes era próprio e não tenha procedido com culpa. Terá

de responder pelo valor que tinham na conjuntura em que o usufruto começou se não as apresentar,
a não ser que tenham perdido todo o seu valor com o seu uso legítimo (art. 1452º/2 CC).

OUTROS

Nos arts. 1453º a 1456º CC, a lei dispõe sobre o usufruto de árvores e arbustos, de matas,
árvores de corte, plantas de viveiro. Existem problemas específicos relacionados com esta matéria,

principalmente no tocante ao usufruto de árvores de corte e matas.


O usufrutuário pode cortar árvores da mata sobre que incide o seu direito de usufruto,

enquanto se possam considerar frutos, mas já não quando essas árvores revistam a natureza de

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FDUC – DIREITO DAS COISAS 2017/2018
capital. As árvores que constituam capital são normalmente as árvores de renovação. Tal como num

pomar, o usufrutuário pode colher os frutos, mas não pode cortar as árvores, porque constituem
capital (vão voltar a dar frutos no futuro).

No art. 1457º CC prevê-se a possibilidade de usufruto sobre a exploração de minas; no art.


1458º CC, o usufruto sobre exploração de pedreiras.

O art. 1462º CC refere-se ao usufruto incidente sobre universalidades de animais.


O usufruto também poderá incidir sobre dinheiro, capitais levantados ou títulos de crédito. O

usufrutuário tem direito aos juros correspondentes à duração do usufruto e à fruição dos prémios ou
outras utilidades aleatórias produzidas pelo título. Além disto, também poderá incidir sobre títulos de

participação. Sobre isto dispõem os arts. 1464º a 1467º CC.

OBRIGAÇÕES DO USUFRUTUÁRIO

1. RELAÇÃO DE BENS E PRESTAÇÃO DE CAUÇÃO

O usufrutuário deve fazer uma relação de bens onde conste o seu estado e, se houver móveis, o

seu valor (art. 1468º/a) CC). Se o proprietário exigir, deve prestar caução para garantir a restituição
dos bens ou, se forem bens consumíveis, do seu valor, a reparação das deteriorações devidas a culpa

dele e o pagamento de qualquer outra indemnização ao proprietário (art. 1468º/b) CC).


A prestação de caução não é exigível se o usufruto tiver sido constituído per deductionem (art.
1469º CC). E o título constitutivo pode dispensar a caução, visto não estarmos perante um interesse
público.

O usufrutuário pode recusar prestar caução, podendo, neste caso, o proprietário exigir que os
imóveis sejam arrendados ou postos em administração; os móveis sejam vendidos ou lhe sejam

entregues; os capitais e a importância das vendas sejam dadas a juros ou utilizadas na aquisição de
títulos de crédito nominativos; etc. (art. 1470º/1 CC).

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FDUC – DIREITO DAS COISAS 2017/2018

2. OBRAS, MELHORAMENTOS E PLANTAÇÕES


O proprietário pode fazê-las, desde que não diminuam o valor do usufruto: ao usufrutuário

corresponde uma obrigação de tolerância (art. 1471º/1 CC). Todavia, o usufrutuário não é obrigado a
pagar os juros da soma paga pelo proprietário ou outra indemnização. Mas se aumentarem o

rendimento líquido da coisa usufruída, o aumento pertence ao proprietário (nº2).

3. REPARAÇÕES ORDINÁRIAS
O usufrutuário deve fazer as reparações ordinárias indispensáveis à conservação da coisa. O

critério é a finalidade da obra e a normalidade da sua causa: são ordinárias as reparações


indispensáveis à conversação da coisa, salvo se, no ano em que se tornarem necessárias excedam

dois terços do rendimento líquido desse ano (MOTA PINTO). Além disso, o usufrutuário deve pagar
as despesas de administração (art. 1472º CC). Pode eximir-se a esses encaros renunciando ao

usufruto.
A falta destas reparações pode dar lugar à sua execução específica, à obrigação de realizar as

reparações extraordinárias a que tenha dado causa ou à indemnização dos danos a que dê causa a
negligência do usufrutuário (art. 1473º/1 CC).

