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Dinis Abrantes Figueiredo

Direito das Coisas

Ano letivo de 2022/2023


Parte Geral
1. Distinção entre Direito das Coisas e Direito das Obrigações
Dentro do Direito Civil Patrimonial, importa estabelecer uma distinção entre Direito
das Obrigações e Direito das Coisas:
- O Direito das Obrigações consiste no conjunto de normas jurídicas que regulam o
acesso às coisas, cuja utilização depende do cumprimento de uma obrigação assumida e
da realização de uma prestação à qual o devedor ficou adstrito perante o credor.
- O Direito das Coisas consiste no conjunto de normas jurídicas que regulam o poder
direto e imediato sobre as coisas, cujo exercício não depende do cumprimento de
qualquer obrigação assumida nem da realização de qualquer prestação.
Nota fundamental:
Enquanto que a expressão “Direito das Coisas” refere-se ao ramo do Direito que
regula o poder direto e imediato sobre as coisas, a expressão “direitos reais” refere-
se às relações jurídico-reais.

2. Distinção entre direitos reais e direitos de crédito


De acordo com o artigo 397º CC, poder-se-á definir o direito de crédito como sendo o
vínculo jurídico por virtude do qual uma pessoa (o credor) pode exigir de outra (o
devedor) a realização de determinada prestação que pode ter por objeto uma coisa
(prestação de dare), uma ação (prestação de facere) ou uma omissão (prestação de non
facere). Já no que toca à definição de direito real, a questão não é pacífica. Ao longo da
história, a doutrina tentou definir os direitos reais por contraposição aos direitos de
crédito, dando origem a quatro teorias fundamentais:
2.1 Teoria realista clássica
De acordo com a teoria realista clássica, o direito real é o poder direto e imediato de
uma pessoa sobre uma coisa, distinguindo-se do direito de crédito pelos seguintes
motivos:
1) Enquanto que a relação jurídico-real se traduz numa relação entre uma pessoa e uma
coisa, a relação jurídico-creditória traduz-se numa relação entre pessoas.
2) Enquanto que na relação jurídico-real o titular do direito real não necessita da
colaboração de ninguém para satisfazer o seu interesse (satisfazendo-o através do
exercício de um poder direto e imediato sobre a coisa objeto do seu direito real), na
relação jurídico-creditória o credor necessita da colaboração do devedor para satisfazer
o seu interesse (tendo este que cumprir a obrigação assumida e realizar a prestação à
qual ficou adstrito perante aquele).
3) Enquanto que a relação jurídico-real é uma relação simples, linear e não-
intersubjetiva (relação entre uma pessoa e uma coisa), a relação jurídico-creditória é
uma relação complexa, triangular e intersubjetiva (relação entre pessoas).
Nota fundamental:
A conceção de “direito real” segundo a teoria realista clássica tem a sua origem no
Direito Processual Romano, mais concretamente numa distinção entre a actio in
personam (ação através da qual o autor pretendia exigir a realização de determinada
prestação a determinada pessoa) e a actio in rem (ação através da qual o autor
pretendia fazer valer direitos que incidiam direta e imediatamente sobre
determinada coisa), tendo sido formulada pela Escola dos Glosadores e
desenvolvida pela Escola dos Comentadores.

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2.2 Teoria personalista
No século XIX, inspirada pelo pensamento kantiano, surgiu a teoria personalista que
dirigiu duas críticas fundamentais à teoria realista clássica:
1) Crítica à não-intersubjetividade: Segundo os personalistas, todas as relações
jurídicas, incluindo as relações jurídico-reais, traduzem-se em relações intersubjetivas
(ou seja, entre pessoas). Acontece que os realistas não conseguiram identificar o sujeito
passivo da relação jurídico-real, o que os levou a conceber tal relação como uma relação
não-intersubjetiva (ou seja, entre uma pessoa e uma coisa). No entanto, embora não haja
um sujeito passivo individualizado, a verdade é que há uma multidão de sujeitos
passivos que estão adstritos ao cumprimento de uma obrigação passiva universal, não
podendo interferir na coisa objeto do direito real titulado pelo sujeito ativo. Deste modo,
a relação jurídico-creditória traduzir-se-ia numa relação entre o credor que é titular de
um direito de crédito (sujeito ativo) e o devedor adstrito ao cumprimento de uma
obrigação, geralmente de conteúdo positivo (sujeito passivo), enquanto que a relação
jurídico-real traduzir-se-ia numa relação entre o titular de um direito real (sujeito ativo)
e terceiros adstritos ao cumprimento de uma obrigação de conteúdo negativo, ou seja,
uma obrigação passiva universal (sujeitos passivos).
→ Pelo exposto, de acordo com a teoria personalista, o direito real é o poder conferido
ao respetivo titular de excluir terceiros, adstritos ao cumprimento de uma obrigação
passiva universal, de qualquer interferência na coisa objeto do seu direito.
2) Crítica ao núcleo essencial: Segundo os personalistas, o poder direto e imediato (no
sentido de poder material) sobre uma coisa não pode ser considerado como o núcleo
essencial das relações jurídico-reais, essencialmente por três razões:
1. Primeiro, existem direitos reais que não envolvem um poder direto e imediato
sobre uma coisa (ex. hipoteca).
→ De facto, a hipoteca é um direito real de garantia que não envolve um poder direto e
imediato (no sentido de poder material) sobre uma coisa, não podendo o seu titular
(credor hipotecário) usar, fruir, dispor da coisa. No entanto, o credor hipotecário tem o
poder direto e imediato de ser pago pelo valor de certas coisas imóveis, ou equiparadas,
pertencentes ao devedor ou a terceiro, com preferência sobre os demais credores que
não gozem de privilégio especial ou de prioridade de registo (686º, n. 1 CC).
2. Segundo, existem direitos reais que envolvem um poder direto e imediato sobre
uma coisa, não sendo, todavia, através do exercício desse poder que o respetivo titular
satisfaz o seu interesse (ex. penhor).
→ De facto, o credor pignoratício não satisfaz o seu interesse através do exercício de
um poder direto e imediato (no sentido de poder material) sobre uma coisa. No entanto,
o credor pignoratício tem o poder direto e imediato de satisfazer o seu crédito, bem
como os juros, se os houver, com preferência sobre os demais credores, pelo valor de
certa coisa móvel, ou pelo valor de créditos ou outros direitos não suscetíveis de
hipoteca, pertencentes ao devedor ou a terceiro (666º, n. 1 CC).
3. Terceiro, existem direitos que, apesar de não serem reais, envolvem um poder
direto e imediato sobre uma coisa (ex. direito do comodatário ou do arrendatário).
2.3 Teoria eclética
Mais tarde, surgiu a teoria eclética que veio afirmar que, enquanto que os realistas
sobrevalorizam o conteúdo do direito real e desvalorizam o momento da sanção (uma
vez que não explicam como se tutela o direito real), os personalistas desvalorizam o
conteúdo do direito real e sobrevalorizam o momento da sanção (uma vez que não
explicam em que consiste o poder de exclusão de terceiros de qualquer interferência na
coisa objeto de um direito real). Segundo os ecléticos, seria necessário ter em
consideração tanto o conteúdo (lado interno) como o momento da sanção (lado externo)
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das relações jurídico-reais. Por conseguinte, socorrendo-se dos contributos fornecidos
pelas teorias realista clássica e personalista, a teoria eclética define o direito real como
sendo o poder direto e imediato que incide sobre uma coisa e que é eficaz em relação a
terceiros, adstritos ao cumprimento de uma obrigação passiva universal – eficácia
absoluta ou erga omnes. Por sua vez, o direito de crédito é definido como sendo o poder
que incide imediatamente sobre um determinado comportamento humano e
mediatamente sobre uma coisa e que é eficaz em relação ao(s) devedor(es), adstrito(s)
ao cumprimento de um dever de prestação – eficácia relativa ou inter partes.
2.4 Teoria realista renovada
A posição adotada neste Curso relativamente à definição do direito real tem por
referência a teoria realista renovada, baseada em Henrique Mesquita, segundo a qual o
direito real é definido como sendo, por um lado, o poder direto e imediato do respetivo
titular sobre a coisa objeto do seu direito (1) e, por outro lado, como a fonte de
obrigações de conteúdo positivo (de dare ou de facere) que recaem sobre o titular do
direito real, pelo simples facto de o ser (as designadas obrigações reais) (2).
1) Poder direto e imediato do titular do direito real sobre a coisa objeto do seu direito:
O núcleo essencial do direito real é composto pelo poder direto e imediato do respetivo
titular sobre a coisa objeto do seu direito. Desta afirmação resultam duas consequências:
- Por um lado, o direito real é um direito absoluto, ou seja, o titular do direito real
satisfaz o seu interesse através do exercício de um poder direto e imediato sobre a coisa
objeto do seu direito, não necessitando da colaboração de ninguém para esse efeito,
falando-se de soberania positiva.
- Por outro lado, o direito real tem uma eficácia erga omnes, ou seja, pelo facto de
o titular do direito real satisfazer o seu interesse através do exercício de um poder direto
e imediato sobre a coisa objeto do seu direito, tal implica a exclusão de terceiros,
adstritos ao cumprimento de um dever geral de abstenção, de qualquer interferência na
coisa objeto do seu direito, falando-se de soberania negativa.
É com base nestas duas afirmações que se dirigem críticas às teorias anteriores:
→ Teoria personalista:
1. A teoria personalista despreza o conteúdo e sobrevaloriza o momento da sanção das
relações jurídico-reais (uma vez que não explica em que consiste o poder de exclusão de
terceiros de qualquer interferência na coisa objeto de um direito real).
2. O núcleo essencial do direito real é composto pelo poder direto e imediato do
respetivo titular sobre uma coisa objeto do seu direito, sendo através do seu exercício
que ele satisfaz o seu interesse, não necessitando da colaboração de ninguém para esse
efeito. Logo, as relações jurídico-reais traduzem-se em relações não-intersubjetivas.
3. Pelo facto de o titular do direito real satisfazer o seu interesse através do exercício de
um poder direto e imediato sobre a coisa objeto do seu direito, tal implica a exclusão de
terceiros, adstritos ao cumprimento de um dever geral de abstenção (pois não existe
qualquer relação intersubjetiva), de qualquer interferência na coisa objeto do seu direito.
4. Não é necessário recorrer à intersubjetividade para explicar os seguintes conflitos de
direitos reais:
-» Concurso de direitos reais: O concurso de direitos reais existe quando sobre uma
mesma coisa incide mais do que um direito real, quer em causa estejam direitos reais de
categoria diferente (ex. um direito de propriedade e uma hipoteca sobre um prédio),
quer em causa estejam direitos reais da mesma categoria mas de conteúdo diferente (ex.
uma servidão de passagem e uma servidão de aqueduto sobre um prédio), quer em causa
estejam direitos reais da mesma categoria e conteúdo (ex. várias servidões de passagem
sobre um prédio). Para possibilitar a coexistência de mais do que um direito real sobre

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uma mesma coisa e evitar conflitos entre os respetivos titulares, a lei não regula relações
entre os titulares dos diversos direitos reais. O que a lei faz é fixar os poderes que cada
direito real confere ao seu titular e os limites dentro dos quais tais poderes podem ser
exercidos. Sendo assim, é através do exercício de tais poderes dentro dos limites fixados
pela lei que cada um dos titulares dos direitos reais cumpre o dever geral de abstenção
ao qual está adstrito, e não por força de uma qualquer relação intersubjetiva existente
entre eles.
-» Relações de vizinhança: As relações de vizinhança existem quando existem dois
bens imóveis confinantes sobre os quais incide, respetivamente, um direito de
propriedade. Para evitar conflitos entre os titulares dos direitos reais no âmbito de
relações de vizinhança, a lei não regula relações entre os titulares dos diversos direitos
reais. O que a lei faz é estabelecer uma regulamentação que, nuns casos, determina que
os limites do direito de propriedade fiquem aquém dos limites materiais da coisa (ex.
1360º, n. 1 CC) e, noutros casos, determina que os limites do direito de propriedade
fiquem além dos limites materiais da coisa (ex. 1346º CC). Sendo assim, é através do
exercício de tais poderes dentro do quadro regulatório estabelecido pela lei que cada um
dos titulares dos direitos reais cumpre o dever geral de abstenção ao qual está adstrito, e
não por força de uma qualquer relação intersubjetiva existente entre eles.
→ Teoria eclética:
De facto, o núcleo essencial do direito real é composto pelo poder direto e imediato do
respetivo titular sobre uma coisa objeto do seu direito. No entanto, não é através do
cumprimento de uma obrigação passiva universal por parte de terceiros que o titular do
direito real satisfaz o seu interesse. Ele satisfaz o seu interesse através do exercício de
um poder direto e imediato sobre a coisa objeto do seu direito e é pelo facto de ele
satisfazer dessa forma o seu interesse que tal implica a exclusão de terceiros, adstritos
ao cumprimento de um dever geral de abstenção (pois não existe qualquer relação
intersubjetiva), de qualquer interferência na coisa objeto do seu direito.
→ Teoria realista clássica:
1. A teoria realista clássica sobrevaloriza o conteúdo e despreza o momento da sanção
das relações jurídico-reais (uma vez que não explica como se tutela o direito real).
2. Através da teoria realista clássica, não se consegue distinguir os direitos reais de gozo
dos direitos pessoais de gozo, uma vez que tanto os titulares daqueles como os titulares
destes satisfazem o seu interesse através do exercício de um poder direto e imediato
sobre uma coisa, não necessitando da colaboração de ninguém para esse efeito. Sendo
assim, para os distinguir, torna-se necessário indicar a fonte dos poderes que ambos
conferem aos seus titulares e os efeitos que produzem na respetiva relação jurídica:
- Direito pessoal de gozo: O poder direto e imediato sobre uma coisa objeto de um
direito pessoal de gozo advém de uma relação jurídico-creditória intersubjetiva, tendo,
consequentemente, uma eficácia relativa ou inter partes.
- Direito real de gozo: O poder direto e imediato sobre uma coisa objeto de um
direito real de gozo advém de uma relação jurídico-real não-intersubjetiva, tendo,
consequentemente, uma eficácia absoluta ou erga omnes.
-» Exemplo: A é proprietário de dois apartamentos. Quanto a um deles, constitui um
usufruto a favor de B (direito real de gozo). Quanto ao outro, celebra um contrato de
locação com C (direito pessoal de gozo). Neste caso, se A resolver vender os dois
apartamentos, o novo proprietário do apartamento sobre o qual foi constituído um
usufruto terá de respeitar o usufruto (advém de uma relação jurídico-real, tendo eficácia
absoluta ou erga omnes), mas já não terá de respeitar a locação (advém de uma relação
jurídico-creditória, tendo uma eficácia relativa ou inter partes).

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2) Fonte de obrigações reais que recaem sobre o titular do direito real:
Para além de um poder direto e imediato do titular de um direito real sobre a coisa
objeto do seu direito, o direito real é a fonte de obrigações de conteúdo positivo (de
dare ou de facere) que recaem sobre o titular do direito real, pelo simples facto de o ser
(as designadas obrigações reais). → remissão para o ponto 7

3. Consequências resultantes da conceção de “direito real” segundo a


teoria realista renovada
Da conceção de direito real segundo a teoria realista renovada resultam quatro
consequências:
3.1 Inerência
Uma vez que o titular do direito real satisfaz o seu interesse através do exercício de um
poder direto e imediato sobre a coisa objeto do seu direito, não necessitando da
colaboração de ninguém para esse efeito (soberania positiva), diz-se que o direito real
adere à coisa que dele é objeto, sendo-lhe inerente.
Da característica da inerência resultam cinco consequências fundamentais:
1. A perda total da coisa objeto do direito real gera a extinção do direito real que sobre
ela direta e imediatamente incide. Exemplos:
- 730º, al. c) CC: A hipoteca extingue-se pelo perecimento da coisa hipotecada. Este
artigo é aplicável ao penhor (677º CC), aos privilégios creditórios especiais (752º CC) e
ao direito de retenção (761º CC).
- 1476º, al. d) CC: O usufruto extingue-se pela perda total da coisa usufruída. Este
artigo é aplicável ao direito de uso e ao direito de habitação (1485º CC).
- 1536º, n. 1, al. e) CC: O direito de superfície extingue-se pelo desaparecimento do
solo.
2. A perda parcial da coisa objeto do direito real não gera a extinção do direito real que
sobre ela direta e imediatamente incide, continuando o direito real a incidir direta e
imediatamente sobre a parte restante da coisa. Exemplos:
- 1428º, n. 2 CC: Se a destruição atingir menos de ¾ do edifício, pode a assembleia
deliberar, pela maioria do número dos condóminos e do capital investido no edifício, a
reconstrução deste.
- 1478º, n. 1 CC: Se a coisa ou direito usufruído se perder só em parte, continua o
usufruto na parte restante.
3. O direito real não pode ser transferido de uma coisa para outra. Exemplos:
- 1545º, n. 1 CC: Salvas as exceções previstas na lei, as servidões não podem ser
separadas dos prédios a que pertencem, ativa ou passivamente.
- Não é possível transferir o direito de usufruto constituído sobre o prédio X para o
prédio Y. Neste caso, ter-se-ia de extinguir o direito de usufruto que incidia sobre o
prédio X e constituir um novo direito de usufruto sobre o prédio Y.
4. A transformação da coisa objeto do direito real não gera a extinção do direito real
que sobre ela direta e imediatamente incide. Exemplos:
- 1478º, n. 2 CC: No caso de a coisa se transformar noutra que ainda tenha valor,
embora com finalidade económica distinta, continua o usufruto.
- 1479º, n. 1 CC: Se o usufruto for constituído em algum prédio urbano e este for
destruído por qualquer causa, tem o usufrutuário direito a desfrutar o solo e os materiais
restantes.
- O proprietário de um prédio rústico decidiu nele construir uma casa de habitação.
Neste caso, o direito de propriedade continua a incidir direta e imediatamente sobre a
coisa que deixou de ser um prédio rústico e passou a ser um prédio urbano.

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5. O desaparecimento da coisa objeto do direito real e o surgimento de outra coisa em
seu lugar gera a extinção do direito real que direta e imediatamente incidia sobre a coisa
que desapareceu e a constituição de um novo direito real que passa a incidir direta e
imediatamente sobre a coisa que surgiu. Exemplos:
- 692º, n. 1 CC: Se a coisa ou direito hipotecado se perder, deteriorar ou diminuir de
valor, e o dono tiver direito a ser indemnizado, os titulares da garantia conservam, sobre
o crédito respetivo ou as quantias pagas a título de indemnização, as preferências que
lhes competiam em relação à coisa onerada.
- 1480º, n. 1 CC: Se a coisa ou direito usufruído se perder, deteriorar ou diminuir de
valor, e o proprietário tiver direito a ser indemnizado, o usufruto passa a incidir sobre a
indemnização.
3.2 Forte tutela
Uma vez que a satisfação do interesse do titular do direito real através do exercício de
um poder direto e imediato sobre a coisa objeto do seu direito implica a exclusão de
terceiros, adstritos ao cumprimento de um dever geral de abstenção, de qualquer
interferência naquela coisa (soberania negativa), diz-se que o direito real goza de uma
forte tutela. Sendo assim, se um terceiro violar o dever geral de abstenção ao qual está
adstrito, o titular do direito real torna-se titular de uma pretensão real, podendo exigir ao
terceiro a eliminação da situação material contrária ao estatuto do seu direito real,
independentemente de o terceiro ter atuado com culpa e ter causado danos.
As pretensões reais são exercidas através de três tipos de ações:
1. Ação de reivindicação: A ação de reivindicação é intentada quando em causa esteja
uma situação de posse ou mera detenção ilegítimas da coisa por parte de terceiro,
formulando-se dois pedidos:
- Reconhecimento do direito real
- Restituição da coisa
-» Exemplo: A, regressando das férias, verifica que a sua casa se encontra ocupada.
2. Ação negatória: A ação negatória é intentada quando em causa esteja a prática de
atos de interferência na coisa por parte de terceiro, formulando-se três pedidos:
- Declaração da inexistência de qualquer direito na esfera jurídica do terceiro que
legitime a prática de atos de interferência na coisa (função declarativa)
- Condenação do terceiro na eliminação da situação material contrária ao estatuto do
direito real (função reparadora)
- Condenação do terceiro na abstenção da prática de novos atos de interferência na
coisa, caso exista o fundado receio da prática de novos atos de interferência na coisa
(função preventiva)
-» Exemplo: B decide plantar eucaliptos no terreno de A, embora não tenha sido
celebrado qualquer acordo entre eles.
3. Ação de simples apreciação: A ação de simples apreciação é intentada quando esteja
em causa uma situação de incerteza quanto à titularidade de determinado direito real.
-» Exemplo: B anda a afirmar que é proprietário do imóvel X.

