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Faculdade de Direito da Universidade do Porto

Teoria Geral do Direito Civil

Professora Doutora Raquel Guimarães

Aulas Teóricas
Faculdade de Direito da Universidade do Porto

Nota introdutória:

Esta sebenta diz respeito às aulas teóricas do ano letivo


2018/2019 da unidade curricular de Teoria Geral do Direito Civil,
lecionadas pela docente Raquel Guimarães. A sebenta tem como
base as aulas teóricas e as obras “Teoria Geral do Direito Civil” de
Mota Pinto e foi realizada pela coordenadora do Departamento de
Pedagogia da CC2, Inês Amorim e pela vogal Marta Correia.
Foi elaborada com o intuito de auxiliar os estudantes para o
exame de Teoria Geral do Direito Civil.
Salientamos que a leitura desta sebenta não substitui a leitura
de bibliografia obrigatória ou recomendada, sendo um mero
instrumento de auxílio ao estudo.

No caso de serem encontrados erros, agradecemos que os


mesmos sejam comunicados para aperfeiçoamento do documento,
através do e-mail da CC2 – cc2direito1819@gmail.com.

Bom estudo!

A Comissão de Curso do 2º Ano de Direito


Faculdade de Direito da Universidade do Porto

I. Teoria geral do objeto da relação jurídica.


v Objeto da relação jurídica.

São aqui pertinentes as páginas 331 e seguintes do manual adotado.


Fala-se de objeto da relação jurídica para referir o objeto do direito subjetivo que
constitui o lado ativo da mesma relação. Afinal, em que consiste o objeto do direito
subjetivo?
O direito subjetivo traduz-se num poder atribuído a uma pessoa. Este poder, e as
faculdades que o integram, podem, quase sempre, ser exercitados sobre um determinado
quid, corpóreo ou incorpóreo. Esse poder e essas faculdades incidem sobre determinado
ente (coisa ou pessoa); conferem a possibilidade de exercer uma soberania ou domínio
sobre um bem, sobre um objeto (coisa corpórea ou incorpórea, prestação, pessoa,
incluindo um determinado modo de ser da própria pessoa, outro direito).
O objeto de uma relação jurídica é precisamente o quid sobre que incidem os
poderes do seu titular ativo. A satisfação do interesse, que corresponde ao aspeto
funcional do direito, exige a subordinação de um bem ao poder do titular do direito. Esse
bem, que constitui o ponto de incidência do direito, está submetido aos poderes, à
supremacia do titular ativo da relação jurídica e é o objeto desta.
Objeto de relações jurídicas (objeto de direitos subjetivos) é, pois, todo o ente,
todo o bem, sobre que poem recair direitos subjetivos.

É possível distinguir as noções de objeto de um direito e de conteúdo do mesmo


direito. O objeto é aquele sobre que recaem os poderes do titular do direito. O conteúdo
é o conjunto dos poderes ou faculdades que o direito subjetivo comporta. Objeto do direito
de propriedade é a coisa apropriada; conteúdo do direito de propriedade são os poderes
conferidos pelo ordenamento jurídico ao proprietário (poderes de usar, fruir, dispor).
Os direitos potestativos não têm objeto. O exercício destes direitos não se traduz
na incidência de quaisquer poderes ou de qualquer domínio sobre um bem submetido a
essa supremacia. São direitos a uma modificação jurídica (extinção, modificação ou
constituição de relações jurídicas). Atuam com caráter conformador sobre o mundo,
puramente pensado, das relações jurídicas. No máximo, poderíamos pretender que os
direitos potestativos modificativos ou extintivos têm como o objeto a relação jurídica
modificada ou extinta. Torna-se, porém, evidente terem os direitos potestativos
necessariamente um conteúdo.
Também temos direitos com conteúdos diferentes sobre o mesmo objeto (ex: A é
proprietário de uma casa e tem os direitos de propriedade inerentes. Mas constitui um
direito de usufruto a favor de B. O objeto é a casa, A e B têm direitos com conteúdos
diferentes sobre o mesmo objeto).

Pode distinguir-se entre objeto imediato e objeto mediato dos direitos subjetivos.
A distinção exprime a diversidade entre aquilo que diretamente está submetido aos
poderes ideais que integram um direito subjetivo e aquilo que só de uma forma indireta,
isto, através de um elemento mediador, está submetido àqueles poderes.

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Nos direitos reais, não há intermediário entre o titular do direito e a coisa. O


proprietário, o usufrutuário, etc, estão em contacto direto com o objeto do seu direito,
colhendo diretamente dele as respetivas utilidades, sob a tutela do ordenamento jurídico
que atua positivamente e negativamente.
A distinção verifica-se nas obrigações (direitos de crédito) de prestação de coisa
certa e determinada. Nelas, o objeto imediato do direito do credor é o comportamento do
próprio devedor, isto é, a prestação, o ato de entrega da coisa. O objeto mediato é a própria
coisa que deve ser entregue ao credor. Na verdade, ao contrário do titular dos direitos
reais, o credor só tem direito à coisa através da prestação do devedor. Entre o credor
(ou o seu direito) e a coisa intromete-se a pessoa do devedor.

O artigo 202.º do Código Civil estabelece equivalência entre o conceito de coisa


e o de objeto de relações jurídicas e enuncia no artigo seguinte várias classificações das
coisas.
Vejamos de per si cada um dos possíveis objetos de relações jurídicas, quer os que
inquestionavelmente o são, quer os que suscitam dúvidas.

a) Pessoas. Estes direitos sobre outras pessoas, nos sistemas jurídicos modernos, têm
um conteúdo especial, pois não são direitos subjetivos do tipo comum, mas antes
poderes-deveres ou poderes funcionais. Exemplos desta figura são os direitos
integrados nos institutos do poder paternal e do poder tutelar. Aqui, a entidade
sobre que incidem os poderes-deveres do pai ou do tutor, consiste na própria
pessoa do filho ou do pupilo. O filho ou o pupilo estão sujeitos à potestas pátria
ou tutelar. São direitos que conferem poderes destinados a habilitarem os pais ou
o tutor ao cumprimento dos seus deveres para com o filho/pupilo. Isto não
constitui uma ofensa à dignidade da pessoa humana, como acontecia com a
instituição historicamente ultrapassada da escravatura, em que se admitia relações
jurídicas patrimoniais sobre pessoas físicas.
b) Prestações. Nos direitos de crédito, conforme foi aludido, o objeto é uma conduta
ou ato humano: a prestação. Nestes direitos, o objeto não é rigorosamente uma
coisa, mas um comportamento do devedor. As prestações podem ser
comportamentos positivos ou negativos.
c) Coisas materiais ou corpóreas. Nenhuma dúvida se pode suscitar acerca da
possibilidade de realidades físicas, carecidas de personalidade jurídica, serem
objeto de direitos subjetivos. É um fenómeno corrente, que ocorre tipicamente nos
direitos reais. Estes objetos corpóreos têm de revestir determinados requisitos:
existência autónoma, idoneidade para satisfazer interesses humanos, isto é, devem
ser úteis, possibilidade de sujeição jurídica ao poder exclusivo de um ou alguns
homens, isto é, devem ser apropriáveis.
d) Coisas incorpóreas ou bens imateriais. A atividade espiritual do homem pode
ser exercida no sentido da criação de obras, produtos do engenho, da inteligência
ou da sensibilidade humanas. Em consequência dessa aplicação do espírito
humano surgem obras artísticas, literárias, científicas, intelectuais, invenções
industriais, etc. Estes bens têm valor patrimonial autónomo, na medida em que
podem ser explorados economicamente. Para além desse valor patrimonial, alguns
deles estão intimamente ligados à personalidade do seu autor, pois ela está

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refletida na obra criada. O direito tutela-os mediante a atribuição, a título de


aquisição originária, de direitos ao autor das obras em questão. São os chamados
direitos de autor e a chamada propriedade industrial/intelectual.
e) Direitos. Pode pôr-se o problema de saber se um direito subjetivo pode constituir
objeto de outro direito subjetivo. Interessa aqui frisar algumas soluções legais que
parecem ajustar-se à figura dos direitos sobre direitos: 679.º; 1439.º; 1464.º;
1467.º; 688.º.
f) A própria pessoa. A nossa lei, utilizando aliás a expressão “direitos de
personalidade”, protege os indivíduos contra qualquer ofensa e concretiza alguns
direitos sobre certos aspetos da personalidade: direito ao nome, direito à imagem,
direito à reserva sobre a intimidade da vida privada, etc. Esta categoria é
contestada por alguns autores.
g) Animais. Estes já não integram a categoria das coisas, dado o seu novo estatuto.
Os animais podem, por exemplo, ser objeto de direito de propriedade (1305.º). Há
ainda um conjunto de poderes funcionais das pessoas relativamente aos animais
de estimação.

v As coisas
Interessa fundamentalmente num estudo jurídico caraterizar a noção jurídica de
coisa.
§ Aceção filosófica: coisa é tudo aquilo que pode ser pensado, ainda que não
tenha existência real e presente. Este é o sentido corrente e amplo.
§ Aceção física: coisa é tudo o que tem existência corpórea ou, pelo menos,
é suscetível de ser captado pelos sentidos.
Quanto ao sentido jurídico de coisa, cumpre analisar o aritgo 202.º do Código
Civil, onde se contém a seguinte definição: “diz-se coisa tudo aquilo que pode ser objeto
de relações jurídicas”.

Artigo 202.º
(Noção)

1. Diz-se coisa tudo aquilo que pode ser objeto de relações jurídicas.
2. Consideram-se, porém, fora do comércio todas as coisas que não podem ser objeto de direitos privados, tais
como as que se encontram no domínio público e as que são, por sua natureza, insuscetíveis de apropriação
individual.

Não pode considerar-se rigorosa tal definição. Esta noção leva-nos a pensar que
as coisas são sinónimos de objeto da relação jurídica, mas sabemos que não é assim. Com
efeito, há entes suscetíveis de serem objeto de relações jurídicas que não são coisas em
sentido jurídico. Desde logo, as pessoas e as prestações.
Quanto aos bens imateriais, objeto dos direitos de autor ou de propriedade
industrial/intelectual, e aos direitos, objeto de certas figuras de direitos sobre direitos,
podem integrar-se no conceito de coisas, embora tenham um regime especial
relativamente ao regime geral das coisas por serem coisas incorpóreas.
Conjugando estas ideias, podemos definir as coisas em sentido jurídico como os
bens ou entes de caráter estático, desprovidos de personalidade e não integradores

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do conteúdo necessário desta, suscetíveis de constituírem objeto de relações


jurídicas.
Os bens de caráter estático, carecidos de personalidade, só são coisas em sentido
jurídico se puderem ser objeto de relações jurídicas. Para este efeito, devem apresentar as
seguintes caraterísticas:
a) Existência autónoma ou separada: uma casa é uma coisa, não o sendo, todavia,
cada uma das pedras ou das paredes que a integram, enquanto absorvida ou
incluída no todo. É o requisito da individualidade.
b) Possibilidade de apropriação exclusiva por alguém: não coisas os bens que
escapam ao domínio do ser humano, de qualquer homem, como por exemplo e,
por enquanto, os planetas, ou os que, por falta de possibilidade de delimitação ou
captura, são necessariamente aproveitados por todos os homens, como por
exemplo a luz solar. Tem que ser suscetível de dominação. Ser objeto de domínio
não implica que seja uma coisa corpórea.
c) Aptidão para satisfazer interesses ou necessidades humanas: ser humano é a
medida e o critério do relevo jurídico das coisas; por isso não são coisas, pois para
nada servem, uma gota de água, um grão de areia. É o requisito da economicidade.

O Código Civil define várias categorias de coisas, decorrentes das classificações que
consagrou. Essas categorias têm interesse porque a lei faz, por vezes, corresponder
regimes jurídicos específicos a certas categorias e não a outras. São aqui pertinentes os
artigos 203.º e seguintes do Código.

§ Coisas fora do comércio ou no comércio (artigo 202.º nº 2): consoante possam


ser objeto de comércio jurídico ou não. Por exemplo, os cadáveres são coisas fora
do comércio.

§ Coisas corpóreas ou incorpóreas: as corpóreas são apreendidas pelos sentidos e


as incorpóreas não (têm um regime especial). O artigo 1303.º é um exemplo do
regime especial das coisas incorpóreas.

§ Coisas móveis ou imóveis (204.º). São ambas necessariamente coisas corpóreas.


A lei elenca no artigo 204.º as coisas imóveis. Aparenta ser uma enumeração
taxativa.
No artigo 205.º diz-se que são móveis as coisas que não são imóveis. Há coisas
imóveis per si e por destinação. Os imóveis per si são os prédios rústicos e urbanos.

As águas como coisas imóveis. Os outros são imoveis por destinação. Só são imóveis
porque têm uma relação especial com imóveis.
Os direitos sobre imóveis são imóveis e seguem o seu regime.
As partes integrantes dos prédios rústicos e urbanos são classificadas como imóveis,
por causa da sua ligação ao imóvel. Mas podem ser separadas do imóvel e este continua
completo. No caso das partes integrantes, a propriedade só se irá transferir quando forem
desligadas dos imóveis. O contrato de compra e venda só opera o efeito real no momento
de separação da coisa face ao imóvel.

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Os prédios rústicos e urbanos são imóveis per si. As águas são imóveis per si. A
propriedade de imóveis e a propriedade de águas. As outras alíneas do 204º referem-se a
imóveis por destinação.
As partes integrantes dos prédios rústicos e urbanos, uma vez desligadas continuam
a existir e o imóvel continua a fazer a sua função sem estas partes. Distinguem-se das
partes componentes que são partes de um imóvel, mas que se desligadas do imóvel este
não cumpre a sua função (ou não a cumpre perfeitamente).
As partes integrantes e componentes têm especialidades quanto à transmissão do
direito real. A transmissão dá-se contrato válido (408º), salvo as exceções. O artigo
408º/2 diz que se a transferência respeitar partes componentes ou integrantes, a
transferência só se verifica no momento da separação. O efeito real só se dá no momento
da separação. Mas ainda assim, por causa do contrato. A transferência continua a ter por
base o contrato, mas precisa de um ato material. Por isso, não é uma exceção ao número
1 do artigo 408º. Precisamos de um contrato válido e de um ato material para a
transferência de um direito real. Mas o ato material individualmente não é suficiente. A
isto acresce o facto do artigo 880º que diz que na venda de partes componentes ou
integrantes o vendedor fica obrigado a exercer as diligências necessárias para que o
comprador adquira a propriedade destas partes.

§ Coisas simples ou compostas/universalidades: podem ser universalidades de


facto, que são conjuntos de coisas (206º). Podem ser transacionadas
individualmente e em conjunto
(ex: A vende a B um rebanho de ovelhas. Um rebanho é uma universalidade de
facto. Mas as ovelhas também podem ser transacionadas individualmente).
Estas universalidades de facto podem ser homogéneas ou heterogéneas. Se são
compostas por coisas do mesmo tipo são homogéneas e se são compostas por
coisas de tipos diferentes são heterogéneas.
As universalidades de direito são conjuntos de direitos ou conjuntos de relações
jurídicas que são encabeçadas pelo mesmo titular (ex: herança).

§ Coisas fungíveis ou não fungíveis (207º) - qualidade de coisa fungível ou não


afere-se em cada relação jurídica em concreto. Há coisas que são fungíveis num
contexto e não são noutro contexto.
(ex: se A empresta a B uma quantia de dinheiro, B tem que devolvê-lo, mas não
as mesmas notas que recebeu. Mas se A emprestar a B o seu automóvel, pretende
que seja o mesmo automóvel a ser devolvido. Se A emprestar 1kg de arroz, é uma
coisa fungível).
Esta qualificação é importante para efeitos de cumprimento e incumprimento de
obrigações. Também é importante para efeitos de determinados contratos.
Quando se fala em emprestar, podemos falar em contrato de mútuo ou de
comodato. Quer um quer outro são empréstimos (1129º e 1142º). No comodato,
deve ser restituída a mesma coisa, mas no mútuo tem que ser uma coisa do mesmo
género. Há um regime diferente que depende da coisa ser fungível ou não.
A ideia de fungibilidade estende-se às prestações, pois há prestações fungíveis e
não fungíveis.

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§ Coisas consumíveis e não consumíveis (208º) – faz-se esta distinção consoante


o uso regular da coisa leva à sua destruição ou alienação ou não. As coisas
consumíveis distinguem-se das deterioráveis, que são aquelas que o uso
comporta um progressivo desgaste. Estas classificações são importantes para os
direitos reais.

§ Coisas divisíveis e não divisíveis (209º) – se as coisas podem ser divididas sem
que se altere a sua substância ou não.

§ Coisas acessórias e coisas principais (210º) – as coisas acessórias são coisas


móveis que se distinguem das partes integrantes, porque não estão materialmente
ligadas ao imóvel. Estão afetadas de forma duradoura ao serviço ou ornamentação
de outra coisa, mas não há uma ligação material. A distinção é importante no
âmbito dos negócios jurídicos sobre as coisas principais, como previsto no 210º/2.
As coisas acessórias não acompanham o destino das coisas principais, salvo
disposição em contrário. Tem que haver uma vontade negocial ad hoc que as
incluam.

§ Coisas presentes e futuras (211º) - existem coisas relativamente e absolutamente


futuras. As coisas absolutamente futuras não estão no poder do disponente,
porque materialmente ainda não existem (ex: vestido por fazer). As coisas
relativamente futuras existem fisicamente, mas não se encontram na disposição
do predisponente, porque não estão no seu poder (ex: venda de um relógio).
Alguém que vende coisa alheia como coisa presente e própria está a celebrar um
contrato nulo. Um negócio não pode produzir imediatamente o seu efeito real. O
artigo 408º/2 diz que a transferência de coisa futura só tem efeitos quando a coisa
se tornar presente. A lei admite a compra e venda de coisa futura, mas não admite
a doação de bens futuros (942º/1).

§ Frutos (212º) - fruto é tudo o que a coisa produz periodicamente, sem prejuízo
da sua substância. Existem frutos naturais que provém da própria coisa e frutos
civis que são o resultado de uma relação jurídica (ex: juros de depósitos).
Distinguem-se frutos pendentes e precedidos, que se associam à primeira
distinção. É uma noção importante dada a sua aplicação no regime do usufruto e
da posse.

§ Benfeitorias (216º) – são as “despesas feitas para conservar ou melhorar a coisa”.


Distinguem-se benfeitorias necessárias, úteis e voluptuárias. É uma noção
importante dada a sua aplicação no regime da posse, do arrendamento, etc.

§ Coisas sem dono - é uma classificação que apenas se aplica a coisas imóveis
(1345º). As coisas imóveis sem dono adquirem-se por ocupação.

II. Teoria Geral do Facto Jurídico

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1. Noção de facto jurídico


Facto jurídico é todo o ato humano ou acontecimento natural juridicamente
relevante. Esta relevância jurídica traduz-se, principalmente, senão mesmo
necessariamente, na produção de efeitos jurídicos.
Há factos sociais ou naturais indiferentes para o direito, isto é, desprovidos de
qualquer eficácia jurídica. São factos materiais, ajurídicos, neutrais do ponto de vista do
ordenamento jurídico (por exemplo, o convite para um passeio). Nem todos os factos reais
ou sociais são, portanto, factos jurídicos.

