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Mariana Cadaveira

Teoria Geral do
Direito Civil
II

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Mariana Cadaveira

Bens / Coisas utilidade não pode deixar de estar presente entre as qualidades das
coisas jurídicas.
A individualidade é outra característica das coisas jurídicas,
que não é algo natural ou extrajurídico. Todas as coisas são
Os bens são os meios, são tudo aquilo que não seja pessoa e
fisicamente divisíveis até aos átomos que as compõem. Mas não é
que tiver uma utilidade, isto é, que for apto a satisfazer uma
neste sentido que se refere a individualidade. A coisa, como bem
necessidade, a realizar uma apetência ou a alcançar um fim.
idóneo para a realização de fins, encontra a sua individualidade
Para o direito só são bens os meios que sejam juridicamente nessa sua natureza – na utilidade. A coisa tem individualidade
idóneos – juridicamente afetados à realização de fins lícitos. enquanto bem, na perspetiva do fim que é apta a realizar. Assim,
tanto é coisa um automóvel (meio idóneo a realizar o fim de
Ao contrário das pessoas, as coisas têm fins extrínsecos que se transporte), como um farol desse mesmo automóvel (apto para a
situam fora delas e ao serviço das pessoas. sua iluminação). Uma parte da coisa pode ser considerada uma
É esta dupla dimensão de utilidade e licitude do seu coisa, desde que possa ser individualmente útil (desde que que
aproveitamento pelo homem que exprime a essência da coisa, e não possa servir por si só), para assegurar ou coadjuvar a realização de
a sua simples colocação como objeto da relação jurídica. As coisas um fim.
existem no mundo para serem aproveitadas pelas pessoas, para A suscetibilidade de apropriação é outra característica das
servirem os seus fins, mas não de qualquer modo – apenas no coisas jurídicas que está também, de certo modo, ligada à utilidade.
âmbito da sua utilidade dentro dos limites da licitude. O Sol, por exemplo, é necessário para a própria subsistência da
espécie humana, mas não pode assumir o estatuto de coisa jurídica,
porque é insuscetível de ser afetado pelo Direito à realização de
Artigo 202º fins de pessoas individualmente consideradas. O Sol não deixa de
Em sentido jurídico, coisa é tulo aquilo que, não sendo pessoa, ser útil, em geral, ainda que não seja suscetível de apropriação. No
tenha utilidade, individualidade e seja suscetível de apropriação. entanto, não é suscetível de apropriação exclusiva, no sentido de
que, se todos podem beneficiar dele, ninguém pode privar os outros
A utilidade não é uma característica especifica das coisas e da sua utilização. O Sol é algo que, sendo de todos, não é de
decorre já da noção de bem. Só constitui uma coisa jurídica o que ninguém. A sua utilidade é geral e não particular e não pode ser
puder ser considerado um bem jurídico, isto é, algo que seja idóneo particularizada ou individualizada. Só são coisas jurídicas aquelas
como meio lícito para a realização de fins ou objetivos também eles que forem pessoalmente apropriáveis e utilizáveis para a realização
lícitos. Embora não seja uma sua característica especifica, a de fins concretos, que puderem ser pelo Direito especialmente
afetadas à satisfação de fins.
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Classificação das coisas (Artigo 203º) Coisas corpóreas: aquelas que se revelam aos sentidos, que
são sensorialmente constatáveis (designadas de res qui tangi
O artigo 203º não tem conteúdo percetivo e nem impõe aquela possunt pelos romanos)
série de classificações, nem exclui outras – é simplesmente
indicativo; Coisas materiais → que se compõem de matéria, que
têm dimensões, volume e massa (ex.: prédios;
Coisas, bens, objetos? estatuas; ferramentas;)
O professor MC utiliza a expressão “coisas”, mas o professor Coisas imateriais → que não têm matéria, mas têm
JAV prefere a expressão objetos; realidade e existem na natureza (têm existência
física) (ex.: eletricidade; ar da atmosfera)
Inicialmente no direito romano a expressão “coisa” (res) era
associada ao sentido material, enquanto ius correspondia às Art. 1302º - limita o objeto do direito de propriedade às coisas
realidades jurídicas (o direito). corpóreas
A evolução traz noções que não são nem sentido material nem Coisas incorpóreas: são aquelas que só se revelam ao
realidades jurídicas. Ex.: Aspetos da personalidade (integridade intelecto humano – não podem ser apreendidas pelos sentidos; têm
física; direito à vida) – aspetos que dizem respeito às pessoas, mas existência meramente social, não existindo no mundo físico (ex.:
não são “Coisas”. bens intelectuais – marcas; obras literárias; ouvir musica, que
Objeto: porção delimitada da realidade – algo que tem limites que apesar de ser algo apreendido pela audição se trata de uma coisa
permitem identificar e separar relativamente a outros objetos (ex.: incorpórea);
as nuvens não são objeto para o direito, no entanto se cair água em E os direitos? Podem ser considerados coisas incorpóreas?
cima de um carro (estando assim limitada) já tem relevância Os direitos, não são propriamente bens, mas antes a
jurídica): efetuação jurídica de bens à realização de determinados fins
pessoais. Considerar os direitos como coisas incorpóreas ou como
• Coisas
bens é usual na linguagem jurídica do quotidiano e não passa de
• Realidades que não são coisas (aspetos da personalidade
uma facilidade de expressão. Essa facilidade de expressão não deve,
humana)
contudo, ser considerada correta porque envolve a confusão entre
o direito, que é a afetação jurídica do bem, e o bem que é o objeto
do direito, isto é, entre o bem e a sua afetação jurídica.
Coisas: porções delimitadas da realidade exteriores ao homem –
livres de qualquer referência humana