Nota fundamental:
Quando o terceiro violar um dever geral de abstenção (facto ilícito), com culpa e ter
causado danos, acrescenta-se mais um pedido:
- Condenação do terceiro no cumprimento de uma obrigação de indemnização

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3.3 Sequela
Uma vez que a satisfação do interesse do titular do direito real através do exercício de
um poder direto e imediato sobre a coisa objeto do seu direito implica a exclusão de
terceiros, adstritos ao cumprimento de um dever geral de abstenção, de qualquer
interferência naquela coisa (soberania negativa), diz-se que o titular do direito real pode
exercer sequela que consiste no poder conferido ao titular do direito real de perseguir a
coisa onde ela se encontre quando esteja privado do exercício de poderes diretos e
imediatos sobre ela.
-» Exemplo: A constitui um usufruto a favor de B sobre uma casa e resolve impedi-
lo de usar a casa. B pode exercer sequela.
-» Exemplo: A, dono do hotel X, e B, dono do hotel Y, celebram um contrato de
construção de uma passagem, de forma a que os hóspedes deste possam usar a piscina e
o campo de futebol que naquele existem. Acontece que, a certa altura, A resolve fechar
a passagem. B pode exercer sequela.
3.3.1 Artigo 5º do Código do Registo Predial e artigo 291º do Código Civil
Por vezes, surgem indicadas como exceções à sequela as soluções que decorrem dos
artigos 5º do CRP e 291º CC. No entanto, dever-se-á entender que estas normas não
são verdadeiras exceções à sequela, mas antes exceções ao princípio nemo plus iuris.
Artigo 5º do Código do Registo Predial
De acordo com o artigo 5º, n. 1 e 4 do CRP, os factos sujeitos a registo só produzem
efeitos contra terceiros [terceiros, para efeitos de registo, são aqueles que tenham
adquirido de um autor comum direitos incompatíveis entre si] depois da data do
respetivo registo.
-» Exemplo: Imagine-se que A vende um bem móvel a B e, dias depois, vende o
mesmo bem móvel a C. Por força do princípio da consensualidade consagrado no
artigo 408º, n. 1 CC, B tornou-se titular de um direito real sobre o bem móvel com
eficácia erga omnes, ficando terceiros adstritos ao cumprimento de um dever geral de
abstenção. Por conseguinte, a venda da coisa a C é nula (892º CC).
-» Exemplo: Imagine-se que A vende um bem imóvel ou bem móvel sujeito a registo
a B, não tendo este registado a aquisição do direito real, e vende o mesmo bem imóvel
ou bem móvel sujeito a registo a C, registando este a aquisição do direito real. Por força
do princípio da consensualidade consagrado no artigo 408º, n. 1 CC, a transferência de
direitos reais sobre coisa determinada dá-se por mero efeito do contrato. Sendo assim, B
tornou-se titular de um direito real sobre o bem imóvel ou bem móvel sujeito a registo
com eficácia erga omnes, ficando terceiros adstritos ao cumprimento de um dever geral
de abstenção. Por conseguinte, quando A vende o bem imóvel ou bem móvel sujeito a
registo a C, celebra um negócio nulo, uma vez que vende uma coisa alheia (892º CC).
No entanto, por força do artigo 5º CRP, B deveria ter consolidado a oponibilidade erga
omnes do direito real em relação a terceiros para efeitos de registo, procedendo ao
registo da respetiva aquisição. Uma vez que B não registou a aquisição do direito real
sobre a coisa em questão, e tendo em consideração que não podem existir dois direitos
incompatíveis entre si, tal aquisição é inoponível em relação a C que, por ter registado, é
reconhecido pela ordem jurídica como o titular do direito real sobre a coisa em questão.
→ De acordo com alguns autores, para além de uma exceção ao princípio nemo plus
iuris (uma vez que A transfere um direito que não tem), o artigo 5º CRP seria uma
exceção à característica da sequela (uma vez que B não pode perseguir a coisa onde ela
se encontre). Porém, o que realmente acontece é que B não pode perseguir a coisa onde
ela se encontre porque deixou de ser titular do direito real sobre a coisa em questão.
Pelo exposto, conclui-se que do artigo 5º CRP não decorre uma exceção à sequela.

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Nota fundamental:
A transfere o direito de propriedade sobre um imóvel a B e, por este não o registar,
transfere o mesmo direito de propriedade sobre o mesmo imóvel a C que regista.
Neste caso, uma vez que se está perante uma incompatibilidade total de direitos
(propriedade-propriedade), tal implica a extinção do direito de propriedade de B
que não foi registado, sendo C reconhecido pela ordem jurídica como o titular do
direito de propriedade sobre a coisa em questão.
A transfere o direito de propriedade sobre um imóvel a B e, por este não o registar,
constitui um usufruto ou uma hipoteca sobre o mesmo imóvel a C que regista.
Neste caso, uma vez que se está perante uma incompatibilidade parcial de direitos
(propriedade-usufruto/hipoteca), tal não implica a extinção do direito de
propriedade de B que não foi registado, mas este vê o seu direito de propriedade
onerado pelo usufruto registado por C.

Artigo 291º do Código Civil


De acordo com o artigo 291º CC, a declaração de nulidade ou a anulação do negócio
jurídico (1) que respeite a bens imóveis, ou a móveis sujeitos a registo (2), não prejudica
os direitos adquiridos sobre os mesmos bens (3), a título oneroso (4), por terceiro de
boa-fé (5), se o registo da aquisição for anterior ao registo da ação de nulidade ou
anulação ou ao registo do acordo entre as partes acerca da invalidade do negócio (6),
sendo que os direitos de terceiro não são reconhecidos se a ação for proposta e registada
dentro dos três anos posteriores à conclusão do negócio (7).
-» Exemplo: Imagine-se que A vende um bem imóvel ou bem móvel sujeito a registo
a B, sendo que este negócio é inválido. Sendo assim, por força do artigo 289º CC, B
não se tornou titular do direito real sobre a coisa em questão. Imagine-se, todavia, que B
vende o mesmo bem imóvel ou bem móvel sujeito a registo a C. Por força do artigo
291º CC, uma vez verificados determinados requisitos, o negócio celebrado entre B e C
não será afetado pela eficácia retroativa da nulidade ou da anulabilidade do negócio
celebrado entre A e B e, por conseguinte, C será reconhecido pela ordem jurídica como
o titular do direito real sobre a coisa em questão.
→ De acordo com alguns autores, para além de uma exceção ao princípio nemo plus
iuris (uma vez que B transfere um direito que não tem), o artigo 291º CC seria uma
exceção à característica da sequela (uma vez que A não pode perseguir a coisa onde ela
se encontre). Porém, o que realmente acontece é que A não pode perseguir a coisa
porque deixou de ser titular do direito real sobre a coisa em questão.
Pelo exposto, conclui-se que do artigo 291º CC não decorre uma exceção à sequela.
3.3.2 Máxima “posse vale título”
A máxima “posse vale título” significa que aquele que, atuando de boa-fé, adquire um
bem móvel não-sujeito a registo de um comerciante ou em mercado aberto, torna-se
titular de um direito real sobre aquela coisa, ainda que a pessoa que o transmitiu não
tenha sido o seu titular.
→ Apesar de a máxima “posse vale título” não se encontrar consagrada em Portugal, de
acordo com alguns autores, ela seria uma exceção à característica da sequela, uma vez
que o efetivo titular do direito real não pode perseguir a coisa onde ela se encontre.
Porém, o que realmente acontece é que o efetivo titular do direito real não pode
perseguir a coisa porque deixou de ser titular do direito real sobre a coisa em questão.
Pelo exposto, conclui-se que da máxima “posse vale título” não decorre uma
exceção à sequela.

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3.4 Preferência/Prevalência
Tradicionalmente, falava-se em preferência ou prevalência para exprimir a ideia de, em
caso de conflito, os direitos reais prevalecerem sobre os direitos reais que tenham sido
posteriormente constituídos, bem como sobre os direitos de crédito ou os direitos
pessoais de gozo, mesmo que anteriormente constituídos.
1) Quanto aos direitos reais de gozo: Em caso de conflito entre um direito real de
gozo e um direito real de gozo posteriormente constituído, não faz sentido falar de
preferência/prevalência.
-» Exemplo: A vende um bem imóvel a B, não tendo este registado a aquisição do
direito real, e, dias depois, vende o mesmo bem imóvel a C, que regista a aquisição do
direito real. Neste caso, não faz sentido falar de preferência, uma vez o direito de
propriedade titulado por C só prevalece porque B não é titular de nenhum direito de
propriedade.
2) Quanto aos direitos de crédito e direitos pessoais de gozo: Em caso de conflito
entre um direito real e um direito de crédito ou um direito pessoal de gozo
anteriormente ou posteriormente constituídos, não faz sentido falar de
preferência/prevalência.
-» Exemplo: A celebra um contrato de comodato que tem por objeto uma coisa a
favor de B (direito pessoal de gozo) e, simultaneamente ou posteriormente, constitui um
usufruto sobre a mesma coisa a favor de C (direito real de gozo). Neste caso, não faz
sentido falar de prevalência, uma vez que o direito real só prevalece porque tem eficácia
erga omnes, enquanto que o direito pessoal de gozo tem eficácia inter partes.
3) Quanto aos direitos reais de garantia: Em caso de conflito entre um direito real de
garantia e um direito real de garantia posteriormente constituído, faz sentido falar de
preferência/prevalência, uma vez que uma mesma coisa pode servir de garantia a mais
de um crédito. Deste modo, coloca-se a questão de saber qual dos credores deve ser
pago com preferência sobre os demais credores, cuja resposta é oferecida, passe a
redundância, pela característica da preferência/prevalência.
-» Exemplo: A, proprietário de um grande palacete, celebrou em 2000 um contrato
com o Banco X para fazer obras, tendo este exigido a constituição de uma hipoteca
sobre o palacete. Em 2020, A contraiu um empréstimo com o Banco Y, tendo este
exigido a constituição de uma hipoteca sobre o mesmo palacete. Neste caso, a hipoteca
anteriormente constituída prevalecerá sobre a hipoteca posteriormente constituída,
sendo o Banco X pago com preferência sobre o Banco Y.
No entanto, a característica da preferência/prevalência sofre múltiplas exceções em
matéria de direitos reais de garantia e, em particular, em matéria de privilégios
creditórios especiais:
- 743º CC: Os créditos por despesas de justiça feitas diretamente no interesse comum
dos credores, para a conservação, execução ou liquidação dos bens imóveis, têm
privilégio sobre estes bens.
- 745º, n. 2 CC: Havendo créditos igualmente privilegiados, dar-se-á rateio entre eles,
na proporção dos respetivos montantes.
- 747º, n. 1, al. a) CC: Se em causa estiver um privilégio imobiliário geral (736º, n. 1
CC), o mesmo prefere sobre privilégios mobiliários especiais.
- 751º CC: Os privilégios imobiliários especiais são oponíveis a terceiros que adquiram
o prédio ou um direito real sobre ele e preferem à consignação de rendimentos, à
hipoteca ou ao direito de retenção, ainda que estas garantias sejam anteriores.
- 759º, n. 2 CC: O direito de retenção sobre coisa imóvel prevalece sobre a hipoteca,
ainda que esta tenha sido registada anteriormente.

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Nota fundamental:
De acordo com alguns autores, os artigos 5º CRP e 291º CC seriam exceções à
característica da preferência/prevalência. Porém, não faz sequer sentido falar de
preferência, uma vez que não existe qualquer conflito entre dois direitos.

4. Diferenças entre os direitos reais e os direitos de crédito


Pelo exposto, poder-se-ão elencar sete diferenças entre os direitos reais e os direitos de
crédito:
- Primeira diferença: Enquanto que os direitos de crédito traduzem-se em relações
intersubjetivas (ou seja, o credor necessita da colaboração do devedor para satisfazer o
seu interesse), os direitos reais traduzem-se em relações não-intersubjetivas (ou seja, o
titular do direito real satisfaz o seu interesse através do exercício de um poder direto e
imediato sobre a coisa objeto do seu direito, não necessitando da colaboração de
ninguém para esse efeito).
- Segunda diferença: Enquanto que os direitos de crédito têm uma eficácia inter
partes (apenas o devedor está adstrito ao cumprimento de uma obrigação assumida e à
realização de uma prestação a favor do credor) os direitos reais têm uma eficácia erga
omnes (qualquer terceiro está adstrito ao cumprimento de um dever geral de abstenção).
- Terceira diferença: Enquanto que os direitos de crédito podem ter por objeto coisa
incerta, indeterminada e futura, os direitos reais só podem ter por objeto coisa certa,
determinada e atual.
- Quarta diferença: Enquanto que os direitos de crédito podem incidir sobre mais do
que uma coisa, os direitos reais, em regra, só podem incidir sobre uma coisa.
- Quinta diferença: No âmbito dos direitos de crédito, vale o princípio da autonomia
privada (405º CC). No âmbito dos direitos reais, vale o princípio da taxatividade
(1306º, n. 1 CC).
- Sexta diferença: Enquanto que os direitos de crédito prescrevem, os direitos reais
de aquisição só prescrevem se a lei não estabelecer prazo para o respetivo exercício
(caso contrário, caducam), os direitos reais limitados de gozo extinguem-se pelo não-
uso, o direito de propriedade sobre bens móveis extingue-se por abandono, o direito
de propriedade sobre bens imóveis extingue-se por renúncia abdicativa.
- Sétima diferença: Enquanto que os direitos de crédito não são suscetíveis de ser
adquiridos por usucapião, os direitos reais de gozo são suscetíveis de ser adquiridos
por usucapião.

5. Afinidades entre os direitos reais e os direitos de crédito


Apesar das diferenças, existem algumas afinidades entre os direitos reais e os direitos de
crédito:
1) Tanto os direitos de crédito, como os direitos reais são direitos patrimoniais.
2) Tanto os direitos de crédito, como os direitos reais podem ser transferidos por mero
efeito do contrato, não sendo necessária traditio rei.
3) Tanto os direitos de crédito, como os direitos reais são, em regra, transmissíveis. As
exceções surgem em matéria de direito de uso e de habitação e de servidões prediais.
4) Existem direitos reais que são instrumentais em face de direitos de crédito: os direitos
reais de garantia, uma vez que por eles se assegura a realização de um crédito.
5) Existem direitos de crédito que nascem da violação de direitos reais (do dever geral
de abstenção): as pretensões reais.
6) Existem obrigações de conteúdo positivo que recaem sobre o titular de um direito
real pelo simples facto de o ser: as obrigações reais.

11
6. Obrigações reais
6.1 Noção de obrigação real
As obrigações reais traduzem-se em vínculos jurídicos por virtude dos quais o titular de
um direito real, pelo simples facto de o ser, fica adstrito para com outrem à realização
de uma prestação de conteúdo positivo (prestação de dare ou de facere) e provêm do
estatuto daquele direito real.
De acordo com Henrique Mesquita, as obrigações reais traduzem-se em relações
jurídico-creditórias, uma vez que o titular de um direito real fica adstrito para com
outrem à realização de determinada prestação de conteúdo positivo. No entanto, as
obrigações reais não recaem sobre o titular de um direito real pelo facto de este se ter
vinculado à realização de determinada prestação perante outrem, mas recaem sobre ele
pelo simples facto de ser titular de um direito real. Por conseguinte, o substantivo
“obrigação” revela a natureza das obrigações reais (natureza jurídico-creditória) e o
adjetivo “real” revela a matriz das obrigações reais (estatuto de um direito real).
6.2 Distinção entre obrigações reais e figuras afins
As obrigações reais não se confundem com as seguintes figuras afins:
- Pretensões reais: As obrigações reais traduzem-se em relações jurídico-creditórias,
em que o titular de um direito real, pelo simples facto de o ser, fica adstrito para com
outrem à realização de determinada prestação de conteúdo positivo. Ou seja, as
obrigações reais têm por sujeito passivo o titular de um direito real. As pretensões reais
traduzem-se em relações jurídico-creditórias, em que o titular de um direito real pode
exigir a terceiro, que violou o dever geral de abstenção ao qual está adstrito, a realização
de determinada prestação de conteúdo positivo (eliminação da situação material
contrária ao estatuto do seu direito real). Ou seja, as prestações reais têm por sujeito
passivo um terceiro que viola o dever geral de abstenção ao qual está adstrito.
- Restrições: As obrigações reais envolvem uma relação jurídico-creditória e impõem
ao titular de um direito real a realização de uma prestação de conteúdo positivo. As
restrições envolvem uma relação jurídico-real e impõem ao titular de um direito real a
adoção de determinado comportamento humano de conteúdo negativo.
-» Exemplo: O proprietário que no seu prédio levantar edifício ou outra construção
não pode abrir nela janelas ou portas que deitem diretamente sobre o prédio vizinho sem
deixar entre este e cada uma das obras o intervalo de 1.50m (1360º, n. 1 CC).
- Obrigações que não provêm do estatuto do direito real: As obrigações que recaem
sobre o titular de um direito real, mas que provêm da prática de um facto ilícito, não são
obrigações reais, uma vez que não provêm do estatuto do direito real.
-» Exemplo: O proprietário de edifício ou outra obra que ruir, no todo ou em parte,
por vício de construção ou defeito de conservação, responde pelos danos por ele
culposamente causados, salvo se provar que não houve culpa da sua parte ou que,
mesmo com a diligência devida, se não teriam evitado os danos (492º, n. 1 CC).
- Deveres de facere impostos ao titular de um direito real por normas de Direito
Público: A maioria dos deveres de facere impostos a titulares de direitos reais por
normas de Direito Público não são obrigações reais, uma vez que não supõem qualquer
relação jurídico-creditória. Apesar de o órgão público poder aplicar sanções pelo
incumprimento de tais deveres, ele não tem o poder de exigir o seu cumprimento.
-» Exemplo: A, proprietário de um terreno, constrói uma edificação sem licença.
Neste caso, apesar de a Câmara Municipal poder aplicar uma sanção a A pelo
incumprimento de um dever de facere imposto por normas de Direito Público, ela não
tem o poder de exigir judicialmente o seu cumprimento.

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6.3 Regime jurídico das obrigações reais
Existem vários aspetos do regime das obrigações reais que se distanciam do regime das
obrigações em sentido técnico:
6.3.1 Princípio da taxatividade
Enquanto que as obrigações em sentido técnico estão sujeitas ao princípio da
autonomia privada (398, n. 1º CC), as obrigações reais estão sujeitas ao princípio da
taxatividade (1306º, n. 1 CC), quer quanto às modalidades que podem revestir, quer
quanto ao respetivo conteúdo. Entende-se que assim o seja, uma vez que, se as
obrigações reais provêm do estatuto de um direito real, faz sentido que valha para elas o
princípio da taxatividade ao qual estão igualmente sujeitos os direitos reais. Por
conseguinte, as obrigações reais têm sempre sustento legal, ou seja, podem surgir de
normas de Direito Público (ex. obrigação de pagar o IMI), de normas de Direito Privado
(ex. 1472º, n. 1 CC), de uma convenção celebrada entre as partes ao abrigo de uma
autorização legal (ex. 1530º, n. 1 CC) e da violação de uma restrição legal (ex. 1360º,
n. 1CC).
6.3.2 Ambulatoriedade
Enquanto que as obrigações em sentido técnico não são ambulatórias, as obrigações
reais são, em regra, ambulatórias. Isto significa que, quando surge uma obrigação real e
quando o direito real de cujo estatuto ela provém é transmitido para outrem antes do
cumprimento daquela, a obrigação real acompanha o direito real.
- As obrigações reais de facere são sempre ambulatórias.
-» Exemplo: A é proprietário de um prédio sobre o qual constitui um direito de
usufruto a favor de B. Com o passar do tempo, o prédio começa a necessitar de obras de
conservação. Por força do artigo 1472º CC, surge uma obrigação real que recai sobre B.
Ou seja, B terá de atuar sobre uma coisa que não é sua, mas sobre a qual tem um direito.
Não sendo esta obrigação real cumprida por B e sendo o direito de usufruto transmitido
a C, sobre este passa a recair a dita obrigação real, uma vez que a obrigação real de
facere acompanha sempre o direito real.
- As obrigações reais de dare são ambulatórias quando os pressupostos materiais que
lhe deram origem se verificam no momento da transmissão do direito real.
-» Exemplo: A, pelo simples facto de ser superficiário, tem a obrigação real de pagar
o cânone superficiário anualmente. Imagine-se que, a certa altura, A decide transmitir o
direito de superfície para C. Nestes casos, a obrigação real acompanha o direito real.
- As obrigações reais de dare não são ambulatórias quando os pressupostos materiais
que lhe deram origem não se verificam no momento da transmissão do direito real.
-» Exemplo 1: A, pelo simples facto de ser superficiário, tem a obrigação real de
pagar o cânone superficiário anualmente. Imagine-se que ao fim de um ano, A não paga
a prestação à qual está adstrito e transmite o direito de superfície a C. Nestes casos, a
obrigação real não acompanha o direito real.
-» Exemplo 2: A, B e C são comproprietários de um carro. Acontece que, pelo facto
de o carro se ter avariado, B manda arranjá-lo para evitar a perda ou deterioração da
coisa. Feita a despesa e arranjado o carro, A recusa-se a custear a intervenção no carro e
transmite a sua quota a D. Nestes casos, a obrigação real não acompanha o direito real.
6.3.3 Não-prescrição e renúncia liberatória
Não-prescrição:
Enquanto que as obrigações em sentido técnico prescrevem, as obrigações reais, em
regra, não prescrevem. Isto significa que, enquanto os pressupostos materiais que lhe
deram origem se verifiquem, é como se a obrigação real se renovasse a cada instante e,

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por conseguinte, a cada instante se renovasse o prazo dentro do qual se pode exigir o
seu cumprimento.
- As obrigações de facere não prescrevem.
-» Exemplo: A é proprietário de um prédio sobre o qual constitui um direito de
usufruto a favor de B. Com o passar do tempo, o prédio começa a necessitar de obras de
conservação. Por força do artigo 1472º CC, surge uma obrigação real que recai sobre B.
Ou seja, B terá de atuar sobre uma coisa que não é sua, mas sobre a qual tem um direito.
Enquanto o prédio necessite de obras de conservação, é como se a obrigação real que
recai sobre B se renovasse a cada instante e, por conseguinte, a cada instante se
renovasse o prazo dentro do qual se pode exigir o seu cumprimento.
- As obrigações reais de dare prescrevem.
-» Exemplo: A falta de pagamento das prestações anuais durante vinte anos extingue
a obrigação de as pagar, mas o superficiário não adquire a propriedade do solo, salvo se
houver usucapião em seu benefício. À extinção da obrigação de pagamento das
prestações são aplicáveis as regras da prescrição (1537º CC).
Nota fundamental:
Uma vez cumprida a obrigação real, ela extingue-se. Porém, existem obrigações
reais que não se extinguem pelo seu cumprimento, uma vez que ainda se verificam
os pressupostos materiais que lhe deram origem.
-» Exemplo: Os condóminos de um prédio, sujeito ao regime de propriedade
horizontal, criaram um fundo para a realização de reparações necessárias à
conservação das partes comuns do edifício. O administrador do condomínio e a
empresa contratada para proceder àquelas reparações acordaram que aquele deveria
pagar antecipadamente o valor acordado. Acontece que o administrador pegou no
dinheiro e foi passar férias no estrangeiro. Neste caso, a obrigação real que recai
sobre os condóminos não se extingue pelo seu cumprimento.