2. Classificação dos factos jurídicos


A primeira grande classificação dos factos jurídicos é a que se pode estabelecer entre
factos voluntários ou atos jurídicos e factos jurídicos involuntários ou naturais.
§ Os factos voluntários são os que resultam da vontade como elemento
juridicamente relevante; são manifestações ou atuação de uma vontade; são
ações humanas tratadas pelo direito enquanto manifestações de vontade.
§ Os factos involuntários ou naturais são estranhos a qualquer processo volitivo,
ou porque resultam de causas de ordem natural ou porque a sua eventual
voluntariedade não tem relevância jurídica. São, por exemplo, a vizinhança, o
nascimento, a morte, o decurso do tempo, a destruição natural de um objeto.

Os factos jurídicos voluntários ou atos jurídicos podem ser lícitos ou ilícitos,


consoante os efeitos produzidos estão de acordo ou em contradição com a ordem jurídica.
§ Os atos ilícitos são contrários à ordem jurídica e por ela reprovados; importam
uma sanção para o seu autor, que é infrator de uma norma jurídica.
§ Os atos lícitos são conformes à ordem jurídica e por ela consentidos.
Cabe uma menção a duas ordens de ilícitos: os ilícitos civis, por um lado, e os ilícitos
criminais, pelo outro.
Os objetivos a que se propõe a responsabilidade civil são objetivos de reparação,
diferindo daqueles a que se propõe a responsabilidade penal, que são de punição do
infrator de acordo com fins de prevenção geral e especial.

Os factos voluntários ou atos jurídicos podem, segundo outra classificação de caráter


fundamental, distinguir-se em negócios jurídicos e simples atos jurídicos (ou atos
jurídicos em sentido estrito). A distinção entre negócios jurídicos e simples atoa jurídicos
assenta precisamente no critério da relação que intercede entre a vontade e a volição das
partes dirigida a um resultado e os efeitos jurídicos produzidos.

§ Os negócios jurídicos são factos voluntários, cujo conteúdo essencial é


integrado por uma ou mais declarações de vontade a que o ordenamento
jurídico atribui efeitos jurídicos concordantes com o conteúdo da vontade
das partes, tal como este é objetivamente apercebido. Nos negócios jurídicos,
o comportamento de cada parte aparece exteriormente como uma declaração
visando determinados resultados prático-empíricos, sob a tutela do
ordenamento jurídico, e os efeitos determinados pela lei são os

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correspondentes aos resultados cuja intenção foi manifestada. Os efeitos dos


negócios jurídicos produzem-se ex voluntate. É o que acontece com o
testamento e os contratos.

§ Os simples atos jurídicos são factos voluntários cujos efeitos se produzem,


mesmo que não tenham sido previstos ou queridos pelos seus autores, embora
muitas vezes haja concordância entre a vontade destes e os referidos efeitos.
Não é necessária uma vontade de produção dos efeitos correspondentes
ao tipo de simples ato jurídico em causa para essa eficácia se desencadear.
Os efeitos dos simples atos jurídicos ou atos jurídicos em sentido estrito
produzem-se ex lege. Por exemplo, a interpelação do devedor (805.º nº 1);
descoberta de um tesouro (1324.º); criação de uma obra artística ou uma
invenção industrial (1303.º); ocupação de animais bravios ou de animais e
coisas móveis perdidas (1318.º e seguintes); fixação de domicílio voluntário
(82.º); acessão industrial na forma de união ou especificação (1333.º e 1336.º).

Dentro dos simples atos jurídicos, é usual fazer-se uma distinção entre:

- Quase negócios jurídicos ou atos jurídicos quase-negociais. Traduzem-se


na manifestação exterior de uma vontade. É o caso da interpelação do devedor,
da gestão de negócios, da notificação da cessão de créditos.
- Operações jurídicas ou atos materiais. Traduzem-se na efetivação ou
realização de um resultado material ou factual a que a lei liga determinados
efeitos jurídicos. É o caso da acessão industrial, da ocupação de animais ou
coisas móveis, da descoberta de um tesouro, das invenções industriais, etc.

3. Conceito e importância do negócio jurídico


Os negócios jurídicos são atos jurídicos constituídos por uma ou mais declarações de
vontade, dirigidas à realização de certos efeitos práticos, com intenção de os alcançar
sob tutela do direito, determinando o ordenamento jurídico a produção dos efeitos
jurídicos conformes à intenção manifestada pelo declarante ou declarantes.
O que é verdadeiramente constitutivo do negócio é o comportamento declarativo –
a existência de um comportamento que, exteriormente observado, apareça como
manifestação de uma vontade de certos efeitos práticos sob a sanção do ordenamento
jurídico. Normalmente, esta aparência corresponde a um conteúdo volitivo real e essa
coincidência permite ao negócio jurídico realizar a sua função de meio de realização da
autonomia da vontade (artigo 405.º). Contudo, existem casos de dissídio entre vontade
real e declaração, prevalecendo, quase sem restrições, o elemento declarativo.
A importância do negócio jurídico manifesta-se na circunstância de esta figura ser um
meio de auto-ordenação das relações jurídicas de cada sujeito de direito. Estamos perante
o instrumento principal de realização do princípio da autonomia da vontade ou autonomia
privada. Já no semestre passado foi focada a função do negócio jurídico como meio de
autogoverno pelos particulares da sua esfera jurídica própria.

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A regra geral é que que basta a declaração de vontade para que o negócio jurídico
produza efeitos jurídicos. Mas há exceções. Nos negócios jurídicos reais quanto à
constituição não basta uma declaração de vontade para que os efeitos jurídicos se
produzam, pois exige-se um ato material:
- O contrato comodato, previsto no artigo 1129º, pressupõe a entrega da coisa. Se o
sujeito se compromete a entregar a coisa mais ainda não entregou, há uma promessa de
contrato de comodato.
- O contrato de mútuo, previsto no artigo 1142º, é um contrato real quanto à constituição.
Neste negócio, há o empréstimo de quantia de dinheiro. Nestes contratos, exige-se um ato
material para que haja eficácia do negócio.
Por outro lado, no contrato de compra e venda a obrigação de entregar a coisa decorre
de um contrato anteriormente celebrado. A propriedade transmite-se por mero efeito de
contrato. Ou seja, basta a declaração de vontade para que o negócio jurídico produza os
seus efeitos. A entrega da coisa não é um ato material necessário à eficácia do negócio.

3.1 A relação entre a vontade exteriorizada na declaração negocial e os efeitos


jurídicos do negócio
è Teoria dos efeitos jurídicos.
Para esta doutrina, os efeitos jurídicos produzidos, tais como a lei os determina, são
perfeita e completamente correspondentes ao conteúdo da vontade das partes. Haveria
(ou teria de haver) uma vontade das partes dirigida à produção de determinados e precisos
efeitos jurídicos. Os próprios efeitos derivados de normas supletivas resultariam da tácita
vontade das partes. Mesmo que expressamente as partes não se tenham referidos a esses
efeitos, eles ainda seriam imputáveis à vontade, na medida em que não foram afastados
pelas suas declarações negociais.

Críticas:
Este ponto de vista não fornece o correto critério para a determinação da relação que
intercede no negócio jurídico entre a vontade dos seus autores e os efeitos jurídicos
respetivos.
Mota Pinto avança que, a ser esta doutrina correta, só os juristas completamente
informados sobre o ordenamento poderiam celebrar negócios jurídicos. Ora, o que sucede
é que as partes dos vários negócios não têm uma representação completa e exata de todos
os efeitos que o ordenamento jurídico atribui às suas declarações de vontade.
Observando muitas vezes que os intervenientes não conhecem todos os efeitos que o
negócio produz, dado que muitos decorrem da lei e que se vão produzir em virtude de
normas de natureza supletiva, eles podem ser surpreendidos com efeitos do negócio. Aqui
reside uma das críticas, levando a que se avançasse com uma doutrina posterior.

è Teoria dos efeitos práticos.


Para esta doutrina, a teoria dos efeitos jurídicos não é realista. As partes manifestam
apenas uma vontade de efeitos práticos ou empíricos, normalmente económicos ou
sociais, sem caráter ilícito. A estes efeitos práticos ou empíricos manifestados, faria a lei
corresponder efeitos jurídicos concordantes.

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Críticas:
Tal como define o negócio jurídico, este não se distingue dos compromissos ou
convenções celebrados sob o império dos outros ordenamentos normativos (cortesia,
moral, praxes sociais, etc.).

è Teoria dos efeitos prático-jurídicos.


É o ponto de vista correto na ótica de Mota Pinto. Os autores dos negócios jurídicos
visam certos resultados práticos ou materiais e querem realizá-los por via jurídica. Têm,
pois, também uma vontade de efeitos jurídicos. A vontade dirigida a efeitos práticos não
é a única nem é a decisiva – decisiva para existir um negócio é a vontade de os efeitos
práticos queridos serem juridicamente vinculativos, a vontade de se gerarem efeitos
jurídicos, nomeadamente deveres, correspondentes aos efeitos práticos. Há uma intenção
dirigida a um determinado efeito económico juridicamente garantido.
Simplesmente, não se trata de uma representação completa dos efeitos jurídicos
correspondentes àquela vontade de efeitos práticos – esses efeitos jurídicos completos
serão determinados pela lei. Basta uma representação global prática dos efeitos jurídicos
imediatos e fundamentais do negócio.

Nesta medida, é possível distinguir os negócios jurídicos de outras figuras,


nomeadamente:
- Acordos de pura obsequiosidade. Por falta de intenção de efeitos jurídicos nestes
termos, distinguem-se os negócios jurídicos destes acordos. Estes são promessas ou
combinações da vida social, às quais é estranho o intuito de criar, modificar ou extinguir
um vínculo jurídico. Por exemplo, um convite para um jantar. Não há lugar a
responsabilidade civil no caso de incumprimento dado que não há um contrato. Se temos
dúvidas se estamos perante um negócio jurídico ou não, nos acordos de pura
obsequiosidade cabe à parte interessada na relevância jurídica daquele acordo fazer a
prova que houve vontade de celebrar um negócio jurídicos (342º/1).
- Acordos de cavalheiros (“gentlemen’s agreements”). Estas convenções são
combinações sobre matéria que é normalmente objeto de negócios jurídicos, mas que,
excecionalmente, estão desprovidas de intenção de efeitos jurídicos. Mantém-se num
plano meramente social. É o caso de um empréstimo de honra ou de uma disposição de
bens para depois da morte, em que o disponente confia pura e simplesmente na
honorabilidade dos herdeiros a quem cumpre executar a disposição. Se temos dúvidas se
estamos perante um negócio jurídico ou não, no acordo de cavalheiros o ónus da prova
recai sobre o interveniente que diz que o acordo não é juridicamente relevante (342º/2).

3.2 Os elementos dos negócios jurídicos


Corre uma tradicional classificação tripartida dos elementos dos negócios jurídicos.

o Elementos essenciais. A sistematização tradicional considera elementos


essenciais de todo e qualquer negócio jurídico os requisitos ou condições
gerais de validade de qualquer negócio. São eles a capacidade das partes (e

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legitimidade, quando a sua falta implique invalidade e não apenas ineficácia),


a declaração de vontade sem anomalias e a idoneidade do objeto (280.º). Pode
igualmente falar-se de elementos essenciais no sentido das cláusulas que
distinguem um certo tipo negocial dos restantes tipos, ou seja, os elementos
essenciais de cada negócio típico (venda, doação, mútuo, etc).

o Elementos naturais. São os efeitos negociais derivados de disposições legais


supletivas. Não é necessário que as partes configurem qualquer cláusula para
a produção destes efeitos, podendo, todavia, ser excluídos por estipulação
adrede formulada.

o Elementos acidentais. São as cláusulas acessórias dos negócios jurídicos. São


as estipulações que não caraterizam o tipo negocial em abstrato, mas tornam-
se imprescindíveis para que o negócio concreto produza os efeitos a que elas
tendem. Podem não existir, mas uma vez introduzidas no negócio, irão
condicionar os seus efeitos. O negócio estaria perfeitamente completo sem
elas, tendo de haver uma vontade específica no sentido de as incluir no
negócio. Algumas clausulas acessórias são típicas, nomeadamente a condição
(subordina-se os efeitos do negócio a um acontecimento futuro e incerto) e o
termo (subordina-se os efeitos do negócio a um acontecimento futuro e certo),
tal como o modo.

3.3 As classificações dos negócios jurídicos


a. Negócios jurídicos unilaterais e ou negócios jurídicos bilaterais
O Código Civil contem uma regulamentação geral do negócio jurídico,
abrangendo assim as modalidades: negócios jurídicos unilaterais e negócios jurídicos
bilaterais (contratos).
O critério classificativo é o do número e modo de articulação das declarações
integradoras do negócio.

Nos negócios unilaterais há uma só declaração de vontade ou várias declarações,


mas paralelas, formando um só grupo. Se olharmos os autores das declarações,
encontramos um só “lado”, uma só parte. É o caso do testamento, da renúncia à
prescrição, da procuração.
É possível apontar as seguintes caraterísticas:
o Vigora o princípio da tipicidade ou do numerus clausus; a este propósito,
ver o artigo 457.º. Assim, o princípio fundamental da autonomia privada
verifica-se com muito mais abundância nos contratos.
o A eficácia do negócio unilateral não carece da concordância de outrem. É
desnecessária a anuência do adversário.
o Importa a distinção entre negócios unilaterais receptícios e negócios
unilaterais não receptícios. Nos primeiros, a declaração só é eficaz, se
for e quando for dirigida e levada ao conhecimento de certa pessoa;
enquanto nos segundos basta a emissão da declaração, sem ser necessário
comunica-la a quem quer que seja.

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Nos contratos ou negócios bilaterais há duas ou mais declarações de vontade, de


conteúdo oposto, mas convergente, ajustando-se na sua comum pretensão de produzir
resultado jurídico unitário, embora com um significado para cada parte. Há assim a
proposta e a aceitação, que se conciliam num consenso. É o caso paradigmático da compra
e venda.
Uma importante distinção é a que se faz entre contratos unilaterais e contratos
bilaterais. Os contratos unilaterais geram obrigações apenas para uma das partes (por
exemplo, doação). Os contratos bilaterais ou sinalagmáticos geram obrigações para
ambas as partes, obrigações ligadas entre si por um nexo de correspetividade (por
exemplo, compra e venda).
A importância desta distinção reside no facto de haver no Código Civil institutos
que só se aplicam a contratos bilaterais. É o caso da exceção de não cumprimento do
contrato (artigo 428.º), que é privativa dos contratos bilaterais.
Os autores referem também a categoria dos contratos bilaterais imperfeitos.
Nestes, há inicialmente apenas obrigações para uma das partes (começam por ser
unilaterais), surgindo eventualmente mais tarde obrigações para a outra parte, em virtude
do cumprimento das primeiras e em dados termos. Não se aplicam as regras dos contratos
bilaterais a estes negócios.

b. Negócios entre vivos e negócios “mortis causa”.


Os primeiros destinam-se a produzir efeitos em vida das partes; os segundos
destinam-se a só produzir efeitos depois da morte da respetiva parte ou de alguma delas.
À primeira categoria pertencem quase todos os negócios jurídicos e na sua
disciplina tem grande importância, por força dos interesses gerais do comércio jurídico,
a tutela das expectativas da parte que se encontra em face da declaração negocial. Os
negócios da segunda categoria são negócios “fora do comércio jurídico”, no sentido de
que, na sua regulamentação, os interesses do declarante devem prevalecer sobre o
interesse na proteção da confiança do destinatário dos efeitos respetivos.
Um exemplo paradigmático de um negócio mortis causa é o testamento.
De resto, o ordenamento jurídico português impõe severas restrições.
A lei proíbe em princípio os pactos ou contratos sucessórios, sob pena de nulidade,
apenas os admitindo em alguns casos particulares (artigo 2028.º). Certos pactos
sucessórios, contidos em convenções antenupciais, são válidos (artigo 1700.º). São
admitidas disposições mortis causa relativamente aos próprios e a terceiros.
Quanto às doações por morte, a lei, proibindo-as também (artigo 946.º),
estabelece, contudo, que serão havidas como disposições testamentárias caso tenham sido
observadas as formalidades dos testamentos. Há uma conversão automática da doação
nula num testamento válido.

c. Negócios consensuais ou não solenes e negócios formais ou solenes


Os negócios formais ou solenes são aqueles para os quais a lei prescreve a
necessidade da observância de determinada forma, o acatamento de determinado
formalismo ou de determinadas solenidades.

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Os negócios não solenes são os que podem ser celebrados por quaisquer meios
declarativos aptos a exteriorizar a vontade negocial, porque a lei não impõe uma
determinada roupagem exterior para o negócio.
A exigência de forma para os negócios jurídicos é uma constante de todos os
tempos.
O princípio geral do Código de 1966 em matéria de formalismo negocial é o
princípio da liberdade de forma, consubstanciada no artigo 219.º. Quando, nos casos
excecionais em que a lei prescrever uma certa forma (casos que, embora representem uma
exceção, são numerosos e frequentes), esta não for observada, a declaração negocial é
nula (artigo 220.º).
Exemplos de exigências:
§ A lei exige documento autêntico. Estes são exarados por uma entidade dotada
de fé pública.
§ A lei obriga apenas ao documento particular. Não são exarados pelas entidades
que emitem os documentos autênticos, mas podem ser autenticados. São
documentos particulares confirmados mediante um notário ou outra entidade
dotada de fé pública.
O artigo 362.º define documento. O artigo 363.º refere-se aos documentos
particulares autenticados. Hoje, a autenticação de documentos não é feita apenas pelos
notários, pois é permitida a autenticação feita por outras entidades. O DL 76A/2006 de
29 de março, no seu artigo 38º, diz que sem prejuízo da competência atribuída a outras
entidades, os conservadores, oficiais de registo, advogados e solicitadores podem
autenticar documentos particulares. Não há uma hierarquização entre os documentos
autenticados pelas diferentes entidades, uma vez que eles têm a mesma força probatória.
Tendo os documentos particulares autenticados a mesma força probatória que os
documentos autênticos, se a lei exigir um documento autêntico este não pode ser
substituído por um documento particular autenticado. Se for substituído, o contrato é
nulo. Isto está expresso no artigo 377º CC.
§ A lei exige declaração expressa (artigo 595.º). Esta exigência não é uma exceção
ao princípio de liberdade de forma. Uma declaração expressa não tem de ser
formal, basta que seja dirigida com o sentido exigido por lei. A declaração tácita
tem um sentido que é retirado de um sentido diferente.
O testamento é um negócio formal (2204º). O artigo 875º diz que o contrato de
compra e venda de bens imoveis está sujeito a escritura pública ou documento particular
autenticado. Segundo o artigo 947º, a doação de imóveis só é valida se celebrada por
escritura pública ou documento particular autenticado.
A doação de coisas móveis não depende de formalidade externa, se for
acompanhada da tradição de coisa doada. A palavra tradição remete para a entrega da
coisa. E se a coisa não for entregue? Então, a doação só pode ser feita por escrito
particular para ser válida. A doação de coisas móveis não é um contrato real quanto à
constituição. A doação é um contrato consensual, pelo que basta o acordo das partes. A
questão da entrega da coisa prende-se com a forma do negócio. Se não houver entrega da
coisa, o negócio é inválido formalmente.
O contrato de mútuo também tem regras específicas quanto à forma, segundo o
artigo 1143º. Consoante o valor do contrato, é exigida forma ou não. Se for um valor ate

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2 500€ não exige forma. Se for de 2 500€ a 25 000€ exige-se documento particular. Se
for superior a 25 000€ exige-se escritura pública ou documento particular autenticado.
O casamento é um negócio solene. A lei exige solenidades próprias para que o
negócio seja válido, segundo o artigo 1615º.

d. Negócios obrigacionais, reais, familiares e sucessórios


O critério desta classificação diz respeito à natureza da relação jurídica
constituída, modificada, ou extinta pelo negócio. A sua importância resulta da diversa
extensão reconhecida à liberdade contratual (artigo 405.º) em cada uma das categorias.
è Nos negócios sucessórios (testamento, pactos sucessórios), este princípio
sofre importantes restrições, resultantes de algumas normas imperativas do
direito das sucessões (sucessão legitimária, proibição dos pactos sucessórios,
etc.).
è Quanto aos negócios reais, o princípio da liberdade contratual sofre
considerável limitação, derivada do princípio da tipicidade, visto que não é
permitida a constituição, com caráter real, de restrições ao direito de
propriedade ou de figuras parcelares deste direito senão nos casos previstos na
lei (artigo 1306.º). Só podem constituir-se direitos reais típicos, embora essa
constituição possa resultar de um negócio atípico.
è No domínio dos negócios obrigacionais, vigora o princípio da liberdade
negocial, quase inconfinadamente. Quanto aos contratos, abrangendo a
liberdade de fixação do conteúdo dos contratos típicos, de celebração de
contratos diferentes dos previstos na lei e de inclusão nestes de quaisquer
cláusulas (artigo 405.º). Quanto aos negócios unilaterais, vigora, porém, o
princípio da tipicidade.
è Relativamente aos negócios familiares pessoais (casamento, perfilhação,
adoção), a liberdade contratual está praticamente excluída.
è No que toca aos negócios familiares patrimoniais (convenções antenupciais),
existe, com alguma largueza, liberdade de convenção (1628.º), embora com
restrições.

e. Negócios patrimoniais e negócios pessoais.


