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APONTAMENTOS DE TEORIA GERAL DO DIREITO CIVIL II

2016/2017
Professor ANTÓNIO PINTO MONTEIRO
1ª Turma
TEORIA GERAL DO OBJETO DA RELAÇÃO JURÍDICA
Davide Rodrigues 2016/2017 Primeira Turma

CAPÍTULO I – GENERALIDADES

1. Objeto da relação jurídica.


2. Objeto imediato e objeto mediato.
3. Os possíveis objetos de relações jurídicas.

CAPÍTULO II – AS COISAS E O PATRIMÓNIO

1. Noção jurídica de coisa.


2. Noção de património.
2.1. O fenómeno da autonomia patrimonial ou separação de patrimónios.
2.1.1. Herança.
2.1.2. Estabelecimento individual de responsabilidade limitada.
2.1.3. Sub-rogação real.
2.2. A figura do património coletivo.

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CAPÍTULO I – GENERALIDADES

1. Objeto da relação jurídica.

Fala-se de objeto da relação jurídica para referir o objeto do direito subjetivo que constitui o lado ativo
da mesma relação. Ora, o direito subjetivo traduz-se num poder atribuído a uma pessoa e este poder,
bem como as faculdades que o integram, podem, quase sempre, ser exercitados sobre um determinado
quid, corpóreo ou incorpóreo. Assim, o objeto de uma relação jurídica é precisamente o quid sobre
que incidem os poderes do seu titular ativo. Com efeito, a satisfação do interesse, que corresponde
ao aspeto funcional do direito, exige a subordinação de um bem ao poder do titular do direito. Esse
bem, que constitui o ponto de incidência do direito, está submetido aos poderes, à supremacia do titular
ativo da relação jurídica e é o objeto desta.
Em suma, objeto de relações jurídicas – de direitos subjetivos – é todo o quid, todo o ente, todo o bem
sobre que podem recair os direitos subjetivos.
Deste modo, compreende-se a distinção entre objeto e conteúdo, compreendendo-se aquele como
aquilo sobre que recaem os poderes do titular do direito e este como o conjunto de poderes ou
faculdades que o direito subjetivo comporta.
Os direitos potestativos têm objeto?

O exercício destes direitos não se traduz na incidência de quaisquer poderes ou de qualquer domínio
sobre um bem submetido a essa supremacia. Com efeito, trata-se de direitos a uma modificação jurídica. No máximo,
poderíamos entender que os direitos potestativos extintivos ou modificativos têm como objeto a relação jurídica modificada
ou extinta. De todo o modo, quanto aos direitos potestativos constitutivos onde é que se pode divisar o objeto?
Não obstante, é evidente que os direitos potestativos têm um conteúdo.

2. Objeto imediato e objeto mediato.

A distinção exprime a diversidade entre aquilo que diretamente está submetido aos poderes ideais que
integram um direito subjetivo e aquilo que só de uma forma mediata ou indireta, isto é, através de um
elemento mediador, está submetido àqueles poderes.
No entanto, a distinção nem sempre se verifica.
Com efeito, a distinção verifica-se nas obrigações (direitos de crédito) de prestação de coisa certa e
determinada: o objeto imediato do direito do credor é o comportamento do próprio devedor, isto é, a
prestação, o ato de entrega da coisa; enquanto que o objeto mediato é a própria coisa que deve ser
entregue ao credor. No entanto, já não se verificará no caso: dos direitos reais em que não há
intermediário entre o titular do direito e a coisa, pelo que o proprietário está em contacto direto com o
objeto do seu direito; e das obrigações de prestação de facto (positivo ou negativo).

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3. Os possíveis objetos de relações jurídicas.

O artigo 202.º do CC estabelece equivalência entre o conceito de coisa e o de objeto de relações


jurídicas. No entanto, esta equivalência não é rigorosa, pois as coisas, sendo embora a espécie mais
corrente de objetos de relações jurídicas, não esgotam a extensão do conceito de objeto jurídico. Com
efeito, nem tudo o que é suscetível de ser objeto de relações jurídicas é uma coisa em sentido jurídico.
Neste sentido, note-se que, no sentido técnico-jurídico específico, de máxima extensão, coisa é um
objeto jurídico impessoal, isto é, carecido de personalidade jurídica. Ora, certas manifestações positivas
do nosso sistema de direito privado, podem ser traduzidas dogmaticamente, com legitimidade, pelo
conceito de direitos (relações jurídicas) sobre atos (prestações), sobre outras pessoas ou até sobre a
própria pessoa (rectius : sobre os modos de ser físicos ou morais da pessoa).
I. Pessoas;
Não há qualquer tipo de ilogismo neste conceito de direitos sobre pessoas físicas que são
também pessoas jurídicas, nem qualquer ofensa à dignidade da pessoa humana. De facto, não se
trata aqui da admissão de relações jurídicas patrimoniais sobre pessoas físicas, como o era nos
tempos da escravatura.
Com efeito, estes direitos sobre outras pessoas constituem poderes-deveres ou poderes
funcionais, a título de exemplo, o poder paternal e o poder tutelar, que estão ao serviço do interesse
do próprio filho ou pupilo. É, portanto, indubitável que, nestes casos, o quid sobre que incidem os
poderes-deveres do pai ou do tutor consiste na própria pessoa do filho ou do pupilo. Assim, estes
direitos não conferem qualquer domínio ou soberania sobre a pessoa do filho ou do pupilo no
interesse dos pais ou do tutor, são, antes, direitos que conferem poderes a habilitarem os pais ou
o tutor ao cumprimento dos seus deveres, podendo os titulares de tais direitos ser sancionados se
não exercerem e não cumprirem os deveres ao serviço dos quais eles se encontram.
Por fim, por vezes, quanto aos direitos de crédito, aponta-se como objeto a própria pessoa do
devedor, querendo referir-se, não à pessoa, mas ao limitado aspeto representado por um ato seu:
a prestação.
II. Prestações;
Nos direitos de crédito, o objeto é uma conduta ou ato humano: a prestação. Nestes direitos, o
objeto não é rigorosamente uma coisa, mas um comportamento do devedor (uma atividade nas
obrigações de prestação de coisa ou de prestação de facto positivo; uma abstenção nas obrigações
de prestação de facto negativo (art. 829.º)).
III. Coisas materiais ou corpóreas;
Tomamos como certa a possibilidade de realidades físicas, carecidas de personalidade jurídica
(coisas materiais), serem objeto de direitos subjetivos. É um fenómeno que ocorre tipicamente nos
direitos reais. Contudo, estes objetos corpóreos devem preencher certos requisitos: existência
autónoma; idoneidade para satisfazer interesses humanos, isto é, devem ser úteis; possibilidade
de sujeição jurídica ao poder exclusivo de um ou alguns homens, isto é, devem ser apropriáveis.

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IV. Coisas incorpóreas ou bens imateriais;


A atividade espiritual do homem pode ser exercida no sentido da criação de obras, produtos do
engenho, da inteligência ou da sensibilidade humanas.
Com efeito, estes bens têm valor patrimonial autónomo, pois podem ser explorados
economicamente. Para além do seu valor patrimonial, alguns deles estão intimamente ligados à
personalidade do seu autor, pois ela está refletida na obra criada.
Assim, compreende-se que o direito reconheça esses bens e tutele os aspetos patrimonial e
pessoal. Tutela-os mediante a atribuição, a título de aquisição originária, de direitos ao autor das
obras em questão: são os direitos de autor, que incidem sobre obras; e a propriedade industrial
(direitos sobre patentes, modelos de utilidade, entre outros); ambos sujeitos a legislação especial,
conforma disposto no artigo 1303.º CC.
Ora, o objeto de tais direitos não é uma coisa corpórea, não se identificando com o corpus
mechanicum do produto do espírito humano em causa, mas antes a sua forma ou conceção ideal.
Por fim, note-se que o direito de autor compreende: poderes respeitantes à utilização
económica da obra criada (direito patrimonial de autor); e, ainda, poderes dirigidos à tutela da
personalidade, na media em que na obra está o autor (direito moral ou pessoal de autor). Em virtude
de o direito de autor comportar poderes de natureza patrimonial e poderes de natureza pessoal ou
moral, não é rigoroso falar-se de propriedade intelectual, artística etc. Os direitos em questão –
absolutos como os direitos reais – têm um objeto de natureza sui generis, pelo que é preferível a
designação de direitos de autor. Assim se liga o objeto do direito a uma criação (espiritual) e se
refere o seu primeiro titular (o autor).
V. Direitos subjetivos;
Pode pôr-se o problema de saber se um direito subjetivo pode constituir objeto de outro direito
subjetivo. Ora, autêntica vexata quaestio, é um problema de índole construtiva, discutindo-se se se
trata de direitos sobre direitos ou de transmissões limitadas do direito que prima facie aparece como
objeto de outra relação jurídica ou ainda de um novo direito limitado com o mesmo objeto do direito
anterior.
Não obstante, interessa frisar que algumas soluções legais parecem ajustar-se à figura dos
direitos sobre direitos. A título de exemplo, note-se o penhor de direitos (arts. 679.º e ss.).
VI. A própria pessoa;
(certas manifestações ou modos de ser físicos ou morais da pessoa)

Alguns autores contestam a legitimidade da figura dos direitos sobre a própria pessoa (iura in se
ipsum). Tal categoria seria: logicamente absurda, por nos levar a a distinguir no homem duas
pessoas, uma delas sujeito e a outra objeto dos seus direitos de personalidade; e moralmente
insustentável por levar ao reconhecimento da legitimidade do suicídio, da automutilação, da
escravidão consentida.

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É inegável que a nossa lei, utilizando a expressão direitos de personalidade, protege os indivíduos
contra qualquer ofensa ilícita ou ameaça de ofensa à sua personalidade física ou moral e concretiza
alguns direitos sobre certos aspetos da personalidade.
Ora, saber se se deve falar em direitos sobre certos modos de ser da pessoa ou antes em posições
jurídicas fundamentais do homem, que são o pressuposto de todos os direitos, é um problema de
construção dogmática, fundamentalmente teórico. Não obstante, pode afirmar-se nada se opor à
aplicação da categoria relação jurídica ao enquadramento dessa matéria legal. E, sendo assim,
pode sustentar-se a existência de um direito sobre a própria pessoa. Com efeito, tal figura nem
será: ilógica, pois o direito subjetivo é um poder ideal da vontade e até o poder material da vontade
humana não se estende apenas ao mundo exterior, abrangendo a própria pessoa do ser humano
que é o sujeito dessa vontade; nem nos vinculará a consequência moralmente absurdas, pois tais
direitos devem ter-se como irrenunciáveis e insuscetíveis de limitação voluntária, quando esta for
contrária à ordem pública (art. 81.º).

CAPÍTULO II – AS COISAS E O PATRIMÓNIO

1. Noção jurídica de coisa.

Num sentido corrente e amplo – e de certo modo filosófico – coisa é tudo o que pode ser
pensado, ainda que não tenha existência real e presente. Num sentido físico, coisa é tudo o que tem
existência corpórea, quod tangi potest ou, pelo menos, é suscetível de ser captado pelos sentidos.
Quanto, ao sentido jurídico de coisa, há que considerar o artigo 202.º do CC, cuja definição de
coisa reveste um significado puramente expositivo, de tipo manualístico e, nesse plano, incorreto.
Assim, podemos definir coisas em sentido jurídico como os bens (ou os entes) de caráter estático,
desprovidos de personalidade e não integradores do conteúdo necessário desta, suscetíveis de
constituírem objeto de relações jurídicas.
Por que razão recortámos com mais rigor o género desenhado no artigo 202.º e mantivemos
na definição a nota específica “que podem ser objeto de relações jurídicas”? É que os bens de caráter
estático, carecidos de personalidade, só são coisas em sentido jurídico quando puderem ser objeto de
relações jurídica. Para esse feito, devem apresentar as seguintes características: existência autónoma
ou separada; possibilidade de apropriação exclusiva por alguém, pelo que não são coisas os bens que
escapam do domínio do ser humano, de qualquer homem, ou os que, por falta de delimitação ou
captura, são necessariamente aproveitados por todos os homens; e, ainda, aptidão para satisfazer
interesses ou necessidades humanas, pois ser humano é a medida e o critério do relevo jurídico das
coisas, por isso, não são coisas, pois para nada servem, por exemplo, uma gota de água, um grão de
areia. Por outro lado, não é necessário: que se trate de bens de natureza corpórea; que se trate de
bens permutáveis, isto é, com valor de troca; ou, ainda, que se trate de bens efetivamente apropriados.

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Por fim, note-se que o CC define várias categorias de coisas, que têm interesse por que a lei
faz, por vezes, corresponder regimes jurídicos específicos a certas categorias e não a outras.

2. Noção de património1.

A palavra património conhece várias aceções.


I. Património global;
Esta designação tem em vista o conjunto de relações jurídicas ativas e passivas
(direitos e obrigações) avaliáveis em dinheiro de que uma pessoa é titular. É importante
destacar alguns pontos sobre esta noção.
Em primeiro lugar, trata-se do conjunto de relações jurídicas, não se trata do conjunto
de imóveis, móveis, créditos ou outros direitos patrimoniais, pois as coisas móveis não são
entidades do mesmo tipo dos créditos ou outros direitos – as coisas são objeto de relações
jurídicas; os créditos são relações jurídicas. O património é integrado por direitos sobre as
coisas, direitos de crédito, obrigações e outros direitos patrimoniais.
Depois, não fazem parte do património certas realidades, suscetíveis de terem grande
relevância para a vida económica das pessoas, mas que não são relações jurídicas existentes,
sendo, antes, meras fontes de rendimentos futuros (v.g.: força de trabalho, competência
técnica). Com efeito, são qualidades do sujeito que se projetam nos resultados patrimoniais da
sua vida, mas não são parte do seu património.
Por fim, só fazem parte do património as relações jurídicas suscetíveis de avaliação
pecuniária; esta pecuniaridade pode resultar do valor de troca do direito, por este ser alienável,
mediante uma contraprestação, ou do valor de uso, traduzido em o direito, não sendo embora
permutável, proporcionar o gozo de um bem, material ou ideal, que só se obtém mediante uma
despesa. É esta noção a que se refere os artigos 2030.º/2 e 154.º/1.
II. Património bruto ou ilíquido;
Com este conceito, tem-se em vista o conjunto de direitos avaliáveis em dinheiro,
pertencentes a uma pessoa, abstraindo, portanto, das obrigações. Com efeito, projeta-se em
disposições como os artigos 601.º, 817.º e 198.º.
III. Património líquido.
Designa-se como o conjunto de relações jurídicas ativas ou direitos menos as
obrigações ou relações jurídicas passivas. Esta aceção tem um valor puramente económico.

1 Esta noção distingue-se da esfera jurídica, na medida em que esta é a totalidade das relações jurídicas de que
uma pessoa é sujeito, abrangendo o património e os direitos e obrigações não avaliáveis em dinheiro (pessoais),
encabeçados na pessoa.

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Por fim, note-se que o conceito de património traduz a soma ou conjunto das relações jurídicas
avaliáveis em dinheiro, pertencentes a uma pessoa. Não se trata de um objeto único ou universalidade.
Sê-lo-ia se o direito tratasse o conjunto de relações que integram o património como formando uma
unidade distinta dos seus elementos e suscetível de um tratamento jurídico diferenciado do tratamento
que reclamam os vários elementos componentes dela. Deste modo, quem pretender alienar, por ato
entre vivos, todas as suas relações patrimoniais tem de recorrer aos vários tipos negociais adequados
à alienação de cada um dos elementos componentes do seu património, observando os requisitos
necessários para cada um desses atos. Quer dizer: não há um tipo negocial dirigido à alienação em
bloco, uno acto, do património, sendo este um conjunto atomístico de relações jurídicas e não uma
unidade2.

2.1. O fenómeno da autonomia patrimonial ou separação de patrimónios.


Em certos casos, existe, na titularidade do mesmo sujeito, além do seu património geral, um
conjunto de relações patrimoniais submetido a um tratamento jurídico particular, tal como se fosse
pessoa diversa – estamos perante um património autónomo ou separado. O fenómeno da autonomia
patrimonial traduz-se, a nosso ver, na existência de uma massa de relações patrimoniais, pertencentes
ao mesmo sujeito do património geral, com um tratamento jurídico particular. No entanto, por vezes,
dá-se a este fenómeno a denominação de separação de patrimónios e reserva-se a expressão
património autónomo para os patrimónios temporariamente sem sujeito, como sucede com a herança
jacente. Nós utilizamos as expressões como sinónimos.
Importa agora compreender qual o critério do reconhecimento da autonomia ou separação de
patrimónios. Poderia, com efeito, atender-se a critérios diversos: especial destinação de certa massa
de bens, a sua administração separada, a responsabilidade por dívidas. Neste sentido, o critério
preferível é, em coerência com a principal função jurídica do património, o da responsabilidade por
dívidas. Assim, património autónomo ou separado será o que responde por dívidas próprias, isto é, só
responde e responde só ele por certas dívidas: a existência de uma plena autonomia patrimonial exige,
portanto, o concurso de ambas características (só responder e responder só ele por certas dívidas),
não bastando a verificação de uma delas apenas. Não obstante, poderá existir uma autonomia
patrimonial parcial.
Em síntese: as dívidas pelas quais só o património autónomo responde, sem responder por
quaisquer outras, são as dívidas relacionadas com a função específica, com a finalidade ou afetação
especial desse património.

2.1.1. Herança.

2 O único aspeto em que o património parece comportar-se como uma unidade é a sucessão hereditária, dada a
responsabilidade dos herdeiros pelas dívidas hereditárias, embora dentro apenas das forças da herança, e dada
a existência de uma ação de petição de herança (art. 2075.º).

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A herança é o conjunto das relações jurídicas patrimoniais que, por força da morte de um indivíduo,
passam da titularidade deste para os herdeiros e legatários. Ora, as características de uma plena
autonomia patrimonial manifestam-se em dois aspetos. Em primeiro lugar, na circunstância de a
responsabilidade do herdeiro pelas dívidas das herança não exceder o valor dos bens herdados, quer
a herança seja aceite a benefício de inventário, quer seja aceite pura e simplesmente (art. 2071.º). Com
efeito, constata-se que o herdeiro não responde pelas dívidas da herança para além das forças dos
bens herdados (não responde ultra vires hereditatis), mas o ónus da prova da insuficiência do ativo
hereditário cabe ao herdeiro e não aos credores na aceitação pura e simples, enquanto o ónus da prova
da existência de mais bens além dos inventariados cabe aos credores na aceitação a benefício de
inventário.
Depois, na circunstância de os credores da herança e os legatários gozarem de preferência sobre os
credores pessoais do herdeiro, durante os cinco anos subsequentes à abertura da sucessão ou à
constituição de dívida, se esta é posterior (art. 2070.º); os credores pessoais só podem pagar-se pelos
bens hereditários, depois de satisfeitos os credores do de cujus, desaparecendo assim a autonomia
patrimonial com o pagamento destes; passados cinco anos cessa também a autonomia patrimonial da
herança estejam ou não pagos os credores do de cujus, pois cessa então a preferência.
Em suma, compreende-se que a herança é um património e autónomo e esta autonomia visa um mero
escopo de liquidação, traduzido em assegurar o pagamento dos credores da herança com os bens da
herança e só com estes.

2.1.2. Estabelecimento individual de responsabilidade limitada.


Um caso em que o legislador se referiu a um património separado ou autónomo é o EIRL. Este pode
ser constituído por qualquer pessoa singular que pretenda exercer uma atividade comercial, afetando
para o efeito ao estabelecimento uma parte do seu património, cujo valor representa o capital inicial do
estabelecimento.
Pelas dívidas resultantes de atividades no âmbito do objeto do EIRL, só respondem os bens a este
afetados. Em caso de insolvência do titular, por causa relacionada com a atividade exercida naquele
estabelecimento, só responde com todo o seu património pelas dívidas contraídas nesse exercício se
se provar que a separação patrimonial não foi observada na gestão do estabelecimento.
Por outro lado, o património do EIRL responde, em princípio, apenas pelas dívidas contraídas no
desenvolvimento das atividades compreendidas no âmbito desse estabelecimento. No entanto, pode
ser penhorado o próprio estabelecimento, em execução movida contra o seu titular por dívidas alheias
à exploração, desde que os credores provem a insuficiência dos restantes bens do devedor.

2.1.3. Sub-rogação real.


Estando um património autónomo afetado à satisfação exclusiva de certas dívidas, parece que, se um
bem desse património se perde, adquirindo-se, concomitantemente, outro valor, este valor deve
substituir-se ao primeiro bem, tomando o seu lugar no património autónomo e fazendo as vezes dele.

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Esta instituição da substituição de uma coisa que se perdeu por força de um ato ou facto jurídico que
simultaneamente implicou a aquisição de um valor, ocupando o novo valor o lugar do anterior, como
novo objeto da mesma relação jurídica que já existia, denomina-se sub-rogação real. Com efeito,
parece não deixar de ter lugar nos casos de autonomia patrimonial, em homenagem ao interesse dos
credores por dívidas referentes ao património autónomo.
A sub-rogação real que foi expressa em brocardos romanistas (res succedit in loco rei; pretium succedit
in loco rei; res succedit in loco pretii) está consagrada na disciplina jurídica da herança (artigo 2069.º/-
a), b) e c), bem como nos artigos 692.º e 119.º/1.

2.2. A figura do património coletivo.


A figura do património coletivo apresenta-se-nos quando um único património tem vários sujeitos. Duas
ou mais pessoas, que possuem – cada uma – o seu património que lhes pertence globalmente.
No entanto, o património coletivo não se confunde com a compropriedade ou propriedade em comum.
Neste caso, estamos perante uma comunhão por quotas ideais, isto é, cada comproprietário ou
consorte tem direito a uma quota ideal ou fração do objeto comum. Daí que o comproprietário possa
dispor de toda a sua quota na comunhão ou de parte dela (art. 1408.º); daí que o comproprietário não
seja obrigado a permanecer na indivisão, podendo exigir a divisão da coisa comum (art. 1412.º).
Diversamente, o património coletivo pertence em bloco, globalmente, ao conjunto de pessoas
correspondente, sendo que, individualmente, nenhum dos sujeitos tem direito a qualquer quota ou
fração; o direito sobre a massa patrimonial em causa cabe ao grupo no seu conjunto. Daí que nenhum
dos membros da coletividade titular do património coletivo possa alienar uma quota desse património
ou possa requerer a divisão, enquanto não terminar a causa geradora do surgimento do património
coletivo.
Por conseguinte, compreende-se que o património coletivo é determinado por uma causa ou escopo
e, relativamente à prossecução desse escopo, pode gerar-se um passivo, um conjunto de dívidas. Por
essas dívidas, de que são sujeitos passivos os membros do grupo titular do património coletivo, estes
respondem com os bens coletivos e, esgotados estes, solidariamente com os seus bens pessoais. Os
credores pessoais dos titulares do património coletivo não se podem pagar pelo património referido,
mas, uma vez extinto o vínculo coletivístico, podem obter satisfação pela parte que toque ao seu
devedor nesse património, respeitada a preferência dos credores da coletividade.
Por fim, note-se que não é possível, entre nós, criar-se por negócio jurídico um património coletivo,
uma comunhão de tipo coletivístico sem repartição de quotas. Com efeito, um caso em que parece
divisar-se a figura do património coletivo no nosso direito é a comunhão conjugal, sendo que o regime
especial dos patrimónios coletivos, quanto ao passivo relacionado com o escopo em vista do qual se
formou o património, está claramente estabelecido nos artigos 1695.º e 1696.º.

TEORIA GERAL DO FACTO JURÍDICO

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TÍTULO I – DOS FACTOS JURÍDICOS EM GERAL


TÍTULO II – DO NEGÓCIO JURÍDICO E DO SIMPLES ATO JURÍDICO
SUBTÍTULO I – CONCEITO, ELEMENTOS E CLASSIFICAÇÕES
SUBTÍTULO II – ELEMENTOS ESSENCIAIS DO NEGÓCIO JURÍDICO
CAPÍTULO I – CAPACIDADE E LEGITIMIDADE
CAPÍTULO II – A DECLARAÇÃO NEGOCIAL
DIVISÃO I – NOÇÕES GERAIS
DIVISÃO II – INTERPRETAÇÃO E INTEGRAÇÃO DOS NEGÓCIOS JURÍDICOS
DIVISÃO III – A DIVERGÊNCIA ENTRE A VONTADE E A DECLARAÇÃO
DIVISÃO IV – VÍCIOS DA VONTADE
DIVISÃO V – A REPRESENTAÇÃO NOS NEGÓCIOS JURÍDICOS
CAPÍTULO III – O OBJETO NEGOCIAL
SUBTÍTULO III – ELEMENTOS ACIDENTAIS DOS NEGÓCIOS JURÍDICOS
SUBTÍTULO IV – INEFICÁCIA E INVALIDADE DOS NEGÓCIOS JURÍDICOS
TÍTULO III – DO CONTRATO
TÍTULO IV – EFICÁCIA DO DECURSO DO TEMPO NAS RELAÇÕES JURÍDICAS TÍTULO I – DOS
FACTOS JURÍDICOS EM GERAL

1. Conceitos e classificação.
1.1. Noção de facto jurídico.
1.2. Classificação dos factos jurídicos.
2. Aquisição, modificação e extinção de relações jurídicas.
2.1. Aquisição de direitos.
2.1.1. Modalidades de aquisição de direitos.
2.1.1.1. Modalidades de aquisição derivada.
2.1.1.2. Aquisição derivada versus sucessão.
2.1.2. Importância da distinção entre aquisição derivada e aquisição originária.
2.1.2.1. Exceções à regra geral da aquisição derivada.
2.2. Modificação de direitos.
2.3. Extinção de direitos.
2.3.1. Prescrição e caducidade.

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TÍTULO I – DOS FACTOS JURÍDICOS EM GERAL

1. Conceitos e classificação.

1.1. Noção de facto jurídico.


Facto jurídico é todo o ato humano ou acontecimento natural juridicamente relevante. Esta relevância
traduz-se, principalmente, na produção de efeitos jurídicos.
Com efeito, note-se que há factos sociais ou naturais indiferentes para o direito, isto é,
desprovidos de qualquer eficácia jurídica. São, portanto, factos materiais, ajurídicos, neutrais do ponto
de vista do ordenamento jurídico.

1.2. Classificação dos factos jurídicos.


Desde logo, podemos distinguir entre factos jurídicos voluntários ou atos jurídicos e factos jurídicos
involuntários ou naturais.
Com efeito, os primeiros resultam da vontade como elemento juridicamente relevante; são
manifestações ou atuação de uma vontade; são ações humanas tratadas pelo direito enquanto
manifestações de vontade. Já os segundos são estranhos a qualquer processo volitivo – ou porque
resultam de causas de ordem natural ou porque a sua eventual voluntariedade não tem relevância
jurídica (v.g.: destruição natural de um objeto, decurso do tempo, nascimento, morte, vizinhança).
Neste sentido, note-se que os factos jurídicos voluntários ou atos jurídicos podem ser lícitos ou ilícitos.
Os atos ilícitos são contrários à ordem jurídica e por ela reprovados; importam uma sanção para o seu
autor. Por outro lado, os atos lícitos são conformes à ordem jurídica e por ela consentidos.
Além do mais, note-se que os factos voluntários ou atos jurídicos podem, ainda, distinguir-se em
negócios jurídicos e simples atos jurídicos (atos jurídicos stricto sensu). De facto, estamos no domínio
dos factos voluntários; apesar disso, nem sempre os efeitos jurídicos respetivos são produzidos por
terem sido queridos e na medida em que o foram. Ora, a distinção entre negócios jurídicos e simples
atos jurídicos assenta precisamente neste critério da relação que intercede entre a vontade ou volição
das partes dirigida a um resultado e os efeitos jurídicos produzidos.
• Negócios jurídicos;
São factos voluntários, cujo núcleo essencial é integrado por uma ou mais declarações
de vontade3 a que o ordenamento jurídico atribui efeitos jurídicos concordantes com o conteúdo
da vontade das partes, tal como este é objetivamente (de fora) apercebido. O comportamento
de cada parte aparece exteriormente como uma declaração visando certos resultados prático-
empíricos, sob a tutela do ordenamento jurídico, e os efeitos determinados pela lei são os

3 Não se vê legitimidade nem interesse prático na distinção entre declaração de vontade ou negócios de
declaração, nos quais haveria um fim de notificação de uma vontade negocial, e atuações de vontade ou negócios

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correspondentes aos resultados cuja intenção foi manifestada. Assim, os efeitos dos negócios
jurídicos produzem-se ex voluntate e não apenas ex lege.
• Simples atos Jurídicos ou atos jurídicos stricto sensu;
São factos voluntários cujos efeitos se produzem, mesmo que não tenham sido
previstos ou queridos pelos seus autores, embora, muitas vezes, haja concordância entre a
vontade destes e os efeitos. Todavia, não é necessária uma vontade de produção dos efeitos
correspondentes ao tipo de simples ato jurídico em causa para essa eficácia se desencadear.
Assim, os efeitos dos simples atos jurídicos produzemse ex lege e não ex voluntate4.
 Quase-negócios jurídicos ou atos jurídicos quase-negociais;
Traduzem-se na manifestação exterior de uma vontade.
 Operações jurídicas (atos materiais, atos reais ou atos exteriores).
Traduzem-se na efetivação ou realização de um resultado material ou factual
a que a lei liga determinados efeitos jurídicos.

2. Aquisição, modificação e extinção de relações jurídicas.

Os factos jurídicos desencadeiam determinados efeitos. Esses efeitos consistem, fundamentalmente,


numa aquisição, numa modificação ou numa extinção de relações jurídicas.

2.1. Aquisição de direitos.


Um direito é adquirido por uma pessoa quando esta se torna titular dele. Aquisição de direitos é a
ligação – a criação de um laço de pertinência – de um direito a uma pessoa. No entanto, note-se que
as noções de aquisição e de constituição de direitos não se confundem. Com efeito, a constituição de
um direito é o seu surgimento, é a criação de um

de atuação, onde não haveria esse fim de notificação. Entendemos que as chamadas declarações de vontade são simples atos
jurídicos ou declarações de vontade tácitas.
4
Interpelação do devedor (art. 805.º/1); gestão de negócios (art. 464.º), notificação do devedor da cessão de créditos (art. 583.º),
fixação do domicílio voluntário (art. 82.º), cessão industrial na forma de união (art. 1333.º), ou de especificação (art. 1336.º),
ocupação de animais bravios ou de animais e coisas móveis perdidas (art. 1318.º), descoberta de um tesouro (art. 1324.º),
criação de uma obra artística, literária científica ou uma invenção industrial (art.1303.º).
direito que não existia anteriormente, pelo que toda a constituição de um direito implica a sua aquisição,
dado não existirem direitos sem sujeito. Porém, o inverso já não se verifica, pois nem toda a aquisição
de direitos tem lugar em casos de surgimento ex novo de um direito.

2.1.1. Modalidades de aquisição de direitos.

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A aquisição de direitos conhece duas modalidades fundamentais: a aquisição originária e a


aquisição derivada. Com efeito, na aquisição originária4 o direito adquirido não depende da existência
ou extensão de um direito anterior, que poderá até não existir; quando o direito anterior exista, o direito
não foi adquirido por causa desse direito, mas apesar dele; na aquisição derivada 5, o direito adquirido
funda-se ou filia-se na existência de um direito na titularidade de outra pessoa; a existência anterior
desse direitos e a sua extinção ou limitação é que geram a aquisição do direito pelo novo titular, é que
são a causa dessa aquisição.
De facto, a distinção feita assenta num critério de causalidade que vê a aquisição derivada como
consequência ou efeito imediato da extinção subjetiva ou da limitação de um direito anterior, ao invés
da aquisição originária onde não existe qualquer ligação causal entre a perda ou a diminuição de um
direito e a aquisição. Ora, é este o critério de distinção que está em consonância com o interesse
prático-jurídico da mesma: o direito adquirido, na aquisição derivada e não já na aquisição originária,
depende na sua existência, extensão e natureza do direito pré-existente.
Neste sentido, na aquisição originária, pode suceder que não preexistisse à aquisição qualquer direito
dum anterior titular (ocupação de coisas móveis abandonadas ou que nunca tiveram dono) ou que
preexistisse à aquisição o direito de um titular anterior, direito que se extinguiu ou ficou limitado ou
comprimido em virtude da aquisição. No entanto, o direito do adquirente não se filia no do titular anterior,
não depende dele nem na sua existência nem na sua extensão, pelo contrário, não foi adquirido por
causa desse direito, mas apesar dele. Com efeito, mesmo quando esta aquisição faz extinguir um direito
preexistente e esse direito seja da mesma natureza e conteúdo que o direito adquirido, ele não passa
para o adquirente, mantendo-se idêntico através da mudança do respetivo titular. O direito do
adquirente será um direito novo da mesma natureza e conteúdo do direito extinto. Não intercede pois
qualquer relação entre o adquirente e um titular anterior, mesmo que ele existisse. Por conseguinte, a
usucapião constitui um modo de aquisição originária e note-se que, quando se consuma esta
usucapião, extingue-se ou sofre redução o direito do proprietário anterior, que sempre terá existido,
pois de outro modo só poderia falar-se em ocupação – impossível para os imóveis, que sempre têm
dono. Ora, extingue-se quando o direito adquirido por usucapião é a propriedade e sofre redução
quando tal direito é apenas um direito de gozo (os de garantia não podem adquirir-se desta forma).

4 São casos de aquisição originária a ocupação de coisas móveis (arts. 1318.º e ss.), a usucapião (arts. 1287.º e
ss.) e a aquisição de direitos de autor pela criação literária, artística ou científica. C ASTRO MENDES menciona outros
exemplos, como a acessão, que só é aquisição originária na hipótese de acessão natural, não o sendo já a acessão
industrial; esta será antes uma aquisição derivada por transmissão forçada, dado o sistema seguido na nossa lei
(art. 1333.º).
5 São casos de aquisição derivada a aquisição do direito de propriedade, ou e outro direito real, por força de um
contrato, a aquisição de um crédito ou de uma relação contratual por cessão, aquisição de direitos por sucessão
mortis causa, entre outros.

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Além do mais, quanto à aquisição derivada, dizer que COVIELLO faz depender a sua verificação de dois
elementos: primeiro, que a aquisição para uma pessoa tenha lugar ao mesmo tempo em que se verifica
a perda ou diminuição do direito noutra pessoa; segundo, que a perda ou diminuição do direito numa
pessoa seja dirigida a produzir a aquisição a favor duma outra, de modo que a aquisição possa
considerar-se um efeito daquela perda ou diminuição.
Por fim, note-se que, ao passo que na aquisição derivada a preexistência do direito do transmitente e
a sua extinção subjetiva ou a sua redução constituem a causa da aquisição do direito do adquirente,
na aquisição originária a extinção ou redução do direito do titular anterior (quando exista) constitui um
simples antecedente cronológico da aquisição operada a favor do novo titular. Este fenómeno produz-
se em seguida ao outro, mas não por causa ou como efeito do outro. A extinção ou redução do direito
pré-existente é que será, ou poderá ser, um efeito da aquisição.

2.1.1.1. Modalidades de aquisição derivada.


Dentro da aquisição derivada, pode distinguir-se entre aquisição derivada translativa, aquisição
derivada constitutiva e aquisição derivada restitutiva.
• Aquisição derivada translativa;
O direito adquirido é o mesmo que já pertencia ao anterior titular.
Exemplos:
Indivíduo que adquire o domínio de um prédio por compra, doação ou sucessão mortis
causa, legítima ou testamentária. Além do mais, também a cessão da posição contratual (arts.
424.º e ss) é uma aquisição derivada translativa da posição contratual, isto é, da relação
contratual ou relação obrigacional complexa emergente do contrato em causa.
• Aquisição derivada constitutiva;
O direito filia-se num direito do anterior titular, formando-se à custa dele, limitando-o ou
comprimindo-o. Mas não preexiste como entidade autónoma e específica na esfera jurídica
dessa pessoa.
Exemplos:
O proprietário de um prédio que constitui uma servidão, ou outro direito real de gozo
ou de garantia a favor de outrem 6 . Além do mais, também o subcontrato, por exemplo,
sublocação (arts. 1060.º e ss.) e subempreitada (art. 1213.º), é uma aquisição derivada
constitutiva, pois um contratante concede a outro a possibilidade de usar a posição contratual
que para o primeiro resulte de um contrato principal, ao qual este último continua ligado.
• Aquisição derivada restitutiva;
Tem em vista a hipótese de o titular de um direito real limitado se demitir dele, unilateral
ou contratualmente (a título gratuito ou oneroso), recuperando assim ipso facto o proprietário a

6 Ninguém pode ter uma servidão sobre o seu próprio prédio (nemine res sua servit); e o mesmo se diga sobre
qualquer outro ius in re aliena.

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plenitude dos seus poderes, em virtude da conhecida elasticidade ou força expansiva do direito
de propriedade. Porventura, seria mais rigoroso falar-se de aquisição originária restitutiva
quando o titular do direito real se demite dele por ato unilateral (renúncia verdadeira e própria).
De qualquer maneira, qualifica-se de restitutiva a aquisição porque ela vai repor as coisas no
estado anterior à constituição do direito.

2.1.1.2. Aquisição derivada versus sucessão.


A sucessão é o subingresso de uma pessoa na titularidade de todas as relações jurídicas ou
determinada ou determinadas relações jurídicas de outrem. Rigorosamente, coincide apenas com a
aquisição derivada translativa, pois só nesta é que o direito adquirido é o mesmo do anterior titular.
Ora, a sucessão refere-se igualmente às dívidas e não só aos direitos, enquanto a aquisição
rigorosamente só diz respeito a direitos. As dívidas, ainda quando mantém a sua identidade, apesar da
mudança de devedor com consentimento do credor, não se adquirem – assumem-se (vide art. 595.º).
Numa hipótese de sucessão numa relação jurídica, isto é, numa hipótese de aquisição derivada
translativa, o titular anterior do direito designa-se por autor, antecessor ou causante (causam dans) e o
adquirente por sucessor ou causado (causam habens). Frequentemente, fala-se de sucessão para
designar apenas a sucessão mortis causa (art. 2024.º). Neste caso, o autor da sucessão ou causante
é designado por hereditando ou de cujus, e os sucessores ou causados são designados como herdeiro
ou legatário.
Por fim, note-se que a noção de transmissão de direitos equivale igualmente à de aquisição
derivada translativa e à de sucessão. Num sentido muito amplo, podem, porém, empregar-se as
expressões “transmissão de direitos” ou “sucessão de direitos” para abranger qualquer forma de
aquisição derivada.

2.1.2. Importância da distinção entre aquisição derivada e aquisição originária. Na aquisição


originária, a extensão do direito adquirido depende apenas do facto ou título aquisitivo. Neste sentido,
diz-se quanto à usucapião, tantum possessum quantum praescriptam.
Na aquisição derivada, a extensão do direito do adquirente depende do conteúdo do facto aquisitivo,
mas depende ainda da amplitude do direito do transmitente, não podendo, em regra, ser maior que a
deste direito: nemo plus iuris ad alium transfere potest quam ipse haberet. É a regra geral da aquisição
derivada. No entanto, este princípio comporta exceções, isto é, em certas hipóteses, o adquirente, não
obstante a aquisição ser derivada, pode obter um direito que não pertencia ao transmitente ou é mais
amplo do que aqueles que pertenciam a este.

2.1.2.1. Exceções à regra geral da aquisição derivada.


Vamos considerar as exceções à regra nemo plus iuris, as quais realizam uma proteção do terceiro
adquirente a non domino.

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Davide Rodrigues 2016/2017 Primeira Turma

I. Dos institutos do registo predial e dos registos de bens móveis;


Automóveis O registo da propriedade automóvel é, diversamente do registo predial, obrigatório, e a sua falta
tem como sanção a apreensão do veículo. As disposições sobre registo predial são, porém, de
aplicação subsidiária.

Partes sociais Código do Registo Comercial


Artigo 3.º - Sociedades comerciais e sociedades civis sob forma comercial
1. Estão sujeitos a registo os seguintes factos relativos às sociedades comerciais e sociedades
civis sob forma comercial:
e) A transmissão de partes sociais de sociedades em nome coletivo, de partes sociais de sócios
comanditados de sociedades em comandita simples, a constituição de direitos reais de gozo ou
de garantia sobre elas e a sua transmissão, modificação e extinção, bem como a penhora dos
direitos aos lucros e à quota de liquidação;
Artigo 13.º - Eficácia entre as partes
1 - Os factos sujeitos a registo, ainda que não registados, podem ser invocados entre as
próprias partes ou seus herdeiros.
2 - Excetuam-se do disposto no número anterior os atos constitutivos das sociedades e
respetivas alterações, a que se aplica o disposto no Código das Sociedades
Comerciais e na legislação aplicável às sociedades anónimas europeias
Artigo 14.º - Oponibilidade a terceiros
1. Os factos sujeitos a registo só produzem efeitos contra terceiros depois da data do respetivo
registo.

2 - Os factos sujeitos a registo e publicação obrigatória nos termos do n.º 2 do artigo


70.º só produzem efeitos contra terceiros depois da data da publicação. 3 - A falta de registo não
pode ser oposta aos interessados pelos seus representantes legais, a quem incumbe a obrigação
de o promover, nem pelos herdeiros destes.
4 - O disposto no presente artigo não prejudica o estabelecido no Código das Sociedades
Comerciais e na legislação aplicável às sociedades anónimas europeias.

Navios Decreto-Lei nº 42 644

Aeronaves Deve ser efetuado no Registo Aeronáutico Nacional, organizado pelo Instituto Nacional de Aviação
Civil.

Por força destes institutos, devem ser inscritos, com o fim de lhes dar publicidade, em
livros existentes em repartições especiais, os diversos atos inerentes a bens imóveis, a veículos
automóveis ou aos restantes bens indicados, em particular os atos de que resulte a aquisição
de direitos reais sobre os mesmos bens.
No entanto, note-se que o registo não é meio de aquisição dos direitos, sendo o ato
plenamente eficaz inter partes, seus herdeiros ou representantes, mesmo na falta de registo 7.
A consequência da falta de registo é, portanto, a ineficácia do ato em relação a terceiros.

7 Salvo quanto a factos constitutivos de hipotecas, cuja eficácia, entre as próprias partes, depende da realização
de registo. O registo de hipotecas tem caráter constitutivo, enquanto o de outros direitos é meramente declarativo,

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Davide Rodrigues 2016/2017 Primeira Turma

Por conseguinte, impõe-se a questão: quem são os terceiros para efeitos de registo
predial?
MANUEL DE ANDRADE definia terceiros para efeitos de registo predial como sendo as
pessoas que do mesmo autor ou transmitente adquiram direitos incompatíveis (total ou
parcialmente) sobre o mesmo prédio e justificava essa definição de uma forma convincente:
trata-se fundamentalmente da ideia de que o registo, dada a forma como está organizado, não
pretende assegurar a existência efetiva do direito da pessoa a favor de quem está registado o
bem, mas só que a ter ele existido ainda se conserva – ainda não foi transmitido a outra pessoa.
O registo não dá direitos, apenas os conserva. É só esta a dose de segurança que o registo
pode e visa fornecer e dela decorre, coerentemente, um conceito de terceiros nos termos
definidos.
Assim, compreendemos que o registo predial não se destina a realizar uma proteção
máxima da segurança na aquisição de direitos sobre imóveis, mas uma proteção mais limitada:
não a garantir que, se se adquire de quem tem o prédio registado em seu nome, se faz uma
aquisição válida e firme, mas a assegurar que, se o direito existiu na titularidade desta pessoa,
então ela ainda o conserva8.
Esta garantia deve considerar-se plena, pelo que deve funcionar, sejam ambas as
aquisições onerosas ou gratuitas e sem que se deva admitir prova tendente a demonstrar que
o terceiro devia conhecer, ou conhecia, o ato anterior não inscrito, isto é, sem que releve a boa
ou a má fé subjetivas do terceiro. A segurança que se pretende garantir ao comércio jurídico
seria fortemente afetada, se o terceiro, adquirente de quem tem um prédio registado a seu
favor, ficasse exposto às delongas, incertezas, gastos e, eventualmente, manobras inerentes
a processos judiciais tendentes a provar que ele conhecia uma alienação anterior. Acresce que
só a inoponibilidade de atos não registados a terceiros, mesmo que de má fé, motivará os
interessados a promover o registo, como é de interesse público. A aquisição tabular (aquisição
pelo registo) exige, portanto, apenas que o terceiro atue com base num registo preexistente,
desconforme com a realidade substantiva e que efetue o registo a seu favor em primeiro lugar.
Por fim, note-se que, segundo a nova redação do artigo 5.º/4 do Código do
Registo Predial, “terceiros, para efeitos de registo, são aqueles que tenham adquirido de um
autor comum direitos incompatíveis entre si”. Assim, note-se, ainda, que a aquisição do terceiro

isto é, destina-se apenas a dar publicidade aos direitos que nascem, se transmitem, se modificam ou se extinguem
à margem do registo.
8 Não obstante, deve entender-se que, em conformidade com o STJ, o ofendido num acidente de viação pode e
deve demandar o atual proprietário do veículo, mesmo que a aquisição não tenha sido registada. É que o ofendido
não é, em face do conceito de terceiros definido, um terceiro a quem o ato seja inoponível por falta de registo. O
ato de compra não registado já seria porém inoponível a quem tivesse posteriormente adquirido do vendedor um
direito real sobre o veículo e o tivesse registado antes do registo da primeira compra.

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Davide Rodrigues 2016/2017 Primeira Turma

não necessita, por outro lado, de resultar de um negócio jurídico (embora os herdeiros, que
subingressam na posição do de cujus, não sejam considerados terceiros, nos termos do artigo
4.º/1 do CRP).
II. Da eventual inoponibilidade das nulidades e anulabilidades a terceiro de boa fé;
Por força do princípio nemo plus iuris, se A transmitiu, por negócio nulo ou anulável um
prédio a B e este, por sua vez, o transmitiu a C, declarado nulo ou anulado o primeiro ato, o
segundo seria também nulo e, consequentemente, C devia restituir o prédio (resoluto iure
dantis resolvitur et ius accipientis). Isto porque as nulidades e anulações operam em face de
terceiros e não só em face da contraparte (operam in rem e não apenas in personam) – esta a
solução que vinha consagrada no Código de Seabra.
Diversa é a solução do atual Código Civil. Com efeito, aí se estabelece (art. 291.º) um
regime de inoponibilidade a terceiros de boa fé, adquirentes a título oneroso, das nulidades e
anulações, desde que a ação tendente à declaração de nulidade ou à anulação não seja
proposta e registada dentro dos três anos posteriores à conclusão do negócio. Assim, realiza-
se a proteção do terceiro de boa fé, adquirente a non domino, sendo os direitos deste
sacrificados, por força da invalidade do negócio donde resultaram os direitos do seu
transmitente, apenas na hipótese de este ser invalidado nos três anos subsequente à sua
realização. Com efeito, é uma solução semelhante à que se estabelece no artigo 243.º para a
simulação, embora conferindo uma proteção menos completa ao terceiro de boa fé. Para os
efeitos do artigo 291.º, é considerado de boa fé o terceiro adquirente que, no momento da
aquisição (mala fides superveniens non nocet), desconhecia, sem culpa, o vício do negócio
nulo ou anulável.
Por fim, torna-se óbvio como do artigo 291.º/1, por exigência da proteção da confiança
dos terceiros e dos interesses do comércio jurídico, resulta uma exceção à regra geral da
aquisição derivada9.
III. Da proteção de terceiros de boa fé no caso especial da simulação;
Os negócios simulados são nulos e, como tal, não produzem quaisquer efeitos. Se o
simulado adquirente de um prédio, porém, vender ou doar, por ato verdadeiro, o mesmo prédio
a um terceiro e este ignorar a simulação, o terceiro adquire validamente esse objeto (art. 243.º).

9 Outras exceções: protegendo-se o terceiro adquirente de boa fé a non domino, consta do artigo 2076.º/2,
protegendo-se o terceiro que haja adquirido do herdeiro aparente, por título oneroso e de boa fé – acresce à boa
fé e à onerosidade da aquisição a qualidade de herdeiro aparente do alienante, isto é, a existência de uma
convicção vulgarizada, de uma crença errónea, positiva e generalizada, sobre a qualidade de herdeiro (error
communis facit ius); e ainda o artigo 1301.º que contém um regime especial de proteção ao terceiro de boa fé
adquirente a non domino, sem, no entanto, chegar a configurar uma exceção ao princípio geral de aquisição
derivada.

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Ora, dado que o vendedor ou doador tinha adquirido a propriedade por ato simulado e,
portanto, nulo, o terceiro adquire de quem não era proprietário, ao invés do que prescreve o
princípio nemo plus iuris.

2.2. Modificação de direitos.


Tem lugar a modificação de direitos quando, alterado ou mudado um elemento de um direito,
permanece a identidade do referido direito, apesar da vicissitude ocorrida. A perduração do direito,
apesar da modificação verificada, significa que o ordenamento jurídico continua a tratar o direito como
se não tivesse tido lugar a alteração. O direito é o mesmo e não um direito novo.
 Modificação subjetiva;
A modificação do direito é uma modificação subjetiva, se tem lugar uma
substituição do respetivo titular, permanecendo a identidade objetiva do direito.
Nesta hipótese, tem lugar uma sucessão10 no direito. É o que se verifica no domínio
dos direitos de crédito e quanto a atos inter vivos, com a cessão de créditos e a sub-
rogação nos créditos. A sucessão entre vivos nas relações obrigacionais – substituição
de sujeitos sem extinção da relação jurídica e surgimento de uma nova, isto é, sem
novação – pode ter lugar, também, do lado passivo, surgindo então a assunção da
dívida, e pode ainda referir-se à relação contratual, normalmente através da cessão da
posição contratual. Sabemos, igualmente, que a modificação subjetiva das relações
jurídicas, quer do lado ativo, quer do lado passivo, pode ter lugar por sucessão mortis
causa.
Por fim, a modificação subjetiva das relações jurídica pode resultar, ainda, de
uma multiplicação dos sujeitos por adjunção – um novo devedor assume a obrigação
para com o credor, permanecendo o devedor vinculado (assunção cumulativa, co-
assunção de dívida ou adesão à dívida).
 Modificação objetiva;
Quando muda o conteúdo ou o objetivo do direito, permanecendo este idêntico.
Muda o conteúdo se, por exemplo, é concedida pelo credor ao devedor uma
prorrogação do prazo para o cumprimento. Muda o objeto se, por exemplo, não
cumprindo o devedor culposamente a obrigação, o seu dever de prestar é substituído
por um dever de indemnizar.