4. REPARAÇÕES EXTRAORDINÁRIAS

Estas já são responsabilidade do proprietário, exceto no caso de se tornarem necessárias por má


administração do usufrutuário. Mas este terá o dever de informar o proprietário da sua necessidade.

Se o proprietário, depois de avisado, não proceder à sua realização e revestirem utilidade real, o
usufrutuário pode fazê-las e exigir o pagamento das correspondentes despesas ou do valor que

tiverem no fim do usufruto se este valor for inferior ao custo (art. 1473º/2 CC).

5. IMPOSTOS
O titular do usufruto no momento do vencimento, deve pagar os impostos e outros encargos

anuais que incidam sobre o rendimento dos bens usufruídos (art. 1474º CC). Mas os impostos que
incidam sobre o capital são da responsabilidade do proprietário. Pode haver estipulação no título

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constitutivo no sentido de os impostos e outros encargos serem repartidos entre os interessados,

sem prejuízo das regras de direito fiscal.

6. INFORMAÇÕES

O usufrutuário é obrigado a informar o proprietário de qualquer facto de terceiro, sempre que


possa lesar os direitos daquele, sob pena de responder pelos danos que venha a sofrer (art. 1475º C).

Também estará obrigado a tomar outras providências que as circunstâncias imponham para a defesa
do direito do proprietário, de acordo com o modelo de diligência do bom pai de família (art. 1446º

CC).

4. EXTINÇÃO
As causas de extinção do usufruto vêm referidas no art. 1476º CC.

1. MORTE OU DECURSO DO TEMPO


O usufruto extingue-se por morte do usufrutuário ou no termo do prazo por que o direito foi

conferido, quando não seja vitalício (art. 1476º/1/a) CC).


É a manifestação do caráter pessoal do usufruto. Se o usufruto foi constituído a favor de

pessoa coletiva, a duração máxima é de 30 anos (art. 1443.º).


Se o usufruto for concedido a alguém até uma terceira pessoa completar certa idade, importa

distinguir: se não foi constituído em atenção à existência desse terceiro, o usufruto durará até ao
momento fixado, ainda que esta pessoa faleça antes; se foi concedido em atenção à existÊncia do

terceiro, cessa se falecer antes da idade assinalada (art. 1477.º).

2. CONFUSÃO
O usufruto extingue-se por reunião do usufruto e da propriedade na mesma pessoa (art.

1476º/1/b) CC). Ocorre uma situação semelhante à confusão, que se aplica no âmbito dos direitos de
crédito. Isto porque não pode haver encargos sobre coisa própria.

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FDUC – DIREITO DAS COISAS 2017/2018

3. NÃO USO
Pode também extinguir-se pelo não uso, durante vinte anos, independentemente do motivo

(art. 1476º/1/c) CC).


Aqui não se aplica o regime da prescrição extintiva, o que implicaria a aplicação de causas de

interrupção ou suspensão. Isto é assim pela orientação em sentido do interesse público de termo dos
direitos reais limitados. Logo que não estejam a cumprir a sua função, a lei põe-lhes um termo. Há

um interesse em fazer caducar os ius in re aliena.

4. PERDA
O usufruto extingue-se pela perda total da coisa usufruída (art.1476º/1/d) CC). Já a perda

parcial encontra-se prevista no art. 1478º CC, continuando o usufruto na parte restante.
Mas existe a hipótese, no nº2 do art. 1478º, da rei mutatio, quando a coisa não se perdeu

totalmente, nem parcialmente, mas foi objeto de uma mutação qualitativa (p.ex. um carro que se
transforma num monte de sucata). Nestas hipóteses, o CC consagrou que o usufrutuário mantém o

seu direito sobre a coisa transformada, mas que agora incide sobre coisa consumível.

5. RENÚNCIA
O usufrutuário pode renunciar ao seu direito (art. 1476º/1/e) CC). Esta renúncia é um mero

negócio jurídico unilateral, que não requer aceitação do proprietário.