Renúncia liberatória:
Para algumas obrigações reais, a lei prevê a sua extinção por renúncia liberatória. A
renúncia liberatória efetiva-se através de uma declaração unilateral, receptícia e onerosa,
por força da qual o titular de um direito real renuncia a esse seu direito em benefício do
seu credor para deixar de estar adstrito à obrigação real que provém do estatuto daquele
direito real. Do que se trata é de uma obrigação com faculdade alternativa, ou seja, o
titular do direito real pode cumprir a obrigação real que sobre ele recai pelo simples
facto de o ser ou pode renunciar a esse seu direito real em benefício do seu credor.
Exemplos:
- 1411º, n. 1 CC: Os comproprietários devem contribuir, em proporção das respetivas
quotas, para as despesas necessárias à conservação ou fruição da coisa comum, sem
prejuízo da faculdade de se eximirem do encargo renunciando ao seu direito.
- 1472º, n. 3 CC: O usufrutuário pode eximir-se das reparações ou despesas a que é
obrigado, renunciando ao usufruto.
→ Atenção: De acordo com o artigo 1567º, n. 1 CC, as obras são feitas à custa do
proprietário do prédio dominante. No entanto, se o proprietário do prédio serviente se
houver obrigado a custear as obras, só lhe será possível eximir-se desse encargo pela
renúncia ao seu direito de propriedade em benefício do proprietário do prédio
dominante […]; recusando-se o proprietário do prédio dominante a aceitar a renúncia,
não fica, por isso, dispensado de custear as obras (n. 4). Nestes casos, apesar de a
renúncia ao direito de propriedade por parte do proprietário do prédio serviente
extinguir a obrigação real que provém do seu estatuto, ela não deve ser encarada como
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uma renúncia liberatória, devendo entender-se que a renúncia ao direito de propriedade
por parte do proprietário do prédio serviente vale apenas como uma proposta contratual
de transmissão do direito de propriedade de cujo estatuto aquela obrigação real provém.
Sendo assim, o direito de propriedade renunciado só se transmite para o proprietário do
prédio dominante se este aceitar a proposta contratual, tal implicando a celebração de
um negócio bilateral (e não uma declaração unilateral, receptícia e onerosa).
Renúncia abdicativa:
Quando a lei não prevê a extinção das obrigações reais por renúncia liberatória, o titular
do direito real pode renunciar ao seu direito real por renúncia abdicativa. A renúncia
abdicativa efetiva-se através de uma declaração unilateral, não-receptícia e gratuita, por
força da qual o titular de um direito real renuncia a esse seu direito em benefício de
credor indeterminado para deixar de estar adstrito à obrigação real que provém do
estatuto daquele direito real. Exemplos:
- 1476º, n. 1, al. e) CC: O usufruto extingue-se pela renúncia.
- 1569º, n. 1, al. d) CC: As servidões extinguem-se pela renúncia.
- 42º, n. 1 DL n. 275/93: O titular do direito real de habitação periódica pode extingui-
lo mediante declaração de renúncia […].
- 17º DL n. 1/2020: O morador pode renunciar livremente ao direito de habitação
duradoura […].
6.4 Distinção entre obrigação real e ónus real
A obrigação real também não se confunde com o ónus real. O ónus real existe quando
o proprietário de determinado prédio está obrigado, pelo simples facto de o ser, ao
pagamento de determinada prestação, pagamento pelo qual responde sempre o prédio,
seja quem for o respetivo proprietário à data da execução, e dispondo o credor de
preferência sobre os demais credores do executado. Isto significa que, transmitido o
prédio, o seu adquirente passa a ser devedor tanto das prestações anteriormente
vencidas, como das prestações que se vençam.
O ónus real é, assim, uma figura composta por duas relações jurídicas que não se
fundem numa relação jurídica unitária:
- Pelo lado do devedor, o ónus real é composto por uma obrigação real, na medida em
que o proprietário de determinado prédio está obrigado, pelo simples facto de o ser, ao
pagamento de determinada prestação.
- Pelo lado do credor, o ónus real é composto por um direito real de garantia, na medida
em que o credor pode promover a venda judicial do prédio para satisfazer o seu crédito
com preferência sobre os demais credores do executado.

7. Categorias de direitos reais


O direito real traduz-se no poder direto e imediato (domínio ou soberania) do respetivo
titular sobre uma coisa objeto do seu direito. No entanto, esse domínio ou soberania que
o direito real confere ao seu titular assume gradações diversas, consoante as várias
categorias de direitos reais que a lei admite: os direitos reais de gozo, os direitos reais de
garantia e os direitos reais de aquisição.
7.1 Direitos reais de gozo
Os direitos reais de gozo conferem ao seu titular uma soberania que se traduz no poder
de usar, eventualmente de fruir e, às vezes, até de dispor da coisa.
7.1.1 Direito de propriedade (1302º a 1413º CC)
O direito de propriedade é o mais amplo dos direitos reais, conferindo ao seu titular,
de modo pleno e exclusivo, os poderes de uso (poder de utilizar a coisa), de fruição

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(poder de retirar da coisa as utilidades que dela emergem) e de disposição (poder de
transformar, onerar ou alienar a coisa) das coisas que lhe pertencem, dentro dos limites
da lei e com observância das restrições por ela impostas (1305º CC).
-» Exemplo: O titular de um direito de propriedade sobre uma casa pode, respeitando
os limites da lei e as restrições por ela impostas, habitá-la (uso), arrendá-la (fruir), nela
fazer obras (transformar), constituir sobre ela uma hipoteca (onerar), vendê-la (alienar).
→ remissão para o ponto 12
7.1.2 Propriedade horizontal (1414º a 1438º-A CC)
Do artigo 1420º CC poderia entender-se que na propriedade horizontal se agrupam
dois direitos reais distintos: um direito de propriedade sobre cada uma das frações e um
direito de compropriedade sobre as partes comuns do prédio. No entanto, a propriedade
horizontal é mais do que o mero agrupamento destes dois direitos, tratando-se de um
tipo autónomo de direito real com um objeto complexo que ultrapassa a aplicação pura e
simples do regime da propriedade e da compropriedade.
→ remissão para o ponto 14
7.1.3 Direitos reais limitados de gozo
A constituição dos direitos reais limitados de gozo (ou direitos reais de gozo sobre
coisa alheia) ocorre com a contração do direito de propriedade, passando o titular do
direito real limitado de gozo a poder exercer sobre uma coisa alheia os poderes que o
titular do direito de propriedade sobre a mesma coisa deixa de poder exercer. Isto não
significa, todavia, que o titular do direito de propriedade sobre essa coisa deixou de ser
seu proprietário. Com a extinção do direito real limitado de gozo, reexpande-se o direito
de propriedade, voltando o seu titular a poder exercer, de modo pleno e exclusivo, todos
os poderes sobre a coisa que lhe pertence. Dentro dos direitos reais limitados de gozo,
importa distinguir os seguintes:
1) Direito de usufruto (1439º a 1483º CC)
- Noção de usufruto: O direito de usufruto é o direito de usar e de fruir temporária e
plenamente uma coisa ou um direito alheio, podendo o seu titular ainda transformar a
coisa através de benfeitorias úteis e voluptuárias (1450º CC), sem alterar a sua forma ou
substância (1439º CC).
- Direitos e obrigações do usufrutuário: Os direitos e obrigações do usufrutuário são
regulados pelo título constitutivo do usufruto, devendo, na falta ou insuficiência deste,
observar-se os artigos 1446º e ss. CC (1445º CC). Por isso, entende-se que estas normas
são supletivas. Isto significa que o legislador concede às partes a possibilidade de fixar
livremente o conteúdo do direito de usufruto, desde que não ponham em causa os seus
pilares caracterizadores que constam do artigo 1439º CC.
- (In)transmissibilidade do usufruto: A transmissão inter vivos do usufruto é possível,
salvas as restrições impostas pelo título constitutivo ou pela lei (1444º CC),
extinguindo-se pelo decurso do prazo ou à data da morte do usufrutuário originário. Já
não é possível a transmissão mortis causa do usufruto, extinguindo-se à data da morte
do usufrutuário.
-» Exemplo: A, proprietário, constitui um usufruto a favor de B, que, entretanto, o
trespassa para C. Se B morrer antes de C, o usufruto extingue-se, reexpandindo-se o
direito de propriedade de A. Se C morrer antes de B, o usufruto passa para os herdeiros
de C, vigorando o direito de usufruto até à morte de B.
2) Direito de uso e direito de habitação (1484º a 1490º CC)
Ao contrário do que a lei parece sugerir, o direito de uso e o direito de habitação são
dois direitos reais limitados de gozo autónomos:
- O direito de uso é o direito de usar certa coisa alheia e de fruí-la, na medida das
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necessidades, quer do titular, quer da sua família (1484º, n. 1 CC).
- O direito de habitação é o direito de usar certa casa de morada, na medida das
necessidades, quer do titular, quer da sua família (1484º, n. 2 CC).
3) Direito de superfície (1524º a 1542º CC)
O direito de superfície é o direito de construir ou manter, perpétua ou temporariamente,
uma obra em terreno alheio ou de nele fazer ou manter plantações (1524º CC), podendo
revestir duas modalidades:
- O proprietário de um terreno pode conferir ao superficiário o direito de manter obra
ou plantações já existentes no seu terreno. Neste caso, o proprietário permanece titular
do direito de propriedade sobre o terreno e o superficiário torna-se titular de um direito
de superfície que lhe confere o poder de manter obra ou plantações já existentes no solo
de terreno alheio.
- O proprietário pode conferir ao superficiário o direito de construir obra ou fazer
plantações no seu terreno e de nele manter a obra a construir ou as plantações a fazer.
Neste caso, o proprietário permanece titular do direito de propriedade sobre o terreno e
o superficiário torna-se titular de um direito de superfície que, num primeiro momento,
lhe confere o poder de construir obra ou fazer plantações em terreno alheio e, num
segundo momento, o poder de manter a obra a construir ou as plantações a fazer no solo
de terreno alheio.
4) Servidão predial (1543º a 1575º CC)
- Noção de servidão predial: A servidão predial é o encargo (1) imposto num prédio
(2) em proveito exclusivo de outro prédio (3) pertencente a dono diferente (4) (1543º
CC). Desta forma, o prédio sujeito à servidão designa-se prédio serviente e o prédio
que beneficia da servidão designa-se prédio dominante.
- Características da servidão predial: As servidões prediais contêm três características
essenciais:
-» Atipicidade de conteúdo: A atipicidade de conteúdo das servidões prediais está
prevista no artigo 1544º CC, de acordo com o qual podem ser objeto de uma servidão
predial quaisquer utilidades que o prédio possa proporcionar, ainda que futuras ou
eventuais. Isto significa que o legislador concede às partes a possibilidade de fixar
livremente o conteúdo da servidão predial, desde que não ponham em causa os seus
pilares caracterizadores que constam do artigo 1543º CC.
-» Inseparabilidade: A inseparabilidade das servidões prediais está prevista no artigo
1545º CC, de acordo com o qual as servidões prediais não podem ser separadas do
prédio a que pertencem, nem do prédio que oneram. Isto significa que o proprietário de
um prédio serviente e o proprietário de um prédio dominante não podem transmitir a
sua servidão predial sem transmitir o direito de propriedade sobre o prédio.
-» Indivisibilidade: A indivisibilidade das servidões prediais está prevista no artigo
1546º CC, de acordo com o qual as servidões são indivisíveis. Isto significa que se for
dividido o prédio serviente, cada porção fica sujeita à parte da servidão que lhe cabia e
se for dividido o prédio dominante, tem cada consorte o direito de usar da servidão sem
alteração nem mudança.
- Classificações de servidões prediais: As servidões prediais podem ser, por um lado,
legais ou voluntárias e, por outro lado, aparentes ou não-aparentes:
-» Servidões legais: As servidões legais estão previstas na lei e podem ser
constituídas voluntariamente ou, na falta de acordo, coercivamente (ex. 1550º, n. 1 CC).
-» Servidões voluntárias: As servidões voluntárias podem ser constituídas
voluntariamente por contrato, testamento, usucapião ou destinação do pai de família.
-» Servidões aparentes: As servidões aparentes revelam-se por sinais visíveis e

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permanentes (ex. 1362º, n. 1 CC).
-» Servidões não-aparentes: As servidões não-aparentes não se revelam por sinais
visíveis e permanentes.
5) Direito real de habitação periódica:
O direito real de habitação periódica é o direito de usar (1), por um ou mais períodos
certos (2), em cada ano (3), para fins habitacionais (4), uma unidade de alojamento
integrada num empreendimento turístico (apartamento turístico, hotel-apartamento,
aldeamento turístico) (5), mediante o pagamento de uma prestação periódica ao
proprietário do empreendimento ou a quem o administre (6).
6) Direito real de habitação duradoura:
O direito real de habitação duradoura é o direito de usar (1) uma habitação alheia (2)
como sua residência permanente (3) por um período vitalício (4), mediante o pagamento
ao respetivo proprietário de uma caução pecuniária e de uma prestação pecuniária
periódica (5).
7.2 Direitos reais de garantia
Os direitos reais de garantia conferem ao credor do respetivo titular uma soberania
que se traduz no poder de, em caso de incumprimento de uma obrigação, promover a
venda judicial da coisa objeto do seu direito e de satisfazer, à custa do valor obtido, o
seu crédito com preferência de pagamento sobre os demais credores do devedor.
1) Hipoteca (686º a 732º CC)
- Noção de hipoteca: A hipoteca é o direito real de garantia que confere ao credor do
respetivo titular (credor hipotecário) o poder de, em caso de incumprimento de uma
obrigação, promover a venda judicial de certa coisa imóvel ou equiparada, pertencente
ao devedor ou a terceiro, e de satisfazer, à custa do valor obtido, o seu crédito com
preferência de pagamento sobre os demais credores do devedor que não gozem de
privilégio especial ou de prioridade de registo (686º, n. 1 CC).
→ A hipoteca não envolve a perda da posse sobre a coisa objeto da hipoteca.
- Modalidades da hipoteca: A hipoteca pode revestir três modalidades (703º CC):
-» Hipotecas legais: Nas hipotecas legais, a lei confere a certos credores a faculdade
de solicitarem a inscrição registal da hipoteca (704º e ss. CC).
-» Hipotecas judiciais: Nas hipotecas judiciais, a lei confere ao credor a faculdade de
promover o registo da hipoteca com base numa sentença que condene o devedor à
realização de uma prestação em dinheiro ou coisa fungível (710º e ss. CC).
-» Hipotecas voluntárias: Nas hipotecas voluntárias, a hipoteca nasce de um contrato
ou de uma declaração unilateral que deve constar de escritura pública, de testamento ou
de documento particular autenticado e ser objeto de registo (712º e ss. CC).

Nota fundamental:
A hipoteca só existe e, consequentemente, só produz efeitos a partir do momento do
seu registo (687º CC).
2) Penhor (666º a 685º CC)
- Noção de penhor: O penhor é o direito real de garantia que confere ao credor do
respetivo titular (credor pignoratício) o poder de, em caso de incumprimento de uma
obrigação, promover a venda judicial de certa coisa móvel ou de direitos que tenham
por objeto coisas móveis e sejam suscetíveis de transmissão, pertencentes ao devedor ou
a terceiro, e de satisfazer, à custa do valor obtido, o seu crédito, bem como os juros, com
preferência de pagamento sobre os demais credores do devedor (666º, n. 1 CC).
→ O penhor envolve a perda da posse sobre a coisa objeto do penhor.

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- Modalidades de penhor: O penhor pode tanto incidir sobre coisas móveis, como
sobre direitos insuscetíveis de hipoteca:
-» Penhor de coisas móveis: O penhor de coisas móveis só produz os seus efeitos
pela entrega da coisa empenhada (traditio rei), sendo uma exceção ao princípio da
consensualidade (669º, n. 1 CC).
-» Penhor de direitos: O penhor de direitos está sujeito à forma e à publicidade
exigidas para a transmissão dos direitos empenhados (681º, n. 1 CC).
3) Direito de retenção (754º a 761º CC)
- Noção de direito de retenção: O direito de retenção é o direito real de garantia que
confere ao seu titular (que tem o dever de entregar certa coisa móvel ou imóvel e um
direito de crédito que resulta das despesas feitas por causa dessa coisa ou de danos por
ela causados) o poder de se recusar a cumprir a prestação à qual se encontra adstrito
(entrega de certa coisa móvel ou imóvel), de promover a sua venda judicial e de
satisfazer, à custa do valor obtido, o seu crédito com preferência de pagamento sobre os
demais credores do seu devedor.
-» Exemplo: A, mecânico, tem o poder de recusar a entrega do carro reparado a B
para assegurar o pagamento do crédito resultante da sua reparação.
- Modalidades do direito de retenção: O direito de retenção poderá incidir sobre
coisas móveis ou imóveis:
-» Retenção de coisas móveis: Incidindo o direito de retenção sobre coisa móvel, a
posição jurídica do retentor é equiparada à do credor pignoratício (758º CC).
-» Retenção de coisas imóveis: Incidindo o direito de retenção sobre coisa imóvel, a
posição jurídica do retentor é equiparada à do credor hipotecário (759º, n. 1 CC).
Nota fundamental:
De acordo com o artigo 759º, n. 2 CC, o direito de retenção sobre coisa imóvel
prevalece sobre a hipoteca, ainda que esta tenha sido registada anteriormente.

4) Privilégios creditórios especiais (738º a 753º CC)


- Noção de privilégios creditórios especiais: Os privilégios creditórios especiais são
direitos reais de garantia que conferem ao seu titular (credor) o poder de, em atenção à
causa do crédito e independentemente do registo, ser pago com preferência sobre os
demais credores do devedor (733º CC).
- Modalidades de privilégios creditórios especiais: Os privilégios creditórios especiais
podem revestir duas modalidades:
-» Privilégios mobiliários especiais: 738º a 742º CC
-» Privilégios imobiliários especiais: 743º CC e 744º CC

Nota fundamental:
De acordo com o artigo 750º CC, no caso de conflito entre o privilégio mobiliário
especial e um direito de terceiro, prevalece o que mais cedo se houver adquirido.
De acordo com o artigo 751º CC, os privilégios imobiliários especiais preferem à
consignação de rendimentos, à hipoteca ou ao direito de retenção, ainda que estas
garantias sejam anteriores.
5) Direito real de garantia que resulta da penhora e do respetivo registo:
O direito real de garantia que resulta da penhora e do respetivo registo confere ao seu
titular (credor exequente) o poder de promover a venda judicial de bens previamente
determinados ou individualizados e de satisfazer, à custa do valor obtido, o seu crédito
com preferência sobre os demais credores do devedor que não beneficiem de garantia
real anterior (822º, n. 1 CC).