10 A manutenção da identidade do direito – o tratar-se de uma sucessão e não de uma novação – manifesta-se em
várias soluções jurídicas: manutenção do mesmo prazo prescricional, contagem do tempo já decorrido para efeitos
de prescrição, possibilidade de opor ao credor as mesmas exceções, transmissão dos acessórios do direito,
manutenção das garantias, manutenção do efeito de uma cláusula de sujeição a árbitros dos litígios referentes à
relação em causa.

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2.3. Extinção de direitos.


A extinção de um direito tem lugar quando um direito deixa de existir na esfera jurídica de uma pessoa.
Quebra-se a relação de pertinência entre um direito e a pessoa do seu titular. Neste sentido, note-se
que a extinção de direitos traduzir-se-á numa extinção subjetiva ou perda de direitos, se o direito
sobrevive em si, apenas mudando a pessoa do seu titular. O direito mudou de titularidade; extinguiu-
se para aquele sujeito, mas subsiste na esfera jurídica de outrem. A extinção subjetiva verifica-se
sempre que tem lugar uma sucessão na titularidade dos direitos; o sucessor adquire ou subingressa na
titularidade do direito e este extinguiu-se para o autor ou transmitente (causante).
Por outro lado, a extinção de direitos já será uma extinção objetiva, se o direito desaparece, deixando
de existir para o seu titular ou para qualquer outra pessoa. Nesta hipótese, não há uma sucessão,
transmissão ou aquisição derivada translativa de direitos. É o que acontece se há destruição do objeto
do direito, abandono de um móvel.
Por fim, dizer que as considerações que fizemos sobre a extinção de direitos valem mutatis mutandis
para a extinção de deveres jurídicos, sobretudo de obrigações.

2.3.1. Caducidade e prescrição.


Uma forma particular de extinção de direitos é a correspondente ao institutos da prescrição e da
caducidade. Com efeito, se o titular de um direito o não exercer durante certo tempo fixado na lei,
extingue-se esse direito, dizendo-se que o direito prescreveu ou caducou.
Com efeito, o beneficiário da prescrição, completada esta, pode recusar o cumprimento da prestação
ou opor-se ao exercício do direito prescrito. No entanto, se o devedor, beneficiário da prescrição, tiver
cumprido espontaneamente a obrigação prescrita (ignorando ou não a prescrição), o credor goza da
soluti retentio, não podendo o obrigado repetir o que haja prestado (art. 304.º). Desde já, note-se que
estamos a falar da prescrição extintiva ou negativa e não da prescrição positiva, através da qual se
adquirem direitos reais. Ora, tradicionalmente, a prescrição aplicava-se aos direitos subjetivos
propriamente ditos, enquanto que a caducidade visava os direitos potestativos. No entanto, a nossa lei
seguiu um critério formal de distinção das duas figuras, afirmando que quando um direito deva ser
exercido durante certo prazo se aplicam as regras da caducidade, salvo se a lei se referir
expressamente à prescrição (art. 298.º/2).
Quanto ao regime jurídico, importa, ainda, notar as seguintes diferenças: admitem-se estipulações
contratuais sobre a caducidade (art. 330.º), o mesmo não acontecendo a respeito do regime da
prescrição, o qual é inderrogável (art. 300.º); a caducidade é apreciada oficiosamente pelo tribunal (art.
333.º), diversamente do que sucede com a prescrição, que tem de ser invocada, não podendo o tribunal
supri-la, de ofício (art. 303.º); a caducidade, em princípio, não comporta causas de suspensão nem de
interrupção (art. 328.º), ao contrário da prescrição, que se suspende e interrompe nos casos previstos

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Davide Rodrigues 2016/2017 Primeira Turma

na lei (arts. 318.º e 323.º)11; por fim, a caducidade só é impedida, em princípio, pela prática do ato (art.
331.º), enquanto que a prescrição se interrompe pela citação ou notificação judicial de qualquer ato que
exprima, direta ou indiretamente, a intenção de exercer o direito, tendo-se, igualmente, por
interrompida, cinco dias depois de requerida a citação ou a notificação, se estas não tiverem sido feitas
por causa não imputável ao requerente (art. 323.º).
De facto, esta diferença de regimes encontra correspondência na diversidade de fundamentos que
subjaz a cada um destes institutos.
Neste sentido, a prescrição extintiva, embora não lhe ser totalmente estranhas razões de justiça, é um
instituto endereçado fundamentalmente à realização de objetivos de conveniência ou oportunidade. Por
isso, encarada exclusivamente numa perspetiva de justiça, foi pelos antigos crismada de impium
remedium ou impium praesidium. Apesar disso, sempre intervém na fundamentação da prescrição uma
ponderação de justiça. Diversamente da caducidade, a prescrição arranca da ponderação de uma
inércia negligente do titular do direito em exercitá-lo, o que faz presumir uma renúncia ou, pelo menos,
o torna indigno da tutela do Direito (dormientibus non sucurrit ius). Por isso, embora a prescrição – tal
como a caducidade – vise satisfazer a necessidade social de segurança jurídica e certeza dos direitos,
e, assim, proteger o interesse do sujeito passivo, essa proteção é dispensada atendendo também ao
desinteresse, à inércia negligente do titular do direito em exercitá-lo. Há, portanto, um inércia do titular
do direito, que se conjuga com o interesse objetivo numa adaptação da situação de direito à situação
de facto.
Por outro lado, na caducidade, só aspeto objetivo da certeza e segurança é tomado em conta. O que
explica, por exemplo, que a caducidade seja apreciada oficiosamente pelo tribunal.
Por fim, note-se que o prazo ordinário da prescrição é de vinte anos (art. 309.º), prevendo a lei, para
certas hipóteses, uma prescrição de cinco anos. Há, ainda, prazos mais curtos para as prescrições
presuntivas (art. 312.º), prazos esses que podem ser de seis meses (art. 316º) ou de dois anos (art.
317.º) – estas, por serem fundadas numa presunção de cumprimento, podem, ao contrário do regime
geral da prescrição, ser ilididas por confissão do devedor.

SUBTÍTULO I – CONCEITO, ELEMENTOS E CLASSIFICAÇÕES

1. Conceito e importância do negócio jurídico.


2. Relação entre a vontade exteriorizada na declaração negocial e os efeitos jurídicos do
negócio.
3. Elementos dos negócio jurídicos.

11 A suspensão tem o efeito de suster a contagem do tempo da prescrição, não se incluindo no prazo desta o
espaço de tempo durante o qual ocorreu a suspensão. O vencimento do prazo é, assim, prorrogado pelo tempo
em que a prescrição esteve suspensa. Por sua vez, a interrupção inutiliza todo o tempo decorrido anteriormente,
começando a correr novo prazo para a prescrição (art. 326.º).

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Davide Rodrigues 2016/2017 Primeira Turma

4. Classificações dos negócios jurídicos.


4.1. Negócios jurídicos unilaterais e negócios jurídicos bilaterais ou contratos.
4.1.1. Negócios jurídicos unilaterais.
4.1.2. Negócios jurídicos bilaterais.
4.2. Negócios entre vivos e negócios mortis causa.
4.3. Negócios consensuais ou não solenes e negócios formais ou solenes.
4.4. Negócios consensuais e negócios reais.
4.5. Negócios obrigacionais, reais, familiares e sucessórios.
4.6. Negócios patrimoniais e negócios pessoais.
4.7. Negócios causais e negócios abstratos.
4.8. Negócios onerosos e negócios gratuitos.
4.8.1. Contratos comutativos e contratos aleatórios.
4.8.1.1. Contratos de jogo e de aposta.
4.8.2. Negócios parciários.
4.9. Negócios de mera administração e negócios de disposição.

SUBTÍTULO I – CONCEITO, ELEMENTOS E CLASSIFICAÇÕES

1. Conceito e importância do negócio jurídico.

Os negócios jurídicos são atos jurídicos constituídos por uma ou mais declarações de vontade,
dirigidas à realização de certos efeitos práticos, com intenção de os alcançar sob tutela do direito,
determinando o ordenamento jurídico a produção dos efeitos jurídicos conformes à intenção
manifestada pelo declarante ou declarantes.
Ora, o que é verdadeiramente constitutivo do negócio é o comportamento declarativo – a existência de
um comportamento que, exteriormente observado, apareça como manifestação de uma vontade de
certos efeitos práticos sob a sanção do ordenamento jurídico. Claro que, normalmente, esta aparência
corresponde a um conteúdo volitivo real e essa coincidência permite ao negócio jurídico realizar a sua
função de meio de realização da autonomia da vontade. Tal coincidência não é, todavia, necessária e,
em caso de dissídio entre vontade real e declaração, prevalece, quase sem restrições, o elemento
declarativo. Por fim, note-se que a importância do negócio jurídico manifesta-se na circunstância de
esta figura ser um meio de auto-ordenação das relações jurídicas de cada sujeito de direito.

2. Relação entre a vontade exteriorizada na declaração negocial e os efeitos jurídicos do


negócio.

I. Teoria dos efeitos jurídicos;

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(SAVIGNY, KELLER, WINDSHIED)

Para esta doutrina, os efeitos jurídicos produzidos, tais como a lei os determina, são
perfeita e completamente correspondentes ao conteúdo da vontade das partes. Haveria (ou
teria de haver) uma vontade das partes dirigida à produção de determinados e precisos efeitos
jurídicos. Os próprios efeitos derivados de normas supletivas resultariam da tácita vontade das
partes.
Ora, este ponto de vista não fornece o correto diagnóstico ou o correto critério para a
determinação da relação que intercede no negócio jurídico entre a vontade dos seus autores e
os efeitos jurídicos respetivos. Aliás, a ser esta doutrina correta, só os juristas completamente
informados sobre o ordenamento poderiam celebrar negócios jurídicos. No entanto, o que
sucede é que as partes dos vários negócios não têm uma representação completa e exata de
todos os efeitos que o ordenamento jurídico atribui às suas declarações de vontade.
Por outro lado, se é certo que algumas normas supletivas consagram cláusulas usuais
ou de estilo do comércio jurídico, não é menos verdade que elas só deixam de se aplicar,
quando uma vontade vontade real contrária foi manifestada, não bastando provar-se que as
partes não pensaram no ponto ou até provavelmente não teriam querido aquele regime.
Correspondem algumas à vontade normal das partes, mas não à vontade real tácita – outras
traduzem um critério de justiça do legislador que este não considera com suficiente acuidade
para ser afirmado imperativamente, mas faz valer, aproveitando-se do silêncio das partes.
II. Teoria dos efeitos práticos;
Para esta doutrina, a teoria dos efeitos jurídicos não é realista. As partes manifestam
apenas uma vontade de efeitos práticos ou empíricos, normalmente económicos ou sociais,
sem caráter ilícito. A estes efeitos práticos ou empíricos manifestados, faria a lei corresponder
efeitos jurídicos concordantes.
Também esta conceção é inaceitável. Tal como define o negócio jurídico, este não se
distingue dos compromissos ou convenções celebrados sob o império de outros ordenamentos
normativos.
III. Teoria dos efeitos prático-jurídicos12.
Os autores dos negócios jurídicos visam certos resultados práticos ou materiais e
querem realizá-los por via jurídica. Têm, pois, também uma vontade de efeitos jurídicos. A
vontade dirigida a efeitos práticos não é a única nem é a decisiva – decisiva para existir um
negócio é a vontade de os efeitos práticos queridos serem juridicamente vinculativos, a vontade
de se gerarem efeitos jurídicos, nomeadamente, deveres jurídicos, correspondentes aos efeitos

12 Esta teoria, bastando-se com a volição dos efeitos jurídicos na sua consideração prática, com uma mera
representação de profanos, foi defendida por MANUEL DE ANDRADE e ORLANDO DE CARVALHO.

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práticos. Há uma intenção dirigida a um determinado efeito económico juridicamente


garantidos.
Simplesmente, não se trata de uma representação completa dos efeitos jurídicos
correspondentes àquela vontade de efeitos práticos – esses efeitos jurídicos completos serão
determinados pela lei.
Basta, portanto, uma representação global prática – de profanos – dos efeitos jurídicos
imediatos e fundamentais do negócio.
Por falta de intenção de efeitos jurídicos nestes termos, distinguem-se os negócios
jurídicos dos chamados negócios de pura obsequiosidade. Estes são promessas ou
combinações da vida social, às quais é estranho o intuito de criar, modificar ou extinguir um
vínculo jurídico.
No mesmo sentido, a falta de vontade de efeitos jurídicos distingue, igualmente, os
negócios jurídicos dos chamados meros acordos ou agreements, ou ainda “gentlemen’s
agreements”. Estas convenções são combinações sobre matéria que é normalmente objeto de
negócios jurídicos, mas que, excecionalmente, estão desprovidas de intenção de efeitos
jurídicos. É o caso do empréstimo de honra ou de uma disposição de bens para depois da
morte, em que o disponente confia pura e simplesmente na honorabilidade dos herdeiros a
quem cumpre executar a disposição.
Por fim, note-se que pode surgir a dúvida sobre se numa dada hipótese existe um
negócio de pura obsequiosidade ou um negócio jurídico – ou antes sobre se existe um mero
gentlemen’s agreement ou um negócio jurídico. Se a dúvida for do primeiro tipo, é a parte
interessada em demonstrar a existência do negócio jurídico que tem o ónus da prova respetivo.
Se a dúvida é do segundo tipo, é a parte interessada em demonstrar a inexistência da intenção
negocial que tem o onus probandi.

3. Elementos dos negócios jurídicos.

Corre uma tradicional classificação tripartida dos elementos dos negócios jurídicos. É a tripartição
em elementos essenciais (essentialia negotii), elementos naturais (naturalia negotii) e elementos
acidentais (accidentalia negotii).

I. Elementos essenciais;
Rigorosamente, elementos do negócio deveriam ser as realidades sem as quais o
negócio não chegaria sequer a ter existência material – não chegaria sequer a constituir-se.
Nesta perspetiva, elementos do negócio seriam a declaração, os sujeitos e o conteúdo.
Porém, sendo o negócio jurídico um ato que só desempenha a sua função na medida
em que for válido, não vemos razão para afastar a sistematização tradicional que considera
elementos essenciais de todo e qualquer negócio jurídico os requisitos ou condições gerais de

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validade de qualquer negócio. São eles a capacidade das partes (e a legitimidade, quando a
sua falta implique a invalidade e não apenas a ineficácia), a declaração de vontade sem
anomalias e a idoneidade do objeto.
Pode, igualmente, falar-se de elementos essenciais no sentido de elementos
essenciais de cada negócio típico/nominado. Trata-se, agora, das cláusulas que
contradistinguem um certo tipo negocial dos restantes tipos. São as características próprias de
cada modalidade negocial, que a separam dos tipos vizinhos.
II. Elementos naturais;
São os efeitos negociais derivados de disposições legais supletivas. Não é necessário
que as partes configurem qualquer cláusula para a produção destes efeitos, podendo, todavia,
ser excluídos por estipulação adrede formulada.
Sabemos, já, que na disciplina dos vários negócios de tipo obrigacional abunda o ius
dispositivum (v.g.: artigos 964.º, 885.º e 1030.º), enquanto que os negócios familiares pessoais
contêm na sua regulamentação quase somente ius cogens.
III. Elementos acidentais;
São as cláusulas acessórias dos negócios jurídicos. Trata-se das estipulações que não
caracterizam o tipo negocial em abstrato, mas se tornam imprescindíveis para que o negócio
concreto produza os efeitos a que elas tendem.

4. Classificações dos negócios jurídicos.

4.1. Negócios jurídicos unilaterais e negócios jurídicos bilaterais ou contratos.


O Código Civil contém uma regulamentação geral do negócio jurídico, abrangendo assim as duas
modalidades: negócios jurídicos unilaterais e contratos. O critério classificativo é o do número e modo
de disposição das declarações integrantes do negócio.

4.1.1. Negócios jurídicos unilaterais.


Nos negócios unilaterais, existe uma só declaração de vontade ou várias declarações, mas paralelas,
formando um só grupo. Se olharmos nos autores das declarações, constataremos haver um só lado,
uma só parte. É o caso do testamentos, da renúncia à prescrição, da procuração. Por conseguinte, os
negócios unilaterais: ou só afetam diretamente uma pessoa que os pratica (abandono de um
automóvel); ou afetam outra pessoa, mas atribuindo-lhe uma faculdade ou uma posição favorável
(procuração, testamento, repúdio da herança); ou, se afetam outrem desfavoravelmente, pressupõem
um poder especial conferido por um contrato ou pela lei (declarações de resolução, revogação, escolha
da prestação numa obrigação alternativa).
Neste sentido, acerca destes negócios, importa acentuar que: é desnecessária a anuência do
adversário, isto é, a eficácia do negócio unilateral não carece da concordância de outrem; vigora, neste

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domínio, o princípio da tipicidade ou numerus clausus (art. 457.º); e, por fim, importa distinguir entre
negócios unilaterais receptícios (ou recipiendos) e negócios unilaterais não receptícios 13 – nos
primeiros, a declaração só é eficaz, se for e quando for dirigida e levada ao conhecimento de certa
pessoa, enquanto nos segundos basta a emissão da declaração, sem ser necessário comunicá-la a
quem quer que seja.
São exemplos de negócios jurídicos unilaterais: testamento; renúncia a certos direitos (servidão, hipoteca,
consignação de rendimentos, prescrição), mas não a remissão de créditos; promessa de cumprimento e reconhecimento de
dívida; promessa pública; confirmação dos negócios anuláveis; ratificação dos negócios ineficazes; revogação do mandato;
revogação dum contrato a favor de terceiro, enquanto o terceiro não manifestar a sua adesão ou enquanto o promissário for
vivo; declaração de nomeação no contrato para pessoa a nomear; denúncia do arrendamento; ato de instituição das
fundações; aceitação ou repúdio da herança.
Não são receptícios: o testamento, o ato de instituição das fundações, a promessa pública, a aceitação e o repúdio
da herança.
Quanto às renúncias a direitos reais limitados ou à prescrição e confirmação, porém, é discutida a sua natureza
receptícia ou não receptícia; quanto à confirmação, uma corrente doutrinal italiana (BARBERO, FERRARA) qualifica-a como
negócio receptício, mas MANUEL DE ANDRADE deixava o problema em dúvida. Parece que a melhor solução é a que entende
estarmos, nos dois casos, perante negócios não receptícios. Com efeito, desde logo, as renúncias unilaterais só reflexamente
produzem efeitos na esfera de terceiros. Mas, sobretudo, parece decisiva a ideia de que não se deve deixar influenciar a
solução de uma declaração negocial unilateral pela circunstância de ser, obviamente, necessário o conhecimento da
declaração, para o destinatários dos seus efeitos a poder invocar. O problema põe-se justamente para as hipóteses em que,
não sendo comunicada a declaração negocial ao beneficiário dos seus efeitos, este vem a ter conhecimento dela.
Ora, dado que não há qualquer interesse que legitime a exigência da comunicação, parece que ambos os tipos
negociais – renúncia e conformação – devem ser qualificados como negócios unilaterais não receptícios.

4.1.2. Negócios jurídicos bilaterais.


(contratos)

Nos contratos ou negócios bilaterais há duas ou mais declarações de vontade, de conteúdo oposto,
mas convergente, ajustando-se na sua comum pretensão de produzir um resultado jurídico unitário,
embora com um significado para cada parte. Assim, há a oferta ou proposta e a aceitação, que se
conciliam num consenso.
Assim, note-se que não são integrados por dois negócios unilaterais; antes, cada uma das declarações
(proposta e aceitação) é emitida em vista do acordo.
Ora, uma importante distinção é a que se faz entre contratos unilaterais e contratos bilaterais (ou
sinalagmáticos): aqueles geram obrigações apenas para uma das partes (doação e o mútuo, se se
entender que só existe depois da entrega da quantia mutuada); estes geram obrigações para ambas
as partes, obrigações ligadas entre si por um nexo de causalidade ou correspetividade (compra e
venda, locação).

13 Como resulta da respetiva noção, esta distinção pode ser reportada também à própria declaração negocial, em
si mesma.

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Com efeito, a importância desta distinção reflete-se na exceção de não cumprimento do contrato (art.
428.º) que é privativa dos contratos bilaterais; mas não já a faculdade de resolução com fundamento
em inadimplemento ou mora – esta, existindo nos contratos bilaterais (é a tradicionalmente chamada
“condição resolutiva tácita”, prevista em geral no art. 801.º/2 e resultando ex art. 808.º), pode ter lugar
também em alguns contratos unilaterais (art.

1140.º - resolução do comodato; art. 1150.º - mútuo oneroso).


Os autores referem também a categoria dos contratos bilaterais imperfeitos. Nestes, há inicialmente
apenas obrigações para uma das partes, surgindo eventualmente mais tarde obrigações para a outra
parte, em virtude do cumprimento das primeiras e em dados termos. Não tem lugar nos contratos
bilaterais imperfeitos a condição resolutiva tácita, nem a exceção de não cumprimento do contrato.
Exemplos: mandato (arts. 1157.º, 1158.º, 1161.º, 1167.º); depósito (arts. 1185.º, 1186.º, 1187.º; 1196.º,
1199.º).
O mandatário e o depositário não beneficiam da condição resolutiva tácita, nem a lei lhes dá qualquer
faculdade de resolução, pelo facto de não serem reembolsados das despesas feitas; também não
podem invocar a exceção de não cumprimento do contrato.
Claro que nos referimos ao mandato e ao depósito gratuitos14.

4.2. Negócios entre vivos e negócios mortis causa.


Os primeiros destinam-se a produzir efeitos em vida das partes; os segundos destinam-se a só produzir
efeitos depois da morte da respetiva parte ou de alguma delas.
À primeira categoria pertencem quase todos os negócios jurídicos e na sua disciplina tem grande
importância, por força dos interesses gerais do comércio jurídico, a tutela das expetativas da parte que
se encontra em face da declaração negocial. Os negócios da segunda categoria são negócios fora do
comércio jurídico, no sentido de que, na sua regulamentação os interesses do declarante devem
prevalecer sobre o interesse na proteção da confiança do destinatário dos efeitos respetivos.
Assim, negócio mortis causa é inequivocamente o testamento: é um ato livremente revogável pelo
testador (art. 2179.º), não sendo sequer renunciável a faculdade de revogação (art. 2311.º); a
transferência dos bens hereditários a favor dos herdeiros e legatários só se opera após a morte do
testador (arts. 2031.º e 2179.º); os herdeiros ou legatários não podem, em vida do testador, renunciar
à sucessão ou dispor dela (art. 2028.º/1/2).
A questão: haverá outros negócios mortis causa no nosso direito, no regime do atual Código Civil?

14 A exceção de não cumprimento do contrato (exceptio non adimpleti contractus) consta do artigo 428.º e é a
aplicação do velho brocardo inadimplenti non est adimplentum. O mandatário e o depositário, não podendo deduzir
a exceção de não cumprimento do contrato, podem, todavia, invocar, verificados os pressupostos respetivos, o
direito de retenção (art. 754.º). O direito de retenção pode, porém, diversamente da exceptio non adimpleti
contractus, ser excluído se a outra parte prestar caução suficiente.

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A lei atual proíbe em princípio os pactos ou contratos sucessórios, sob pena de nulidade, apenas os
admitindo em alguns casos particulares (art. 2028.º). Com efeito, se estes negócios fossem admitidos,
não poderiam considerar-se negócios mortis causa puros, pois o seu caráter contratual forçosamente
exigiria a sua irrevogabilidade e, portanto, produziriam logo inter vivos efeitos vinculativos.
Quanto às doações por morte, a lei, proibindo-as (art. 946.º), estabelece, contudo, que serão havidas
como disposições testamentárias (portanto, serão livremente revogáveis), se tiverem sido observadas
as formalidades dos testamentos (art. 946.º/2). Tais doações não têm, assim, autonomia em relação
aos testamentos, salvo o aspeto formal de intervir nelas uma aceitação, e são, portanto, negócios mortis
causa.
No entanto, note-se que regra de proibição dos pactos sucessórios comporta exceções, pelo que o
Código considera lícitas certas disposições por morte feitas em convenção antenupcial. Ora, tais
convenções podem ser fundamentalmente de dois tipos. Em primeiro lugar, a instituição contratual de
herdeiro ou legatário em favor de qualquer dos esposados, feita pelo outro esposado ou por terceiro
(art. 1700.º/1-a)). As disposições a favor dos esposados, feitas por terceiro ou pelo outro esposado,
são, sob o ponto de vista da presente classificação, negócios híbridos ou mistos. Têm características
de negócio mortis causa, pois só se verifica a transferência dos bens para o instituído depois da morte
do disponente; por outro lado, porém, restringem ao disponente os seus poderes de disposição, pois
este não pode revogá-los unilateralmente depois da aceitação, nem prejudicar o beneficiário por atos
gratuitos de disposição (art. 1701.º), o que constitui um efeito inter vivos do ato.
Em segundo lugar, a instituição contratual de herdeiro ou legatário em favor de terceiros, feita por
qualquer dos esposados (art. 1700.º/1-b)). Quanto às disposições dos esposados a favor de terceiros:
serão livremente revogáveis como as disposições testamentárias, isto é, revestirão a natureza de
negócios mortis causa? Importa distinguir duas hipóteses. Se o terceiro não interveio no ato como
aceitante, prescreve-se que a disposição tem valor meramente testamentário (art. 1704.º), sendo,
portanto, dada a sua revogabilidade, um negócio mortis causa. Se o terceiro interveio na convenção
antenupcial como aceitante, a disposição não é livremente revogável, estando sujeita ao regime das
disposições entre esposados (art. 1705.º), pelo que se trata de um negócio híbrido.
Por fim, note-se que o CC faz ainda uma referência expressa às doações por morte para casamento,
que são doações feitas em vista de um casamento a um dos esposados pelo outro ou por terceiro (art.
1755.º/2). Trata-se de uma manifestação particular dos pactos sucessórios previstos no artigo 1700.º/1-
a). Em conformidade com esta sua natureza, estabelece-se que estão sujeitas ao regime desses
pactos, em particular no que toca às restrições impostas à livre disposição dos seus bens pelo doador,
e exige-se, igualmente, que sejam feitas na convenção antenupcial. Tratar-se-á, portanto, igualmente
de negócios híbridos – que, aliás, comportam uma exceção à regra do artigo 2181.º.
Em suma, podemos dizer que: o testamento é um negócio mortis causa; as doações por morte, sendo,
em princípio nulas, como, em regra, quaisquer outros pactos sucessórios, são objeto de uma conversão
legal em disposições testamentárias; certos pactos sucessórios, contidos em convenções antenupciais,
são válidos – quanto a esses: as disposições a favor de um dos esposados, feitas pelo outro ou por

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terceiro, são negócios híbridos; as disposições a favor de terceiro feitas pelos esposados são negócios
mortis causa, se o terceiro não interveio na convenção antenupcial e negócios híbridos se ele outorgou
nesse ato.

4.3. Negócios consensuais ou não solenes e negócios formais ou solenes.


Os negócios formais ou solenes são aqueles para os quais a lei prescreve a necessidade da
observância de determinada forma, o acatamento de determinado formalismo ou de determinadas
solenidades. Os negócios não solenes são os que podem ser celebrados por quaisquer meios
declarativo aptos a exteriorizar a vontade negocial, porque a lei não impõe uma determinada roupagem
exterior para o negócio.
Quando o negócio é formal, as partes não o podem realizar por todo e qualquer comportamento
declarativo; a declaração negocial deve realizar-se através de certo tipo de comportamento declarativo
imposto pela lei. Não é costume considerar-se a restrição, por vezes imposta pela lei, traduzida na
exigência de uma declaração expressa e não apenas tácita, como bastante para se falar de um negócio
formar.
Hodiernamente, o formalismo exigido é apenas para certos negócios jurídicos, é uniforme, traduzindo-
se praticamente na exigência de documento escrito 15 e está simplificado, relativamente aos direitos
antigos.
Assim, note-se que o princípio geral do CC de 1966 em matéria de formalismo negocial é: princípio da
liberdade declarativa, liberdade de forma ou consensualidade (art. 219.º). Quando, nos casos
excecionais em que a lei prescrever uma certa forma, estão não for observada, a declaração negocial
é nula (art. 220.º).
Exemplos de negócios para os quais a lei exige

• Constituição de associações (art. 168.º);

• Instituição de fundações por ato entre vivos (art. 185.º/3);

• Contratos de sociedade;
Testamento, salvo algumas formas especiais (art. 2204.º e ss.);

Compra e venda de imóveis (art. 875.º) – salvo se for compra e venda com mútuo (com ou

sem hipoteca) de prédio urbano para habitação ou de fração autónoma para o mesmo fiz,
e desde que o mutuante seja uma instituição de crédito autorizada conceder crédito à
Documento autêntico habitação;
(arts. 363.º/2 e
369.º e ss.)
• Doação de imóveis (art. 947.º);

• Outros atos de reconhecimento, constituição, modificação, divisão ou extinção dos direitos


de propriedade, usufruto, uso e habitação, superfície ou servidão, bem como de outros
direitos reais sobre coisas imóveis;

15 Nota bene: para o casamento exigem, quer o ordenamento canónico, quer a lei civil, uma cerimónia: a cerimónia
da celebração.

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• Contrato-promessa e pacto de preferência com eficácia real, desde que se exija escritura
pública para o contrato prometido (art. 413.º/2 e 421.º);

• Mútuo de valor superior a 25 000 € (art.1143.º).

• Doação de móveis não acompanhada de tradição da coisa (art. 947.º/2 in fine);

• Mútuo de valor superior a 2500 € e igual ou inferior a 25 000 € (art. 1143.º);

• Em certos casos, contrato-promessa e pacto de preferência (arts. 410.º/2 e


415.º);

• Renda vitalícia, se a coisa ou o direito alienado não exceder 25 000 € (art. 1239.º);
Transação, em certos casos (art. 1250.º);

Arrendamento urbano e trespasse;

Locação financeira;

Documento Constituição do estabelecimento individual de responsabilidade limitada e sociedades
• unipessoais por quotas, salo se implicarem a transmissão de bens que exija escritura
particular pública;
(arts. 363.º/3 e
373.º e ss.)
• Contratos de crédito ao consumo;

• Contratos celebrados com consumidores ao domicílio e equiparados.

Por fim, note-se, ainda, que a renúncia a certos direitos, como o de preferência, não é um
negócio formal e o mesmo se passa com a remissão de créditos.

4.4. Negócios consensuais e negócios reais.


Os negócios reais são aqueles negócios em que se exige, além das declarações de vontade das
partes, formalizadas ou não, a prática anterior ou simultânea de um certo ato material. Em face do atual
CC, o depósito, comodato, mútuo e penhor continuam a ser configurados como contratos reais, pois na
sua definição não se fez referência a qualquer obrigação do depositante, mutuante, etc., de entrega do
objeto, antes de considera o ato material de entrega como elemento da estrutura do negócio (arts.
1185.º, 1129.º e 1142.º). Ora, esta figura dos contratos reais é um resquício da tradição romanista que
parece não desempenhar hoje uma qualquer função útil. Porque é que o mútuo não se pode considerar
perfeito com o simples acordo das partes, revestido d forma devida quando exigível? Qual o interesse
que se opõe ao reconhecimento do direito do mutuário ou do comodatário de, após o acordo, exigirem
a entrega do objeto para dele se servirem e, posteriormente, o restituírem?
Dada a impossibilidade de resposta satisfatória a estas dúvidas (salvo, para o caso do penhor), a
doutrina tem entendido entre nós que um contrato de mútuo, nulo por falta de entrega da coisa, pode
ser convertido num contrato-promessa de mútuo16 (pactum de mutuando). Hoje, dado que o artigo 830.º

16 Mais longe, ia VAZ SERRA para quem tal conversão não seria necessária, admitindo-se, em nome do princípio da
liberdade negocial, um contrato consensual de mútuo, como negócio atípico.

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do CC consagra o princípio da execução específica dos contratos-promessa, substituindo por uma


atuação judicial o comportamento do faltoso, poderia o promitente-mutuário obter a entrega da coisa.
No entanto, parece que nem sequer a referida conversão é necessária. Assim, se não se provar que
as partes quiseram o contrato como real, este deve ter-se por perfeito logo com o acordo das partes.
Se se provar que as partes quiseram o contrato como real, então, poderá haver uma conversão em
contrato-promessa, mas este não será suscetível de execução específica.

4.5. Negócios obrigacionais, reais, familiares e sucessórios.


O critério desta classificação diz respeito à natureza da relação jurídica constituída, modificada ou
extinta pelo negócio.
A sua importância resulta da diversa extensão reconhecida à liberdade contratual (art.
405.º) em cada uma das categorias. Vejamos:
I. Negócios obrigacionais;
No domínio dos negócios obrigacionais, vigora o princípio da liberdade contratual,
quase inconfinadamente, quanto aos contratos, abrangendo a liberdade de fixação do
conteúdo dos contratos típicos, de celebração de contratos diferentes dos previstos na lei e de
inclusão de quaisquer cláusulas; quanto aos negócios unilaterais, vigora, porém, o princípio da
tipicidade.
II. Negócios reais;
Quanto aos negócios reais, fala-se deles nesta classificação no sentido de negócios
com eficácia real, isto é, são negócios reais quanto aos efeitos (quoad effectum; diversamente,
na dicotomia negócios consensuais/negócios reais, estes últimos são-no quanto à sua
constituição – quoad constitutionem). Nos negócios reais quanto aos efeitos o princípio da
liberdade contratual sofre considerável limitação, derivada do princípio da tipicidade (art.
1306.º). Assim, só podem constituir-se direitos reais típicos, embora essa constituição possa
resultar de um negócio inominado ou atípico.
III. Negócios familiares;
Relativamente aos negócios familiares pessoais, a liberdade contratual está
praticamente excluída, podendo apenas os interessados celebrar ou deixar de celebrar o
negócio, mas não podendo fixar-lhe livremente o conteúdo, nem podendo celebrar contratos
diferentes dos previstos na lei.
No tocante aos negócios familiares patrimoniais (convenções antenupciais), existe,
com alguma largueza, liberdade de convenção (art. 1698.º), sofrendo embora restrições (arts.
1699.º e 1714.º).
IV. Negócios sucessórios.
Quanto aos negócios sucessórios, este princípio sobre importantes restrições, algumas
resultantes de normas imperativas do direito das sucessões.

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4.6. Negócios patrimoniais e negócios pessoais.


O critério distintivo é o da natureza da relação jurídica a que o negócio se refere. A importância da
distinção revela-se, também, quanto à amplitude do princípio da liberdade contratual. Para além deste
aspeto, porém, manifesta-se ainda quanto a outro ponto. Os negócios pessoais são negócios fora do
comércio jurídico, isto é, cuja disciplina, quanto a problemas como o da interpretação do negócio jurídico
e o da falta ou dos vícios da vontade, não tem que atender às expetativas dos declaratários e aos
interesses gerais da contratação – do tráfico jurídico -, mas apenas à vontade real, psicológica do
declarante. Esta prevalência da vontade real sobre a sua manifestação exterior exprime-se, por vezes,
quanto aos negócios pessoais, em textos especiais que se afastam da doutrina geral dos negócios
jurídicos; na ausência de textos diretos é um princípio, inferido da natureza dos interesses em jogo, que
se impõe ao intérprete.
Na disciplina dos negócios patrimoniais (dos negócios do comércio jurídico 17), por exigência de tutela
da confiança do declaratário e dos interesses do tráfico, a vontade manifestada ou declarada triunfa
sobre a vontade real (excetuando-se, porém, o testamento), assim se reconhecendo o “valor social da
aparência” (na expressão de EMÍLIO BETTI).

4.7. Negócios causais e negócios abstratos.


O critério desta classificação é o da relevância, para os efeitos do negócio, da sua função económica
ou social típica ou da relação jurídica que constituiu a sua causa. Os negócios em que estas não
relevam, por poderem preencher uma multiplicidade de funções e os efeitos do negócio serem
separados da sua causa, designam-se como negócios abstratos (negócios cambiários, como o saque
de um cheque). Na generalidade dos negócios jurídicos, porém, o direito não isola o seu conteúdo da
respetiva causa – são negócios causais 18.

4.8. Negócios onerosos e negócios gratuitos.


Antes de mais, a importância da distinção manifesta-se em matéria de: impugnação pauliana; proteção
do terceiro adquirente de boa fé a non domino, por força da declaração de nulidade ou anulação de um
negócio; de poderes de disposição do doador no caso dos pactos sucessórios contidos em convenção
antenupcial; de responsabilidade do cônjuge administrador dos bens comuns; de resolução dos atos
em benefício da massa insolvente.

17 A distinção entre os negócios fora do comércio jurídico, como serão, genericamente, os negócios pessoais e os
negócios mortis causa, e os negócios do comércio jurídico baseia-se no facto de o tráfico jurídico se processar
fundamentalmente através destes últimos, pelo que merece consideração o interesse da respetiva segurança, e
não é admissível um critério menos objetivado na resolução de questões como a da interpretação e das faltas e
vícios da vontade.
18 Para um caso em que se presume, até prova em contrário, a existência de causa, o artigo 458.º.

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Como ideia geral, pode reter-se a constatação de, nas doações, se valorizarem os interesses
de terceiros e os do doador em maior medida do que os do donatário, quanto aos problemas em que
está em causa a subsistência da doação.
A distinção dos negócios jurídicos em onerosos e gratuitos tem como critério o conteúdo e finalidade
do negócio nos termos que a seguir se evidenciam.
Os negócios onerosos pressupõem atribuições patrimoniais de ambas as partes, existindo, segundo a
perspetiva destas, um nexo ou relação de correspetividade entre as referidas atribuições patrimoniais
(normalmente traduzidas em prestações)19. No entanto, note-se que não é necessário um equilíbrio ou
equivalência das prestações ou atribuições patrimoniais, consideradas pelo seu valor objetivo normal:
o que releva é a avaliação das partes ou, mais que a avaliação, a vontade, o intento das partes. Com
efeito, uma parte pode bem saber que o que dá vale muito mais ou muito menos que o que recebe,
mas não pretende fazer ou receber uma liberalidade – a falta de equivalência objetiva ou usual das
atribuições patrimoniais pode ter várias explicações, por exemplo, o especial valor subjetivo da
prestação para uma das partes. De qualquer modo, as partes estão de acordo em considerar as duas
atribuições patrimoniais como correspetivo da outra. Neste sentido, pode dizer-se que, no negócio
oneroso, as partes estão de acordo em que a vantagem que cada uma visa obter é contrabalançada
por um sacrifício que está numa relação de estrita causalidade com aquela vantagem. As partes
consideram as duas prestações ligadas reciprocamente pelo vínculo da causalidade jurídica.
Por outro lado, os negócios gratuitos caracterizam-se pela intervenção de uma intenção liberal (animus
donandi, animus beneficiandi). Uma parte tem a intenção, devidade manifestada, de efetuar uma
atribuição patrimonial a favor da outra, sem contrapartida ou correspetivo. A outra parte procede com
a consciência e a vontade de receber essa vantagem sem um sacrifício correspondente. Com efeito,
nos negócios gratuitos cria-se – e há acordo das partes sobre este ponto – uma vantagem patrimonial
para um dos sujeitos sem nenhum equivalente. O ato é a título gratuito quando for realizado com uma
particular intenção ou causa que é a de proporcionar uma vantagem à outra parte.
Ora, conhecemos casos típicos de negócios onerosos, como seja o arrendamento, e casos típicos de
negócios gratuitos, como o depósito ou o mandato. Porém, por vezes, as partes celebram um contrato
misto, recorrendo a um tipo de negócio oneroso, mas fixando o seu conteúdo com intenção liberal – é
o negotium mixtum cum donatione, em que as partes obtém, por exemplo, através de uma compra e
venda por um preço baixo e intenção de liberalidade, resultados idênticos aos visados com uma doação.
Além do mais, ao lado dos negócios gratuitos ou onerosos típicos, existem certas figuras negociais que
são um esquema negocial genérico, suscetível de revestir várias formas concreta e,
consequentemente, apresentar-se como onerosos ou gratuitos, como a cessão de créditos ou a
assunção de dívida.

19 Mas não necessariamente: a atribuição patrimonial pode traduzir-se na produção de um efeito jurídico, como por
exemplo, a transferência ou constituição de um direito real, que não implique um ato material ou prestação.

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Por fim, note-se que é possível a existência de contratos unilaterais onerosos (art. 1145.º). A questão:
como se explica esta não coincidência entre os contratos onerosos e os contratos bilaterais? É que,
nos contratos unilaterais onerosos, a correspetividade estabelecese não entre duas obrigações – só há
obrigações para um dos lados, visto que são contratos reais –, mas entre duas atribuições patrimoniais
que consistem numa prestação contemporânea da formação do negócio (a entrega de uma soma em
dinheiro para ser utilizada) e numa obrigação (a de restituir o capital e pagar os juros). No Código de
Seabra, designava-se este contrato como contrato de usura. Ora, o atual Código designa o mútuo para
cuja retribuição foram convencionados juros por mútuo oneroso (art. 1145.º), reservando as
designações de usura e de negócio usurário para os negócios jurídicos em que alguém, aproveitando
conscientemente a situação de necessidade, inexperiência, ligeireza, dependência, estado mental ou
fraqueza de caráter de outrem, obteve deste a promessa de concessão de benefícios excessivos ou
injustificados (arts. 282.º, 283.º e 284.º). Quanto ao mútuo, há uma disposição especial qualificando-o
de usurário, se forem estipulados juros anuais que excedam os juros legais de 3 ou 5 por cento,
conforme exista ou não garantia real (art. 1146.º).

4.8.1. Contratos comutativos e contratos aleatórios.


Trata-se de uma subdivisão a estabelecer dentro dos contratos onerosos. Nos contratos aleatórios, as
partes submetem-se a uma álea, a uma possibilidade de ganhar ou perder. A onerosidade consiste na
circunstância de ambas estarem sujeitas ao risco de perder, embora, no final de contas, só uma venha
a ganhar – no sentido de que uma veio a receber muito mais do que pagou ou não veio a pagar mesmo
nada.
Neste sentido, pode haver uma só prestação, dependendo de um facto incerto a determinação de
quem a realizará (aposta), pode haver uma prestação certa e outra incerta, de maior montante do que
aquele (seguro de responsabilidade civil), pode haver duas prestações certas na sua existência, sendo
uma delas incerta quanto ao seu quantum (seguro de vida). Assim, são exemplos de contratos
aleatórios: jogo, aposta (art. 1245.º); seguro; renda vitalícia (art. 1238.º); risco; venda de coisa futura
com caráter aleatório, ou emptio spei (art. 880.º/2); venda de bens de existência ou de titularidade
incerta (art. 881.º).

4.8.1.1. Contratos de jogo e de aposta.


Quanto aos contratos de jogo e de aposta, encontram-se critérios de distinção diversos entre eles: a
natureza do acontecimento a que as partes subordinam o cumprimento da prestação (jogo a cuja prática
de entregam os participantes ou assunto ou facto, passado, presente ou futuro, sobre o qual existe
divergência de opiniões; os motivos, escopo, ou fim prosseguido pelos contraentes (de diversão ou
lucro, por um lado, ou de esclarecer ou robustecer uma opinião, por outro); o tipo de incerteza sobre o
facto ou assunto em causa, incerteza, essa, que poderia ser objetiva (no jogo) ou apenas subjetiva (na
aposta); a participação (jogo) ou falta de participação (aposta) das partes na questão em disputa,

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Davide Rodrigues 2016/2017 Primeira Turma

dependendo o resultado (o ganho ou perda) dessa participação; e a própria relevância jurídica do


contrato, que só existiria para a aposta.
Neste sentido, note-se que o critério mais idóneo para a distinção entre o jogo e a aposta é o que
aponta para a existência ou não de participação das partes no acontecimento de que depende o prémio,
entendendo-se esta exigência, não no sentido de ter de existir certa atividade a cumprir por todos os
jogadores, mas antes, e apenas, no sentido de que são os próprios contratantes que, entregando-se a
um jogo, participam na criação dos pressupostos, das condições de que depende a verificação do facto
a que está subordinada a prestação acordada. No jogo, são as próprias partes quem, entrando em
campo ou sentando-se a uma mesa, criam a possibilidade de um ganho ou de uma perda, dependendo
o início e/ou o desenrolar do jogo, da intervenção de todos ou apenas de um jogador,
independentemente de o resultado final não depender da habilidade, mas fundamentalmente, ou tão
só, do fator sorte.
Por fim, os contratos de jogo e de aposta não são contratos válidos nem constituem fonte de obrigações
civis; porém, quando lícitos, são fonte de obrigações naturais.

4.8.2. Negócios parciários.


São uma subespécie dos negócios onerosos. Caracterizam-se pelo facto de uma pessoa prometer
certa prestação em troca de uma qualquer participação nos proventos que a contraparte obtenha por
força daquela prestação.
Assim, são exemplos: a parceria pecuária (art. 1121.º); certas formas de sociedade; o contrato de
consignação, nos termos do qual uma das partes remete à outra tantas unidades de certa mercadoria,
para que as venda, com o direito a uma participação nos lucros e a obrigação de restituir as unidades
não vendidas.

4.9. Negócios de mera administração e negócios de disposição.


A utilidade da distinção revela-se na restrição, por força de lei ou de sentença, dos poderes de gestão
patrimonial dos administradores de bens alheios, ou de bens próprios e alheios, ou até nalguns casos
(inabilitações), de bens próprios, aos atos de mera administração ou de ordinária administração.
Neste sentido, por vezes, a lei qualifica, ela própria, certos negócios jurídicos como atos de
administração ordinária ou de disposição (art. 1024.º). Por outro lado, o CC não se limita sempre a
restringir os poderes dos administradores de bens alheios aos atos de administração e a impedi-los de
praticar atos de disposição, sem qualquer concretização; antes, seguiu muitas vezes o sistema de fazer
uma enumeração de atos que são permitidos ou vedados ao referido administrador (arts. 1889.º, 1937.º,
1938.º).
Ora, quando a lei restringe os poderes de certas pessoas aos atos de ordinária administração, sem
mais especificações, necessário se torna conhecer o respetivo conceito. Desde já, notar que a distinção
não assenta na natureza jurídica dos atos, mas nos riscos ou na importância patrimonial dos mesmos.
Com efeito, para determinar o sentido e a extensão do conceito de atos de mera administração importa

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ter presente a razão de ser dos preceitos legais que, em várias sedes, limitam os poderes de atuação
jurídica de certas pessoas à mera administração. Quando a lei não esclarece, através de uma definição
ou enumeração, quis os tipos de atos que integram uma dada categoria, é uma consideração
teleológica (de conformidade com o fim legal) que nos deve guiar.
Na hipótese de limitar poderes de administradores de bens alheios, a lei atendeu a uma realidade que
a experiência ensina: a falta de interesse pessoal do administrador pode induzi-lo – ou não o dissuadir
– a correr, na administração dos bens alheios, riscos que não correria se os bens fossem próprios; o
administrador dos bens de outrem estará mais propenso a sujeitar o património administrado a
aventuras arriscadas, se a lei lho permitir. Além do mais, acresce a consideração de que certos atos,
porque implicam perda ou uma modificação profunda de certos bens de uma pessoa, não devem ser
decididos senão por ela própria, uma vez que podem interferir com interesses de ordem afetiva ou
moral.
Já na hipótese de restrição dos poderes de uma pessoa sobre o próprio património, a lei considera que
certas deficiências mentais, físicas ou de caráter implicam com altíssima probabilidade de a pessoa em
causa, por insuficiente lucidez, experiência ou autodomínio, concluir, em casos que envolvam maiores
riscos, negócios altamente prejudiciais aos seus próprios interesses.
Ora, a consideração, em ambos os casos, onde a lei opera com a dicotomia administração/disposição,
da ratio legis conduz à conclusão de os atos de mera administração ou de ordinária administração
serem os correspondentes a uma gestão comedida e limitada, donde estão afastados os atos
arriscados, suscetíveis de proporcionar grandes lucros, mas também causa prejuízos elevados. São os
atos correspondentes a uma atuação prudente, dirigida a manter o património e a aproveitar as suas
virtualidades normais de desenvolvimento, mas alheia à tentação dos grandes voos, que comportam
risco de grandes quedas. Ao invés, atos de disposição são os que, dizendo respeito à gestão do
património administrado, afetam a sua substância, alteram a forma ou a composição do capital
administrado, atingem o fundo, a raiz, o casco dos bens. São atos que ultrapassam aqueles parâmetros
de atuação correspondente a uma gestão de prudência e comedimento, sem riscos.
Concretizando, acompanhamos MANUEL DE ANDRADE...
É doutrina pacífica que entra na mera administração tudo quanto diga respeito a: prover à conservação dos bens do administrado;
promover a sua frutificação normal. Por outro lado, é também seguro que não pertencem à mera administração – sendo atos de
disposição – os negócios que alteram a própria substância do património do administrado, que importem a substituição de uns
bens por outros, que afetem o capital administrado, pondo-o em risco, por importarem um novo e diverso investimento desse
capital.
No entanto, as dúvidas começam quando se trate de promover uma frutificação anormal (excecional) ou o melhoramento do
património administrado, ainda mesmo à custa dos rendimentos obtidos.
Antes de mais, vejamos as categorias de negócios que ficam indicadas: atos de conservação dos bens administrados; atos
tendentes a prover à frutificação normal; negócios tendentes a prover à frutificação anormal; e atos tendentes a prover ao
melhoramento do património administrado.
A questão: serão consentidos aos meros administradores os negócios destinados a prover à frutificação anómala ou ao
melhoramento do património administrado? A doutrina tende para a solução afirmativa (aliás, não costumando admitir-se a
solução intermédia – frutificação anormal). A nós parece-nos que esta orientação só poderá aceitar-se quando as despesas com
os apontados negócios sejam feitas à custa dos rendimentos e quando os melhoramentos não consistem em novas aquisições

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de bens, mas em quaisquer obras nos bens administrados. Todavia, não temos por inteiramente líquido que mesmo nestas
condições o mero administrador – salvo indicações particulares em contrário, tiradas da lei para determinadas figuras de
administradores – possa praticar tais negócios; que ele possa, em suma, ir além da frutificação normal. A razão está na ideia de
que o mero administrador, por falta de interesse pessoal ou das aptidões normais, tem de confinar-se nos limites de uma gestão
muito comedida e prudente. É incumbido apenas, na gestão de bens administrados, de deferir ao expediente dessa gestão; de
fazer o trivial.