6. MAU USO
Outra causa de extinção do usufruto encontra-se no art. 1482º CC. Em princípio, o usufruto

não se extingue pelo mau uso da coisa, a não ser quando o abuso se tornar consideravelmente
prejudicial ao proprietário, caso em que este pode exigir que a coisa lhe seja entregue, nos termos

desse artigo.
O usufruto não se extingue pelo mau uso, mas pode ser extinguido em espécie, no momento

em que o proprietário exigir a entrega da coisa e ficar obrigado a pagar anualmente a importância
do respetivo rendimento ao usufrutuário.

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5. NATUREZA JURÍDICA
A doutrina divide-se quando à natureza jurídica do direito de usufruto:

Existem autores que defendem que o usufruto é um desmembramento ou parcelamento da


propriedade (teoria do desmembramento da propriedade).

O Código de Seabra parecia aceitar esta doutrina, incluindo o usufruto na “propriedade


imperfeita” (MOTA PINTO).

Critica-se esta doutrina porque a propriedade tem traços qualitativos específicos que não podem
ser divididos.

Já a teoria da propriedade temporária considera que o nu-proprietário e o usufrutuário são


proprietários da coisa, mas com faculdades diferentes. A crítica considera isto inaceitável.

Finalmente, defendemos que se trata de um direito real autónomo, que onera a propriedade.

B) USO E HABITAÇÃO
1. NOÇÃO E CONFRONTO COM O USUFRUTO

O Código define o direito de uso como a faculdade de se servir de certa coisa alheia e haver
os respetivos frutos, na medida das necessidades quer dele quer da sua a família (art. 1484º/1 CC).

Quando se referir à casa de morada, chama-se direito de habitação (nº2).


No primeiro caso, o titular denomina-se usuário; no segundo, morador usuário (art. 1486.º)

Este direito abrange não só o usus, mas também o fructus, embora a sua designação possa
sugerir o contrário. Mas fá-lo apenas na medida das necessidades pessoais do seu titular e da sua

família.
Isto implica que se o direito de uso incidir sobre uma casa (chamando-se direito de habitação

neste caso), esta não pode ser arrendada, visto que o direito não engloba os frutos civis dela.
Se já estivermos perante um prédio rústico, aí já se engloba tanto a possibilidade de o cultivar,

como a de colher os respetivos frutos, possibilidades, ainda assim, limitadas pela medida das
necessidades do titular do direito e da sua família.

Torna-se importante delimitar o agregado familiar, que a lei faz através do art. 1487º CC.

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Uma nota fundamental do direito de uso e habitação é, então, o de se pautar pelas


necessidades pessoais, diversamente do que se verifica no usufruto, que concede uma fruição e um

uso globais e, em princípio, ilimitados.

Outra diferença reside no facto de, no usufruto, o direito poder ser trespassado, onerado,
arrendado, etc., enquanto que no direito de uso e habitação isto não é possível (art. 1488º CC).

Os direitos de uso e habitação são diminutivos do usufruto, razão pela qual se lhes aplica o
seu regime, quando conforme à natureza desses direitos (art. 1490º CC). Excetuam-se as disposições

acerca do trespasse, locação e oneração da coisa.

2. CONSTITUIÇÃO
Os direitos de uso e habitação constituem-se pelos mesmos modos que o usufruto, excetuando-

se a usucapião (art. 1485º CC). Ou seja, podem ser constituídos por contrato, testamento ou
disposição da lei.

Em relação à constituição por disposição da lei, são importantes os arts. 2013º-A, 2013º-B e
2013º-C. Também a lei nº6/2001 e a nº7/2001 contêm casos de direitos de uso e habitação.