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6) Consignação de rendimentos (656º a 665º CC)
- Noção de consignação de rendimentos: A consignação de rendimentos é o direito
real de garantia que confere ao seu titular (credor) o poder de satisfazer o seu crédito
através dos rendimentos produzidos por certa coisa imóvel ou coisa móvel sujeita a
registo, com preferência de pagamento sobre os demais credores do devedor (656º CC).
- Modalidades da consignação de rendimentos: A consignação de rendimentos pode
revestir duas modalidades:
-» Consignação de rendimentos voluntária: A consignação de rendimentos voluntária
é constituída pelo devedor ou por terceiro, quer por negócio entre vivos, quer por meio
de testamento (658º, n. 2, primeira parte CC).
-» Consignação de rendimentos judicial: A consignação de rendimentos judicial
resulta de decisão do tribunal (658º, n. 2, segunda parte CC).
7.3 Direitos reais de aquisição
Os direitos reais de aquisição conferem ao seu titular uma soberania que se traduz no
poder de adquirir um direito real de gozo ou um direito real de garantia sobre uma coisa.
Exemplos:
- 1333º, n. 1 CC
- 1341º, segunda parte CC e 1342º, n. 1 CC
- 1343º, n. 1 CC
- 1551º, n. 1 CC
- 2103º-A, n. 1 CC

8. Objeto dos direitos reais


8.1 As coisas
8.1.1 Noção de coisa
De acordo com o artigo 202º, n. 1 CC, diz-se coisa tudo aquilo que pode ser objeto de
relações jurídicas. No entanto, a noção oferecida por este artigo é demasiado ampla,
pois nem tudo o que pode ser objeto de relações jurídicas é uma coisa. Exemplos:
- Pessoas: As pessoas podem ser objeto de relações jurídicas, mas não são coisas.
- Prestações: As prestações, que se traduzem num comportamento positivo (ação) ou
negativo (omissão), podem ser objeto de relações jurídicas, mas não são coisas.
Sendo assim, dever-se-á adotar a noção oferecida por Orlando de Carvalho, segundo o
qual coisa traduz-se numa entidade do mundo externo com suficiente individualidade e
economicidade para assumir o estatuto permanente de objeto de domínio. Deste modo,
para que algo seja qualificado como coisa e, consequentemente, possa ser objeto de
direitos reais, é necessário que preencha cinco elementos essenciais:
1) É necessário que seja destituído de personalidade jurídica.
-» Exemplo: Uma pessoa não é uma coisa.
2) É necessário que seja atual ou já existente.
-» Exemplo: Os frutos que uma árvore há de produzir não são coisas.
3) É necessário que seja autónomo, separado ou individualizado.
-» Exemplo: O quadro na sala de aula não é uma coisa, mas é uma parte que está
ligada materialmente com caráter de permanência a uma coisa (parede).
4) É necessário que seja apto a satisfazer necessidades ou interesses humanos.
-» Exemplo: Uma gota de água/um grão de areia não é uma coisa.
5) É necessário que seja suscetível de apropriação exclusiva.
-» Exemplo: O sol/a luz do sol não é uma coisa.

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Nota fundamental:
Importa afirmar que as coisas não se confundem com os bens, uma vez que, embora
ambos sejam aptos a satisfazer necessidades ou interesses humanos, os bens podem
não ser destituídos de personalidade jurídica (ex. pessoas). Por conseguinte,
conclui-se que todas as coisas são bens, mas nem todos os bens são coisas.
8.1.2 Classificações de coisas
1) Coisas corpóreas e coisas incorpóreas:
- Coisas corpóreas: As coisas corpóreas são coisas apreensíveis ou percetíveis pelos
sentidos.
- Coisas incorpóreas: As coisas incorpóreas são coisas que não podem ser apreensíveis
pelos sentidos e, portanto, só podem ser percetíveis pelo intelecto.
2) Coisas móveis e coisas imóveis:
O legislador português optou por não formular um conceito de coisa móvel ou de coisa
imóvel, tendo-se limitado a elencar as coisas imóveis no artigo 204º CC e a consagrar o
sobrante no artigo 205º CC. Sendo assim, são coisas imóveis:
a) Os prédios rústicos e urbanos → 204º, n. 2 CC
b) As águas
c) As árvores, os arbustos e os frutos naturais, enquanto estiverem ligados ao solo
d) Os direitos reais inerentes aos imóveis anteriormente mencionados
e) As partes integrantes dos prédios rústicos e urbanos
São coisas móveis as coisas não compreendidas nas alíneas anteriores.
Nota fundamental:
A classificação das coisas em móveis e imóveis tem uma enorme relevância prática,
uma vez que é tida em conta para os seguintes efeitos:
1. Forma: Enquanto que a constituição, transmissão, modificação e extinção dos
direitos reais sobre coisas imóveis têm de obedecer a uma determinada formalidade
(ex. 875º CC, 947º CC), a constituição, transmissão, modificação e extinção dos
direitos reais sobre coisas móveis estão sujeitas ao princípio da liberdade de forma
(219º CC).
2. Constituição: Enquanto que a hipoteca tem por objeto coisas imóveis ou coisas
móveis equiparadas por lei às coisas imóveis (automóveis, aeronaves e navios), o
penhor tem por objeto coisas móveis não-equiparadas por lei às coisas imóveis.
3. Registo: Enquanto que os direitos reais sobre coisas imóveis ou coisas móveis
equiparadas por lei às coisas imóveis estão sujeitos a registo, os direitos reais sobre
coisas móveis não-equiparadas por lei às coisas imóveis não estão sujeitos a registo.
4. Usucapião: Enquanto que os prazos para se adquirir direitos reais sobre coisas
imóveis por usucapião são mais extensos (1294º CC), os prazos para se adquirir
direitos reais sobre coisas móveis por usucapião são mais reduzidos (1298º CC,
1299º CC).

3) Coisas fungíveis e coisas infungíveis:


- Coisas fungíveis: As coisas fungíveis são coisas substituíveis por outras (207º CC).
Portanto, as coisas fungíveis nem sempre são objeto de direitos reais, pois não são
autónomas, separadas ou individualizadas.
- Coisas infungíveis: As coisas infungíveis são coisas insubstituíveis por outras.
Portanto, as coisas infungíveis podem ser objeto de direitos reais.

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4) Coisas futuras, coisas alheias e coisas inexistentes:
De acordo com o artigo 211º CC, são coisas futuras as que não estão em poder do
disponente, ou a que este não tem direito, ao tempo da declaração negocial. Deste modo,
o legislador não permite distinguir os conceitos de coisa relativamente futura, coisa
absolutamente futura, coisa alheia e coisa inexistente:
- Coisa relativamente futura: As coisas relativamente futuras são coisas que já existem,
mas ainda não estão em poder do disponente ao tempo da declaração negocial, tendo
este, todavia, uma legítima expetativa de vir a adquiri-las e sendo o negócio jurídico
realizado com base nessa suposição.
- Coisa absolutamente futura: As coisas absolutamente futuras são coisas que ainda não
existem e, portanto, ainda não estão em poder do disponente ao tempo da declaração
negocial, tendo este, todavia, uma legítima expetativa de vir a adquiri-las e sendo o
negócio jurídico realizado com base nessa suposição.
→ Tais negócios jurídicos são válidos (408º, n. 2 CC), produzindo, desde logo,
efeitos obrigacionais e só produzindo efeitos reais a partir do momento em que a coisa
for adquirida pelo disponente.
- Coisa alheia: As coisas alheias são coisas que já existem, mas não estão em poder do
disponente e este não tem a legítima expetativa de vir a adquiri-las.
→ Os negócios jurídicos sobre coisa alheia são nulos (892º CC, 956º CC).
- Coisa inexistente: As coisas inexistentes são coisas que não existem nem em poder do
disponente nem em poder de quem quer que seja e aquele não tem a legítima expetativa
de vir a adquiri-las.
→ Tais negócios são nulos, não produzindo efeitos obrigacionais nem efeitos reais.

Nota fundamental:
As coisas absolutamente futuras e as coisas inexistentes não são, tendo em
consideração os referidos cinco elementos fundamentais, coisas.
5) Partes componentes, partes integrantes e coisas acessórias:
- Partes componentes: As partes componentes são partes constituintes da estrutura de
uma coisa (ex. porta de entrada de uma casa, os tijolos de uma parede, as telhas de um
telhado). As partes componentes podem ser retiradas da coisa principal, deixando esta
de estar apta para o fim a que se destina.
- Partes integrantes: As partes integrantes são coisas móveis ligadas materialmente com
caráter de permanência a um prédio para o tornar mais produtivo (ex. engenho para tirar
água), para o tornar mais seguro (ex. sistema de alarme), para o tornar mais cómodo (ex.
ar condicionado), para o tornar mais belo (ex. frisos de um teto, painel de azulejos na
parede) (204º, n. 3 CC). As partes integrantes podem ser retiradas da coisa principal,
não deixando esta de estar apta para o fim a que se destina.

Notas fundamentais:
1) As partes componentes e as partes integrantes só podem ser objeto de direitos
reais distintos daquele que tem por objeto a coisa principal depois de separadas
desta.
-» Exemplo 1: A e B celebram um contrato de compra e venda sobre uma casa
(coisa principal) que contém telhas específicas (partes componentes) e uma antena
parabólica (parte integrante) no telhado. Neste caso, o contrato, que tem por objeto
a casa, abrange as telhas, uma vez que são constituintes da estrutura da casa, e a
antena parabólica, uma vez que se encontra ligada materialmente à casa com caráter
de permanência.

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-» Exemplo 2: A e B celebram um contrato de compra e venda sobre as telhas
que se encontram no telhado da casa deste (partes componentes). Neste caso, o
contrato produz, num primeiro momento, apenas efeitos obrigacionais, recaindo
sobre B a obrigação de retirar as telhas da sua casa para, depois, as entregar a A.
Depois de retiradas, as telhas deixam de ser partes componentes e tornam-se coisas
autónomas. A partir deste segundo momento, o contrato produz efeitos reais,
tornando-se A titular de um direito de propriedade sobre as telhas (408º, n. 2 CC).
-» Exemplo 3: A e B celebram um contrato de compra e venda sobre uma antena
parabólica que se encontra ligada materialmente com caráter de permanência à casa
deste (parte integrante). Neste caso, o contrato produz, num primeiro momento,
apenas efeitos obrigacionais, recaindo sobre B a obrigação de retirar a antena
parabólica da sua casa para, depois, a entregar a A. Depois de retirada, a antena
parabólica deixa de ser parte integrante e torna-se uma coisa autónoma. A partir
deste segundo momento, o contrato produz efeitos reais, tornando-se A titular de
um direito de propriedade sobre a antena parabólica (408º, n. 2 CC).
2) As coisas móveis deixam de poder ser objeto de direitos reais distintos daquele
que tem por objeto a coisa principal quando se tornarem partes componentes ou
partes integrantes desta.
-» Exemplo: A, construtor de edifícios, celebra com B, empresa de elevadores,
um contrato de compra e venda sobre dois elevadores (coisas móveis). Uma vez
instalados, os elevadores deixam de ser coisas móveis para passarem a ser partes
integrantes do edifício.

- Coisas acessórias: As coisas acessórias são coisas móveis que, não constituindo partes
integrantes, estão afetadas por forma duradoura ao serviço ou ornamentação de uma
outra (ex. trator numa quinta, aparelho de cortar a relva num jardim) (210º, n. 1 CC).
Notas fundamentais:
1) De acordo com o artigo 210º, n. 2 CC, os negócios jurídicos que têm por objeto
a coisa principal não abrangem, salvo declaração em contrário, as coisas acessórias.
-» Exemplo: A e B celebram um contrato de compra e venda sobre uma quinta,
na qual se encontra um trator. Neste caso, o contrato não abrange o trator.
2) As coisas acessórias não se confundem com as partes integrantes:
- As partes integrantes são coisas móveis que estão ligadas materialmente com
caráter de permanência à coisa principal.
- As coisas acessórias são coisas móveis, mas não estão ligadas materialmente com
caráter de permanência à coisa principal, estando antes ao serviço de outra coisa.
→ Antigamente, grande parte das coisas numa cozinha eram coisas acessórias
(mesa, televisão, etc.). Atualmente, essas coisas são partes integrantes.

8.2 Os frutos
De acordo com o artigo 212º, n. 1 CC, diz-se fruto de uma coisa tudo o que ela produz
periodicamente, sem prejuízo da sua substância.
1) Os frutos podem ser naturais ou civis (212º, n. 2 CC):
- Frutos naturais: Os frutos naturais provêm diretamente da coisa (ex. laranjas da
laranjeira, cortiça do sobreiro, bezerros da vaca, etc.).
- Frutos civis: Os frutos civis são as rendas ou interesses que a coisa produz em
consequência de uma relação jurídica (ex. juros, rendas, etc.).

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2) Em regra, os frutos produzidos por determinada coisa pertencem ao titular do
respetivo direito de fruição no momento da sua colheita. No entanto, quando duas ou
mais pessoas sucedam na titularidade do direito de fruição, os frutos são partilhados em
conformidade com o disposto no artigo 213º CC:
- Os frutos naturais pertencem ao titular do direito de fruição no momento da sua
colheita.
-» Exemplo: A, proprietário de um pomar, constitui um usufruto a favor de B sobre o
dito pomar numa altura em que este ainda não produzia maçãs aptas a serem colhidas.
Quando o passarem a ser, todas as maçãs que o pomar produzir pertencerão a B.
- Os frutos civis são divididos proporcionalmente à duração do direito de fruição.
-» Exemplo: A, proprietário de um terreno agrícola, constitui um usufruto a favor de
B. As rendas que o terreno agrícola produzir serão partilhadas proporcionalmente entre
A e B, tendo em conta a duração do direito de fruição.
3) De acordo com o artigo 214º CC, quem colher prematuramente frutos naturais é
obrigado a restituí-los, se vier a extinguir-se o seu direito antes da época normal das
colheitas.
-» Exemplo: A, proprietário de uma vinha, constitui um usufruto a favor de B sobre a
dita vinha numa altura em que esta tinha uvas, mas inaptas a serem colhidas. Neste caso,
A não poderá colher prematuramente as uvas, sendo obrigado a restituí-las se o fizer.
4) De acordo com o artigo 215º CC, quem for obrigado por lei à restituição de frutos
percebidos tem direito a ser indemnizado das despesas de cultura, sementes e matérias-
primas e dos restantes encargos de produção e colheita, desde que não sejam superiores
ao valor desses frutos. Quando se trate de frutos pendentes, o que é obrigado à entrega
da coisa não tem direito a qualquer indemnização, salvo nos casos especialmente
previstos na lei. A este respeito, importa estabelecer a seguinte distinção:
- Frutos pendentes: Os frutos pendentes são frutos que ainda não foram colhidos.
- Frutos percebidos: Os frutos percebidos são frutos que já foram colhidos.
- Frutos percipiendos: Os frutos percipiendos são frutos que não foram colhidos mas
que teriam sido caso a coisa tivesse estado em poder do titular do direito de fruição.
8.3 As benfeitorias
De acordo com o artigo 216º, n. 1 CC, consideram-se benfeitorias todas as despesas
feitas para conservar ou melhorar a coisa.
8.3.1 Modalidades de benfeitorias
As benfeitorias podem ser de três tipos (216º, n. 2 e 3 CC):
- Benfeitorias necessárias: As benfeitorias necessárias são despesas feitas na coisa para
evitar a sua perda, destruição ou deterioração (ex. reparação de um telhado).
- Benfeitorias úteis: As benfeitorias úteis são despesas feitas na coisa que, apesar de
serem dispensáveis para a sua conservação, lhe aumentam o valor (ex. substituição de
telha antiga por telha nova).
- Benfeitorias voluptuárias: As benfeitorias voluptuárias são despesas feitas na coisa
que, apesar de serem dispensáveis para a sua conservação e não lhe aumentarem o valor,
servem apenas para recreio do benfeitorizante (ex. pintar uma casa de determinada cor).
8.3.2 Distinção entre benfeitorias e acessões
Em abstrato, a distinção entre benfeitorias e acessões é uma distinção simples,
considerando-se benfeitorias as despesas feitas para conservar ou melhorar uma coisa e
acessões as inovações realizadas que alteram a substância de uma coisa. No entanto, em
concreto, nem sempre é fácil saber se se está perante uma benfeitoria ou uma acessão.
Por isso, Pires de Lima, Antunes Varela e António Carvalho Martins vieram distinguir

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as benfeitorias e as acessões tendo em conta a (in)existência de uma relação jurídica do
interventor com a coisa. Sendo assim, segundo estes autores:
- As benfeitorias supõem a existência de uma relação jurídica do interventor com a coisa
(ex. locação, comodato, usufruto).
- As acessões não supõem a existência de uma relação jurídica do interventor com a
coisa (ex. posse).
8.4 Os animais
Com a entrada em vigor da Lei n. 8/2017, de 3 de Março, os animais deixaram de ser
vistos como coisas para passarem a ser encarados como seres vivos dotados de
sensibilidade e objeto de proteção jurídica em virtude da sua natureza (201º-B CC).
Desta forma, o legislador português tentou reconhecer aos animais um estatuto distinto
daquele das pessoas e daquele das coisas. No entanto, a verdade é que apesar das
alterações legislativas introduzidas por aquela lei, os animais, por um lado, continuam a
ser vistos como coisas e, por outro lado, o seu estatuto não sofreu modificações
especiais, sendo que, na ausência de lei especial, são aplicáveis subsidiariamente aos
animais as disposições relativas às coisas, desde que não sejam incompatíveis com a sua
natureza (201º-D CC).
Para além dos artigos 201º-B, 201º-C e 201º-D, foram introduzidas no Código Civil as
seguintes alterações:
1) 1302º CC: Aparentemente, o legislador português, ao autonomizar o direito de
propriedade sobre animais do direito de propriedade sobre coisas, pretendeu clarificar
que o titular do direito de propriedade só pode exercer poderes de uso, de fruição e de
disposição, de modo pleno e exclusivo, sobre coisas. No entanto, esta solução é alvo de
algumas críticas, uma vez que os poderes que o direito de propriedade confere ao seu
titular não são poderes ilimitados. Por um lado, o direito de propriedade só pode ser
exercido dentro dos limites da lei e com observância das restrições por ela impostas
(1305º CC). Por outro lado, é ilegítimo o exercício do direito de propriedade quando o
respetivo titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons
costumes ou pelo fim social ou económico desse direito (334º CC).
2) 1305º-A CC: Primeiro, os n. 1 e 2 não introduzem nenhuma novidade perante a
legislação dos animais de companhia. Segundo, não sendo reconhecida personalidade
jurídica aos animais (logo, não são sujeitos de Direito), os deveres previstos no n. 2 aos
proprietários não consubstanciam verdadeiros deveres jurídicos. Terceiro, não se faz
qualquer referência às consequências jurídicas pelo incumprimento desses deveres.
3) 1323º CC: Primeiro, excluiu-se o direito a um prémio dependente do valor do
animal, não se sabendo por que razão. Segundo, o achador do animal pode fazer seu o
animal perdido se o seu dono não aparecer dentro do prazo de um ano (n. 4). Isto
significa que, depois de estabelecida uma ligação entre o achador do animal e o animal
achado, este pode ser devolvido ao seu dono se este aparecer dentro do prazo
legalmente estabelecido. Terceiro, o achador de animal pode reter o animal achado em
caso de fundado receio de que este seja vítima de maus-tratos por parte do seu
proprietário (n. 7). Esta solução é alvo de algumas críticas:
1. Por um lado, a circunstância de um animal perdido ser encontrado em estado
deplorável não permite que o seu achador conclua pela existência de maus-tratos por
parte do seu proprietário.
2. Por outro lado, o poder de reter um animal perdido por parte do seu achador não
consubstancia um direito de retenção propriamente dito, uma vez que este não é titular
de um direito de crédito que visa satisfazer através da venda judicial do animal achado.
Conclusão: Teria sido preferível a criação de um novo Estatuto Jurídico dos Animais.