O critério distintivo é, também, o da natureza da relação jurídica que o negócio se
refere. A importância desta distinção revela-se, aqui também, quanto à amplitude do
princípio da liberdade contratual. Para além deste aspeto, verifica-se no campo de
interpretação do negócio jurídico.
è Nos negócios pessoais, o legislador procura ir de encontro à vontade real,
psicológica do declarante, normalmente não atendendo às expectativas dos
declaratários e aos interesses gerais da contratação.
è Na disciplina dos negócios patrimoniais, por exigência de tutela da confiança do
declaratário e dos interesses do tráfico, a vontade manifestada ou declarada triunfa
sobre a vontade real.

f. Negócios onerosos e negócios gratuitos.

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A distinção dos negócios jurídicos em onerosos e gratuitos tem como critério o


conteúdo e finalidade do negócio nos termos que a seguir se evidenciam.
è Os negócios onerosos pressupõem atribuições patrimoniais de ambas as partes,
existindo, segundo a perspetiva destas, um nexo ou relação de correspetividade
entre as referidas atribuições patrimoniais (normalmente traduzidas em
prestações). Cada uma das partes faz uma atribuição patrimonial que considera
retribuída ou contrabalançada pela atribuição da contraparte. Não é necessária
equivalência das prestações ou atribuições patrimoniais: o que releva é a avaliação
das partes e, mais do que isso, a vontade. As partes consideram as duas prestações
ligadas reciprocamente pelo vínculo da causalidade jurídica. Por exemplo, a
compra e venda.
è Os negócios gratuitos caraterizam-se, ao invés, pela intervenção de uma intenção
liberal. Uma parte tem a intenção, devidamente manifestada, de efetuar uma
atribuição patrimonial a favor da outra, sem contrapartida ou correspetivo.
A outra parte procede com a consciência e vontade de receber essa vantagem sem
um sacrifício correspondente. O ato é a título gratuito quando for realizado com
uma particular intenção ou causa que é a de proporcionar uma vantagem à outra
parte. Por exemplo, a doação.
Não podemos desenhar um fosso entre negócios onerosos e gratuitos. Podemos ter
negócios intermédios, como é o caso do negócio misto de doação. A estes negócios é
aplicado um regime diferente. Estamos perante um negócio misto que no momento de
aplicação do regime não podemos aplicar o regime de negócios onerosos nem o regime
de negócios gratuitos.
Esta distinção é importante, em várias situações. É o caso da proteção de terceiros de
boa fé prevista no artigo 291º. Esta distinção também é importante em situações que se
prendem com a impugnação pauliana, ou seja, com situações em que há possibilidade de
um credor desfazer os negócios celebrados pelo seu devedor.
(Ex: A emprestou uma quantia considerável a B e este tinha que a devolver em outubro
de 2019. B tem como único bem o apartamento onde mora e doa esse apartamento. A lei
permite que os credores impugnem os negócios celebrados pelos seus devedores se forem
posteriores aos créditos e se esses negócios pusessem em risco os seus créditos.)
Para efeitos de impugnação pauliana, o regime é aplicar é distinto consoante o
negócio seja gratuito ou oneroso. O credor tem que provar a má fé do devedor, no caso
dos negócios onerosos. Nos negócios gratuitos, o credor não tem que provar nada, pelo
que o negócio pode ser impugnado.
A lei estipula regimes diferentes consoante os negócios sejam onerosos ou
gratuitos e daí a importância da distinção.

g. Contratos comutativos e contratos aleatórios.


É uma subdivisão que se opera dentro dos contratos onerosos.

è Nos contratos aleatórios, as partes submetem-se a uma possibilidade de ganhar ou


perder. Existe uma alea, ou seja, uma incerteza. A onerosidade consiste na
circunstância de ambas estarem sujeitas ao risco de perder, embora, no final de
contas, só uma venha a ganhar. Pode haver uma só prestação, dependendo de um

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facto incerto a determinação de quem a realizará (aposta, certos tipos de jogo),


pode haver uma prestação certa e outra incerta, de maior montante do que aquele
(seguro de responsabilidade civil), pode haver duas prestações certas na sua
existência, sendo uma delas incerta no seu quantum (seguro de vida). Uma compra
e venda pode ser um contrato aleatório, pois pode-se fixar um preço a pagar, mas
não estar definida qual é a quantidade da contraprestação (exemplo: venda da
produção de vinho de 2020).
è Nos contratos comutativos, as partes têm conhecimento dos sacrifícios
patrimoniais que o negócio pressupõe.

Dentro dos negócios onerosos, podemos também distinguir os negócios parciários.


Caraterizam-se pelo facto de uma pessoa prometer certa prestação em troca de uma
qualquer participação nos proventos que a contraparte obtenha por força daquela
prestação. É o caso da parceria pecuária (1121.º).

h. Negócios de mera administração e negócios de disposição.


è Os negócios de mera administração são negócios em que uma gestão prudente
leva a modificações pouco profundas na esfera jurídicas.
è Os negócios de disposição são aqueles em que há uma alteração significativa na
esfera jurídica das partes.
A importância desta distinção baseia-se na questão da administração de bens alheios
ou no caso do antigo regime da inabilitação.

4. Os elementos essenciais do negócio jurídico


4.1 A declaração negocial como verdadeiro elemento do negócio jurídico
O Código Civil regula a declaração negocial nos artigos 217.º e seguintes. Trata-se de
um verdadeiro elemento do negócio, uma realidade componente ou constitutiva da
estrutura do negócio.
A capacidade de gozo ou de exercício e a legitimidade são apenas requisitos de
validade, importando a sua falta uma invalidade. A idoneidade do objeto negocial é,
igualmente, um pressuposto ou requisito de validade. Diversamente, a declaração
negocial é um elemento verdadeiramente integrante do negócio jurídico, conduzindo a
sua falta à inexistência material do negócio.

§ Conceito de declaração negocial.


Pode definir-se a declaração de vontade negocial como o comportamento que,
exteriormente observado, cria a aparência de exteriorização de um certo conteúdo de
vontade negocial.
A vontade negocial surge-nos como a intenção de realizar certos efeitos práticos,
com ânimo de que sejam juridicamente tutelados e vinculantes.
Temos assim uma conceção objetivista de declaração negocial, fazendo-se
consistir a sua nota essencial não num elemento interior – uma vontade real, efetiva,
psicológica – mas num elemento exterior – o comportamento declarativo.
O comportamento externo, em que se traduz a declaração, manifesta normalmente
uma vontade, formada sem anomalias e coincidente com o sentido exteriormente captado

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daquele comportamento. A declaração pretende ser o instrumento de exteriorização da


vontade psicológica do declarante – essa é a sua função.
Contudo, é à luz das soluções consagradas pelo ordenamento jurídico em resposta
a uma série de problemas que se deve definir o conceito de declaração negocial e a opção
pelo aspeto subjetivista ou o aspeto objetivista. Os problemas decisivos para o efeito de
determinar o conceito de declaração negocial são o da divergência dentre vontade e
declaração, vícios da vontade, interpretação da declaração negocial, etc. Tais problemas
têm subjacente um conflito entre os interesses do declarante, por um lado, e os do
declaratário e do comércio jurídico, por outro. Hoje, o direito civil coloca na primeira
linha a proteção das expectativas dos declaratários e da segurança do comércio jurídico,
dando assim relevância à aparência e a uma exigência de cognoscibilidade.
A exteriorização de vontade é um comportamento declarativo. Quem exterioriza
a vontade é o declarante. O declaratário é quem recebe a declaração negocial.
Se o negócio jurídico for bilateral, tem pelo menos duas declarações negociais.
Assim, temos dois declarantes e dois declaratários. Cada um dos intervenientes nestes
negócios é simultaneamente declarante e declaratário. Nestes negócios, temos que
dissecar cada uma das declarações em concreto e determinar quem é o declarante e quem
é o declaratário para cada uma delas.

§ Os atos jurídicos de natureza não negocial.


Aludimos aqui às noções apresentadas anteriormente de simples ato jurídico e de
negócio jurídico. A lei portuguesa alude a atos jurídicos que não sejam negócios jurídicos
no artigo 295.º, mandando aplicar aos atos não negociais as disposições da doutrina geral
do negócio jurídico na medida em que a analogia das situações o justifique.
Tratando-se de atos pessoais – perfilhação, adoção –, dificilmente teremos uma
analogia que justifique a aplicação de regras dos negócios jurídicos, tendo presente que a
orientação subjacente a estes últimos é a tutela da confiança do declaratário e dos
interesses gerais do tráfico jurídico e, nos atos pessoais, não há quaisquer expectativas
dignas de tutela.

E quanto aos simples atos jurídicos?


- Quanto aos quase negócios jurídicos, que se traduzem na manifestação exterior
de uma vontade, aplicar-se-ão, em regra, as normas sobre capacidade, receção da
declaração pelo destinatário, interpretação, vícios de vontade e representação.
- As operações jurídicas, atos materiais ou atos reais, traduzem-se na efetivação
ou realização de um resultado material ou factual, a que a lei liga determinados efeitos
jurídicos. Não se exige para a produção dos respetivos efeitos a capacidade, nem se
aplicam, em geral, os preceitos sobre vícios da vontade, interpretação, receção de
declarações, representação. Contudo, é necessário atender em concreto a falta de analogia,
pois por exemplo a fixação de domicílio voluntário geral (82.º) parece ser um ato material
ou real, mas exige capacidade (85.º).

§ Os elementos constitutivos normais da declaração negocial.


Numa declaração negocial pode distinguir-se normalmente os seguintes
elementos:

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a) Elemento externo: a declaração propriamente dita, que consiste no comportamento


declarativo;
b) Elemento interno: é a vontade real, que pode decompor-se analiticamente em três
subelementos:
- A vontade de ação. Consiste na voluntariedade (consciência e intenção) do
comportamento declarativo.
Exemplos de situações em que falta vontade de ação são aquelas em que alguém está
sob coação física ou absoluta, ou aquelas em que um ato reflexo ou distraído é
objetivamente apercebido como declaração negocial.
- A vontade da declaração ou vontade da relevância negocial da ação. Consiste
em o declarante atribuir ao comportamento querido o significado de uma declaração
negocial. Este subelemento só está presente se o declarante tiver a consciência e a vontade
de que o seu comportamento tenha significado negocial vinculativo.
Um caso em que poderá faltar vontade da declaração é um indivíduo que entra num
leilão e acena para saudar um amigo, sendo esse comportamento apercebido como uma
oferta pelo objeto leiloado.
- A vontade negocial, vontade do conteúdo da declaração ou intenção do
resultado. Consiste na vontade de celebrar um negócio jurídico de conteúdo coincidente
com o significado exterior da declaração.
Pode haver um desvio na vontade negocial. É o caso de o declarante ter atribuído
aos termos da declaração um sentido diverso do sentido que exteriormente é captado.
Em regra, o elemento externo e o elemento interno coincidem, mas pode não
acontecer.

§ Declaração negocial expressa e declaração negocial tácita


Os negócios jurídicos realizam uma ampla autonomia privada, na medida em que,
quanto ao seu conteúdo, vigora o princípio da liberdade negocial (405.º) e quando à
forma, é igualmente reconhecido pelo ordenamento jurídico um critério de liberdade: o
princípio da liberdade declarativa. Tal princípio está consagrado nos artigos 217.º
(possibilidade de declarações negociais expressas e tácitas) e 219.º (liberdade de forma).

è Declaração expressa. É dirigida diretamente a um determinado sentido que o


declarante lhe quer dar.
è Declaração tácita. O declarante não emite uma declaração que vá diretamente num
sentido, mas os factos interpretados levam a deduzir que há uma vontade indireta.
“Quando se deduz de factos que, com toda a probabilidade, a revelam”. A
possibilidade de um negócio formal ser realizado através de declaração tácita está
expressamente reconhecida pelo nº 2 do artigo 217.º.

Por vezes, a lei exige, porém, que a declaração negocial seja expressa, por exemplo
na renúncia expressa à hipoteca (artigo 731.º).
Outras vezes a lei tem o cuidado de frisar que um certo negócio pode ter lugar por
declaração tácita, por exemplo na renúncia tácita à prescrição (artigo 302.º), o que já
resultaria do princípio geral consignado no artigo 217.º.

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§ O valor do silêncio como meio declarativo.


Será que uma total omissão pode considerar-se um facto concludente (declaração
tácita) no sentido da aceitação de propostas negociais?
O Código Civil resolve o problema no artigo 218.º, estabelecendo que o silêncio
não vale como declaração negocial, a não ser que esse valor lhe seja atribuído por lei,
convenção ou uso. A atribuição ao silêncio do valor de consenso negocial não é, como
regra geral, razoável.
O artigo 923º é um caso em que a lei atribui valor declarativo ao silêncio.

§ Declaração negocial presumida e declaração negocial ficta.


A declaração negocial presumida tem lugar quando a lei liga a determinado
comportamento o significado de exprimir uma vontade negocial, em certo sentido,
podendo ilidir-se tal presunção mediante prova em contrário. Por exemplo, o artigo 926.º.
A declaração negocial ficta tem lugar sempre que a um comportamento seja
atribuído um significado legal tipicizado, sem admissão de prova em contrário. Por
exemplo, o artigo 1054.º.

§ Protesto e reserva.
Emitido certo comportamento declarativo, pode o seu autor recear que lhe seja
imputado, por interpretação, um certo sentido. Para o impedir, o declarante afirma
abertamente não ser esse o seu intuito. A esta contradeclaração dá-se o nome de protesto.
Quer acautelar que esse comportamento declarativo não é dirigido a um determinado
sentido que não pretende.
A reserva é uma modalidade do protesto: consiste na declaração de que um certo
comportamento não significa renúncia a um direito próprio, ou reconhecimento de um
direito alheio.

§ A forma da declaração negocial.


Analisaremos agora as vantagens e os inconvenientes do formalismo negocial. O
formalismo negocial tem as seguintes vantagens principais:
- Assegura uma mais elevada dose de reflexão das partes. Nos negócios formais, o
tempo que medeia entre a decisão de concluir o negócio e a sua celebração permite
repensar o negócio e defende as partes contra a sua ligeireza ou precipitação, dando-lhes
oportunidade de medir a importância e os riscos do ato.
- Permite uma formulação mais precisa e completa da vontade das partes,
facultando a correspondente assistência especializada.
- Proporciona um mais elevado grau de certeza sobre a celebração do negócio e os
seus termos, evitando-se os perigos ligados à falível prova por testemunhas.
- Possibilita uma certa publicidade do ato, o que interessa ao esclarecimento de
terceiros.

Estas vantagens pagam-se, porém, pelo preço de dois inconvenientes principais:


- Redução da fluência e celeridade do comércio jurídico.
- Eventuais injustiças, derivadas de uma desvinculação posterior de uma parte do
negócio, com fundamento em nulidade por vício de forma, apesar de essa parte ter querido
efetivamente o ato jurídico negocial.

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- Implica mais custos.

Ponderando-se as vantagens e inconvenientes do formalismo negocial, sancionou o


Código Civil (artigo 219.º) o princípio da liberdade de forma ou da consensualidade.
Considerando, quanto a certos negócios, prevalecerem as vantagens sobre os
inconvenientes, admitiu, porém, numerosas e importantes exceções a esse princípio.
O formalismo exigível para um certo negócio pode ser imposto:
o Pela lei (forma legal);
o Resultar de uma estipulação ou negócio jurídico das partes (forma
convencional). O problema da legitimidade da forma convencional tem
vindo a ser discutido na doutrina; o CC resolve-o no sentido da
admissibilidade e eficácia dos negócios determinativos da forma (artigo
223.º). Isso não quer dizer que os particulares possam afastar normas
imperativas que imponham requisitos formais. Significa apenas que as
partes podem exigir determinados requisitos para um ato, pertencente a um
tipo negocial que a lei regula como não formal ou que sujeita a um
formalismo menos solene. O negócio dirigido à fixação de uma forma
especial para um ulterior negócio não está sujeito a formalidades, caindo
dentro do campo de aplicação do princípio geral da liberdade de forma
(artigo 219.º).

No que toca ao problema de saber quais as cláusulas ou estipulações negociais a


que a forma legal é aplicável, ou seja, o âmbito da forma exigida: estatui-se que, em
princípio, as estipulações acessórias anteriores ao negócio ou contemporâneas dele
devem revestir a forma exigida pela lei para o ato, sob pena de nulidade (artigo 221.º).
Na base deste artigo está uma ideia de completude da forma.
Reconhece-se, no entanto, a validade das estipulações verbais acessórias
anteriores ao documento exigido para a declaração negocial ou contemporâneas dele,
desde que a razão determinante da forma não lhes seja aplicável e se prove que
correspondem à vontade das partes.
Por outro lado, é manifesto que há uma presunção natural de o documento ser
completo, pelo que, na dúvida sobre a existência de uma estipulação acessória, anterior
ou simultânea, adicional, é de decidir contra a sua existência. Se as partes formalizaram
o negócio, entende-se que elas incluíram tudo o que queriam incluir e o que deixaram de
fora foi deixado de fora por isso mesmo.
A parte interessada na validade da cláusula terá de provar que em relação a essa
cláusula não seria exigida forma, e que corresponderia verdadeiramente à vontade do
autor da declaração. Fazendo prova destes dois aspetos é possível fazer valer uma
estipulação verbal anterior à declaração formal.
O disposto no artigo 394.º, que declara inadmissível a prova por testemunhas se
tiver por objeto convenções contrárias ou adicionais ao conteúdo de documentos
autênticos ou particulares, dificulta bastante a possibilidade de as estipulações acessórias
não formalizadas produzirem efeitos. A lei limita os meios probatórios.

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Quanto aos pactos modificativos (adicionais ou contrários a clausulas acessórias


ou essenciais constantes do documento), o nº 2 do artigo 221.º dispensa-os da forna legal
prescrita para a declaração., se as razões da exigência especial da lei não lhes forem
aplicáveis.