3. REGIME JURÍDICO

Os direitos de uso e habitação são regulados pelo título constitutivo e aplicam-se os arts. 1485º e
ss. subsidiariamente. Além disso, são aplicáveis as disposições que regulam o usufruto, quando sejam

conformes à natureza dos direitos de uso e habitação. Isto significa que o usuário ou morador
usuário pode:

1. Usar, desde que respeite o destino económico da coisa. Está lhe vedado o gozo indireto, o
poder de dispor (trespassar, locar e onerar);

2. Fruir, mas com um limite: “na medida das necessidades quer do titular, quer da sua família”
(art. 1484º/1 CC).

Quanto às suas obrigações, deve: relacionar os bens e prestar caução, se lhe for exigida (art.
1468º e ss. CC); efetuar as reparações ordinárias, pagar as despesas de administração e os impostos

e outros encargos anuais que incidam sobre o rendimento da coisa, na proporção da sua fruição (art.

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1489º CC); avisar o proprietário da prática ou ameaça de atos lesivos da coisa por parte de terceiro

(art. 1475º CC); agir como um bom pai de família (art. 1446º CC); restituir a coisa, findo o seu direito
(art. 1483º CC); e está sujeito, com adaptações, às providências descritas no art. 1482º se fizer mau

uso da coisa.

4. NATUREZA JURÍDICA
A natureza do direito de uso e habitação parece ser, no fundo, a afetação destes direitos à função

de satisfazer necessidades pessoais.

C) DIREITO REAL DE HABITAÇÃO PERIÓDICA


1. NOÇÃO

Podemos defini-lo como o direito de usar, por um ou mais períodos certos, em cada ano, para
fins habitacionais, uma unidade de alojamento integrada num empreendimento turístico, mediante o

pagamento de uma prestação periódica ao proprietário do empreendimento ou a quem o


administre. É o chamado time sharing.

Foi um direito inspirado pela prática social concebida e fomentada pelas empresas imobiliárias
do setor turístico, que se tem desenvolvido bastante.

O dono do empreendimento é o proprietário.

2. FONTES DO REGIME JURÍDICO RESPETIVO


Este direito está previsto e regulado em legislação avulsa, nomeadamente no decreto-lei nº

275/93, de 5 de agosto

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CAPÍTULO IV – DIREITO DE SUPERFÍCIE


1. NOÇÃO E OBJETO

O CC define o direito de superfície como o direito que consiste na faculdade de construir ou


manter, perpétua ou temporariamente, uma obra em terreno alheio, ou de nele fazer ou manter

plantações (art. 1524º).


O titular do direito é o superficiário; o dono do solo, proprietário ou fundeiro; a coisa implantada,

implante.
A doutrina aprofunda a noção dada pelo CC.

Este direito incide sobre solo alheio e compreende a parte necessária à construção e aquela que,
embora não necessária, tenha utilidade para o uso da obra (art. 1525º CC). Pode também incidir sob

solo e sobre edifícios alheios.


O direito de construir sobre edifício alheio (sobreelevação) está sujeito às limitações impostas à

constituição da propriedade horizontal e quando esteja a obra realizada são-lhe aplicáveis as


restantes regras desta propriedade.

2. CONSTITUIÇÃO

O direito de superfície pode ser constituído por contrato, testamento, usucapião e pode resultar
da alienação de obra ou árvores já existentes, separadamente da propriedade do solo (art. 1528º

CC).

CONTRATO
O contrato pode revestir os mais variados tipos (compra e venda, doação, sociedade, contrato

inominado, etc.).
Deve constar de escritura pública ou de documento particular autenticado e ser registado.

TESTAMENTO

O testamento permite que o direito de superfície nasça de várias combinações: legado a certa
pessoa o direito de construir ou plantar e legado o solo a outra; legado a alguém do direito a

construir e devolução do direito sobre o solo aos herdeiros, etc. PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA
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entendem que se o de cujus for titular do direito de construir, haverá, em princípio, transmissão

mortis causa desse direito, independentemente de testamento.

USUCAPIÃO
Se a propriedade superficiária já estiver constituída a favor de alguém, não há dificuldade sobre a

possibilidade de um terceiro a adquirir por usucapião, bastando que possua nos termos necessários.
Mas se o direito de superfície ainda não estiver constituído, em causa está a aquisição do direito de

construir ou plantar apenas em relação ao futuro e, por isso, muitos autores recusam a possibilidade
de aquisição por usucapião. No entanto, a lei admite a usucapião sem nenhuma limitação.