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9. Princípios do Direito das Coisas
9.1 Princípio da consensualidade
9.1.1 Sentido do princípio da consensualidade
O artigo 408º, n. 1 CC consagra o princípio da consensualidade, de acordo com o qual
a constituição, transmissão, modificação e extinção de direitos reais sobre coisa
determinada dá-se por mero efeito do contrato, i.e. basta um título (fundamento jurídico
que justifica a constituição, transmissão, modificação e extinção de direitos reais (ex.
lei, sentença judicial, negócio jurídico unilateral, contrato)), sendo desnecessário um
modo (ato de execução da vontade (ex. traditio, registo)).
9.1.2 Sistemas de produção de efeitos reais
Existem três sistemas de produção de efeitos reais:
1. Sistema de título: Nos sistemas de título, para que os direitos reais se constituam, se
transmitam, se modifiquem e se extingam, basta um título, sendo desnecessário um
modo (vale o princípio da consensualidade). Para que o título produza efeitos
obrigacionais e reais tem de ser existente, formal e substancialmente válido e
procedente (vale o princípio da causalidade). Tendo em conta a desnecessidade do
modo, este é apenas declarativo, visando apenas consolidar a oponibilidade erga omnes
do direito real em relação a certos e determinados terceiros.
2. Sistema de título e de modo: Dentro dos sistemas de título e de modo, importa
estabelecer a seguinte distinção:
→ Sistema de título e de modo simples: Nos sistemas de título e de modo simples,
para que os direitos reais se constituam, se transmitam, se modifiquem e se extingam, é
necessário um título e um modo (não vale o princípio da consensualidade). Para que o
título produza efeitos obrigacionais tem de ser existente, formal e substancialmente
válido e procedente (vale o princípio da causalidade), sendo necessário ainda um modo
que tanto pode ser a traditio rei, como o registo. O modo tanto pode ser declarativo,
visando consolidar a oponibilidade erga omnes do direito real em relação a certos e
determinados terceiros (ex. traditio rei), como constitutivo, desencadeando a produção
de efeitos reais (ex. registo).
→ Sistema de título e de modo complexo: Nos sistemas de título e de modo
complexo, para que os direitos reais se constituam, se transmitam, se modifiquem e se
extingam, é necessário um negócio obrigacional (título), um negócio real e um modo
(não vale o princípio da consensualidade). Para que o negócio obrigacional (título)
produza efeitos obrigacionais e o negócio real produza efeitos reais, aquele tem de ser
existente, formal e substancialmente válido e procedente (vale o princípio da
causalidade), sendo necessário ainda um modo que tanto pode ser a traditio rei, como o
registo. O modo tanto pode ser declarativo, visando consolidar a oponibilidade erga
omnes do direito real em relação a certos e determinados terceiros (ex. traditio rei),
como constitutivo, desencadeando a produção de efeitos reais (ex. registo).
3. Sistema de modo complexo: Nos sistemas de modo complexo, para que os direitos
reais se constituam, se transmitam, se modifiquem e se extingam, é necessário um
negócio obrigacional, um negócio real e um modo (não vale o princípio da
consensualidade). Para que o negócio obrigacional produza efeitos obrigacionais tem
de ser existente, formal e substancialmente válido e procedente; para que o negócio real
produza efeitos reais tem de ser existente, formal e substancialmente válido e
procedente (não vale o princípio da causalidade, uma vez que se o negócio
obrigacional for inexistente, formal ou substancialmente inválido ou procedente, tal é
irrelevante quanto à produção de efeitos reais), sendo necessário ainda um modo que

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tanto pode ser a traditio rei, como o registo. O modo tanto pode ser declarativo,
visando consolidar a oponibilidade erga omnes do direito real em relação a certos e
determinados terceiros (ex. traditio rei), como constitutivo, desencadeando a produção
de efeitos reais (ex. registo).
9.1.3 Exceções ao princípio da consensualidade
Apesar de bastar um título para a constituição, transmissão, modificação e extinção de
direitos reais sobre coisa determinada, sendo desnecessário um modo, existem algumas
exceções ao princípio da consensualidade, sendo, consequentemente, necessário um
modo. Exemplos:
1. Em matéria de doação de coisas móveis, vigora o artigo 947º, n. 2, primeira parte
CC, de acordo com o qual a doação de coisas móveis que não seja feita por escrito,
deve ser acompanhada de tradição da coisa doada.
2. Em matéria de penhor de coisas, vigora o artigo 669º, n. 1 CC, de acordo com o qual
o penhor só produz os seus efeitos pela entrega da coisa empenhada, ou de documento
que confira a exclusiva disponibilidade dela, ao credor ou a terceiro.
3. Em matéria de penhor de créditos, vigora o artigo 681º, n. 2 CC, de acordo com o
qual o penhor só produz os seus efeitos desde que seja notificado ao respetivo devedor,
ou desde que este o aceite, salvo tratando-se de penhor sujeito a registo, pois neste caso
produz os seus efeitos a partir do registo.
4. Em matéria de hipoteca, vigora o artigo 687º CC, de acordo com o qual a hipoteca
deve ser registada, sob pena de não produzir efeitos, mesmo em relação às partes.

Falsas exceções ao princípio da consensualidade:


- Do artigo 408º, n. 2 CC não decorre uma exceção ao princípio da
consensualidade, sendo apenas uma decorrência do conceito de coisa suscetível de
ser objeto de direitos reais. Deste modo, qualquer negócio jurídico que tenha por
objeto coisas futuras ou indeterminadas ou respeite a frutos naturais, partes
componentes e integrantes produz efeitos reais, a partir do momento em que as
coisas se tornarem atuais ou autónomas, do momento da colheita dos frutos naturais
e do momento da separação das partes componentes ou integrantes da coisa
principal, sendo, consequentemente, desnecessário um modo.
- Do artigo 409º, n. 1 CC não decorre uma exceção ao princípio da
consensualidade, conferindo apenas às partes a possibilidade de introduzirem uma
cláusula de reserva de propriedade num negócio jurídico que suspende a sua
eficácia real até ao cumprimento total ou parcial das obrigações da outra parte ou
até à verificação de qualquer outro evento. Ao invés, o legislador não confere às
partes a possibilidade de fazerem depender a produção de efeitos reais de um
negócio jurídico de um modo, pois tal compete exclusivamente ao legislador.

9.2 Princípio da taxatividade


9.2.1 Princípio da tipicidade e princípio da taxatividade
O princípio da taxatividade, consagrado no artigo 1306º, n. 1 CC, é muitas vezes
associado ao princípio da tipicidade, embora que com este não se confunda:
- O princípio da tipicidade manifesta o acolhimento de direitos reais construídos pela
realidade social no mundo jurídico. Isto não significa, todavia, que todos os direitos
reais construídos pela realidade social sejam acolhidos no mundo jurídico:
-» Há casos em que os direitos reais não são construídos pela realidade social, mas
são acolhidos no mundo jurídico (ex. direito real de habitação periódica/duradoura).
-» Há casos em que os direitos reais são construídos pela realidade social mas não
são acolhidos no mundo jurídico (ex. enfiteuse).

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- O princípio da taxatividade manifesta uma tipologia taxativa de direitos reais, não
podendo as partes constituir direitos reais fora dos casos previstos na lei, nem aplicar a
um direito “não-real” o regime jurídico de um direito real.
9.2.2 Sentido do princípio da taxatividade
O princípio da taxatividade deve ser analisado em três patamares distintos:
1) Primeiro, as partes não podem constituir direitos reais, direitos reais menores
(“restrições”) ou figuras que envolvem o desdobramento dos poderes diretos e
imediatos que o titular do direito de propriedade exerce sobre a coisa objeto do seu
direito (“figuras parcelares”) fora dos casos previstos na lei.
2) Segundo, as partes não podem alterar os traços essenciais do regime dos direitos
reais, podendo, todavia, moldar alguns dos seus aspetos pontuais. Exemplos:
- 1406º, n. 1 CC
- 1412º, n. 1 CC
- 1418º, n. 2 CC
- 1424º, n. 1 CC
- 1530º, n. 1 CC
- 1544º CC
- 1564º CC
- 1567º, n. 4 CC
3) Terceiro, as partes não podem constituir, transmitir, modificar e extinguir direitos
reais fora dos casos previstos na lei.
-» Exemplo: De acordo com o artigo 1316º CC, o direito de propriedade adquire-se
por [qualquer tipo de] contrato, sucessão por morte, usucapião, ocupação, acessão e
demais modos previstos na lei.
9.2.3 Consequências da violação do princípio da taxatividade
Havendo violação do princípio da taxatividade, importa estabelecer a seguinte distinção:
- “Figuras parcelares”: Se as partes constituírem uma figura que envolve o
desdobramento dos poderes diretos e imediatos que o titular do direito de propriedade
exerce sobre a coisa objeto do seu direito fora dos casos previstos na lei, o negócio
jurídico será nulo (294º CC), a não ser que o negócio jurídico seja convertido, devendo
estar preenchidos os requisitos previstos no artigo 293º CC.
- “Restrições”: Se as partes constituírem um direito real menor fora dos casos previstos
na lei, o negócio jurídico terá natureza obrigacional. Relativamente a esta questão,
existe uma divergência doutrinal:
1. Na esteira de Oliveira Ascensão, o negócio jurídico tendente à constituição de um
direito real menor fora dos casos previstos na lei seria nulo, mas converter-se-ia, por
força da lei, automaticamente num negócio jurídico com natureza obrigacional.
2. Na esteira de Pires de Lima e de Antunes Varela, o negócio jurídico tendente à
constituição de um direito real menor fora dos casos previstos na lei seria nulo, mas
converter-se-ia num negócio jurídico com natureza obrigacional desde que os requisitos
essenciais de substância e de forma estivessem preenchidos, presumindo a lei que a
conversão corresponde à vontade hipotético-conjetural das partes, presunção esta que é
ilidível [afastável mediante prova em contrário].
9.3 Princípio da publicidade
Antigamente, em sociedades com núcleos populacionais reduzidos, a constituição de
direitos reais por parte de determinadas pessoas podia ser conhecida pelos demais
através da celebração do negócio jurídico por aquelas celebrado. Sem embargo, com o
crescimento demográfico e com o consequente tráfico imobiliário, surgiram alguns
riscos relativos à segurança do direito e à segurança do tráfico:

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- Segurança do direito: Os titulares de determinado direito real passaram a correr o risco
de ver o seu direito real violado pela prática de atos de interferência na coisa objeto
daquele seu direito real por parte de terceiros.
- Segurança do tráfico: Os adquirentes de determinado direito real passaram a correr o
risco de adquirir uma coisa ou um direito real cuja titularidade não pertencia ao
transmitente, ficando desprovidos da coisa ou do direito que pensaram ter adquirido.
→ Face a estes riscos, a generalidade dos ordenamentos jurídicos passou a fazer
depender a oponibilidade erga omnes dos direitos reais sobre determinados bens da sua
publicidade registal, seja em relação a todo e qualquer terceiro (registo constitutivo),
seja em relação a certos e determinados terceiros (registo consolidativo).

Nota fundamental:
O ordenamento jurídico português faz depender a oponibilidade erga omnes dos
direitos reais sobre bens imóveis e sobre bens móveis equiparados por lei aos bens
imóveis (automóveis, aeronaves, aviões) em relação a certos e determinados
terceiros da sua publicidade registal (registo consolidativo).

Parte II
10. A posse
10.1 Conceções de posse
A posse pode ser encarada sob duas conceções distintas:
- Conceção objetiva: De acordo com a conceção objetiva, a posse exige o exercício de
poderes de facto sobre uma coisa, mas sem uma intencionalidade específica.
- Conceção subjetiva: De acordo com a conceção subjetiva, a posse exige o exercício
de poderes de facto sobre uma coisa (corpus) e a intenção de exercer tais poderes nos
termos de um direito real (animus).
Nota fundamental:
A grande diferença entre um sistema que tem por base uma conceção objetiva da
posse e um sistema que tem por base uma conceção subjetiva da posse reside no
facto de, naquele, não é possível distinguir os possuidores e os meros detentores,
gozando ambos de tutela possessória, enquanto que neste é possível distinguir os
possuidores e os meros detentores, gozando apenas aqueles de tutela possessória.
-» Exemplo: A, possuidor em termos de propriedade, arrenda um prédio a B.
Num sistema objetivo, tanto A, como B são possuidores, gozando ambos de tutela
possessória. Num sistema subjetivo, B não exerce poderes de facto sobre uma
coisa em termos de um direito real, mas antes de um direito de crédito; logo, não é
possuidor, mas mero detentor, não gozando de tutela possessória.

O Direito Português enquadra-se no sistema que tem por base uma conceção subjetiva
da posse, exigindo para que se esteja perante uma posse o exercício poderes de facto
sobre uma coisa ou a possibilidade empírica desse exercício (corpus) e a intenção de
exercer tais poderes em termos de um direito real (animus). Deste modo, conclui-se que
a posse (1251º CC) não se confunde com a mera detenção (1253º CC), pois esta, apesar
de exigir corpus, não exige animus. Casos:
a) Os que se aproveitam da inércia do titular da coisa objeto do seu direito real.
-» Exemplo: Imagine-se que A plantou uma árvore junto à extrema do seu terreno
que cresceu e invadiu o terreno vizinho. Neste caso, tanto a árvore, como os frutos que
ela produz pertencem a A. Sendo assim, se os frutos caírem no terreno vizinho, A pode

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ir apanhá-los. Porém, se o vizinho reparar que A não os apanha, pode aproveitar e
apanhá-los ele mesmo. Está-se perante uma mera detenção.
b) Os que se aproveitam da tolerância do titular do direito real.
-» Exemplo: Imagine-se que A passa pelo terreno do vizinho porque o vizinho o
tolera. Está-se perante uma mera detenção.
c) Os que exercem poderes de facto sobre uma coisa nos termos de um direito de crédito
(ex. mandatário, locatário, comodatário, etc.).
Enquadrando-se o Direito Português no sistema que tem por base uma conceção
subjetiva da posse, em rigor, apenas aos possuidores seria concedida tutela possessória.
No entanto, existe um conjunto de meros detentores a quem foi excecionalmente
concedida tutela possessória: o locatário (1037º, n. 2 CC), o parceiro pensador (1125º,
n. 2 CC), o comodatário (1133º, n. 2 CC) e o depositário (1188º, n. 2 CC).
10.2 Conceito de posse
De acordo com o artigo 1251º CC, a posse é o poder que se manifesta quando alguém
atua (corpus) por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de
outro direito real (animus). Sendo assim, enquadrando-se o Direito Português no
sistema que tem por base uma conceção subjetiva da posse, a posse exige a verificação
dos seus dois elementos essenciais:
- Corpus: Exercício de poderes de facto sobre uma coisa ou a possibilidade empírica
desse exercício
- Animus: Intenção de exercer tais poderes nos termos de um direito real
A posse tanto pode ser causal, como formal:
- Posse causal: A posse é causal quando se funda num direito real.
-» Exemplo: A é proprietário de um livro e exerce sobre ele poderes de facto. Logo,
A exerce poderes de facto porque é titular de um direito real.
- Posse formal: A posse é formal quando não se funda num direito real.
-» Exemplo: A exigiu a constituição de uma servidão de passagem sobre o terreno de
B. No entanto, tal constituição não obedeceu às formalidades legalmente exigidas para o
efeito. Logo, A exerce poderes de facto porque pensa ser titular de um direito real.
10.3 Direitos reais nos termos dos quais se possui
A posse pode ser exercida nos termos de todos os direitos reais de gozo (direito de
propriedade, propriedade horizontal, direito de usufruto, direito de uso, direito de
habitação, direito de superfície, direito de habitação periódica, direito de habitação
duradoura) e de certos direitos reais de garantia (penhor de coisa e direito de
retenção). Sendo assim, os direitos reais de aquisição não são direitos reais nos termos
dos quais se pode possuir.
10.4 Formas de aquisição da posse
A posse pode ser adquirida originária ou derivadamente.
10.4.1 Aquisição originária
A posse é adquirida originariamente quando não se funda numa posse do anterior
possuidor. São cinco as formas de aquisição originária da posse:
1) Ocupação: A ocupação é uma forma de aquisição originária da posse quando não
estão preenchidos os requisitos estabelecidos nos artigos 1318º e ss. CC.
-» Exemplo: A encontra uma carteira, não anuncia o achado, nem aguarda o prazo de
um ano dentro do qual o proprietário deve reclamá-lo e começa a exercer poderes de
facto sobre a dita carteira (corpus) nos termos de um direito real sobre a mesma
(animus). Neste caso, A adquiriu originariamente a posse por ocupação.

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2) Acessão: A acessão é uma forma de aquisição originária da posse quando não estão
preenchidos os requisitos estabelecidos nos artigos 1325º e ss. CC.
-» Exemplo: A constrói, de boa-fé, obra em terreno de B, a nova realidade passa a
valer mais do dobro do que a antiga realidade, A decide não pagar o valor da antiga
realidade para adquirir a propriedade do terreno a B e começa a exercer poderes de facto
sobre o dito terreno (corpus) nos termos de um direito real sobre o mesmo (animus).
Neste caso, A adquiriu originariamente a posse por acessão.
3) Aquisição paulatina: A aquisição paulatina é uma forma de aquisição originária da
posse que envolve a prática reiterada (1), com publicidade [ou seja, à vista do público
em geral] (2), de atos materiais (3) nos termos de um direito real (4) (1263º, al. a) CC).
-» Exemplo: A, proprietário de um terreno, decidiu emigrar, tendo deixado de dar
notícias. B, seu vizinho, resolveu cultivar um pouco do terreno do seu vizinho A, sendo
que, passados uns anos, B passou a cultivar o terreno inteiro de A. Neste caso, B
adquiriu originariamente a posse por aquisição paulatina.
4) Inversão do título de posse: A inversão do título de posse é uma forma de aquisição
originária da posse que envolve a conversão de uma mera detenção (corpus e animus
detinendi) numa posse (corpus e animus possidendi) (1263º, al. d) CC).
→ A inversão do título de posse pode revestir duas modalidades (1265º CC):
- Inversão do título de posse por oposição do mero detentor ao até ali possuidor:
A inversão do título de posse por oposição do mero detentor ao até ali possuidor pode
ser:
-» Oposição explícita: Há uma inversão do título de posse por oposição explícita
do mero detentor ao até ali possuidor quando aquele revela a este, através de um ato de
comunicação, que se converteu de um mero detentor (deixa de exercer poderes de facto
sobre a coisa com animus detinendi) num possuidor (passa a exercer poderes de facto
sobre a coisa com animus possidendi).
-» Exemplo: Imagine-se que A, inquilino, encontra um testamento, nos termos
do qual ele é, afinal, proprietário do imóvel objeto do arrendamento, tendo deixado de
se comportar como um inquilino e passado a comportar-se como se fosse um
proprietário (possuidor).
-» Oposição implícita: Há uma inversão do título de posse por oposição implícita
do mero detentor ao até ali possuidor quando aquele revela a este, através de
determinados atos inequívocos, que se converteu de um mero detentor (deixa de exercer
poderes de facto sobre a coisa com animus detinendi) num possuidor (passa a exercer
poderes de facto sobre a coisa com animus possidendi).
-» Exemplo: Imagine-se que A, inquilino, vende o imóvel objeto de
arrendamento, tendo deixado de se comportar como um inquilino e passado a
comportar-se como se fosse um proprietário (possuidor).
- Inversão do título de posse por ato de terceiro: Há uma inversão do título de
posse por ato de terceiro quando um terceiro, não-possuidor e não-detentor, convence o
mero detentor de que é titular de um direito real, celebra com ele um negócio jurídico
tendente à constituição, transmissão, modificação ou extinção de um direito real e, após
a celebração desse negócio jurídico, o mero detentor (deixa de exercer poderes de facto
sobre a coisa com animus detinendi) converte-se num possuidor (passa a exercer
poderes de facto sobre a coisa com animus possidendi).
-» Exemplo: Imagine-se que A, proprietário e possuidor do imóvel X, deu de
arrendamento o dito imóvel a B, mero detentor. A certa altura, aparece um C que
convence B de que é titular de um direito de propriedade sobre o imóvel, mostrando-lhe
um testamento. De seguida, B e C celebram um negócio jurídico com vista à

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transmissão do direito real ou à constituição de direito real menor sobre o dito imóvel,
tendo B deixado de se comportar como um inquilino e passado a comportar-se como se
fosse um proprietário (possuidor).
5) Usurpação: A usurpação é composta por todas as formas de aquisição originária da
posse contra a vontade do possuidor.
10.4.2 Aquisição derivada
A posse é adquirida derivadamente quando se funda numa posse do anterior possuidor.
São duas as formas de aquisição derivada da posse:
1) Aquisição por tradição ficta: A aquisição por tradição ficta ou por sucessão mortis
causa é uma forma de aquisição derivada da posse. De acordo com o artigo 1255º CC,
por morte do possuidor, a mesma posse continua nos seus sucessores desde o momento
da morte.
2) Aquisição por tradição real: A aquisição por tradição real ou por transmissão inter
vivos é uma forma de aquisição derivada da posse.
→ A aquisição por tradição real pode revestir duas modalidades:
- Aquisição por tradição real explícita: A aquisição por tradição real explícita
envolve a transmissão inter vivos da posse, sendo necessário um ato de empossamento.
-» Exemplo: Imagine-se que A, proprietário de um imóvel, celebra um contrato de
compra e venda com B por documento particular, tendo já entregado as chaves do dito
imóvel (ato de empossamento). Este contrato padece de um vício de forma, uma vez que
deve ser celebrado por escritura pública ou documento particular autenticado (875º CC).
Sendo assim, B não se torna proprietário do imóvel, mas torna-se possuidor, uma vez
que passa a exercer poderes de facto sobre o imóvel (corpus) com a intenção de exercer
tais poderes nos termos de um direito de propriedade (animus).
- Aquisição por tradição real implícita: A aquisição por tradição real implícita
envolve a transmissão inter vivos da posse, não sendo necessário um ato de
empossamento.
→ A aquisição por tradição real implícita pode revestir duas modalidades:
-» traditio brevi manu: A traditio brevi manu ocorre quando um mero detentor se
converte num possuidor através da celebração de um negócio jurídico com o até ali
possuidor.
-» Exemplo: Imagine-se que A, proprietário e possuidor de um imóvel, dá-o de
arrendamento a B, mero detentor. Entretanto, A decide vender o mesmo imóvel e dá
preferência a B. B exerce essa preferência. Através da celebração de um contrato de
compra e venda, B, o anterior mero detentor, converte-se em proprietário e possuidor,
continuando a exercer poderes de facto sobre o imóvel, mas com outra intencionalidade.
-» constituto possessório: O constituto possessório pode revestir duas
modalidades (1264º CC):
1. Bilateral: O constituto possessório bilateral ocorre quando o possuidor se
converte num mero detentor através da celebração de dois negócios jurídicos: um que se
destina a transferir um determinado direito real a terceiro; o outro que se destina a
atribuir a qualidade de mero detentor ao até ali possuidor.
-» Exemplo: Imagine-se que A, proprietário e possuidor de um imóvel, está
a passar por dificuldades financeiras e decide vendê-lo a B. Entretanto, B e A decidem
celebrar um contrato de arrendamento para que A continue a viver no dito imóvel. Por
um lado, através da celebração do contrato de compra e venda, B tornou-se proprietário
e possuidor. Por outro lado, através da celebração do contrato de arrendamento, A, o
anterior proprietário e possuidor, converte-se em mero detentor, continuando a exercer
poderes de facto sobre o imóvel, mas com outra intencionalidade.
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2. Trilateral: O constituto possessório trilateral ocorre quando o possuidor
transmite a posse, mas o novo possuidor não passa a exercer diretamente poderes de
facto sobre a coisa porque um terceiro mantém uma relação de mera detenção.
-» Exemplo: Imagine-se que A, proprietário e possuidor de um imóvel, dá-o
de arrendamento a B, mero detentor. Entretanto, A decide vender o mesmo imóvel e dá
preferência a B. B não exerce essa preferência. Logo, decide vender a C que se torna
novo proprietário e possuidor do imóvel. No entanto, C não passa a exercer poderes de
facto diretamente sobre a coisa porque B continua na qualidade de arrendatário.