Importa ainda frisar três pontos: os próprios atos de conservação e frutificação normal só são atos de
administração ordinária se não forem financiados através da alienação de partes do capital
administrado, mas através do rendimento, eventualmente, acumulado; nem todas as alienações são
atos de disposição, só o sendo as alienações de elementos componentes do capital – já não são atos
de disposição as alienações dos frutos do património ou as que se integrem nas finalidades assinaladas
à mera administração; por fim, rigorosamente, as doações não são atos de administração nem de
disposição, pois não são atos de gestão de um património; daí que não possam ser realizadas pelo
mero administrador mesmo com consentimento das entidades competentes para autorizarem os atos
de disposição que interessam ao património administrado.
Por último, quanto ao modo como são praticados os atos de disposição que interessa ao património
administrado, importa dizer que: nos casos de administração legal de bens alheios, ou de bens próprios
e alheios, ou até de bens próprios, a lei provê, através de disposições inseridas nos mesmos institutos
em que se inserem as normas que impõem o regime de mera administração; nos casos em que os
poderes do administrador de bens alheios advêm da vontade do administrado e não seja possível obter
poderes especiais do constituinte, parece poderem praticar-se atos de disposição com autorização
judicial.

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CAPÍTULO I – CAPACIDADE E LEGITIMIDADE

1. Remissão.

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SUBTÍTULO II – ELEMENTOS ESSENCIAIS DO NEGÓCIO JURÍDICO

CAPÍTULO I – A DECLARAÇÃO NEGOCIAL

DIVISÃO I – NOÇÕES GERAIS

1. A declaração negocial como verdadeiro elemento do negócio jurídico.


2. Conceito de declaração negocial.
3. Breve referência aos atos jurídicos de natureza não negocial.
3.1. Atos pessoais.
3.2. Simples atos jurídicos.
4. Elementos constitutivos normais da declaração negocial.
5. Declaração negocial expressa e declaração negocial tácita.
6. O valor do silêncio como meio declarativo.
7. Declaração negocial presumida. Declaração negocial ficta.
8. Protesto e reserva.
9. Forma da declaração negocial.
9.1. Âmbito da forma exigida.
9.2. Consequências da inobservância de forma.
10. Perfeição da declaração negocial.

CAPÍTULO I – A DECLARAÇÃO NEGOCIAL

DIVISÃO I – NOÇÕES GERAIS

1. A declaração negocial como verdadeiro elemento do negócio jurídico.

O CC regula a declaração negocial nos artigos 217.º e seguintes. Trata-se de um verdadeiro elemento
do negócio, uma realidade componente ou constitutiva da estrutura do negócio 20.Por conseguinte, note-
se que, sendo a declaração negocial um elemento verdadeiramente integrante do negócio jurídico, a
sua falta conduzirá à inexistência material do negócio.

20 Já os seus vícios ou a falta de correspondência entre um elementos interior e um elemento exterior


desencadearão apenas a invalidade.

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2. Conceito de declaração negocial.

Pode definir-se a declaração de vontade negocial como o comportamento que, exteriormente


observado, cria a aparência de exteriorização de um certo conteúdo de vontade negocial,
caracterizando, depois, a vontade negocial como a intenção de realizar certos efeitos práticos com
ânimo de que sejam juridicamente tutelados e vinculantes. Dá-se, assim, um conceito objetivista de
declaração negocial, fazendo-se consistir a sua nota essencial, não num elemento interior – uma
vontade real, efetiva, psicológica –, mas num elemento exterior – o comportamento declarativo.
Com efeito, trata-se de um conceito e, portanto, de um quadro mental elaborado a partir das soluções
que resultam do ordenamento jurídico. O comportamento externo, em que se traduz a declaração,
manifesta normalmente uma vontade, formada sem anomalias e coincidente com o sentido
exteriormente captado daquele comportamento. Com efeito, a declaração pretende ser o instrumento
de exteriorização da vontade psicológica do declarante – é essa a sua função. No entanto, é à luz das
soluções dispensadas pelo ordenamento jurídico a uma série de problemas que se deve definir, com
coerência, o conceito de declaração negocial, realçando o aspeto subjetivista (vontade manifestada,
manifestação de vontade) ou o aspeto objetivista (comportamento objetivo, aparência de vontade, ato
social). Neste sentido, note-se que os problemas decisivos para o efeito de determinar o conceito de
declaração negocial são o da divergência entre a vontade e a declaração, o dos vícios da vontade, o
da interpretação da declaração negocial, entre outros. De facto, tais problema têm subjacente um
conflito entre os interesses do declarante, por um lado, e os do declaratário e do comércio jurídico, por
outro. Ora, o direito civil conhece hoje um estádio de evolução que põe na primeira linha a proteção
das expetativas dos declaratários e da segurança do comércio jurídico, dando assim relevância à
aparência e uma exigência de cognoscibilidade, a expensas de uma vontade real e psicológica.
Por conseguinte, não corresponderia mais aos dados do sistema definir o negócio jurídico, nos termos
tradicionais, como declaração ou manifestação de vontade. Tal definição não capta a essência do
fenómeno negocial, pois faz crer numa omnipotência da vontade individual no campo da autonomia
privada e não põe em relevo os limites que, no sentido da sua cognoscibilidade no ambiente social, a
ordem jurídica impõe à vontade para esta poder adquirir relevância.
Na verdade, uma conceção voluntarística não consegue explicar como é que, por exemplo, um negócio
celebrado por um sujeito incapaz de querer e entender é válido, se a incapacidade não foi conhecida
ou cognoscível (art. 257.º). Com efeito, soluções como estas vertidas no nosso CC, demonstram que a
essência do negócio não está numa intenção psicológica nem num meio (declaração, manifestação)
de a exteriorizar, ma num comportamento objetivo, exterior, social; algo que, todavia, não se confunde
com um formalismo ritual que, normalmente, tem ou teve subjacente um elemento subjetivo, uma
vontade, por parte do seu autor, coincidente com o significado que assume na vida de relação.
Daí que MANUEL DE ANDRADE, falando ainda de declaração de vontade, esclarecesse que nada mais
era necessário do que uma aparência de vontade. Pelas mesmas razões, outros autores se pronunciam

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num sentido ainda mais objetivista. Assim, BETTI, para quem a essência do negócio jurídico reside num
comportamento (declaração) cognoscível de conteúdo precetivo, sito é, contendo um autorregulamento
de interesses21, ou R. SCONAMIGLIO, que o define como ato social de autonomia privada, como tal,
juridicamente relevante.
Por fim, note-se que o CC não toma partido, diretamente; mas é manifesto o intuito do legislador de se
não comprometer, sequer ao nível terminológico, com as conceções voluntarísticas, pois não emprega
a expressão “declaração de vontade”, falando antes em “declaração negocial”. Contudo, repare-se que,
na regulamentação do negócio jurídico, não foi negada, em homenagem ao valor social da aparência,
toda e qualquer relevância à vontade psicológica. Com efeito, entendeu-se que, para certos problemas,
seria excessivo o sacrifício da situação do declarante (v.g.: art. 246.º); por outro lado, a relevância
objetiva do comportamento declarativo, a expensas da vontade real, deve encontrar os seus limites nas
próprias razões que a determinam e assim não deve verificar-se, se efetivamente não houve uma
confiança do declaratário nesse sentido objetivo.

3. Breve referência aos atos jurídicos de natureza não negocial.

O CC não dá uma definição de caráter dogmático do negócio jurídico, nem aos Códigos cabe formular
definições dessa natureza, pertencendo essa função à doutrina. Todavia, poderia ser útil uma
caracterização com intuitos práticos, isto é, destinada a circunscrever o tempo de aplicação de
determinadas normas.
Ora, a lei portuguesa começa por regular a problemática posta pelo negócio jurídico, alude depois a
“atos jurídicos que não sejam negócios jurídicos” (art. 295.º), mas não toma posição sobre qual a
compreensão ou extensão da categoria negócio jurídico, reservando assim esse domínio à doutrina.
Neste sentido, o artigo 295.º manda aplicar aos atos não negociais as disposições da doutrina geral
do negócio jurídico, “na medida em que a analogia das situações o justifique”. Daí se infere que não se
aplicarão aquelas normas, sempre que não haja uma verdadeira analogia de situações.

3.1. Atos pessoais.


(perfilhação, adoção, etc.)

21 Definindo o conteúdo do negócio como estatuição, disposição ou preceito de autonomia privada, parece
continuar a dar-se relevo a um elemento individual ou subjetivo, talvez com outro nome, mas, no fundo, nada
diferente da vontade. BETTI supera a objeção, esclarecendo que a vontade é sempre alguma coisa de interno,
inseparável da pessoa, enquanto o preceito é alguma coisa de posto em relação a esferas de interesses
interferentes – é uma manifestação expressa exteriormente no ambiente social. Com efeito, não é concebível uma
vontade que não tenha sido querida, mas é perfeitamente concebível que um comando ou um preceito surjam,
sem vontade por parte do seu autor de ficar vinculado ou sem conhecimento da matéria do preceito.

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Uma solução que se poderá considerar abrangida no conteúdo útil desta norma é a não aplicação aos
atos jurídicos pessoais de quaisquer normas da doutrina geral do negócio jurídico, inspiradas pela tutela
da confiança dos declaratários e dos interesses gerais do tráfico.
Por conseguinte, sempre que para um ato pessoal for relevante como causa de invalidade
qualquer fundamento, deve entender-se, na falta de preceito especial, que a relevância desse
fundamento não exige o conhecimento, cognoscibilidade ou suspeita da sua existência pela
contraparte, por não haver aqui, dado o conteúdo do negócio, quaisquer expetativas dignas de tutela.
Contra tal entendimento não pode pretender-se não estarem tais atos abrangidos pelo artigo 295.º, pois
trata-se de atos não negociais.
Em suma, podemos dizer que aos atos pessoais, e mesmo que a lei o não diga expressamente,
não se aplicam, portanto, as disposições inspiradas pela tutela da confiança dos declaratários e da
segurança e celeridade do comércio jurídico.

3.2. Simples atos jurídicos.


Quanto aos atos qualificados como simples atos jurídicos ou atos não negociais, quais as normas de
regulamentação geral do negócio jurídico aplicáveis ou não, segundo o critério da analogia de
situações?
Os quase negócios jurídicos ou atos jurídicos quase negociais traduzem-se na manifestação de uma
vontade e existe quase sempre uma consciência e até uma intenção de relevância jurídica da vontade
exteriorizada. Aplicar-se-lhe-ão, em regra, as normas sobre capacidade, receção da declaração pelo
destinatário, interpretação, vícios da vontade e representação.
As operações jurídicas, atos materiais ou atos reais traduzem-se na efetivação ou realização de um
resultado material ou factual a que a lei liga determinados efeitos jurídicos; desencadeiam, por força da
lei, a produção desses efeitos, embora normalmente ou, pelo menos, frequentemente estes não sejam
visados. Não se exige para a produção dos respetivos efeitos a capacidade nem se aplicam, em geral,
os preceitos sobre vícios da vontade, interpretação, receção de declarações, representação.
Por fim, note-se que estas soluções, assim delineadas genericamente, são válidas em regra, mas é
necessário averiguar até que ponto existe ou falta a analogia de situações, relativamente aos vários
tipos legais de atos jurídicos não negociais, ou se existe regulamentação especial sobre algum dos
pontos referidos. Assim, por exemplo, a fixação do domicílio voluntário geral (art. 82.º) parece ser um
ato material ou real e não um quasenegócio jurídico, mas exige capacidade (art. 85.º).

4. Elementos constitutivos normais da declaração negocial.

Numa declaração negocial podem distinguir-se, normalmente, os seguintes elementos: a declaração


propriamente dita (elemento externo) – consiste no comportamento declarativo; e a vontade (elemento
interno) – consiste no querer, na realidade volitiva que normalmente existirá e coincidirá com o sentido
objetivo da declaração.

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Ora, o elemento interno – a vontade real – pode decompor-se analiticamente em três subelementos:

I. A vontade de ação;
Consiste na voluntariedade (consciência e intenção) do comportamento declarativo.
Com efeito, pode faltar a vontade de ação, por exemplo, se uma pessoa, por ato reflexo ou
distraidamente, sem se aperceber do facto, faz um gesto e este objetivamente aparece como
uma declaração negocial (v.g.: aceitação de uma proposta). É igualmente o caso da coação ou
violência absoluta (coação física).
II. A vontade da declaração;
(vontade da relevância negocial da ação)

Consiste em o declarante atribuir ao comportamento querido o significado de uma


declaração negocial. Este subelemento só está presente, se o declarante tiver a consciência e
a vontade de que o seu comportamento tenha significado negocial vinculativo – consciência e
vontade de que o seu comportamento produza efeitos negociais no campo do direito. A
declaração deve corresponder a um sic volo sic jubeo, vinculativo do declarante.
Com efeito, pode faltar a vontade da declaração se, por exemplo, uma pessoa, julgando
subscrever uma simples ficha de assinatura para o arquivo de um banco, assina uma
declaração negocial. Podem considerar-se aqui incluídas as hipóteses da simulação, da
reserva mental e das declarações não sérias, pois falta nelas a vontade da relevância negocial
do comportamento, embora exista a consciência de lhes poder ser atribuída tal relevância.
Noutras hipóteses, como a que primeiro mencionámos, não há vontade nem consciência da
declaração.
III. A vontade negocial.
(vontade do conteúdo da declaração ou intenção do resultado)

Consiste na vontade de celebrar um negócio jurídico de conteúdo coincidente com o


significado exterior da declaração. É uma vontade efetiva, nos termos da teoria dos efeitos
prático-jurídicos, correspondente ao negócio concreto que apareceu exteriormente declarado.
Assim, pode haver um desvio na vontade negocial. É o caso de o declarante lhe ter atribuído
aos termos da declaração um sentido diverso do sentido que exteriormente é captado. Por
exemplo, uma pessoa que quer comprar a Quinta do Mosteiro e declara querer comprar a
Quinta da Capela, por julgar erradamente que a Quinta do Mosteiro se chama Quinta da
Capela.

Em suma, constatámos poder verificar-se uma falta de vontade de ação, uma falta de vontade
de declaração e um desvio na vontade negocial. Em todos estes casos surge um dissídio entre a
vontade e a declaração. Além do mais, note-se que tal divergência pode também resultar de um desvio
na vontade de ação (lapsus linguae ou lapsus calami), por exemplo, o declarante quer escrever Quinta
do Mosteiro e, por lapso, engana-se ao escrever ou falar e sai-lhe a fórmula Quinta da Capela.

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5. Declaração negocial expressa e declaração negocial tácita.

Os negócios jurídicos realizam uma ampla autonomia privada, na medida em que, quanto ao seu
conteúdo, vigora o princípio da liberdade negocial (art. 405.º). Quanto à forma (lato sensu), é igualmente
reconhecido pelo ordenamento jurídico um critério de liberdade: o princípio da liberdade declarativa.
Tal princípio está consagrado nos artigos 217.º (possibilidade de declarações negociais expressas e
tácitas) e 219.º (liberdade de forma).
No entanto, por vezes, a lei exige que a declaração seja expressa (v.g. art. 413.º/1). Outras vezes, a
lei tem o cuidado de frisar que um certo negócio pode ter lugar por declaração tácita (v.g.: art. 288.º/3),
o que, aliás, já resultaria do princípio geral no artigo 217.º.
Daí a necessidade de definir o critério diferenciador dos dois tipos de declarações. Ora, o critério da
distinção entre declaração tácita e declaração expressa consagrado na lei (art. 217.º) é o proposto pela
teoria subjetiva: a declaração é expressa quando feita por palavras, escrito ou quaisquer outros meios
diretos, frontais, imediatos de expressão da vontade 22 e é tácita quando do seu conteúdo direto se
infere um outro, isto é, quando se destina a um certo fim, mas implica e torna cognoscível, a latere, um
autorregulamento sobre outro ponto – em via oblíqua, imediata, lateral23.
Com efeito, resulta da formulação legal que a inequivocidade dos factos concludentes não exige a
dedução, no sentido do autorregulamento tacitamente expresso, seja forçosa ou necessária, bastando
que, conforme os usos do ambiente social, ela possa ter lugar com toda a probabilidade. Em
conformidade com o critério de interpretação dos negócios jurídicos consagrado pelo CC (art. 236.º),
deve entender-se que a concludência de um comportamento em certo sentido negocial, não exige a
consciência subjetiva por parte do seu autor desse significado implícito, bastando que, objetivamente,
de fora, numa consideração de coerência, ele possa ser deduzido do comportamento do declarante. É,
ainda, óbvio que a declaração tácita pode ter como facto concludente uma declaração expressa,
exteriorizando diretamente outro conteúdo negocial 24 . Por fim, note-se que a possibilidade de um
negócio formal ser realizado através de declaração tácita está expressamente reconhecida pelo artigo
217.º/2. Basta, mas torna-se necessário, que os factos concludentes estejam revestidos de forma legal.

6. O valor do silêncio como meio declarativo.

22 As declarações expressas não dispensam, contudo, uma atividade interpretativa (falsa demonstratio non nocet),
através das circunstâncias concomitantes, através do enquadramento global da declaração. Se a conclusão do
recetor da declaração, segundo os critérios interpretativos legais, é num determinado sentido, é indiferente que a
declaração seja expressa ou tácita.
23 Por exemplo: o pagamento pelo inquilino de rendas antecipadas é uma tácita declaração de prorrogação do
contrato para o tempo a que elas respeitam.
24 Por exemplo: dispor o herdeiro de um bem da herança através de uma venda, troca ou doação é uma declaração
expressa de venda, troca ou doação e uma declaração tácita de aceitação da herança (art. 2056.º).

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Davide Rodrigues 2016/2017 Primeira Turma

Trata-se de saber se o silêncio – entendido não apenas como um “nada dizer”, mas como um “nada
fazer”, uma total omissão25 - pode considerar-se um facto concludente (declaração tácita) no sentido
da aceitação de propostas negociais. Quando estamos, então, perante casos de “silêncio eloquente”?
O CC resolve o problema no artigo 218.º, estabelecendo que o silêncio não vale como declaração
negocial, a não ser que esse valor lhe seja atribuído por lei, convenção ou uso.
Assim, repudia-se o brocardo do direito canónico “qui tacet consentire videtur”, mesmo que o sujeito
pudesse e devesse falar, pois a atribuição ao silêncio do valor de consenso negocial não é, como regra
geral, razoável.
Ora, casos em que a lei atribui ao silêncio a natureza de facto concludente, no sentido da
aceitação da proposta negocial, são, por exemplo, os dos artigos 923.º/2, 1054.º e 1163.º. Em certos
casos, a lei fixa ou concede aos particulares a faculdade de fixar prazos para a prática dos atos, findos
os quais se verifica um efeito que poderia também ter lugar por negócio jurídico – é o caso do prazo
para ratificar o negócio representativo, previsto no artigo 268.º/3 do CC. Com efeito, note-se que se o
valor da declaração negocial é atribuído ao silêncio por uma anterior convenção das partes, pode dizer-
se que estamos perante uma declaração expressa.
Neste sentido, entendemos que se trata da solução mais razoável, já que o silêncio é, em si
mesmo, insignificativo e quem cala pode comportar-se desse modo pelas mais diversas causas, pelo
que deve considerar-se irrelevante – sem querer dizer sim nem não – um comportamento omissivo. De
outro modo, ao enviar a outrem uma proposta de contrato estaria a criar-se-lhe um ónus de responder,
a fim de evitar a conclusão do negócio, o que viola a ideia de autonomia das pessoas. Por outro lado,
a inconveniência de tal regime poderia ainda detetar-se se tivermos em conta que poderiam captar-se
aceitações negociais a outrem, através do silêncio, aproveitando-se os excessivos afazeres, a
distração, a negligência, em suma, quaisquer circunstâncias que tornassem difícil ou impossível
responder.
Do mesmo modo, afasta-se a ideia de que o silêncio vale declaração quando o silenciante podia
e devia falar (qui tacet consentire videtur ubi loqui potuit ac debuit). Antes de mais, não seria isento de
dúvidas quando é que alguém pode e deve falar. Acresce que, se alguém tinha o dever de falar, não
deve concluir-se do seu silêncio um certo sentido negocial, ma apenas a verificação de um
incumprimento do dever de falar, suscetível de fazer incorrer o silenciante na obrigação de reparar os
danos causados a outrem pela frustração da confiança deste em receber uma resposta (interesse
contratual negativo ou dano da confiança).
Em suma, o silêncio não tem qualquer valor como declaração negocial, em princípio – não é
eloquente. Neste sentido, só deixará de ser assim quando a lei, uma convenção negocial ou uso lho

25 Se se propõe a certa pessoa um objeto consumível por um certo preço e esta, sem nada dizer, o consome, não
estamos perante um caso de silêncio declarativo, mas de declaração tácita positiva (o consumo do objeto é um
facto concludente, ativo ou positivo, e não omissivo).

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Davide Rodrigues 2016/2017 Primeira Turma

atribuam. Não basta, portanto, ter-se estabelecido um dever de responder. É necessário que resulte da
lei, de convenção ou do uso que a ausência de resposta tem um certo sentido.

Nota bene...
O CC nada diz quanto às mercadorias recebidas, quando porventura elas forem remetidas com a proposta. A
entrega ou envio de bens que não tenham sido encomendados ou que não constituam o cumprimento de qualquer contrato
válido, acompanhada de um pedido de pagamento, é, porém, proibida (como venda forçada), pelo menos quando o
destinatário for um consumidor (isto é, quando os bens se não enquadrarem na atividade profissional do destinatário). A
ausência de resposta do destinatário não vale como consentimento e o destinatário não fica obrigado à devolução ou
pagamento dos bens ou serviços, podendo mesmo conservá-los a título gratuito; se, não obstante, devolver o bem, tem direito
a ser reembolsado das despesas decorrentes da devolução, no prazo de 30 dias a contar da data em que a tenha efetuado.
Pelo menos quando o destinatário for um consumidor, não existe, hoje, qualquer obrigação de restituição dos bens,
tendo perdido também sentido a discussão em torno da existência de uma sua obrigação de conservação, ou de abstenção
de deteriorações, bem como dos seus exatos termos.

7. Declaração negocial presumida. Declaração negocial ficta.

A declaração negocial presumida tem lugar quando a lei liga a determinado comportamento o
significado de exprimir uma vontade negocial, em cento sentido, podendo ilidir-se tal presunção
mediante prova em contrário. A título de exemplo, os artigos 926.º, 2225.º, 2315.º/1/2 e 2316.º/3. Por
outro lado, note-se que a lei, no artigo 867.º, expressamente exclui uma presunção – a remissão da
dívida – que, naturalmente, poderia pensar-se inferir daquele facto.
A declaração negocial ficta tem lugar sempre que a um comportamento seja atribuído um
significado legal tipicizado, sem admissão de prova em contrário – presunção iuris et de iure. A título
de exemplo, o artigo 923.º/2 ou 1054.º.
Por fim, note-se que o regime-regra é o das presunções legais poderem ser ilididas mediante prova
em contrário, só deixando de ser assim quando a leio o proibir (art. 350.º/2).

8. Protesto e reserva.

Emitido certo comportamento declarativo, pode o seu autor recear que lhe seja imputado, por
interpretação, um certo sentido. Para o impedir, o declarante afirma abertamente não ser esse o seu
intuito.
A esta contradeclaração dá-se o nome de protesto. O protesto tem o nome de reserva, quando consiste
na declaração de que um certo comportamento não significa renúncia a um direito próprio, ou
reconhecimento de um direito alheio. Por exemplo, o mutuante recebe certa importância, a título de
juros, mas, julgando ter deito a receber mais, declara não prescindir do excedente.
Afirma-se comummente que o protesto não vale quando o comportamento declarativo só consente a
interpretação contra a qual o declarante se quer acautelar. É o pensamento expresso no aforismo
protestatio facto contraria nihil relevet (por exemplo, a declaração de não se querer ratificar um negócio,

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Davide Rodrigues 2016/2017 Primeira Turma

ao mesmo tempo que se utiliza ou consome a prestação dele derivada). Porém, a validade deste
aforismo não tem um alcance absoluto.

9. Forma da declaração negocial.

O formalismo negocial tem as seguintes vantagens: assegura uma mais elevada dose de reflexão das
partes, pois, nos negócios formais, o tempo que medeia entre a decisão de concluir o negócio e a sua
celebração permite repensar o negócio e defende as partes contra a sua ligeireza ou precipitação (no
mesmo sendi concorre a própria solenidade do formalismo); separa os termos definitivos do negócio
da fase pré-contratual (negociação); permite uma formulação mais precisa e completa da vontade das
partes, facultando a correspondente assistência especializada (sobretudo, no caso de documentos
notariais); proporciona um mais elevado grau de certeza sobre a celebração do negócio e os seus
termos, evitando-se os perigos ligados à falível prova por testemunhas 26; e, por fim, possibilita uma
certa publicidade do ato, o que interessa ao esclarecimento de terceiros.
Por outro lado, o formalismo negocial não deixa de apresentar alguns inconvenientes, dos quais
destacamos dois: redução da fluência e celeridade do comércio jurídico; e eventuais injustiças,
derivadas de uma desvinculação posterior de uma parte do negócio, com fundamento em nulidade por
vício de forma, apesar de essa parte ter querido efetivamente o ato jurídico negocial.
Ora, ponderando as vantagens e inconvenientes do formalismo negocial, sancionou o CC (art. 219.º)
o princípio da liberdade de forma ou da consensualidade (sendo este último termo rigoroso, apenas,
para os contratos). Porém, considerando, quanto a certos negócios, prevalecerem as vantagens sobre
os inconvenientes, admitiu numerosas e importantes exceções a esse princípio.
Neste sentido, note-se que o formalismo exigível para um certo negócio pode ser imposto pela lei
(forma legal) ou resultar de uma estipulação ou negócio jurídico das partes (forma convencional), como
acontece, por exemplo, quando durante as negociações prévias se convenciona que o futuro ou futuros
negócios entre as partes se deverão revestir de certa forma – neste caso, em que as partes adotam
certa forma, sem que a lei ou convenção anterior a isso as obrigasse, fala-se de forma voluntária.
O problema da legitimidade da forma convencional é debatido na doutrina; o Código resolveu-o no
sentido da admissibilidade e eficácia do negócios determinativos da forma (art. 223.º). Não obstante, é
óbvio que o reconhecimento das estipulações das partes sobre forma do negócio não significa que os
particulares possam afastar, por acordo, as normas legais que exigem requisitos formais para certos
atos, pois trata-se de normas imperativas. Assim, o reconhecimento da forma convencional significa,

26 Ao contrário das testemunhas, os documentos são provas pré-constituída (e não apenas constituendas), isto é,
o meio de prova existe antes da necessidade de prova. Os documentos criam uma tendência antilitigiosa, isto é,
contribuem para prevenir litígios, dado o seu valor probatório decisivo e a sua permanência, pondo as partes ao
abrigo da dúvida e da chicana.

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Davide Rodrigues 2016/2017 Primeira Turma

apenas, poderem as partes exigir determinados requisitos para um ato, pertencente a um tipo negocial
que a lei regula como não formal ou que sujeita a um formalismo menos solene.
O negócio dirigido à fixação de uma forma especial para um ulterior negócio não está sujeito a
formalidades. Com efeito, não se exigindo no artigo 223.º, quaisquer requisitos formais para o pacto
sobre a forma, aí previsto, este negócio cairá dentro do campo de aplicação do princípio geral do nosso
direito: o princípio da liberdade de forma.

9.1. Âmbito da forma exigida.


No que toca ao problema de saber quais as cláusulas ou estipulações negociais a que a forma legal é
aplicável, quando exigida, MANUEL DE ANDRADE entendia que a forma abrangia, não só as cláusulas
essenciais do negócio jurídico, mas também as estipulações acessórias, típicas ou atípicas, quer as
contemporâneas da conclusão do negócio, quer as subsequentes, mas já se não estenderia tal
exigência aos chamados pactos abolitivos ou extintivos. Neste sentido, o atual CC consagrou esta
regra, na media em que estatuiu que, em princípio, as estipulações acessórias anteriores ao negócio
ou contemporâneas dele devem revestir a forma exigida pela lei para o ato, sob pena de nulidade (art.
221.º). Admitem-se, contudo, na mesma disposição, restrições a este princípio. Reconhece-se a
validade de estipulações verbais anteriores ao documento exigido para a declaração negocial ou
contemporâneas dele, desde que se verifiquem, cumulativamente, as seguintes condições:
I. Que se trate de cláusulas acessórias – não deve tratar-se de estipulações essenciais e
parece dever igualmente tratar-se de estipulações adicionais, que completem o
documento, que estejam par além do conteúdo do mesmo (praeter scripturam), e não
estipulações que o contradigam, que estejam em contrário dele;
II. Que não sejam abrangida pela razão de ser da exigência do documento – por exemplo,
nada se diz num contrato de compra e venda sobre o lugar e tempo de pagamento do
preço, mas prova-se que as partes convencionaram verbalmente que o preço seria pago
em certa data e em certo local; parece que tal acordo verbal deve ser respeitado, não
havendo lugar à aplicação de quaisquer normas supletivas;
III. Que se prove que correspondem à vontade das partes – este requisito é óbvio, pois traduz-
se na prova de que a estipulação existiu; se sobre o ponto acessório há cláusula no
documento, o pacto verbal não será válido, pois tem de se admitir que as partes, regulando
aquele ponto no documento, não quiseram de todo o pacto verbal anterior ou
contemporâneo. Por outro lado, é manifesto que há uma presunção natural de o
documento ser completo, pelo que, na dúvida sobre a existência de uma estipulação
acessória, anterior ou simultânea, adicional, é de decidir contra a sua existência.

Todavia, note-se que a possibilidade de as estipulações acessórias não formalizadas, a que se


refere o artigo 221.º, produzirem efeitos é bem menor do que prima facie pode parecer. Isto dado o
disposto no artigo 394.º, que declara inadmissível a prova por testemunhas se tiver por objeto

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convenções contrárias ou adicionais ao conteúdo dos documentos autênticos ou particulares. Assim se


defende o conteúdo dos documentos contra os perigos da precária prova testemunhal. Da coordenação
do artigo 221.º com o artigo 394.º resulta que as estipulações adicionais não formalizadas, anteriores
ou contemporâneas do documento, não abrangidas pela razão determinante da forma, só produzirão
efeitos, se tiver lugar a confissão ou forem provadas por documento, embora menos solene do que o
exigido para o negócio. De notar, também, que a inadmissibilidade de prova testemunhal de
estipulações adicionais não formalizadas tem lugar mesmo na hipótese de forma voluntária, isto é, não
exigida pela lei nem por convenção prévia, mas adotada pelas partes.
Por fim, quanto aos pactos modificativos (adicionais ou contrários a cláusulas acessórias ou
essenciais constantes do documento) e aos pactos extintivos ou abolitivos (que são necessariamente
estipulações posteriores), o artigo 221.º/2 dispensa-os da forma legal prescrita para a declaração, se
as razões da exigência especial da lei não lhes forem aplicáveis. A aplicação deste critério será segura
nalguns casos. VAZ SERRA considerava que os pactos pelos quais se altera a área do prédio vendido,
ou aumenta ou se agrava obrigações, cuja constituição a lei sujeita a forma, devem considerar-se
abrangidos pela exigência de forma legal; mas não já quando o pacto cancele ou reduza as obrigações
de alguma ou de ambas as partes (sujeição a um prazo da obrigação de pagar o preço, remissão do
preço, limitação da obrigação do fiador).

9.2. Consequências da inobservância da forma.


Desde já, convém distinguir entre formalidades ad substantiam e formalidades ad probationem: as
primeiras são insubstituíveis por outro género de prova, gerando a sua falta a nulidade do negócio,
enquanto a falta das segundas pode ser suprida por outros meios de prova mais difíceis de conseguir.
Quais então as consequências da inobservância de forma no nosso direito?
Responderemos ao problema, tendo em atenção duas hipóteses.

I. Inobservância da forma legal;


Em conformidade com a orientação da generalidade das legislações e com os
motivos de interesse público que determinam as exigências legais de forma, o CC liga à
inobservância da forma legal a nulidade e não a mera anulabilidade.
Prima facie, poderá parecer que tal solução poderá conduzir a resultados injustos.
Com efeito, nula, por falta de forma, uma compra em que o o comprador já pagou o preço,
parece que haveria um locupletamento injusto do vendedor, pois não seria obrigado a
entregar a coisa vendida ou a restituir a importância recebida, dada a nulidade dos
contratos donde resultaria essa obrigação. No entanto, não se verifica esse locupletamento
à custa alheia, pois, uma vez declarado nulo o negócio, deverá ser restituído tudo o que
tiver sido prestado em consequência do negócio viciado, podendo a prova da prestação,
para o efeito desta obrigação de restituir, ser feita por qualquer dos meios de prova
admitidos em geral pela lei. É o que resulta do artigo 289.º, disposição que está em

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coerência com o instituto (de aplicação subsidiária) do enriquecimento sem causa (art.
473.º), embora o regime da obrigação de restituir, particularmente quanto ao objeto (arts.
289.º/1 e 479.º) e quanto à prescrição (art. 482.º), seja, na hipótese de ter por fundamento
uma declaração de nulidade, um regime não coincidente com o regime gral do
enriquecimento sem causa.
A nulidade deixará de ser a sanção para a inobservância da forma legal sem que,
em casos particulares, a lei determine outra consequência (art. 220.º). A este propósito,
pode suscitar-se o problema de saber se o nosso direito, nalguns casos, não considerará
certas formalidade como simplesmente probatórias ou ad probationem.
Há que tomar em conta o artigo 364.º do atual Código, integrado nas disposições
sobre direito probatório material constantes do mesmo. Aí se reafirma no nº 1 o princípio
geral, segundo o qual os documentos autênticos, autenticados ou particulares são
formalidades ad substantiam. No nº 2, estatui-se que o documento pode ser substituído por
confissão expressa, se resultar claramente da lei que foi exigido apenas para prova de
declaração. Donde se infere que quaisquer documentos serão formalidades ad
probationem, nos casos excecionais em que resultar claramente da lei que a finalidade em
vista ao ser formulada certa exigência de forma foi apenas a de obter prova segura acerca
do ato e não qualquer das outras finalidades possíveis do formalismo negocial. Admite-se,
nestes casos, como meio de suprimento da falta do documento, a confissão expressa.
Nem sempre será isenta de dúvidas a aplicação do critério do nº 2: quando é que
se poderá concluir resultar claramente da lei que o documento é exigido apenas para prova
da declaração?
Além do mais, põe-se também o problema de saber se a possibilidade de
invocação da nulidade por vício de forma não pode ser excluída por aplicação da cláusula
geral da boa fé ou do abuso do direito. Deverá admitir-se a invocação da nulidade com
fundamento em vício de forma, quando essa invocação por uma das partes constitua um
abuso do direito, isto é, quando o comportamento do invocante 27, globalmente considerado,
seja intoleravelmente ofensivo do nosso sentido ético-jurídico?
MANUEL DE ANDRADE propendia para a solução da improcedência da arguição da
nulidade, quando esta arguição revestisse as características de um abuso de direito. E
também VAZ SERRA acabou por admitir essa solução, enquadrando estes casos como
situações de abuso de direito por venire contra factum proprio (diversos do exercício do
direito com a finalidade exclusiva de prejudicar alguém). No entanto, outros autores não
admitiam que o princípio do abuso de direito (ou o princípio da boa fé) pudesse limitar a

27 Por exemplo, fazendo como que falsificar por outrem a sua própria assinatura ou induzindo dolosamente a outra
parte a não insistir pela formalização do negócio ou procedendo em termos de criar na outra parte a expetativa de
que a nulidade jamais seria arguida.

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Davide Rodrigues 2016/2017 Primeira Turma

eficácia das normas que exigem a forma, dados os fins imperativos de segurança que estas
têm em vista, pelo que deveriam ser estritamente aplicadas (ius strictum). Neste sentido se
pronunciou também, num primeiro momento, LARENZ, que, todavia, corrigia a injustiça
concreta resultante da indefetível aplicação das regras sobre o formalismo, impondo, em
caso de abuso de direito, ao autor do abuso, a obrigação de indemnizar a outra parte pelo
interesse contratual negativo28.
É certo que a aplicação das regras de forma pode conduzir a uma ou outra solução
de menos equidade, sem que possa, todavia, afastar-se a sua aplicação nesses casos,
pois trata-se de um preço conscientemente pago para fruir o rendimento social
correspondente às vantagens do formalismo. É da essência do direito encarar as condutas
sub specie societatis e não sub specie individui. Entre essas vantagens, está a criação e
tutela a favor do valor de segurança jurídica, que só pode ser plenamente realizado
sacrificando o critério de justiça de cada caso. Esta perspetiva é correta, pois, de outro
modo, renunciar-se-ia à realização do interesse público que subjaz à formulação das
exigências de formalismo negocial. Dela decorre que os negócios, afetados por vício de
forma, tenham de ser nulos: se assim não fosse, não se garantiria o acatamento dos
preceitos sobre a forma, que passariam a ser meras recomendações 29.
No entanto, tal consideração não exige que as regras da forma devam ser
consideradas um ius strictum indefetivelmente aplicado, sem qualquer subordinação ao
princípio supremo do direito, verdadeira exigência fundamental do jurídico, como é o do
artigo 334.º. O intérprete, desde que lealmente aceite como boa e valiosa para o comum
dos casos a norma que prescreve a nulidade dos negócios feridos de vício de forma, está
legitimado para, nos casos excecionalíssimos do artigo 334.º, afastar a sua aplicação,
tratando a hipótese como se o ato tivesse formalizado. Fora destes casos

28 Interesse contratual negativo ou interesse de confiança são expressões utilizadas vulgarmente em sinonímia
com a de dano negativo, enquanto que a expressão interesse contratual positivo é expressão usada como sinónima
de dano positivo. Ora, no domínio da responsabilidade obrigacional, costuma grande parte da doutrina distinguir
os danos negativos dos danos positivos. Embora a fronteira não seja muito clara, enquanto estes últimos seriam
os que decorreriam do incumprimento das obrigações, aqueles derivariam da celebração de um negócio inválido,
ineficaz ou que veio a perder retroativamente a sua eficácia, ou da não celebração de qualquer negócio. A
indemnização dos danos positivos visaria, pois, colocar o lesado na situação em que ele se encontraria se a
obrigação tivesse sido cumprida, enquanto a indemnização dos danos negativos teria como objetivo colocá-lo na
situação em que estaria se não tivesse celebrado o negócio inválido ou ineficaz ou não tivesse iniciado as
negociações que se romperam. É entendimento maioritário da doutrina portuguesa o de que os danos
indemnizáveis no âmbito da responsabilidade pré-contratual são apenas os negativos (art. 227.º).
29 A consequência da nulidade por falta de forma não é, pois, deixada na dependência de uma apreciação, em
cada caso concreto, do significado e obtenção das finalidades prosseguidas com a exigência legal de forma.

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excecionalíssimos, se uma das partes atuou com má fé nas negociações, o negócio é nulo,
mas surgirá uma indemnização, por força do artigo 227.º.
Aliás, os próprios autores, como PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, que
sustentavam o caráter de ius strictum das normas sobre a forma procuravam corrigir as
escandalosas injustiças a que dá lugar o o abuso do direito, através de uma indemnização
do chamado dano da confiança. Ora, tal solução vulnerará menos a segurança e a certeza
jurídica? De qualquer modo, a segurança da vida jurídica e a certeza do direito, sendo
valores de importância fundamental na ordenação da vida social e compreendendo-se o
seu acatamento mesmo que para isso se pague o tributo de alguma injustiça, não podem
ser afirmadas com sacrifício das elementares exigências do justo.
Atualmente, na doutrina nacional e estrangeira, admite-se que a invocação da
nulidade por vício de forma não proceda quando se verifiquem certas circunstâncias
qualificadoras da situação, enquadrando-se tais casos, seja (na esteira de CANARIS) numa
responsabilidade pela confiança, seja nos institutos do abuso de direito e da boa fé.
E também a jurisprudência nacional tem admitido que a invocação da nulidade por
falta da forma legalmente exigida possa ser impedida pela proibição do abuso de direito, já
desde os anos 70. São hipóteses, enquadradas no abuso de direito, de dolus praeteritus,
em que uma parte obstou à observância da forma legal pré-ordenadamente, para vir depois
invocar esse vício, ou de inadmissível comportamento contraditório (de venire contra
factum proprio), em que a falta de forma, mesmo que não provocada dolosamente pela
parte que a vem invocar, lhe é imputável, tendo a outra parte efetuado um investimento
com base na confiança depositada na validade do negócio.
Por fim, note-se que há que ter em conta, todavia, que a solução com base no
abuso de direito poderá não ser viável ou adequada, pois a exigência legal de forma serve
também interesses públicos e a nulidade pode ser declarada oficiosamente pelo tribunal.
Nestes casos, restará ao lesado exigir o ressarcimento dos danos sofridos, com
fundamento em responsabilidade pré-contratual da outra parte.
II. Inobservância da forma convencional.
Rege a este respeito o artigo 223.º. É óbvio que, tratando-se de averiguar quais as
consequências da falta de requisitos formais que a lei não exige, mas as partes
convencionaram, a resposta ao problema posto deve ser pedida, em primeiro lugar, à
vontade das partes. O artigo 223.º limita-se a estabelecer presunções que, como todas as
presunções legais, são em princípio relativas. Essas presunções são duas, variando com
o facto que é base da presunção.
Assim:
 Se a forma especial foi estipulada antes da conclusão do negócio, consagra-
se a presunção de essencialidade, isto é, presume-se que, sem a observância
da forma, o negócio é ineficaz; a forma tem, pois, caráter constitutivo;

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 Se a forma foi convencionada após o negócio ou simultaneamente com ele,


havendo, nesta última hipótese, fundamento para admitir que as partes se
quiseram vincular desde logo, presume-se que as partes não quiseram
substituir o negócio, suprimindo-o e concluindo-o de novo, mas apenas
visaram consolidá-lo ou qualquer outro efeito.

10. Perfeição da declaração negocial.

A declaração negocial com um destinatário ganha eficácia logo que chegue ao seu poder ou é
dele conhecida. As declarações não receptícias tornam-se eficazes logo que a vontade se manifesta
na forma adequada.
Desta doutrina, constante do artigo 224.º/1, decorre, para os contratos, ter a nossa lei optado
pela doutrina da receção quanto ao momento da sua conclusão. Quer dizer: o contrato está perfeito
quando a resposta, contendo a aceitação, chega à esfera de ação do proponente, isto é, quando o
proponente passa a estar em condições de a conhecer. Concretizando algo mais: quando a declaração
de aceitação foi levada à proximidade do destinatário de tal modo que, em circunstâncias normais, este
possa conhecê-la, em conformidade com os seus usos pessoais ou os usos do tráfico; uma
enfermidade, uma ausência transitória de casa ou do estabelecimento são riscos do destinatário e
também é considerada eficaz a declaração que só por culpa do destinatário não foi por ele recebida –
artigo 224.º/2. Não será preciso tanto, todavia, se, por qualquer meio, foi dele conhecida 30.

DIVISÃO II – INTERPRETAÇÃO E INTEGRAÇÃO DOS NEGÓCIOS JURÍDICOS

1. Interpretação.
1.1. O problema.
1.2. Posições possíveis.
1.3. Posição adotada.
1.3.1. Desvios.
1.3.1.1. Num maior objetivismo – negócios solenes ou formais.
1.3.1.2. Num maior subjetivismo – disposições testamentárias.
2. Integração.
2.1. Termos de admissão.

30 Quando se dirija a pessoa desconhecida ou cujo paradeiro seja ignorado pelo declarante, a declaração negocial
pode também ser feita mediante anúncio publicado num dos jornais de residência do declarante (art. 225.º).

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Davide Rodrigues 2016/2017 Primeira Turma

DIVISÃO II – INTERPRETAÇÃO E INTEGRAÇÃO DOS NEGÓCIOS JURÍDICOS

1. Interpretação.

1.1. Em que consiste o problema.


O negócio jurídico, como qualquer outra manifestação do espírito humano, postula uma
interpretação. Só que nos negócios jurídicos a interpretação não visa por em relevo um resultado
destinado a uma pura assimilação ou compreensão intelectuais (uma mensagem) ou afetivas, mas tem
em vista evidenciar um conteúdo normativo (um conjunto de comandos) que vai pautar a conduta de
algumas pessoas (no negócio jurídico, a conduta das respetivas partes).
A interpretação nos negócios jurídicos é a atividade dirigida a fixar o sentido e alcance decisivo
dos negócios, segundo as respetivas declarações integradoras. Trata-se de determinar o conteúdo das
declarações de vontade 31 e, consequentemente, os efeitos que o negócio visa produzir, em
conformidade com tais declarações.
Ora, como atividade dirigida à fixação do sentido negocial, a interpretação não pode ser
abandonada ao senso empírico de cada intérprete, mas deve pautar-se por regras ou critérios cuja
formulação é, precisamente, o objeto da teoria da interpretação dos negócios jurídicos ou hermenêutica
negocial.
A teoria da interpretação pode ver alguns dos seus resultados convertidos em verdadeiras
normas jurídicas onde se fixam princípios ou critérios interpretativos (arts. 236.º e ss.).
Com efeito, para haver uma declaração a interpretar é necessário estarmos perante um ato ou
conduta voluntária equiparável, uma ação ou omissão controláveis pela vontade.
Assim, apesar de corresponder ao estado atual do nosso direito civil uma perspetiva objetivista
da declaração negocial, não podemos ver nela uma mera notificação ou comunicação, um simples
indício probatório da existência da correspondente vontade de efeitos jurídicos. Não podemos deixar
de a considerar como ato determinante, uma manifestação de validade que é o fundamento imediato
da verificação dos efeitos jurídicos. Além de ser um ato determinante (meio de autodeterminação), a
declaração é, também, porém, um ato social de comunicação, que tem de ter relação com aquele a
quem se destina ou o conhece. Neste sentido, note-se que estes dois aspetos, que exacerbados
conduziriam ao dogma da vontade ou ao dogma da declaração acerca da essência do negócio jurídico,
conjugam-se na prevalência do elemento objetivo, não desprendível, porém, da existência de uma
vontade de agir (consciência de validade).

31 Interpretado o negócio, isto é, fixado o seu sentido, pode depois, se o sentido fixado, segundo as diretrizes da
teoria da interpretação, é um sentido objetivo, abrir-se um problema de divergência entre a vontade e a declaração.
A qualificação de um negócio jurídico é também posterior à interpretação.

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Posto isto, as duas tarefas fundamentais da hermenêutica dos negócios jurídicos são são dar resposta
às questões que a seguir se enumeram, sendo certo que a resposta dada à primeira questão
condicionará a resposta a dar à segunda:
 Qual o tipo de sentido negocial decisivo, cuja determinação constitui o fim da atividade
interpretativa?
 Quais os elementos, os meios ou subsídios que o intérprete deve tomar em consideração na
busca do sentido negocial relevante?

1.2. Posições possíveis.

Focaremos as posições subjetivistas e, do outro lado, as posições objetivistas.


 Posições subjetivistas;
O intérprete deve buscar, através de todos os meios adequados, a vontade real do
declarante. Assim, o negócio valerá com o sentido subjetivo, isto é, como foi querido pelo autor
da declaração.
 Posições objetivistas;
O intérprete não vai buscar a vontade efetiva do declarante, mas um sentido
exteriorizado ou cognoscível através de certos elementos objetivos. O objeto da interpretação
não é a vontade como facto da vida anímica interior, mas a declaração como ato significante.
É uma interpretação normativa e não uma interpretação psicológica. Não se dá relevo
necessariamente à vontade real do declarante nem sequer necessariamente à vontade real do
declaratário. Não estamos perante uma mera averiguação de factos; há que averiguar factos,
mas a conclusão, a partir deles, é valoração jurídica e critério normativo.
o Teoria da impressão do destinatário;
A declaração deve valer com o sentido que um destinatário razoável, colocado
na posição concreta do real declaratário, lhe atribuiria; considera-se o real declaratário
nas condições concretas em que se encontra e tomam-se em conta os elementos que
ele conheceu efetivamente, mais os que uma pessoa razoável, quer dizer,
normalmente esclarecida, zelosa e sagaz, teria conhecido, e figura-se que ele
raciocinou sobre essas circunstâncias como o teria feito um declaratário razoável.

1.3. Posição adotada.


A doutrina preferível, de iure constituendo, para a generalidade dos negócios, é a doutrina da
impressão do destinatário. É a posição mais razoável. É a mais justa por ser a que dá tutela plena à
legítima confiança da pessoa em face de quem é emitida a declaração. Acresce – e por isso se justifica
a sua aplicação mesmo quando o declarante não teve culpa de exteriorizar um sentido diverso da sua

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vontade real – ser a posição mais conveniente, por ser largamente mais favorável à facilidade, à rapidez
e à segurança da vida jurídico-negocial. Com efeito, o CC define o tipo de sentido negocial decisivo
para a interpretação nos termos daquela posição objetivista (art. 236.º/1). Por conseguinte, releva o
sentido que seria considerado por uma pessoa normalmente diligente, sagaz e experiente em face dos
termos da declaração e de todas as circunstâncias situadas dentro do horizonte concreto do
declaratário, isto é, em face daquilo que o concreto destinatário da declaração conhecia e daquilo até
onde ele podia conhecer.
Analisemos por pontos:
 A prevalência do sentido correspondente à impressão do destinatário é objeto, na lei,
de uma limitação...
Em conformidade com o ponto de vista de LARENZ e FERRER CORREIA: para que tal
sentido possa relevar torna-se necessário que seja possível a sua imputação ao declarante,
isto é, que este pudesse razoavelmente contar com ele (art. 236.º/1 in fine). Neste sentido,
escreve FERRER CORREIA: “o declarante responde pelo sentido que a outra parte quer atribuir
à sua declaração, enquanto esse seja o sentido que ele próprio devia considerar acessível à
compreensão dela”; e continua “compreende-se que só seja justificado fazer responder o
declarante por um sentido que não deu à declaração, se esse sentido lhe era imputável”.
Todavia, note-se que esta limitação, pela exigência de imputabilidade ao declarante,
do critério objetivista é de alcance muito escasso, como nos esclarece L ARENZ. O significado
que o recetor da declaração atribui a esta, procedendo com a diligência adequada, é
praticamente sempre imputável ao declarante, se este tinha a consciência de estar a emitir uma
declaração negocial. Na verdade, ele tinha o ónus indeclinável de se exprimir de uma forma
compreensível para outrem; se se exprimiu de tal modo que a outra parte deva compreender
algo diverso do pretendido, o declarante tem de suportar esse risco, pois não cumpriu aquele
ónus. Assim, só excecionalmente, em casos raríssimos, a compreensão do recetor terá sido
decisivamente determinada através de uma circunstância só por ele reconhecível e insuscetível
de ser tomada em consideração pelo declarante. Por isso, como escreve L ARENZ, pode
prescindir-se, se houve consciência da declaração, de um exame caso a caso sobre se o
declarante podia razoavelmente contar com o significado que, segundo o critério legal, deve
ser entendido pelo declaratário. Quando houver um desses casos excecionais assim o terá de
provar quem o considere tal. Aliás, criticando a ressalva em debate, que entende só poder
destinar-se a resolver, por via interpretativa, o erro evidente ou a incapacidade acidental ou a
falta de consciência da declaração patentes, MENEZES CORDEIRO.
Por fim, note-se que não se verificando tal coincidência entre o sentido objetivo
correspondente à impressão do destinatário e um dos sentidos ainda imputáveis ao declarante,
a sanção parece ser a nulidade do negócio. Com efeito, esta solução leva vantagem sobre a
relevância do sentido subjetivo ou sobre a pretensão de aplicar analogicamente o artigo 237.º,
pois não há verdadeira analogia.