§ As consequências da inobservância da forma.


É preciso aludir à distinção doutrinal entre formalidades “ad substantiam” e
formalidades simplesmente “ad probationem”.

è Nas formalidades de natureza substancial, são insubstituíveis por outro


género de prova, gerando a sua falta a nulidade do negócio, nos termos dos
artigos 219.º e 220.º.
è Nas formalidades de natureza probatória: a exigência de forma tem um
objetivo probatório, para facilitar a prova do negócio, e aqui o não
preenchimento da forma já não levará à invalidade do negócio. A sua falta
pode ser suprida por outros meios de prova, eventualmente mais difíceis de
conseguir (confissão, ou, no caso do antigo direito, do juramento). Segundo
o artigo 364.º, a falta de forma não conduz à invalidade do negócio nestes
casos.
Aqui é importante saber se quando a lei exige forma o faz por razões substantivas
por considerar que aquele negócio deve ser celebrado de forma mais solene ou se o faz
por razões meramente probatórias.

Em conformidade com a orientação da generalidade das legislações e com os


motivos de interesse público que determinam as exigências legais de forma, o Código
Civil liga à inobservância da forma legal a nulidade, e não a mera anulabilidade. Uma
vez declarado nulo o negócio, deverá ser restituído tudo o que tiver sido prestado em
consequência do negócio viciado, podendo a prova da prestação, para o efeito desta
obrigação de restituir, ser feita por qualquer dos meios de prova admitidos em geral pela
lei (resultando isto do artigo 289.º).
Quanto a nulidade por vício de forma é invocada por aquele que deu aso à falta de
forma, estamos perante um caso de abuso de direito (artigo 334.º). É um caso de venire
contra factum proprium. Não é pacífica a improcedência do exercício do direito neste
caso: poderá a invocação do abuso de direito obviar à aplicação de regras que visam a
proteção de interesses públicos?

No caso de inobservância da forma convencional, rege a este respeito o artigo


223.º. Baseia-se em duas presunções:
- Se a forma especial foi estipulada antes da conclusão do negócio, presume-se
que, sem a observância da forma, o negócio é ineficaz; a forma tem, pois, caráter
constitutivo.
- Se a forma foi convencionada após o negócio ou simultaneamente com ele,
havendo, nesta última hipótese, fundamento para admitir que as partes se quiseram
vincular deste logo, presume-se que as partes não quiseram substituir o negócio,
suprimindo-o e concluindo-o de novo, mas apenas visaram consolida-lo ou qualquer outro

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efeito (por exemplo, dar-lhe mais clareza, tornar a prova mais segura, dar-lhe fé em face
de terceiros, etc.).
São meramente presunções relativas ou “juris tantum” (artigo 350.º).

§ Eficácia da declaração negocial.


Se o contrato é formado por uma proposta que encontra uma aceitação, qual o
momento em que essas duas declarações se consideram eficazes e qual é o momento da
conclusão do contrato?
a) Pode ser a partir do momento em que é emitida.
b) Doutrina da expedição - no momento em que a declaração é expedida / enviada.
c) Doutrina da receção - no momento em que o destinatário da aceitação recebe a
aceitação.
d) Doutrina da perceção - no momento do destinatário da aceitação toma
conhecimento da aceitação.
O momento de celebração de contrato é fundamental, porque saí decorrem várias
consequências jurídicas.
A nossa lei consagra a doutrina da receção para as declarações negociais receptícias.
no artigo 224º. Sempre que as declarações tenham um destinatário, elas só se tornam
eficazes quando chegam ao poder do destinatário ou são por ele conhecidas. Quer dizer:
o contrato está perfeito quando a resposta, contendo a aceitação, chega à esfera de ação
do proponente, isto é, quando o proponente passa a estar em condições de a conhecer.
Se a declaração for conhecida do declaratário antes de chegar ao seu poder, vale o
momento do respetivo conhecimento.
No artigo 224º/2 visa-se proteger os interesses do declarante. A lei considera eficazes
as declarações que só por culpa do destinatário não foram por ele oportunamente
recebidas. Se o declaratário impede a receção da declaração, a lei considera a declaração
eficaz.
Segundo o artigo 224º/3, se o destinatário recebe a declaração, mas sem culpa sua
não a poder conhecer, ela é ineficaz.
As declarações não receptícias tornam-se eficazes logo que a vontade se manifesta na
forma adequada, seguindo-se a doutrina da exteriorização da vontade. É o que acontece
com o testamento, mas também com a promessa pública. Mas nem todos os negócios
unilaterais correspondem a declarações de vontade não receptícias.
Quando a declaração receptícia é eficaz torna-se irrevogável, segundo o artigo 230º/1.
O proponente fica vinculado à sua proposta, o que significa que o destinatário da proposta
a qualquer momento pode celebrar o contrato. Por esta razão, há quem entenda que o
destinatário tem o direito potestativo de desencadear os efeitos do negócio. Nem a morte
do declarante afeta a celebração do contrato, a menos que a sua vontade presumível fosse
em sentido diferente. No caso em que o proponente morre e o destinatário aceita, os
efeitos negociais patrimoniais continuam a produzir-se sobre os herdeiros do proponente.
Em regra, só os negócios pessoais se extinguem com a morte de uma das partes. A partir
do momento em que a proposta é enviada, e o destinatário aceita, só pode haver alteração
por mútuo acordo.

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Segundo o artigo 231º, a morte ou incapacidade do destinatário implica a ineficácia


da proposta e o contrato não se poderá concluir. Se o contrato se celebra antes da morte,
os efeitos recaem sobre os herdeiros. Ex: B até poderia ter manifestado a aceitação, mas
ela ainda não se tornou eficaz. B morre e a proposta tornar-se-á ineficaz. Quando a
aceitação chega a A já não podemos de falar de contrato.
Se a proposta é emitida, podemos ter três resultados:
- O destinatário aceita e temos um contrato válido e eficaz.
- O destinatário rejeita.
- O destinatário aceita com modificações. Quando esta declaração chega à esfera do
proponente não há contrato. A proposta tem um programa contratual completo, pelo que
a aceitação tem de ser uma imagem refletida no espelho da proposta. A proposta e a
aceitação não podem divergir. Havendo exigência de modificações temos uma rejeição
da proposta e não uma verdadeira aceitação. No entanto, se a modificação for clara e
determinável, podemos considerar a aceitação com modificações numa nova proposta.
Esta proposta poderá conduzir a uma nova celebração de contrato mediante tenhamos
aceitação, que é a aceitação com modificações (artigo 233º).

§ Irrevogabilidade e efeitos das declarações negociais de proposta e aceitação


Os artigos 230º e 235º são importantes nesta matéria.
A proposta é irrevogável na medida em que se tenha tornado eficaz. No entanto, a
lei admite a revogação da proposta se esta for eficaz antes da proposta ou pelo menos ao
mesmo tempo. A questão da irrevogabilidade tem que ver com a proteção das
expectativas do destinatário. A partir do momento em que o destinatário tem antes
conhecimento da revogação, ele nunca chega a criar expectativas em relação ao negócio.
O mesmo vale para a aceitação, uma vez que se a aceitação chegar antes da rejeição
ou ao mesmo tempo, considera-se que prevalece a aceitação.
Quando a proposta se dirige a pessoas indeterminadas, entende-se como regra que
ela é apenas um convite a contratar (Ex: os anúncios de jornal). Manifesta-se apenas uma
disponibilidade para contratar sem que isso signifique uma vontade de vinculação a um
conteúdo contratual.
Já não será assim se a proposta contiver elementos precisos relativos a determinado
objeto. Temos de ver caso a caso para sabermos se já estão determinados todos os aspetos
essenciais do contrato e se a declaração tem já o conteúdo de vontade de celebrar o
contrato. Ex: quanto à oferta de produtos online. Se o contrato contiver todos os elementos
considerados essenciais para bastar a simples aceitação do destinatário, consideramos
aquela oferta em linha uma proposta contratual. Caso contrário, considera-se que temos
um mero convite a contratar e será o cliente a fazer a proposta.
Portanto, a regra será a do convite a contratar. É um mecanismo no sentido de
desencadear propostas que posteriormente poderão ser aceites ou não, mas nada evita que
possamos encontrar uma vontade de vinculação imediata a quem aceite aqueles termos.
Depois do contrato já produzir efeitos, podem surgir dúvidas quanto ao sentido que
se pretendeu dar às declarações negociais. Isto porque podem decorrer vários sentidos
possíveis de uma declaração negocial ou até o contrato apresentar lacunas. Nestes casos

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torna-se necessário apurar qual o sentido da declaração negocial via interpretação e


preencher as lacunas que existem.
Assim, a interpretação com a declaração negocial serve para captar o sentido que
se pretendeu dar a essa declaração e não para avaliar o conteúdo. Até poderemos
determinar através da interpretação que o sentido da declaração resultaria na invalidade
do negócio.
Segundo os artigos 236º e seguintes, esta regra destina-se às declarações
negociais receptícias. São declarações que têm de chegar ao poder de um destinatário.
Assim, as declarações unilaterais não receptícias não são abrangidas por esta regra (em
matéria testamental existem regras próprias – artigo 2187º).
Esta operação de interpretação tem de conciliar os interesses do declarante e os do
declaratário. O declarante quererá que a declaração valha com o sentido que ele lhes quis
dar e o declaratário quererá que ela valha com o sentido que ele percebeu que ela tinha.
Estes interesses podem não coincidir.
A vontade do declarante é um elemento interno/psicológico. A questão é que a
interpretação se baseará na própria declaração, que é o elemento externo. O elemento a
ser interpretado é a vontade manifestada numa declaração. O fim da interpretação é
chegar ao sentido da declaração. Através do elemento externo pretendemos chegar ao
elemento interno. Isto consta no artigo 236º, que determina que partimos do elemento
objetivo para apurar o elemento subjetivo.
Ainda assim podemos perspetivar duas doutrinas essenciais:
è Subjetivista - a doutrina que defende a procura da vontade real do declarante.
è Objetivista - visa-se o sentido da declaração, o sentido exteriorizado pelo
declarante.
O Código Civil adota uma posição objetivista, embora temperada com elementos
de subjetivismo.
O artigo 236º consagrou então uma modalidade da posição objetivista: a doutrina
da impressão no destinatário. Segundo esta doutrina, a declaração negocial vale nos
termos em que um declaratário normal possa deduzir do comportamento do declarante.
A perspetiva é a do declaratário médio, que é aquele percebeu da declaração de vontade,
mas não é o declaratário em concreto. Apela-se a um padrão médio. O resultado da
atividade de interpretação que apela a este padrão do homem médio não pode ser
resultado tal com que o declarante não pudesse contar, não pode vir surpreender o
declarante. Não podemos chegar com a interpretação a um resultado completamente
estranho. O resultado tem de ser imputável ao declarante, de alguma maneira ele ainda
teria de ter conseguido prever esse resultado.
Apelando ao padrão do declaratário normal concluímos que a declaração tem um
sentido diferente do que o declarante lhe quis dar, mas o declaratário conhecia o sentido
que o declarante lhe queria dar. Assim, a declaração vale com o sentido que o declarante
lhe quis dar.
Quais os elementos que relevam para esta operação? Todos os que um declaratário
diligente teria em consideração,
Pode acontecer que, mesmo aplicando as regras da interpretação, se chegue a
resultados ambíguos. O artigo 237º contém critérios adicionais para casos duvidosos.
Mas este artigo já pressupõe uma atividade hermenêutica anterior. Aqui o legislador

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distingue conforme os negócios sejam onerosos ou gratuitos. Nos negócios gratuitos vai
ao encontro dos interesses dos disponentes e nos negócios onerosos procura o equilíbrio.
E se chegarmos a uma contradição insanável entre os resultados da interpretação? Não
poderemos considerar a declaração eficaz, porque não é percetível o seu sentido. Mas
podemos aplicar analogicamente o artigo 224º/3. Se o destinatário da declaração não
consegue perceber o sentido, a declaração será ineficaz.
Pontualmente, o legislador estabelece regras especiais quanto à interpretação.
è Na interpretação das cláusulas contratuais gerais, o critério é o do sentido mais
favorável ao aderente (artigo 11º/2 do DL 446/85).

è Também encontramos regras especiais para certos tipos de negócios jurídicos.


Nos negócios formais, o resultado a que se chega de uma declaração formal tem
de ter o mínimo de expressão no documento (artigo 238º). Se o sentido a que
se chega da declaração negocial não tiver expressão no documento, o negócio será
nulo por falta de forma. Isto porque o que está no documento não tem nada que
ver com aquilo que foi formalizado. Se o sentido for imperfeitamente expresso e
não corresponda perfeitamente à vontade, poderá considerar-se a declaração
válida nos termos do artigo 238º/2. O regime é o mesmo que o das declarações
verbais que não sejam incluídas no documento.
è Em relação aos testamentos, o legislador adota uma posição subjetivista. O
sentido a que se chegar através da interpretação tem que parecer mais ajustado
com a vontade do testador (artigo 2187º).
Através da integração de lacunas pretende-se identificar a vontade das partes
para uma que não foi por elas regulada. Temos de tentar recriar qual seria a vontade
das partes se tivessem previsto o ponto omisso, ainda que com critérios corretores sempre
que essa vontade se afaste da boa-fé.
Estas regras de integração e interpretação dos contratos podem ser afastadas
pelas partes dentro dos limites da lei.

5. As divergências entre a vontade e a declaração


São pertinentes aqui as páginas 457 e seguintes do manual.
Nesta matéria são importantes os artigos 240º e seguintes.

v O problema em geral: formas possíveis de divergência


Normalmente, o elemento interno (vontade) e o elemento externo da declaração
negocial (declaração propriamente dita) coincidem. Há, então, uma efetiva
autodeterminação de efeitos jurídicos pelo autor da declaração, se a vontade se
formou sobre uma motivação conforme com a realidade e com liberdade.
Pode, contudo, verificar-se, por causas diversas, uma divergência entre esses dois
elementos da declaração negocial. A normal relação de concordância entre a vontade e a
declaração é afastada, por razões diversas, em certos casos anómalos. À relação normal
de concordância substitui-se uma relação patológica. Estamos perante um vício na
formulação da vontade.
Esta divergência entre a vontade real e a declaração, entre o “querido” e o
“declarado”, pode ser intencional ou não intencional.

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§ Divergência intencional: quando o declarante emite, consciente e livremente,


uma declaração com um sentido objetivo diverso da sua vontade real – quando a
divergência é, portanto, voluntária.
§ Divergência não intencional: quando o dissídio em apreço é involuntário.
Involuntário porque o declarante se não apercebe da divergência ou porque é
forçado irresistivelmente a emitir uma declaração divergente do seu real intento.

A divergência intencional pode apresentar-se sob uma de três formas principais:


a) Simulação (regulada nos artigos 240.º a 243.º). O declarante emite uma
declaração não coincidente com a sua vontade real, por força de um conluio
com o declaratário, com a intenção de enganar terceiros (normalmente a
fazenda pública).
b) Reserva mental (regulada no artigo 244.º). O declarante emite uma
declaração não coincidente com a sua vontade real, sem qualquer conluio com
o declaratário, visando precisamente enganar este.
c) Declarações não sérias (reguladas no artigo 245.º). O declarante emite uma
declaração não coincidente com a sua vontade real, mas sem intuito de enganar
qualquer pessoa. O autor da declaração está convencido de que o declaratário
se apercebe do caráter não sério da declaração. Pode tratar-se de declarações
jocosas, didáticas, cénicas, etc.

A divergência não intencional pode revestir:


a) Divergência forçada, como acontece na coação física ou violência absoluta.
O declarante é transformado num autómato, sendo forçado a dizer ou escrever
o que não quer, não através de uma mera ameaça, mas por força do emprego
de uma força física irresistível que o instrumentaliza e o leva a adotar o
comportamento. É o caso, por exemplo, de alguém, agarrando a mão de
outrem, o fazer desenhar a sua assinatura num documento, ou de alguém que,
numa assembleia geral onde se vota pelo sistema de levantados ou sentados,
forçar outrem, agarrando-o, a ficar sentado. Só podemos falar em declarante
em sentido impróprio.

b) Divergência ignorada. O próprio declarante não se apercebe da divergência.


Incluem-se aqui a falta de consciência da declaração (artigo 246.º) e o erro na
declaração (artigo 247.º).

o Erro-obstáculo ou na declaração. O declarante emite a declaração


divergente da vontade real, sem ter consciência dessa falta de
coincidência. Trata-se de um lapso, de um engano, de um equívoco. É
o caso que se nos apresenta quando o declarante está equivocado sobre
o verdadeiro nome de um objeto, dando-lhe outra denominação; ou
quando incorre num “lapsus linguae” ou “lapsus calami”.
o Falta de consciência da declaração. O declarante emite uma
declaração, sem sequer ter a consciência de fazer uma declaração

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negocial, podendo até faltar completamente a vontade de agir. Por


exemplo, a licitação de um leilão em virtude de estar a acenar a um
conhecido ou por simples ato reflexo.

v O problema da divergência entre a vontade e a declaração como problema


autónomo; o substrato teleológico do problema.
Existindo uma divergência entre a vontade real e o sentido objetivo da declaração,
podem levantar-se dois problemas:
o O problema de saber se o negócio jurídico poderá, apesar disso, valer com
o sentido correspondente à vontade real – estamos perante um problema
de fixação do sentido e alcance com que o negócio deve valer, é um
problema de interpretação dos negócios jurídicos.
o O problema de saber se o dissídio entre o querido e o declarado dá origem
à invalidade do negócio jurídico – isto só se colocará se, em sede
interpretativa, optarmos por um sentido objetivo; abrir-se-á então o
problema autónomo da divergência entre a vontade e a declaração, ou seja,
o problema de saber se a declaração não virá a ficar desprovida de efeitos
em virtude de não coincidir com a vontade real.