Caso prático:
Imagine-se que A passou por uma montra e viu um relógio valioso. Entrou, falou
com o Sr. Gerente e decide comprá-lo. Após ter pagado o relógio, A diz: “Não vou
poder levar o relógio já para casa e dava-me jeito que o Sr. Gerente continuasse
aqui com ele até que possa vir cá buscá-lo.” O Sr. Gerente aceita.
Resolução:
A tornou-se proprietário do relógio, de acordo com o princípio da consensualidade.
Para além de proprietário, tendo em conta que A tem a possibilidade empírica de
exercer poderes de facto sobre o relógio (corpus) com a intenção de os exercer nos
termos de um direito de propriedade (animus), A é possuidor. A posse foi adquirida
de forma derivada por tradição real (transmissão inter vivos), implícita (não tendo
sido necessário ato de empossamento), constituto possessório bilateral (A tornou-se
titular de um direito real; Sr. Gerente deixou de ser possuidor e passou a ser mero
detentor).

10.5 Características da posse


De acordo com o artigo 1258º CC, a posse pode ser titulada ou não-titulada (1), de boa-
fé ou de má-fé (2), pacífica ou violenta (3), pública ou oculta (4).
10.5.1 Posse titulada e não-titulada
De acordo com o artigo 1259º, n. 1 CC, diz-se titulada a posse fundada em qualquer
título abstratamente idóneo à aquisição do direito real nos termos do qual se visa
possuir, independentemente, quer do direito do transmitente, quer da validade
substancial do negócio jurídico. A propósito desta última parte, importa referir o
seguinte:
1. Os negócios jurídicos são títulos abstratamente idóneos à aquisição do direito real nos
termos do qual se visa possuir. No entanto, não são os únicos.
-» Exemplo: Imagine-se que B encontra um relógio que pertence a A, passou a
exercer poderes de facto sobre ele e depois vendeu-o a C. A posse adquirida por B é
uma posse titulada, uma vez que se funda num título (ocupação, que não é um negócio
jurídico) abstratamente idóneo à aquisição do direito real nos termos do qual se visa
possuir (direito de propriedade), remetendo para o artigo 1316º CC. Por outro lado, a
posse adquirida por C é uma posse titulada, uma vez que se funda num título (contrato
de compra e venda, que é um negócio jurídico) abstratamente idóneo à aquisição do
direito real nos termos do qual se visa possuir (direito de propriedade), remetendo para
o artigo 1316º CC.
2. Os negócios jurídicos são títulos abstratamente idóneos à aquisição do direito real nos
termos do qual se visa possuir, independentemente de serem ou não substancialmente
inválidos. No entanto, há que introduzir duas ressalvas:
- Nos casos de simulação absoluta e de reserva mental absoluta e nos casos de
simulação relativa e de reserva mental relativa, não há posse, pois o adquirente, apesar
de ter corpus, não tem animus. Logo, não se coloca o problema do título da posse.

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-» Exemplo: Imagine-se que A decidiu falar com B, seu amigo, e propôs-lhe
simular uma compra e venda sobre o seu imóvel para enganar os seus credores. Para dar
mais credibilidade à situação, A decidiu sair do imóvel e B passou a ir para lá viver.
Neste caso, apesar de B exercer poderes de facto sobre o imóvel (corpus), não tem
intenção de exercer tais poderes como se fosse titular de um direito real. Não tendo
animus, não há posse. Logo, não se coloca o problema do título da posse.
- Nos casos que conduzem à inexistência do negócio jurídico, há posse, pois o
adquirente tem corpus e animus. No entanto, a posse não se funda num negócio jurídico
abstratamente idóneo à aquisição do direito real nos termos do qual se visa possuir,
sendo a posse, consequentemente, não-titulada.
-» Exemplo: Imagine-se que A atirou o seu telemóvel a B, que o apanha, e
pergunta-lhe se quer comprá-lo por 10€, sendo que B prontamente aceitou. Neste caso,
B tem a possibilidade empírica de exercer poderes de facto sobre o telemóvel (corpus) e
tem a intenção de exercer tais poderes como se fosse titular de um direito real (animus).
Logo, há posse. No entanto, esta não se funda num título abstratamente idóneo à
aquisição do direito real nos termos do qual se visa possuir, pois está-se perante um
negócio jurídico inexistente, sendo a posse, consequentemente, não-titulada.
3. Com base num argumento a contrario, os negócios jurídicos não são títulos
abstratamente idóneos à aquisição do direito real nos termos do qual se visa possuir se
forem formalmente inválidos.
Nota fundamental:
A distinção entre posse titulada e posse não-titulada releva para os seguintes efeitos:
- 1260º, n. 2 CC: A posse titulada presume-se de boa-fé, e a não-titulada, de má-fé,
sendo tal presunção ilidível mediante prova em contrário.
- 1294º e ss. CC para efeitos de usucapião.

10.5.2 Posse de boa-fé e posse de má-fé


De acordo com o artigo 1260º, n. 1 CC, a posse diz-se de boa-fé, quando o possuidor
ignorava, ao adquiri-la, que lesava o direito de outrem. Sendo assim, com base num
argumento a contrario, a posse diz-se de má-fé, quando o possuidor conhecia, ao
adquiri-la, que lesava o direito de outrem.
Nota fundamental:
A distinção entre posse de boa-fé e posse de má-fé releva para os seguintes efeitos:
- 1269º e ss. CC para efeitos de benfeitorias, frutos e perda ou deterioração da
coisa.
- 1294º e ss. CC para efeitos de usucapião.

10.5.3 Posse pacífica e posse violenta


De acordo com o artigo 1261º CC, posse pacífica é a que foi adquirida sem violência.
Sendo assim, posse violenta é a que foi adquirida sob coação física ou coação moral.
Nota fundamental:
A distinção entre posse pacífica e posse violenta releva para os seguintes efeitos:
- 1260º, n. 3 CC: A posse adquirida por violência é sempre considerada de má-fé,
mesmo quando seja titulada.
- 1267º, n. 2 CC para efeitos de tutela possessória.
- 1295º, n. 2 CC para efeitos de registo da mera posse.
- 1297º CC e 1300º CC para efeitos de usucapião.

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10.5.4 Posse pública e posse oculta
De acordo com o artigo 1262º CC, posse pública é a que se adquire de modo a poder
ser conhecida pelos interessados (anterior(es) possuidor(es)). Sendo assim, com base
num argumento a contrario, posse oculta é a que não se adquire de modo a poder ser
conhecida pelos interessados (anterior(es) possuidor(es)).
A publicidade da posse é aferida pelos padrões da cognoscibilidade, e não pelo efetivo
conhecimento por parte do(s) interessado(s). Sendo assim, a posse é pública se um
homem medianamente prudente, razoável, diligente, colocado na posição do real
interessado, estaria em condições de dela conhecer.
-» Exemplo: A, proprietário de um imóvel, emigrou e nunca mais voltou à sua terra.
B, seu vizinho, começou pouco a pouco a cultivar o seu terreno. Neste caso, B adquiriu
originariamente a posse por aquisição paulatina. É uma posse não-titulada, uma vez que
não se funda num título abstratamente idóneo à aquisição do direito real nos termos do
qual se visa possuir (direito de propriedade), remetendo para o artigo 1316º CC. Sendo
uma posse não-titulada, presume-se de má-fé, nos termos do artigo 1260º, n. 2 CC. É
uma posse pacífica, pois não foi adquirida sob coação física, nem sob coação moral
(1261º CC). Por fim, é uma posse pública, uma vez que um homem medianamente
prudente, razoável, diligente, colocado na posição de A (real interessado), estaria em
condições de dela conhecer (1262º CC).
10.6 Perda da posse
A perda da posse encontra-se prevista no artigo 1267º, n. 1 CC, de acordo com o qual o
possuidor perde a posse:
al. a): pelo abandono, ou seja, quando o possuidor deixa de ter corpus.
al. b): pela perda ou destruição total da coisa.
al. c): pela cedência, ou seja, quando o possuidor transmite a posse.
al. d): pela posse de outrem, mesmo contra a vontade do até ali possuidor, se a nova
posse houver durado por mais de um ano, ou seja, quando alguém adquire a posse e esta
dure um ano e um dia. Este prazo só começa a correr a partir do momento em que a
posse do novo possuidor seja pacífica e pública.
10.7 Meios de defesa da posse
Se alguém for proprietário e possuidor (sendo, portanto, a posse causal), poderá lançar
mão tanto dos meios de defesa do seu direito real, como dos meios de defesa da posse.
Se, no entanto, alguém for só possuidor (sendo, portanto, a posse formal), apenas
poderá lançar mão dos seguintes meios de defesa da posse:
10.7.1 Ações possessórias
1) Ação de prevenção da posse: A ação de prevenção da posse encontra-se prevista no
artigo 1276º CC, de acordo com o qual se o possuidor tiver justo receio de ser
perturbado ou esbulhado/privado da sua posse em virtude de uma ameaça, que tanto
pode consistir em palavras, como em atos, será o autor da ameaça (legitimidade
passiva), a requerimento do ameaçado (legitimidade ativa), intimado para se abster de
lhe fazer agravo, sob pena de multa e responsabilidade pelo prejuízo que causar.
-» Exemplo: Imagine-se que A passa, há mais de X anos, pelo terreno de B como se
fosse titular de uma servidão de passagem. A certa altura, B diz-lhe para não voltar a
passar pelo seu terreno, sob pena de soltar os cães para o abocanhar. Neste caso, A
(possuidor) tem o justo receio de ser perturbado ou esbulhado por B em virtude de uma
ameaça por este proferida, podendo intentar uma ação de prevenção da posse.

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2) Ação de manutenção da posse: A ação de manutenção da posse encontra-se prevista
no artigo 1278º CC, de acordo com o qual se, apesar de não ter sido esbulhado/privado
da sua posse, o modo de exercício da posse por parte do possuidor tiver sido alterado
pela prática de um ato de perturbação da posse, deverá ser intentada pelo possuidor
perturbado ou pelos seus herdeiros (legitimidade ativa) contra o perturbador
(legitimidade passiva) (1281º, n. 1 CC) uma ação de manutenção da posse no prazo de
um ano (1282º CC). Se esta ação for julgada procedente, o perturbado que foi mantido
na sua posse é havido como nunca perturbado (1283º CC), tendo direito a ser
indemnizado pelo prejuízo que haja sofrido em consequência da perturbação (1284º, n.
1 CC).
-» Exemplo: Imagine-se que A passa, há mais de X anos, pelo terreno de B como se
fosse titular de uma servidão de passagem. A certa altura, B resolveu colocar um
conjunto de troncos na zona por onde A costumava passar. Neste caso, apesar de não ter
sido esbulhado, o modo de exercício da posse por parte de A (possuidor) foi alterado
pela prática de um ato de perturbação da posse por parte de B, podendo intentar uma
ação de manutenção da posse.
Nota fundamental:
De acordo com o artigo 1278º, n. 2 e 3 CC, se a posse não tiver mais de um ano, o
possuidor só pode ser mantido contra quem não tiver melhor posse, sendo melhor
posse a que for titulada; na falta de título, a mais antiga; se tiverem igual
antiguidade, a posse atual.

3) Ação de restituição da posse: A ação de restituição da posse encontra-se prevista no


artigo 1278º CC, de acordo com o qual se o possuidor tiver sido total ou parcialmente
esbulhado/privado da sua posse, deverá ser intentada pelo esbulhado ou pelos seus
herdeiros (legitimidade ativa) contra o esbulhador, os seus herdeiros e/ou terceiro que
esteja na posse da coisa e tenha conhecimento do esbulho (legitimidade passiva) (1281º,
n. 2 CC) uma ação de restituição da posse no prazo de um ano (1282º CC). Se esta
ação for julgada procedente, o esbulhado a quem foi restituída a posse é havido como
nunca esbulhado (1283º CC), tendo direito a ser indemnizado pelo prejuízo que haja
sofrido em consequência do esbulho (1284º CC).
-» Exemplo: Imagine-se que A passa, há mais de X anos, pelo terreno de B como se
fosse titular de uma servidão de passagem. A certa altura, B resolveu vedar o seu
terreno. Neste caso, A foi privado de exercer a sua posse por B, podendo intentar uma
ação de restituição da posse.
Atenção: Se o até ali possuidor tiver sido esbulhado por terceiro que esteja na posse da
coisa e não intentar uma ação de restituição da posse dentro do prazo de um ano, ele
perderá a posse a favor desse terceiro, nos termos do artigo 1267º, al. d) CC.
Nota fundamental:
De acordo com o artigo 1278º, n. 2 e 3 CC, se a posse não tiver mais de um ano, o
possuidor só pode ser restituído contra quem não tiver melhor posse, sendo melhor
posse a que for titulada; na falta de título, a mais antiga; se tiverem igual
antiguidade, a posse atual.

10.7.2 Providência cautelar contra o esbulho violento


O possuidor que for esbulhado com violência pode lançar mão da providência cautelar
nominada do artigo 1279º CC, tendo o direito de ser restituído provisoriamente à sua
posse, sem audiência do esbulhador. Esta providência cautelar pode ser requerida antes
da propositura da ação principal (ação de restituição da posse) ou no decurso da mesma.

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10.7.3 Embargos de terceiro
De acordo com o artigo 1285º CC, o possuidor cuja posse for ofendida por penhora ou
diligência ordenada judicialmente pode defender a sua posse mediante embargos de
terceiro.
10.8 Efeitos da posse
10.8.1 Presunção da titularidade do direito
De acordo com o artigo 1268º CC, o possuidor goza da presunção da titularidade do
direito (1), exceto se existir, a favor de outrem, presunção fundada em registo anterior
ao início da posse (2).
1) Isto significa que se o possuidor for titular do direito real (sendo, portanto, a posse
causal), poderá lançar mão desta presunção para provar a titularidade do direito real.
2) Isto significa que:
- Se a data do registo for anterior à data do início da posse, prevalece a presunção da
titularidade do direito fundada no registo.
- Se a data do registo coincidir com a data do início da posse, prevalece a presunção da
titularidade do direito fundada na posse.
- Se a data do registo for posterior à data do início da posse, prevalece a presunção da
titularidade do direito fundada na posse.
10.8.2 Responsabilidade do possuidor pela perda ou deterioração da coisa
De acordo com o artigo 1269º CC, o possuidor de boa-fé só responde pela perda ou
deterioração da coisa se tiver procedido com culpa. Quanto ao possuidor de má-fé,
poder-se-á seguir uma de duas soluções:
1. Com base num argumento a contrario, o possuidor de má-fé responde sempre pela
perda ou deterioração da coisa.
2. De acordo com Henrique Mesquita, o possuidor de má-fé responde sempre pela perda
ou deterioração da coisa, salvo se provar que o credor teria sofrido igualmente os danos
se a coisa tivesse sido restituída (805º, n. 2, al. b) CC e 807º CC).
10.8.3 Direitos e obrigações do possuidor em relação aos frutos da coisa
O possuidor de boa-fé:
- Faz seus os frutos percebidos (1270º, n. 1 CC).
- Perde os frutos pendentes, mas tem direito a ser indemnizado das despesas de cultura,
sementes ou matérias-primas e, em geral, de todas as despesas de produção, desde que
não sejam superiores ao valor dos frutos que vierem a ser colhidos (1270º, n. 2 CC).
- Não responde pelos frutos percipiendos (1271º CC, com base num argumento a
contrario).
O possuidor de má-fé:
- Tem de restituir os frutos percebidos, mas tem direito a ser indemnizado das despesas
de cultura, sementes e matérias-primas e dos restantes encargos de produção e colheita,
desde que não sejam superiores ao valor desses frutos (215º, n. 1 CC).
- Perde os frutos pendentes, não tendo direito a qualquer indemnização (215º, n. 2
CC).
- Responde pelos frutos percipiendos (1271º CC).
10.8.4 Direitos do possuidor em relação as benfeitorias realizadas pelo possuidor
- Benfeitorias necessárias: Tanto o possuidor de boa-fé, como o possuidor de má-fé
têm o direito a ser indemnizados das benfeitorias necessárias que hajam feito (1273º, n.
1, primeira parte CC). Enquanto não for indemnizado, o possuidor de boa-fé goza do
direito de retenção (754º CC); já o possuidor de má-fé não goza de tal direito (756º, al.
b) CC).