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 Sempre que o declaratário conheça a vontade real do declarante, é de acordo com ela
que vale a declaração emitida...
Em conformidade com o ditame falsa demonstratio non nocet (mas sem entorse ao
critério do nº 1), o artigo 236.º/2 estabelece que sempre que o declaratários conheça a vontade
real do declarante, é de acordo com ela que vale a declaração emitida. Neste caso, a vontade
real, podendo não coincidir com o sentido objetivo normal, correspondeu à impressão real do
destinatário concreto.
Além do mais, note-se que o sentido querido realmente pelo declarante releva, mesmo
quando a formulação seja ambígua ou inexata, se o declaratário conhecer este sentido (com
as limitações decorrentes, para os negócios formais, do artigo 238.º/2). Quer dizer: a
ambiguidade objetiva, ou até a inexatidão, da expressão externa não impedem a relevância da
vontade real, se o destinatário a conheceu. Houve coincidência de sentidos (o querido e o
compreendido), logo, este é o sentido decisivo.
 A interpretação abrange, igualmente, o problema de saber se há ou não uma
declaração negocial...
A resposta afirmativa tem lugar quando assim se concluir do ponto de vista de um
declaratário normal colocado na posição do declaratário real.
Em todo o caso, não há declaração negocial se falta a vontade de ação (art. 246.º).
Ora, pode duvidar-se se nesta hipótese (falta de consciência de declaração) estamos perante
um caso de inexistência da declaração, à semelhança do que sucede quando falta a vontade
de ação ou apenas se nos depara um caso de nulidade, acompanhado, eventualmente, de
responsabilidade civil.
A doutrina alemã discute muito a questão de saber se, para existência de uma
declaração negocial, se exige a consciência da declaração ou basta a imputabilidade da
declaração. O interesse prático do problema é o seguinte: se se exigir a consciência da
declaração, o declarante, faltando esta, pode invocar a invalidade do negócio, sem mais
requisitos; se não for necessária a consciência da declaração, bastando a imputabilidade desta,
o declarante, nessa hipótese, só pode arguir a anulabilidade, se se verificarem os pressupostos
de relevância do erro na declaração.
Entre nós, existe norma própria. A falta de consciência da declaração releva sempre,
sem mais, nos termos do artigo 246.º, não estando o declarante sujeito ao regime mais
rigoroso, para ele, de invocação do erro na declaração (art. 247.º).
 O Código não se pronuncia sobre o problema de saber quais as circunstâncias
atendíveis para a interpretação...
De acordo com o critério propugnado, quanto ao problema do tipo do sentido negocial
decisivo para a interpretação, também aqui se deverá operar com a hipótese de um declaratário
normal: serão atendíveis todos os coeficientes ou elementos que um declaratário

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medianamente instruído, diligente e sagaz, na posição do declaratário efetivo, teria tomado em


conta.
A título de exemplo, MANUEL DE ANDRADE referia os termos do negócio; os interesses
que nele estão em jogo; a finalidade prosseguida pelo declarante; as negociações prévias; as
precedentes relações negociais entre as partes; os hábitos do declarante; os usos da prática,
em matéria terminológica, ou de outra natureza que possa interessar, devendo prevalecer
sobre os usos gerais ou especiais. Ao lado destas circunstâncias, referidas a título de exemplo,
podem assinalar-se outras, cok RUI ALARCÃO, designadamente os modos de conduta por que,
posteriormente, se prestou observância ao negócio concluído.
 Quando a interpretação leve a um resultado duvidoso...
O problema deve ser resolvido nos termos do artigo 237.º: nos negócios gratuitos
prevalece o sentido menos gravoso para o disponente e, nos negócios onerosos, o que
conduzir ao maior equilíbrio das prestações. Este o único critério no Código, para a hipótese
de, no termo da atividade interpretativa, se nos deparar um resultado equívoco ou ambíguo 32.
Se, porém, a dúvida a que se chegar no termo do labor interpretativo for insanável, parece que
a declaração é ineficaz, por aplicação, ao menos analógica, artigo 224.º/3, solução que, aliás,
se enquadra na esteira de
HORSTER.
 Para os contratos de adesão...
Propugnava-se, na doutrina, o princípio de que, na dúvida, deve interpretar-se contra
stipulatorem, isto é, contra o autor das condições gerais preordenadas para uma multiplicidade
de contratos individuais.
Ora, o Decreto-Lei nº 446/85, que instituiu o regime das cláusulas contratuais gerais,
veio consagrar critérios de interpretação para as cláusulas ambíguas, adaptando-lhes o critério
da impressão do destinatário. Com efeito, a essas cláusulas gerais ambíguas é atribuído o
sentido que lhes daria o contratante indeterminado normal que se limitasse a subscrevê-las ou
aceitá-las, quando colocado na posição de aderente real, e, na dúvida, prevalece o sentido
mais favorável ao aderente.
Por fim, note-se que estes critérios que visam proteger o aderente não são, porém,
aplicáveis nas ações inibitórias. Caso contrário, cláusulas redigidas em termos ambíguos
poderiam deixar de ser proibidas apenas por virtude da aplicação da regra de interpretação
contra stipulatorem.

32 No sentido de que o artigo 237.º só é aplicável, com vista a um maior equilíbrio das prestações, quando se não
consiga um resultado seguro sobre a interpretação e o sentido permaneça, pois, duvidoso, o TRP.

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1.3.1. Desvios.
A doutrina preferível, em tese geral, quanto ao problema da hermenêutica negocial, sofre desvios
quanto a certos negócios.

Existem desvios quanto aos negócios gratuitos?


Não se verifica qualquer desvio à doutrina geral no respeitante ao negócios gratuitos inter vivos. Por um lado – e de lege ferenda
– é tão razoável a tutela das expetativas do declaratário nestes casos como nos contratos onerosos. Por outro – e de lege lata
– um argumento de ordem sistemática confirma essa solução: o artigo 237.º estabelece os critérios aplicáveis em caso de
dúvida sobre o sentido da declaração e refere-se expressamente aos negócios gratuitos; ora, é evidente que as dúvidas só
podem ser as resultantes da aplicação dos critérios de interpretação do artigo anterior, estando abrangidos, portanto, os
negócios gratuitos no campo de aplicação do artigo 236.º.

1.3.1.1. Num maior objetivismo – negócios solenes ou formais.


Quanto a estes, o sentido objetivo correspondente à impressão do destinatário, isto é, o sentido
correspondente à doutrina geral, não pode valer se não tiver um mínimo de correspondência, embora
imperfeita, no texto do respetivo documento (art. 238.º/1) – teoria da manifestação. Tal restrição,
acompanhando MANUEL DE ANDRADE, constitui “um corolário natural – se não mesmo inevitável – do
caráter solene destes negócios”.
Poderá, prima facie, surgir a dúvida sobre a possibilidade de uma divergência entre o sentido
correspondente à impressão do declaratário, tal como ficou definido e os sentidos objetivos possíveis
do documento, possibilidade que é pressuposta pelo artigo 238.º/1. Tal dúvida desfaz-se
imediatamente, desde que não se olvide que a doutrina da impressão do destinatário, jogando embora
com a hipótese de um declaratário normal, figura-o colocado na posição do declaratário concreto e
considera, como circunstâncias atendíveis na pesquisa do sentido negocial, certos elementos, já
aludidos exemplificativamente, exteriores ao documento.
Qual a consequência da inexistência de uma expressão, ainda que imperfeita, da impressão do
destinatário no texto do documento?
O artigo 238.º deixa a questão em aberto. Há quem propenda para a relevância do sentido objetivo
normal. Todavia, parece preferível a solução para a qual já se inclinava
MANUEL DE ANDRADE: a nulidade do negócio, em sede interpretativa. Como fundamento desta solução
formulamos o argumento de que o problema é, no fundo, um problema de vício de forma: o sentido
obtido, no plano da interpretação, isto é, o sentido correspondentes ao critério do artigo 236.º
(impressão do destinatário), não está formalizado. Ora, a sanção correspondente ao vício de forma é a
nulidade (art. 220.º).
Todavia, admite-se que um sentido não traduzido, rudimentarmente sequer, no respetivo documento,
possa valer, desde que se verifique um duplo condicionalismo: corresponder à vontade real e
concordante das partes, mesmo no caso de real impropriedade das expressões utilizadas (falsa
demonstratio non nocet); e não oposição a essa validade das razoes determinantes da forma do
negócio – assim, por exemplo, parece haver obstáculo insuperável, quando essas razões forem,

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predominantemente, razões de certeza ou segurança e quando estejam em causa interesses de


terceiros.

1.3.1.2. Num maior subjetivismo – disposições testamentárias.


Quanto ao caso das disposições testamentárias, consagra-se, quanto à sua interpretação, o sentido
subjetivo, com o limite do contexto do testamento (art. 2187.º/1) – a enunciar o critério interpretativo
dos testamentos, não apenas para as hipóteses em que o seu conteúdo seja obscuro ou equívoco,
mas para todos, assim se afastando o brocardo in claris non fit intepretatio.
Com efeito, o significado decisivo é o que o testador quis dizer, desde que se possa averiguar. Um
critério normativo de interpretação aponta aqui, diversamente dos negócios entre vivos, para a vontade
psicológica do testador: não há que tomar em consideração as possibilidades de conhecimento de um
destinatário como critério interpretativo, embora, depois da morte, o testamento se torne conhecido dos
interessados. Além do mais, o testar não contrai um vínculo em que outros se fiem: pode modificar ou
revogar o testamento até à sua morte. Assim, não há lugar para dar relevância a expetativas de outrem
a uma autorresponsabilidade do testador por deficiências na formulação das suas disposições. Na
pesquisa desta vontade o testador, é admitido o recurso à prova complementar ou extrínseca, isto é, a
elementos ou circunstâncias estranhas aos termos do testamento, fundadas em qualquer dos meios de
prova geralmente admitidos (art. 2187.º/2). Por conseguinte, recorre-se a todas as circunstâncias aptas
a permitir concluir qual o sentido da vontade real do testador, e não só àquelas que possam ser
conhecidas de determinadas pessoas. Pode atender-se a projetos anteriores se não se conclui que a
formalização significa uma modificação objetiva, a esclarecimentos orais ou escritos, devidamente
testemunhados, dados pelo testador a terceiras pessoas, às considerações em que se baseou, às
finalidades visadas, aos motivos, a anotações pessoas do testador nos seus papéis. Note-se que esta
possibilidade de recurso à prova extrínseca, e não apenas a elementos conhecidos ou cognoscíveis
por um declaratário razoável, só de per si, contradiz o ponto de vista de C ASTRO MENDES, segundo o
qual não é verdade que na nossa lei se dê à vontade real mais relevância no testamento do que em
outro negócio formal.
No entanto, exige-se que a vontade do testador, assim reconstituída, tenha um mínimo de
correspondência, ainda que imperfeita, no contexto (art. 2187.º/2). Esta limitação – representada pelo
teor do documento – é uma manifestação do caráter solene do negócio testamentário. Assim, no
assento de 19 de outubro de 1954, disse-se que a pesquisa da intenção do testador é matéria de facto,
tendo o STJ entendido que tal doutrina se mantém em vigor, mas, segundo o Acórdão do STJ de 26
de fevereiro de 1992, já é matéria de direito decidir se a vontade real apurada tem no testamento um
mínimo de correspondência, ainda que imperfeitamente expressa.
A questão: qual o exato âmbito de aplicação deste limite objetivo? A lei não dá qualquer indicação mais
precisa, quanto à relação que deve interceder entre a intenção testatória e o contexto do documento,
limitando-se a estatuir que não surtirá qualquer efeito a vontade do testador que não tenha no contexto
um mínimo de correspondência, ainda que imperfeitamente expressa. Assim, podem continuar a

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aceitar-se as ideias expendidas por MANUEL DE ANDRADE a este respeito, para o direito anterior, por não
se lhes opor o texto daquele 2187.º/2, antes, pelo contrário, as favorecer, na medida em que se contenta
com uma expressão ténue da intenção do testador no contexto do documento. Segundo essas ideias,
aliás correspondentes ao texto da disposição do anteprojeto, o sentido subjetivo, reconstituído através
de prova extrínseca, valerá, se o testador usou termos numa aceção pessoal, fora dos usos gerais da
língua, mas deu a entender isso mesmo no testamento ou usava habitualmente esses termos nessa
aceção anómala. Este o alcance da formulação de K RETSCHMAR que exige que a vontade do testador
tenha encontrado no documento uma expressão reconhecível do ponto de vista do testador.
Já aquele sentido subjetivo não valerá, em princípio, se o testador usou termos numa aceção
extravagante que estava fora dos seus próprios hábitos de linguagem ou incorreu em erro na
declaração. Nesta hipótese, a nulidade justifica-se pelas razões que estão ligadas à exigência de forma
nos testamentos. Não obstante, será de admitir que esta solução (nulidade) – conducente à sucessão
legítima, quando se trate uma instituição de herdeiro – sofra uma exceção. Concretizamos: admitir-se-
á a relevância do sentido subjetivo, quando, na própria letra do testamento – só por si ou conjugada,
talvez, com dados objetivos irrecusáveis (v.g.: não existir qualquer pessoa ou coisa com a identificação
ali dada ao instituído ou ao objeto legado) - seja patente a significação esotérica, não habitual ao
testador, dos termos empregues ou o erro na declaração (art. 2203.º).
A doutrina que, aliás já seguida pelo Código de Seabra, quanto ao erro na declaração, continua a
defender-se em face do artigo 2203.º, onde, preceituando-se acerca do erro na indicação da pessoa
do herdeiro ou do legatário ou dos bens, se remete para os resultados que se venham a alcançar em
sede de interpretação do testamento. Será preciso, portanto, que a vontade do testador tenha um
mínimo de correspondência, ainda que imperfeita, no teor do testamento (art. 2187.º/2). Ora, as
considerações desenvolvidas no texto mais não visam do que dar alguma caracterização a essa
exigência de um mínimo de correspondência, ainda que imperfeitamente expressa.
Quer dizer: o erro na declaração não pode ser corrigido por via interpretativa, de maneira a dar
relevância à vontade real do testador, salvo se esta for indiciada pela letra do documento, só por si ou
conjugada com algum dado objetivo irrecusável. De outro modo, provado embora o erro na declaração
e a própria vontade real, o testamento será nulo. É o preço da exigência da forma – com LANGE, “a
interpretação não pode transformar uma disposição de última vontade explícita noutra de sentido
contrário”33.
A questão: qual a justificação do princípio subjetivista em matéria de interpretação do testamento? De
iure condendo, apontam-se como fundamento de tal solução, considerações de respeito semirreligioso
pela vontade dos mortos e de conveniência social transcendente em que essa vontade seja cumprida.
Entende-se, igualmente, que se deve ponderar a circunstância de não se verificarem, quanto aos

33 V.g.: X dispôs, no testamento, que tivesse lugar a sucessão legítima, na convicção de que, assim, excluiria os
descendentes dos seus meios irmãos. Ora, admitiu-se somente impugnação do testamento por erro, mas não
admitiu uma interpretação segundo a vontade real.

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testamentos, por não serem negócios de realização do tráfico normal de bens, as razões de interesse
geral que impeliram à consagração das doutrinas objetivistas, no problema da interpretação, e das
declarativistas, no problema do dissídio entre a vontade e a declaração. De facto, historicamente, houve
um trânsito do subjetivismo e do voluntarismo, estreitamente ligados ao individualismo, para o
objetivismo e para as doutrinas da declaração, sob a influência do relevo atribuído aos interesses gerais
da contratação, sobretudo no século XX. Ora, sendo o testamento um negócio fora do comércio jurídico,
compreende-se que tenha permanecido estranho a essa evolução que só é justificada para os negócios
patrimoniais inter vivos (abrangendo as doações), por só quanto a eles ter especial acuidade a
consideração das justas expetativas dos declaratários e dos interesses na celeridade e segurança do
tráfico de bens. De iure condito, os artigos 2187.º e 2203.º e ss.

2. Integração.

A questão: qual a regulamentação das questões não previstas pelas partes, ao proverem à elaboração
do ordenamento negocial das suas relações?
A esta pergunta, respondem os critérios previstos no CC para a integração dos negócios jurídicos, a
que por vezes também se dá o nome de interpretação complementadora e que o STJ considerou já ser
questão de direito.

2.1. Termos em que pode admitir-se.


O critério a utilizar-se para o efeito de realizar a integração dos negócios jurídicos lacunosos é
enunciado no artigo 239.º. Com efeito, ressalva-se a hipótese de existir disposição especial, como será
o caso sempre haja disposição supletiva aplicável, diretamente ou por analogia.
Na falta de disposição supletiva que possa aplicar-se, o artigo 239.º remete para a vontade hipotética
ou conjetural das partes. Com efeito, o CC considera que a integração deve ser determinada para cada
negócio e não, genericamente, para os vários tipos de negócios, como aconteceria se mandasse
colmatar as lacunas negociais pelo recurso aos usos (solução que era dada pelo Código de Seabra),
consagrando, assim, uma solução plenamente de acordo com a ideia de que o negócio jurídico é, em
princípio, lex privata das partes. No obstante, é evidente que o juiz, na atividade de reconstituição da
vontade conjetural das partes, será muitas vezes remetido para as cláusulas usuais não desconformes
com as restantes estipulações negociais.
Ora, hão-de considerar-se circunstâncias que dão ao contrato concretamente celebrado a sua
individualidade e não as características de tipo contratual. A regulamentação de um contrato
semelhante é a que resulta das normas supletivas; a integração, para além das normas supletivas, é
necessária nos casos em que o contrato não está plena e completamente tipicizado ou se afasta dos
tipificados em pontos que a regulamentação legal se não adapte ao contrato.
Todavia, estabelece-se que o juiz se deverá afastar da vontade hipotética ou conjetural das partes
quando a solução que estas teriam estipulado contrarie os ditames da boa fé; neste caso, deve a

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Davide Rodrigues 2016/2017 Primeira Turma

declaração ser integrada de acordo com as referidas exigências da boa fé, isto é, de acordo com o que
corresponda à justiça contratual (ao que as partes devem querer agora e não propriamente ao que
deveriam ter querido).
Assim, deve a intervenção corretiva dos ditames da boa fé no problema da integração verifica-se,
afastando a vontade hipotética ou conjetural das partes, por força do artigo 239.º; deve, também,
admitir-se, todavia, que as próprias normas supletivas poderão, em casos excecionais, não se aplicar,
por contrariarem o comando da boa fé, solução que, em face do CC, encontrará fundamento na cláusula
geral do artigo 334.º.
A doutrina nacional ensina que as disposições supletivas não deixam de aplicar-se, mesmo quando se
patenteie que as partes, se tivessem pensado no ponto respetivo, provavelmente as teriam excluído.
Tal solução é de aplaudir, pois, não raramente, tem-se em vista, com as normas dispositivas, aproveitar
o silêncio das partes para estatuir o regime mais conforme aos interesses gerais da sociedade.
O problema da prioridade do direito supletivo ou da vontade hipotética tem de resolverse, salvo casos
muito excecionais, dando prioridade ao direito supletivo 34 . Porém, é perfeitamente possível que,
nalguns casos, o contraste entre o preceito legal supletivo e a vontade hipotética das partes atinja os
extremos que justificam a aplicação do artigo 334.º (abuso do direito que se quer exercer, mediante a
invocação da norma supletiva contrária à vontade hipotética das partes).
Por fim, note-se que a integração negocial tem limites. Deve atender-se à regulamentação
concretamente estipulada e devemos situar-nos no círculo por ela delimitado, isto é, considerar o que
um contraente honesto e razoável há-de admitir como exigido pelo contrato. Com efeito, não pode
proceder-se na integração como se se estivesse a aplicar uma norma estranha ao contrato. Certos
problemas, mesmo que seja evidente a prova da vontade hipotética das partes, a partir da finalidade e
da conexão dos significados manifestados na regulamentação contratual, não podem ser equacionados
e resolvidos em sede de integração negocial. Designadamente, não pode a integração conduzir a uma
ampliação do objeto negocial, que foi pretendido pelas partes.

DIVISÃO III – A DIVERGÊNCIA ENTRE A VONTADE E A DECLARAÇÃO

1. O problema em geral.
1.1. Formas possíveis de divergência.
1.1.1. Divergência intencional.
1.1.2. Divergência não intencional.
1.2. A autonomia do problema e o seu substrato teleológico.

34 EUGEN BUCHER propõe um critério interessante, mas pouco exequível, e, entre nós, conta legem: se a norma
supletiva tem um conteúdo de ordenação material prefere; se visa exprimir a vontade presumível das partes, então
prefere a vontade hipotética referida ao caso concreto.

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1.3. Teorias que visam resolver o problema.


1.4. Apreciação do problema de iure condendo.
1.5. Apreciação do problema de iure condito.
2. Divergência intencional.
2.1. Simulação.
2.2. Reserva mental.
2.3. Declaração não séria.
3. Divergência não intencional.
3.1. Coação física ou coação absoluta ou ablativa.
3.2. Falta de consciência da declaração.
3.3. Erro na declaração ou erro-obstáculo.
3.3.1. A solução em geral.
3.3.2. Hipóteses especiais.
3.4. Erro na transmissão da declaração.

DIVISÃO III – A DIVERGÊNCIA ENTRE A VONTADE E A DECLARAÇÃO

1. O problema em geral.

1.1. Formas possíveis de divergência.


Normalmente, o elemento interno (a vontade) e o elemento externo da declaração negocial (declaração
propriamente dita) coincidirão. Com efeito, existe uma efetiva autodeterminação de efeitos jurídicos
pelo autor da declaração, se a vontade se formou sobre uma motivação conforme com a realidade e
com liberdade.
Contudo, pode verificar-se uma divergência entre esses dois elementos da declaração negocial. A
normal relação de concordância entre a vontade e a declaração (sentido objetivo) é afastada em certos
casos anómalos. À relação normal de concordância substitui-se uma relação patológica. Estamos
perante um vício na formulação da vontade35.
Este dissídio entre a vontade real e a declaração, entre o querido e o declarado, pode ser intencional
ou não intencional. Estamos perante uma divergência intencional quando o declarante emite,
consciente e livremente, uma declaração com um sentido objetivo diverso da sua vontade real – quando
a divergência é, portanto, voluntária. Estamos perante uma divergência não intencional, quando o
dissídio em apreço é involuntário – involuntário, porque o declarante se não apercebe da divergência
ou porque é forçado irresistivelmente a emitir uma declaração divergente do seu real intento.

35 Enquanto nos vícios da vontade (erro-vício, dolo, coação) se nos depara vício na formação da vontade.

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1.1.1. Divergência intencional.


I. Simulação;
O declarante emite uma declaração não coincidente com a sua vontade real, por
força de um conluio com o declaratário, com a intenção de enganar terceiros.
II. Reserva mental;
O declarante emite uma declaração não coincidente com a sua vontade real, sem
qualquer conluio com o declaratário, visando precisamente enganar este.
III. Declarações não sérias.
O declarante emite uma declaração não coincidente com a sua vontade real, mas
sem intuito de enganar qualquer pessoa (declaratário ou terceiros). O autor da declaração
está convencido de que o declaratário se apercebe do conteúdo não sério da declaração.

1.1.2. Divergência não intencional. I. Erro-obstáculo ou na


declaração;
O declarante emite a declaração divergente da vontade real, sem ter consciência
dessa falta de coincidência. Trata-se de um lapso, de um engano, de um equívoco.
II. Falta de consciência da declaração;
O declarante emite uma declaração, sem sequer ter a consciência (a vontade) de
fazer uma declaração negocial, podendo até faltar completamente a vontade de agir.
III. Coação física ou violência absoluta.
O declarante é transformado num autómato, sendo forçado a dizer ou escrever o
que não quer, não através de uma mera ameaça, mas por força do emprego de uma força
física irresistível que o instrumentaliza e leva a adotar o comportamento.

1.2. A autonomia do problema e o seu substrato teleológico.


Existindo uma divergência entre a vontade real e o sentido objetivo da declaração, podem levantar-se
dois problemas.
 O problema de saber se o negócio jurídico poderá, apesar disso, valer com o sentido
correspondente à declaração real – estamos perante um problema de interpretação dos
negócios jurídicos, de fixação do sentido e alcance com que o negócio deve valer; é o problema
da relevância positiva da vontade real em caso de desacordo entre esta e a declaração;
 O problema de saber se o dissídio entre o querido e o declarado dá origem à invalidade do
negócio jurídico – este problema só se refere se, perante o problema da interpretação dos
negócios jurídicos, não aderirmos a uma posição que atribui exclusivamente relevância à
vontade real, isto é, se, em sede interpretativa, optarmos por um sentido objetivo; abrir-se-á,
então, o problema autónomo da divergência entre a vontade e a declaração, ou seja, o

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problema de saber se a declaração não virá a ficar desprovida de efeitos em virtude de não
coincidir com a vontade real; é o problema da relevância negativa da divergência entre a
vontade e a declaração36.

Para determinarmos a solução mais razoável do problema da divergência entre a vontade e a


declaração, isto é, para solucionarmos o problema de iure condendo, importa conhecer o seu substrato
teleológico, importa desenhar o esquema dos interesses em jogo.
Numa hipótese de declaração de A a B, divergente da real vontade do declarante, surge-nos o
interesse do autor da declaração que reclama, em nome da autonomia da vontade, a mais ampla
possibilidade de anulação do negócio, a não poder este valer com o sentido correspondente à vontade
real. O interesse do declarante aponta para uma não vinculação deste ao sentido objetivo da
declaração, não coincidente com a sua vontade real, e, consequentemente, aponta para a invalidade
do negócio. A autodeterminação, sendo o negócio jurídico um ato de comunicação social humana, um
ato de cooperação, tem, porém, como correlato a autorresponsabilidade.
O interesse do declaratário aponta, em nome da tutela da confiança, para a irrelevância da
divergência entre o querido e o declarado. Reclama, pois, o interesse da contraparte a proteção das
suas legítimas expetativas, ligadas ao sentido objetivo da declaração e assentes no desconhecimento
da divergência. Sobre a confiança na celebração de um negócio válido, em termos correspondentes ao
sentido objetivo da declaração, já o declaratário 37 edificou, porventura, um programa de vida. A
proteção da confiança do declaratário e a autorresponsabilidade do declarante são o verso e o reverso
da mesma medalha.
Ao lado dos interesses do declarante e do declaratário, e no sentido do interesse de cada um destes,
concorrem os interesses privados daqueles terceiros que do declarante ou do declaratário derivam
direitos ou relativamente a eles os adquiriram.
Para além destes interesses individuais, relevam também os interesses gerais do comércio jurídico (do
tráfico jurídico), a reclamarem um regime que assegure a segurança, a fluência e a celeridade da
contratação, e que, portanto, apontam para uma disciplina que tome em conta as legítimas expetativas
do declaratário, protegendo a sua boa fé (desconhecimento ou não cognoscibilidade da divergência).
A validade do negócio e a produção dos efeitos correspondentes ao sentido objetivo da declaração são
as soluções mais favoráveis a estes interesses gerais.

36 Quando existem perturbações da declaração negocial, não está a ser realizada a dupla função da autonomia
privada: reconhecimento da liberdade no desenvolvimento da personalidade; mecanismo de garantia de justeza
(ou, pelo menos, de presunção de correção) do resultado.
37 No negócios não receptícios, não há rigorosamente declaratário; é de equiparar ao declaratário, nas declarações
não receptícias entre-vivos – nas declarações to whom it may concern – aquele a quem a declaração interesse,
ou melhor, o destinatário dos efeitos.

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1.3. Teorias que visam resolver o problema.


Vamos expor estas teorias por ordem cronológica da sua formulação e segundo a
progressivamente maior atenção dada, por força das exigências do desenvolvimento da vida
económica, às expetativas dos declaratários e aos interesses gerais da segurança, facilidade e rapidez
das trocas.
I. Teoria da vontade;
(SAVIGNY, WINDSCHIED, ZITELMAN e UNGER)

Propugna a invalidade do negócio, desde que se verifique uma divergência entre a


vontade e a declaração e sem necessidade de mais requisitos. II. Teoria da culpa in
contrahendo;
(IHERING38)

Parte da teoria da vontade, mas acrescenta-lhe a obrigação de indemnizar a cargo


do declarante, uma vez anulado o negócio com fundamento na divergência, se houve dolo
ou culpa deste no dissídio entre a vontade e a declaração e houve boa fé por parte do
declaratário; a indemnização visa cobrir o chamado interesse contratual negativo ou
interesse da confiança, isto é, visa repor o declaratário, lesado com a invalidade, na
situação em que estaria se não tivesse chegado a concluir o negócio.
III. Teoria da responsabilidade;
Assenta na mesma ideia da teoria anterior, com a simples diferença de, em caso
de dolo ou culpa do declarante, e estando de boa fé o declaratário, o negócio ser válido;
dá-se mais atenção ao argumento da necessidade de proteger a confiança, por se
considerar, com justeza, insuficiente a tutela concedida pela teoria da culpa in contrahendo;
começa a aceitar-se, assim, a ideia de ser legítimo que um declarante responda pela
aparência exterior da sua vontade, como se tivesse querido esse sentido aparente.
IV. Teoria da declaração;
Enquanto a teoria da vontade arranca da consideração de que a essência do
negócio está apenas na vontade do declarante (dogma da vontade), a teoria da declaração,
embora de modo diverso, em conformidade com as suas modalidades, dá relevo
fundamental à declaração, ou seja, ao que foi exteriormente manifestado.
Comporta diversas modalidades. Vejamos.
A modalidade primitiva e extrema, característica dos direitos formalistas, onde se
consagra uma adesão rígida à expressão literal – se a forma ritual foi observada, produzem-
se certos efeitos, mesmo que não tenham sido queridos.
As modalidades moderas e atenuadas, em particular a teoria da confiança

38 Nas palavras do Autor: “a injustiça e o desconsolo prático de um tal resultado é evidente: a parte culposa fica
livre, a inocente é vítima da culpa alheia!”.

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– a divergência entre a vontade real e o sentido objetivo da declaração, isto é, o


que um declaratário normal lhe atribuiria, só produz a invalidade do negócio, se for
conhecida ou cognoscível do declaratário. Outra solução declarativistas – doutrina da
aparência eficaz – subscreve os resultados da doutrina da confiança, mas limita-a,
propugnando a invalidade, também, para a hipótese de o declaratário, não se apercebendo
do dissídio entre a vontade real e o sentido objetivo, ter, todavia, compreendido um terceiro
sentido; quer dizer, a validade do sentido objetivo só será de aceitar, em vez da invalidade,
se o declaratário confiou efetivamente nesse sentido.

1.4. Apreciação do problema de iure condendo.


O problema da divergência entre a vontade e a declaração não consistem em determinar um princípio
que se aplique, de forma idêntica, às várias modalidades da divergência. Com efeito, não é possível
uma opção rígida por um dos lados da dicotomia ou por qualquer outra das teorias enunciadas.
Proceder deste modo seria afastar-se das perspetivas metodológicas hoje indiscutíveis, como são as
de cariz teleológico – seria um regresso ao conceitualismo.
Com efeito, há diferenças entre as soluções específicas das várias modalidades de divergência. Não
sendo, portanto, idênticas as soluções mais razoáveis, específicas de cada uma das várias formas de
dissídio entre o querido e o declarado, a apreciação do problema, em tese geral, significa, apenas, a
tentativa de formulação de uma diretriz, de uma tendência, de uma ideia básica determinante do sentido
que deve presidir à solução do problema posto por cada uma das possíveis variantes da divergência
entre a vontade e a declaração. Por fim, esclarecido o significado do problema, pode proclamar-se a
opção pelas modernas modalidades da doutrina da declaração, mais precisamente pela teoria da
confiança, com a limitação correspondente à doutrina da aparência eficaz. É a solução mais justa e
mais conforme aos interesses gerais do tráfico. Há que dar relevo predominante, se declarante e
declaratário não passíveis de juízo de censura, ao pensamento da proteção da confiança e aos
interesses do tráfico.

1.5. Apreciação do problema de iure condito.


Como não é razoável um critério uniforme ou rígido, mas se impõe uma orientação maleável, o
problema é sobretudo um problema de direito positivo.
O CC não contém uma norma que resolva, em geral, o problema da divergência entre a vontade e a
declaração. As soluções, dadas a cada uma faz formas que esta divergência reveste (arts. 245.º, 246.º
e 247.º), mostram estar subjacente ao sistema do atual Código uma solução declarativista 39.

39 Os negócios jurídicos com mais de dois sujeitos (contratos plurilaterais, como o contrato de sociedade ou a
cessão da posição contratual) apresentam alguma especificidade: os requisitos de cognoscibilidade têm de se
verificar em relação a todos os destinatários da declaração viciada. Discorda-se, pois, de FLUME quando diz não

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2. Divergência intencional.

2.1. A simulação.
O conceito de negócio simulado está explicitamente formulado no artigo 240.º/1. Não obstante,
ORLANDO DE CARVALHO define o instituto nos seguintes termos: simular, juridicamente, significa
apresentar alguma coisa que não é; a simulação negocial consistem em aparentar um negócio que não
existe, quer sob as roupagens do ato simulado se oculte um negócio diferente quer não se oculte coisa
nenhuma.
Em correspondência com a orientação da doutrina tradicional, os elementos integradores do
conceito, referidos na disposição, são: a intencionalidade da divergência entre a vontade e a
declaração; o acordo entre o declarante e declaratário (acordo simulatório), o que não exclui a
possibilidade de simulação nos negócios unilaterais; e o intuito de enganar terceiros, qualificando-se o
ato como simulado, ainda que se verifique um erro sobre a necessidade da simulação para conseguir
os objetivos visados.
Trata-se de um instituto com grande importância prática, sobretudo, devido à frequência da sua
verificação e à complexidade da problemática.

2.1.1. Modalidades da simulação.


 Simulação inocente versus simulação fraudulenta;
Esta distinção é aludida no artigo 241.º/1 in fine, revelando a mesma disposição legal
o escasso interesse civilístico da referida dicotomia (art. 242.º/2).
Assim, a simulação é inocente se houve o mero intuito de enganar terceiros, sem os
prejudicar (animus decipiendi) e é fraudulenta, se houve o intuito de prejudicar terceiros
ilicitamente ou de contornar qualquer norma da lei (animus nocendi).
Deparamo-nos com exemplos de simulação fraudulenta nos seguintes casos:
venda fantástica, efetuada pelo devedor a um comprador fictício para prejudicar os seus
credores; venda aparente que disfarça uma real doação para prejudicar os herdeiros
legitimários ou a Fazenda Nacional, ou para contornar a norma do artigo 953.º; a venda de
imóveis simulando um preço inferior ao preço real para prejudicar a Fazenda Nacional ou
simulando um preço superior ao real para prejudicar um preferente; a doação aparente que
disfarça uma venda real para prejudicar o exercício de um direito de preferência; a declaração
num documento de mútuo de um capital mutuado superior ao real para o mutuante poder
cobrar um juro superior ao legal.

serem atendíveis os vícios nas declarações constitutivas de uma pessoa coletiva ou de adesão a ela, ou nas
deliberações de aumento de capital.

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A simulação inocente é rara. Podem afigurar-se, por exemplo, doações simuladas com
um fim de ostentação, vendas aparente em vez das reais doações para não incorrer o doador
no ressentimento de pessoas que aspiravam à sucessão do doador, embora não sejam
herdeiros legitimários.
 Simulação absoluta versus simulação relativa;
Na primeira, as partes fingem celebrar um negócio jurídico e na realidade não querem
nenhum negócio jurídico. Há apenas o negócio simulado e, por detrás dele, nada mais (colorem
habet, substantiam vero nullam).
Na simulação relativa, as partes fingem celebrar um certo negócio jurídico e na
realidade querem um outro negócio jurídico de tipo ou conteúdo diverso. Por detrás do negócio
simulado, ou aparente, fictício ou ostensivo, há um negócio dissimulado, ou real, latente ou
oculto (colorem habet, substantiam bero alteram).
A distinção entre simulação absoluta e simulação relativa tem a importância derivada
de esta última gerar um problema solucionado pelo artigo 241.º/2.
Ora, a simulação relativa manifesta-se em espécies diversas consoante o elemento do
negócio dissimulado a que se refere (simulação subjetiva ou dos sujeitos e simulação objetiva
ou sobre o conteúdo do negócio).
o Simulação subjetiva;
Podem ser simulados, desde logo, os sujeitos do negócio jurídico, mais
frequentemente, um apenas.
É o que se verifica com a interposição fictícia de pessoas: A, pretendendo dar
um prédio a B, finge doar a C para este posteriormente doar a B, intervindo um conluio
entre os três – por exemplo, para contornar uma norma legal que proíba a doação de
A a B (arts. 953.º e 2196.º). Pode, igualmente, a simulação consistir na supressão de
um sujeito real: fez-se uma venda de A a B e outra de B a C, mas para pagar apenas
uma sisa, três sujeitos concordam em documentar na escritura pública apenas uma
venda de A a C.
No entanto, a interposição fictícia de pessoas não deve confundir-se com a
interposição real. Na primeira, há um conluio entre os dois sujeitos reais da operação
e o interposto – o testa de ferro. Na segunda, o interposto atua em nome próprio, mas
no interesse e por conta de outrem, por força de um acordo entre ele e um só dos
sujeitos. Nesta hipótese, não existe um conluio entre os três sujeitos. Na verdade, não
se nos apresenta uma simulação40, mas um mandato sem representação (art. 1180.º),
não havendo simulação mesmo que a contraparte saiba que o interposto contrata por

40 Pode, todavia, na interposição real existir um negócio em fraude à lei.

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conta de outrem, embora em nome próprio. Com efeito, para haver simulação, é
necessária a existência de um conluio entre os três sujeitos.
Por fim, note-se que também se pode fazer a distinção entre as duas figuras
não por referência ao facto de existir ou não um conluio entre os três intervenientes,
mas através do facto de o interposto ser parte verdadeira ou parte aparente num
determinado negócio. Com efeito, VAZ SERRA adverte para o facto de poder haver
interposição fictícia, mas não haver simulação se, porventura, não existir acordo com
a outra parte. É o que acontece se determinada pessoa intervém na conclusão do
negócio, declarando ser parte nele, mas sem vontade de que os efeitos se produzam
na sua esfera jurídica e sem haver acordo entre ela e a outra parte nesse sentido, não
há simulação, mas reserva mental.
o Simulação objetiva;
 Simulação sobre a natureza do negócio;
Se o negócio ostensivo ou simulado de uma alteração do tipo negocial
correspondente ao negócio dissimulado ou oculto; por exemplo, finge-se uma
venda e quer-se uma doação ou vice-versa41.
 Simulação de valor.
Incide sobre o quantum de prestações estipuladas entre as partes. É
fundamentalmente – mas não só – o caso da simulação de preço na compra e
venda, fingindo-se um preço superior ou inferior ao preço real.

2.1.2. Efeitos da simulação.

2.1.2.1. Efeitos da simulação absoluta.


A simulação importa a nulidade do negócio simulado (art. 240.º/2)42. Nem outra solução seria razoável:
não há que tomar em conta quaisquer expetativas do declaratário, pois este interveio no pactum
simulationis. Só os interesses de terceiros de boa fé que tenham confiado na validade do negócio
simulado exigem ponderação, mas o tratamento daqueles interesses não exige mais do que a

41 Diversamente do que acontece na simulação, no negócio indireto, as partes querem realmente o que
declaram, embora prosseguindo um fim ulterior, autónomo em relação ao tipo de negócio adotado. O negócio
indireto é um negócio cujos efeitos efeitos são queridos pelas partes, mas que é celebrado para desempenhar
uma função que não corresponde àquela que a lei lhe atribui. Ora, o negócio indireto será nulo quando
consubstancie fraude à lei, isto é, quando as partes alcancem através de um resultado juridicamente proibido.
42 Esta solução está em conformidade com a regra de interpretação segundo a vontade real, quando houve
conhecimento desta vontade pela contraparte. Com efeito, na simulação, as partes sabiam que o objetivamente
declarado não se destinava a valer.

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inoponibilidade, em relação aos seus titulares, da nulidade e não vai ao ponto de reclamar para a
situação a forma menos grave de invalidade: a anulabilidade.
De acordo com o respetivo regime geral, pode qualquer interessado invoca a nulidade e o tribunal pode
declará-la oficiosamente (art. 286.º). Na sequência do regime fixado, no Código de Seabra, o artigo
242.º do CC manteve o reconhecimento aos próprios simuladores da legitimidade para arguir a nulidade
do ato simulado, ainda que a simulação seja fraudulenta.
A simulação pode ser deduzida tanto por via de ação como por via de exceção. A lei não o diz
expressamente, a propósito da simulação, mas é óbvio que quaisquer nulidades ou anulabilidades
podem ser deduzidas por ambas as vias (art. 287.º/2). Como todas as nulidades, a invalidade dos
negócios simulados pode ser arguida a todo o tempo (art. 286.º), quer o negócio não esteja cumprido,
quer tenha tido lugar o seu cumprimento.

A simulação e a usucapião...

A inexistência de um prazo de caducidade para a ação tendente à declaração de nulidade não impede que, na
hipótese de nulidade, os efeitos práticos da invalidade, maxime a restituição de qualquer objeto alienado, sejam precludido
pelos efeitos da usucapião.
Todavia, no caso particular da simulação não poderá haver, em regra, usucapião, pois o simulado adquirente é um
possuidor em nome alheio ou, na terminologia da lei, um detentor ou possuidor precário (art. 1253.º/c)), não podendo adquirir
por aquele modo, salvo achando-se invertido o título da posse (art. 1290.º), mas começando o tempo necessário para a
usucapião.

2.1.2.2. Efeitos da simulação relativa.


O negócio simulado está ferido de nulidade, tal como na simulação absoluta. Todavia, a simulação
relativa põe um problema específico que não surgia na simulação absoluta: quid iuris, quanto ao
negócio dissimulado? Sanciona-se, a este respeito, a solução correspondente à orientação tradicional:
o negócio real será objeto do tratamento jurídico que lhe caberia se tivesse sido concluído sem
dissimulação (art. 241.º). Nestes termos, poderá o negócio latente ser plenamente válido e eficaz ou
poderá ser inválido, consoante as consequências que teriam lugar, se tivesse sido abertamente
concluído.
 Simulação em prejuízo da Fazenda Nacional;
Atualmente, tendo em conta o artigo 39.º da LGT, segundo o qual, em caso de
simulação, a tributação recai sobre o negócio real e não sobre o simulado, dependendo, porém,
a tributação de negócio real que conste de documento autêntico, de decisão judicial a declarar
a sua nulidade. Há ainda que ter em conta as disposições que permitem ao Estado, às
autarquias locais e demais pessoas coletivas de direito público, representados pelo MP, preferir
na venda de imóveis e no trespasse de estabelecimentos, quando, por simulação de preço, o
imposto devido tiver sido liquidado por valor inferior, desde que provem que o valor por que
deveria ter sido liquidado excede, em pelo menos 30% ou 5000 € o valor sobre que incidiu.

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 Efeitos da simulação quanto aos negócios formais;


Os problemas suscitados pela aplicação aos negócios formais da doutrina geral da
simulação relativa encontram a sua resposta no artigo 241.º/2. Resulta desta disposição que,
se não se cumpriram, no negócio simulado, os requisitos de forma exigidos para o dissimulado,
este será nulo por vício de forma, mesmo que se tenham observado as formalidades exigidas
para o negócio aparente (por exemplo, doação de móveis, sem tradição da coisa, disfarçada
de venda verbal, artigo 947.º/2).
Para a validade do negócio real, torna-se necessária a observância do formalismo que,
para ele, exige a lei, mesmo que tal forma não seja suficiente para o negócio aparente (a favor
da desnecessidade de um formalismo bastante para o negócio aparente, pode invocar-se um
argumento a silentio do artigo 241.º/2). Por conseguinte, haverá um negócio latente válido, se
as partes fizeram constar as declarações, que integram o seu núcleo essencial, de uma
contradeclaração (escrito de reserva ou de ressalva) com os requisitos formais exigidos para o
negócio.
A questão: e se não existe uma contradeclaração, sendo certo, todavia, que o tipo de
formalismo exigido para o negócio dissimulado foi observado, embora do documento conste o
negócio aparente e não o ato oculto?
O legislador procurou responder a esta questão através do artigo 241.º/2. No entanto,
o entendimento desta disposição tem suscitado divergências, para casos de simulação sobre
a natureza do negócio – designadamente, para a hipótese de dissimulação de uma doação de
imóveis sob uma venda e vice-versa. Um setor, ainda hoje maioritário, entende que o negócio
é nulo por vício de forma de não existir uma contradeclaração com a forma legalmente exigida.
Com efeito, é esta a posição que prevalece na doutrina alemã (L ARENZ/W OLF), considerando,
que a não ser seguida, ficaria excessivamente facilitada a fraude às exigências de forma. No
entanto, também há quem, considerando que a razão de exigência de forma não abrange a
causa da transmissão (o facto de esta se dar a título de doação ou de venda), admite a validade
formal da venda ou da doação ocultas, apesar de apenas constarem do documento autêntico,
respetivamente, a doação ou a venda aparentes (dispensando, portanto, a existência de uma
contradeclaração formalmente bastante) - este era o entendimento de MANUEL DE ANDRADE.
Para MENEZES CORDEIRO, será aplicável, por analogia, o disposto no artigo 238.º, tendo de
haver um mínimo de correspondência do negócio dissimulado no texto do documento. Por fim,
note-se que a jurisprudência nacional parece hoje inclinar-se para o sentido menos exigente
quanto à forma do negócio dissimulado.
Do artigo 241.º/2 parece resultar a solução da nulidade do negócio dissimulado, tal
como preconizada por BELEZA DOS SANTOS e reconhecida pelo Assento de 23 de julho de 1952,
repudiando a solução sustentada por MANUEL DE ANDRADE e constante do Anteprojeto, segundo
a qual o negócio dissimulado não devia ser nulo, se as razões que estão na base da exigência
da sua forma ficaram satisfeitas com a observância das solenidades próprias do negócio

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simulado. Isto, certamente, para consagrar um critério que, embora menos maleável e
adaptável às diversas hipóteses, oferece, como todo o ius strictum, maior segurança na sua
aplicação.
Ora, a favor da consagração no Código de 1966, da doutrina do Assento, podem
invocar-se: um argumento tirado dos trabalhos preparatórios – a alteração da formulação
proposta no Anteprojeto; um argumento a silentio, na medida em que a lei estabelece que o
negócio dissimulado só é válido, se for observada a forma exigida e nada diz para a hipótese
de as razões do formalismo do negócio dissimulado se acharem satisfeitas com a observância
das solenidades do negócio simulado; um argumento racional, extraído da ratio dos preceitos
que exigem uma certa forma para o negócio dissimulado – trata-se de preceitos que visam
finalidades específicas, sendo, pelo menos, duvidoso que elas estejam plenamente alcançadas
com a simples observância das solenidades do negócio simulado. Quer dizer: o negócio
simulado é nulo por simulação; o negócio dissimulado é nulo por vício de forma. Além do mais,
pode-se ainda argumentar com a circunstância de a exigência de escritura pública não visar
apenas dar a conhecer com certeza plena a transmissão dos bens, mas também a causa da
transmissão – a solução contrária, em que se situam PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, permite,
aliás, provar uma doação de imóveis sem atender às exigências de certeza que a lei considerou
necessárias, possibilitando inclusivamente que, onde houve uma simulação absoluta (venda
fantástica), o pseudo-comprador venha a alegar e provar uma doação dissimulada na realidade
inexistente. A favor desta solução, repare-se que o princípio falsa demonstratio non nocet só
vale, no nosso direito, quando as razões determinantes da forma se não oponham (art. 238.º/2).
Neste sentido, note-se que a divergência quanto à validade formal do negócio dissimulado
parece ligar-se também a um entendimento diverso da razão de exigência legal da forma:
enquanto alguns entendem que do documento tem de constar, sob pena de nulidade, se a
transmissão de dá a título de doação ou de venda, outros consideram que tal menção não é
indispensável. Por fim, outro argumento é o de que o entendimento que exige a observância
dos requisitos de forma para o negócio dissimulado deixa o campo de aplicação dessa norma
muito limitado, nos casos em que é exigido documento autêntico, de tal forma que o negócio
raramente valerá. No entanto, não parece que as exigências subjacentes às disposições legais
que exigem determinada forma possam ser postergadas em nome, simplesmente, da maior
aplicabilidade desse artigo 241.º/2, se a valoração do legislador tiver sido no sentido de exigir
uma determinada forma, abrangendo a causa da transmissão.
Por fim, note-se que doutrina exposta é a que vale para a simulação de pessoas ou
para simulação sobre a natureza do negócio. Quanto à simulação de preço, quer o preço
declarado seja maior, quer seja menor que o preço real, não há obstáculo de natureza formal
a que seja eficaz a venda pelo preço efetivamente convencionado. Neste sentido, segue-se o
entendimento do STJ. Quanto a este problema, dizer, aliás, que o artigo 883.º, estabelecendo

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critérios vários, incluindo o juízo de equidade do tribunal, para a determinação do preço não
indicado pelas partes, revela não ser essencial à venda a indicação do preço.

2.1.3. Arguição da simulação pelos próprios simuladores.


O artigo 242.º/1 atribui legitimidade aos próprios simuladores para a arguição do negócio simulado,
mesmo que simulação seja fraudulenta. No entanto, esta possibilidade sofre uma apreciável restrição
indireta por força do artigo 394.º/2. Aí se estatui que é inadmissível a prova testemunhal do acordo
simulatório e do negócio dissimulado, quando invocados pelos simuladores. Assim, a prova da
simulação pelos simuladores é praticamente restringida à prova documental (contradeclarações ou
outros documentos) e à confissão, pois não é admissível a prova por presunções (art. 351.º), nem a
testemunhal (art. 394.º/2) e poucos ou nenhuns ensejos de utilização terão a prova pericial ou a prova
por inspeção.
No entanto, entendemos que se excetua da regra do artigo 394.º o caso de a simulação ter já
sido tornada verosímil por algum começo de prova por escrito. Nesse caso, parece admitir-se a prova
por testemunhas para interpretar o contexto dos documentos ou completar a prova documental. Com
um entendimento mais maleável do artigo 394.º/2, apresenta-senos VAZ SERRA que sustenta que os
simuladores devem poder fazer uso, excecional, da prova testemunhal em três casos: existência de
começo de prova escrita; impossibilidade moral ou material de obtenção de prova escrita; e em caso
de perda não culposa do documento que fornecia a prova. Na esteira deste Autor, o fundamento da
exceção estaria em que a imposição legal de prova escrita supõe a possibilidade de as partes a
obterem; nos casos em que não houvesse essa possibilidade, cessaria a razão de ser da exclusão.