Importa conhecer o substrato teleológico do problema, importa desenhar o


esquema dos interesses em jogo.
Numa hipótese de declaração de A a B, divergente da real vontade do declarante,
surge-nos, desde logo, o interesse do autor da declaração (A), que reclama, em nome da
autonomia da vontade, a mais ampla possibilidade de anulação do negócio, a não poder
este valer com o sentido correspondente à vontade real. O interesse do declarante aponta
para uma não vinculação deste ao sentido objetivo da declaração, não coincidente com a
sua vontade real e, consequentemente, aponta para a invalidade do negócio. A
autodeterminação, sendo o negócio jurídico um ato de comunicação social humana, um
ato de cooperação, tem, porém, como correlato a auto-responsabilidade.
O interesse do declaratário aponta, em nome da tutela da confiança, para a
irrelevância da divergência entre o “querido” e o “declarado”. Reclama, pois, o interesse
da contraparte a proteção das suas legítimas expectativas, ligadas ao sentido objetivo da
declaração e assentes no desconhecimento da divergência. Sobre a confiança na
celebração de um negócio válido, já o declaratário edificou, porventura, um programa de
vida. A proteção da confiança do declaratário e a auto-responsabilidade do declarante são
o verso e o reverso da mesma medalha.
Ao lado dos interesses do declarante e do declaratário, e no sentido do interesse
de cada um destes, concorrem os interesses privados daqueles terceiros (subadquirentes,
credores, etc.) que do declarante ou do declaratário derivam direitos ou relativamente a
eles os adquiriram.
Para além desses interesses individuais relevam também os interesses gerais do
comércio jurídico, a reclamarem um regime que assegure a segurança, a fluência e a
celeridade da contratação, e que, portanto, apontam para uma disciplina que tome em
conta as legítimas expectativas do declaratário, protegendo a sua boa fé. A validade do

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negócio e a produção dos efeitos correspondentes ao sentido objetivo da declaração são


as soluções mais favoráveis a estes interesses gerais.

v Teorias que visam resolver o problema da divergência entre a vontade e a


declaração
No direito civil moderno várias teorias foram formuladas em vista da solução do
problema referido.
§ Teoria da vontade. Propugna a invalidade do negócio (não vale nem a vontade
real nem a declarada).
§ Teoria da “culpa in contrahendo”. Parte da teoria da vontade, mas acrescenta-
lhe a obrigação de indemnizar a cargo do declarante, uma vez anulado o
negócio com fundamento na divergência, se houve dolo ou culpa deste no
dissídio entre a vontade e a declaração e houve boa fé por parte do declaratário.
Numa evolução desta teoria, avança-se a teoria da responsabilidade, que
acrescenta a simples diferença de, em caso de dolo ou culpa do declarante, e
estando de boa fé o declaratário, o negócio ser válido, dando-se mais atenção
ao argumento da necessidade de proteger a confiança.
§ Teoria da declaração. Enquanto a teoria da vontade arranca da consideração
de que a essência do negócio está apenas na vontade do declarante (dogma da
vontade), a teoria da declaração, embora de modo diverso, em conformidade
com as suas modalidades, dá relevo fundamental à declaração, ou seja, ao que
foi exteriormente manifestado. Avançam-se modalidades:
a) A modalidade primitiva e extrema, caraterística dos direitos formalista,
onde se consagra uma adesão rígida à expressão literal.
b) As modalidades modernas e atenuadas, em particular a doutrina da
confiança – a divergência entre a vontade real e o sentido objetivo da
declaração, isto é, o que um declaratário razoável lhe atribuiria, só produz
a invalidade do negócio, se for conhecida ou cognoscível do declaratário.

Não é possível uma opção rígida por um dos lados da dicotomia (teoria da vontade
– teoria da declaração). Com efeito, há diferenças entre as soluções específicas das várias
modalidades de divergência.
Ainda assim, pode proclamar-se a opção pelas modernas modalidades da teoria da
declaração, mais precisamente pela teoria da confiança. É a solução mais justa e mais
conforme aos interesses gerais do tráfico. O Código Civil tem uma tendência
marcadamente declarativa, de forma a proteger a aparência da vontade manifestada.
Cumpre agora atentar detalhadamente às caraterísticas particulares de cada
regime.

5.1 As modalidades de divergência intencional


v Simulação.
É a hipótese de divergência entre a vontade e declaração mais importante. Este
instituto é dotado de elevada importância prática dada a frequência da sua verificação e a
complexidade da problemática respetiva. O conceito de negócio simulado está
explicitamente formulado no nº 1 do artigo 240.º.

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Os elementos integradores do conceito, referidos na disposição, são:


a) Intencionalidade da divergência entre a vontade e declaração.
b) Acordo entre o declarante e o declaratário (um acordo simulatório ou um conluio
entre as partes). Isto não obsta a que haja situações de simulação em negócios
jurídicos unilaterais. Inclusive, a lei trata com regime especial nomeadamente a
hipótese do testamento simulado (artigo 2200.º).
c) Intuito de enganar terceiros.

As modalidades da simulação
Uma primeira distinção é a que se estabelece entre simulação inocente e simulação
fraudulenta. A simulação é inocente se houve o mero intuito de enganar terceiros, sem
os prejudicar, e é fraudulenta se houve o intuito de prejudicar terceiros ilicitamente ou de
contornar qualquer norma da lei. Esta distinção é aludida no artigo 242.º nº 1, relevando
a mesma disposição legal o escasso interesse civilístico da referida dicotomia. A fraude
fiscal terá consequências próprias.

Outra destrinça é a que se faz entre simulação absoluta e simulação relativa.


Na primeira, as partes fingem celebrar um negócio jurídico e na realidade não querem
nenhum negócio jurídico. Há apenas o negócio simulado e, por detrás dele, nada mais.
Por exemplo, A, na eminência de uma situação de insolvência, com inúmeras dívidas,
tem um bem com algum valor, e tentando evitar que esse bem seja utilizado para satisfazer
os seus credores, finge com B, um seu amigo, vender esse bem, celebrando um contrato
de compra e venda, mas não sendo pago preço nenhum. Os credores, quando pretendem
executar o património de A, já não podem utilizar esse bem.
Na simulação relativa as partes fingem celebrar um certo negócio jurídico e na
realidade querem um outro negócio jurídico de tipo ou conteúdo diverso. Por detrás do
negócio simulado, ou aparente, há um negócio dissimulado. Na simulação relativa surge
o problema do tratamento a dar ao negócio dissimulado que fica a descoberto com a
nulidade do negócio simulado. Um exemplo de simulação relativa é aquele em que por
exemplo se pretende fazer uma doação, mas faz-se sob a aparência de uma compra e
venda, em que não há preço.

Efeitos da simulação absoluta. A simulação importa a nulidade do negócio simulado


(artigo 240.º nº 2). Não há que tomar em conta quaisquer expectativas do declaratário
pois este interveio no acordo simulatório. Só os interesses de terceiros de boa fé que
tenham confiado na validade do negócio simulado exigem ponderação.
De acordo com o respetivo regime geral, pode qualquer interessado invocar a nulidade
e o tribunal pode declara-la oficiosamente (artigo 286.º, para o qual remete o artigo 242.º).
O artigo 242.º mantém o reconhecimento aos próprios simulados da legitimidade para
arguir a nulidade do ato simulado, ainda que a simulação seja fraudulenta.
Esta regra geral, em matéria de simulação, vai ser complementada com o artigo
242.º. não se pretera a aplicação do artigo 286.º, mas temos uma especificidade
introduzida.
A lei alarga o leque de pessoas que podem arguir a nulidade a outras pessoas. Tem
a ver com situações frequentes na prática (artigo 242.º nº 2): os herdeiros legitimários

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(artigo 2157.º). Nos termos do artigo 286.º, os herdeiros não teriam qualquer direito,
tratando-se apenas de uma simples expectativa. O legislador constata que esta situação
ocorre com alguma frequência, alargando o leque dos interessados, permitindo que eles
atuem já em vida, provando, além da simulação, que os negócios foram celebrados com
o intuito de os prejudicar (contornar as regras imperativas da sucessão legitimária).
Encontramos no nº 1 um esclarecimento relativamente aos simuladores, que
cabem no conceito de interessados do 286.º; enquanto no nº 2 temos verdadeiramente um
alargamento.

Terceiros de boa fé. O artigo 243º consagra o princípio de inoponibilidade da


simulação em relação a terceiros de boa fé. É um regime especial que não impõe os
requisitos do artigo 291º.
Um sujeito adquire um direito, em virtude da sua boa fé. A boa fé é o desconhecimento
da simulação no momento em que adquiriu os seus direitos. A nulidade da simulação não
lhe pode ser oposta nem pelos simuladores nem por outra pessoa qualquer. Ele
desconhecia o negócio simulado e, portanto, é protegido pela lei. É uma exceção à regra
nemo plus iuris.

As modalidades da simulação relativa. A simulação relativa manifesta-se em


espécies diversas consoante o elemento do negócio dissimulado a que se refere
(simulação subjetiva ou dos sujeitos e simulação objetiva ou sobre o conteúdo do
negócio).
A hipótese mais vulgar de simulação subjetiva é a hipótese de interposição
fictícia de pessoas. A, pretendendo dar um prédio a B, finge doar a C, para este
posteriormente doar a B, intervindo um conluio entre os três. Pode recorrer-se a tal
interposição fictícia com o intuito de contornar uma norma legal que proíba a doação de
A a B, como sucede, por exemplo, com os artigos 953.º e 2196.º. A simulação aqui
pretende-se com os intervenientes no negócio. C é alguém que é ficticiamente
interposto para confundir a vontade dos intervenientes.
Não se confunde com a interposição real de pessoas. Nesta situação, o interposto
atua em nome próprio, mas no interesse de outrem, em sequência de um acordo entre os
simuladores. Por exemplo, A está interessado na compra de certos bens de B, mas,
sabendo que este não lhos venderia diretamente ou só venderia em condições muito
onerosas, acorda com C no sentido de este comprar os bens a B e depois lhos vender.
Nesta hipótese há uma interposição real, não existindo conluio entre os três sujeitos. Não
nos apresenta uma simulação, mas antes um mandato sem representação (1180.º).
Há ainda a menos frequente hipótese de supressão do contraente real, simétrica
à interposição fictícia. A quer comprar um automóvel a B para depois doar a C, mas A
não quer que se saiba que é ele que compra o automóvel, combinando um negócio
diretamente entre B e C (compra e venda simulada). A é verdadeiramente parte dos dois
negócios, mas suprime-se do esquema simulado. Exclui-se daqui a representação.

Já a simulação objetiva ou sobre o conteúdo do negócio pode ser:

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o Simulação sobre a natureza do negócio. Se o negócio simulado resulta


de uma alteração do tipo negocial correspondente ao negócio dissimulado.
Por exemplo, finge-se uma venda e quer-se uma doação.
o Simulação sobre o valor. É fundamentalmente o caso da simulação de
preço na compra e venda, fingindo-se um preço superior ou inferior ao
preço real.

Efeitos da simulação relativa. O negócio simulado está ferido de nulidade, tal


como na simulação absoluta. A simulação relativa põe, todavia, um problema específico
que não surgia no caso de simulação absoluta. Quid juris, quanto ao negócio dissimulado?
Sanciona-se, a este respeito, a solução correspondente à orientação tradicional: o negócio
real ou dissimulado será objeto do tratamento jurídico que lhe caberia se tivesse sido
concluído sem dissimulação (artigo 241.º). Nestes termos poderá o negócio latente ser
plenamente válido e eficaz ou poderá ser inválido, consoante as consequências que teriam
lugar, se tivesse sido abertamente concluído.

Efeitos da simulação quanto aos negócios formais. Os problemas suscitados


pela aplicação aos negócios formais da doutrina geral da simulação relativa encontram a
sua resposta no nº 2 do artigo 241.º. Aí se estatui que se, porém, o negócio dissimulado
for de natureza formal, só é válido se tiver sido observada a forma exigida por lei. Resulta
do teor desta disposição que, se não se cumpriram, no negócio simulado, os requisitos de
forma exigidos para o dissimulado, este será nulo por vício de forma, mesmo que se
tenham observado as formalidades exigidas para o negócio aparente. Para a validade do
negócio real torna-se necessária a observância do formalismo que, para ele, exige a lei,
mesmo que tal forma não seja suficiente para o negócio aparente. A doutrina exposta é a
que vale para a simulação de pessoas e para a simulação sobre a natureza do negócio.
Quanto à simulação de preço, quer o preço declarado seja maior, quer seja menor que o
preço real, não há obstáculo de natureza formal a que seja eficaz a venda pelo preço
efetivamente convencionado.
Não poderíamos pensar que o negócio dissimulado poderia aproveitar a forma dos
negócios simulados? Diríamos que a forma preenchida no negócio simulado não é
aproveitada pelo negócio dissimulado, porque o negócio é diferente (as partes são
diferentes, a natureza é diferente…).
No entanto, o artigo 241º/2 determina que há uma hipótese que se relaciona com
a simulação relativa objetiva quanto ao valor. Nesta situação, o negócio dissimulado
aproveita a forma do negócio simulado. Isto porque as partes e a natureza são as mesmas.
O único aspeto que difere é o valor. Segundo as regras específicas dos contratos de
compra e venda, o preço não tem de estar determinado, pelo que podemos celebrar um
contrato com um preço por determinar. Esta questão da indeterminação do valor não põe
em causa a formalidade do negócio. Nas simulações relativas objetivas quanto ao valor,
o negócio dissimulado aproveita a forma do negócio simulado, pelo que é formalmente
válido. A não ser assim, grande parte dos negócios seriam nulos.
Quanto aos demais casos, alguma doutrina mais tolerante entende que se a forma
for a mesma podemos considerar o negócio dissimulado formalmente válido. Seguem o
princípio geral de aproveitamento da forma. Mas esta consideração não é unânime.

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Prova da simulação. A prova do acordo simulatório e do negócio dissimulado por


terceiros é livre e pode ser feita por qualquer dos meios admitidos na lei: confissão,
documentos, testemunhas, presunções, etc., dado que a lei não estabelece qualquer
restrição. Quanto à prova da simulação pelos próprios simuladores, a lei estabelece,
quando o negócio simulado conste de documento autentico ou particular, a importante
restrição constante do artigo 394.º nº 2: não é admissível o recurso à prova testemunhal
e, consequentemente, estão também excluídas as presunções judiciais.
Poderá ser difícil distinguir um negócio simulado de um negócio em fraude à lei.
Os negócios em fraude à lei são aqueles através dos quais as partes, de uma forma
indireta, pretendem alcançar um resultado que a lei proíbe. No entanto, as partes querem
aquilo que declaram, mesmo que queiram atingir um objetivo legalmente proibido.
A distinção entre estes negócios é feita num plano psicológico. Nos negócios
simulados há uma divergência entre a vontade e a declaração. Nos negócios em fraude há
lei, estes elementos coincidem.

v Reserva mental.
Conceito. O artigo 244.º nº 2 define a reserva mental. São duas as notas que
definem o conceito: a emissão de uma declaração contrária à vontade real e o intuito de
enganar o declaratário.
Efeitos. Estatui-se a irrelevância da reserva mental, exceto se for conhecida
do declaratário. Por consequência, a declaração negocial emitida pelo declarante, com a
reserva, ocultada ao declaratário, de não querer o que declara, não é, em princípio, nula.
Trata-se de uma exigência elementar de justiça e de segurança. Não se poderia
conceber que a confiança na exteriorização de uma vontade pudesse ser afetada, se aquele
que declara alguma coisa como sendo a sua vontade pudesse invocar, para se desvincular,
uma vontade oculta contrária e a provasse em margem para dúvidas.
Deixará, todavia, de ser assim, sendo o negócio nulo, como na simulação, se o
declaratário teve conhecimento da reserva, por desaparecerem então as razões que
justificam aquele princípio geral. Se o declaratário conheceu a reserva, não há confiança
que mereça tutela.
Nos casos em que há dois declaratários, qualquer deles, que não conheça a reserva,
pode invocar a sua irrelevância.
A relevância da reserva impõe o efetivo conhecimento: não basta a sua
cognoscibilidade.
A rigidez desta doutrina poderá, todavia, ser atenuada, nalguns casos, por
aplicação da cláusula geral do artigo 334.º - abuso do direito. Com efeito excederá,
muitas vezes, os limites impostos pela boa fé e pelos bons costumes – por ser
clamorosamente contrária ao sentimento jurídico prevalente – a pretensão do declaratário,
no sentido da validade de uma declaração que o respetivo autor emitiu, com reserva
mental, para trazer vantagem ao declaratário (por exemplo, para o dissuadir do suicídio
ou de um ato patrimonialmente ruinoso, assumindo aqui a divergência um intuito
piedoso).

v Declaração não séria.

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Conceito. Infere-se no artigo 245.º. A nota fundamental é a seguinte: a


divergência entre a vontade e a declaração, embora intencional, não visa enganar
ninguém, pois procede-se na expectativa de que a falta de seriedade não passe
despercebida.
Modalidades. São as declarações jocosas, cénicas, didáticas, publicitárias, etc.
Efeitos. Em princípio, a declaração carece de qualquer efeito. Se o declaratário
conhecia a falta de seriedade da declaração ou ela era exteriormente percetível, parece
nem chegar a haver uma verdadeira declaração negocial (faltará, desde logo, uma
factualidade objetivamente interpretável como tal). É o caso das declarações cénicas e
didáticas.
No nº 2 do artigo 245.º preveem-se casos marginais: aqueles, possíveis sobretudo
nas declarações jocosas, em que a declaração foi feita em circunstâncias que induzem o
declaratário a aceitar justificadamente a sua seriedade. Sanciona-se, a este respeito, a
mesma solução, corrigida, porém, no interesse do declaratário, pela responsabilidade do
declarante pelo chamado interesse negativo ou da confiança (responsabilidade pré-
negocial), e não a solução da validade da declaração.

5.2 As modalidades de divergência não intencional


v Falta de consciência da declaração
Falta a vontade de ação ou falta a vontade ou, pelo menos, a consciência da
declaração. O declarante não se apercebe que emite uma declaração. Estas hipóteses são
abrangidas pelo artigo 246.º.
Distinguimos duas situações:
o Há vontade de ação. Há vontade de ação, mas não há vontade de
declaração. Quando há vontade de ação, a consequência é a nulidade da
declaração.
o Não há vontade de ação. O sujeito não se apercebe que o seu
comportamento configura uma declaração negocial. Se o seu ato é reflexo,
não temos vontade de declaração nem de ação. A consequência, neste caso,
é a inexistência da declaração.
Por outras palavras: estatui-se que o negócio não produz qualquer efeito, mesmo
que a falta de consciência da declaração não seja conhecida ou cognoscível do
declaratário. Trata-se de um caso de nulidade, salvo na hipótese de falta de vontade de
ação, em que parece estar-se, antes, perante um caso de verdadeira inexistência da
declaração.
Isto tem importância prática pois, apesar de os negócios nulos não produzirem
efeitos, há regimes que se aplicam aos negócios nulos e não se aplicam aos negócios
inexistentes, desde logo o disposto no artigo 291.º.

v Coação física ou coação absoluta


Conceito e distinção da coação moral. Na coação física ou absoluta o coagido
tem a liberdade de ação totalmente excluída, enquanto na coação moral ou relativa a
liberdade está cerceada, mas não excluída (o coato pode optar por outro comportamento,
como sofrer o mal ou combate-lo).

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Efeitos. O Código Civil prevê a hipótese de o declarante ser “coagido pela força
física a emitir” a declaração. Tem-se em vista as hipóteses em que o declarante é reduzido
à condição de puro autómato e não aquelas em que o emprego da força física não chega
aos extremos da “vis absoluta”. São exemplos de coação física a hipótese de uma votação
por levantados e sentados, quando alguém é forçado irresistivelmente a levantar-se ou
permanecer sentado, ou o caso de uma assinatura a que alguém é forçado fisicamente,
agarrando-se-lhe a mão, ou um sequestro quando o silêncio tem valor declarativo.
A coação física ou absoluta importa, nos termos do artigo 246.º, a ineficácia da
declaração negocial (“a declaração não produz qualquer efeito”). A lei estabelece que a
declaração não produz qualquer efeito e não fala de nulidade. Não há qualquer dever de
indemnização a cargo do declarante.

v Erro na declaração ou erro-obstáculo.