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- Benfeitorias úteis: Tanto o possuidor de boa-fé, como o possuidor de má-fé têm o
direito a levantar as benfeitorias úteis realizadas na coisa, desde que o possam fazer sem
detrimento dela (1273º, n. 1, segunda parte CC). Quando não seja possível levantar as
benfeitorias úteis realizadas na coisa sem detrimento dela, o possuidor tem direito a ser
ressarcido nos termos de enriquecimento sem causa (1273º, n. 2 CC). Enquanto não for
ressarcido nos termos de enriquecimento sem causa, o possuidor de boa-fé goza do
direito de retenção (754º CC); já o possuidor de má-fé não goza de tal direito (756º, al.
b) CC).
- Benfeitorias voluptuárias: O possuidor de boa-fé tem direito a levantar as
benfeitorias voluptuárias realizadas na coisa, desde que o possa fazer sem detrimento
dela (1275º, n. 1 CC). O possuidor de má-fé perde sempre as benfeitorias voluptuárias
que haja feito (1275º, n. 2 CC).
10.8.5 Usucapião
De acordo com o artigo 1287º CC, a posse (1) [pacífica e pública (2)] do direito de
propriedade ou de outros direitos reais de gozo (3), mantida por certo lapso de tempo
(4), faculta ao possuidor (5) a aquisição do direito nos termos do qual se possui; é o que
se chama usucapião. Sendo assim, para que haja usucapião, é necessário que estejam
preenchidos os seguintes requisitos:
1) Tem de haver posse (corpus e animus).
2) Tem de haver posse pacífica e pública (1297º CC).
3) Tem de haver posse nos termos de direito de propriedade ou de um direito real de
gozo. No entanto, dentro dos direitos reais de gozo, não podem adquirir-se por
usucapião as servidões prediais não-aparentes, o direito de uso e o direito de habitação
(1293º CC).
4) A posse tem de ser mantida por certo lapso de tempo:
- Quanto às coisas imóveis:
-» Havendo título de aquisição e registo deste, a usucapião tem lugar quando a posse,
sendo de boa-fé, tiver durado 10 anos, contados desde a data do registo e, sendo de má-
fé, tiver durado 15 anos, contados desde a data do registo (1294º CC).
-» Não havendo título de aquisição nem registo deste, a usucapião tem lugar quando
a posse, sendo de boa-fé, tiver durado 15 anos e, sendo de má-fé, tiver durado 20 anos
(1296º CC).
- Quanto às coisas móveis:
-» Havendo título de aquisição e registo deste, a usucapião de coisas móveis sujeitas
a registo tem lugar quando a posse, sendo de boa-fé, tiver durado 2 anos e, sendo de
má-fé, tiver durado 4 anos (1298º, al. a) CC).
-» Não havendo registo, a usucapião de coisas móveis sujeitas a registo tem lugar
quando a posse, independentemente da boa-fé do possuidor e da existência do título,
tiver durado 10 anos (1298º, al. b) CC).
-» A usucapião de coisas móveis não-sujeitas a registo tem lugar quando a posse, de
boa-fé e fundada em justo título, tiver durado 3 anos, ou quando, independentemente da
boa-fé e de título, tiver durado 6 anos (1299º CC).
5) A usucapião tem de ser invocada. O artigo 1292º CC manda aplicar à usucapião,
com as necessárias adaptações, as disposições relativas à suspensão da prescrição (318º
e ss. CC) e à interrupção da prescrição (323º e ss. CC), bem como os artigos 303º CC e
305º CC:
- 303º CC: O tribunal não pode invocar, de ofício, a usucapião; esta necessita, para ser
eficaz, de ser invocada, judicial ou extrajudicialmente, por aquele a quem aproveita,

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pelo seu representante ou, tratando-se de incapaz, pelo Ministério Público. Invocada a
usucapião, os seus efeitos retrotraem-se à data do início da posse (1288º CC).
-» Exemplo: A, proprietário de um terreno, decidiu emigrar, tendo deixado de dar
notícias. B, seu vizinho, resolveu cultivar um pouco do terreno do seu vizinho A, sendo
que, passados uns anos, B passou a cultivar o terreno inteiro de A. Passados 22 anos, A
regressa e intenta contra B uma ação de reivindicação. Neste caso, existindo posse
pacífica e pública nos termos de direito de propriedade, tendo decorrido determinado
período de tempo e sendo invocada a usucapião por parte de B, este deve formular um
pedido reconvencional, pedindo a aquisição do direito por usucapião. Se este pedido for
julgado procedente, o pedido principal será, consequentemente, julgado improcedente e
os efeitos da usucapião retrotrair-se-ão à data do início da posse.
- 305º CC: A usucapião é invocável pelos credores e por terceiros com legítimo
interesse na sua declaração, ainda que o devedor a ela tenha renunciado.
-» Exemplo: Imagine-se que A exerce posse pacífica e pública em termos de
determinado direito real de gozo há mais de 20 anos. Invocando a usucapião, A poderia
adquirir o direito real de gozo em questão mas sabe que, se o fizer, os seus credores
poderão intentar contra ele uma ação executiva por forma a satisfazer os seus créditos.
10.8.6 Acessão da posse
De acordo com o artigo 1256º CC, aquele que houver adquirido derivadamente a posse
de outrem por tradição real pode juntar à sua a posse do antecessor para efeitos de
prazo. Se, porém, a posse do antecessor for de natureza diferente da posse do sucessor, a
acessão só se dará dentro dos limites daquela que tem menor âmbito.
-» Exemplo: Imagine-se que A, possuidor, transmite a sua posse a B e este transmite-
a a C. A certa altura, C quer invocar a aquisição do direito real nos termos do qual
possui por usucapião. No entanto, a posse não foi mantida durante o período de tempo
legalmente estabelecido. Neste caso, C poderá juntar a posse de B e a posse de A, desde
que adquiridas derivadamente, para efeitos de prazo.
Parte III
11. Direito de propriedade
11.1 Conceito de direito de propriedade
O direito de propriedade é o mais amplo dos direitos reais, conferindo ao seu titular, de
modo pleno e exclusivo, os poderes de uso (poder de utilizar a coisa), de fruição (poder
de retirar da coisa as utilidades que dela emergem) e de disposição (poder de
transformar, onerar ou alienar a coisa) sobre as coisas que lhe pertencem, dentro dos
limites da lei e com observância das restrições por ela impostas (1305º CC).
-» Exemplo: O titular de um direito de propriedade sobre uma casa pode, respeitando
os limites da lei e as restrições por ela impostas, habitá-la (uso), arrendá-la (fruir), nela
fazer obras (transformar), constituir sobre ela uma hipoteca (onerar), vendê-la (alienar).
11.2 Objeto do direito de propriedade
De acordo com o artigo 1302º CC, as coisas corpóreas, móveis ou imóveis (1305º CC),
e os animais (1305º-A CC) podem ser objeto do direito de propriedade. Quanto às
coisas imóveis, nos termos do artigo 1344º CC, a sua propriedade abrange o espaço
aéreo correspondente à superfície, bem como ao subsolo, com tudo o que neles se
contém e não esteja desintegrado do domínio por lei ou negócio jurídico. No entanto, o
proprietário não pode proibir os atos de terceiro que, pela altura ou profundidade a que
têm lugar, não haja interesse em impedir.

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11.3 Características do direito de propriedade
11.3.1 Unidade ou unicidade
O direito de propriedade é insuscetível de ser fragmentado ou desmembrado, existindo
uma proibição legal de criar “figuras parcelares” do mesmo (1306º, n. 1 CC).
11.3.2 Indeterminação
O proprietário goza de modo pleno dos direitos de uso, fruição e disposição das coisas
que lhe pertencem.
11.3.3 Elasticidade
O proprietário goza do direito de disposição jurídica das coisas que lhe pertencem,
podendo onerar o direito de propriedade através da constituição de um direito real
menor. Com a extinção do direito real menor, reexpande-se o direito de propriedade.
11.3.4 Exclusividade
A característica da exclusividade do direito de propriedade pode ser entendida num
duplo sentido:
- Por um lado, só pode incidir um direito de propriedade sobre uma mesma coisa.
- Por outro lado, o direito de propriedade é o único direito real que pode existir
desacompanhado de outros direitos reais.
11.3.5 Transmissibilidade livre
O proprietário goza do direito de disposição jurídica das coisas que lhe pertencem,
podendo alienar o direito de propriedade através da sua transmissão para a esfera
jurídica de outrem.
11.3.6 Perpetuidade tendencial
- O direito de propriedade sobre coisas móveis extingue-se por abandono. Havendo
abandono, a coisa móvel torna-se res nullius e passa a ser suscetível de ser ocupada.
- O direito de propriedade sobre coisas imóveis extingue-se por renúncia abdicativa.
Havendo renúncia abdicativa, a coisa imóvel torna-se património do Estado.

11.4 Formas de aquisição da propriedade


De acordo com os artigos 1316º e 1317º CC, o direito de propriedade adquire-se por
contrato (nos termos dos artigos 408º CC [princípio da consensualidade] e 409º CC
[reserva de propriedade]), sucessão por morte (na data da abertura da sucessão),
usucapião (na data do início da posse), ocupação (na data em que se verifiquem os
factos que originam a ocupação), acessão (na data em que se verifiquem os factos que
originam a acessão) e demais modos previstos na lei (ex. 1551º CC).
Vejamos a ocupação e a acessão de forma mais pormenorizada.
11.4.1 Ocupação
A ocupação, que se encontra prevista nos artigos 1318º e ss. CC, é uma forma de
aquisição do direito de propriedade que pressupõe três elementos:
1. Elemento real: Podem ser adquiridos por ocupação os animais e as coisas móveis
que nunca tiveram dono ou foram abandonados, perdidos ou escondidos pelos seus
proprietários (1318º CC).
2. Elemento pessoal: Para que alguém possa adquirir um direito de propriedade por
ocupação, basta que a pessoa tenha capacidade de gozo, não sendo, portanto, necessário
que tenha capacidade de exercício.
3. Elemento formal: Para que alguém possa adquirir um direito de propriedade por
ocupação, basta que a pessoa tenha vontade de possuir, não sendo, portanto, necessário
que tenha vontade de adquirir.

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11.4.2 Acessão
A acessão, que se encontra prevista nos artigos 1325º e ss. CC, é uma forma de
aquisição do direito de propriedade que pode revestir duas modalidades:
- Acessão natural: A acessão diz-se natural quando resulta exclusivamente das forças
da natureza (1326º, n. 1, primeira parte CC). A acessão natural pode revestir duas
modalidades:
-» Aluvião: De acordo com o artigo 1328º CC, pertence aos donos dos prédios
confinantes com quaisquer correntes de água tudo o que, por ação das águas, se lhes
unir ou neles for depositado, sucessiva e impercetivelmente.
-» Avulsão: De acordo com o artigo 1329º CC, se, por ação natural e violenta, a
corrente arrancar quaisquer plantas ou levar qualquer objeto ou porção conhecida de
terreno, e arrojar essas coisas sobre prédio alheio, o dono delas tem o direito de exigir
que lhe sejam entregues, contanto que o faça dentro de seis meses, se antes não foi
notificado para fazer a remoção no prazo judicialmente assinado.
- Acessão industrial: A acessão diz-se industrial quando, por facto do homem, se
confundem objetos pertencentes a diversos donos ou quando alguém aplica o trabalho
próprio a matéria pertencente a outrem, confundindo o resultado desse trabalho com
propriedade alheia (1326º, n. 1, segunda parte CC). A acessão industrial pode revestir
duas modalidades:
-» Acessão industrial mobiliária: Dentro da acessão industrial mobiliária, importa
estabelecer uma distinção entre união ou confusão e especificação.
1. União ou confusão (1333º a 1335º CC): A união ou confusão ocorre quando,
por facto do homem, se unem ou confundem coisa própria com coisa alheia.
2. Especificação (1336º a 1338º CC): A especificação ocorre quando alguém
aplica o trabalho próprio a matéria pertencente a outrem, confundindo o resultado desse
trabalho com propriedade alheia.
-» Acessão industrial imobiliária (1339º a 1343º CC): A acessão industrial
imobiliária ocorre quando alguém constrói obra ou faz plantação com materiais,
sementes ou plantas alheias em terreno seu (1), quando alguém constrói obra ou faz
plantação com materiais, sementes ou plantas suas em terreno alheio (2) ou quando
alguém constrói obra ou faz plantação com materiais, sementes ou plantas alheias em
terreno alheio (3).
1. 1339º CC: Aquele que constrói obra ou faz sementeira ou plantação com
materiais, sementes ou plantas alheias em terreno seu adquire os materiais, sementes ou
plantas que utilizou, pagando o respetivo valor, além da indemnização a que haja lugar.
2. 1340º e 1341º CC: Quando alguém, de boa-fé (n. 4), constrói obra ou faz
sementeira ou plantação com materiais, sementes ou plantas suas em terreno alheio, e o
valor da nova realidade predial for superior ao valor da antiga realidade predial, o
incorporador adquire a propriedade dela, pagando o valor da antiga realidade predial ao
dono do terreno (n. 1). Se o valor da nova realidade predial for igual ao valor da antiga
realidade predial, haverá licitação entre o antigo dono do terreno e o incorporador, pela
forma estabelecida no artigo 1333º, n. 2 CC (n. 2). Se o valor da nova realidade predial
for menor ao valor da antiga realidade predial, as obras, sementeiras ou plantações
pertencem ao dono do terreno, com obrigação de indemnizar o incorporador do valor
que tinham ao tempo da incorporação (n. 3). Quando alguém, de má-fé, constrói obra ou
faz sementeira ou plantação com materiais, sementes ou plantas suas em terreno alheio,
tem o dono do terreno o direito de exigir que seja desfeita e que o terreno seja restituído
ao seu primitivo estado à custa do incorporador dela ou, se preferir, o direito de ficar
com a obra, sementeira ou plantação pelo valor que for fixado segundo as regras do

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enriquecimento sem causa.
3. 1342º CC: Quando alguém constrói obra ou faz sementeira ou plantação com
materiais, sementes ou plantas alheias em terreno alheio, ao dono dos materiais,
sementes ou plantas cabem os direitos conferidos no artigo 1340º CC ao incorporador,
quer esteja de boa-fé ou de má-fé. Se, porém, o dono dos materiais, sementes ou plantas
tiver culpa, é-lhe aplicável o disposto no artigo 1341º CC em relação ao incorporador;
neste caso, se o incorporador estiver de má-fé, é solidária a responsabilidade de ambos,
e a divisão do enriquecimento é feita em proporção do valor dos materiais, sementes ou
plantas e da mão-de-obra.
11.5 Restrições ao direito de propriedade
Existem dois tipos de restrições ao direito de propriedade: as restrições de Direito
Público e as restrições de Direito Privado.
11.5.1 Restrições de Direito Público
- Expropriação: A expropriação traduz-se na aquisição de bens imóveis por parte do
expropriante (1308º CC), sendo sempre devida a indemnização adequada ao
proprietário e aos titulares dos outros direitos reais afetados (1310º CC).
- Requisição: A requisição traduz-se no ato administrativo em virtude do qual o órgão
competente impõe a um particular a obrigação de prestar serviços, ceder coisas móveis
ou consentir na utilização temporária de quaisquer bens, móveis ou imóveis (1309º
CC), sendo sempre devida a indemnização adequada ao proprietário e aos titulares dos
outros direitos reais afetados (1310º CC).
11.5.2 Restrições de Direito Privado
As relações de vizinhança existem quando existem dois bens imóveis confinantes sobre
os quais incide, respetivamente, um direito de propriedade. Para evitar conflitos entre os
titulares dos direitos reais no âmbito de relações de vizinhança, a lei estabelece uma
regulamentação que, nuns casos, determina que os limites do direito de propriedade
fiquem aquém dos limites materiais da coisa e, noutros casos, determina que os limites
do direito de propriedade fiquem além dos limites materiais da coisa:
- 1346º CC: O proprietário de um imóvel pode opor-se à emissão de fumo, fuligem,
vapores, cheiros, calor ou ruídos, bem como à produção de trepidações e a outros
quaisquer factos semelhantes, provenientes de prédio vizinho, sempre que tais factos
importem um prejuízo substancial para o uso do imóvel ou não resultem da utilização
normal do prédio de que emanam.
Notas fundamentais:
1. O proprietário de um imóvel só não se pode opor à emissão de matérias
incorpóreas (fumo, barulho) ou de matérias corpóreas de tamanho ínfimo (poeira,
cinza), podendo opor-se à emissão de corpos corpóreos, sólidos ou líquidos.
2. O proprietário de um imóvel só não se pode opor à emissão que ocorra
naturalmente, podendo opor-se à emissão direcionada.

- 1349º CC: Se, para reparar algum edifício ou construção, for indispensável levantar
andaime, colocar objetos sobre prédio vizinho, fazer passar por ele os materiais para a
obra ou praticar outros atos análogos, é o dono do prédio vizinho obrigado a consentir
nesses atos. No entanto, este tem direito a ser indemnizado do prejuízo sofrido.
- 1351º CC: Os prédios inferiores estão sujeitos a receber as águas que, naturalmente e
sem obra do homem, decorrem dos prédios superiores, assim como a terra e entulhos
que elas arrastam na sua corrente. Nem o dono do prédio inferior pode fazer obras que
estorvem o escoamento, nem o dono do prédio superior obras capazes de o agravar, sem

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prejuízo da possibilidade de constituição da servidão legal de escoamento, nos casos
em que é admitida.
- 1360º, n. 1 CC: O proprietário que no seu prédio levantar edifício ou outra construção
não pode abrir nela janelas ou portas que deitem diretamente sobre o prédio vizinho sem
deixar entre este e cada uma das obras o intervalo de 1.50m. Igual restrição é aplicável
às varandas, terraços, eirados ou obras semelhantes, quando sejam servidos de
parapeitos de altura inferior a 1.50m em toda a sua extensão ou parte dela.
- 1361º CC: As restrições do artigo precedente não são aplicáveis a prédios separados
entre si por estrada, caminho, rua, travessa ou outra passagem por terreno do domínio
público.
- 1362º CC: A existência de janelas, portas, varandas, terraços, eirados ou obras
semelhantes, em contravenção do disposto na lei, pode importar, nos termos gerais, a
constituição da servidão de vistas por usucapião. Constituída a servidão de vistas, por
usucapião ou outro título, ao proprietário vizinho só é permitido levantar edifício ou
outra construção no seu prédio desde que deixe entre o novo edifício ou construção e as
obras mencionadas no n. 1 o espaço mínimo de metro e meio, correspondente à
extensão destas obras.
- 1363º CC: Não se consideram abrangidos pelas restrições da lei as frestas, seteiras ou
óculos para luz e ar, podendo o vizinho levantar a todo o tempo a sua casa ou
contramuro, ainda que vede tais aberturas. As frestas, seteiras ou óculos para luz e ar
devem, todavia, situar-se pelo menos a 1.80m de altura, a contar do solo ou do sobrado,
e não devem ter, numa das suas dimensões, mais de 15cm; a altura de um 1.80m
respeita a ambos os lados da parede ou muro onde essas aberturas se encontram.
- 1364º CC: É aplicável o disposto no n. 1 do artigo antecedente às aberturas, quaisquer
que sejam as suas dimensões, igualmente situadas a mais de 1.80m do solo ou do
sobrado, com grades fixas de ferro ou outro metal, de secção não inferior a um
centímetro quadrado e cuja malha não seja superior a cinco centímetros.
- 1365º CC: O proprietário deve edificar de modo que a beira do telhado ou outra
cobertura não goteje sobre o prédio vizinho, deixando um intervalo mínimo de 50cm
entre o prédio e a beira, se de outro modo não puder evitá-lo. Constituída por qualquer
título a servidão de estilicídio, o proprietário do prédio serviente não pode levantar
edifício ou construção que impeça o escoamento das águas, devendo realizar as obras
necessárias para que o escoamento se faça sobre o seu prédio, sem prejuízo para o
prédio dominante.
- 1366º CC: É lícita a plantação de árvores e arbustos até à linha divisória dos prédios;
mas ao dono do prédio vizinho é permitido arrancar e cortar as raízes que se
introduzirem no seu terreno e o tronco ou ramos que sobre ele propenderem, se o dono
da árvore, sendo rogado judicial ou extrajudicialmente, o não fizer dentro de três dias.
- 1367º CC: O proprietário de árvore ou arbusto contíguo a prédio de outrem ou com ele
confinante pode exigir que o dono do prédio lhe permita fazer a apanha dos frutos, que
não seja possível fazer do seu lado; mas é responsável pelo prejuízo que com a apanha
vier a causar.
11.6 Meios de defesa da propriedade
Se alguém for titular de um direito de propriedade, poderá lançar mão dos seguintes
meios de defesa da propriedade:
1) Ação de reivindicação da propriedade: A ação de reivindicação, que se encontra
prevista no artigo 1311º CC, é intentada quando em causa esteja uma situação de posse
ou mera detenção ilegítimas da coisa por parte de terceiro.
Pedidos:
- Reconhecimento do direito de propriedade

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- Restituição da coisa
Causa de pedir: Facto jurídico de onde deriva o direito de propriedade
Prova:
- Se o direito de propriedade foi adquirido originariamente, o seu titular terá de
demonstrar que adquiriu originariamente (usucapião, ocupação, acessão).
- Se o direito de propriedade foi adquirido derivadamente, o seu titular terá de fazer
prova diabólica ou recorrer à presunção da titularidade do direito de propriedade
fundada na posse ou no registo.
Imprescritibilidade da ação de reivindicação: A ação de reivindicação da propriedade
não prescreve pelo decurso do tempo (1313º CC).
2) Ação negatória: A ação negatória é intentada quando em causa esteja a prática de
atos de interferência na coisa por parte de terceiro.
Pedidos:
- Declaração da inexistência de qualquer direito na esfera jurídica do terceiro que
legitime a prática de atos de interferência na coisa (função declarativa)
- Condenação do terceiro na eliminação da situação material contrária ao estatuto do
direito real (função reparadora)
- Condenação do terceiro na abstenção da prática de novos atos de interferência na
coisa, caso exista o fundado receio da prática de novos atos de interferência na coisa
(função preventiva)
Causa de pedir: Facto jurídico de onde deriva o direito de propriedade
3) Ação de simples apreciação positiva ou negativa: A ação de simples apreciação
positiva ou negativa é intentada quando esteja em causa uma situação de incerteza
quanto à existência ou inexistência da titularidade do direito de propriedade.
Nota fundamental:
Tanto nas ações de reivindicação da propriedade, como nas ações negatórias e nas
ações de simples apreciação positiva ou negativa, se o terceiro violar um dever
geral de abstenção (ou seja, praticar um facto ilícito), com culpa e ter causado
danos, poder-se-á acrescentar mais um pedido:
- Condenação do terceiro no cumprimento de uma obrigação de indemnização,
desde que verificados todos os pressupostos da responsabilidade civil (facto
voluntário, ilicitude, culpa, danos, nexo de causalidade).