2.1.4. A simulação e terceiros.


O conceito de terceiros, para efeitos de invocação da simulação, é, normalmente, definido de forma a
abranger quaisquer pessoas, titulares de uma relação jurídica ou praticamente afetada pelo negócio
simulado e que não sejam os próprios simuladores ou os seus herdeiros (após a morte do de cujus)43.

2.1.4.1. Arguição da simulação por terceiros interessados na nulidade do negócio simulado. A nulidade
do negócio simulado pode, como todas as nulidades, ser invocada por qualquer interessado e
declarada ex officio pelo tribunal (art. 286.º, ressalvado no artigo 242.º/1).
Poderiam suscitar-se dúvidas quanto à legitimidade dos herdeiros legitimários para arguir a nulidade
proveniente de simulação, em vida do simulador.
Com efeito, não há dúvidas que, depois da morte do autor da sucessão, os herdeiros legitimários, como
quaisquer outros herdeiros, podem arguir a nulidade dos atos simulados praticados pelo de cujus.

43 Outra é a noção de terceiros para efeitos da proteção da boa fé, que ORLANDO DE CARVALHO definia como os
que, integrando-se numa e mesma cadeia de transmissões, veem a sua posição afetada por uma ou várias causas
de invalidade anteriores ao ato em que foram intervenientes.

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Davide Rodrigues 2016/2017 Primeira Turma

Apenas sucede que os herdeiros intervêm como sucessores do simulador e não como terceiros (com
as mesmas restrições que os simuladores conhecem em vida), salvo quando se trate de herdeiros
legitimários que têm em vista defender as suas legítimas – conforme entendeu o TRE, neste caso, o
herdeiro legitimário intervém na qualidade de terceiro e não de sucessor do simulador.
No entanto, já se suscitam dificuldades quanto à impugnação dos atos pelos herdeiros legitimários,
para proteger a sua expetativa, em vida do próprio hereditando. Tais dificuldades são resolvidas pelo
artigo 242.º/2 que, na linha do Assento de 19 de dezembro de 1941, estabeleceu a doutrina segundo a
qual os herdeiros forçosos podem agir em vida do autor da sucessão contra os negócios por ele
simuladamente feitos com o intuito de os prejudicar. Ora, a disposição referida não deve ser aplicada
por analogia à hipótese de o ato simulado, embora sendo fonte de graves prejuízos, não ter sido
praticado com o intuito de lesar os herdeiros legitimários.
Além do mais, também a Fazenda Nacional e os preferentes podem invocar a nulidade dos atos
simulados que lhe tenham causado prejuízo, liquidando-se depois os impostos e exercendo-se a
preferência com referência ao negócio real.
Por fim, quanto à legitimidade dos credores para obter a declaração de nulidade dos atos simulados
do seu devedor, levantava-se na doutrina o problema de saber se era indispensável, para surgir aquela
possibilidade, a insolvência do devedor, ao tempo da ação destinada à declaração de invalidade. A
doutrina tradicional tendia para exigir este requisito, mas MANUEL DE ANDRADE, atacando a solução no
plano da razoabilidade, repelia-a, mesmo de iure constituto, entendendo que os credores podiam arguir
a nulidade, desde que tivessem nisso algum outro interesse sério. Esta solução deve reputar-se
consagrada no atual CC – já nesse sentido se teria de concluir a partir do artigo 286.º; e acresce que o
artigo 605.º reconhece aos credores legitimidade para invocar a nulidade dos atos praticados pelo
devedor, quer anteriores, quer posteriores à constituição do crédito, “desde que tenham interesse na
declaração da nulidade, não sendo necessário que o ato produza ou agrave a insolvência do devedor”.

2.1.4.2. Arguição da simulação contra terceiros interessados na validade do negócio jurídico. O artigo
243.º consagra expressamente a regra da inoponibilidade da simulação a terceiros de boa fé. Não se
limita a inoponibilidade a certa ou certas categorias de terceiros: a simulação é inoponível a quaisquer
terceiros de boa fé, quer derivem os seus direitos de um ato oneroso, quer os derivem de um ato
gratuito. Tal solução continua a ser excecional no nosso direito. De facto, as anulabilidades bem como
as nulidades provenientes de causa diversa da simulação, são inoponíveis a terceiros de boa fé,
verificando-se os requisitos do artigo 291.º - tratar-se de bens imóveis ou móveis sujeitos a registo; boa
fé, entendida como desconhecimento, sem culpa, da causa da invalidade; onerosidade da aquisição e
seu registo; decurso de um prazo de três anos sobre o negócio - , no entanto, no caso da simulação, a
inoponibilidade não depende desses requisitos, pelo que há um regime especial da inoponibilidade da
simulação a terceiros de boa fé (art. 243.º), em confronto com o regime geral da inoponibilidade das
nulidades e anulabilidades (art. 291.º).

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Esse regime especial, previsto no artigo 243.º para a inoponibilidade da nulidade por simulação,
dispensa alguns dos requisitos previstos no regime geral do artigo 291.º: inclui aquisições a título
oneroso ou gratuito; não exige o registo da aquisição; é aplicável também a aquisições de bens móveis
não sujeitos a registo; dispensa o decurso do prazo de três anos referido no artigo 291.º/3; e protege
os terceiros que, embora culposamente, desconheciam a simulação.
I. 1º Problema
Ora, a natureza especial da inoponibilidade, a terceiros de boa fé, da nulidade
proveniente de simulação é acentuada pelo facto de, segundo a sua letra, parecer aplicável
apenas à arguição pelo simulador. No entanto, tal interpretação do artigo 243.º/1 é
controvertida. Restringindo o artigo 243.º/1 às relações entre os simuladores e terceiros de boa
fé, deparamo-nos com PIRES DE LIMA/ANTUNES VARELA, HORSTER e MENEZES CORDEIRO;
alargando a proteção à arguição da nulidade proveniente de simulação por qualquer pessoa,
contra terceiros de boa fé, ORLANDO DE CARVALHO,
CARVALHO FERNANDES e OLIVEIRA ASCENSÃO, em especial, invocando a facilidade de frustração
do artigo 243.º se o simulador pudesse transferir os seus direitos a outra pessoa que invocaria
a nulidade perante o terceiro de boa fé.
Tendemos a considerar que a proteção conferida pelo artigo 243.º se restringe às
situações em que a nulidade da simulação é invocada pelos simuladores ou por quem ocupe
a sua posição (os herdeiros, desde logo, salvo quando intervenham como terceiros). Além da
letra da lei, parece que só se justificará esta proteção especial quando a nulidade for invocada
por quem intencionalmente criou a situação que agora pretende destruir: os simuladores. Neste
caso, perante uma atitude tão reprovável por parte dos simuladores, a proteção dos terceiros
é altamente facilitada. Ao invés, nos outros casos, quando a nulidade for invocada por terceiros,
parece que a proteção do terceiro adquirente só deverá colher nos termos gerais do artigo
291.º. Deixa de se justificar, então, a proteção especial do artigo 243.º. O que significa, neste
entendimento, que se restringe ainda mais o âmbito desta última norma.

Seguimos, agora, de perto, as considerações, acerca deste tema, feitas por ANTÓNIO PINTO
MONTEIRO, em RLJ...

1. O artigo 291.º do CC.


A norma que o CC destina à proteção de terceiro de boa fé em caso de negócio nulo ou anulado é o artigo 291.º.
Com ORLANDO DE CARVALHO são terceiros, para este efeito, os que, integrando-se numa e mesma cadeia de
transmissões, veem a sua posição afetada por uma ou várias causas de invalidade anteriores ao ato em que foram
intervenientes.
Assim, se A vender a B e este a C, o último é terceiro. Ora, se o negócio entre A e B vier a ser invalidado, a
transmissão a C será também inválida, pois B carece de legitimidade para o efeito (é uma transmissão a non domino),
dada a referida invalidade, devendo a situação ser reposta no statu quo ante (art. 289.º). Todavia, se C estiver de boa
fé se se verificarem os demais requisitos do artigo 291.º, C beneficiará da proteção desta norma, por força da qual a
declaração de nulidade ou a anulação não prejudicará os direitos adquiridos por C sobre os mesmos bens.

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Para que isto aconteça, isto é, para que C seja protegido, em face da declaração de nulidade ou da anulação
do negócio entre A e B, é necessário que se verifiquem todos os requisitos do artigo 291.º. Assim, tem de tratar-se de
bens imóveis ou móveis sujeitos a registo, C, terceiro, tem de estar de boa fé, ter adquirido os direitos a título oneroso
e registado a aquisição antes do registo da ação de nulidade ou de anulação (nº 1); além disso, devem ter já passado
três anos após a conclusão do negócio entre A e B, pois se a ação de anulação ou de nulidade for proposta e registada
dentro desse prazo os direitos de C, terceiro, não são reconhecidos (nº 2); finalmente, esclarece a lei que se considera
de boa fé o terceiro adquirente que no momento da aquisição desconhecia, sem culpa, o vício do negócio nulo ou
anulável.
Trata-se de uma norma muito exigente, uma vez que todos estes requisitos devem verificar-se
cumulativamente. Assim, o artigo 291.º consagra uma tutela geral do terceiro de boa fé em caso de invalidade do
negócio anterior àquele em que participa.

2. O artigo 243.º do CC.


Se o artigo 291.º consagra o regime geral da tutela de terceiro de boa fé – tratando-se da inoponibilidade da nulidade
e da anulação em geral, isto é, seja qual for a causa que determina essa nulidade ou anulação –, já o artigo 243.º
dedica ao terceiro de boa fé uma tutela especial, consagrando um regime muito menos rigoroso para a inoponibilidade
da simulação a terceiros de boa fé.
Efetivamente, se a nulidade do negócio for devida a simulação (art. 240.º), o único requisito exigido pelo artigo 243.º/1,
para proteger o terceiro adquirente, C, é a boa fé deste, a qual impede que a simulação possa ser arguida (nº 1);
acresce que a própria noção de boa fé é aqui menos rigorosa, pois já não se exige que o desconhecimento do vício
seja sem culpa (como no art. 291.º), bastando que o terceiro ignore a simulação ao tempo em que foram constituídos
os respetivos direitos (nº 2); finalmente, esclarece a lei que se considera sempre de má fé o terceiro que adquiriu o
direito após o registo da ação de simulação, quando a este haja lugar (nº 3).
Por conseguinte, torna-se evidente que, em face da lei, o terceiro de boa fé beneficia de uma proteção muito mais
favorável no caso de simulação, pois basta-lhe provar que ignorava a simulação, ainda que se trate de uma ignorância
negligente. Não obstante, acreditamos que, em certas situações de ignorância culposa, não pode deixar de pôr em
causa a boa fé do terceiro.

3. As divergentes posições.
A questão: será que esta proteção mais favorável é suscetível de ser invocada por terceiro de boa fé sempre que a
nulidade do negócio provenha da simulação? Ou será que esta tutela mais favorável, concedida pelo artigo 243.º/1 só
se justifica quando, além de estarmos perante negócio simulado, quem vem arguir a nulidade do negócio seja um dos
simuladores? A ser assim, se a nulidade da simulação for arguida por um terceiro, o terceiro adquirente ficará sem
proteção?
Comecemos pela primeira questão: qual o âmbito de proteção do artigo 243.º/1? Tratará esta norma da inoponibilidade
da simulação a terceiro de boa fé em todo e qualquer caso, ou, apenas, da inoponibilidade da simulação a terceiro de
boa fé quanto a nulidade for arguida pelos simuladores? A letra da lei é clara, no sentido de que só neste último caso
é que o terceiro de boa fé poderá beneficiar desta proteção especial que o artigo 243.º/1 concede. Aparentemente,
tratar-se-á, mesmo, de uma exceção à regra de que a nulidade é invocável por qualquer interessado (art. 286.º).
No entanto, como se sabe, a letra da lei, constituindo o ponto de partida e o limite do sentido eleito, não é, contudo, o
elemento hermenêutico mais importante na tarefa de interpretação da lei (art.
9.º). Nesta linha, apelando à razão de ser do artigo 243.º/1, poderia entender-se que esta norma carece de uma
interpretação extensiva, por força da qual o terceiro de boa fé estaria sempre protegido pelo artigo 243.º/1 no caso de
se tratar de nulidade proveniente de negócio simulado. E isto, quer por razões históricas, que à luz do elemento racional
e sistemático, porque, a não ser assim, diz-se, seria muito estranho e contrário à abertura introduzida no sistema pelo
artigo 291.º, no caso mais clamoroso em que a proteção de terceiros mais se justificaria.

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Nesta linha, em caso de conflito de interesses entre terceiros interessados na nulidade e terceiros interessados na
validade do negócio, recorrer-se-ia, na esteira de MANUEL DE ANDRADE, a critérios casuísticos. CARVALHO FERNANDES
optou pelo critério do artigo 335.º, relativo à colisão de direitos, no entanto, cremos que sem razão, uma vez que esta
norma pressupõe direitos adquiridos, não sendo este o caso, além de que o problema consiste em saber se os direitos
em conflito são iguais ou desiguais sob o ponto de vista do merecimento da tutela jurídica.

4. A nossa posição.
Em face do direito em vigor, perante o texto da lei e tendo em conta os elementos histórico, racional e
sistemático, entendemos que a proteção de terceiro de boa fé pelo artigo 243.º/1 só é possível quando a nulidade é
arguida pelo simulador ou por quem ocupe a sua posição (como sucede com os herdeiros, após a sua morte).
É o próprio texto da lei a apoiar fortemente esta posição, mas é também este o sentido mais conforme os
demais elementos interpretativos.
Desde logo, atente-se que no Código de Seabra era discutido se os simuladores teriam legitimidade para
arguir a nulidade dos negócios simulados, tratando-se de simulação fraudulenta. A questão foi decidida por Assento,
no sentido afirmativo, mas nem assim se tornou inteiramente pacífica.
O problema está hoje definitivamente ultrapassado, pelo artigo 242.º/1, que atribui legitimidade para arguir a
simulação aos próprios simuladores entre si, ainda que a simulação seja fraudulenta. No entanto, convém não esquecer
a dúvida que, na vigência do Código anterior, ainda se colocava entre nós a tal respeito.
De todo o modo, dando conta desse mal estar perante os simuladores que vêm arguir a simulação, a lei
coloca-lhes acrescidas dificuldades de prova, uma vez que não admite prova testemunhal nem por presunções quando
a simulação seja invocada pelos simuladores (arts. 394.º/1 e 2 e 351.º). Ora, é nesta linha que surge o artigo 243.º a
impedir que a nulidade proveniente da simulação possa ser arguida pelo simulador contra terceiro de boa fé. Em suma,
trata-se de uma posição contra os simuladores – e só contra estes –, no contexto das restrições anteriores, quer quanto
aos meios de prova de que podem servir-se os simuladores, quer quanto às dúvidas, na vigência do Código de 1867,
sobre a própria legitimidade destes para arguir a simulação.
Quer dizer: não é por acaso que o artigo 243.º/1 restringe o alcance da proteção do terceiro de boa fé à
arguição da nulidade do negócio simulado pelos simuladores. Esta restrição surge na linha e no contexto das reações
negativas da ordem jurídica à torpeza dos simuladores e de algum modo de acordo com a máxima nemo auditur
propriam turpitudinem allegans. E se esta máxima não é hoje aqui levada inteiramente à letra, foi necessária
consagração de um preceito expresso a atribuir legitimidade aos simuladores para arguir a simulação – quando essa
seria a solução já em face do regime geral (art. 286.º) – perante as hesitações na vigência do Código de Seabra. Tudo
isto para além das sérias dificuldades práticas erguidas pela lei no campo dos meios de prova admitidos quando a
nulidade da simulação seja invocada pelos simuladores.
Ora, justamente, a razão de ser desta limitação, pelo artigo 243.º/1, à proteção de terceiro de boa fé quando
a nulidade seja arguida pelos simuladores – e apenas neste caso – é a forte reprovação que merece o comportamento
dos simuladores. Repare-se que esta norma introduz um desvio à regra geral do artigo 286.º, pois impede que a
nulidade seja neste caso invocada pelos simuladores, isto é, por alguém interessado nessa invocação. Por outro lado,
atente-se que o artigo 243.º/1 respeita a regra do artigo 242.º/1, uma vez que esta última permite que a nulidade do
negócio seja invocada pelos próprios simuladores entre si. Só entre si, repete-se, pois perante terceiros de boa fé logo
o artigo seguinte obsta a que os simuladores possam arguir essa nulidade.
É a ideia de que os simuladores, ao invocarem a nulidade, estão como que a incorrer num venire contra
factum proprium, pois criaram propositadamente, para iludir terceiros, a aparência de um negócio que na realidade não
querem. Virem, depois, prevalecer-se da simulação contra terceiros de boa fé, contra terceiros que confiaram na
seriedade do negócio, seria particularmente iníquo e comprometedor da segurança das transações.
Ora, esta argumentação só colhe perante os simuladores, só procede quando se trata de proteger terceiros
de boa fé contra a arguição da nulidade pelos próprios simuladores. Já se for um terceiro a arguir a nulidade do negócio
simulado, por exemplo, um credor do simulado alienante, não se justificaria, de todo, que um terceiro adquirente
pudesse invocar a sua boa fé, sem mais, para ser protegido. Numa situação destas, sendo a nulidade invocada por

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um terceiro (de boa fé), o terceiro adquirente de boa fé só poderá aspirar à proteção geral do artigo 291.º, pese embora
a nulidade do negócio seja devida a simulação.
Por fim, o artigo 291.º consagra a proteção de terceiro de boa fé em caso de negócio nulo ou anulável, seja
por que razão for – inclusivamente quando se trate de simulação, desde que não seja arguida pelos simuladores –, ao
passo que o artigo 243.º restringe o seu âmbito de aplicação ao terceiro de boa fé quando se esteja perante negócio
simulado e a nulidade seja arguida pelos simuladores (ou por quem ocupe a sua posição).

II. 2.º Problema


Foi sustentado na doutrina que só se consideravam terceiros para este efeito aquelas
pessoas cujos direitos seriam prejudicados pela invalidação do negócio simulado, isto é, as
que com isso sofreriam uma perda, mas não já as que apenas lucrariam com a validade do
mesmo negócio. Assim, seria oponível a um preferente a simulação do preço da venda (por se
ter declarado na escritura um preço inferior ao real) ou a simulação sobre a natureza do
negócio.
De iure condito, a simulação é inoponível só aos terceiros de boa fé prejudicados com
a invalidação ou também o será àqueles que apenas deixam de lucrar, por esse motivo?
O artigo 243.º/1 não faz qualquer restrição, ao contrário do que era proposto no
anteprojeto; portanto, um intérprete estritamente agarrado à lei, atribuindo valor decisivo à
máxima ubi lex non distinguit nec nos distinguere debemus e ao elemento histórico, concluiria
que a nulidade resultante da simulação era inoponível a quaisquer terceiros, mesmo aos que
com isso conseguiriam um lucro, em lugar de evitarem um prejuízo (H ORSTER). No entanto,
entendemos que estes elementos interpretativos têm valor subalterno em relação ao elemento
racional (presunção de que, dada a ratio do preceito, o legislador consagrou as soluções mais
acertadas que tenham na leitra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que
imperfeitamente expresso – art.
9.º/2 e 3) dentro da conceção hermenêutica preferível e sancionada no CC.
Neste sentido, não há dúvida que, dado o fim do artigo 243.º (proteger a confiança dos
terceiros), a solução mais acertada é a que impede que a invocação da simulação possa causar
prejuízos e não já a que vai ao ponto de, por essa causa, originar vantagens ou lucros que
nada legitima. Por conseguinte, feita uma venda por 100 e tendo-se declarado simuladamente
um preço de 30, um preferente não pode invocar a sua qualidade de terceiro de boa fé, para
preferir pelo preço declarado; élhe oponível a nulidade do negócio simulado, sendo admitido a
preferir pelo preço real. Com efeito, só não será assim quando existir disposição especial que
autorize a preferência pelo preço declarado.
Trata-se da solução que corresponde ao ensino de MANUEL DE ANDRADE e que estava
expressamente consagrada no anteprojeto. A solução oposta – preferência pelo preço
declarado – é irrazoável, pois a torpeza dos simuladores não legitima um locupletamento do
terceiro (preferente), que não seria menos torpe; acrescendo, ainda, que, normalmente, os
simuladores ter-se-ão informado junto do preferente se a coisa lhe interessava e só em face
do desinteresse revelado por ele se terão arriscado a simular um preço inferior. Contra esta

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posição, estão PIRES DE LIMA/ANTUNES VARELA e HORSTER. Ora, não podemos aderir à posição
destes autores que, ainda que aceitem a razoabilidade da nossa solução, rejeitam-na por a
considerarem contra legem. Contra legem porquê? Apenas fazemos uma interpretação
restritiva do artigo 243.º/1, em conformidade com a ratio legis, sendo certo que tal modalidade
de interpretação é um método perfeitamente clássico. Por um lado, a modificação do
anteprojeto nada nos diz sobre a intenção do legislador, por outro, é profundamente
insatisfatório dizerse que a lei quer vedar ao simulador sempre a invocação da simulação contra
terceiros de boa fé, pois, certamente, não o quer fazer à custa de uma torpeza. Finalmente, em
abono da nossa posição, ao mesmo resultado conduzirá a noção de terceiros para fins de tutela
da boa fé, nos termos em que ORLANDO DE CARVALHO a apresentava44.
Por fim, note-se que o conceito de boa fé é enunciado no artigo 243.º/2, consistindo, conforme
o ensinamento geral da doutrina, na ignorância da simulação ao tempo em que se adquiriram os
respetivos direitos. Assim, não basta, para haver má fé, a cognoscibilidade da simulação ou a suspeita
ou dúvida sobre a sua existência – CARVALHO FERNANDES a entender que o terceiro que desconhece a
simulação culposamente também está protegido e MENEZES CORDEIRO, contra, a exigir o
desconhecimento não culposo. Além do mais, o artigo 243.º/3 estabelece uma presunção iuris et de
iure de má fé, em desfavor do terceiro que adquiriu o seu direito depois do registo da ação de simulação.
2.1.4.3. Conflitos de interesses entre terceiros interessados.
Se não se entender que o artigo 243.º é apenas aplicável à arguição de nulidade pelos simuladores –
com remissão da arguição por outras pessoas interessadas na nulidade para o regime geral (incluindo,
quanto à proteção de terceiros adquirentes, para o artigo 291.º - tornam-se possíveis conflitos entre
terceiros que pretendem arguir a nulidade do negócio simulado e terceiros cujos interesses exigem que
o negócio simulado seja tratado como válido. Hipóteses:
 Conflito entre credores comuns, ou quirografários, do simulado alienante, e credores comuns
do simulado adquirente;
 Conflito entre credores comuns do simulado alienante e subadquirentes do simulado
adquirente;
 Conflito entre subadquirentes do simulado alienante e subadquirentes do simulado adquirente;

2.1.4.4. Prova da simulação.


A prova do acordo simulatório e do negócio dissimulado por terceiros é livre, podendo ser feita por
qualquer dos meios admitidos na lei.

2.2. Reserva mental.

44 Para uma solução diferente, no entendimento do STJ, em que, admitindo-se a inoponibilidade aos preferentes
da nulidade proveniente de simulação, impediu-se o exercício da preferência por constituir abuso de direito.

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O artigo 244.º/1 define a reserva mental, em conformidade com a lição dos tratadistas, sendo duas as
notas que definem o conceito: emissão de uma declaração contrária à vontade real; intuito de enganar
o declaratário 45 . Eis as suas modalidades: inocente ou fraudulenta; conhecida ou desconhecida;
absoluta ou relativa; unilateral ou bilateral.
No atual CC, os efeitos desta figura são determinados pelo artigo 244.º/2, onde se estatui a irrelevância
da reserva mental, exceto se for conhecida do declaratário. Por consequência, a declaração negocial
emitida pelo declarante, com reserva, ocultada ao declaratário, de não querer o que declara, não é, em
princípio, nula. Trata-se de uma doutrina adotada nemine discrepante, por corresponder a uma
exigência elementar de justiça e segurança. Com efeito, não se poderia conceber que a confiança na
exteriorização de uma vontade pudesse ser afetada, se aquele que declara alguma coisa como sendo
a sua vontade pudesse invocar, para se desvincular, uma vontade oculta contrária e a provasse sem
margem para dúvidas.
No entanto, deixará de ser assim, sendo o negócio nulo, se o declaratário teve conhecimento da
reserva, por desaparecerem as razões que justificam aquele princípio geral.
Se o declaratário conheceu a reserva, não há confiança que mereça tutela46. Por outro lado, se há dois
declaratários, qualquer deles, que não conheça a reserva, pode invocar a sua irrelevância. É, também,
reserva mental a hipótese de alguém conscientemente emitir uma declaração com vários sentidos e a
outra parte a compreender num determinado sentido, enquanto o declarante se reservou ocultamente
só a fazer valer noutro sentido.
Não bastará para a relevância da reserva a sua cognoscibilidade, sendo necessário o seu efetivo
conhecimento.
Por vezes, aventa-se uma solução especial para a reserva mental inocente (com mero animus
decipiendi): bastaria, para fundamentar a nulidade, a simples cognoscibilidade do vício, quando o
reservante tenha procedido com ânimo de trazer vantagem ao declaratário ou até nem seria precisa a
cognoscibilidade, apenas respondendo o declarante pelo interesse negativo, se este não foi
contrabalançado pela vantagem auferida. Ora, o CC não consagra esta solução no respetivo preceito
sobre a reserva mental, estabelecendo, sem exceção, que só o conhecimento efetivo da reserva é
motivo de nulidade. No entanto, a rigidez desta doutrina poderá ser atenuada por aplicação da cláusula

45 Se a contraparte se deixou enganar pela declaração, mas o declarante pensara que ela se aperceberia da
divergência, não há reserva mental – há declaração não séria.
46 Críticas à solução de nulidade no caso de conhecimento da reserva: é uma solução defeituosa e uma concessão
à teoria da vontade (LARENZ); não se pode tratar a teoria da confiança tão mecanicamente, como se faz ao
estabelecer a nulidade quando o declaratário conheceu a reserva – haveria que considerar também o mérito ou
demérito da tutela do mentiroso e o princípio da fidelidade do contrato (B YDLINSKI). Todavia, deve atentar-se em
ser muitíssimo provável que uma parte, ao saber da reserva, antes ou durante a realização de um negócio, se
assegure perante o seu parceiro, e que seja esclarecida a divergência entre a vontade e a declaração, pelo que
deixará de se justificar a tutela.

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geral do artigo 334.º - abuso do direito. Com efeito, excederá muitas vezes os limites impostos pela boa
fé ou pelos bons costumes – por ser clamorosamente contrária ao sentido jurídico prevalente – a
pretensão do declaratário, no sentido da validade de uma declaração que o respetivo autor emitiu, com
reserva mental, para trazer uma vantagem ao declaratário.

2.3. Declaração não séria.


O conceito infere-se do artigo 245.º, sendo que a nota fundamental consiste no seguinte: a divergência
entre a vontade e a declaração, embora intencional, não visa enganar ninguém, pois procede-se na
expetativa de que a falta de seriedade não passe despercebida. Quanto às suas modalidades,
consideram-se as seguintes: declarações jocosas, cénicas, didáticas, publicitárias, entre outras. No
entanto, a graça malévola, existindo embora uma finalidade jocosa, é reserva mental e não declaração
não séria – trata-se de situações em que a declaração, emitida com intenção jocosa ou trocista, é feita
na expetativa de que a outra parte se deixará enganar, isto é, cairá no engano.
Neste sentido, note-se que, em princípio, a declaração carece de qualquer efeito. Se o declaratário
conhecia a falta de seriedade da declaração ou ela era exteriormente percetível, parece nem chegar a
haver uma verdadeira declaração negocial. É o caso da declarações cénicas, didáticas ou em jogos de
sociedade.
Por fim, no artigo 245.º/2 preveem-se casos marginais: aqueles, possíveis sobretudo nas declarações
jocosas (graça pesada) e, eventualmente, publicitárias, em que a declaração foi feita em circunstâncias
que induzem o declaratário a aceitar justificadamente a sua seriedade. Sanciona-se a mesma solução
(a declaração carece de qualquer efeito), corrigida, porém, no interesse do declaratário, pela
responsabilidade do declarante pelo chamado interesse negativo ou da confiança (responsabilidade
pré-negocial), e não a solução da validade da declaração.

3. Divergência não intencional.

3.1. Coação física ou coação absoluta ou ablativa.


Na coação física ou absoluta, o coagido tem a liberdade de ação totalmente excluída, enquanto na
coação moral ou relativa a liberdade está cerceada, mas não excluída (o coato pode optar por outro
comportamento, como sofrer o mal ou combatê-lo).
Ora, o CC prevê (art. 246.º) especificamente a hipótese de o declarante ser “coagido pela força física
a emitir” a declaração (agitur sed non agit). Tem-se em vista as hipóteses em que o declarante é

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reduzido à condição de puro autómato (coação absoluta) e não aquelas em que o emprego da força
física não chega aos extremos da vis absoluta47.
A coação física ou absoluta importa, nos termos do artigo 246.º, a ineficácia da declaração negocial. A
lei, prudente ou ambiguamente, esclarece que a declaração não produz qualquer efeito e não fala de
nulidade, dado ser discutível a qualificação como nulidade ou, antes, como inexistência, parecendo
esta última a mais exata.
Por fim, note-se que não há qualquer dever de indemnização a cargo do declarante.

3.2. Falta de consciência da declaração.


Neste caso, falta a vontade de ação ou falta a vontade ou, pelo menos, a consciência da declaração.
Estas hipóteses são abrangidas pelo artigo 246.º, estatuindo-se que o negócio não produz qualquer
efeito, mesmo que a falta de consciência da declaração não seja conhecida ou cognoscível pelo
declaratário.
Ora, trata-se de um caso de nulidade, salvo na hipótese de falta de vontade de ação, em que parece
estar-se perante um caso de inexistência da declaração. Com efeito, quando falta a vontade de ação
não há um comportamento humano consciente, voluntário, finalista; há um comportamento
inconsciente, involuntário, reflexo ou, na hipótese de coação física, absolutamente forçado, embora
exteriormente pareça estarmos perante uma declaração. Vexata quaestio, na doutrina alemã, é saber
se, para existir uma declaração é necessária a consciência ou se basta a imputabilidade da declaração,
embora falte a consciência respetiva. A doutrina germânica maioritária, na esteira de autores como
LARENZ, basta-se com a imputabilidade, sem exigir a consciência da declaração; diversamente,
exigindo a consciência da declaração, deparamo-nos com autores como CANARIS.
Neste sentido, note-se que, se bastasse a imputabilidade, o autor do comportamento, sendo-lhe este
imputável, apesar de não ter tido consciência da declaração, não poderia, sem mais, considerar-se
desvinculado do negócio – restar-lhe-ia a anulabilidade com fundamento em erro-obstáculo. Entre nós,
existe norma expressa, o artigo 246.º, estabelecendo que a declaração não produz qualquer efeito, se
não existe a consciência de se fazer uma declaração negocial – logo, faltando a consciência da
declaração e mesmo que se verifique a imputabilidade da mesma, o negócio não produz efeitos.
Criticamente, com MENEZES CORDEIRO, defendendo uma interpretação restritiva do artigo 246.º, para
aqueles casos em que a falta de consciência seja de tal modo aparente que, perante o declaratário
normal, a declaração não possa ser imputada ao declarante.
Em suma, entendeu-se que a proteção da confiança não devia ir tão longe que se atribuísse eficácia
à declaração, isto é, à aparência de vontade, nestas hipóteses de falta de vontade de ação ou de
consciência da declaração. Os interesses do autor do comportamento são tutelados em primeira linha,

47 Nesta hipótese, o que gera o negócio é o receio da consumação ulterior ou da persistência de um mal físico já
em começo de execução. Não estando, portanto, totalmente excluída a liberdade do coato, mas apenas coartada,
o caso integra-se na coação moral.

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a expensas do interesse na proteção da confiança do declaratário; se o declarante for, porém, culpado


da falta de consciência da declaração, o declaratário tem direito a ser indemnizado do dano coberto
pela responsabilidade pré-negocial ou por culpa in contrahendo.

3.3. Erro na declaração ou erro-obstáculo.


No erro-obstáculo, há uma divergência inconsciente entre a vontade e a declaração, mas há um
comportamento declarativo do errante. Assim, não se confunde com as declarações sob o nome de
outrem em que não há qualquer comportamento por parte do sujeito a quem a declaração é atribuída
– v.g., A faz um negócio, fazendo-se passar por B, declinando a identidade deste ou falsificando a
respetiva assinatura ou pondo em circulação um documento assinado por B, mas não emitido por B.
Sinteticamente, podemos dizer, quanto às causa e efeitos desta figura, que ela se verificará quando
há desvio na vontade de ação (lapsus liguae ou lapsus calami; erro mecânico) ou desvio na vontade
(erro de juízo). Nestas hipóteses, o declarante tem a consciência de emitir uma declaração negocial,
mas, por lapso de atividade (erro mecânico: lapsus linguae ou erro ortográfico) ou por erros in iudicando
(atribuição às palavras de um significado diverso do seu sentido objetivo), não se apercebe de que a
declaração tem um conteúdo divergente da sua vontade real (aliud dixit, aliud voluit). Por esse motivo,
fala-se de erro sobre o conteúdo da declaração.

3.3.1. A solução em geral.


O princípio geral regulador destas hipóteses consta do artigo 247.º, exigindo-se para a anulação do
negócio que o declaratário conhecesse ou não devesse ignorar a essencialidade, para o declarante do
elemento sobre que incidiu o erro. Com efeito, nada mais se torna necessário provar, não se exigindo
a desculpabilidade do erro.
Ora, tal solução parece sacrificar demasiadamente os interesses do declaratário e os do comércio
jurídico e teria sido mais razoável ir um pouco mais longe e exigir, como condição de anulabilidade, à
semelhança do que o Código italiano, o conhecimento ou a cognoscibilidade do erro. Além do mais,
note-se que, nas hipóteses em que o declaratário teve conhecimento ou cognoscibilidade, não do erro,
mas da essencialidade do elemento sobre que ele incidiu, talvez o mesmo declaratário, se lhe tivesse
sido proposto o condicionamento, da eficácia do negócio à verificação do elemento pressuposto, não
anuísse ao contrato, preferindo ficar livre para celebrar um outro firme.
No entanto, a lei não exige o conhecimento ou a cognoscibilidade do erro, admitindo a anulabilidade
em termos excessivamente fáceis e gravosos para a confiança do declaratário e para a segurança do
tráfico jurídico. Contenta-se com o conhecimento ou a cognoscibilidade da essencialidade do elemento
sobre que incidiu o erro, embora este conhecimento possa não ter suscitado ao declaratário qualquer
suspeita ou dúvida acerca da correspondência entre a vontade real e a declarada. Além do mais, a
formulação do artigo 247.º é inadequada ou de difícil compreensão, pelo menos quanto ao erro
mecânico (v.g.: lapso de escrita): se quero escrever prédio nº 20 e, por lapso mecânico, escrevo
inadvertidamente nº 10, o que é o elemento sobre que incidiu o erro?

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Por fim, note-se que nalguns casos em que a aplicação do artigo 247.º lese com extrema injustiça os
interesses do declaratário, só se poderá obstar à anulação por força do princípio do artigo 334.º - abuso
do direito de anular.

3.3.2. Hipóteses especiais.


I. Se o declaratário se apercebeu do dissídio entre a vontade real e a declarada e se conheceu
a vontade real do declarante, o negócio valerá de acordo com a vontade
real (art. 236.º/2). Com efeito, as razões que estão na base da doutrina da declaração – tutela
da boa fé do declaratário – não colhem.
II. Se o declaratário conheceu, ou devia ter conhecido, o próprio erro, o regime aplicável continua
a ser a anulabilidade e não a nulidade verdadeira e própria. Com efeito, não é necessário,
para a anulação, o reconhecimento ou a reconhecibilidade do erro, bastando que seja
reconhecível a essencialidade do elemento sobre que o declarante errou.
III. Se o declaratário aceitar o negócio como o declarante queria, a anulabilidade fundada em erro
não procede (art. 248.º). A validação do negócio, nesta hipótese, tem uma explicação análoga
à da solução indicada em I.
IV. O erro de cálculo e o erro de escrita, ostensivamente revelados no contexto da declaração ou
nas circunstâncias que a acompanham 48 , não dão lugar à anulabilidade do negócio, mas
apenas à sua retificação (art. 249.º);
V. Se o declaratário compreendeu um terceiro sentido que não coincide nem com o querido pelo
declarante, nem com o declarado, quid iuris? O artigo 247.º pode não permitir a anulabilidade,
tal como, aliás, poderia não a permitir a doutrina da confiança, pois B, destinatário da
declaração, pode não saber nem dever saber do erro. Todavia, o negócio deve ser anulado,
pois nada justifica fazê-lo valer com um sentido objetivo em que nenhuma das partes confiou.
É a solução correspondente à teoria da aparência eficaz, que deve ser admitida, neste posto,
como corretivo da teoria da confiança. A doutrina da aparência eficaz visa atingir os fins
visados com a teoria da confiança sem os exceder e, portanto, não faz valer a declaração no
sentido objetivo, a não ser que o destinatário confie efetivamente nesse sentido. Assim, no
caso de divergência entre os sentidos querido, declarado e compreendido, torna a declaração
anulável, como parece mais razoável, enquanto a doutrina da confiança a faz valer no sentido

48 O erro de cálculo interno – ou não ostensivo – esse pode ser um erro normativo (art. 251.º) ou estar sujeito ao
regime geral do erro na declaração (art. 247.º). Na jurisprudência do STJ, qualificando o erro de cálculo que se
revela no próprio contexto da declaração ou das circunstâncias em que é feita como erro-obstáculo de natureza
especial, que só dá direito à retificação da declaração, e dizendo que se não se revelar nesse contexto e
circunstâncias, será um erro-vício.

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declarado. A hipótese que estamos a considerar constitui um caso especial de dissenso 49, a
merecer tratamento igualmente especial, e nesse sentido se pronuncia,
para as hipóteses deste tipo, a própria doutrina que defende conceções e soluções mais
objetivistas do negócio (EMÍLIO BETTI). Esse tratamento especial é o da anulabilidade sem a
exigência dos requisitos do artigo 247.º.

3.4. Erro na transmissão da declaração.


Esta hipótese está prevista no artigo 250.º, que a disciplina nos mesmos termos do erro-obstáculo. O
erro na transmissão da declaração não tem, portanto, relevância autónoma; desencadeará o efeito
anulatório apenas nos termos do artigo 247.º.
Neste sentido, em coerência com as críticas que, de iure condendo, fizemos ao regime do artigo 247.º,
também aqui consideramos gravemente defeituoso, em certas hipóteses, o regime aplicável. Vide
gratia: A oferece a B a venda de um terreno; B telegrafa dizendo “não aceito”; chega à esfera de A a
fórmula “aceito”, não se compreende que B, lesando as legítimas expetativas de A, possa anular o
contrato-promessa, como sempre poderá nos termos do artigo 247.º, pois, A sabia ou não devia ignorar
a essencialidade, para B, do elemento sobre que recaiu o erro, isto é, a essencialidade de não ficar
vinculado contra a sua vontade.
Estabelece-se, porém, uma exceção a este regime geral no artigo 250.º/2, admitindose a anulação
sempre que o intermediário emita intencionalmente (com dolo) uma declaração diversa da vontade do
dominus negotii. Assim, o declarante suporta o risco de transmissão defeituosa, de uma deturpação
ocorrida enquanto a declaração não chega à esfera do declaratário; uma adulteração dolosa deve,
porém, considerar-se como extravasando o círculo normal de riscos a cargo do declarante.
De iure condendo, deve perguntar-se, porém, se o regime do artigo 250.º/2 é o preferível. Tem sido
justificado com base na ideia, expressa no texto, de que o declaratário já não deve suportar os riscos
de uma adulteração dolosa, de que a declaração intencionalmente alterada não é a mesma que o
declarante emitiu, ou de que não pode atribuir-se juridicamente ao declarante. Todavia, é o declarante
quem escolhe o intermediário (se for um núncio do declaratário não se deve aplicar o artigo 250.º) e,
como tal, deve arcar com os riscos da sua atuação. O declarante, mesmo que tenha agido sem culpa,
encontra-se, pelo menos, mais próximo de suportar os riscos, que melhor pode dominar, de uma
adulteração dolosa, do que o declaratário, totalmente estranho à situação. Além disso, a declaração
também é diversa da que o declarante emitiu em caso de adulteração negligente, e, todavia, se a

49 O dissenso (desacordo entre as partes num contrato) pode evidenciar-se nos próprios termos das declarações,
isto é, pode tratar-se de uma falta de acordo dos sentidos objetivos e, então, nem sequer existe um negócio jurídico,
por aplicação do artigo 232.º. Porém, pode haver acordo dos sentidos objetivos das declarações, mas desacordo
entre as vontades reais. Este desacordo de vontades reais pode resultar de uma só das partes atribuir à sua
declaração um sentido diverso do que ela bem objetivamente (A quer vender X, mas declara Y e B aceita nestes
termos) – neste caso, o problema resolve-se por aplicação da doutrina do erro-obstáculo. Assim, o conceito de

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adulteração dolosa impede a imputação da declaração, já o mesmo não acontece com a alteração
negligente do que também seja essencial. Note-se, ainda, que enquanto nos termos do artigo

dissenso só tem interesse autónomo quando cada uma das partes atribui ao negócio um sentido diverso não coincidente com o
seu teor objetivo.
254.º/2, o dolo de um terceiro totalmente estranho ao declarante não confere a este, sem mais, o direito
de anular, mesmo que provoque também um erro na declaração, já segundo o artigo 250.º/2, o dolo de
uma pessoa que o declarante escolheu permite-lhe a anulação do negócio.

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DIVISÃO IV – VÍCIOS DA VONTADE

1. Vícios da vontade.
2. O regime da lesão e dos vícios redibitórios.
3. Qualificação da invalidade proveniente de erro-vício, dolo, coação ou incapacidade
acidental.
4. Erro-vício.
4.1. Modalidades.
4.2. Exclusão prévia da anulação por erro.
4.3. Condições gerais de relevância do erro-vício como motivo de anulabilidade.
4.4. Condições especiais de relevância do erro-vício como motivo de anulabilidade.
4.5. Aplicação de coisa a fim diferente do declarado.
5. Dolo.
5.1. Conceito.
5.2. Modalidades.
5.3. Condições de relevância do dolo como motivo de anulação.
5.4. Fundamento jurídico da anulabilidade por dolo.
5.5. Negócio em que o dolo não tem relevância específica.
6. Coação.
6.1. Conceito.
6.2. Modalidades.
6.3. Condições de relevância da coação como motivo de anulabilidade.
6.4. A coação moral e o simples temor reverencial.
7. Estado de necessidade.
7.1. Conceito.
7.2. Confronto com a coação.
7.3. Valor dos negócios jurídicos celebrados em estado de necessidade.
8. Incapacidade acidental.

DIVISÃO IV – VÍCIOS DA VONTADE

1. Vícios da vontade.

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Trata-se de perturbações do processo formativo da vontade, operando de tal modo que esta, embora
concorde com a declaração, é determinada por motivos anómalos e valorados, pelo direito, como
ilegítimos. Com MANUEL DE ANDRADE, a vontade não se formou de um modo julgado normal e são.

2. O regime da lesão e dos vícios redibitórios no CC.

I. Lesão (usura);
O código de 1867, rompendo com o direito anterior, deixou de considerar a lesão (grave
desequilíbrio entre as prestações, nos contratos onerosos comutativos) motivo autónomo de
invalidade dos negócios jurídicos.
No código de 1966, a proscrição da lesão, sob a designação de usura, é efetuada nos
termos do artigo 282.º. Estabelece-se, no artigo seguinte, uma alternativa para a anulação dos
negócios usurários: a sua modificação, segundo juízos de equidade, a requerimento do lesado
ou da partes contrária. Encara-se, portanto, o problema da lesão, não sob a perspetiva
individualista que fluiu no Código de Napoleão, mas à luz das valorações sociais imperantes
no nosso tempo.
Qual é a relação entre o problema da lesão e os vícios da vontade? É que resulta do
CC vigente que a lesão, como fundamento da anulação ou modificação dos negócios, não
consiste apenas numa certa desproporção de prestações (lesão ultra dimidium ou lesão
enorme), mas, sim, igualmente, numa exploração da situação da outra parte, em casos em que
terá havido uma adulteração do modo de sã formação da vontade. Com efeito, emprega-se
para definir a figura uma formulação obetivosubjetiva, cujo elemento objetivo comporta uma
certa liberdade de apreciação judicial (benefícios excessivos ou injustificados) e cujos
elementos subjetivos são dois: a situação de necessidade, inexperiência, ligeireza,
dependência, estado mental ou fraqueza de caráter em que se encontra a vítima do ato lesivo;
e a exploração dessas situações.
Por fim, note-se que se consagra, porém, um critério estritamente objetivo, quanto ao
mútuo oneroso (art. 1146.º).
II. Vícios redibitórios.
O Código de Seabra não considerava os vícios redibitórios um vício autónomo dos
negócios: só ocorreria invalidade quando concorressem os requisitos gerais do objeto.
Ora o atual CC, não se refere, nas disposições gerais sobre o negócio jurídico, aos
vícios ocultos do objeto negocial como fundamento autónomo de invalidade. Porém, há normas
que se referem a essa hipótese na regulamentação de alguns contratos especiais: artigos
905.º, 913.º e 1035.º - a anulabilidade do negócio depende da verificação dos requisitos legais
de relevância do erro ou do dolo. Ora, para além deste efeito (anulabilidade), a lei regula alguns
aspetos particulares da situação.

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Neste sentido, o Decreto-Lei nº 67/2003, de 8 de abril, que transpôs para o direito


português a Diretiva 1999/44/CE, de 25 de maio de 1999, sobre certos aspetos da venda de
bens de consumo e das garantias a ela relativas, previu um regime especial para certos
contratos celebrados com consumidores, destacando-se a consagração explícita, por esse
diploma, de uma obrigação de conformidade da coisa com o contrato.

3. Qualificação da invalidade proveniente de erro-vício, dolo, coação ou incapacidade


acidental.
Em todas estas situações, deparamo-nos com a anulabilidade.
A questão: no caso de erro sobre os motivos que recaia sobre as circunstâncias que constituem a base
negocial (art. 252.º/2), terá lugar a anulabilidade, tal como nas outras modalidades do erro-vício, ou
haverá lugar para uma faculdade de resolução, tal como nos casos de alteração superveniente das
circunstâncias? Inclinamo-nos para a hipótese da anulabilidade, pois nos casos de erro sobre os
motivos, diversamente da alteração superveniente das circunstâncias vigentes ao tempo do negócio, o
estado de coisas erradamente figurado é anterior ou contemporâneo do negócio. Trata-se, portanto, de
um vício que inquinou a própria formação do negócio e não de uma vicissitude surgida no decurso da
execução. Sendo assim, a remissão que, no artigo 252.º/2 se faz para o artigo 437.º tem o sentido de
indicar os pressupostos ou requisitos necessários para a relevância do erro sobre as circunstâncias
que constituem a base do negócio e não já a forma que reveste essa relevância (anulabilidade ou
resolução).

4. O erro como vício da vontade.

O erro-vício traduz-se numa representação inexata ou na ignorância de uma qualquer circunstância de


facto ou de direito que foi determinante na decisão de efetuar o negócio. Assim, se estivesse
esclarecido acerca dessa circunstância – se tivesse exato conhecimento da realidade – o declarante
não teria realizado qualquer negócio ou não teria realizado o negócio nos termos em que o celebrou.
Trata-se de um erro nos motivos determinantes da vontade.
Neste sentido, o erro-vício não se confunde com o erro na declaração ou o erroobstáculo, sendo aquele
um vício da vontade (o erro-vício é um erro na formação da vontade), enquanto aqueles são uma
divergência entre a vontade e a declaração (erro na formulação da vontade). Com efeito, a divergência
existente não é entre a vontade real e a declaração, mas entre a vontade real (coincidente com a
declaração) e uma certa vontade hipotética (a vontade que se teria tido, se não fosse a representação
inexata).
Por fim, note-se que uma figura próxima do erro é, na esteira de WINDSCHIED, a pressuposição que
se pode caracterizar como a convicção por parte do declarante, decisiva para a sua vontade de efetuar
o negócio, de que certa circunstância se verificará no futuro ou de que se manterá um certo estado de
coisas – a alteração anormal das circunstâncias pressupostas constitui, nos termos do artigo 437.º,

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Davide Rodrigues 2016/2017 Primeira Turma

fundamento de resolução ou modificação do contrato, quando a manutenção do conteúdo contratual


contrarie a boa fé e não esteja coberta pelos riscos do próprio contrato. Em suma, a pressuposição
refere-se ao futuro (faltará quando houver uma alteração superveniente de circunstâncias) e o erro
refere-se ao presente ou ao passado: o erro consiste na ignorância ou falsa representação, relativas a
circunstâncias passadas ou presentes, isto é, à situação existente no momento da celebração do
negócio; a pressuposição consiste na representação inexata de um acontecimento ou realidade futura
que se não vêm a verificar (quando falha, trata-se de uma imprevisão).

4.1. Modalidades.
I. Erro sobre a pessoa do declaratário;
Erro sobre a identidade (que será, quase sempre, um erro-obstáculo) e erro sobre as
qualidades.
Vide gratia: A doa um prédio a B, porque julga erradamente que B é filho de um seu
velho amigo.
II. Erro sobre o objeto do negócio;
Pode incidir sobre o objeto mediato (sobre a identidade ou as qualidades) ou sobre o
objeto imediato (erro sobre a natureza do negócio).
Vide gratia: A compra um prédio porque erradamente julga que o prédio tem 15
apartamentos ou compra um terreno julgando erradamente que ele tem água (erro sobre o
objeto media do tipo erro sobre as qualidades); A faz um contrato, julgando que ele tem os
efeitos da locação, quando afinal tem a eficácia de uma venda a prestações (erro sobre a
natureza do negócio).
III. Erro sobre os motivos não referentes à pessoa do declaratário nem ao objeto do
negócio;
Trata-se de uma noção residual e corresponde ao erro acerca da causa (de direito ou
de facto) do Código anterior e abrange igualmente o erro sobre a pessoa de terceiro.
Vide gratia: A arrenda uma casa, porque julga erradamente ter sido colocado como
funcionário público na respetiva localidade; A compra um prédio por julgar erradamente ser o
único herdeiro do falecido B.