3. A PROPRIEDADE DO SOLO

O direito de superfície (como o direito de propriedade do solo) é transmissível por ato inter vivos
e mortis causa (art. 1534º CC). Todavia, o proprietário do solo goza, em último lugar, do direito de

preferência na venda ou dação em cumprimento do direito de superfície (art. 1535º/1 CC).

O direito de preferência compreende-se porque, constituindo o direito de construir ou plantar em


terreno alheio, bem como o de aí manter obra ou árvores uma restrição à propriedade do solo,

proporciona a recuperação da sua plenitude.

4. DIREITOS E DEVERES DO SUPERFICIÁRIO E DO PROPRIETÁRIO DO SOLO

PROPRIETÁRIO DO SOLO
O proprietário do solo tem a faculdade de:
1. Usar e fruir a superfície, mas não pode impedir nem tornar mais onerosa a construção ou
plantação (art. 1532º CC);

2. Usar e fruir o subsolo, embora seja responsável pelo prejuízo causado ao superficiário em
consequência da sua exploração (art. 1533º CC);

3. Receber, em dinheiro, uma prestação única ou certa prestação anual, que pode ser

perpétua ou temporária (art. 1530º CC). Se a prestação for anual, estamos perante uma obrigação
real a cargo de quem for titular do direito de superfície na data do seu vencimento.

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SUPERFICIÁRIO

O superficiário tem a faculdade de:


1. Fazer construções ou plantações no terreno do proprietário do solo (no solo ou subsolo,

conforme o caso – art. 1524º CC);

2. Construir sobre edifício alheio, com as limitações da propriedade horizontal (art. 1526º CC);

3. Gozar a obra ou plantação feita (art. 1533º CC);

4. Dispor da coisa construída ou árvores plantadas;

5. Reconstruir ou renovar a plantação, no caso de destruição;

6. Utilizar as servidões necessárias ao uso e fruição da obra ou das árvores, sobre a restante

parte do prédio (art. 1539º/1 CC);

7. Ser indemnizado por caducidade do seu direito, segundo as regras do enriquecimento sem
causa (art. 1538º/2 CC); ou por expropriação do prédio (art. 1542º CC).

Em relação às suas obrigações, o superficiário deve:

1. Pagar a prestação convencionada no título constitutivo do direito de superfície (art. 1530º/1


CC), que é sempre em dinheiro (nº3);

2. Dar preferência ao proprietário do solo na venda ou dação em cumprimento do direito de


superfície (art. 1535º/1 CC). Deve dar-lhe conhecimento do projeto de alienação e das cláusulas do

respetivo contrato;

3. Responder pelas deteriorações da obra ou plantações, quando haja culpa da sua parte e
não houver lugar à indemnização prevista no art. 1538º/2.

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FDUC – DIREITO DAS COISAS 2017/2018

5. EXTINÇÃO

O direito de superfície extingue-se:


a) Se o superficiário não concluir a obra ou não fizer a plantação no prazo fixado, ou, na falta de

fixação, dentro do prazo de dez anos (art. 1536º/1/a) CC);


Esta limitação temporal justifica-se por o superficiário não mostrar interesse atendível e por um

interesse público em acabar com as restrições ao direito de propriedade.


b) Se, destruída a obra ou as árvores, o superficiário não reconstruir a obra ou não renovar a

plantação dentro dos mesmos prazos a contar da destruição (art. 1536º/1/b) CC).
c) Pelo decurso do prazo, se foi constituído por tempo certo (art. 1536º/1/c) CC);

d) Pela reunião, na mesma pessoa, dos direitos de superfície e de propriedade (art. 1536º/1/d)
CC);

e) Pelo desaparecimento ou inutilização do solo (art. 1536º/1/e) CC);

f) Pela expropriação por utilidade pública (art. 1536º/1/f) CC).