Conceito. No erro-obstáculo, há uma divergência inconsciente entre a vontade e
a declaração, mas há um comportamento declarativo do errante; nas declarações sob o
nome de outrem, diversamente, não há qualquer comportamento por parte do sujeito a
quem a declaração é atribuída, como acontece se A faz um negócio, fazendo-se passar
por B, falsificando a respetiva assinatura. No erro obstáculo, o declarante quer emitir uma
determinada declaração e emite uma distinta, ou emite a declaração que pretende, mas
atribui-lhe um sentido distinto daquele que ela tem. O declarante não pretende enganar
ninguém. Há uma descontinuidade entre a vontade e a declaração que ocorre no
momento da expressão da vontade.
Causas e efeitos.
o Desvio na vontade de ação (erro mecânico).
o Desvio na vontade negocial (erro de juízo). Consiste na atribuição às
palavras de um significado diverso do seu sentido objetivo.
O princípio geral regulador destas hipóteses consta do artigo 247.º, exigindo-se
para a anulação do negócio que o declaratário conhecesse ou não devesse ignorar a
essencialidade, para o declarante, do elemento sobre que incidiu o erro.
O erro só é essencial para o declarante se for determinante na sua vontade. O
declaratário tem de conhecer ou não ignorar a essencialidade do elemento sobre o qual
incide o erro. A lei não exige que o declaratário conheça o erro, nem que o erro seja
desculpável, admitindo a anulabilidade em termos gravosos.
Certas hipóteses particulares merecem tratamento especial.
a) Se o declaratário se apercebeu do dissídio entre a vontade real e a declarada e se
conheceu a vontade real do declarante, o negócio valerá de acordo com a vontade
real (artigo 236.º nº 2).
b) Se o declaratário conheceu, ou devia ter conhecido, o próprio erro, o regime
aplicável continua a ser a anulabilidade e não a nulidade verdadeira e própria.
c) Se o declaratário aceitar o negócio como o declarante queria, a anulabilidade
fundada em erro não procede (artigo 248.º).
d) O erro de cálculo e o erro de escrita, não dão lugar à anulabilidade do negócio,
mas apenas à sua retificação (artigo 249.º).
e) Se o declaratário compreendeu um terceiro sentido que não coincide nem com o
querido pelo declarante nem com o declarado, quid iuris? O negócio deve ser

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anulado, pois nada justifica faze-lo valer como um sentido objetivo em que
nenhuma das partes confiou. É a teoria da aparência eficaz. Este tratamento
especial é o da anulabilidade sem a exigência dos requisitos do artigo 247.º.

Erro na transmissão da declaração. Esta hipótese está prevista no artigo 250.º. O


erro na transmissão da declaração não tem relevância autónoma: desencadeará o efeito
anulatório apenas nos termos do artigo 247.º. Aqui quem se engana é o terceiro que
transmite a declaração e não o declarante. O artigo 250.º nº 2 abre uma exceção: admite-
se a anulação sempre que o intermediário emita intencionalmente (com dolo) uma
declaração diversa da vontade do declarante. Uma adulteração dolosa deve considerar-se
como extravasando o círculo normal de riscos a cargo do declarante. Aqui, o negócio é
sempre anulável e não se impõe o requisito do 247.º. É anulável nos termos do artigo
287.º.

6. Vícios da vontade
São aqui pertinentes as páginas 498 e seguintes do manual adotado.
Tratam-se de perturbações do processo formativo da vontade, operando de tal
modo que esta, embora concorde com a declaração, é determinada por motivos anómalos
e valorados, pelo direito, como ilegítimos. A vontade não se formou de um “modo julgado
normal e são”. O elemento interno coincide com o elemento externo, no entanto, o
processo de formação da vontade do declarante sofre alguma perturbação e, por isso,
temos um vício que afeta a própria génese da vontade.
Podemos enumerar os vícios da vontade a que o nosso direito atribui em geral
relevância autónoma:
o Erro-vício (252.º).
o Dolo (253.º).
o Coação moral (255.º).
o Incapacidade acidental (257.º).
o Estado de necessidade (282.º).
Determina-se no artigo 282.º que é anulável, por usura, um negócio jurídico,
quando alguém, explorando a situação de necessidade, inexperiência, ligeireza,
dependência, estado mental ou fraqueza de caráter de outrem, obteve deste, para si ou
para terceiro, a promessa ou concessão de benefícios excessivos ou injustificados. Não
consiste já numa certa desproporção de prestações (como descrevia o antigo Código Civil,
com o instituto da “lesão”), mas sim, igualmente, numa exploração da situação da outra
parte, em casos em que terá havido uma adulteração do modo de sã formação da vontade.
Os vícios redibitórios não têm autonomia no nosso Código Civil. Prendem-se com
os vícios ocultos do objeto negocial. Tornam a coisa impróprio para o uso a que se destina
de tal forma que o adquirente, se soubesse, não a teria adquirido. Há, porém, normas que
se referem a essa hipótese, como é os casos dos artigos 905.º e 913.º e do artigo 1035.º.
Em ambos os casos, remete-se o regime da anulabilidade para a verificação dos requisitos
legais do erro ou do dolo.
Como se qualifica a invalidade proveniente de erro-vício, dolo, coação moral ou
incapacidade acidental? Trata-se de uma anulabilidade. No entanto, a lei faz variar os
pressupostos para a anulabilidade consoante o tipo de vício em questão.

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v Erro-vício.
Noção. O erro-vício traduz-se numa representação inexata ou na ignorância de uma
qualquer circunstância de facto ou de direito que foi determinante na decisão de efetuar
o negócio. Se estivesse esclarecido antes dessa circunstância, o declarante não teria
realizado qualquer negócio ou não teria realizado o negócio nos termos em que o
celebrou. A formação da vontade assentou em pressupostos errados.
Como regra geral, quando o processo formativo da vontade é perturbado de uma
forma determinante por erro, a validade do negócio não é afetada. Se o processo
formativo da vontade é apenas perturbado pelo erro, o negócio é válido. Para que o
negócio seja anulável com fundamento em erro, têm de estar em causa casos excecionais.
O interesse que prevalece é o do declaratário, porque ele não tem como aceder ao
processo formativo da vontade do declarante. O declarante tem de suportar o seu erro. É
uma forma de proteger o declaratário. A regra geral é a da irrelevância do erro, o que
consta no artigo 252º/1.
Mas também existem outros casos de erro em que o legislador favorece a
anulabilidade, como o erro sobre o objeto do negócio, sobre o sujeito e sobre a base
negocial. Em qualquer uma destas situações têm de ser respeitados alguns requisitos
(gerais):
o Essencialidade. É corrente na doutrina a afirmação de que só é relevante o erro
essencial, isto é, aquele que levou o errante a concluir o negócio em si mesmo e
não apenas nos termos em que foi concluído. O erro foi causa da celebração do
negócio. Já não relevaria o erro incidental, isto é, aquele que influiu apenas nos
termos do negócio, pois o errante sempre contrataria, embora noutras condições.
O erro indiferente, isto é, um erro tal que, mesmo sem ele, o negócio teria sido
concluído nos precisos termos em que o foi, não tem qualquer relevância. Com
efeito, o erro, para relevar, deve atingir os motivos determinantes da vontade
(artigos 251.º e 252.º). Só o erro essencial produzirá, desde logo, uma vez
presentes os restantes requisitos gerais e especiais, a anulabilidade do negócio. O
erro incidental não será, todavia, irrelevante: o negócio deverá fazer-se valer nos
termos em que teria sido concluído sem o erro.

o Propriedade. Trata-se de um requisito que circunscreve o camp ode aplicação


autónoma do erro-vício, como motivo de invalidade. O erro só é próprio quando
incide sobre uma circunstância que não seja a verificação de qualquer elemento
legal da validade do negócio. O erro será impróprio quando, por exemplo, versar
sobre os requisitos legais de forma negocial, a ilicitude do objeto, a capacidade do
errante. Nestes casos, o fundamento da invalidade não será o erro, mas o requisito
legal cuja deficiência, ignorada pelo errante, vicia o negócio, daí que o tipo de
invalidade e o respetivo regime não sejam os correspondentes ao erro-vício
(anulabilidade) mas antes os correspondentes ao vício de forma, à ilicitude do
objeto negocial, à incapacidade, etc.
A estes requisitos gerais, acrescentam-se requisitos especiais consoante a modalidade
de erro em causa.

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o Erro sobre os motivos. Inserem-se nesta categoria (residual) os casos em que


o erro não se refere à pessoa do declaratário nem ao objeto do negócio. Por
exemplo, um funcionário compra um apartamento numa determinada cidade
por acreditar erradamente ter sido transferido para lá. Nos casos deste tipo o
nº 1 do artigo 252.º permite a anulação, desde que haja uma cláusula, expressa
ou tácita, no sentido de a validade do negócio ficar dependente da existência
da circunstância sobre que versou o erro. “Se as partes houverem reconhecido
por acordo a essencialidade do motivo”. Exige-se assim uma efetiva
estipulação, expressa ou tácita. Há, contudo, um regime especial para certos
casos de erro sobre os motivos: se o erro incidir sobre as circunstâncias que
constituem a base negocial, haverá lugar à anulabilidade, a que se aludirá
mais à frente.

Quanto às situações especiais, temos:


o Erro sobre o objeto do negócio. Está previsto no artigo 251.º, quer na
hipótese do erro sobre a identidade, quer na do erro sobre as qualidades. O
negócio será anulável nos termos previstos no artigo 247.º, isto é, desde que o
declaratário conhecesse ou não devesse ignorar a essencialidade, para o
declarante, do elemento sobre que incidiu o erro.
o Erro sobre a pessoa do declaratário. Abrange igualmente o erro sobre a
identidade e o erro sobre as qualidades. Está também previsto no artigo 251.º,
cabendo-lhe, portanto, o regime correspondente ao erro na declaração. Aqui,
o declarante pensa que o declaratário é determinada pessoa e, na verdade, não
é. Este erro só leva à anulabilidade quando o declarante quer contemplar uma
pessoa em concreto. Se o declarante soubesse que o declaratário não era a
pessoa que pensava, não tinha celebrado o negócio. Pode ainda haver um erro
quanto às qualidades da pessoa do declaratário. Temos regras especiais quanto
ao casamento, no artigo 1635.º. O casamento é anulável quando há um erro
quanto à identidade do declaratário. A lei favorece a anulabilidade.
o Erro quanto à base negocial. Este é um erro de particular relevância, pelo
que tem de se atender à posição do declarante. Aqui, o “status quo” do negócio
não é verdadeiramente aquele que se julgou ser. O artigo 252.º nº 2 não nos
diz qual o requisito de relevância, remetendo-nos para o regime da resolução
por alteração das circunstâncias vigentes no momento em que o negócio foi
concluído (previsto no artigo 497.º). O erro sobre a base negocial prende-se
com um determinado circunstancialismo anterior ou contemporâneo à
celebração do negócio. O princípio “pacta sunt servanda” exige que as
partes cumpram o negócio. No entanto, a lei permite que, em determinadas
circunstâncias excecionais, possam fazer-se adaptações dos contratos em
virtude de vicissitudes posteriores à sua celebração. Havendo certas
condições, é possível modificar ou resolver o contrato. O artigo 437.º estipula
quais as circunstâncias excecionais em que este instituto se justifica.
- Uma alteração anormal das circunstâncias. Implica a imprevisibilidade e
superveniência dos fatores determinantes.
- Que a vigência das obrigações afete gravemente o princípio da boa fé.

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- Que estas alterações não estejam cobertas pelos riscos próprios do contrato.

v Dolo.
Conceito. A noção de dolo consta do nº 1 do artigo 253.º. Trata-se de um erro
determinado por um certo comportamento da outra parte. Sempre que temos uma hipótese
de dolo, temos em simultâneo uma hipótese de erro-vício: a questão é que no erro-vício
o declarante engana-se, e na hipótese de dolo ele é enganado. O legislador considera mais
grave esta hipótese, facilitando a anulabilidade do negócio.
Só existirá dolo quando se verifique o emprego de qualquer sugestão ou artifício com
a intenção ou consciência de induzir ou manter em erro o autor da declaração – dolo
positivo ou comissivo, ou quando tenha lugar a dissimulação, pelo declaratário ou por
terceiro, do erro do declarante – dolo negativo, omissivo ou de consciência (há um
comportamento negativo no sentido de não esclarecer).
Existe também a distinção entre dolo inocente e dolo fraudulento. No primeiro
há um mero intuito enganatório, enquanto no segundo há o intuito ou a consciência de
prejudicar. A distinção não tem interesse prático, em ambos os casos se verificando os
mesmos efeitos.
A lei não inclui a ilicitude na definição de dolo. O comportamento positivo ou
negativo não tem de ser necessariamente ilícito.
Como sabemos se o dolo é lícito ou ilícito? O artigo 253.º nº 2 responde a esta questão:
§ No que se refere ao dolo positivo, quanto alguém usa artifícios para induzir
em erro outra pessoa, pode tomar um comportamento ilícito se for ilegítimo
segundo as conceções dominantes no comércio jurídico. O legislador opta
por um conceito indeterminado, pelo que exigirá preenchimento valorativo no
caso concreto.
§ No que se refere ao dolo negativo, é ilícito quando houver um dever de
esclarecimento e esse esclarecimento falhar.
Interesse prático da distinção entre dolo ilícito e dolo lícito. Só é relevante,
como fundamento de anulabilidade e de responsabilidade, o dolus malus ou dolo ilícito.
A lei tolera a simples astúcia, reputada legítima pelas conceções imperantes num certo
setor negocial. Com efeito, a lei declara não constituírem dolo ilícito, sendo, portanto,
dolus bonus, as sugestões ou artifícios usuais, considerados legítimos, segundo as
conceções dominantes no comércio jurídico.
O dolo ilícito é relevante na medida em que, nos termos do artigo 254.º, a vontade
tenha sido determinada por dolo conduz à anulabilidade do negócio. Aquele cuja vontade
tenha sido determinada por dolo pode arguir a anulação, não sendo excluída a
possibilidade de o dolo ser bilateral.
O dolo só é fundamento de anulabilidade do negócio se tiver sido essencial e
determinante da declaração: é o requisito da essencialidade. Isto é assim sempre que o
dolo provenha do declaratário. Nestes casos, basta que o dolo seja determinante para o
negócio seja anulável.
A lei prevê ainda a hipótese do dolo que provém de terceiro. Nestes casos, a
declaração só é anulável se o declaratário tiver conhecimento do dolo. Se o declaratário
conhece o dolo e não esclarece, ele próprio também está em dolo. Se o declaratário não
conhecer o dolo de terceiro, o negócio não é anulável. Se o terceiro adquirir diretamente

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um direito em virtude do negócio, este é anulável em relação ao beneficiário. Trata-se de


uma anulabilidade parcial: o negócio em si não é prejudicado. É terceiro para estes
efeitos quem não estiver envolvido na conclusão do negócio, nem como parte nem como
representante, auxiliar ou cônjuge da parte; é totalmente alheio ao negócio.
Assim, quais são as condições de relevância do dolo do declaratário como motivo
de anulação?
- Deve tratar-se de um dolus malus (253.º nº 2);
- Deve ser essencial ou determinante. Este requisito tem algum vago apoio no artigo 254.º
nº 1. Na hipótese de dolo negativo trata-se de uma causalidade hipotética.
Resulta dos artigos 1631.º alínea b) e 1636.º que, no casamento, o dolo não tem
relevância específica em relação ao erro.

v Coação moral.
Conceito. Define-se como a perturbação da vontade, traduzida no medo resultante
de ameaça ilícita de um dano, cominada com o intuito de extorquir a declaração negocial.
Só há vício da vontade quando a liberdade do coato não foi totalmente excluída,
quando lhe foram deixadas possibilidades de escolha, embora a submissão à ameaça fosse
a única escolha normal. Assim estaremos dentro do campo da coação moral, mesmo no
caso da ameaça com arma de fogo ou no caso do emprego da violência física, como
começo de execução do mal cominado, para compelir ao negócio. Só cairemos no âmbito
da coação física, quando a liberdade exterior do coato é totalmente excluída sendo este
utilizado como puro autómato ou instrumento.
São regimes distintos também quanto às consequências. Na coação física, dado
não haver verdadeiramente um comportamento declarativo, a consequência é a
inexistência do negócio. Na coação moral, o declarante colabora conscientemente com o
coator, conhecendo a pressão psicológica que está a ser exercida sobre si, e perante esta
ameaça ilícita, o declarante opta por ceder. Aqui, a consequência é a mera
anulabilidade.
Ao contrário do que se passa com o dolo, que pode ser lícito ou ilícito, a ilicitude
integra a própria definição de coação.
A vontade que vai ser declarada é uma vontade cujo processo formativo está
condicionado fortemente pelo receio da consumação da ameaça. A vontade declarada
corresponde exatamente à vontade interna (o elemento externo corresponde ao elemento
interno), mas foi pelo receio da ameaça que a sua vontade foi para um determinado
sentido.
A ilicitude da ameaça pode referir-se:
- Ao fim prosseguido: ameaça de atos ilícitos.
- Aos meios utilizados.
A lei exclui, desde logo, o chamado “temor reverencial” (255.º nº 2). Torna-se
necessário que o receio provenha de uma ameaça ilícita. Exige-se igualmente que a
cominação do mal vise extorquir a declaração negocial. O artigo 255.º nº 3 esclarece
que não constitui coação a ameaça de um exercício normal de um direito nem um simples
“temor reverencial”.
Se o credor ameaça executar judicialmente o devedor porque ele não paga, esta
ameaça não é uma ameaça ilícita. Supondo agora que alguém ameaça um devedor com

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um processo de insolvência se ele não lhe conferir determinados benefícios que nada têm
a ver com o crédito respetivo, então aí temos uma ameaça ilícita.
A ameaça pode dizer respeito à pessoa do declarante, mas também pode dizer
respeito à sua honra ou à sua fazenda (património), e também terceiro (o nº 2 do artigo
255.º di-lo expressamente).
A ameaça pode provir de um terceiro eterno ao negócio, e a lei introduz
requisitos adicionais para que o negócio seja anulado. Os requisitos adicionais têm que
ver com a ameaça: que o mal seja grave e justificado o receio da sua consumação.

v Estado de necessidade.
Conceito. Define-se o estado de necessidade como a situação de receio ou temor
gerada por um grave perigo que determina o necessitado a celebrar um negócio para
superar o perigo em que se encontra. Pode ser originado por um facto natural ou por um
facto humano.
Poderá haver alguma confusão com a coação, nomeadamente quando é
ocasionado por um facto humano. Neste caso, estaremos perante a figura de estado de
necessidade quando a situação de perigo não for criada com o desígnio de extorquir um
negócio (falta de intenção de coagir).
Poderão igualmente surgir dúvidas se, criado o perigo por um facto natural ou
humano, o contraente que acode ao necessitado tinha o dever jurídico ou, mesmo, apenas
um imperativo dever moral de auxílio. Nesta hipótese, se o contraente não presta o auxílio
a que estava obrigado, os negócios referidos devem ter-se por nulos, com fundamento em
contrariedade à ordem pública ou ofensa dos bons costumes (artigo 280.º).
A hipótese dos negócios em estado de necessidade deve subsumir-se na previsão
do artigo 282.º, onde se estatui a anulabilidade dos chamados negócios usurários. O
legislador exige a verificação de:
- Requisitos objetivos (benefícios excessivos ou injustificados). Tem que haver
uma desproporção clara entre as prestações. O critério do dobro do valor será um limiar
a partir de cuja ultrapassagem se deve averiguar a existência das demais circunstâncias
objetivas e dos requisitos subjetivos da usura.
- Requisitos subjetivos (exploração de uma situação de necessidade,
inexperiência, ligeireza, dependência, estado mental ou fraqueza de caráter de outrem).
Entre estes requisitos subjetivos figura, pois, ao lado de outras situações, o estado de
necessidade.