4.2. Exclusão prévia da anulação por erro.


A anulação por erro pode ser excluída por acordo contratual prévio relativamente à deteção do erro.
Apesar de este problema não ter uma solução pacífica, em tal sentido se pronunciaram autores como
W ERNER FLUME. Na verdade, estamos perante matéria de caráter dispositivo, que não se vê razão para
subtrair à disponibilidade das partes. Aliás, atente-se que, se numa compra e venda a prestação de
garantia pelas qualidades de coisa pode ser contratualmente excluída, então não pode ser considerado
um erro sobre as qualidades do objeto do lado do comprador.

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4.3. Condições gerais de relevância do erro-vício como motivo de anulabilidade.


I. Essencialidade;
É corrente na doutrina a afirmação de que só é relevante o erro essencial, isto é, aquele
que levou o errante a concluir o negócio em si mesmo e não apenas nos termos em que foi
concluído. O erro foi causa (é indiferente tratar-se de uma situação de causalidade única ou de
concausalidade) da celebração do negócio e não apenas dos seus termos. O erro é essencial
se, sem ele, se não celebraria qualquer negócio ou se celebraria um negócio com outro objeto
ou de outro tipo ou com outra pessoa.
Assim, já não revelaria o erro incidental, isto é, aquele que influiu apenas nos termos
do negócio, pois o errante sempre contrataria, embora noutras condições. O erro é incidental
se, sem ele, o errante, embora noutros termos, celebraria o mesmo negócio (manter-se-ia o
tipo negocial, o objeto, os sujeitos).
Densificando, CASTRO MENDES distingue ainda entre erro essencial absoluto (sem ele
não se teria celebrado nenhum negócio) e relativo (ter-se-ia celebrado outro negócio
essencialmente diferente), por um lado, e erro essencial parcial e incidental, por outro.
Em face do CC, desde já notar que o erro indiferente, isto é, um erro tal que, mesmo
sem ele, o negócio teria sido concluído nos precisos termos em que o foi, não tem qualquer
relevância. Assim, para relevar, o erro deve atingir os motivos determinantes da vontade (arts.
251.º e 252.º), o que, nesta hipótese, não acontece. Porém, a questão: deverá o erro exercer
uma intervenção essencial ou bastará uma intervenção incidental, nos termos que ficaram
definidos? Ora, parece que só o erro essencial produzirá, uma vez presentes os restantes
requisitos gerais e especiais, a anulabilidade do negócio. Não obstante, o erro incidental não
será irrelevante: o negócio deverá fazer-se valer nos termos em que teria sido concluído sem
o erro. No entanto, deverá ter lugar a anulabilidade quando se não possa ajuizar desses termos
com segurança, ou, pelo menos, com bastante probabilidade e, ainda, quando se prove que a
outra parte os não teria acolhido (art. 292.º).
II. Propriedade;
Trata-se de um requisito que circunscreve o campo de aplicação autónoma do erro-
vício, como motivo de invalidade.
Assim, o erro só é próprio quando incide sobre uma circunstância que não seja a
verificação de qualquer elemento legal da validade do negócio. Consequentemente, será
impróprio quando, por exemplo, versar sobre os requisitos legais de forma negocial, a ilicitude
do objeto mediato ou imediato, a capacidade do errante50. Nestes casos, o fundamento da

50 Note-se que já será um erro próprio, a integrar na hipótese do artigo 251.º (erro sobre as qualidades da pessoa
do declaratário), o desconhecimento da incapacidade do outro contraente. Nesta hipótese, o erro versa sobre uma
circunstância – a incapacidade do declaratário – que não é, para o errante, um fundamento de anulação, visto que

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invalidade não será o erro, mas o requisito legal cuja deficiência, ignorada pelo errante, vicia o
negócio; daí que o tipo de invalidade e o respetivo regime não sejam os correspondentes ao
erro-vício (anulabilidade), mas antes os correspondentes ao vício de forma, à ilicitude do objeto
negocial, à incapacidade.
III. Escusabilidade;
Na vigência do Código de 1867, a doutrina tradicional portuguesa considerava a
ausência de culpa da parte do errante condição sine qua non da sua relevância no sentido da
anulabilidade – o erro indesculpável ou grosseiro não anularia o negócio.
Já MANUEL DE ANDRADE e FERRER CORREIA: para estes autores a derimência do erro e a
consequente anulabilidade teriam lugar mesmo em caso de erro culposo, pois a situação do
contraente não enganado já é tomada na devida conta, ao permitir-se a anulação apensas
quando se verifiquem certos requisitos especiais, que se julgou corresponderem, pelo menos,
à situação de suspeita sobre a existência do erro.
Quid iuris em face do CC de 1966?
Não se formula, na subsecção relativa à falta e aos vícios da vontade, qualquer
exigência da desculpabilidade ou Escusabilidade do erro, pelo que se deve reputar consagrada
a solução segundo a qual tal requisito é dispensável, que é, aliás, a melhor de iure condendo.
Todavia, deve entender-se que, no caso de erro culposo, os interesses da outra parte, não
obstante a anulação, não são desprotegidos, pois, com fundamento no artigo 227.º (culpa na
formação dos contratos), o errante, admitido a invocar a anulabilidade, incorrerá em
responsabilidade pré-negocial, devendo indemnizar o interesse contratual negativo.
A questão: não deverá entender-se que nunca haverá lugar a esta responsabilidade,
dado que os requisitos especiais de relevância do erro, exigidos pelos artigos 251.º e 252.º, só
permitem a anulação quando não há qualquer confiança do declaratário digna de ser protegida?
Ora, se a lei tivesse exigido o conhecimento ou cognoscibilidade do erro pela outra
parte, como fundamento da anulação, a resposta a esta pergunta seria afirmativa, pois o
contraente não enganado teria contribuído também, com a sua culpa, para os danos resultantes
da anulação, dado que o erro era, pelo menos, reconhecível; ora, a concorrência da culpa do
lesado pode conduzir à exclusão da indemnização
(art. 570.º).
Todavia, a propósito do erro na declaração, dissemos já que a lei não exige aquele
requisito, contentando-se, quanto ao erro sobre o objeto ou sobre a pessoa do declaratário,
com a cognoscibilidade da essencialidade do elemento sobre que incidiu o erro; ora, pode haver

a incapacidade apenas pode ser invocada pelo incapaz ou pelos seus representantes. O errante poderá, portanto,
anular o negócio com fundamento em erro, uma vez verificados os restantes requisitos gerais (essencialidade) e
especiais de relevância. O erro sobre a capacidade só será impróprio, quando incidir sobre a capacidade do próprio
errante.

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hipóteses em que, verificando-se este requisito, o declaratário nem sequer devesse suspeitar
da existência do erro da contraparte. Neste caso, o negócio pode se anulado, não obstante a
falta de culpa do declaratário na formação da sua confiança, mas haverá lugar à obrigação de
indemnizar o interesse negativo. Quando, porém, a aplicação do artigo 247.º lese
clamorosamente os interesses do declaratário, deve obstar-se à anulação, por força da cláusula
geral do abuso do direito potestativo de anular o negócio.
IV. Individualidade ou singularidade;
Alguns autores exigiam que o erro fosse singular ou individual, na vigência do Código
de Seabra, isto é, que fosse exclusivamente do errante e não de toda a gente em geral. Solução
que MANUEL DE ANDRADE dizia ser “um rematado absurdo”. Com efeito, precisamente quando
o erro for comum a uma generalidade de pessoas, é que mais justificado se torna que o errante
o possa invocar para anular o negócio. Acolhiase, mal, o brocardo error communis facit ius.

4.4. Condições especiais de relevância do erro-vício como motivo de anulabilidade.

I. Erro sobre os motivos;


Inserem-se nesta categoria (residual) os casos em que o erro e não refere à pessoa do
declaratário nem ao objeto do negócio. Trata-se de uma noção definida por via negativa, que
corresponde ao erro da causa e abrange o erro acerca da pessoa de terceiro. Vide gratia: um
funcionário que arrenda ou compra um andar dum prédio numa cidade por crer, erradamente,
ter sido transferido para lá.
Nos casos deste tipo, o artigo 252.º/1 permite a anulação, desde que haja uma cláusula,
expressa ou tácita, no sentido de a validade do negócio ficar dependente da existência da
circunstância sobre que versou o erro. Com efeito, seria irrazoável permitir a anulação, uma
vez provado, simplesmente, o conhecimento pela contraparte da essencialidade do motivo que
levou o errante ao negócio, pois, a contraparte normalmente não daria o seu acordo ao
contrato, se este ficasse na dependência da circunstância cuja suposição levou o enganado a
contratar. Também se compreende que não baste o conhecimento ou a cognoscibilidade do
erro, pois, dado o acréscimo enorme de litígios e demandas a que esse regime daria lugar –
destinados a conseguir uma desvinculação arbitrária dos negócios realizados, com fundamento
no pretenso conhecimento pela outra parte da falsidade da representação que impeliu ao
negócio – a estabilidade dos negócios seria atingida e isso repercutir-se-ia na celeridade e
segurança da contratação.
Assim, justifica-se que se tenha exigido uma efetiva estipulação, expressa ou tácita,
tornando a validade do negócio dependente da verificação da circunstância sobre que incidiu
o erro, o que deve acontecer raramente. Ora, a função do artigo 252.º/1 é a de realizar uma
exclusão: exclui-se a relevância do erro sobre os motivos, para além do condicionalismo lá

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prescrito. Quanto ao aspeto positivo da sua relevância, uma vez verificado o acordo lá referido,
tal solução já resultaria do princípio da autonomia da vontade (art. 405.º).
Na segunda parte do artigo 252.º, estabelece-se um regime especial para certos casos
de erro sobre os motivos: se o erro incidir sobre as circunstâncias que constituem a base
negocial, haverá lugar à anulabilidade, nos mesmos termos em que, nos artigos 437.º a 439.º,
se dispõe acerca da resolução por alteração das circunstâncias vigentes no momento em que
o negócio foi concluído: desde que a exigência das obrigações assumidas afete gravemente
os princípios da boa fé e não esteja coberta pelos riscos do próprio contrato. Não se exigirá,
portanto, uma cláusula de condicionamento.
Quais as hipóteses em que se poderá afirmar que o erro incide sobre a base negocial51?
São hipóteses do tipo daquelas em que a não verificação da pressuposição releva e nelas
estão sem dúvida abrangidos os casos em que um dos contraentes tira dum bem um
rendimento especial, por força do errado convencimento da outra parte acerta da verificação
dum evento não normal (hipóteses do tipo dos coronation cases, bem como os negócios de
concretização ou concentração), quando haja uma falsa ideia acerca da existência ou extensão
do direito de uma das partes. São os casos em que a contraparte aceitaria ou, segundo a boa
fé, deveria aceitar um condicionamento do negócio à verificação da circunstância sobre que
incidiu o erro, se esse condicionamento tivesse sido proposto pelo errante – e isto porque houve
representação comum de ambas as partes da existência de certa circunstância, sobre a qual
ambas edificaram, de um modo essencial, a sua vontade negocial. Na fórmula de C ASTRO
MENDES – discutível -, a ideia central do artigo 252.º/2 é a de um erro bilateral sobre condições
patentemente fundamentais do negócio jurídico.
Por fim, note-se que o Código de 1966 refere-se a erro sobre os motivos, por a
terminologia erro acerca da causa ser equívoca, dado a palavra causa ter, no vocabulário
jurídico, um sentido técnico (função económico-social própria de cada figura negocial), embora
sem tradição no direito português e um sentido comum (simples motivo individual dos
contraentes). Não se estabelece qualquer distinção entre o erro de direito sobre os motivos
determinantes e o erro de facto, cabendo a ambas as modalidades o mesmo regime.
II. Erro sobre o objeto do negócio;
Está previsto na hipótese de erro sobre a identidade (na medida em que seja um erro-
vício e não um erro na declaração), quer na do erro sobre as qualidades. O negócio será
anulável nos termos previstos no artigo 247.º para o erro-obstáculo, isto é, desde que o

51 A teoria da base negocial foi formulada pelo jurista alemão P AUL OERTMANN, para enfrentar as consequências
injustas que adviriam de não se atribuir relevância às alterações extraordinárias e imprevistas verificáveis depois
da IGM. Para o Autor, a base negocial é a representação mental de uma das partes, reconhecida e não contestada
pela outra parte, ou a representação comum aos vários interessados no negócio, acerca da existência ou da
ocorrência de determinadas circunstâncias sobre a base das quais se constrói a vontade do agente.

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declaratário conhecesse ou não devesse ignorar a essencialidade, para o declarante, do


elemento sobre que incidiu o erro.
Com efeito, cabem neste regime as mesmas considerações que fizemos acerca do erro
na declaração e tendentes à conclusão de que seria mais razoável terse exigido o
conhecimento ou a cognoscibilidade do erro. Soluções diferentes e mais protetoras dos
interesses do declaratário e do comércio jurídico têm vindo a ser adotadas em regimes mais
recentes – v.g.: Princípios de Direito Europeu dos Contratos, elaborados pela Comissão Lando.
A lei fala de “erro que atinja os motivos determinantes da vontade quando se refira ao
objeto do negócio jurídico”. Não se faz qualquer delimitação das qualidades do objeto, cuja
suposição errada integre a hipótese do artigo 247.º. É, todavia, necessária uma delimitação,
pois seria absurdo que, por exemplo, se pudesse anular o negócio com fundamento no
desconhecimento de um preço mais barato noutro local.
Com MANUEL DE ANDRADE...
“O que pode e deve fazer-se é definir com a possível precisão as qualidades de que fala o artigo 661.º, por maneira
a não compreender esse termo tudo aquilo que de perto ou de longe se refira ao objeto do contrato. Simplesmente,
isso também não será empresa fácil. A tal respeito pouco nos dizem os tratadistas. Em todo o caso, pode coligir-se
de alguns que são de designar como qualidades dum objeto e respetiva constituição material e aquelas condições
factuais e jurídicas que, pela sua natureza e duração, influem no valor ou no préstimo desse objeto. De acordo com
isto, todos admitem, por exemplo, não ser qualidade de uma coisa o seu valor ou o seu preço – que o preço de
mercado ou de bolsa (cotação), quer o preço de aquisição pela outra parte – nem o poder de compra do dinheiro.”

O artigo 251.º abrange igualmente o erro sobre a natureza do negócio, pois versa sobre
os efeitos do negócio, sobre o seu conteúdo, isto é, sobre o seu objeto imediato.
III. Erro sobre a pessoa do declaratário52.
Abrange igualmente o erro sobre a identidade e o erro sobre as qualidades. Está
também previsto no artigo 251.º, cabendo-lhe, portanto, o regime correspondente ao erro na
declaração.

4.5. Aplicação de coisa a fim diferente do declarado.


Quando, num contrato de compra e venda, se declara o destino a dar à coisa vendida, mas o
comprador vem, mais tarde, a dar-lhe um destino diferente do declarado. Quid iuris? Há jurisprudência
sobre o problema, a qual, no entanto, nem sempre fundamenta a solução nos termos juridicamente
mais rigorosos.
Com efeito, é certo que o comprador não vem a dar à coisa adquirida o destino que declarara dar-lhe,
destino esse que pode ter sido decisivo para o vendedor, pode ter sido determinante da decisão de
contratar, de tal modo que, se soubesse que o comprador viria a dar à coisa outro destino, ele não teria
contratado. No entanto, o vendedor não incorreu em erro – o comprador é que não agiu de acordo com

52 O erro sobre pessoa de terceiro (sobre a identidade ou as qualidades deste) segue o regime geral do erro sobre
os motivos, isto é, o regime do artigo 252.º.

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aquilo que o vendedor esperava dele. Mas não se desconhece a realidade nem dela se faz uma falsa
ou deficiente representação – e só nesse caso é que haveria erro. Ora, como as coisas se passaram,
poderá dizer-se que se “erra”, sim, quanto ao futuro, é uma falha na previsão, é uma falsa ou deficiente
previsão, cujo enquadramento adequado é o artigo 437.º.
De facto, não se mostra necessário recorrer, atualmente, ao error in futurum, perante a consagração
clara, pelos artigos 437.º e ss., do instituo da alteração das circunstâncias. Uma deficiente previsão do
evoluir das circunstâncias releva se e na medida em que se verifiquem os requisitos do artigo 437.º;
não é um caso de erro nem tem autonomia em face desta norma.
Na verdade, o erro-vício consiste no desconhecimento ou numa falsa representação da realidade; se,
pelo contrário, a falsa representação se reportar ao futuro, é a previsão que falha ou o quadro de
acontecimentos pressuposto que não se verifica ou evolui em termos diferentes do previsto, caso em
que será de recorrer ao instituto da alteração das circunstâncias e apurar se essa falsa representação
reúne os pressupostos que este instituto requer para relevar juridicamente.
Em síntese, pode dizer-se que, se o comprador, após a celebração do negócio, der ao prédio um
destino diferente do que declarara e corresponder à sua intenção, o problema não será de erro do
vendedor, ao contrário do que tem sido decidido nos nossos tribunais. Erro haverá se o vendedor se
enganar quanto ao sentido da declaração do comprador, que nunca pensou, por hipótese, dar-lhe o
destino que o vendedor julgara. Mas haverá, então, um vício na formação da vontade e não uma
mudança do destino do bem. Assim como poderá é haver dolo do comprador se este procedeu com
intenção de enganar a outra parte quando emitiu aquela declaração.
Ora, a situação poderá ser enquadrada no âmbito do não cumprimento do contrato se o destino
declarado constituir uma obrigação do comprador, o que, no entanto, além de ser raro, retirará ao
problema a sua especificidade, pois deixará de ser um problema respeitante ao fim do contrato, para
passar a ser uma questão de relativa ao não cumprimento. Em todo o caso, haverá que apurar, por
interpretação, o sentido da declaração negocial sobre o destino do prédio, podendo haver lugar à
resolução do contrato (arts. 801.º/2 e 802.º/1).
Naturalmente, a via mais adequada para proteger o interesse do vendedor será a inclusão de uma
condição ou de uma cláusula resolutiva, que lhe permitam reaver o prédio caso o comprador não lhe
dê o destino declarado.
Na falta de estipulação, será de ponderar se o problema envolve uma alteração da base do negócio,
com o consequente direito à resolução ou modificação do contrato, nos termos do artigo 437.º. Se não
for assim, poder-se-á tratar de puros motivos do vendedor, de per si irrelevantes, na falta de acordo
das partes, de modo paralelo ao que sucede com o erro sobre os motivos (art. 252.º/1).
Todavia, ter-se-á de considerar que as partes estão vinculadas não apenas às obrigações que,
expressa ou tacitamente, hajam assumido, mas também a todas aquelas que sejam de incluir na
relação obrigacional emergente do concreto contrato celebrado, à luz da boa fé e do fim contratual.
Revestem-se de particular importância os deveres laterais ou deveres acessórios de conduta, que
recaem sobre qualquer das partes, através dos quais se pode dar guarida aos fins adicionais do

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vendedor, como o de a contraparte dar ao bem determinado destino, em conformidade com a


declaração que emitiu.
Por fim, dizer que se afigura de capital importância, à partida, determinar o sentido da declaração sobre
o destino do bem, o que assume relevo em sede de interpretação e integração do negócio (arts. 236.º
e 239.º).

5. O dolo.

5.1. Conceito.
A noção do dolo consta do artigo 253.º/1k. Trata-se de um erro determinado por um certo
comportamento da outra parte. Ora, só existirá dolo quando se verifique o emprego de qualquer
sugestão ou artifício com a intenção ou consciência de induzir ou manter em erro o autor da declaração
(dolo positivo ou comissivo), ou quando tenha lugar a dissimulação, pelo declaratário ou por terceiro,
do erro do declarante (dolo negativo, omissivo ou de consciência). Com efeito, pode tratar-se de um
processo enganatório simples (mentiras) ou de uma mise en scène mais complicada (seja a allegatio
falsi, seja suppressio veri). Porém, não existe dolo se há um erro provocado por informações inexatas,
sem intenção ou consciência de engano, embora com negligência. Este erro provocado culposamente,
a que os ingleses chamaram misrepresentation, pode fundamentar uma obrigação de indemnizar, a
cargo de quem provocou o erro (art. 227.º/1).
Na Alemanha, tem-se discutido se a culpa in contrahendo pode conduzir à própria liberação do
contrato, através de uma restituição natural que, nos resultados, seria de equiparar à anulação, em
casos em que não existiu dolo. A jurisprudência do BGH veio exigir, para a desvinculação com
fundamento em culpa in contrahendo um dano patrimonial (o instituto distinguir-se-ia, não por virtude
da eficácia in rem da anulação, diversa do direito a revogação, mas por não visar a proteção da
liberdade de decisão jurídico-negocial, e antes do património. Todavia, partindo de um conceito de
património que inclui igualmente a liberdade de disposição patrimonial, considerou existente um dano
patrimonial logo pelo facto de se ficar vinculado a um contrato, mesmo que este não seja em si um mau
negócio. Contra a desvinculação com fundamento em culpa in contrahendo, quer por via de uma
constituição autónoma do direito que leve à extensão teleológica do regime do dolo, quer por via da
admissão de um instituo geral nesse sentido, MANFRED LIEB. Entre nós, SINDE MONTEIRO admite a
desvinculação em casos de indução negligente em erro, desde que o erro não seja relevante nem exista
dolo, mas propõe a aplicação do prazo de um ano do artigo 287.º/1, como forma de preencher uma
lacuna oculta no artigo 227.º/2, e de evitar contradições com o regime do dolo.

5.2. Modalidades.
 Dolo positivo e dolo negativo;
A distinção consta do artigo 253.º/1.

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Importa referir que o dolo negativo, a que a lei anterior chamava de má fé e a doutrina
reticência e dolo de consciência, não existe em todos os casos de silêncio perante o erro em
que versa o declarante. A omissão de esclarecimento só constituirá dolo ilícito quando exista
um dever de elucidar, por força da lei, de estipulação negocial ou das conceções dominante no
comércio jurídico (art. 253.º/2). Por conseguinte, há que atender ao tipo de negócio e ao tipo
de relações entre as partes: uma relação de confiança permanente pode fundamentar um dever
de esclarecer, mas o mesmo não existirá, em regra, nos negócios especulativos, por se dever
atender ao risco com que as partes operam. Por fim, note-se que são aqui, também, relevantes
os ditames da boa fé, a que se refere o artigo 227.º/1, cuja observância pode impor o
cumprimento de deveres de informação e de esclarecimento – deveres, cuja intensidade e
alcance podem variar segundo diversas circunstâncias, tais como a forma e o custo de
aquisição da informação, o objeto da informação e a situação da contraparte.
Costumava assinalar-se à distinção o interesse prático de o dolo negativo de terceiros
não ser relevante. Essa conclusão não tem hoje qualquer fundamento, pois o artigo 253.º/1 fala
expressamente em dissimulação de terceiro; ponto é que exista o dever de elucidar por parte
do terceiro reticente.
 Dolus bonus e dolus malus;
Só é relevante, como fundamento de anulabilidade e responsabilidade, o dolus malus.
A lei tolera a simples solércia ou astúcia, reputada legítima pelas conceções imperantes num
certo setor negocial. Com efeito, a lei declara não constituírem dolo ilícito, sendo, portanto,
dolus bónus, as sugestões ou artifícios usuais, considerados legítimos, segundo as conceções
dominantes do negócio jurídico (art. 253.º/2).
Do confronto do Código de 1867 com a lei atual, resulta que, enquanto a lei anterior
fazia apelo ao critério da vaguidade e generalidade das considerações que os contraentes
fazem entre si sobre proveitos ou prejuízos, agora se preferiu o critério da usualidade ou
normalidade.
 Dolo inocente e dolo fraudulento;
No primeiro, há mero intuito enganatório, enquanto que no segundo há o intuito ou a
consciência de prejudicar. A distinção não tem interesse prático, em ambos os casos se
verificando os mesmos efeitos.
 Dolo proveniente do declaratário e dolo proveniente de terceiro;
A distinção tem grande importância, pois para a relevância o dolo de terceiro, são
exigias certas condições suplementares que devem acrescer às do dolo do declaratário e o seu
efeito é mais restrito. Existirá, não apenas dolo de terceiro, mas também dolo do declaratário,
se este for cúmplice daquele ou conhecer (ou mesmo, em certos casos, apenas dever
conhecer) a atuação de terceiros (art. 254.º/2).
 Dolo essencial ou determinante e dolo incidental.

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A distinção põe-se nos termos em que se pôs para o erro. No dolo essencial, o
enganado (deceptus) foi induzido pelo dolo a concluir o negócio em si mesmo e não apenas
nos termos em que foi concluído; sem dolo, não se teria concluído qualquer negócio. Diz-se
que, no dolo, há como que uma dupla causalidade: o dolo é causa do erro e este é determinante
do negócio.
No dolo incidental, o deceptus apenas foi influenciado quanto aos termos do negócio,
pois sempre contrataria, embora noutras condições. A importância da distinção está em que o
dolo incidental não conduz, desde logo, necessariamente, à anulação, nos termos já indicados
a propósito do erro. Sem, porém, se admitir prova, pelo autor do dolo, de que a sua vontade
hipotética seria contrária à modificação do negócio.

5.3. Condições de relevância do dolo como motivo de anulação.


O principal efeito do dolo é a anulabilidade do negócio (art. 254.º/1); mas acresce a responsabilidade
pré-negocial do autor do dolo (deceptor), por ter dado origem à invalidade, com o seu comportamento
contrário às regras da boa fé, durante os preliminares e a formação do negócio (art. 227.º) 53 . Ao
contrário do que é possível acontecer nos casos de erro, quando este for culposo, não há, no dolo,
responsabilidade do declarante (deceptus), pois este é vítima e não autor de um comportamento
contrário às regras da boa fé.
A responsabilidade do autor do dolo é uma responsabilidade pelo dano da confiança ou interesse
contratual negativo. Em suma: o deceptus tem o direito de repristinação da situação anterior ao negócio
e a cobertura dos danos que sofreu por ter confiado no negócio e eu não teria sofrido sem essa
confiança. Ao invés, não pode pretender ser colocado na situação em que estaria se fossem
verdadeiros os factos fingidos perante ele 54 . Não obstante a falta de um preceito, deve ter-se por
excluída a eficácia da renúncia prévia a estes efeitos.
Atente-se, agora, nas condições de relevância do dolo do declaratário, como motivo de
anulação.
Em primeiro lugar, deve tratar-se de um dolus malus (art. 253.º/2).

53 A obrigação de indemnizar é um efeito do dolo, autónomo relativamente à anulabilidade, surgindo quando não
se verifiquem todos os requisitos do direito de anular ou este tenha já caducado. O fundamento legal da obrigação
de indemnização radica, além do artigo 227.º/1, no artigo 253.º/2, do qual resulta a contrario ser o dolo um ato
ilícito.
54 Na disciplina jurídica do contrato de compra e venda, deparam-se-nos, todavia, normas que conferem ao
comprador enganado direitos mais amplos do que os correspondentes ao regime geral (arts. 906.º e 914.º, bem
como o artigo 910.º, este aplicável à venda de coisas defeituosas por força do artigo 913.º/1). Acresce que o autor
do dolo pode incorrer em responsabilidade penal.

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Depois, deve ser essencial ou determinante, embora o dolo incidental também possa vir a
conduzir à anulação. Este requisito tem algum apoio no artigo 254.º/1. Na hipótese de dolo negativo,
trata-se de uma causalidade hipotética.
Por último, deve existir no deceptor a intenção ou consciência de induzir ou manter em erro. É
um elemento da definição do dolo, conforme dispõe o artigo 253.º/1. Segundo ele, basta a consciência
de criar ou manter uma situação de erro55, mesmo que esse não seja o propósito de quem a cria ou
mantém. Se essa consciência existe e, apesar dele, se prossegue ou mantém o comportamento que
gera ou faz perdurar o erro, há dolo ilícito.
Assim, não é necessário que o dolo seja unilateral. O próprio dolo bilateral ou recíproco pode
ser invocado como fundamento de anulação (art. 253.º/1). Tal solução é a que logicamente resulta do
facto de o fundamento da anulabilidade do dolo ser a viciação da vontade.
Quanto às condições de relevância do dolo de terceiro como motivo de anulação 56, refere-se-
lhe o artigo 254.º/2, devendo verificar-se os requisitos anteriores. Não obstante, há que atentar numa
distinção.
Se o declaratário conheceu ou lhe foi cognoscível o dolo de terceiro, o negócio será totalmente
anulável. Desde logo, neste caso, haverá dolo negativo do próprio declaratário, se ele conheceu
efetivamente os artifícios de terceiro; a lei, todavia, estabelece a sanção da anulabilidade, mesmo para
a hipótese da simples cognoscibilidade do declaratário. Por outro lado, se o declaratário não conheceu
nem devia conhecer o dolo de terceiro, o negócio só será anulável, se ao terceiro deceptor adveio, por
força do negócio, diretamente, algum direito (isto é, se existir no contrato cláusula a seu favor) e a
anulação será limitada à cláusula a favor de terceiro57 (invalidade parcial).

5.4. Fundamento jurídico da anulabilidade por dolo.


O fundamento da anulabilidade por dolo não consiste numa ideia de reparação do prejuízo sofrido pelo
enganado (o próprio dolo inocente ou altruístico releva), mas na adulteração da vontade do deceptus,

55 Ou, mesmo, da possibilidade de tal situação poder ser criada ou mantida, como no caso da parte que faz meras
conjeturas, sem indicar que o são, ou que concede informações às escuras, sem ter elementos para tal (por
exemplo, a afirmação às escuras de que um automóvel não sofreu qualquer acidente). Tratar-se-á de um caso de
dolo eventual, mas que gera anulabilidade.
56 Se o dolo é exercido por um representante do declaratário ou por auxiliares (agentes) deste na conclusão do
negócio, a situação será tratada como dolo do declaratário (assi, defendendo a aplicação do artigo 800.º/1). Na
hipótese de um devedor induzir dolosamente outrem a ser fiador da sua dívida a um determinado credor, o fiador
enganado não pode invocar dolo do declaratário para se exonerar da obrigação fidejussória que assumiu perante
o credor. Com efeito, o devedor (deceptor) é um terceiro relativamente ao credor; o seu interesse primário é
pessoal, não sendo o devedor um representante da pessoa ou dos interesses do credor.
57 O negócio é anulável em face do terceiro que foi o autor do dolo; logo, todo o negócio é inválido na hipótese de
um seguro de vida em dolo do beneficiário.

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tal como sucede com o erro simples. A reparação do prejuízo causado é visada com a responsabilidade
civil que impende sobre o deceptor, e nºao com a anulabilidade.

5.5. Negócio em que o dolo não tem relevância.


Resulta dos artigos 1631.º/-b) e 1636.º que, no casamento, o dolo não tem relevância específica
em relação ao erro.

6. A coação.

6.1. Conceito.
O conceito de coação consta do artigo 255.º/1 e consiste no receio de um mal de que o declarante foi
ilicitamente ameaçado com o fim de obter dele a declaração. É, portanto, a perturbação da vontade,
traduzida no medo resultante de ameaça ilícita de um dano (de um mal), cominada com o intuito de
extorquir a declaração negocial.
Só há vício da vontade quando a liberdade do coacto não foi totalmente excluída, quando lhe foram
deixadas possibilidades de escolha, embora a submissão à força fosse a única escolha normal.
Com efeito, não basta um simples medo ou receio; a lei exclui, desde logo, o chamado temor
reverencial (art. 255.º/2). Torna-se necessário que o receio provenha de uma ameaça ilícita. Exige-se,
igualmente, que a cominação do mal vise extorquir a declaração negocial.

6.2. Modalidades.
I. Coação física (absoluta) e coação moral (relativa);
A coação física, absoluta ou ablativa reduz o coagido à situação de mero instrumento
ou autómato; a coação moral ou relativa ou compulsiva reduz a liberdade do coagido, mas não
a elimina (neste sentido, coacta voluntas, sempre voluntas), sendo o coagido ameaçado de um
mal se não emitir a declaração; a liberdade do coacto é cerceada, mas não excluída, na coação
moral, pois existe sempre uma opção entre padecer o mal cominado ou expor-se à sua
consumação e celebrar o negócio.
A primeira dá lugar à inexistência do negócio (art. 246.º); a segunda à mera
anulabilidade (art. 256.º).
II. Coação principal e coação acidental;
A distinção põe-se nos termos expostos do dolo e do erro e o seu interesse é idêntico.
III. Coação dirigida à pessoa ou à honra ou à fazenda do declarante ou de terceiro;
No regime geral da coação, não há qualquer diferença de tratamento, consoante o bem
ameaçado pela cominação ou a pessoa diretamente visada.

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A lei, ao contrário de outras legislações, omitiu qualquer restrição quanto à natureza do


vínculo existente entre o coagido e o terceiro, a quem a ameaça se refere, por considerar
arbitrária qualquer especificação.
IV. Coação exercida pelo declaratário e coação exercida por terceiro.
A lei estabelece uma ligeira diferença entre as condições de relevância da coação,
como motivo de anulabilidade, num e noutro caso.

6.3. Condições de relevância da coação como motivo de anulabilidade.


A coação moral origina a anulabilidade do negócio (art. 256.º) e dá lugar igualmente à responsabilidade
pré-negocial do coactor (art. 227.º). Verifica-se a anulabilidade, e não a nulidade, mesmo que o coacto
tenha procedido com reserva mental, ao admitir a declaração. Deve, igualmente, como para o dolo,
ter-se por ineficaz qualquer renúncia antecipada a estes efeitos da coação moral.
I. Coação exercida pelo outro contraente;
Só produzirá efeitos quando concorram os seguintes requisitos. Em primeiro lugar,
importa que se trate de uma coação essencial ou principal; mas a coação incidental pode,
igualmente, conduzir à anulação nos mesmos termos do dolus incidens, isto é, tem lugar uma
redutibilidade que pode conduzir à anulabilidade. Depois, a intenção de extorquir a declaração
e, por isso mesmo, não há coação no caso de o arrendatário ameaçar o senhorio com violência
física se este não lhe baixar a renda, e o senhorio, para se ver livre da ameaça, vender o prédio.
Por último, a ilicitude da ameaça, entendendo-se que esta pode resultar: da ilegitimidade dos
meios empregues (ameaça de agressão, morte, mesmo que o autor da ameaça não pretenda
senão a satisfação do seu direito – a ação direta é lícita apenas dentre dos limites do artigo
336.º); ou, ainda, da ilegitimidade do fim, ou ilegitimidade da prossecução daquele fim com
aquele meio (v.g.: ameaça de recurso às vias de direito, para conseguir uma vantagem
indevida; podendo, também, tratar-se de uma ameaça de exercício abusivo extrajudicial de um
direito, como, por exemplo, uma doação consentida por um velho paralítico aos seus meeiros,
numa parceria agrícola, que ameaçavam abandoná-lo).
Assim sendo, não haverá coação, se há apenas a ameaça do uso de um direito para
conseguir a satisfação ou garantia de um direito existente – por exemplo, ameaça de penhora
do devedor, se ele não pagar ou não fizer dação em pagamento razoável, ou oferecer garantia,
ou subscrever um documento de dívida (art. 255.º/3).
II. Coação exercida por terceiro.
A coação exercida por terceiro provoca a anulabilidade do negócio e põe a cargo do
coactor uma obrigação de indemnizar o declarante (coagido) e o declaratário (se não for
cúmplice do terceiro).
Ao contrário do dolo de terceiro, o negócio será anulável na sua totalidade (mesmo em
face do declaratário), quer o coactor seja beneficiado por cláusula a seu favor, existente no

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contrato, quer não seja, e haja ou não conhecimento ou cognoscibilidade do vício por parte do
declaratário (art. 256.º).
Com efeito, a lei desaprova a coação em tão forte medida que, em face dela, a proteção
da contraparte cabe, mesmo que esta nada soubesse ou devesse saber da coação. Acresce,
como justificação racional desta diversidade de regimes, que já estava consagrada no direito
anterior, a circunstância de o coagido por terceiro, a não poder invocar a coação, não poder
invocar outro vício da vontade, enquanto o deceptus, mesmo que não possa invocar o dolo de
terceiro, tem sempre a eventual possibilidade de invocar o erro simples.
O CC, equiparando os efeitos da coação de terceiro aos da coação do declaratário,
exige, todavia, exclusivamente para a primeira, os dois requisitos seguintes: gravidade do mal
cominado, apreciada objetivamente, mas em relação aos vários tipos de indivíduo; justificado
receio da consumação do mal, isto é, deve ser uma ameaça de viável execução, atendendo à
capacidade de resistência, em confronto com as possibilidades do cominante, do tipo médio
de indivíduo com as condições pessoais do declarante.
Por fim, note-se que estes requisitos eram exigidos, dentro da tradição romanista, para
a própria coação do outro contraente, consagrando assim uma ideia extrema de
autorresponsabilidade. Tal solução não tem justificação, à luz da ideia de que a relevância
civilística da coação, apenas, por equacionação da viciação da vontade do coagido com a
proteção da confiança da contraparte: ora, esta não merece qualquer proteção quando for o
autor da coação, mas já terá o direito de esperar uma resistência do coagido à ameaças de
terceiro.

6.4. A coação moral e o simples temor reverencial.


O artigo 255.º/3 consagra expressamente o princípio, segundo o qual, o temor reverencial (medo de
incorrer no desagrado ou desafeto de outrem) não constitui coação, sendo, assim, irrelevante como
motivo determinante da vontade.

7. O estado de necessidade.

7.1. Conceito.
Trata-se de uma situação de receio ou temor gerada por um grave perigo que determina o
necessitado a celebrar um negócio para superar o perigo em que se encontra.
Modalidades possíveis, consoante a natureza do facto que lhe dá origem: facto natural ou facto
humano.

7.2. Confronto com a coação.

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A confusão só pode surgir quando o estado de necessidade for ocasionado por um facto humano.
Neste caso, estaremos perante a figura do estado de necessidade quando a situação de perigo não for
criada com o desígnio de extorquir um negócio (falta de intenção de coagir).
Poderão igualmente surgir dúvidas se, criado o perigo por um facto natural ou humano, o contraente
que acode ao necessitado tinha o dever jurídico (legal ou contratual), ou, mesmo, apenas um operativo
dever moral de auxílio. Nesta hipótese, se o contraente não presta o auxílio a que estava obrigado, a
não ser depois de exigir uma retribuição a que não tinha direito, não há dúvida de que a situação de
perigo em que se encontra o necessitado é causalmente imputável à recusa de atuação daquele, e
pode, assim, dizer-se provocada, partir da omissão do agir, com o intuito de extorquir o negócio. Não
há qualquer diferença entre os pressupostos desta hipótese e os da coação. Tais hipóteses (aquelas
em que havia obrigação de socorrer o necessitado) são, todavia, objeto de um tratamento mais drástico
e mais justo, por parte do direito, do que seriam se as qualificássemos, pura e simplesmente, como de
coação. Com efeito, à coação moral corresponde a anulabilidade (art. 256.º) e os negócios referidos
devem ter-se por nulos, com fundamento em contrariedade à lei ou ofensa dos bons costumes (art.
280.º).
Na verdade, a exigência de remuneração viola a norma que impunha a prestação daquele auxílio
noutras condições ou, pelo menos, deve ter-se como ofensiva dos bons costumes.

7.3. Valor dos negócios jurídicos realizados em estado de necessidade.


No CC vigente, a hipótese dos negócios em estado de necessidade deve subsumir-se na previsão do
artigo 282.º, onde se estatui a anulabilidade dos chamados negócios usurários. É nos termos de tal
disposição que o legislador concede, sob a designação de usura, alguma relevância ao velho instituto
da lesão, não sancionando um critério puramente objetivo, mas exigindo, em conformidade com a
fisionomia do instituto, a verificação de requisitos objetivos (benefícios excessivos ou injustificados) e
requisitos subjetivos (exploração de uma situação de necessidade, inexperiência, ligeireza,
dependência, estado mental ou fraqueza de caráter de outrem). Entre estes requisitos subjetivos, figura
o estado de necessidade.
Assim, devem verificar-se requisitos objetivos: benefícios excessivos ou injustificados. Tem de haver
uma desproporção clara entre as prestações. Só haverá benefícios excessivos ou injustificados
quando, segundo todas as circunstâncias, a desproporção ultrapassa os limites do que pode ter alguma
justificação (podem relevar circunstâncias como a antecipação de uma prestação relativamente à outra,
um risco especial, a natureza especulativa do tipo negocial). O legislador recusou-se a estabelecer uma
relação de valor determinada (v.g.: critério do ultra dimidium). Apesar da superação do critério da laesio
enormis do direito comum e do nosso antigo direito, o critério do dobro do valor será um limiar a partir
de cuja ultrapassagem se deve averiguar a existência das demais circunstâncias objetivas e dos
requisitos subjetivos da usura.

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Igualmente, devem verificar-se requisitos subjetivos, nomeadamente: a exploração 58 de situações


tipificadas, que não é excluída pelo facto de a iniciativa do negócio provir do lesado; uma situação de
necessidade, inexperiência, ligeireza, dependência, estado mental ou fraqueza de caráter.
O prazo para requerer a anulabilidade começa a contar desde a cessação da situação de inferioridade.
Sobre o especial regime da anulabilidade ou modificação, no caso de usura criminosa, o artigo 284.º
CC.
Este regime dos artigos 282.º e 283.º não se aplicará, havendo lugar à nulidade, quando a pessoa que
se aproveita conscientemente da situação de necessidade tinha o dever de auxiliar o necessitado (ato
contrário à lei ou ofensivo dos bons costumes).

8. Incapacidade acidental.

O novo Código prevê e regula a incapacidade acidental entre a falta e os vícios da vontade,
dado o facto de não se tratar de uma situação permanente do indivíduo, mas antes de um desvio no
processo formativo da sua vontade em relação às circunstâncias normais do seu processo deliberativo.
A hipótese está prevista no artigo 257.º, onde se prescreve a anulabilidade, desde que se
verifique um requisito (além da incapacidade acidental) destinado à tutela da confiança do declaratário:
a notoriedade ou o conhecimento da perturbação psíquica. O requisito da notoriedade significa a
cognoscibilidade por uma pessoa média, colocada na posição concreta do declaratário.

58 O requisito exploração implica necessariamente momentos subjetivos, a saber, a consciência das situações
tipificadas no artigo e a consciência da causalidade entre essas situações e os benefícios recebidos, embora, na
prática, este segundo momento (causalidade) resulte, muitas vezes, de uma prova por presunções.

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Davide Rodrigues 2016/2017 Primeira Turma

DIVISÃO V – A REPRESENTAÇÃO NOS NEGÓCIOS JURÍDICOS

1. Conceito.
1.1. A representação e a autonomia privada.
1.2. Representação e mandato.
2. Espécies.
3. Confronto com institutos afins.
4. Admissibilidade da representação.
5. Pressupostos da representação.
5.1. Representação sem poderes e abuso de representação.
5.2. Aparência de poderes de representação.
5.3. O negócio consigo mesmo.

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Davide Rodrigues 2016/2017 Primeira Turma

DIVISÃO V – A REPRESENTAÇÃO NOS NEGÓCIOS JURÍDICOS

1. Conceito.

A representação traduz-se na prática de um ato jurídico em nome de outrem, para, na esfera desse
outrem, se produzirem os respetivos efeitos jurídicos. Nada mais é necessário para existir a
representação; para que ela, todavia, seja eficaz, torna-se necessário que o representante atue nos
limites dos poderes que lhe competem (art. 258.º) ou que o representado realize, supervenientemente,
uma ratificação.
Ora, os poderes de representação podem ser atribuídos, por um ato voluntário, pelo representado ao
representante: fala-se de representação voluntária e o ato voluntário atribuidor de poderes
representativos chama-se procuração. Não obstante, também poderão resultar dos estatutos de uma
pessoa coletiva (representação orgânica ou estatutária) ou, verificadas certas situações, ser
concedidos pela lei a representantes legais.

1.1. A representação e a autonomia privada.


Não há contradição entre a representação (o negócio celebrado por um representante) e o princípio
da autonomia privada; ao invés, traduz um alargamento das possibilidades contidas na referida
autonomia. Com efeito, não há contradição, desde logo, porque as possibilidades de atuação jurídico-
negocial própria (do representado) não são restringidas pelo facto de ter passado a outrem uma
procuração. Por outro lado, o negócio do representante com poderes é um aprofundamento coerente
da autonomia privada, também, na medida em que os poderes representativos assentam numa
manifestação de vontade do representado.
Assim, quanto às pessoas coletivas, têm justamente capacidade de agir por possuírem órgãos que as
podem representar. Na representação legal, não se depara, também, qualquer contradição com a
autonomia privada – os menores, interditos e certos inabilitados não estão, segundo a perspetiva do
ordenamento jurídico, em condições de defender os seus interesses e, por isso, não têm capacidade
para se autodeterminarem, isto é, não disfrutam de autonomia privada. Com efeito, a inexistência de
possibilidades reais de autonomia é que provocou a instituição de um representante legal e não a
inversa. O ordenamento jurídico fornece um sucedâneo – através do representante legal – da
capacidade de exercício de direitos, inexistente no caso dos menores, interditos e inabilitados.
Cumpre notar que, para existir a representação, basta que o negócio seja concluído em nome do
representado, não sendo necessário que o seja no interesse do representado. Com efeito, se a
representação legal tem lugar no interesse do representado, a representação voluntária pode ter lugar
por força da presunção in rem suam, caso em que os poderes representativos são conferidos no
interesse do próprio procurador. Não é indiferente que os poderes representativos tenham sido
conferidos no interesse do representado ou no do próprio procurador – assim, os artigos 265.º/3 e
1170.º/2, onde se estabelece uma exceção à regra da livre revogabilidade da procuração, dispondo-

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Davide Rodrigues 2016/2017 Primeira Turma

se que, se a procuração foi conferida no interesse do procurador ou de terceiro, não pode ser revogada
sem acordo do interessado (salvo ocorrendo justa causa).

1.2. Representação e mandato.


Não há coincidência entre as noções de representação e mandato. Há perfeita autonomia entre as
duas figuras, pois o mandato é um contrato pelo qual uma das partes se obriga a praticar um ou mais
atos jurídicos por conta da outra (art. 1157.º); trata-se de uma modalidade particular do contrato de
prestação de serviço.
Assim, pode haver mandato sem haver representação, quando o mandatário não recebeu poderes
para agir em nome do mandante; age por conta do mandante, mas em nome próprio (é o caso do
contrato de comissão e do contrato de mandato sem representação (art. 1180.º). No polo oposto, pode
haver representação sem haver mandato, não só na hipótese da representação legal, mas também no
que toca à representação voluntária: a representação resulta de um ato (procuração, art. 262.º) que
pode existir autonomamente (negócio unilateral) ou coexistir com um contrato que, normalmente, será
o mandato, mas pode ser outro, como por exemplo, o contrato de trabalho ou um contrato de agência.
Decreto-Lei n.º 178/86
Artigo 2.º - Agente com representação
1. Sem prejuízo do disposto nos números seguintes, o agente só pode celebrar contratos em nome da outra parte se esta
lhe tiver conferido, por escrito, os necessários poderes.
2. Podem ser apresentadas ao agente, porém, as reclamações ou outras declarações respeitantes aos negócios concluídos
por seu intermédio.
3. O agente tem legitimidade para requerer as providências urgentes que se mostrem indispensáveis em ordem a acautelar
os direitos da outra parte.

2. Espécies.

I. Representação própria, direta ou imediata e representação imprópria, indireta ou mediata;


A representação imprópria não é, como a designação evidencia, uma verdadeira
representação, tal como este conceito é pressuposto pelo artigo 258.º. Verifica-se nas
hipóteses do contrato de comissão comercial, do mandato sem representação e noutras
hipóteses de interposição real de pessoas.

II. Representação legal e representação voluntária;


Trata-se de uma distinção que tem por base o critério da fonte donde promanam os
poderes representativos.
Na representação legal, o representante é indicado, verificada certa situação, pela lei,
ou por decisão judicial em conformidade com a lei e tem os poderes definidos pela lei. São
poderes de grande amplitude, traduzindo-se em legitimidade para representarem, em princípio,
o menor ou o interdito em todos os seus assuntos pessoais ou patrimoniais. Porém, verificam-

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se limitações e, em certos casos indicados pela lei, os representantes legais carecem de


autorização judicial.
Na representação voluntária, os poderes do representante e a respetiva extensão
provêm da vontade do representado, manifestada na procuração. Esta pode ser geral, isto é,
abranger todos os atos patrimoniais, e, neste caso, só legitima para atos de administração
ordinária, ou especial, abrangendo apenas os atos nel referidos e os necessários à sua
execução.
III. Representação ativa e representação passiva. representação ativa é a atuação em nome de
outrem na emissão de declarações negociais; a passiva traduz-se em receber declarações
negociais em nome de outrem, para se produzirem os mesmos efeitos que se produziriam se
tais declarações fossem recebidas por esse outrem.