6. NATUREZA JURÍDICA

Existem várias posições doutrinais.


Segundo PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, que MOTA PINTO segue, a posição do superficiário
é complexa, sendo necessário distinguir duas faces: em relação à obra ou plantação, é ou virá a ser o
seu proprietário; em relação ao terreno ou solo, estamos perante um direito real de gozo autónomo.

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FDUC – DIREITO DAS COISAS 2017/2018

CAPÍTULO V – SERVIDÕES PREDIAIS


1. NOÇÃO E CARACTERÍSTICAS

Uma servidão predial consiste no encargo imposto num prédio em proveito exclusivo de outro
prédio pertencente a dono diferente. Chama-se serviente o prédio sujeito à servidão e dominante o

que dela beneficia (art. 1543º CC).


PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA observam que a servidão predial:

1. É um encargo (constitui uma restrição ou limitação ao direito de propriedade sobre o prédio


dito serviente);

2. Recai sobre um prédio (é uma restrição ao gozo do prédio serviente, inibindo o proprietário de

praticar os atos que possam prejudicar o exercício da servidão);

3. Beneficia outro prédio dito dominante;

4. Os prédios devem pertencer a donos diferentes.

Apontam-se como características a inseparabilidade (art. 1545º/ CC). A servidão há de ser

gozada através do prédio dominante e, por isso, não pode ser cedida independentemente do prédio
a que respeita. Se uma servidão de passagem se deslocar de um prédio para outro, a antiga servidão
extingue-se e constitui-se uma nova (MOTA PINTO).

Outra característica apontada é a indivisibilidade (art. 1546º CC).


A servidão tem um conteúdo atípico (art. 1544º CC). A utilidade que a servidão proporciona

consiste numa vantagem que, muitas vezes, aumenta o valor económico do prédio dominante. Mas
não é forçosamente assim, como no caso da servidão de vistas ou de não edificação.

A servidão tem necessariamente de incidir sobre um prédio em benefício do outro. Por isso, se
se tratar da fruição de utilidades em benefício pessoal, e não por intermédio de um prédio

dominante, estaremos perante uma relação obrigacional (ex.: direito de passear em prédio alheio).

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2. BREVE DESCRIÇÃO DO REGIME JURÍDICO: CONSTITUIÇÃO E MODALIDADES DAS

SERVIDÕES PREDIAIS
As servidões prediais podem ser constituídas por contrato, testamento, usucapião ou destinação

do pai de família (art. 1547º/1 CC). Na falta de constituição voluntária, podem ainda ser constituídas
por sentença judicial ou decisão administrativa (nº2).

As servidões podem ser voluntárias, se forem constituídas por ato voluntário, ou legais, quando
o seu titular tenha um direito potestativo que lhe confira a faculdade de constituir uma servidão

sobre determinado prédio e o exerça, passando nesse momento a ser uma verdadeira servidão.
Dentro das servidões legais temos servidões de passagem (art. 1550º CC), que só recai sobre

prédios rústicos e não sobre urbanos; servidões de água (arts. 1557º a 1563º CC).
As servidões podem ser aparentes e não aparentes. Distinguem-se por só aquelas se revelarem

por obras ou sinais exteriores que, além de visíveis, devem ser permanentes (art. 1548º/2 CC). A
visibilidade destina-se a garantir a não clandestinidade. Esta classificação é importante para efeitos

de usucapião, que só é admissível quanto às servidões aparentes (art. 1548º/1 CC).


Finalmente, as servidões podem ser positivas, negativas e desvinculativas. As positivas

traduzem-se na permissão de atos sobre o prédio serviente, sendo caso paradigmático a servidão de
passagem. As servidões negativas impõem uma abstenção ao dono do prédio serviente, como a

servidão de vistas ou de não edificar. Por sua vez, as desvinculativas libertam o prédio dominante de
restrições legais. Serve de exemplo a proibição de emissão de fumos sobre o prédio alheio (art.

1346º CC), em que os donos dos prédios acordam em que seja tolerada a emissão de fumos.

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