Em alternativa à anulabilidade do negócio, aparece a modificação do negócio,


conferida pelo artigo 283.º.

v Incapacidade acidental.
O Código Civil prevê e regula a incapacidade acidental, não na secção das
incapacidades, mas entre a falta e os vícios da vontade, dado o facto de não se tratar
normalmente de uma situação permanente do indivíduo, mas antes de um desvio no

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processo formativo da sua vontade em relação às circunstâncias normais do seu processo


deliberativo.
Temos aqui duas hipóteses:
- Alguém emite uma declaração negocial, mas não está em condições de perceber
o seu sentido (perturbação psicológica, por exemplo).
- Alguém não tinha o exercício livre da sua vontade: podemos estar perante
hipóteses não acidentais, mas permanentes, por exemplo incapacidades de facto, mas é
maior.
A hipótese está prevista no artigo 257.º, onde se prescreve a anulabilidade, desde
que se verifique um requisito (além da incapacidade acidental) destinado à tutela da
confiança do declaratário: a notoriedade ou o conhecimento da perturbação psíquica. O
requisito da notoriedade significa a cognoscibilidade por uma pessoa média, colocada
na posição concreta do declaratário. Nos casos em que o declaratário não tinha como
desconfiar da incapacidade, o negócio é válido.
Este artigo aplica-se a todos os capazes que se encontrem numa situação de
incapacidade acidental e a todos os incapazes de facto (ainda que sujeitos a uma medida
de acompanhamento). Mas também se aplica aos incapazes de direito para situações em
que eles sejam capazes. Também podemos aplicar este artigo às hipóteses do artigo 127º.

7. A representação nos negócios jurídicos


Conceito. Infere-se do artigo 258.º do Código Civil. A representação traduz-se na
prática de um ato jurídico em nome de outrem, para na esfera desse outrem se produzirem
os respetivos efeitos. Para que a representação seja eficaz torna-se necessário que o
representante “atue nos limites dos poderes que lhe competem” ou que o representado
realize, supervenientemente, uma ratificação.
A representação pode ser:
o Legal. Os poderes de representação podem ser atribuídos pela lei a representantes
legais: pais, tutor, administrador de bens. Esta rege-se pelas regras próprias do
instituto em que se insere.
o Voluntária. Os poderes de representação são aqui atribuídos por um ato
voluntário pelo representado ao representante. O ato voluntário atribuidor de
poderes representativos chama-se procuração. Esta é regida pela parte geral do
Código, dado que decorre de um negócio jurídico.
Contudo, temos disposições do Código que se aplicam tanto à representação legal
como à voluntária. Os princípios gerais da representação constam do artigo 258.º a 261.º.
Os artigos 262.º e seguintes contêm as disposições específicas da representação
voluntária.

Não há coincidência entre as noções de representação e de mandato. Há perfeita


autonomia entre as duas figuras, pois o mandato é um contrato pelo qual uma das partes
se obriga a praticar um ou mais atos jurídicos por conta da outra (artigo 1157.º): trata-se
de uma modalidade particular do contrato de prestação de serviço.
a) Pode haver mandato sem representação, quando o mandatário não recebeu
poderes para agir em nome do mandante. Age por conta do mandante, mas em
nome próprio. É regulado no artigo 1180.º.

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b) Pode haver representação sem haver mandato, não só na hipótese de representação


legal, mas no que toca à representação voluntária: esta resulta de um ato, a
chamada procuração (artigo 262.º), que pode existir autonomamente (negócio
unilateral), ou coexistir com um contrato que, normalmente, será o mandato.
Os efeitos jurídicos dos atos praticados pelo mandatário produzem-se na esfera do
mandatário. Se o objeto do mandato era a celebração de negócios jurídicos para que os
seus efeitos se produzissem na esfera do mandante, tem de haver um acordo ad hoc que
determine que isto ocorra desta forma. Os efeitos não se produzem diretamente na esfera
do mandante.
O mandatário é parte do negócio. O representante, por sua vez, não é parte do negócio.

A representação também se distingue das hipóteses de contrato para pessoa a


nomear (artigo 452º) e de contrato a favor de terceiro (artigo 443º), uma vez que a
representação não é um tipo de contrato.

É preciso ainda distinguir o representante do simples núncio. O representante, ao


contrário do núncio, nunca recebe, nem mesmo quando a procuração é especialíssima,
um mandato absolutamente especificado e imperativo. Decide, pelo menos, o “se” do
negócio e, frequentemente, mais, isto é, o conteúdo. O representante emite uma
declaração em nome de outrem; o núncio transmite uma declaração de outrem. O
representante consuma; o núncio transmite o já consumado.
Numa situação concreta, para sabermos se determinada pessoa atua como núncio
ou representante, temos que saber se ele emitiu uma declaração negocial própria ou alheia.

- Disposições gerais.
Temos no artigo 258.º que, na medida em que tenhamos um negócio jurídico que
seja celebrado em nome do representado e nos limites dos poderes que lhe compete, esses
efeitos jurídicos irão produzir-se na esfera jurídica do representado e não do
representante. Isto abrange quer as hipóteses de:
è Representação ativa: aquele que emite uma declaração negocial em nome
do seu representado.
è Representação passiva: aquele que recebe uma declaração negocial em
nome do seu representado.

Se na representação a declaração negocial é do representante e não do


representado, compreende-se a regra do artigo 259.º, que diz que é na pessoa do
representante que deve verificar-se a falta ou vícios de vontade, e o conhecimento ou
ignorância dos factos, para efeitos de nulidade ou anulabilidade da declaração.
O artigo 259.º nº 2 determina que ao representado de má fé não aproveita a boa fé
do representante.
Impõem-se aos representantes os mesmos limites para celebração de negócios que
se impõe aos representados.
O artigo 260º determina que a pessoa que contrata com representante pode exigir-
lhe a prova dos poderes de que diz estar investido. O terceiro com quem o representante

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contrata pode exigir a prova dos poderes de representação. Assim, esta pessoa tem a
possibilidade de conhecer exatamente quais os poderes atribuídos naquela hipótese.
Se ao representado está vedado um determinado negócio, ao representante
também está vedado esse mesmo negócio.
Segundo o artigo 261º, são anuláveis os negócios celebrados pelo representante
consigo mesmo, seja em nome próprio ou em representação de terceiro. Isto porque um
negócio consigo mesmo pode potenciar um conflito de interesses.
No entanto, estes negócios não são anuláveis se o representado tiver
especificadamente consentido na celebração ou que no negócio se exclua por sua natureza
a possibilidade de um conflito de interesses.
O nº2 do mesmo artigo prevê situações em que o representante nomeia outra
pessoa para representar na sua vez o representado. Este subestalecimento de poderes não
apaga o negócio consigo mesmo.

- Disposições específicas.
A representação voluntária tem na sua base uma procuração, que aparece no
artigo 262º. A procuração é o ato pelo qual alguém atribui a outrem poderes de
representação. Este ato é um negócio jurídico unilateral. Portanto, a representação
voluntária assenta num negócio jurídico unilateral (que é a procuração). O procurador é
o representante voluntário.
A lei não se refere a nenhuma forma especial para a transmissão de poderes
representativos. Mas determina que a procuração tem de revestir a forma exigida para o
negócio que o procurador pretende realizar. Para sabermos se uma procuração é
formalmente válida, temos de saber qual o seu conteúdo.
O artigo 263º determina que o procurador não tem de ser uma pessoa com
capacidade de exercício. Pode ser uma pessoa incapaz. Isto porque os efeitos jurídicos da
sua atuação não se vão produzir na sua esfera jurídica. Quem assume os riscos é o
representado.
Quais os inconvenientes desta situação em que o procurador é incapaz? Os
regimes de incapacidade servem para proteger o próprio incapaz. Um representante
incapaz não precisa de ser protegido, na medida em que os efeitos jurídicos do negócio
celebrado por este produzem-se na esfera do representado. Portanto, não há nenhuma
objeção de princípio à incapacidade do procurador.
No entanto, o representado tem de ter capacidade jurídica. Caso contrário, a
procuração é anulável (artigo 125º).
O núncio não tem de ser capaz, na medida em que este se limita a transmitir uma
declaração.
A representação extingue-se quando o procurador renuncia a procuração ou
quando o cessa a relação que lhe serve de base, nos termos do artigo 265º.
A procuração é sempre livremente revogável pelo representado, não obstando
convenção em contrário ou renuncia ao direito de revogação. Se a procuração tiver sido
conferida também no interesse procurador ou de terceiro, não pode ser revogada sem
acordo do interessado, salvo ocorrendo justa causa.

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Há uma preocupação do legislador proteger os terceiros em relação à extinção da


procuração. Havendo uma procuração, os terceiros criam uma expectativa. Se a
procuração se modifica ou se extingue, tal tem de ser comunicado aos terceiros. Se a
procuração se extingue, surge um problema quanto à confiança que os terceiros possam
ter na existência da procuração.
O artigo 266º determina que a modificação ou extinção da procuração tem de ser
levadas ao conhecimento dos terceiros por meios idóneos e se não o forem, não são
oponíveis, a menos que se mostre que delas tinham conhecimento no momento da
conclusão do negócio. Se a revogação não é oponível a terceiros, os efeitos da
representação produzem-se na esfera do representado. Para ser oponível a terceiro, é
necessário que se prove que ele conhecia a procuração no momento de extinção do
negócio. O ónus da prova recai sobre o declaratário.
O artigo 266º/2 engloba a renúncia e a revogação como causas de extinção da
procuração. A renúncia é um negócio jurídico unilateral através do qual o representante
abdica dos seus poderes representativos. A revogação dá-se por iniciativa do
representado.
A lei determina que a renúncia e a revogação da procuração não podem ser opostas
a terceiro que, sem culpa, as tenha ignorado. Neste caso, tem de ser o terceiro a provar
que ignorava sem culpa a renúncia, pelo que o ónus da prova recai sobre ele.

Podemos distinguir:
è Procurações gerais – conferem poderes para uma multiplicidade de negócios.
è Procurações especiais – conferem poderes para determinados atos em concreto.
Normalmente, confere-se a possibilidade de subestabelecer os poderes, ou seja, de
substituir o procurador, prevista no artigo 264º. Isto acontece muito regularmente nas
procurações conferidas a advogados. Ou seja, o procurador pode conferir os seus poderes
de procuração a outra pessoa. Isto pode estar previsto genericamente na própria
procuração ou pode ser permitir pelo representado numa situação em concreto. Como
regra, se nada for dito em sentido contrário, a substituição do representante não envolve
a exclusão do anterior representante. Ou seja, mantém-se os dois representantes, o
representante que é substituído não é eliminado. Se houver substituição autorizada, o
procurador só é responsável perante o representado se tiver agido com culpa na escolha
do substituto ou nas instruções que lhe deu. Se nada for dito em contrário, o procurador
pode munir-se de pessoas que o auxiliem.

Quais os problemas que se levantam com a representação? Prendem-se com situações


de abuso de representação ou uma hipótese de representação sem poderes (artigos
268º e 269º).
Temos uma situação de abuso de representação, quando o procurador se mantém
dentro dos limites da procuração que lhe foi conferida, mas extravasa os poderes que tem
no exercício da sua função. Funcionalmente, mantém-se nos limites dos seus poderes,
mas abusa no seu exercício. Manteve-se dentro dos limites formais da representação, mas
abusa no exercício. É quase uma hipótese de abuso de direito, em que alguém se mantém

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dentro do direito que lhe é conferido, mas atua extravasando os interesses que levaram à
atribuição daquele direito.
Se o representante é alguém inábil para o negócio e faz um mau negócio, não temos
um abuso de representação. É apenas um mau procurador. Este risco cai sobre o
representado. Também não haverá abuso de representação nos casos em que o procurador
atua dentro dos poderes e colabora com outra parte conscientemente no sentido de
prejudicar os interesses do representado. Se houver um conluio entre o representante e
outra parte, o negócio jurídico é atentatório dos bons costumes e caia na alçada do artigo
281º. O negócio atentatório dos bons costumes é nulo.

(Ex: A confere a B poderes para B vender uma casa de que é proprietário e B vende a casa por
100 euros. B tem poderes de representação, mas abusa no seu exercício)

Na hipótese de representação sem poderes, alguém atua sem poderes


representativos. Esta situação é compatível com a hipótese de existir uma procuração,
desde que os poderes exercidos sejam distintos do que os conferidos na procuração. É o
caso da procuração confere um determinado poder, e o procurador usa outro poder no
exercício das suas funções que não aquele que lhe foi conferido.

(Ex: A confere a B poderes de representação no sentido de B arrendar a casa de A e B vende-a.


É uma representação sem poderes pois B não tem poderes para vender a casa de A. Se B vende
ele atua sem poderes de representação.)

A posição do terceiro (aquele com quem o representante contrata) difere do caso


do abuso de representação. O terceiro pode exigir que o representante faça prova dos seus
poderes. Se alguém atua sem poderes de representação, é porque o terceiro não pediu a
prova dos poderes ao representante. Por isso, estas situações de representação sem
poderes podiam ser evitadas, mediante a prova dos poderes. No caso de abuso de
representação, ainda que o terceiro exija a prova dos poderes, ele verifica que o
representante ainda está dentro dos limites da procuração. Mas não se consegue aperceber
do abuso no exercício dos poderes mediante essa prova.
O artigo 268º determina que o negócio com pessoa sem poderes de representação
é ineficaz em relação a este. O legislador não optou pela invalidade do negócio. O negócio
é válido, mas é ineficaz em relação ao representado.
No entanto, o representado tem a possibilidade de ratificar o negócio. É uma
legitimação representativa subsequente. Mediante esta ratificação, ele chama a si os
efeitos do negócio. O negócio passa a produzir efeitos na esfera do representado. Esta
ratificação está sujeita à forma exigida para a procuração. A ratificação tem efeitos
retroativos. Ou seja, é como se o negócio fosse plenamente eficaz desde o momento em
que foi celebrado. Todavia, a retroatividade não prejudica direitos entretanto adquiridos
por terceiros. A contraparte pode fixar um prazo para a ratificação, uma vez que fica num
estado de incerteza. Para evitar que esta situação de instabilidade se prolongue, fixa-se
um prazo.

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Enquanto não há ratificação, a contraparte pode revogar ou rejeitar o negócio, a


menos que conhecesse a falta de poderes representativos no momento de celebração do
negócio. Aqui, o legislador pondera os interesses do representado e da contraparte.
Nas hipóteses de abuso de representação, o artigo 269º remete para o regime da
representação sem poderes. Mas acrescenta um requisito: cognoscibilidade do abuso. Ou
seja, se a contraparte conhecia ou devia ter conhecido o abuso, o negócio é ineficaz
relativamente ao representado. Se a contraparte do negócio não conhecia nem devia
conhecer o abuso, o negócio produz os seus efeitos normalmente na esfera do
representado. Nesta situação, o abuso de representação não releva. O risco recai sobre o
representado.
Podemos discutir se há violação do dever de boa fé. Pode haver um direito
indemnizatório que decorre deste caso. Mas isto acontece num plano obrigacional entre
o representante e o representado.
Esta distinção entre representação sem poderes e abuso de representação pode não
ser clara na prática. É difícil determinar a questão em causa perante um caso concreto.

8. Os elementos acidentais do negócio jurídico


Para este tema, recomenda-se a leitura das páginas 561 e seguintes do manual
adotado para a cadeira.
Os negócios jurídicos, por norma, produzem os seus efeitos quando são
celebrados. Mas isto pode não acontecer. Podemos ter um negócio válido, mas os seus
efeitos não se produzem imediatamente, produzem-se de uma forma instável ou não se
produzem integralmente. O que está aqui em causa é a eficácia do negócio jurídico.
As partes podem condicionar o início ou a cessação da produção dos efeitos do
negócio a uma cláusula de condição ou de termo. Esta condição interfere com a
produção dos efeitos jurídicos do negócio. Não precisamos de uma norma que nos diga
que num negócio é possível introduzir uma cláusula deste tipo, porque isto resulta do
princípio da autonomia privada. No entanto, por vezes, o legislador refere a possibilidade
de introduzir estas cláusulas em determinados negócios. Mas isto não significa que nos
casos em que não haja uma estipulação expressa, estas cláusulas não sejam admitidas.
Por exemplo, nos artigos 1713.º nº 1 e 2229.º.
Quer a condição, quer o termo reportam-se a factos futuros. Portanto, em ambos os
casos subordina-se a produção dos efeitos do negócio a determinados factos futuros. No
entanto, distinguem-se quanto à certeza. A condição traduz-se num acontecimento futuro
e incerto. O termo traduz-se num acontecimento futuro e certo.

8.1 Condição
A condição pode ser suspensiva ou resolutiva, segundo nos dispõe o artigo 270.º.
è Condição suspensiva. O facto futuro e incerto pode suspender a eficácia do
negócio. Subordina o início da produção de efeitos a um facto futuro e incerto.
O negócio é celebrado validamente, mas a eficácia fica suspensa.
è Condição resolutiva. A cessação dos efeitos do negócio jurídico depende de
facto futuro e incerto. O negócio produz os seus efeitos cabalmente, mas se
determinado acontecimento ocorrer, cessa a eficácia do negócio.

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O critério da distinção é o da influência que a verificação do evento condicionante


tem sobre a eficácia do negócio: se a verificação da condição importa a produção dos
efeitos do negócio, não tendo estes lugar doutro modo, trata-se de uma condição
suspensiva; se a verificação da condição importa a destruição dos efeitos negociais, esta
diz-se resolutiva.
Saber se uma condição é suspensiva ou resolutiva é um problema de interpretação do
negócio jurídico.
Na prática não é fácil fazer esta distinção. Por exemplo, alguém pretende comprar um
computador que permita instalar um determinado software. A compra está subordinada a
um acontecimento incerto. Aqui, a condição é de que tipo?
No entanto, em algumas situações, o legislador definiu um critério e presumiu a
natureza da condição. Segundo este critério, em casos de dúvida, tem de se fazer uma
presunção de que a condição é suspensiva, a não ser que se determine que é resolutiva.
Por exemplo, o artigo 925.º nº 1.
Excecionalmente, a lei estabelece uma presunção: artigo 2234.º (se a herança ou o
legado for deixado sob condição de o herdeiro ou o legatário não dar certa coisa, ou não
praticar certo ato, a disposição considera-se feita sob condição resolutiva).

As condições não se confundem com condições legais. Estas condições legais são
requisitos da lei para a verificação de determinados efeitos jurídicos. Por exemplo,
quando o artigo 687.º diz que a hipoteca deve ser registada sob pena de não produzir
efeitos, a eficácia da hipoteca está sujeita a um requisito. O registo não é uma cláusula
contratual para a produção de efeitos. É uma imposição legal para a produção de efeitos.

Cabe uma menção às condições impróprias. Estas não reúnem todas as qualidades que
caraterizam a condição verdadeira e própria: evento futuro, ao qual está subordinada a
eficácia do negócio; caráter incerto do evento; subordinação resultante da vontade das
partes. As condições próprias estão previstas no artigo 270.º.
São diversas as figuras das condições impróprias:
a) Condições impossíveis, visto que a não verificação do evento é, desde logo, certa.
b) Condições referidas ao passado ou ao presente, visto que o evento condicionante
não é futuro; não existe, portanto, incerteza objetiva (nem, consequentemente, o
período de pendência que nela se baseia); acontece apenas que a circunstância da
verificação ou não verificação está subtraída ao conhecimento das partes no
momento do negócio; os efeitos do negócio ou se produzem logo ou não se
produzem.
c) Condições necessárias: por exemplo, a condição de o declarante ou um terceiro
morrerem; o evento não é incerto.
d) Condições legais.

A lei dedica o artigo 271.º a condições impróprias, que são as condições ilícitas ou
impossíveis.
è Quanto às condições impossíveis, é nulo o negócio sujeito a uma condição
suspensiva que seja física ou legalmente impossível. Se a condição for resolutiva,
o negócio é válido e considera-se a condição como não escrita.