3. Confronto com institutos afins.

 R. e simples núncio;
O representante, ao contrário do núncio, nunca recebe, nem mesmo quando a
procuração é especialíssima, uma mandato absolutamente especificado e imperativo. Decide,
pelo menos, o se do negócio e, frequentemente, mais, isto é, o conteúdo. O representante
emite uma declaração em nome de outrem; o núncio transmite uma declaração de outrem. O
núncio é um mero longamanus. O representante consuma; o núncio transmite o já consumado
(REINACH).
Quanto ao tratamento jurídico, haverá que ter em conta dois pontos.
Antes de mais, o representante (voluntário) não precisa de ter plena capacidade legal,
mas carece da capacidade natural de entender e querer, exigida pela natureza do negócio que
haja de efetuar (art. 263.º); quanto ao núncio, bastará a capacidade natural para transmitir a
declaração de vontade, podendo uma criança atuar como núncio. A plena capacidade legal do
representante é desnecessária, o que se justifica por o negócio ser indiferente para o
representante; se o representante mandatar, por exemplo, um menor, age por sua conta e
risco.
Em segundo lugar, note-se que se o representante excede os seus poderes de
representação, o negócio é ineficaz em relação ao representado (art. 268.º), se este não atribuir
àquele legitimidade representativa ex post facto (ratificação); se o núncio transmitir a sua
declaração inexatamente, o dominus poderá ficar vinculado nos termos da declaração emitida,
se não se verificarem os requisitos, exigidos no artigo 250.º, no sentido da anulabilidade, do
erro na transmissão da declaração.
 R. própria e representação imprópria;

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Na representação imprópria, não existe a contemplatio domini, embora se atue no


interesse ou por conta de outrem; na representação própria, existe a contemplatio domini
(atuação em nome de outrem).
A representação imprópria – na qual o agente, embora atuando no interesse de
outrem, age em nome próprio – é uma forma de mera representação de interesses, que não torna
o dono do negócio parte ou sujeito do ato jurídico praticado pelo representante. Este é que é parte
negocial.
 R. e formas de colaboração material ou técnica nos negócios de outrem;
A distinção assenta na contraposição negócio jurídico/ato material.
 R. e contratos para pessoa a nomear;
Os contratos para pessoa a nomear são previstos e disciplinados pelo artigo 452.º e
ss. Da noção aí consagrada e dos efeitos que a lei faz corresponder a este tipo de contratos
resulta nítida a distinção entre eles e os casos de representação própria ou imprópria.
Na representação própria, o negócio representativo produz efeitos na esfera do
representado ou, na hipótese de falta de legitimação representativa, é ineficaz; no contrato para
pessoa a nomear, os direitos e obrigações provenientes do contrato são apropriados, a partir
da celebração do negócio, pela pessoa nomeada e, não sendo feita a declaração de nomeação
nos termos legais, o contrato produz os seus efeitos relativamente ao contraente originário (art.
455.º).
Na representação imprópria (mandato sem representação) o mandatário age em nome
próprio, adquirindo os direitos e obrigações decorrentes dos atos que celebra, e é obrigado a
transferir para o mandante os direitos adquiridos, sendo este obrigado a assumir as obrigações
contraídas pelo mandatário (arts. 1180.º, 1181.º e 1182.º); no contrato para pessoa a nomear,
um dos contraentes declara contratar para um terceiro, reservando-se apenas o direito de o
nomear e, uma vez feita a declaração de nomeação nos termos do artigo 453.º, os efeitos do
negócio são encabeçados pela pessoa nomeada, retroativamente, sem necessidade de um ato
especial de transmissão dos direitos e das dívidas.
Quem contrata com pessoa a nomear assume os riscos da incerteza sobre a pessoa
de sua contraparte; só o fará, se pessoa deste lhe é indiferente, o que, em geral, apenar será
o caso, se o negócio, como sucede nas vendas a contado, foi imediatamente liquidado pelo
representante.
 R e simples autorização ou consentimento para atos de outrem;
O representante atua e na simples autorização inibe-se ou aprova-se uma iniciativa e
uma atuação de outrem (v.g.: artigo 153.º).
 R. e contratos a favor de terceiros;
Na representação, o representante não se torna titular de quaisquer direitos ou
obrigações em face da contraparte do negócio representativo, sendo sujeitos das relações
emergentes do referido negócio o representado e a outra parte; nos contratos a favor de

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Davide Rodrigues 2016/2017 Primeira Turma

terceiro (seguro de vida, seguro de responsabilidade, assunção de dívida) estabelecem-se


vínculos jurídicos entre o promissário e o promitente, além do direito adquirido pelo terceiro a
favor de quem foi convencionada a promessa ou dos outros efeitos favoráveis a este (art.
443.º/2).
 R. e as declarações sob o nome de outrem.
Na representação, o representante atua em nome de outra pessoa (representado) que
não se confunde com ele; na atuação sob o nome de outrem, diversamente, o declarante
assume o nome de outrem, fazendo-se passar por essa pessoa.
Nas declarações sob o nome de outrem, se este elemento (nome) não assume valor
de identificação do declarante, realizando-se a identificação por outros meios
(designadamente, de forma presencial), as vontades das partes encontram-se efetivamente,
pelo que a falsa indicação do nome será irrelevante (falsa demonstrativo non nocet).
Em qualquer caso, mesmo que a identificação pelo nome seja essencial, é claro que o
negócio não pode vincular o sujeito ao qual, aparentemente, diz respeito, mesmo que a outra
parte se não tenha apercebido da falsificação. Seria uma apoteose da proteção da confiança,
com mais inconvenientes práticos do que vantagens, e profundamente injusta. A declaração
não produzirá efeitos em relação ao verdadeiro titular do nome, por aplicação analógica, ou do
artigo 246.º ou do artigo 268.º/1. Porém, deve admitir-se que o negócio se torne eficaz
relativamente ao declarante aparente (dominus negotii), se este o quiser aprovar.

4. Admissibilidade da representação.

A representação própria é regulada pelo CC nos artigos 258.º e ss., enunciando-se alguns princípios
gerais, comuns à representação legal e à representação voluntária, isto é, àquela que promana do ato
voluntário denominado procuração.
Quanto à representação legal, a sua admissibilidade e o seu domínio de aplicação resultam das
disposições que consagram para o efeito de se suprir a incapacidade dos menores (art. 124.º), dos
interditos (art. 139.º) e, eventualmente, a dos inabilitados (art. 154.º). Quanto à representação
voluntária, é admitida nos artigos 262.º e ss. O mandato com representação (art. 1178.º), no qual está
coenvolvida uma procuração, é a fonte mais frequente da representação voluntária.

5. Pressupostos da representação.

No que aos pressupostos da representação diz respeito, importa distinguir os pressupostos de


existência (conceituais) do pressuposto de eficácia da representação.

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Davide Rodrigues 2016/2017 Primeira Turma

Atendendo ao primeiro, importam dois requisitos. Em primeiro lugar, a contemplatio domini, isto
é, realização do negócio em nome do representado, para que a contraparte saiba ou possa saber com
quem negoceia. Na dúvida, negoceia-se em nome próprio. Com efeito, a ligação ao dono do negócio
deve ser reconhecível, mas não é necessário que se diga o nome deste, podendo resultar das
circunstâncias. Depois, a declaração, em maior ou menor escala, de uma vontade própria do
representante, e não, pura e simplesmente, de uma vontade do representado. Através deste requisito,
distingue-se a figura do representante da figura do núncio.
Depois, quanto ao pressuposto de eficácia da representação, entende-se que o ato deve estar
integrado nos limites dos poderes que competem ao representante. O negócio vale em relação ao
representado. Não vale em relação ao representante; este não é parte negocial. Assim, deve existir,
por parte do representante, legitimação representativa, que pode ser originária, isto é, já existente ao
tempo do negócio representativo, ou conferida, posteriormente, através de uma ratificação do negócio
(legitimação representativa subsequente).

5.1. Representação sem poderes e abuso de representação.


Os atos praticados por um representante sem poderes ou falsus procurator (com total falta de poderes
representativos ou com excedência dos poderes que lhe foram atribuídos) são ineficazes em relação à
pessoa em nome da qual se celebrou o negócio, salvo se tiver lugar a ratificação (art. 268.º/1).
O negócio, ineficaz relativamente ao representado, não é tratado como um negócio do representante.
Não havendo ratificação, o representante sem poderes, verificada culpa sua, responde perante a
contraparte, com fundamento em responsabilidade pré-negocial (art. 227.º). O falsus procurator
responde pelo interesse contratual negativo, ou interesse da confiança (a contraparte é colocada na
situação em que estaria se não tivesse contado com a realização do contrato), se desconhecia, com
culpa, a falta de poderes (no caso de não ter culpa, não responde). Se o representante sem poderes
conhecia a falta de legitimidade representativa, a contraparte pode optar pela indemnização pelo não
cumprimento do contrato.
Verificada uma situação de responsabilidade pré-negocial, ou por culpa in contrahendo, responde o
representado, seja na representação legal, seja na representação voluntária (art. 800.º/1).
Haverá abuso de representação quando o representante atuar dentro dos limites formais dos poderes
conferidos, mas de modo substancialmente contrário aos fins da representação. O artigo 269.º manda
aplicar o regime do artigo 268.º à hipótese de abuso de representação, se a outra parte conhecia o
abuso ou este lhe era cognoscível.
O caráter formal ou consensual da ratificação, como da procuração, depende das exigências formais
do negócio representativo (arts. 268.º/2 e 262.º/2).

5.2. Aparência de poderes de representação.

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Davide Rodrigues 2016/2017 Primeira Turma

Nos casos em que o representante atuou sem poderes de representação (porque nunca dispôs
de legitimidade representativa ou porque excedeu os seus poderes 59) há que perguntar se o terceiro
que contratou com ele – e que confiou numa aparência jurídica (aparência de titularidade de poderes
de representação) – é protegido pela atribuição de efeitos ao negócio em relação ao representado.
Em princípio, a resposta a dar à questão posta é negativa, sendo antes ao terceiro que incumbe
exigir ao representante a justificação dos seus poderes representativos (art. 260.º).
Porém, a proteção do terceiro pode justificar-se nalguns casos. Assim, pode existir uma
procuração tolerada, porque o representado tolera a conduta, dele conhecida, do representante, e essa
tolerância, segundo a boa fé e considerando os usos do tráfico, pode ser interpretada pela contraparte
no negócio no sentido de que o representante recebeu procuração do representado para agir por ele.
Já é mais difícil aceitar a vinculação do representado em casos de mera procuração aparente,
em que o representado de facto não conhecia a conduta do representante, mas com o devido cuidado
teria podido conhecer e impedir, e a contraparte podia de acordo com a boa fé compreender a conduta
do representante no sentido de que ela não teria podido ficar escondida do representado com a
diligência devida, e que este, portanto, a tolera.
Mesmo nestas hipóteses, a questão tem hoje, porém de ser equacionada considerando o artigo
23.º/1, do Decreto-Lei nº 178/86, o qual prevê, sob a epígrafe representação aparente, que o negócio
celebrado por um agente sem poderes de representação é eficaz perante o principal se tiverem existido
razões ponderosas, objetivamente apreciadas, tendo em conta as circunstâncias do caso, que
justifiquem a confiança do terceiro de boa fé na legitimidade do agente, desde que o principal (o
representado) tenha igualmente contribuído para fundar a confiança do terceiro. Tal solução é de
alargar, pelo menos, a todos os casos em que a representação se verifica no quadro de contratos de
cooperação ou de colaboração, no domínio do direito comercial.

5.3. O negócio consigo mesmo.


O negócio consigo mesmo, manifestação particular da representação sem poderes (na medida em que
o negócio é perfeitamente válido, desde que o representado tenha especificadamente consentido na
celebração), está ferido de anulabilidade (art. 261.º) e não de ineficácia, como, prima facie, se poderia
pensar e se teria de concluir se o caso não estivesse expressamente hipotizado em norma especial
(art. 261.º).
A razão de ser da proibição do negócio consigo mesmo é impedir, dada a colisão de interesses, um
prejuízo para o representado ou para um dos representados 60. Por identidade de razão, deve ter lugar

59 Nos casos de extinção dos poderes e de abuso de representação, a situação da contraparte no negócio
representativo já resulta protegida pelos artigos 266.º e 269.º.
60 Sendo esta a razão de ser da proibição, a anulabilidade não terá lugar se o negócio excluir por sua natureza a
possibilidade de um conflito de interesses, ou só trouxer vantagens ao representado, pois, nessas hipóteses,
desaparece a ratio da proibição do autocontrato.

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Davide Rodrigues 2016/2017 Primeira Turma

uma aplicação analógica da proibição do artigo 261.º a casos de igual colisão de interesses, por
exemplo a hipótese de o representante nomear um outro representante e concluir com este um negócio
sobre o património do representado. Haveria uma possibilidade de fraude ao artigo 261.º, se o seu
conteúdo proibitivo não abrangesse, por aplicação analógica ou direta, a hipótese exemplificada no
período anterior.
CAPÍTULO III – O OBJETO NEGOCIAL

1. Noção de objeto do negócio jurídico.


2. Exigências legais.
2.1. Determinabilidade.
2.2. Possibilidade física.
2.3. Possibilidade legal e não contrariedade à lei.
2.4. Não contrariedade à ordem pública e ausência de ofensa aos bons costumes.
3. Consequências da inobservância dos requisitos.

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Davide Rodrigues 2016/2017 Primeira Turma

CAPÍTULO III – O OBJETO NEGOCIAL

1. Noção de objeto do negócio jurídico.

Deve distinguir-se entre: o objeto imediato ou conteúdo – efeitos jurídicos a que o negócio tende – e o
objeto mediato ou objeto stricto sensu – consiste no quid sobre que incidem os efeitos do negócio. Com
efeito, os artigos 280.º e ss. utilizam a expressão objeto negocial neste sentido complexivo, abrangendo
quer o conteúdo ou efeitos do negócio, quer o objeto propriamente dito ou em sentido estrito.

2. Exigências legais relativas ao objeto dos negócios jurídicos.

Os requisitos do objeto negocial são formulados no artigo 280.º. Dele se infere serem condições de
validade do negócio jurídico: a possibilidade física ou legal (ad impossibilia nemo tenetur), a não
contrariedade à lei (licitude), a determinabilidade, a não contrariedade à ordem pública e a
conformidade com os bons costumes do objeto negocial.

2.1. Determinabilidade.
O objeto negocial deve estar individualmente concretizado no momento do negócio, ou poder vir a
ser individualmente determinado, segundo um critério estabelecido no contrato ou na lei. Esta exigência
refere-se, sobretudo, ao objeto mediato do negócio. Tem interesse, a este respeito, o artigo 400.º,
acerca da prestação nos direitos de crédito, pois o objeto da prestação, nas relações obrigacionais é,
igualmente, o objeto mediato do negócio jurídico donde essas relações promanam.
Por falta deste requisito, devem considerar-se nulos os negócios cujo objeto não foi determinado nem
é determinável, por nem as partes nem a lei terem estabelecido o critério de harmonia com o qual se
deva fazer a individualização do objeto. É o caso dos negócios de venda de um objeto designado com
suma generalidade (“uma coisa”), pois o contrato não envolveria qualquer vinculação para o vendedor,
que poderia desonerar-se, entregando uma coisa insignificante.

2.2. Possibilidade física.


Significa que há qualquer impossibilidade material ou natural (derivada da natureza das coisas) do
objeto do negócio. Será fisicamente impossível o objeto quando, por exemplo, se vende um prédio
urbano que já não existe por ter sido destruído por um incêndio. Este requisito da idoneidade do objeto
refere-se ao objeto mediato ou material do negócio: a coisas ou prestações.
O artigo 401.º/3 permite concluir que só a impossibilidade (não a mera dificuldade) objetiva (para toda
a gente) invalida o negócio e não já a simples impossibilidade subjetiva, isto é, a que se verifica apenas
em relação à pessoa do devedor. Mas é claro que bastará a impossibilidade subjetiva, tratando-se de
uma prestação de facto não fungível. Com efeito, só falta um requisito de idoneidade do objeto se a

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Davide Rodrigues 2016/2017 Primeira Turma

impossibilidade é originária, isto é, contemporânea da celebração do negócio; nesta hipótese, depara-


se-nos uma nulidade do negócio (art. 280.º). Se a impossibilidade é superveniente, o que se nos depara
é uma extinção da obrigação por impossibilidade do cumprimento (arts. 790.º e 791.º). Além do mais,
não é fisicamente impossível o objeto, atualmente inexistente, de uma compra e venda, se as partes o
tiveram em vista como um bem futuro (art. 880.º). Em princípio, o preço não é devido, se a transmissão
do bem não chega a realizar-se, mas, quando as partes atribuem ao contrato caráter aleatório a solução
é a oposta (art. 880.º/2).
No entanto, note-se que a exigência, para a validade do negócio, da possibilidade (física e legal) do
respetivo objeto tem, porém, sido discutida noutras ordens jurídicas, que não a aceitam (o negócio é,
antes, válido, ab initio, sendo o credor protegido pelo regime do não cumprimento – assim nos Princípios
de Direito Europeu dos Contratos.

2.3. Possibilidade legal e não contrariedade à lei (licitude).


O Código atual distingue entre impossibilidade legal e contrariedade à lei (ilicitude) como sendo duas
vicissitudes distintas que pode conhecer o objeto negocial. A distinção, nos termos em que a concebia
Manuel de Andrade, parece não ter apreciável interesse prático, nem sequer fundamento lógico
indiscutível.
Será impossível legalmente o objeto de um negócio, quando a lei ergue a esse objeto um obstáculo
tão insuperável como o que as leis da natureza põem aos fenómenos fisicamente impossíveis. Ora, um
impedimento deste tipo só pode existir em relação a realidades de caráter jurídico, por exemplo,
negócios jurídicos e direitos. Podem, portanto, ter um objeto legalmente impossível negócios jurídicos
cujo objeto seja constituído por um outro negócio jurídico. Estão nestas condições os contratos-
promessa, que o CC regula nos artigos 410.º e ss. Quando, num contrato-promessa, as partes se
obrigam a celebrar certo contrato que não pode ser validamente concluído, pode dizer-se que o objeto
mediato do contratopromessa é legalmente impossível (promessa de venda de uma herança de pessoa
viva, art. 2028.º/261). Parecem também casos de impossibilidade legal as cessões de créditos (art.
577.º) ou posições contratuais (art. 424.º) emergentes de contratos inválidos.
Por outro lado, será contrário à lei (ilícito) o objeto de um negócio, quando viola uma disposição da lei,
isto é, quando a lei não permite uma combinação negocial com aqueles efeitos (objeto imediato) – p.
ex. o caso de se celebrarem negócios tendentes à produção de efeitos não previstos pela lei nos
domínios em que vigora o princípio da tipicidade - ou sobre aquele objeto mediato – p. ex. a proibição
do comércio de estupefacientes. Note-se que devem ser considerados contrários à lei, não só os
negócios que frontalmente a ofendem, mas também quando se constate, por interpretação, que a lei
quis impedir de todo em todo, um certo resultado, os negócios que procuram contornar uma proibição

61 A venda de herança de pessoa viva será um ato de objeto contrário à lei (art. 2028.º/2); a promessa de venda
de herança de pessoa viva tem um objeto legalmente impossível.

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Davide Rodrigues 2016/2017 Primeira Turma

legal, tentando chegar ao mesmo resultado por caminhos diversos dos que a lei expressamente previu
e proibiu (negócios em fraude à lei). A fraude à lei põe um problema de interpretação da lei e, nalguns
casos, de aplicação analógica. Temos como claro que não se podem admitir interpretações ilimitadas
de proibições, mas há fraude à lei quando se frustre claramente a intenção legislativa, se a proibição
não for aplicada.

2.4. Não contrariedade à ordem pública e ausência de ofensa aos bons costumes. O que vem a ser
a ordem pública para este efeito? Parece dever entender-se por esta noção o conjunto dos
princípios fundamentais, subjacentes ao sistema jurídico, que o Estado e a sociedade estão
substancialmente interessados em que prevaleçam e que têm uma acuidade tão forte que devem
prevalecer sobre as convenções privadas. Ora, trais princípio não são suscetíveis de uma
catalogação exaustiva, até porque a noção de ordem pública é variável com os tempos.
De facto, na jurisprudência francesa, esta cláusula geral foi aplicada, p. ex., às convenções sobre
tráfico de votos, aos contratos pelos quais alguém se obriga a conseguir um lugar de funcionário ou a
abandoná-lo, às convenções pelas quais alguém se obrigue a expor o seu corpo ou o de outrem a
danos voluntários e não justificados, às convenções sobre ações de estado de pessoas ou sobre as
relações entre os cônjuges. É, igualmente, o caso de alguém, por contrato, prometer obter um certo ato
de um funcionário ou entidade pública, ou o caso dos contratos amordaçantes, isto é, desmedidamente
limitadores da liberdade pessoas ou económica de uma das partes. Entre nós, a nossa jurisprudência
tem julgado contrária não só à moral, mas também à lei, a cláusula dos contratos de seguro de
responsabilidade segundo a qual o segurado, sob pena de perder os seus direitos se obriga a abster-
se de quaisquer atos que tendam a reconhecer a responsabilidade do segurador. Com efeito, segundo
o Ac. RL 6 de julho de 1995, são nulas, por violarem direitos de personalidade e serem contra a ordem
pública, cláusulas do contrato de seguro, segundo as quais a pessoa segura não deve transigir, em
todo ou em parte, sem autorização da seguradora, nem de qualquer outro modo entrar em contacto
com a vítima par a regulação do sinistro, e a pessoa segura não deverá por forma alguma reconhecer
a sua responsabilidade.
Além do mais, o Ac. STJ 17 de junho de 1966, onde se afirma que o casamento, o divórcio e a
separação são atos sérios, ligados ao estado das pessoas, que não podem ser objeto de especulações
mercantis e que não podem ser negociadas a troco de dinheiro.
Quando é que se pode considerar um ato como ofensivo dos bons costumes? O sentido desta
exigência é o mesmo da fórmula não contrariedade à moral pública do Código de Seabra. Não se trata
de remeter o juiz para uma averiguação empírica dos usos, pois remete-se para os bons usos, mas
também não se faz apelo a uma ética ideal, de caráter eterno. Os bons costumes são uma noção
variável, com os tempos e os lugares, abrangendo o conjunto de regras éticas aceites pelas pessoas
honestas, corretas, de boa fé, num dado ambiente e num certo momento. Em Plainiol, Ripert e Esmein,
encontra-se o seguinte passo: o juiz deve apoiar-se na opinião dos elementos sãos da população,
guardas de uma tradição antiga, que deu as suas provas, e na qual se inspiram, quanto ao essencial,

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Davide Rodrigues 2016/2017 Primeira Turma

tanto os homens de espírito conservador, como aqueles que querem, com espírito leal e
desinteressado, trazer à nossa organização social modificações radicais. O Supremo Tribunal alemão
emprega frequentemente a fórmula: é o sentido do decoro ou da dignidade de todas as pessoas que
pensam com equidade e justiça. Entre nós, no Ac. RP de 31 de janeiro de 1994, considerouse nulo, por
ofensa aos bons costumes, um negócio com atribuições patrimoniais pela cedência de favores íntimos
ou para a manutenção de uma relação de amantismo análogo ao casamento entre duas pessoas do
mesmo sexo (aventando-se também a hipótese de se tratar de uma doação indireta para manutenção
de uma relação de concubinato típico, em fraude à lei).

3. Consequências da inobservância dos requisitos a que deve obedecer o objeto negocial.

A infração de qualquer das exigências, formuladas no artigo 280.º, implica a nulidade do negócio
jurídico. Esta consequência terá lugar, independentemente das partes conhecerem ou deverem
conhecer o vício de que padece o objeto negocial. Também poderá ter lugar, verificados os requisitos
do artigo 227.º, a responsabilidade civil pré-negocial da parte culpada.

SUBTÍTULO III – ELEMENTOS ACIDENTAIS DOS NEGÓCIOS JURÍDICOS

1. Condição.
2. Termo.
3. Cláusula modal.
4. Cláusula penal.
5. Cláusulas limitativas e de exclusão de responsabilidade civil.
6. O problema da pressuposição.
6.1. Conceito.
6.2. Critérios de relevância da alteração da base do negócio.
6.2.1. Enquadramento histórico.
6.2.2. Posição adotada.
6.2.3. Requisitos.
6.3. Consequências.

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Davide Rodrigues 2016/2017 Primeira Turma

SUBTÍTULO III – OS ELEMENTOS ESSENCIAIS DO NEGÓCIO JURÍDICO

1. Condição.

As noções de condição suspensiva e de condição resolutiva constam do artigo 270.º CC: subordinação
pelas partes a um acontecimento futuro e incerto, ou a da produção dos efeitos do negócio jurídico
(condição suspensiva) ou da resolução dos mesmos efeitos (condição resolutiva.
Quanto à natureza da estipulação condicional, trata-se de uma vontade hipotética, embora atual e
efetiva, exteriorizada numa declaração única e incindível.
Por fim, quanto à razão de ser e importância prática da condição, representa uma superação da
incerteza objetiva do futuro, através de um regulamentos de interesses apto a, em qualquer hipótese,
realizar a representação que os sujeitos têm do seu interesse. Numa especial modalidade (condição
potestativa a parte creditoris) permite influir sobre o comportamento de outrem.

2. Termo.

Cláusula acessória típica pela qual a existência ou a exercitabilidade dos efeitos de um negócio são
postas na dependência de um acontecimento futuro mas certo, de tal modo que os efeitos só começam
ou se tornam exercitáveis a partir de certo momento (termo suspensivo ou inicial) ou começam desde
logo, mas cessam a partir de certo momento (termo resolutivo ou final).

3. Modo, encargo ou cláusula modal.

Cláusula acessória típica, pela qual, nas doações e liberalidades testamentárias, o disponente impõe
ao beneficiário da liberalidade um encargo, isto é, a obrigação de adotar um certo comportamento no
interesse do disponente, de terceiro ou do próprio beneficiário. Referem-se-lhe os artigos 963.º
(doações com cláusula modal) e 2244.º (instituição de herdeiro e nomeação de legatário sujeitas a
encargos).

4. Cláusula penal.

Cláusula penal é a estipulação em que as partes convencionam antecipadamente uma determinada


prestação, normalmente, uma quantia em dinheiro, que o devedor terá de satisfazer ao credor em caso
de não cumprimento, ou de não cumprimento perfeito da obrigação. Assim, pode revestir duas
modalidades: cláusula penal compensatória ou moratória, conforme tenha sido estipulada para o não
cumprimento da obrigação ou para a simples mora do devedor. Mas pode, igualmente, referir-se a
qualquer hipótese de cumprimento defeituoso da prestação.

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Davide Rodrigues 2016/2017 Primeira Turma

5. Cláusulas limitativas e de exclusão de responsabilidade civil.

Cláusulas limitativas de responsabilidade são estipulações através das quais os contraentes, no


momento da celebração do contrato – ou posteriormente, desde que antes da verificação do facto
gerador da responsabilidade – acordam em limitar, de alguma forma, a responsabilidade do devedor
pelo não cumprimento, cumprimento defeituoso ou mora das obrigações assumidas. A limitação da
responsabilidade verificar-se-á, quer condicionando-a a determinado grau de culpa, quer limitando-a
no seu montante.

6. O problema da pressuposição.
(ou da alteração das circunstâncias que fundaram a decisão de contratar)

6.1. Conceito.
A alteração das circunstâncias do negócio implica a não verificação de uma circunstância pressuposta
ou de uma pressuposição, sempre que a evolução do circunstancialismo não foi considerada pelo
declarante.
A noção de pressuposição, assim denominada por Windscheid, consiste na convicção, consciente ou
subconsciente, da verificação no futuro de uma dada circunstância ou estado de coisas, convicção
determinante da realização de um contrato, pois, de outro mod, não se teria celebrado o negócio ou só
teria tido lugar a sua realização noutros termos.
Com efeito, as partes – ou apenas uma delas – tiveram como certa verificação de um dado
acontecimento ou estado de coisas (status quo) e, por isso, contrataram. Se lhes ocorresse a
possibilidade de falhar tal circunstância pressuposta, não teriam contratado sem inserir no negócio uma
cláusula correspondente (p. ex. uma cláusula condicional). Daí que a pressuposição tenha já sido
caracterizada como uma condição não desenvolvida ou não explicitada (isto explica o estudo tradicional
da pressuposição em conjunto com as cláusulas acessórias típicas dos negócios jurídicos, embora não
haja nela qualquer estipulação das partes) ou como reserva virtual.

6.2. Critérios de relevância da alteração da base do negócio.


O problema traduz-se em saber se a alteração das circunstâncias que fundaram a decisão de contratar
e que foram, consciente ou subconscientemente, consideradas como continuando ou vindo a verificar-
se no futuro, deve importar uma resolução ou modificação do negócio, ou não deve afetar os termos
em que ele foi realizado.

6.2.1. Enquadramento histórico.


O Código de Seabra não continha uma regulamentação geral do problema que veio a ser posto com
particular agudeza por força de alterações económicas acentuadas, subsequentes a convulsões

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Davide Rodrigues 2016/2017 Primeira Turma

político-sociais já no século XX. Invocando o pensamento básico da velha teoria segundo a qual os
contratos seriam sempre acompanhados da cláusula rebus sic stantibus, começou a afirmar-se, sob o
nome de teoria da imprevisão, a ideia de que os contratos feitos em dado ambiente económico e social
podem ser resolvidos ou modificados, se se altera, de uma forma radical e imprevisível, esse ambiente.
Nesse sentido tomaram partido algumas codificações do nosso tempo, como o Código italiano de 1942,
o Código grego de 1940, entre outros.

6.2.2. Posição do problema.


Parece que é de inteira justiça abandonar o rígido princípio da estabilidade dos contratos (pacta
sunt servanda), quando, dentro de certos limites, caiu a base, constituída pelas representações das
partes, sobre que assentava o negócio. Tal solução corresponderá a uma penetração de um
pensamento ético e jusnaturalista no plano do direito positivo. Todavia, não se poderá determinar uma
correspondência do conteúdo contratual a todas as flutuações das circunstâncias cuja previsão levou
ao negócio, dado que tal solução, além de dificilmente praticável, seria gravemente lesiva da segurança
da contratação, de outros interesses gerais e da própria justiça, pois as partes, ao celebrarem um
contrato de longa duração, asseguram-se, muitas vezes, contra as possíveis variações do mercado.
Com efeito, toda a solução nesta matéria terá de representar um compromisso.
Por um lado, sempre o contrato, mormente o que se destina a vigorar por um certo período,
coenvolve a assunção de um risco. Contratar é, desde logo, planificar, antecipar o futuro, assumir uma
desvantagem presente em troca de uma vantagem futura. A tutela das expetativas e a proteção da
confiança exigem que se assegure o cumprimento do que tiver sido previamente acordado; esse
cumprimento impõe-se não só de uma perspetiva utilitarista, mas também porque a assunção de um
risco corresponde a uma manifestação de autonomia, de uma forma emancipada e auto-responsável
de condução da própria vida.
Por outro lado, o contrato não é um fenómeno isolado, ocorrendo inserido numa realidade social
e humana, imerso num ambiente ou background que não pode ser ignorado. A economia do contrato
pode ver-se radicalmente alterada por fatores que, tantas vezes, as partes não controlam e sobre os
quais podem nem sequer ter formado qualquer representação. Em tais hipóteses, não falta quem tenha
afirmado até que o contrato cujo cumprimento é agora exigido não é, na realidade, o mesmo que as
partes celebraram.
A dificuldade do problema e a profusão de respostas levará muitas vezes as partes (sobretudo
no comércio internacional ou se o contrato é de elevado valor) a procurar, por acordo prévio, uma
solução para o problema mediante as hardship clauses. Faltando uma tal solução há, porém, que
procurar uma solução na lei vigente.

Vide: “A hardship clause e o problema da alteração das circunstâncias” A. Pinto Monteiro/Júlio


Gomes

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Davide Rodrigues 2016/2017 Primeira Turma

6.2.3. Requisitos.
Quais serão os requisitos a exigir, em nome da estabilidade contratual, para que a alteração anormal
das circunstâncias que fundaram a decisão de contratar por um ou por ambos os contratantes possa
levar à resolubilidade ou modificação do negócio e, assim, o possa reconduzir à justiça contratual?
O CC foi sensível a esta exigência de justiça, que aponta no sentido de às partes ser facultada a
possibilidade de operarem uma extinção ou modificação das suas vinculações em certos casos de não
verificação da pressuposição (exigência também considerada agora no BGB com a reforma de 2001).
Com efeito, o artigo 437.º/1 dispõe que “se as circunstâncias em que as partes fundaram a decisão de
contratar tiverem sofrido uma alteração anormal, tem a parte lesada direito à resolução do contrato, ou
à modificação dele segundo juízos de equidade, desde que a exigência das obrigações, por ela
assumidas, afete gravemente os princípios da boa fé e não esteja coberta pelos riscos do próprio
contrato”.
Esta norma concede como remédio para obviar a uma situação injusta, a possibilidade resolução ou
modificação do contrato. Os pressupostos da aplicação desse remédio são definidos através das
seguintes exigências, destinadas a limitar o arbítrio do julgador e a servir de critério auxiliar da sua
apreciação valorativa: alteração anormal das circunstâncias em que as partes fundaram a decisão de
contratar; manutenção do conteúdo contratual afetando gravemente os princípios da boa fé e não
estando abrangida pela álea própria do contrato. Neste sentido, a alteração das circunstâncias deve
ser uma alteração anormal e com consequências tais que a exigência do cumprimento inalterado
implicaria, cumulativamente, uma ofensa aos princípios da boa fé e a imposição de uma situação que
não corresponderia aos riscos do próprio contrato. Faça-se algumas especificações tendentes à
caracterização das cláusulas gerais a que se refere o artigo 437.º/1.
I. Desde logo, o fundamento da resolução ou modificação do contrato não se limita à
excessiva onerosidade superveniente da prestação (neste sentido o Código italiano e,
mais recentemente, o Código brasileiro), mas estende-se a outros casos em que esse
resultado igualmente se legitime.
II. Também não se pode considerar acolhida no CC a doutrina da pressuposição nos termos
em que foi exposta por Windschied e que levaria à revogação do negócio sempre que a
pressuposição fosse reconhecível para a outra parte. Tal solução facilitaria demasiado a
extinção do contrato, com gravame para a segurança jurídica e a justiça. Basta pensar no
exemplo do indivíduo que toma de arrendamento uma casa numa praia, para a época
balnear, na pressuposição, reconhecível para o senhorio, de que terá férias nessa época,
hipótese em que a doutrina deste Autor permite a revogação do negócio, falhando a
pressuposição, e todavia, deve entender-se que a manutenção do contrato não afeta
gravemente os princípios da boa fé.
III. A mesma apreciação negativa deve ser feita à primeira versão (P. Oertmann) da doutrina
da base negocial: a eficácia dos negócios jurídicos está ligada à subsistência da sua base,
entendendo-se por base negocial as representações de cada uma das partes sobre a

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Davide Rodrigues 2016/2017 Primeira Turma

existência de certas circunstâncias consideradas como basilares, desde que a outra parte
as reconheça como importantes, sem as contradizer. Esta doutrina, que já representa um
avanço, em relação à de Windscheid, no sentido de uma maior estabilidade contratual é
ainda assim insatisfatória.
Manuel de Andrade tinha como certa, no essencial, a formulação dada por Lehmann à teoria
da base negocial, nos termos seguintes: a pressuposição deficiente só é relevante quando for
conhecida ou cognoscível para a outra parte no momento da conclusão do negócio e desde que esta,
se lhe tivesse sido proposto o condicionamento do negócio à verificação da circunstância pressuposta,
teria aceitado tal pretensão ou a deveria ter aceitado segundo a boa fé. Com efeito, estão abrangidos
por esta formulação os casos do tipo coronation cases, bem como, p. ex,, os casos em que são dados
em locação, para um determinado fim, o qual, em virtude de proibição, recusa de concessão oficial,
entre outros, se tornou inalcançável, locais que não teriam, normalmente, o mesmo préstimo para
outros fins, e, também, as hipóteses de representação errónea de uma circunstância essencial para
ambas as partes (para esta última, fala Larenz de queda de base negocial subjetiva).
Todavia, Manuel de Andrade ia mais longe e tinha por justificada a resolução ou modificação
do negócio, ainda que não se verifiquem os requisitos da teoria da base negocial de Lehmann, desde
que a boa fé justifique agora aquele resultado, embora não exigisse a aceitação da cláusula de
condicionamento na data do negócio. É o que tem lugar, por exemplo, quando num contrato bilateral
se verifica o que Larenz chama uma turbação da equivalência, isto é, quando, em consequência de
eventos imprevistos (ruína da moeda, alteração da legislação), as relações de ambas as partes se
tornaram numa grosseira não relação, de modo que o contrato não satisfaz já o seu sentido como
contrato de troca. Visto que está sempre ligado a um contrato de longa duração um certo risco, risco
este normal, a suportar pelas partes, as alterações de valor só devem ser tomadas em conta quando
promanem de acontecimentos não previstos normalmente e atinjam um tal volume que surgiu uma
grosseira não relação, isto é, uma não relação tão grave que um julgador razoável não pode já
considerar a prestação de um, como o contra-valor da do outro.
Cremos que estas diretrizes gerais são as correspondentes ao sentido e alcance da hipótese
do artigo 437.º, por serem a concretização dos princípios da boa fé e do respeito pelos riscos assumidos
pelas partes. Desta forma, deixando de ser inteiramente válido o dogma da cristalização da vontade no
contrato, em termos de este só poder ser alterado por um novo pacto, e admitindo-se a sua resolução
ou modificação por força de um critério objetivo (a boa fé), atenuou-se no contrato o caráter de exclusiva
lex privata das partes, assumindo carateres mais conformes com uma conceção social do direito.

6.3. Consequências.
Verificados os requisitos do artigo 437.º, a parte lesada tem direito à resolução do contrato ou à sua
modificação com base em juízos de equidade. A parte contrária pode também, requerida a resolução,
opor-se ao pedido, desde que aceite a recondução do conteúdo contratual aos termos correspondentes
àqueles juízos de equidade (art. 437.º/2). Parece que o artigo 437.º não limita a resolução dos

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Davide Rodrigues 2016/2017 Primeira Turma

contratos por alteração das circunstâncias aos contratos bilaterais, podendo lançar-se mão dessa
providência, desde que se verifiquem os requisitos respetivos, nos contratos unilaterais ou bilaterais
imperfeitos.
Ora, a não verificação da pressuposição só deverá afetar os contratos ainda não completamente
cumpridos? A resposta afirmativa é a corrente na doutrina e nesse sentido vão os Códigos italiano e
brasileiro. No entanto, excecionalmente, acentua Larenz, pode ser de atender depois do cumprimento
das prestações, quando fim contratual só no futuro deve realizar-se e doravante se torna inatingível.
Nos contratos translativos de propriedade, pode ocorrer, em caso de perecimento (perda material ou
jurídica) do objeto alienado, posterior à transferência do direito, uma colisão entre o regime do risco
(art. 796.º/1) e o princípio da resolução ou modificação do contrato por alteração anormal das
circunstâncias, se o negócio não foi cumprido por parte do comprador (p. ex. por se manter em dívida
a totalidade ou parte do preço). Parece que deve prevalecer o regime do risco.

SUBTÍTULO IV - INEFICÁCIA E INVALIDADE DOS NEGÓCIOS JURÍDICOS

1. Ineficácia dos negócios jurídicos lato sensu.


1.1. Modalidades da ineficácia stricto sensu.
1.2. Inexistência.
1.3. Invalidade.
1.3.1. Integração das diversas invalidades em cada uma das categorias.
1.3.2. Efeitos da declaração de nulidade e da anulação.
1.4. Simples irregularidade.
1.5. Outras formas de cessação dos efeitos negociais.
1.5.1. Resolução.
1.5.2. Revogação.
1.5.3. Caducidade.
1.5.4. Denúncia.
2. O problema da redução dos negócios jurídicos.
3. O problema da conversão dos negócios jurídicos.

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Davide Rodrigues 2016/2017 Primeira Turma

SUBTÍTULO IV - INEFICÁCIA E INVALIDADE DOS NEGÓCIOS JURÍDICOS

1. Ineficácia dos negócios jurídicos lato sensu.

A ineficácia em sentido amplo tem lugar sempre que um negócio jurídico não produz, por impedimento
decorrente do ordenamento jurídico, no todo ou em parte, os efeitos que tenderia a produzir, segundo
o teor das declarações respetivas. Estas as suas espécies:
I. Invalidade;
Consiste na ineficácia que provém de uma falta ou irregularidade dos elementos
internos (essenciais, formativos) do negócio.
II. Ineficácia stricto sensu.
Define-se pela circunstância de depender de alguma circunstância extrínseca que,
conjuntamente com o negócio, integra a situação complexa (fattispecie) produtiva de efeitos
jurídicos.
Por fim, note-se que existem casos de cessação dos efeitos negociais – e, portanto, de
ineficácia em sentido lato – por força de eventos posteriores ao momento da sua celebração,
designadamente: a resolução, a revogação, a caducidade e a denúncia.

1.1. Modalidades da ineficácia em sentido estrito. I.


Ineficácia absoluta versus Ineficácia relativa;
A ineficácia é absoluta quando opera automaticamente, erga omnes, podendo vir a ser
invocada por qualquer interessado (v.g.: art. 279.º, note-se que se o negócio está dependente
de uma conditio iuris, o CC qualifica como caducidade o efeito da não verificação da condição,
arts. 1716.º, 1760.º e 2317.º).
A ineficácia será relativa se se verificar apenas em relação a certas pessoas
(inoponibilidade), só por elas podendo ser invocada (o negócio, embora eficaz noutras
direções, é inoponível a certas pessoas). Por exemplo, os casos previstos nos artigos 819.º e
268.º/1. De facto, a ineficácia relativa surge-nos em situações caracterizadas pela existência
de um direito, de uma expetativa ou de um interesse legítimo de um terceiro, que seriam
prejudicados pelo negócio de disposição ou de vinculação em causa. Assim, o negócio é
relativamente ineficaz, por força do conteúdo do ato. Esta posição legítima do terceiro pode
consistir numa pretensão fundada de aquisição ou execução dos bens alienados ou onerados
pelo negócio. Com efeito, se se dever proteger o terceiro na medida apropriada à não frustração
do seu negócio, não se deve, por outro lado, limitar o poder de disposição do titular mais do
que for necessário a essa proteção. Deste modo, o negócio só é ineficaz em face do terceiro,
mas não o é entre as partes ou em face de outras pessoas.
II. Ineficácia total versus ineficácia parcial.

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Davide Rodrigues 2016/2017 Primeira Turma

A distinção refere-se à circunstância de o vício impedir a produção de quaisquer efeitos


ou só afetar parte dos efeitos negociais.

1.2. Inexistência.
A inexistência é uma figura autónoma, sendo que podemos dizer estar perante esta figura quando nem
sequer aparentemente se verifica o corpus de certo negócio jurídico (a materialidade correspondente à
noção de tal negócio), ou, existindo embora essa aparência material, a realidade não corresponde a tal
noção.
Alguns autores contestaram a legitimidade de tal categoria. Assim, G ALVÃO TELLES sustentou ser a
categoria da inexistência jurídica eliminável, por deverem as respetivas hipóteses ser enquadradas ou
na nulidade ou na inexistência material. Diversamente, MANUEL DE ANDRADE admitia a autonomia da
figura da inexistência jurídica, assinalando-lhe, como interesse prático, a possibilidade de os negócios
nulos poderem produzir certos efeitos laterais ou secundários, o que não aconteceria com esta figura.
Ora, parece que a categoria em análise é de admitir, pois, com efeito, pode haver hipóteses em que
nem certos efeitos secundários dos negócios devam ter lugar (daí que não se trate de nulidade), mas,
por outro lado, exista a aparência da materialidade correspondente à noção do negócio jurídico (daí
que não se trate de inexistência material).
Neste sentido, o CC consagrou, explicitamente, esta figura jurídica dentro das invalidades do
casamento, enumeradas no artigo 1628.º, determinando-se no artigo 1630.º que a inexistência pode
ser invocada por qualquer pessoa, a todo o tempo, independentemente de declaração judicial, e que o
casamento inexistente não produz qualquer efeito jurídico e nem sequer é havido como putativo.
Quanto à admissibilidade da figura como categoria geral do negócio jurídico, o CC não é explícito. Por
fim, julgamos ser a categoria da inexistência a que corresponde às estatuições dos artigos 245.º e
246.º, pelo menos, em caso de falta de vontade de ação ou de coação física.

1.3. Invalidade.
 Nulidade;
O negócio jurídico nulo não produz, desde o início, por força da falta ou vício de um
elemento interno ou formativo, os efeitos que tendia. Ora, note-se que o regime e os efeitos
mais severos da nulidade encontram o seu fundamento teleológico em motivos de interesse
público predominante.
Regime das nulidades:
 Operam ipso iure, não se tornando necessário intentar uma ação ou emitir uma
declaração nesse sentido, nem sequer uma sentença judicial prévia, podendo ser
declaradas ex officio pelo tribunal;
 São invocáveis por qualquer pessoa interessada, isto é, pelo sujeito de qualquer
relação jurídica afetada, na sua consistência jurídica ou prática, pelos efeitos a que o
negócio se dirigia (art. 268.º);

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Davide Rodrigues 2016/2017 Primeira Turma

 São insanáveis pelo decurso do tempo, isto é, são invocáveis a todo o tempo. Contudo,
esta possibilidade pode ser precludida, no aspeto prático, pela verificação da
usucapião (prescrição aquisitiva), se a situação de facto foi atuada de acordo com os
efeitos a que tendia o negócio;
 São insanáveis mediante confirmação (excetua-se o previsto nos artigos 895.º, 968.º
e 2309.º). Pode, todavia, ter lugar um sucedâneo da confirmação: a renovação ou
reiteração de negócio nulo. Com efeito, existem algumas diferenças a assinalar entre
a confirmação e a renovação: a confirmação é um negócio unilateral, enquanto a
renovação é um novo contrato; a confirmação tem efeito retroativo, mesmo em relação
a terceiros, enquanto a renovação opera ex tunc, mesmo que o fundamento da
nulidade tenha desparecido, embora, por estipulação ad hoc, possa ter eficácia
retroativa nas relações inter partes. Assim, se as partes renovam o negócio nulo, não
se verificando já o motivo de nulidade, a retroatividade é meramente obrigacional, isto
é, vincula só as partes sem ser oponível a terceiros. Por fim, a renovação pode ter lugar
por declaração tácita nos termos gerais, mas exige o conhecimento da nulidade, ou
dúvidas quanto à validade do negócio.
 Anulabilidade.
O negócio anulável, não obstante a falta ou vício de um elemento interno ou formativo,
produz os seus efeitos e é tratado como válido, enquanto não for julgada procedente uma ação
de anulação; exercido, mediante esta ação, o direito potestativo de anular pertencente a uma
das partes, os efeitos do negócio são retroativamente destruídos. Ora, as anulabilidades
fundam-se na infração de requisitos dirigidos à tutela de interesses predominantemente
particulares.
Regime das anulabilidades:
o Têm de ser invocadas pela pessoa dotada de legitimidade, não podendo ser
declaradas ex officio pelo juiz. Assim, exigem uma ação especialmente dotada a esse
efeito, ressalvada a possibilidade da sua arguição por via de exceção, isto é, a
possibilidade de as pessoas legitimadas se defenderem, arguindo a anulabilidade de
qualquer negócio jurídico que contra elas seja invocado (art. 287.º). Com efeito, não
basta uma mera declaração à contraparte, embora pareça bastar o acordo extrajudicial
das partes acerca da invalidade nos termos do artigo 291.º/1 in fine;
o Só podem ser invocadas por determinadas pessoas e não por quaisquer interessados,
tal como resulta do artigo 287.º/1, tratando-se de uma diretiva que deverá ser tomada
em conta nos casos em que a lei não faça a indicação concreta das pessoas
legitimadas, a título de exemplo, os artigos 247.º, 250.º e 252.º.
o São sanáveis pelo decurso do tempo, tendo o CC estabelecido o prazo de um ano para
a arguição das anulabilidades em geral (art. 287.º/1) e três anos para os atos afetados
por ilegitimidades conjugais (art. 1687.º/2).

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Davide Rodrigues 2016/2017 Primeira Turma

Quanto ao momento a partir do qual se conta o prazo, a lei fixa-o, expressamente para
algumas hipóteses (arts. 125.º, 1687.º), sendo que quando nada disser, o prazo deve
contar-se desde a cessação do vício que lhe serve de fundamento (art. 287.º). Por
aplicação deste critério, o prazo deverá começar a contar desde o conhecimento do
erro, do dolo, do negócio consigo mesmo, desde a cessação da coação, da
incapacidade acidental, do estado de necessidade ou de dependência.
Todavia, note-se que a arguição da anulabilidade não está sujeita a qualquer prazo se
o negócio não está cumprido.
o São sanáveis mediante confirmação (art. 288.º). A confirmação é um negócio
unilateral, pelo qual a pessoa com legitimidade para arguir a anulabilidade declara
aprovar o negócio viciado. Trata-se de um negócio jurídico e, como tal, está aos
requisitos gerais da validade dos negócios; só é eficaz, se for posterior à cessação do
vício que fundamenta a anulabilidade. Ora, o fulcro da confirmação é a existência de
uma intenção confirmatória, elemento que exige, por parte do confirmante,
conhecimento do vício e do direito à anulação (art. 288.º/2). Por fim, note-se que a
confirmação tem eficácia retroativa, mesmo quanto a terceiro (art. 288.º/4).

1.3.1. Integração das diversas invalidades em cada uma das categorias.


O artigo 294.º prescreve, genericamente, serem nulos os negócios celebrados contra disposição legal
de caráter imperativo, salvo nos casos em que outra solução resulte da lei. Do mesmo artigo resulta
não ser necessária uma norma especial declarando a nulidade par cada caso, o que significa
admitirem-se nulidades virtuais e não apenas nulidades textuais. A regra catoniana, por força da qual
se não admite a revalidação formal dos negócios jurídicos, parece não estar consagrada na lei (salvo
quanto à revalidação formal dos negócios, cuja inadmissibilidade parece resultar da fórmula geral do
artigo 12.º/2, primeira parte), mas deve ter-se por implícita.
Além do mais, o artigo 287.º/1, ao estabelecer as anulabilidades que podem ser arguidas dentro do
ano subsequente à cessação do vício, pressupõe que as invalidades não deixam de existir, por
desaparecer o motivo que as originou.

1.3.1. Efeitos da declaração de nulidade e da anulação. I.


Operam retroativamente (art. 289.º);
II. Não obstante a retroatividade, há lugar à aplicação das normas sobre a situação do possuidor
de boa fé, em matéria de frutos, benfeitorias, encargos, etc. (art. 289.º/3);
III. Em consonância com a retroatividade, haverá lugar à repristinação das coisas no estado
anterior ao negócio, restituindo-se tudo o que tiver sido prestado ou, se a restituição em espécie
não for possível, o valor correspondente (art. 289.º/1), sendo que as obrigações recíprocas de
restituição estão sujeitas ao princípio do cumprimento simultâneo, designadamente, à
aplicação da exceptio non adimpleti contractus (art. 290.º);

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Davide Rodrigues 2016/2017 Primeira Turma

IV. No CC, o problema da oponibilidade da nulidade da anulabilidade a terceiros foi resolvido


através de um sistema de compromisso entre os interesses que não na base da invalidade e
os interesses legítimos de terceiros e do tráfico. Em princípio, tais formas de invalidade são
oponíveis a terceiros, salvo o caso da simulação, que é inoponível a terceiros de boa fé (art.
243.º). Em nome da proteção dos legítimos interesses de terceiros e dos interesses do tráfico
jurídico estabeleceu-se, contudo, que a declaração de nulidade ou a anulação do negócio
respeitante a bens sujeitos a registo, se não for proposta e registada nos três anos posteriores
à conclusão do negócio, é inoponível a terceiros de boa fé, adquirentes, a título oneroso, de
direitos sobre os mesmos bens (art. 291.º). E se a nulidade proceder de incapacidade dos
contraentes? Não se encontra no CC uma disposição correspondente ao artigo 698.º, segundo
o qual a obrigação de restituição por parte do incapaz, subsequente à anulação do negócio, se
pauta pelo princípio do não locupletamento à custa alheia, pelo que haverá lugar à restituição
de tudo o que o incapaz tiver recebido ou do valor correspondente, mesmo que se não tenha
locupletado com isso.