4) Ação de prevenção contra o dano: A ação de prevenção contra o dano encontra-se


prevista no artigo 1350º CC, de acordo com o qual se qualquer edifício ou outra obra
oferecer perigo de ruir, no todo ou em parte, e do desmoronamento puderem resultar
danos para o prédio vizinho, é lícito ao dono deste exigir da pessoa responsável pelos
danos, nos termos do artigo 492º CC, as providências necessárias para eliminar o
perigo.

12. Compropriedade
12.1 Conceito de compropriedade
De acordo com o artigo 1403º CC, existe compropriedade quando duas ou mais pessoas
são simultaneamente titulares do direito de propriedade sobre a mesma coisa. A este
propósito, existe uma controvérsia na doutrina:
- Teoria da pluralidade de direitos de propriedade: Na esteira de Oliveira Ascensão, na
compropriedade, cada comproprietário é titular de um direito de propriedade que incide
sobre a coisa comum.
- Teoria da divisão ideal da coisa: Na esteira de Orlando de Carvalho, na

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compropriedade, cada comproprietário é titular de um direito de propriedade que incide
sobre uma quota-parte ideal da coisa comum.
- Teoria da comunhão: Na esteira de Henrique Mesquita, na compropriedade, cada
comproprietário tem uma quota do direito de propriedade que incide sobre a coisa
comum. Sendo assim, cada comproprietário pode fazer o que entender com a sua quota
do direito de propriedade, mas não pode fazer o que entender com a coisa comum.
12.2 Figuras próximas da compropriedade
A compropriedade não se confunde com as seguintes figuras:
- Comunhão de direitos: Existe comunhão de direitos quando duas ou mais pessoas
são simultaneamente titulares de um direito patrimonial (real ou não).
- Comunhão de mão comum: Existe comunhão de mão comum quando duas ou mais
pessoas entre si ligadas por um determinado vínculo são simultaneamente titulares de
um direito sobre todo um património.
12.3 Modos de constituição da compropriedade
A compropriedade pode constituir-se:
- Por negócio jurídico, quer produza efeitos inter vivos (ex. A e B compram uma coisa
em conjunto. A e B aceitam uma doação.) ou efeitos mortis causa (ex. A deixa em
testamento uma coisa a B e C.)
- Por usucapião, verificados os respetivos requisitos.
- Por força da lei. É o que sucede no artigo 1371º CC, de acordo com o qual a parede ou
muro divisório entre dois edifícios presume-se comum em toda a sua altura, sendo os
edifícios iguais, e até à altura do inferior, se o não forem, salvo se se verificarem um dos
sinais que excluem a presunção de comunhão e que estão elencados no n. 3.
- Por decisão judicial. É o que sucede no artigo 1370º CC, de acordo como qual o
proprietário de um prédio confinante com parede ou muro alheio pode adquirir nele
comunhão, no todo ou em parte, quer quanto à sua extensão, quer quanto à sua altura,
pagando metade do seu valor e metade do valor do solo sobre que estiver construído.
12.4 Regime jurídico da compropriedade
No que diz respeito ao regime jurídico da compropriedade, há que estabelecer uma
distinção entre o regime jurídico relativo à quota de cada comproprietário e o regime
jurídico relativo à coisa comum.
12.4.1 Regime jurídico relativo à quota de cada comproprietário
Quanto à quota de cada comproprietário, aplicam-se as seguintes normas:
- 1408º, n. 1, primeira parte CC: Na compropriedade, cada comproprietário tem uma
quota do direito de propriedade que incide sobre a coisa comum. Sendo assim, cada
comproprietário pode fazer o que entender com a sua quota do direito de propriedade.
- 1408º, n. 3 CC: A disposição da quota está sujeita à forma exigida para a disposição
da coisa. Sendo assim, se para a disposição de coisa imóvel ou móvel sujeita a registo se
exige escritura pública ou documento particular autenticado, para a disposição da quota
exigir-se-á escritura pública ou documento particular autenticado.
- 1409º CC: Quando um dos comproprietários pretenda vender ou dar em cumprimento
a sua quota a um estranho à compropriedade, está obrigado a dar preferência (obrigação
real) aos demais comproprietários (n. 1).
1. Tendo sido cumprida a obrigação de dar preferência e um dos demais
comproprietários exercer o seu direito de preferência, a venda ou a dação em
cumprimento é com ele celebrada e é válida e eficaz.
2. Tendo sido cumprida a obrigação de dar preferência e nenhum dos demais
comproprietários quiser exercer o seu direito de preferência, a venda ou a dação em

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cumprimento pode ser celebrada com um estranho à compropriedade e é válida e eficaz.
3. Não tendo sido cumprida a obrigação de dar preferência, e nenhum dos demais
comproprietários reagir através da propositura de uma ação de preferência (1410º CC),
a venda ou a dação em cumprimento é válida e eficaz.
4. Não tendo sido cumprida a obrigação de dar preferência, e um dos demais
comproprietários reagir através da propositura de uma ação de preferência (1410º CC),
e sendo tal ação julgada procedente, terá direito de haver para si a quota vendida ou
dada em cumprimento.
Se mais do que um comproprietário manifestar o interesse em exercer o seu direito de
preferência, a quota que se pretende vender ou dar em cumprimento é adjudicada a
todos na proporção das suas quotas (n. 3).
12.4.2 Regime jurídico relativo à coisa comum
Quanto à coisa comum, aplicam-se as seguintes normas:
1) Uso da coisa comum:
De acordo com o artigo 1406º, n. 1 CC, na falta de acordo sobre o uso da coisa comum
(1), qualquer dos comproprietários pode servir-se de toda a coisa comum, desde que não
a use para fim diferente daquele a que a coisa comum se destina (2) e não prive os
demais comproprietários de igual possibilidade de uso (3).
1. Os comproprietários podem, por acordo, definir o uso da coisa comum.
-» Exemplo: A e B definem, por acordo, que A usará a coisa comum de Janeiro a
Junho e B de Julho a Dezembro.
2. O comproprietário não pode usar a coisa comum para fim diferente daquele a que
ela se destina quando tal uso seja suscetível de causar prejuízos aos demais
comproprietários.
-» Exemplo: A, B e C são comproprietários de um lago e definiram, por acordo,
que a água do lago deve fornecer os respetivos prédios em torno do lago. Imagine-se
que A decide ir pescar para o lago. Neste caso, A usa o lago para fim diferente daquele a
que ele se destina, mas tal uso não causa prejuízos a B, nem a C.
3. O comproprietário pode servir-se de toda a coisa comum, desde que não prive os
demais comproprietários de igual possibilidade de uso.
-» Exemplo: A, B e C são comproprietários de um apartamento em Coimbra.
Sendo assim, qualquer um deles pode usar de todo o apartamento. No entanto, podem
definir, por acordo, que todos podem servir-se da cozinha, mas cada um deles deve
servir-se apenas dos respetivos quartos.
2) Fruição da coisa comum:
De acordo com o artigo 1405º, n. 1 CC, se a coisa comum for frutífera, os frutos
pertencem a todos os comproprietários na proporção das suas quotas. Se, todavia, os
comproprietários não terem fixado a proporção das suas quotas, elas presumem-se
iguais (1403º, n. 2 CC).
3) Atos de administração ordinária da coisa comum:
De acordo com o artigo 1407º CC, conjugado com o artigo 985º CC, na falta de
convenção em contrário, todos os comproprietários têm igual poder para praticar atos de
administração ordinária sobre a coisa comum (atos tendentes a evitar a perda ou a
deterioração da coisa e atos tendentes a garantir a fruição normal da coisa comum), não
sendo necessária autorização dos demais comproprietários para o efeito. No entanto,
pode ocorrer que o comproprietário, antes de praticar o ato de administração ordinária
sobre a coisa comum, informe os demais comproprietários da sua intenção. Neste caso,
qualquer um dos demais comproprietários pode opor-se à prática de tal ato, cabendo à
maioria decidir sobre o mérito da oposição (985º, n. 2 CC):
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1. Se a maioria per capita (985º, n. 4 CC) que represente, pelo menos, 50% do valor
total das quotas (1407º, n. 1 CC) aprovar a oposição, o comproprietário não poderá
praticar o ato de administração ordinária sobre a coisa comum.
2. Se, ainda que aprovada a oposição, o comproprietário praticar o ato de
administração ordinária sobre a coisa comum, tal ato será anulável e tal comproprietário
será responsável pelo prejuízo a que der causa (1407º, n. 3 CC).
3. Se a maioria per capita (985º, n. 4 CC) que represente, pelo menos, 50% do valor
total das quotas (1407º, n. 1 CC) reprovar a oposição, o comproprietário poderá praticar
o ato de administração ordinária sobre a coisa comum.
→ Quando não seja possível formar a maioria per capita que represente, pelo menos,
50% do valor total das quotas, a qualquer dos comproprietários é lícito recorrer ao
tribunal que decidirá segundo juízos de equidade (1407º, n. 2 CC).
-» Exemplo: A e B são comproprietários de certa coisa. A decide informar B da sua
intenção de praticar determinado ato de administração ordinária sobre a dita coisa.
Neste caso, não é possível formar uma maioria per capita, sendo que a qualquer um dos
comproprietários é lícito recorrer ao tribunal que decidirá segundo juízos de equidade.
Uma vez praticado o ato de administração ordinária sobre a coisa comum, as despesas
daí decorrentes são divididas entre os demais comproprietários, na proporção das suas
quotas (1411º, n. 1 CC). No entanto, eles podem eximir-se desse encargo por renúncia
liberatória. Esta, porém, não é válida sem o consentimento dos restantes
comproprietários quando a despesa tenha sido anteriormente aprovada pelo
comproprietário que pretende renunciar e é revogável sempre que as despesas previstas
não venham a realizar-se (n. 2).
4) Atos de administração extraordinária da coisa comum:
Quanto aos atos de administração extraordinária sobre a coisa comum, a lei nada diz.
No entanto, seguindo os ensinamentos de Henrique Mesquita, dever-se-á convocar o
artigo 1024º CC:
- Por um lado, diz-se que o arrendamento que for celebrado por prazo inferior a seis
anos é considerado um ato de administração ordinária. Sendo assim, o arrendamento
que for celebrado por prazo superior a seis anos é considerado um ato de administração
extraordinária.
- Por outro lado, diz-se que, quando se trate de prédio indiviso, o arrendamento feito por
um dos comproprietários só será válido quando os demais comproprietários manifestem,
por escrito, o seu assentimento, seja antes ou depois da celebração do contrato. Tal
aplica-se tanto ao arrendamento que for celebrado por um prazo inferior a seis anos (ato
de administração ordinária), como ao arrendamento que for celebrado por prazo
superior a seis anos (ato de administração extraordinária).
→ Por conseguinte, conclui-se que a prática de atos de administração extraordinária
sobre a coisa comum por parte de um dos comproprietários necessita de assentimento
por parte dos demais comproprietários.
5) Atos de alienação e de oneração da coisa comum:
De acordo com o artigo 1408º, n. 1, segunda parte CC, na compropriedade, nenhum
comproprietário pode, sem consentimento dos demais comproprietários, alienar ou
onerar parte especificada da coisa comum. A alienação ou oneração de parte
especificada da coisa comum sem consentimento dos demais comproprietários é havida
como alienação ou oneração de coisa alheia (1408º, n. 2 CC).

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12.5 Dissolução da compropriedade
De acordo com o artigo 1412º, n. 1 CC, nenhum dos comproprietários é obrigado a
permanecer na indivisão, salvo quando se houver convencionado que a coisa se
conserve indivisa (cláusula de indivisão). A divisão da coisa comum, ou a dissolução da
compropriedade, pode fazer-se extrajudicialmente ou judicialmente (1413º, n. 1 CC).
12.5.1 Extrajudicial
A dissolução extrajudicial da compropriedade será relativamente simples, sendo
efetuada através da sujeição da coisa comum ao regime da propriedade horizontal (1),
através da concentração da propriedade sobre a coisa comum num dos comproprietários
(2) ou através da alienação da coisa comum a um terceiro (3).
-» Exemplo 1: A, B e C são comproprietários de um edifício (suscetível de divisão
material) e decidem dissolver a compropriedade, sujeitando-o ao regime de propriedade
horizontal.
-» Exemplo 2: A, B e C são comproprietários de um automóvel (insuscetível de
divisão material) e decidem dissolver a compropriedade, podendo:
1. Dois dos três comproprietários alienar as suas quotas do direito de propriedade
ao terceiro comproprietário, sendo aqueles compensados.
2. Os três comproprietários alienar a coisa comum a um terceiro.
12.5.2 Judicial
Não conseguindo os comproprietários chegar a um acordo quanto à divisão da coisa
comum, aquele que pretenda dissolver a compropriedade pode intentar uma ação de
divisão da coisa comum, devendo, na petição inicial, dizer se a coisa é ou não suscetível
de divisão material.
1. Se se concluir que a coisa é suscetível de divisão material, cada um dos
comproprietários fica com uma parte da coisa. Na falta de acordo, é feito um sorteio.
2. Se se concluir que a coisa é insuscetível de divisão material, um dos
comproprietários fica com a coisa e os demais ficam com o valor correspondente à sua
quota. Na falta de acordo, a coisa é vendida a quem der mais, incluindo terceiros.

13. Propriedade horizontal


13.1 Conceito de propriedade horizontal
De acordo com o artigo 1414º CC, as frações de que um prédio se compõe podem
pertencer a condóminos diversos em regime de propriedade horizontal, sendo que cada
condómino é proprietário exclusivo da fração autónoma que lhe pertence e
comproprietário das partes comuns do prédio (1420º, n. 1 CC). Quanto às frações
autónomas e às partes comuns, exige-se a verificação de determinados requisitos:
- Frações autónomas: De acordo com o artigo 1415º CC, só podem ser objeto de
propriedade horizontal as frações autónomas que, além de constituírem unidades
independentes (1), sejam distintas e isoladas entre si (2), com saída própria para uma
parte comum do prédio ou para a via pública (3). A falta destes três requisitos
legalmente exigidos importa a nulidade do título constitutivo da propriedade horizontal
e a sujeição do prédio ao regime da compropriedade, pela atribuição a cada
comproprietário da quota que lhe tiver sido fixada nos termos do artigo 1418º CC ou, na
falta de fixação, da quota correspondente ao valor relativo da sua fração (1416º, n. 1
CC). Têm legitimidade para arguir a nulidade do título os condóminos e também o
Ministério Público sobre participação da entidade pública a quem caiba a aprovação ou
fiscalização das construções (1416º, n. 2 CC).
- Partes comuns: Quanto às partes comuns, há que estabelecer uma distinção entre as
partes imperativamente comuns e as partes presuntivamente comuns:

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-» Partes imperativamente comuns: As partes imperativamente comuns encontram-se
elencadas no artigo 1421º, n. 1 CC.
-» Partes presuntivamente comuns: As partes presuntivamente comuns encontram-se
elencadas no artigo 1421º, n. 2 CC.
13.2 Modos de constituição da propriedade horizontal
De acordo com o artigo 1417º CC, a propriedade horizontal pode ser constituída por
negócio jurídico unilateral reduzido a escritura pública ou a documento particular
autenticado em que se exprime a vontade de sujeitar determinado prédio ao regime da
propriedade horizontal, extinguindo o direito de propriedade sobre o mesmo e
autonomizando as frações autónomas sobre as quais incidirão diversos direitos de
propriedade horizontal, por usucapião, por decisão administrativa ou por decisão
judicial, proferida em ação de divisão de coisa comum ou em processo de inventário.
Conteúdo necessário do título constitutivo da propriedade horizontal:
De acordo com o artigo 1418º, n. 1 CC, no título constitutivo serão especificadas as
partes do prédio correspondentes às várias frações autónomas, por forma a que estas
fiquem devidamente individualizadas, e será fixado o valor relativo de cada fração,
expresso em percentagem (%) ou em permilagem (‰) do valor total do prédio.
→ A falta de especificação exigida determina a nulidade do título constitutivo (n. 3).
Conteúdo supletivo do título constitutivo da propriedade horizontal:
De acordo com o artigo 1418º, n. 2 CC, o título constitutivo da propriedade horizontal
pode ainda conter, designadamente:
al. a): Menção do fim a que se destina cada fração ou parte comum.
1. Quando o título constitutivo da propriedade horizontal contenha menção do fim a
que se destina cada fração autónoma ou parte comum, aos condóminos é especialmente
vedado dar-lhes uso diverso do fim a que foram destinadas (1422º, n. 2, al. c) CC).
2. Quando o título constitutivo da propriedade horizontal não contenha menção do
fim a que se destina cada fração autónoma ou parte comum, a alteração ao seu uso
carece da autorização da assembleia de condóminos, aprovada por maioria
representativa de 2/3 do valor total do prédio (1422º, n. 4 CC).
al. b): Regulamento do condomínio, disciplinando o uso, fruição e conservação, quer
das partes comuns, quer das frações autónomas. O regulamento do condomínio é, em
algumas circunstâncias, obrigatório (1429º-A, n. 1 CC), sendo a sua feitura da
competência da assembleia de condóminos ou do administrador (1429º-A, n. 2 CC).
al. c): Previsão do compromisso arbitral para a resolução dos litígios emergentes da
relação de condomínio (1434º CC).
Modificação do titulo constitutivo da propriedade horizontal:
De acordo com o artigo 1419º CC, o título constitutivo da propriedade horizontal pode
ser modificado por escritura pública ou por documento particular autenticado, havendo
acordo de todos os condóminos (n. 1). O administrador, em representação do
condomínio, pode outorgar a escritura ou elaborar e subscrever o documento particular,
desde que o acordo conste de ata assinada por todos os condóminos (n. 3). A falta de
acordo para alteração do título constitutivo quanto a partes comuns pode ser suprida
judicialmente, sempre que os votos representativos dos condóminos que nela não
consintam sejam inferiores a 1/10 do capital investido e a alteração não modifique as
condições de uso, o valor relativo ou o fim a que as suas frações se destinam (n. 2). O
ato de modificação não pode desrespeitar o disposto no artigo 1415º CC, sob pena de
nulidade; esta nulidade pode ser declarada a requerimento dos condóminos e do
Ministério Público.

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13.3 Regime jurídico da propriedade horizontal
Restrições ao direito de propriedade horizontal:
De acordo com o artigo 1422º, n. 1 CC, os condóminos, nas relações entre si, estão
sujeitos de um modo geral, quanto às frações autónomas que exclusivamente lhes
pertencem e quanto às partes comuns, às limitações impostas aos proprietários e aos
comproprietários de coisas imóveis. Mais acrescenta o n. 2 do mesmo artigo que os
condóminos não podem prejudicar, quer com obras novas, quer por falta de reparação, a
segurança, a linha arquitetónica ou o arranjo estético do edifício (al. a)), destinar a sua
fração a usos ofensivos dos bons costumes (al. b)), dar-lhe uso diverso do fim a que é
destinada (al. c)), praticar quaisquer atos ou atividades que tenham sido proibidos no
título constitutivo ou, posteriormente, por deliberação da assembleia de condóminos
aprovada sem oposição (al. d)).
Encargos dos condóminos:
Quanto aos encargos dos condóminos, veja-se os artigos 1424º CC e 1424º-A CC.
Junção e divisão de frações autónomas:
Quanto à junção e divisão de frações autónomas, veja-se o artigo 1422º-A CC.
Direito de preferência e direito de divisão:
Quanto ao direito de preferência e direito de divisão, veja-se o artigo 1423º CC.
Administração das partes comuns do prédio:
Quanto à administração das partes comuns do prédio, veja-se os artigos 1430º e ss. CC.
13.4 Natureza jurídica da propriedade horizontal
Do artigo 1420º CC poderia entender-se que na propriedade horizontal se agrupam dois
direitos reais distintos: um direito de propriedade sobre cada uma das frações e um
direito de compropriedade sobre as partes comuns do prédio. No entanto, a propriedade
horizontal é mais do que o mero agrupamento destes dois direitos, tratando-se de um
tipo autónomo de direito real com um objeto complexo que ultrapassa a aplicação pura e
simples dos regimes da propriedade (1) e da compropriedade (2):
1) Quanto ao direito sobre as frações autónomas, em comparação com a propriedade:
1. O direito sobre as frações autónomas está sujeito a restrições que não existem para
a propriedade em geral (1422º, n. 2, 3 e 4 CC).
2. O direito sobre as frações autónomas pode ser afetado por uma deliberação
maioritária dos condóminos, em caso de destruição total ou parcial do edifício (1428º
CC).
2) Quanto ao direito sobre as partes comuns, em comparação com a compropriedade:
1. A administração das partes comuns do prédio compete à assembleia dos
condóminos e a um administrador (1430º e ss. CC).
2. Os condóminos não podem renunciar à parte comum como meio de se
desonerarem das despesas necessárias à sua conservação ou fruição (1420º, n. 2 CC).
3. Os condóminos não gozam do direito de preferência na alienação de frações nem
do direito de pedir a divisão das partes comuns (1423º CC).

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