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è Temos as hipóteses em que as condições são próprias, mas são ilícitas. As


condições ilícitas são condições próprias. A condição ilícita é contraria à lei,
ordem pública ou aos bons costumes. São possíveis, mas não são admitidas. É
nulo o negócio subordinado a uma condição ilícita. Independentemente de a
condição ser suspensiva ou resolutiva, o negócio é nulo.

v Hipóteses de condição ilícita e o regime especial para as doações e


testamentos.
A condição de residir ou não residir em certo prédio ou local restringe a liberdade.
A condição de conviver ou não com certa pessoa também restringe o livre
desenvolvimento da personalidade. A condição de não fazer testamento restringe a
autonomia privada. Estas condições são ilícitas, na medida em que põem em causa a
liberdade e violam o artigo 70º.
O caráter ilícito de uma condição não se relaciona necessariamente com o caráter
ilícito do acontecimento futuro ou incerto. Mas resulta da relação entre esse
acontecimento e os efeitos do negócio. Sendo embora o evento condicionante lícito, pode
a condição ser ilícita, por força do seu nexo com o restante conteúdo do negócio. É o
caso das condições restritivas da liberdade.

Temos regras especiais em matéria sucessória. Nos artigos 2232º e seguintes,


temos regras especiais quanto a condições ilícitas.
Os artigos 2232º e 2233º especificam um conjunto de condições consideradas
contrárias à lei, uma vez que eram frequentes em testamentos. O legislador tipifica
algumas condições ilícitas que são mais comuns.
O artigo 2233º/2 determina que é válida a prestação periódica para produzir efeito
enquanto durar o estado de solteiro ou viúvo do legatário. Este número não interfere com
a liberdade de contrair matrimónio. É uma forma de proteger o legatário durante um
determinado período.
O artigo 2230º/2 determina que a condição ilícita tem-se por não escrita, ainda que
o testador haja declarado o contrário. O legislador, em matéria sucessória e de doações,
considera que qualquer condição ilícita é não escrita. O que é isto de ter uma condição
por não escrita? Tem-se entendido que são situações de nulidade apenas da cláusula
condição. A nulidade apenas afeta aquela cláusula, pelo que o negócio subsiste. Ou seja,
a solução é diferente da nulidade prevista para outros negócios com condições ilícitas.
Relativamente aos negócios mortis causa, se a solução da condição ilícita no testamento
fosse a solução da parte geral do CC isso implicaria que todo o testamento seria nulo. Isto
ia prejudicar o herdeiro, que é quem se pretende beneficiar com a nulidade da condição.
Tínhamos um resultado contrário ao que a lei visa acautelar. Para além disso, essa
nulidade da cláusula só era questionada no momento em que se abrem o testamento, ou
seja, por morte do testador. E o testador morto reconstruir a sua condição. Tínhamos de
declarar nulo o testamento e a vontade declarada ficava sem efeito. A regra geral do CC
vale nos negócios inter vivos. Nestes negócios, as partes podem renovar a sua vontade e
celebrar o negócio noutros termos.

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As regras especiais de condições ilícitas em matéria testamentária são aplicáveis


à doação, segundo o artigo 967º. Apesar da doação ser um negócio entre vivos, aplica-se
o mesmo regime dos artigos 2232º e seguintes.
Uma doação em que se inclua uma condição que ponha em causa a liberdade do
seu benificiário não é nula. Mas a cláusula ilícita torna-se nula para proteger o
beneficiário. Não se compreende a nulidade de todo o negócio, porque isso ia prejudicar
aquele que ia receber a doação.

v Efeitos da condição suspensiva


Nem todos os negócios admitem condições. Em função da própria natureza do
negócio ou por disposição expressa da lei, existem determinados negócios que são
incondicionais. Nomeadamente, aqueles que não comportam o grau de incerteza da
condição. É o caso dos negócios jurídicos familiares e do contrato de trabalho. A condição
comporta uma incerteza que é incompatível com estes negócios. (Ex: artigo 1618º/2;
artigo 1852º)
Introduzindo uma condição, o negócio entra num estado de pendência. Não existe
um direito pleno, mas surge uma expectativa jurídica que goza de proteção legal. O
artigo 272º diz que “aquele que contrair uma obrigação ou alienar um direito sob
condição suspensiva, ou adquirir um direito sob condição resolutiva, deve agir, na
pendência da condição, segundo os ditames da boa fé, por forma que não comprometa a
integridade do direito da outra parte”. Neste regime, o legislador quase que equipara a
posição do alienante condicional na condição suspensiva à do adquirente condicional na
condição resolutiva em situações assimétricas. A professora diz que esta disposição
poderia ser questionada.
(Ex: Se A celebra um contrato de compra e venda com B, que é subordinado a
uma condição suspensiva. O negócio é válido, mas só produz os seus efeitos quando se
verificar o acontecimento futuro e incerto. Enquanto não se verifica a condição, o
proprietário é A. B não adquire um direito real, mas tem uma expectativa jurídica. A sua
posição é protegida por lei. A, apesar de ser o proprietário, tem de atuar de boa fé,
segundo o artigo 272º).

Num negócio com uma condição suspensiva, enquanto o acontecimento futuro e


incerto não se verifica, o credor condicional apenas tem uma expectativa de eventual
aquisição de um direito.
Por isso, o artigo 273º permite que o adquirente do direito, na pendência da
condição suspensiva, pode praticar atos conservatórios. É uma posição que ainda não é
um direito, mas é protegida por lei.
O adquirente condicional tem a possibilidade de registar o seu direito e, desta
forma, pode opô-lo a outros direitos sobre o mesmo bem que sejam incompatíveis com o
seu. Por sua vez, o devedor condicional deve atuar de boa fé e abster-se de
comportamentos que prejudiquem o direito que o credor pode vir a adquirir.
Portanto, o negócio sujeito a uma condição suspensiva ainda não tem direitos
atuais, mas produz efeitos provisórios na expectativa da produção de efeitos definitivos.

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(Ex: A e B celebram um contrato de compra e venda com uma condição suspensiva. A


não teve qualquer cuidado com o objeto do cuidado. O seu comportamento é contrário à
boa fé. B, não sendo proprietário, mas tendo uma expectativa, pode praticar atos de
conservação da coisa que ainda não é dele, mas que pode vir a ser dele.)

O artigo 275º/1 determina que, se tivermos a certeza de que a condição não se


pode verificar, isso equivale à sua não verificação.
Segundo o artigo 275º/2, se a verificação da condição for impedida por aquele a
quem prejudica, tem-se por verificada. Por outro lado, se for provocada por aquele a quem
aproveita, considera-se como não verificada.

A situação dos atos praticados na pendência da condição, nomeadamente os atos


dispositivos, é regulada no artigo 274º. Na pendência da condição, podem ser praticados
atos de disposição. A lei diz que estes atos dispositivos ficam sujeitos à eficácia ou
ineficácia do próprio negócio (ou seja, à verificação ou não da condição). Não temos um
conflito de direitos que decorrem dos atos dispositivos.
Uma vez verificada a condição, o artigo 276º determina o princípio da
retroatividade da condição. Segundo este, os efeitos da condição retroagem à data de
conclusão do negócio. Este princípio não é absoluto, na medida em que as partes podem
dispor em sentido contrário ou a lei pode determinar que, pela natureza do ato, não há
retroatividade. As partes podem determinar que a condição não tem efeito retroativos ou
podem reportar a consumação desse acontecimento a um momento intermédio.
Temos exceções ao princípio da retroatividade, que se justificam na medida em
que beneficiam as partes. Segundo o artigo 277º, os atos de administração praticados pelo
devedor condicional na pendência da condição são válidos.
Também é ressalvada a não retroatividade da aquisição de frutos, nos termos do
artigo 277º/3. Segundo o artigo 1270º, o possuidor de boa fé faz seus os frutos naturais
percebidos até ao dia em que souber que está a lesar com a sua posse o direito de outrem.
Portanto, se a coisa gera frutos, estes ficam ressalvados da retroatividade.
(Ex: A venda a coisa a B mediante uma condição suspensiva. A é o proprietário e B tem
uma expectativa. Entretanto, a coisa gera frutos naturais. Verifica-se a condição. A
verificação da condição tem efeitos retroativos. E os frutos que A colheu entretanto?
Estão ressalvados da retroatividade.)
Se a condição suspensiva não se verificar, os efeitos provisórios são destruídos e
não se produzem efeitos definitivos.

v Efeitos da condição resolutiva


Nos negócios com uma condição resolutiva, a posição do devedor é equiparada à
do credor no negócio sob condição suspensiva.
O devedor tem uma expectativa jurídica e, por isso, o credor deve atuar de boa fé,
nos termos do artigo 272º. Segundo o artigo 273º, o alienante condicional pode realizar
atos conservatórios na pendência de uma condição resolutiva.

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(Ex: Se C celebra um negócio de compra e venda com D subordinado a uma condição


resolutiva. O negócio produziu os seus efeitos e D tornou-se proprietário. C já não é
proprietário, mas tem uma expectativa jurídica, porque se se verifica o acontecimento
futuro ou incerto ele volta a ser o proprietário. D, na pendência da condição, tem de
atuar de boa fé.)

Uma vez verificada a condição resolutiva, a lei manda aplicar o artigo 434º/2.
Este artigo prende-se com a retroatividade da resolução. A resolução, como regra, tem
efeitos retroativos. Assim, a verificação da condição implica a destruição retroativa dos
efeitos do negócio.
No entanto, o nº2 do artigo 434º diz que nos contratos de execução continuada ou
periódica, a resolução não abrange as prestações já efetuadas. O legislador manda aplicar
à condição resolutiva o regime da resolução quanto aos contratos periódicos. Assim, a
retroatividade da condição não interfere com as prestações efetuadas nos contratos de
execução continuada ou periódica.
Para além disso, os frutos naturais adquiridos na pendência da condição resolutiva
ficam ressalvados da retroatividade, nos termos dos artigos 277º/3 e 1270º.
(Ex: Temos um contrato de prestação de serviços celebrado entre A e B condicionado a
um acontecimento futuro e incerto. O contrato deixa de produzir efeitos para o futuro,
mas não temos retroatividade. Os serviços prestados não vão ser devolvidos.)
(Ex: C vende a D uma coisa mediante uma condição resolutiva. Verifica-se a condição
resolutiva e tudo se passa como se D nunca tivesse sido proprietário. Mas os frutos ficam
ressalvados da retroatividade.)

Isto é diferente do que a lei prevê em matéria de resolução do contrato. Segundo


o artigo 435º, a resolução, ainda que convencionada, não prejudica os direitos adquiridos
por terceiros.
(Ex: E e F celebram um contrato de compra e venda e convencionam uma cláusula de
resolução. F celebra um contrato de compra e venda da mesma coisa com G. A resolução
tem, como regra, efeitos retroativos, segundo o artigo 433º. Mas não prejudica os direitos
adquiridos por terceiros. Se o negócio entre E e F é resolvido, isso não vai prejudicar a
posição de G. A resolução do primeiro negócio não é oponível a G. A coisa já não pode
ser devolvida a E, porque G já é proprietário.
Isto só não será assim se a coisa vendida for um imóvel, se G não registar e se tivermos
uma ação de resolução registada. Neste caso, a resolução é oponível a G.)
(Ex: Se tivermos um contrato de compra e venda sujeito a uma condição resolutiva. A
verificação da condição é oponível a terceiro. O apagar retroativo dos efeitos do negócio,
põe em causa a posição jurídica do terceiro.)

Se a condição resolutiva não se verificar, os efeitos do negócio consolidam-se.

Em suma, o preenchimento da condição tem eficácia retroativa, que se reporta ao


momento da celebração do contrato. Isto não acautela as posições de subadquirentes. Esta
desproteção é uma solução distinta da que a lei prevê em situação de resolução do

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contrato. A resolução não é oponível a terceiros, mas a verificação de uma condição


resolutiva é oponível a terceiros.

8.2 Termo
O termo é regulado no artigo 278º. Não temos uma noção de termo no artigo.
O termo é o momento a partir do qual o negócio produz os seus efeitos ou deixa de os
produzir. Reporta-se ao início ou à cessação dos efeitos do negócio a um acontecimento
futuro e certo. Por isso, distinguimos o termo suspensivo ou inicial do termo resolutivo
ou final. O termo suspensivo marca o momento a partir do qual o negócio produz os seus
efeitos. O termo resolutivo marca o momento em que o negócio deixa de produzir efeitos.
Antes de se verificar o termo resolutivo tudo se passa como se o contrato não estivesse
sujeito a termo. Verificado o termo, o negócio cessa os seus efeitos para o futuro. O termo
não tem eficácia retroativa.

Apesar de se tratar de um acontecimento certo, o termo pode ser certo ou incerto. Isto
prende-se com o momento em que o acontecimento futuro e certo se vai verificar. Quando
se sabe exatamente quando o acontecimento se vai verificar, temos um termo certo.
Quando não se sabe ao certo quando o acontecimento se vai verificar, estamos perante
um termo incerto. Sabemos sempre que o acontecimento vai ocorrer, mas não se sabe
quando.
O artigo 278º manda aplicar o disposto no artigo 272º e 273º. Ou seja, quanto ao
termo, vale o que dissemos quanto à necessidade de atuar de boa fé na pendência do termo
e quanto aos atos conservatórios. Uma das partes deve atuar de boa fé de modo a não
prejudicar o direito da contraparte. O interessado pode praticar ato conservatórios do seu
direito.
Quanto à contagem do termo, as partes podem definir o momento a partir do qual
começa a contagem. Se não o fizerem, existem regras supletivas no artigo 279º.

Em regra, as partes têm liberdade para inserir um termo, à luz do princípio da


liberdade contratual. No entanto, existem negócios que não admitem termo (ex: artigo
1307º/2 ; artigo 2243º). A inclusão um termo em negócios que não o admitem pode levar
à nulidade do negócio ou apenas à nulidade do termo.
O termo é especialmente relevante no domínio do contrato de trabalho, devido à
instabilidade que acarreta para a relação laboral.

8.3 Modo, encargo ou cláusula modal


Não nos aparece uma referência ao modo na parte geral do CC. As referências ao
modo aparecem nos regimes específicos dos negócios onde esta cláusula vai ser inserida.
O modo é uma declaração de vontade acessória relativamente à declaração
principal. É um elemento acidental do negócio jurídico. O modo apenas pode ser inserido
em negócios a título gratuito, nomeadamente negócios de natureza patrimonial. Em
negócios a título gratuito vai ser imposto ao beneficiário da liberalidade um encargo, que
não chega a ser um correspetivo da liberalidade. Nestes negócios transferem-se direitos a

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título gratuito a favor do disponente, do terceiro ou do próprio beneficiário, mas impõem-


se encargos ao beneficiário.

(Ex: Supondo que alguém doa a outra pessoa os bens imóveis do seu património, mas
diz-lhe que um determinado valor do rendimento dos prédios terá de ser destinado a uma
obra de caridade. Isto é um modo. Temos uma doação, que é um negócio gratuito. Não
há uma contrapartida, mas há um encargo que é imposto ao beneficiário.)

Pode ser difícil distinguir o modo da condição. Mas distinguem-se em vários


pontos. Para determinar se estamos perante uma cláusula modal ou uma condição, temos
de fazer um trabalho de interpretação. Na dúvida entre o modo e a condição, tem havido
uma tendência no sentido de preferir o modo, na medida em que este regime preserva o
negócio jurídico. Temos de apurar a vontade do declarante para determinar o regime.
Nos negócios onerosos nunca pode ser inserido um modo. A condição pode ser
interposta em negócios gratuitos e onerosos.
O modo só pode ser inserido às liberalidades. A cláusula condicional pode ser
interposta em qualquer negócio, salvo disposição em contrário.
Sendo um elemento exterior ao negócio, o modo não vai influenciar os seus
efeitos. O modo não interfere com a eficácia do negócio onde é aposto. Isto difere da
condição e do termo. O negócio onde é introduzido o modo produz os seus efeitos
normalmente, independentemente da existência do modo e de este ser cumprido ou não.
O modo traduz-se numa obrigação que é imposta ao beneficiário da liberalidade.
Isto também o distingue da condição, na medida em que esta não obriga, pois é um
acontecimento futuro e eventual. A condição suspensiva suspende, mas não obriga. O
modo obriga, mas não suspende.
O não cumprimento do modo não vai interferir com a eficácia do negócio. Mas
pode dar azo à resolução do negócio. Mas a resolução do negócio não é uma consequência
automática do incumprimento do negócio, uma vez que precisa de um comportamento
ativo que desencadeie essa consequência. A resolução da liberalidade não tem eficácia
retroativa para terceiros.
O artigo 967º refere-se a encargos ilícitos ou impossíveis. Este artigo manda
aplicar o disposto em matéria sucessória. Por isso, nos termos do artigo 2230º, a cláusula
modal ilícita ou impossível considera-se como não escrita. É a nulidade parcial que afeta
apenas a cláusula modal. O negócio é reduzido à sua parte válida, expurgada do modo
ilícito ou impossível.

As cláusulas modais aparecem-nos no domínio das doações, nomeadamente nos


artigos 963º. Também aparecem no domínio dos testamentos, no artigo 2244º relativo aos
encargos.
A doação com encargos é um negócio jurídico em que o donatário, ao aceitar a
proposta, sujeita-se a adotar o comportamento imposto pelo modo. O artigo 963º admite
os encargos nas doações e estabelece o limite do encargo, que é o limite do valor da coisa
ou do direito doado. Não pode ser imposto ao beneficiário da doação um encargo que
supere o valor da doação ou o direito que decorre dela. Se o encargo começar a ser muito

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pesado, a caracterização do negócio como doação é posta em causa. Se o encargo se


começar a aproximar de um correspetivo do benefício, o negócio pode passar a ser
oneroso.
O artigo 965º determina que o doador, os seus herdeiros ou quaisquer interessados
podem exigir o cumprimento dos encargos. Se o encargo não for cumprido
definitivamente, o artigo 966º refere-se a uma resolução do negócio fundada no
incumprimento. Mas esta possibilidade depende de uma previsão na própria doação. A
doação deve prever a possibilidade da resolução por incumprimento do encargo.

As liberalidades testamentárias não são contratos, mas impõe ao sujeito o


cumprimento de um encargo. O artigo 2245º determina que a instituição de herdeiro e
nomeação do legatário pode ser sujeita a encargos. A lei admite que se possa impor a
obrigação de prestação de uma caução, que terá de ser proferida pelo tribunal. O que
recebe uma deixa testamentária ou um legado pode ser obrigado a pagar uma caução, de
forma a assegurar que cumpre o que lhe é imposto.
O cumprimento do encargo pelo herdeiro onerado não deve exceder o valor do
bem herdado, nos termos do artigo 2071º. Tal como o cumprimento do encargo pelo
legatário não deve exceder o valor da coisa legada, tal como consta do artigo 2276º.
O artigo 2248º prevê a possibilidade de qualquer interessado exigir o
cumprimento do modo. Neste caso, os interessados são os herdeiros e os que são afetados
pelo modo. O incumprimento dá lugar à possibilidade de resolução da disposição
testamentária, pelo que qualquer interessado pode resolver o negócio. Esta possibilidade
só existe se o testador a tiver previsto ou se resultar do testamento que a deixa
testamentária não teria sido feita sem o cumprimento do encargo.
Se a deixa testamentária for resolvida, os demais herdeiros vão beneficiar dos bens
respetivos. Mas impõe-se a esses herdeiros o cumprimento do encargo, uma vez que este
se mantém. O direito de resolução caduca no prazo de 5 anos sobre a mora no
cumprimento do encargo ou 20 anos sobre a abertura da sucessão.

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