1.4. Simples irregularidade.


A irregularidade, embora provenha de um vício interno negocial, tem consequências menos graves,
não afetando a eficácia do negócio, mas dando apenas lugar a sanções especiais. É o caso do
casamento, nas hipóteses dos artigos 1649.º e 1650.º.

1.5. Outras formas de cessação dos efeitos negociais.


(resolução, revogação, caducidade e denúncia)

1.5.1. Resolução.
O CC admite a resolução do contrato, com fundamento na lei ou em convenção das partes. Verifica-
se esse efeito, por força da lei, por exemplo, 270.º, 437.º, 801.º, 966.º, 1150.º, entre outros. A
estipulação convencional de um direito de resolução (cláusula resolutiva) é expressamente admitida
pelo artigo 432.º.
A resolução tem lugar em situações de variada natureza, resultando, não de um vício da formação do
contrato, mas de um facto posterior à sua celebração, normalmente um facto que vem iludir a legítima
expetativa de uma parte contratante, seja de um facto da contraparte (inadimplemento de uma
obrigação), seja um facto natural ou social (alteração anormal de circunstâncias). Os seus efeitos estão
regulados nos artigos 433.º e ss., onde se determina a equiparação da resolução, quanto a este ponto,
à nulidade ou anulabilidade do negócio.
Porém, ressalvam-se as normas seguintes, das quais resultam algumas diferenças entre a resolução
e a invalidade. Assim: a resolução pode fazer-se mediante declaração à outra parte (art. 436.º),
enquanto a invalidade, ou atua automaticamente (nulidade), ou implica uma ação judicial (anulabilidade;
a resolução tem, em princípio, efeito retroativo entre as partes, mas tal efeito não se verifica se

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Davide Rodrigues 2016/2017 Primeira Turma

contrariar a vontade das partes ou a finalidade da resolução, bem como, em princípio, nos contratos de
execução continuada ou periódica, enquanto que a invalidade tem efeito retroativo inter partes, sem
estas limitações; por fim, a resolução nunca prejudica os direitos adquiridos por terceiro (art. 435.º),
salvo se o terceiro adquiriu o seu direito posteriormente ao registo da ação de resolução, enquanto a
invalidade opera os seus efeitos em relação a terceiros, ressalvada a hipótese contemplada no artigo
291.º.
Porém, note-se que as características que se acabaram de assinalar para a resolução não se verificam,
quanto a uma das suas manifestações: o efeito da verificação das condições resolutivas (art. 270.º). A
resolução dos efeitos do negócio, neste caso, atua automaticamente e, por outro lado, a retroatividade
verifica-se mesmo em relação a terceiros, pois os atos de disposição pelo credor condicional dos bens
ou direitos que constituem objeto do negócio sub conditione perdem a sua eficácia, uma vez verificada
a condição (art. 274.º).

1.5.2. Revogação.
Em alguns casos, a lei autoriza um dos sujeitos do negócio jurídico a revogá-lo. A revogação tem
apenas a consequência de extinguir os efeitos do negócio para o futuro (ex nunc); não opera, portanto,
retroativamente.
Do mesmo modo, pode ter lugar uma revogação dos contratos por comum acordo, eventualmente com
eficácia retroativa inter partes. É o chamado contrato extintivo ou abolitivo ou contrarius consensos (art.
406.º/1). Com este contrarius consensus, as partes, por mútuo consentimento, extinguem a relação
contratual existente entre eles. Esta eliminação de efeitos jurídicos do primeiro contrato terá uma
eficácia ex tunc ou ex nunc, conforme a vontade das partes, expressa ou deduzida das circunstâncias
do caso concreto. Se o efeito extintivo é querido com eficácia retroativa, o contrato extintivo ou abolitivo
implica mais uma resolução que uma revogação.
Algumas vezes, a faculdade de revogação é conferida ad libitum, sem sujeição a quaisquer
pressupostos (v.g.: arts. 265.º/2, 448.º e 1170.º/1). Noutras hipóteses, a revogação só pode ter lugar
ocorrendo certos motivos designados na lei (v.g.: 970.º, 974.º, 1411.º e 2029.º).

1.5.3. Caducidade.
A cessação dos efeitos negociais pode ter lugar, sem caráter retroativo, sob a forma de caducidade.
No nosso sistema jurídico, este conceito abrange uma série numerosa de situações em que as relações
jurídicas duradouras de tipo obrigacional criadas pelo contrato ou pelo negócio (formando no seu
conjunto a relação contratual) se extinguem para futuro por força do decurso do prazo estipulado, da
consecução do fim visado ou de qualquer outro facto ou evento superveniente a que a lei atribui o efeito
extintivo, ex nunc, da relação contratual.
Vide gratia: arts. 1051.º, 1141.º, 1174.º, 1716.º e 2317.º CC.

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Tentando por em evidência traços específicos da caducidade, a partir das suas manifestações legais,
demos assinalar que: a sua causa é algo de objetivo; atua automaticamente ou de pleno direito (ipso
iure); e não tem caráter retroativo.
Dos casos previstos na lei, resulta que a caducidade pode verificar-se em duas espécies diferentes de
negócios jurídicos: atos de eficácia duradoura já em execução (arrendamento, comodato); e atos de
eficácia suspensa (testamento, convenção antenupcial).

1.5.4. Denúncia.
Entre as formas de por termo à eficácia de um negócio jurídico, a denúncia caracterizase por ser a
faculdade existente na titularidade de um contratante de, mediante mera declaração, fazer cessar uma
relação contratual ou obrigacional em sentido amplo, a que está vinculado, emergente de um contrato
bilateral ou plurilateral.
Se não se exige como pressuposto ou requisito da denúncia uma justa causa, um motivo particular, a
denúncia diz-se ad nutum ou ad libitum. Nela se manifesta uma pura e simples vontade, não carecida
de justificação (uma nuda voluntas), do autor da denúncia.
Nos contratos de duração por tempo indeterminado, deve reconhecer-se a existência de um poder de
denúncia sem uma específica causa justificativa. O fundamento material desta denunciabilidade ad
nutum é a tutela da liberdade dos sujeitos, que seria comprometida por um vínculo demasiadamente
duradouro. Por isso, tal poder de denúncia existe mesmo na falta de norma jurídica ou cláusula
contratual explícita.
Cremos ser esta uma solução decorrente da impossibilidade de se admitirem vínculos contratuais ou
obrigacionais de caráter perpétuo, eterno ou excessivamente duradoura. Uma tal vinculação ou
servidão eterna ou excessivamente duradoura violaria a ordem pública, pelo que os negócios de
duração indeterminada ou ilimitada só não serão nulos, por força do artigo 280.º, se estiverem sujeitos
ao regime da livre denunciabilidade ou denunciabilidade ad nutum. Podem discernir-se alguns
afloramentos desta regra geral nos artigos 1002.º, 1201.º, 1137.º e 1170.º. É, porém, de exigir, com
PINTO MONTEIRO, que o contrato só possa ser denunciado depois de ter decorrido um período de tempo
razoável, e não imediatamente após o seu início de vigência.
Para conjugar os perigos decorrentes para a outra parte de uma denúncia intempestiva, isto é, com
eficácia imediata ou de tal modo próxima que lhe cause dificuldades ou danos inaceitáveis, deve
considerar-se necessário um pré-aviso ou aviso prévio. Tal como a denúncia ad libitum é um elemento
natural dos contratos de duração indeterminada, o préaviso é, nos mesmos negócios, um elemento
natural da denúncia. A antecedência do préaviso variará com as circunstâncias do caso concreto, tendo
em conta a sua finalidade que é de proporcionar à outra parte a possibilidade de fazer face, sem
desvantagem pesada, à nova situação.

2. O problema da redução dos negócios jurídicos.

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Davide Rodrigues 2016/2017 Primeira Turma

A – Posição do problema.
O problema da redução dos negócios jurídicos insere-se na disciplina do efeitos das nulidades e
anulabilidades negociais. Trata-se de saber se, no caso de um fundamento de invalidade ser relativo
apenas (afetar apenas) a uma parte do conteúdo negocial, o negócio deve valer na parte restante (não
afetada) ou deve ser nulo ou anulável na sua totalidade. A invalidade negocial é circunscrita à parte
que briga com uma disposição legal ou arrasta, por reflexo, a invalidade total? Na primeira hipótese
(utile per inutile non vitiatur) tem lugar a chamada redução dos negócios jurídicos.
Tal como a interpretação no mundo do Direito é vista por EMÍLIO BETTI como uma aplicação num campo
específico de uma atividade comum a múltiplos domínios culturais, pode também assinalar-se que a
redução dos negócios jurídicos é uma manifestação no plano jurídico de um problema-tipo pertinente
em todos os domínios da cultura e, mais latamente, da vida. Ora, a resposta em qualquer domínio onde
o problema se equacione é encontrada sob a perspetiva dos valores ou fins relevantes nesse domínio:
a utilidade social, o mérito moral, a justiça, a conservação da vida, entre outros. Não surpreende que,
também na patologia do negócio jurídico, a solução arranque da consideração dos valores e fins que
aí revelam: a autonomia privada e o controlo social desta: a boa fé (art. 292.º).

B – Solução do problema.
Na doutrina propõe-se, predominantemente, o critério da vontade hipotética ou conjetural das partes,
não uma vontade real, mas uma vontade como que fingida ou construída pelo juiz. Trata-se de averiguar
aquilo que as partes teriam querido provavelmente, se soubesse que o negócio se opunha parcialmente
a alguma disposição legal e não pudessem realizá-lo em termos de ser valido na sua integridade. Se é
de admitir que as partes, nessa hipótese, prefeririam não realizar qualquer negócio, deve concluir-se
pela invalidade total. Se se concluir que as partes, provavelmente, sempre o teriam realizado na parte
não diretamente atingida pela invalidade, deve ter lugar a redução do negócio.
Com efeito, a pesquisa da vontade hipotética ou conjetural das partes é uma operação que tem de
tomar em conta as particularidades do caso concreto; normalmente, aquela vontade será favorável à
redução dos negócios gratuitos, salvo nalguma hipótese, em que a redução tenha o efeito de ampliar
a liberalidade, por a cláusula amputada ter o efeito de a restringir; nos negócios onerosos, a solução
variará conforme as circunstâncias.
Todavia, pode haver dúvidas sobre qual a vontade hipotética ou conjetural das partes. Nesta hipótese,
são-nos propostas duas soluções: uma, favorável à redução, propugnada pela doutrina tradicional em
nome do princípio da conservação dos negócios jurídicos e de uma ideia de proporcionalidade entre a
causa e o efeito; outra, favorável à invalidade total, consagrada no BGB, com fundamento na ideia de
que a validade parcial do negócio exige sempre uma base volitiva, uma vontade real ou, pelo menos,
uma vontade hipotética, pois o eixo dos negócios jurídicos é a vontade.

C – O problema em face do Código Civil.

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Davide Rodrigues 2016/2017 Primeira Turma

Na nova lei, o problema é tratado genericamente no artigo 292.º. Determina-se, em princípio, a redução
dos negócios jurídicos parcialmente nulos ou anuláveis. A invalidade total só poderá ter lugar, se se
provar que o negócio não teria sido concluído sem a parte viciada. Trata-se da solução correspondente
à doutrina tradicional. Estabelece-se uma presunção de divisibilidade ou separabilidade do negócio,
sob o ponto de vista da vontade das partes. Tal solução corresponde à ideia de proporcionalidade entre
o vício e a sanção: sendo a nulidade parcial, deve igualmente a sanção, em princípio, afetar apenas a
parte viciada. E obedece, também, ao princípio da conservação dos negócios jurídicos (pelo qual estes
devem ser tratados magis ut valeant quam ut pereant.
Assim, o pretendente que pretender a declaração da invalidade total tem o ónus de provar que a
vontade hipotética das partes ou de uma delas, no momento do negócio, era nesse sentido, isto é, que
as partes – ou, pelo menos, uma delas – teriam preferido não realizar negócio algum, se soubesse que
ele não poderia valer na sua integridade. Se não se fez essa prova – isto é, se a vontade hipotética era
no sentido da redução ou em caso de dúvida – a invalidade parcial não determina a invalidade total.
Na verdade, basta, para se conseguir a invalidade total, provar que uma as partes não teria contratado,
se o negócio não pudesse valer na sua totalidade. Com efeito, feita essa prova, mostrou-se que o
negócio não teria sido concluído sem a parte viciada.
Por fim, note-se que casos legais específicos de redução são os regimes do modo e da condição ilícitos
apostos a liberalidades (arts. 2245.º e 2230.º). Nestes casos, utile per inutile non vitiatur, ainda que o
testador tenha disposto o contrário.
 Porém, note-se que, por vezes, a redução deve ter lugar, mesmo que a vontade
hipotética fosse no sentido da invalidade total.
o Quando a invalidade parcial resultar da infração de uma norma destinada a proteger
uma parte contra a outra, haverá redução, mesmo que haja vontade, hipotética, em
contrário. Trata-se de uma redução teleológica, no sentido de ser determinada pela
necessidade de alcançar plenamente as finalidades visadas pela norma infringida (pois
tal finalidade frustar-se-ia com a procedência da alegação que nunca se teria celebrado
o negócio sem que essa norma, destinada a proteger a outra parte, tivesse sido
violada). Com efeito, nestes casos, o contrato deve manter-se parcialmente válido,
mesmo que a vontade, real ou hipotética, de uma das partes seja em sentido contrário,
isto é, mesmo que essa parte não tivesse contratado senão nas condições
correspondentes à infração da norma imperativa, dirigida a proteger a outra contra a
exploração, o logro ou a insegurança. W ERNER FLUME defende a mesma solução para
os casos em que a parte inválida do negócio contém uma regulamentação que atribui
um direito a uma só das partes ou funciona exclusivamente a favor de uma delas. Põe-
se a questão de saber se também a outra parte pode prevalecer-se da nulidade total
com fundamento nos requisitos da redução.
o Quando, verificada a invalidade parcial, seja conforme à boa fé, numa apreciação atual,
que o restante conteúdo do negócio se mantenha, ainda que a vontade hipotética,

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reportada ao momento da conclusão do negócio, fosse diversa. Esta solução


encontrava-se expressamente prevista no Anteprojeto
de RUI DE ALARCÃO. Trata-se, pois, nas palavras de MANUEL DE ANDRADE, de apurar se
é justo (conforme a boa fé contratual) que, uma vez concluído o negócio, se mantenha
o seu restante conteúdo, independentemente de ser nesse sentido a vontade hipotética
das partes.
o Nos contratos de adesão, verificada a nulidade de certas cláusulas, por violarem
proibições legais, existe um regime especial, que visa proteger o interesse do aderente:
este pode optar pela manutenção dos contratos singulares, mesmo que algumas das
suas cláusulas sejam nulas, vigorando, na parte afetada, as norma supletivas
aplicáveis. Se, porém, o aderente não exercer esta faculdade de optar pela
manutenção do contrato sem a as cláusulas nulas, ou se esta conduzir a um
desequilíbrio de prestações gravemente atentório da boa fé, há que recorrer ao regime
da redução dos negócios jurídicos – sendo então admissível a prova de uma vontade
hipotética contrária à redução.
o O consumidor pode optar pela manutenção do contrato que celebrou, quando algumas
das suas cláusulas sejam nulas, por excluir ou restringir os direitos reconhecidos pela
Lei de Defesa do Consumidor, ou por violar certos regimes legais imperativos que têm
como finalidade a sua proteção. Trata-se de previsões legais de casos de redução
teleológica, reconhecendo-se ao titular do interesse que está na base da nulidade das
cláusulas a faculdade de optar pela manutenção do contrato, sem que seja admissível
a prova de uma vontade hipotética em contrário.

3. O problema da conversão dos negócios jurídicos.

A – Termos do problema.
Trata-se de saber se, declarado nulo ou anulado totalmente um negócio, este não produzirá quaisquer
efeitos negociais ou se, dados certos requisitos, não poderá reconstituirse, com os materiais do negócio
totalmente inválido, um outro negócio, cujo resultado final económico-jurídico, embora mais precário,
se aproxime do tido em vista pelas partes com a celebração do contrato totalmente inválido. Não se
trata de uma tutela das partes em oposição à autonomia privada, pois deve atender-se ao sentido da
vontade das partes e às suas representações sobre os interesses respetivos. É que certo que não se
trata, aqui como na redução, de uma interpretação, de uma averiguação de uma vontade empírica
como uma realidade psicológica, mas trata-se como que de uma colaboração do ordenamento jurídico
com a vontade das partes no sentido de dar expressão a uma vontade potencial, não formulada,
alargando o campo de ação da autonomia privada.
Assim, considerem-se as seguintes hipóteses. Será possível a conversão de uma venda de imóveis
feita por escrito particular, portanto, nula por vício de forma, numa promessa de compra e venda, com

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Davide Rodrigues 2016/2017 Primeira Turma

o resultado prático de levar à perda ou restituição em dobro do preço pago (arts. 441.º e 442.º)? A
conversão da venda de parte determinada da coisa comum, feita pela comproprietário, em venda da
parte ideal do vendedor? A conversão da doação de um prédio contido numa herança indivisa em
doação do respetivo valor?

B – Requisitos de admissibilidade.
A doutrina nacional e estrangeira é largamente favorável à conversão dos negócios jurídicos, exigindo,
todavia, certos requisitos de admissibilidade.
Em primeiro lugar, é necessário que o negócio inválido contenha os requisitos essenciais de forma e
substância (capacidade, objeto, vontade), necessários para a validade do negócio sucedâneo. Assim,
a venda verbal de imóveis é inconvertível em promessa de compra e venda (art. 410.º/2).
Depois, exige-se que a vontade hipotética ou conjetural das partes seja no sentido da conversão. Só
haverá conversão, quando se imponha a conclusão de que as partes teriam querido o negócio
sucedâneo se, na hipótese de se terem apercebido do vício do negócio principal, não pudessem tê-lo
celebrado sem essa deficiência. Trata-se de um requisito cuja existência deve ser averiguada à luz das
particularidades do caso concreto. Por conseguinte, os efeitos económicos do negócio sucedâneo não
podem exceder os efeitos visados com o negócio inválido, pois isso contrariaria uma vontade hipotética
construída sobre a base do negócio principal. A conversão é um meio adequado à realização, embora
de forma mais limitada, dos fins das partes e corresponde à avaliação de interesse em que se
basearam. Terá, portanto, lugar sempre que seja de presumir que as partes, na falta da obtenção do
resultado económico completo, teriam pretendido ao menos a realização parcial ou incompleta dos
seus fins.
Por fim, note-se que é frequentemente exigido pela doutrina que o negócio sucedâneo diga respeito
ao mesmo objeto material a que respeitava o negócio principal. Porém, tal exigência é criticável, sendo
preferível dizer-se que a conversão deve manter-se dentro do domínio negocial traçado pelas partes.
Tal formulação exprime a ideia de que a vontade hipotética deve inferir-se da concordante finalidade
jurídico-económica tida em vista pelas partes (art. 293.º). Diversamente do que pretende F LUME, não é
necessário que o negócio sucedâneo tenha sido realmente celebrado como parte separável do negócio
inválido. Esta situação não seria de conversão, mas de redução. Para haver conversão, basta a prova
de uma vontade hipotética nesse sentido (o resultado não se produz automaticamente), mesmo que
nada correspondente ao negócio sucedâneo tenha sido realmente celebrado.

C – Admissibilidade da conversão no nosso direito.


A conversão é genericamente regulada no artigo 293.º, onde são formulados requisitos coincidentes
com os enunciados pela doutrina. Note-se que, diversamente do que sucede com a redução dos
negócios jurídicos, a conversão exige a prova da vontade hipotética ou conjetural das partes, não tendo
lugar em caso de dúvida. Deve entender-se, também, com fundamento nos artigos 293.º e 334.º, que

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a conversão poderá ter lugar, independentemente da vontade hipotética das partes, se a boa fé assim
o exigir.
Para além desta norma (art. 293.º) que resolve, em geral, o problema da conversão dos negócios
jurídicos, a produção do mesmo fenómeno é, sem atender à vontade hipotética, expressamente
determinada em disposições particulares (conversão ope legis): artigos 946.º/2, 1416.º/1, 2251.º/2.

D – A conversão e certas figuras próximas.


 A conversão e a validade do negócio dissimulado na simulação relativa: o negócio dissimulado
é realmente querido, enquanto o negócio sucedâneo, na conversão, corresponde apenas à
vontade hipotética das partes;
 A conversão dos negócios nulos ou anuláveis e a chamada conversão formal dos negócios
jurídicos: nesta última hipótese, não se trata, verdadeiramente, de conversão de negócios
jurídicos, mas do simples aproveitamento de um documento de certo tipo, como documento
menos solene;
 A conversão e os negócios jurídicos com vontade alternativa: os negócios jurídicos com
vontade alternativa são negócios em que as partes prevêem, desde logo, a hipótese de o
negócio visado, em primeira linha, ser nulo ou ineficaz e manifestam a vontade de, nessa
hipótese, valer um negócio de conteúdo diverso que, de algum modo, satisfaz, em segunda
linha, o seu interesse; o negócio sucedâneo assenta aqui na vontade real das partes, enquanto
na conversão se baseia na vontade hipotética.

TÍTULO III – DO CONTRATO

1. Razão de ser deste título.


2. Regime geral do contrato.
2.1. A formação do contrato.
2.1.1. Momento da perfeição do negócio.
2.1.2. Irrevogabilidade da proposta.
2.1.3. Exigência de precisão e consciência da proposta.
2.1.4. Culpa in contrahendo.
3. As cláusulas contratuais gerais e os contratos de adesão.

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Davide Rodrigues 2016/2017 Primeira Turma

TÍTULO III – DO CONTRATO

1. Razão de ser deste título.

A espécie mais importante de negócio jurídico é o contrato. A teoria do negócio jurídico é, na vida
económica e social, importante sobretudo enquanto aplicável aos negócios jurídicos bilaterais ou
contratos.
Na verdade, a maioria dos negócios jurídicos mais importantes e significativos, designadamente, na
esfera económica, são contratos e, além disso, é sobretudo em relação a estes que se suscitam
frequentemente problemas jurídicos. Há quem ponha em questão a conveniência da elaboração de
uma teoria do negócio jurídico que vá além dos contratos – isto é, quem questione a conveniência em
tratar em paralelo dos negócios unilaterais e dos contatos. Por outro lado, há ordens jurídicas, como as
do common law, onde a figura do negócio jurídico é desconhecida enquanto tal. E é também na matéria
dos contratos que têm tido lugar maiores esforços de unificação do direito privado europeu, hoje muito
em voga. Assim, para além dos Princípios Relativos aos Contratos Comerciais Internacionais , o
Anteprojeto de Código Europeu dos Contratos, os Princípios de Direito Europeu dos Contratos, da
Comissão Lando (1996).
Mantendo-nos, embora, nos quadros da teoria do negócio jurídico, afigura-se importante tratar, em
título autónomo, do contrato, ainda que de modo muito sucinto e restringindo o nosso estudo a breves
aspetos. Na verdade, a matéria da sua formação, está incluída na Parte Geral do CC – encontrando-
se mesmo, propósito da declaração negocial, disposições que se aplicam tão-só ao contratos. E o título
sobre os contratos como fonte das obrigações, que se encontra no Livro II, relativo ao Direito das
Obrigações, para além de se restringir aos contratos obrigacionais, não inclui matérias importante, a
que importa fazer referência.

2. Regime geral do contrato.


(em particular, a formação do contrato)

O contrato, ou negócio jurídico bilateral, é formado por duas ou mais declarações de vontade, de
conteúdo oposto mas convergente, que se ajustam na sua comum pretensão de produzir um resultado
jurídico unitário, embora com um significado para cada parte.
Com efeito, o contrato não é integrado por dois negócios unilaterais; antes, cada uma das declarações
(proposta e aceitação) é emitida em vista do acordo. Por outro lado, as declarações podem ser emitidas
separadamente – por exemplo, em documentos autónomos –, desde que traduzam um consenso
contratual. Para o contrato estar concluído, este consenso tem de incluir todas as cláusulas sobre as
quais qualquer delas tenha julgado necessário o acordo (art. 232.º).
O Código Civil de 1966 não destacou os contratos numa secção particular, no âmbito da
regulamentação dos negócios jurídicos (ao contrário do BGB). Dentro do regime da declaração

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negocial, todavia, referem-se especificamente aos contratos os artigos 227.º a 235.º. A proposta e a
aceitação, como declarações negociais que integram o contrato, são reguladas nos artigos 228.º a
231.º e 233.º a 235.º CC.

2.1. A formação do contrato.


Na formação do contrato, podem discernir-se – se não sempre, pelo menos normalmente – duas
declarações negociais: proposta (ou oferta) e aceitação, que se conciliam num consenso.

2.1.1. Momento da perfeição do contrato.


Sendo o contrato integrado por duas declarações, põe-se o problema de saber qual o momento da sua
perfeição. O problema, que surge quanto aos contratos entre ausentes, é importante, não só para a
localização do contrato no tempo e no espaço, como para o início da produção dos seus efeitos –
designadamente, nos contratos que importem alienação ou transferência de direitos reais, para a
transferência do risco de perecimento ou deterioração da coisa (art. 796.º/1) – e, eventualmente, para
o limite da revogabilidade das declarações pelo qual se forma.
Várias doutrinas abordam a questão. Assim, a doutrina da aceitação (dita também da exteriorização
ou da declaração) diz-nos que o contrato será perfeito quando o destinatário da proposta declarou
aceitar a oferta que lhe foi feita, admitindo-se, portanto, que o contrato estivesse formado ainda antes
de o proponente ter sequer a possibilidade de conhecimento da aceitação. A doutrina da perceção (ou
da cognição ou da informação) situa-se no extremo temporal oposto à anterior, pois o contrato só está
perfeito quando o proponente tomou conhecimento efetivo da aceitação. Segundo a doutrina da
expedição, o contrato está perfeito quando o destinatário expediu, por qualquer meio, como telegrama,
carta, entre outros, a sua aceitação. Por fim, de acordo com a doutrina da receção, o contrato está
perfeito quando a resposta contendo a aceitação chega à esfera de ação do proponente, isto é, quando
o proponente passa a estar em condições de a conhecer.
Ora, o legislador de 1966 adotou esta última posição. Com efeito, do artigo 224.º resulta consagrar o
nosso direito a doutrina da receção, que parece, aliás, a preferível, de iure condendo, e está consagrada
também, por exemplo, no Código alemão e na Convenção de Viena sobre compra e venda internacional
de mercadorias. Todavia, não será necessário que a declaração chegue ao poder ou à esfera de ação
do proponente, se, por qualquer meio, foi dele conhecida (art. 224.º/1). Quer dizer: o contrato está
perfeito quando a resposta, contendo a aceitação, chega à esfera de ação do proponente, isto é,
quando o proponente passa a estar em condições de a conhecer, ou quando a conhecer efetivamente,
se este momento foi anterior.

2.1.2. Irrevogabilidade da proposta.


Quanto à proposta de contrato, é irrevogável depois de recebida pelo destinatário ou de ser dele
conhecida (art. 230.º). A consagração da doutrina da irrevogabilidade da proposta significa que esta só
fica sem efeito se o destinatário receber uma retratação do proponente ou dela tiver conhecimento,

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antes de receber a proposta ou ao mesmo tempo que esta (art. 230.º/2). Com efeito, não vigora a
doutrina que admite a revogação da proposta se a referida revogação (retratação) chegar ao
destinatário antes de este ter expedido a aceitação.
Em coerência com a irrevogabilidade, a morte ou a incapacidade do proponente não obstam à
conclusão do contrato, salvo se outra tivesse sido a sua vontade presumível (art. 231.º/1). Uma
proposta é rejeitada, se foi aceite com aditamentos, limitações ou outras modificações. Se a
modificação for suficientemente precisa, a aceitação vale, porém, em princípio, como nova proposta
(art. 233.º). Uma doutrina idêntica à acima exposta para a revogação da proposta vale para os casos
de revogação de uma aceitação ou de rejeição de uma proposta, seguida de aceitação (art. 235.º). A
retratação ou revogação da proposta ou da aceitação tem lugar se a declaração revogatória chegar ao
poder da outra parte ao mesmo tempo ou antes do que as declarações de proposta ou de aceitação;
releva, para este efeito, a relação temporal de possibilidade de conhecimento, não a ordem do
conhecimento efetivo. Sendo irrevogável, a proposta contratual mantém-se durante os prazos
referidos no artigo 228.º/1.
A aceitação tardia, quer o proponente tenha elementos para considerar expedida a tempo, quer não
tenha, também não leva à formação do contrato. Em caso de aceitação chegada tardiamente, mas
aparentemente enviada a tempo, a falta de aviso ao aceitante, por parte do proponente, da chegada
tardia da aceitação apenas leva à responsabilidade do aceitante pelo prejuízo causado por tal falta de
aviso (art. 229.º/1), mas não à formação do contrato. O proponente pode, todavia, considerar eficaz a
resposta tardia, desde que ela tenha sido expedida em tempo oportuno. A aceitação tardiamente
enviada poderá ser havida como uma nova proposta, pelos critérios gerais de interpretação. Pode,
aliás, pôr-se o problema de saber se o artigo 233.º é também aplicável, pelo menos por analogia, à
aceitação tardia.

2.1.3. Exigência de precisão e consciência da proposta.


Uma proposta contratual só existirá se for suficientemente precisa, dela resultar a vontade do seu autor
se vincular e houver consciência de se estar a emitir uma declaração negocial.
Quando se dirige uma proposta a pessoas indeterminadas, deve entender-se que em princípio existe
apenas um convite para contratar. Não há ainda oferta de contratar; o vendedor quer reservar para si
a decisão final. Diversa será, porém, a conclusão, se a pessoa que fez a proposta indicou claramente,
ou isso resulta das circunstâncias, que considera o contrato perfeito mediante uma declaração de
concordância de outrem. Parece-nos ser este o caso, havendo, portanto, verdadeiras propostas
contratuais, das exposições de produtos em montras com a indicação do preço, e sem qualquer
reserva, em prateleiras de supermercados et cetera. E é, obviamente, o caso dos distribuidores
automáticos.
Neste contexto, chama-se também a atenção para o papel da publicidade na formação do contrato e
a relevância que o nosso legislador lhe entendeu conferir. Com efeito, a Lei de Defesa do Consumidor
veio preceituar que as informações concretas e objetivas contidas nas mensagens publicitárias de

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determinado bem, serviço ou direito se consideram integradas no conteúdo dos contratos que se
venham a celebrar após a sua emissão, tendo-se por não escritas as cláusulas contratuais em contrário.
Trata-se de uma inovação de grande importância, que permitirá integrar certas informações publicitárias
no contrato, dissuadindo a sua utilização como forma enganosa de atração de adquirentes.
Sobre a celebração de contratos por via eletrónica ou informática existem hoje disposições especiais.

2.1.4. Culpa in contrahendo.


Destaque-se o artigo 227.º que manda pautar a conduta das partes pelos princípios da boa fé,
entendida num sentido ético, quer durante a fase negociatória, quer durante a fase decisória (proposta
e aceitação) do contrato.
Esta responsabilidade pré-contratual tanto vale no caso de rutura de negociações, como no caso de o
contrato se concluir e vir a ser nulo ou ineficaz, ou, ainda, se, por causa da violação dos ditames da
boa fé por uma parte, vier a ser concluído com um conteúdo diferente.
O dano a ser ressarcido pela responsabilidade pré-contratual é, em princípio, o chamado dano da
confiança, resultante de lesão do interesse contratual negativo. Quer dizer: deve colocar-se o lesado
na situação em que estaria, se não tem chegado a depositar uma confiança, afinal frustrada, na
celebração de um contrato válido e eficaz. Coisa diversa seria a reparação do interesse contratual
positivo (ou dano de cumprimento), que consistiria em colocar as coisas na situação correspondente
ao cumprimento de um contrato válido.

3. As cláusulas contratuais gerais e os contratos de ou por adesão.

Com PINTO MONTEIRO, em O novo regime jurídico dos contratos de adesão/cláusulas contratuais
gerais...

1. Atualidade e importância.

Os contratos de adesão revestem-se de uma grande importância prática na atualidade. Com efeito, estamos perante
uma manifestação jurídica da moderna vida económica, perante um modo de contratação típico da sociedade industrial moderna,
funcionalmente ajustado às atuais estruturas de produção económica e à distribuição de bens e serviços. São, portanto,
necessidades de racionalização, planeamento, celeridade e eficácia que levam as empresas a recorrer a este modo de contratar,
eliminando ou esvaziando consideravelmente as negociações prévias entre as partes.
Ora, tais contratos apresentam especificidades várias em face do contrato tradicional ou negociado, que o legislador
pressupôs. Estas consistem na inclusão, no contrato, de cláusulas prévia e unilateralmente redigidas, que não foram
negociadas, antes elaboradas por outrem, para um número múltiplo ou indeterminado de contratos a celebrar no futuro.
No entanto, estas especificidades implicam riscos acrescidos para o aderente, isto é, para o parceiro contratual que celebra o
contrato aderindo às condições gerais utilizadas pela outra parte. E esses riscos surgem em três planos: no da formação do
contrato ou da tutela do consentimento; no da justiça contratual das cláusulas; e no dos modos de reação jurídica,
particularmente, de índole processual.

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Por fim, deve-se por um problema prévio: valerão as soluções da lei portuguesa, tal como as soluções de todas as leis que
disciplinam o problema sob o prisma das cláusulas contratuais gerais, para todos os contratos de adesão? Contratos de adesão
ou cláusulas contratuais gerais? Estar-se-á, afinal, perante a mesma coisa?

2. Características.

A fórmula “contratos de adesão” traduz a posição da contraparte e realça o significado da aceitação: mera adesão a cláusulas
pré-formuladas por outrem. Assim, avultam, na noção de contratos de adesão em sentido estrito, três características essenciais:
pré-disposição, unilateralidade e rigidez.
Neste sentido, a pré-disposição consiste na elaboração prévia de cláusulas que irão integrar o conteúdo de todos os contratos
a celebrar no futuro ou, pelo menos, de certa categoria de contratos: trata-se, hoc sensu, de cláusulas contratuais gerais. Ora, a
esta característica da generalidade anda associada uma outra, a indeterminação: as cláusulas são previamente redigidas para
um número indeterminado de pessoas.
Pensemos, por exemplo, nos contratos de seguros, bancários, de locação financeira, entre outros mais. Neles estão presentes,
em regra, todas as características dos contratos de adesão em sentido amplo: prédisposição, unilateralidade, rigidez,
generalidade e indeterminação. Alguém elabora previamente as cláusulas que irão fazer parte de todos os contratos que vier a
celebrar, seja com quem for. No entanto, nada impede que existam eventuais negociações entre as partes quando a alguns
aspetos do contrato – no essencial, porém, ele será regido, no todo ou em parte, pelas cláusulas previamente formuladas, sem
que o aderente possa alterá-las.
Por conseguinte, separam-se duas fases: a da elaboração das cláusulas que é estática e a da celebração de cada contrato
singular que é dinâmica. Estas duas fases constituem dois momentos distintos do processo de contratação e originaram
diferentes designações para o mesmo fenómeno: contratos de adesão e cláusulas contratuais gerais (condições gerais dos
contratos).
Ora, se é certo que se trata de designar de forma diversa o mesmo processo, a verdade é que, em rigor, a fórmula
contratos de adesão é ampla, podendo não coincidir com a expressão cláusulas contratuais gerais. Na verdade, em regra, o
contrato de adesão é concluído através de cláusulas contratuais gerais; mas pode acontecer que falte às cláusulas pré-
formuladas o requisito da generalidade (ou o da indeterminação), caso em que haverá contrato de adesão, sem se poder falar
de cláusulas contratuais gerais.
Estamos assim perante um primeiro problema, particularmente sentido em Portugal e na Alemanha, que, dispondo de legislação
sobre cláusulas contratuais gerais, têm de a estender a todos os contratos de adesão quando o aderente for um consumidor, por
força da Diretiva 93/13/CEE.
Entre nós, o problema permaneceu em aberto, apesar de o legislador ter pretendido transpor a diretiva comunitária através do
Decreto-Lei nº 220/95 que introduziu modificações à lei portuguesa sobre cláusulas contratuais gerais: o Decreto-Lei nº 446/85.
E o problema continuou em aberto porque o legislador de 1995 foi omisso quanto a este ponto.

3. Meios de controlo.

Os problemas que os contratos de adesão levantam são, fundamentalmente, de três ordens: no plano da formação do
contrato, aumentam consideravelmente o risco de o aderente desconhecer cláusulas que vão fazer parte do contrato; no plano
do conteúdo, favorecem a inserção de cláusulas abusivas; no plano processual, mostram a inadequação e insuficiência do normal
controlo judiciário, que atua a posteriori, depende da iniciativa processual do lesado e tem os seus efeitos circunscritos ao caso
concreto.
Em face disto, um controlo eficaz deve atuar em três direções: pela consagração de medidas destinadas a obter, em cada
contrato que se venha a incluir, um efetivo e real acordo sobre todos os aspetos de regulamentação contratual; pela proibição de
cláusulas abusivas; e pela atribuição de legitimidade processual ativa a certas instituições ou organizações para desencadearem
o controlo preventivo, isto é, um controlo sobre as condições gerais antes e independentemente de já ter sido celebrado um
qualquer contrato.

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Com efeito, os dois primeiros tipos de problemas resultam, essencialmente, da pré-formulação das cláusulas – daí que as
soluções para eles encontradas não devam restringir-se aos contratos celebrados através de cláusulas contratuais gerais. Já o
último dos problemas e soluções – o controlo preventivo – só faz sentido quando as cláusulas pré-formuladas forem gerais.

3.1. Consentimento.
Artigo 5.º/1/2 - O conteúdo do dever de informação, bem como os termos por que deve ser feita a comunicação
prévia das cláusulas contratuais gerais, dependem das circunstâncias, nomeadamente: o facto
Comunicação
de existirem já anteriores relações contratuais ou de o aderente se uma empresa ou um simples
Artigo 6.º - Dever de consumidor final.
informação

Parte-se do princípio de que as cláusulas que tenham sido objeto de um acordo específico (v.g.:
Artigo 7.º - Cláusulas cláusulas manuscritas) traduzem melhor do que as outras um efetivo consenso.
prevalentes

Artigo 8.º - Cláusulas Como o escopo da lei é evitar a sujeição do aderente a cláusulas que não lhe tenham sido
excluídas dos contratos previamente comunicadas, a consequência reside na sua exclusão dos contratos singulares.
singulares

Artigo 9.º – Regras de integração.


Subsistência dos
contratos singulares

Artigo 11.º/2 – In dubio, contra stipulatorem


Cláusulas ambíguas

Sobre o sentido destas medidas, entende-se que protegem o aderente contra a inserção, mais ou menos subreptícia,
de cláusulas prejudiciais aos seus interesses, contribuindo para evitar decisões precipitadas, pouco refletidas, e despertam a sua
atenção para os termos do contrato que vai subscrever. Por outro lado, poderão atuar sobre o predisponente, pelo efeito dissuasor
que tenderão a exercer, em regra, sobre ele, forçando-o a moderar os seus intentos, pois sabe que as suas condições gerais
terão, assim, menos possibilidades de escapar à atenção da contraparte.
No entanto, a sua eficácia do ponto de vista da tutela do consumidor ou, em geral, do aderente, é reduzida, pois não o
protegem de cláusulas inequitativas ou abusivas a que terá de submeter-se, mesmo que consciente dos riscos que corre, uma
vez que não encontra alternativa real para a aquisição do bem ou serviço de que carece e de que não pode prescindir. Além do
mais, note-se que este tipo de medidas falha, por vezes, no próprio objetivo de esclarecer o aderente a respeito do contrato que
vai celebrar: por falta de tempo e/ou de preparação técnica, por resignação, por conformismo, o consumidor não lê ou não se
interessa em conhecer em pormenor as condições do contrato.

3.2. Cláusulas proibidas.


O legislador teve consciência de que havia que fiscalizar diretamente o conteúdo das próprias cláusulas contratuais gerais.
Fê-lo de duas formas: impondo a sanção de nulidade para certo tipo de cláusulas, que expressamente proíbe, nulidade essa
invocável nos termos gerais (arts. 12.º e 24.º); e consagrando uma ação inibitória, com finalidades preventivas.
No essencial, enumerou-se uma série de cláusulas que se proíbe em termos absolutos, ao lado de outras, cuja proibição é
relativa. O sentido desta distinção compreende-se da seguinte forma: enquanto as cláusulas sujeitas a uma proibição relativa
permitem ao tribunal a sua apreciação em cada caso concreto, ainda que segundo um modelo objetivo, as outras são proibidas
em termos absolutos, ou seja, em qualquer caso; umas só são proibidas após valoração judicial, as outras são-no imediatamente.
O sistema é completado com a consagração de uma cláusula geral, assente na boa fé (arts. 15.º e 16.º).
No entanto, note-se que separou as relações entre empresários ou entidades equiparadas, das relações com consumidores
finais, dedicando, a cada uma delas, uma secção própria. Com efeito, enquanto, nas relações entre empresários ou entidades
equiparadas, as cláusulas absoluta ou relativamente proibidas são apenas as que constam dos artigos 18.º e 19.º, já nas relações

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com consumidores finais, porém, além destas cláusulas, são igualmente proibidas, de modo absoluto ou relativo, as que constam
dos artigos 21.º e 22.º ex vi do artigo 20.º.

3.3. Ação inibitória.


O legislador consagrou, como forma complementar de tutela do aderente, uma ação inibitória com finalidades preventivas
(arts. 25.º e ss.). Assim, independentemente da sua inclusão numa concreta relação jurídico-negocial já encetada, as cláusulas
contratuais gerais, elaboradas para utilização futura, desde que interditas pela lei, podem, desde logo, ser proibidas por decisão
judicial.
A legitimidade processual ativa e passiva encontra-se regulada nos artigos 26.º e 27.º, respetivamente. Ora, a sua finalidade é
impedir a utilização futura de cláusulas proibidas por lei, procurando assim o legislador superar os inconvenientes de um controlo
apenas a posteriori, com efeitos circunscritos ao caso concreto, sub judice, e dependente apenas da iniciativa processual do
lesado, o qual é vítima, frequentemente, da sua própria inércia e falta de meios para enfrentar, sozinho, um contraente poderoso.
De facto, optou-se por confiar esta tarefa de fiscalização preventiva das cláusulas contratuais gerais ao poder judicial e não aos
órgãos administrativos, o que traz alguns inconvenientes, nomeadamente, a maior preparação técnica e especialização de um
órgão ou comissão ad hoc. No entanto, compreende-se a opção, tendo em conta as maiores garantias de isenção e de
independência, à partida, dos tribunais. Contudo, esta solução tem vindo a ser contestada, em virtude da morosidade e menor
preparação técnica dos tribunais.
Transitada em julgado a decisão proibitiva, não podem ser incluídas nem contratos singulares, que o demandado venha a
celebrar posteriormente, as cláusulas gerais que foram objeto dessa decisão, da mesma forma que essas cláusulas não podem
continuar a ser recomendadas. Assim, se o demandado, vencido na ação inibitória, não acatar a decisão judicial, vindo a incluir
num contrato singular cláusulas anteriormente proibidas naquela ação, pode a contraparte invocar a declaração incidental de
nulidade contida na decisão inibitória. No entanto, esta solução não aproveita todas as vantagens que um controlo preventivo
apresenta. Com efeito, compreende-se que o aderente possa valer-se de anterior decisão inibitória, cuja natureza e finalidades
justificam a eficácia automática e ulta partes. Mas o êxito desta diligência depende de o aderente ter concluído o contrato com o
mesmo sujeito vencido na ação inibitória. Assim, não se verificando este requisito, o aderente não poderá valer-se de anterior
decisão inibitória, ainda que as cláusulas contratuais gerais proibidas nesta decisão sejam iguais ou do mesmo tipo das que
constam do seu contrato singular.
Por fim, note-se que se tiver existido um processo de controlo preventivo, mas o tribunal decidir não proibir determinada cláusula,
isso não significa que essa cláusula não possa vir a ser proibida mais tarde, se vier incluída num contrato. É que pode não se
justificar, a priori e em termos gerais, mas justificar-se em determinado contrato concreto, por força das circunstâncias desse
caso concreto.

TÍTULO IV – EFICÁCIA DO DECURSO DO TEMPO NAS RELAÇÕES JURÍDICAS

1. Prescrição extintiva e caducidade.


2. Obrigações duradouras e obrigações de execução instantânea.

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TÍTULO IV – EFICÁCIA DO DECURSO DO TEMPO NAS RELAÇÕES JURÍDICAS

1. Prescrição extintiva e caducidade.

O tempo é um facto jurídico não negocial, suscetível de influir, em muitos domínios do direito civil, em
relações jurídicas do mais diverso tipo. Os problemas mais importantes colocados pela repercussão do
decurso do tempo no mundo dos efeitos jurídicos referem-se à prescrição extintiva e à caducidade.

2. Obrigações duradouras e obrigações de execução instantânea.

Um aspeto curioso da relevância do tempo no domínio das relações jurídicas é evidenciado pela
destrinça entre obrigações duradouras e obrigações de execução instantânea. Se há obrigações que
se esgotam num momento determinado – isto é, em que a prestação fica satisfeita em dada altura e
sobre a qual o tempo não tem qualquer influência – o mesmo não acontece em certas outras, cuja
execução se prolonga no tempo e em que este influi no montante da prestação.
As do primeiro grupo extinguem-se pelo cumprimento através de um só ato do devedor e são
designadas obrigações de execução instantânea; as do segundo não se extinguem com um único ato
do devedor e o tempo é aí um fator determinante do conteúdo global da prestação – são as obrigações
duradouras.
Estas obrigações não apresentam sempre a mesma forma de cumprimento, isto é, a sua prestação
ora é satisfeita sem interrupção no tempo, continuadamente, ora se renova em prestações sucessivas
e parcelares. Distingue-se, por isso, entre obrigações duradouras de execução continuada e obrigações
periódicas, reiteradas ou com trato sucessivo.
Cabe ainda fazer referência às obrigações de prestação fracionada ou repartida que, apesar do seu
cumprimento se prolongar no tempo, não podem ser consideradas obrigações duradouras. Com efeito,
a obrigação de pagar o preço a prestações cumpre-se em frações sucessivas durante um certo período
de tempo, mas o tempo não exerce influência no seu montante – o que é nota característica das
obrigações duradouras.
Por isso, nas obrigações duradouras não estão compreendidos os casos em que o tempo não tem
influência sobre o conteúdo e montante da prestação. Tanto as relações duradouras como as de
prestação instantânea ou de prestação fracionada têm um princípio e um fim, uma existência entre dois
polos temporais; a duração em si não constitui nota distintiva de ambas as espécies, mas é diversa a
sua estrutura temporal específica, isto é, o sentido que toma a sua existência entre o ponto inicial e o
momento final.
As obrigações duradouras (de prestação instantânea ou de prestação fracionada) existem em função
ou em ordem a um fim; têm por objeto uma só prestação, a realizar de uma vez só ou em frações, com
cujo cumprimento o devedor se liberta, tendendo a terminar através da efetivação da prestação. Há,
assim, entre o termo da sua existência e a sua função, ou seja, o seu significado, uma conexão

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essencial, de tal modo que elas perecem na realização da sua função ou do seu sentido; para o credor,
quanto mais curta for a sua existência, tanto melhor.
As obrigações duradouras, diversamente, não são criadas em vista da sua extinção, mas em vista da
sua duração, da sua existência no tempo. Têm por objeto uma omissão, um comportamento positivo
continuado ou prestações que se repetem periodicamente; a sua prestação permanece temporalmente
e o respetivo conteúdo é determinado em função do decurso do tempo. Estes deveres de prestação
duradoura cumprem a sua função na medida em que existem e quando existem; o termo da sua
exigência é uma rutura que não está em conexão essencial com a função e o significado da obrigação;
para o credor, quanto mais durarem, tanto melhor.
E esta distinção – entre obrigações duradouras (de execução continuada ou de prestação periódica) e
obrigações de prestação fracionada ou repartida – toma especial relevância no artigo 781.º, segundo o
qual o não cumprimento de uma prestação importa o vencimento de todas as outras, regime que não
diz respeito às obrigações duradouras, mas às de prestação fracionada. O que se torna facilmente
compreensível com o exemplo seguinte: se o inquilino se atrasar no pagamento de uma renda, nem
por isso o senhorio tem o direito de exigir as rendas devidas pelo arrendatário até ao termo do
arrendamento; ao invés, e, conforme resulta da consideração conjunta dos artigos 781.º e 934.º, se o
devedor de uma dívida a prestações deixar em atraso prestações de valor superior a 1/8 do montante
global da dívida, o credor poderá exigir-lhe a liquidação total.
Outro ponto em que a distinção reveste importância é o que diz respeito ao artigo 434.º/2. Assim, uma
vez exercido o direito de resolução de um contrato, e por a resolução ter efeitos retroativos, cada uma
das partes tem de restituir aquilo que recebeu – isto como regra geral. Mas, em relação aos contratos
de execução continuada ou periódica, preceitua aquele artigo que a resolução não abrange as
prestações já efetuadas, exceto se entre estas e a causa de resolução existir um vínculo que legitime
a resolução de todas elas. Por isso, se a determinada altura se decide a resolução de um contrato de
compra e venda, cabe às partes o dever de restituir as prestações já efetuadas; mas não assim, por
exemplo, num contrato de arrendamento no qual, uma vez ocorrida a resolução, não há o dever de
restituir as prestações efetuadas, considerando-se o contrato resolvido só em relação ao futuro. Assim
se conclui que, em princípio, não há retroatividade na resolução das obrigações de execução
continuada ou periódica; isto, não porque fosse impossível fazer funcionar a retroatividade na resolução
destas obrigações, mas porque elas estão ligadas ao tempo que passa, a cada momento, e o seu
montante vai ser determinado em função dele.
A solução do artigo 1058.º (igualmente, 821.º) é também melhor evidenciada pela ligação temporal das
obrigações duradouras. Aí se preceitua que a cessão ou liberação de rendas ou aluguéis não vencidos
é inoponível aos sucessores inter vivos do locador ou ao exequente. Se A cede a B, em 2002, as rendas
de um prédio a vencer até 2007, mas se entretanto aliena o mesmo prédio a C, aquela cessão é
inoponível ao adquirente do prédio.

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FIM

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