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Coisas no comércio e coisas fora do comércio Pode haver ainda outras coisas que são colocadas por lei,
fora do comercio, por razões especificas. São disso exemplo, entre
O artigo 202º, nº2 refere as coisas fora do comércio como outras, espécies de animais ou vegetais protegidos.
todas as “que não podem ser objeto de direitos privados, tais como
as que se encontram no domínio público e as que são, por sua Coisas móveis e imóveis
natureza, insuscetíveis de apropriação”
Artigo 204.º (Coisas imóveis)
Esta definição traz implícita uma dicotomia entre as coisas que
1. São coisas imóveis:
estariam fora do comércio por razões jurídicas, e que seriam as que
estão no domínio público, e as que estão fora do comércio por razão a) Os prédios rústicos e urbanos;
da sua natureza, e que seriam as coisas insuscetíveis de b) As águas;
apropriação.
c) As árvores, os arbustos e os frutos naturais, enquanto estiverem
Todavia, as coisas que são, por sua natureza, ligados ao solo;
insuscetíveis de apropriação não são coisas em sentido jurídico.
Também as coisas que estão juridicamente fora do comércio não se d) Os direitos inerentes aos imóveis mencionados nas alíneas anteriores;
esgotam nos bens do domínio público. e) As partes integrantes dos prédios rústicos e urbanos.
Além das coisas que integram o domínio público, ainda estão 2. Entende-se por prédio rústico uma parte delimitada do solo e as
fora do comércio os baldios (terrenos que se encontram numa construções nele existentes que não tenham autonomia económica, e por
situação e num regime de uso e fruição comunitários segundo os prédio urbano qualquer edifício incorporado no solo, com os terrenos que
usos e costumes, com origem imemorial – são assim insuscetíveis lhe sirvam de logradouro.
de apropriação particular mas também não se encontram no 3. É parte integrante toda a coisa móvel ligada materialmente ao prédio
domínio público – são qualificáveis como coisas comuns) → A lei com carácter de permanência.
define-os como “terrenos possuídos e geridos por comunidades locais”.
Constituem, em regra, logradouro comum, designadamente para efeitos de A técnica legal é de que tudo o que não está exposto neste artigo é
apascentação de gados, de recolha de lenha ou de matos, de culturas e outras considerado “coisas móveis” – no entanto, há coisas que escapam
fruições, nomeadamente de natureza agrícola, silvícola, silvo-pastoril ou apícola.
ao legislador que devem ser consideradas “coisas imóveis” como
São, em princípio, inalienáveis e indisponíveis.
estradas, pontes, fontes, etc.
Devemos considerar que o artigo é apenas enunciativo e não
taxativo.

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Do regime da lei resulta que uma coisa imóvel é fundamentalmente necessariamente por paredes que delimitam o solo e o espaço por
o solo e o que lhe esteja ligado com caracter de permanência. todos os lados, por uma cobertura superior (telhado ou terraço),
normalmente por paredes divisórias interiores e podendo ter
Pertencem ao solo como coisa imóvel, as arvores, os
vários pisos.
arbustos, os frutos naturais e as águas que lhe estejam
permanentemente ligados. Nem sempre, porém, a toda a construção com estes
requisitos corresponde, juridicamente, um prédio urbano. Se a uma
Quando sejam desligados do solo, tanto as águas, como as arvores,
casa principal estão anexas construções de carácter secundário
arbustos e frutos naturais ganham individualidade própria e tornam-
(casa do porteiro, garagem, galinheiro) deve entender-se que
se coisas autónomas → Assim sucede com as arvores que depois de
estamos perante um único prédio urbano, não obstante a
cortadas ou desenraizadas deixam de pertencer ao imóvel e
pluralidade de construções que o integram.
tornam-se coisas moveis.

Critérios:
o Prédio urbano e rústico
Critério Funcional → O prédio é rústico se a sua utilidade própria
O prédio rustico é uma porção delimitada do solo ao qual acrescem
residir principalmente no solo, tendo as edificações que nele
as construções que nele estejam implantadas. (Só deve ser devem
existirem uma utilidade apenas instrumental ou acessória;
considerar-se prédios rústicos quando se encontrem na propriedade
privada de alguma pessoa singular ou coletiva.)
O prédio é urbano se a sua utilidade estiver principalmente nas
edificações, servindo o solo apenas de seu suporte físico ou de
O prédio urbano é também o solo onde esteja erigido um edifício e logradouro;
ainda o solo que sirva de logradouro a esse edifício, além do edifício A qualificação depende de O fulcro da utilidade económica
propriamente dito. da coisa residir no solo ou na edificação, depende de as edificações
serem instrumentais do gozo do solo, como sucede, por exemplo,
Em qualquer dos casos, o prédio é fundamentalmente o solo.
nos prédios agrícolas ou de o solo ser instrumental do gozo das
Se sobre o solo não existirem edificações, o prédio é rustico; se
edificações, como sucede, por exemplo, nos prédios de escritórios,
existirem edificações, poderá ser rústico ou urbano consoante, no
de habitações ou industriais.
conjunto, sejam económica e funcionalmente dominantes o solo ou
as edificações.
Noção de edifício → (conceito pré-jurídico) – construção que pode
servir para fins diversos (habitação, atividades comerciais ou
industriais, arrecadação de produtos, etc.), constituída
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• Partes Integrantes → todas as coisas móveis que estejam só a possam ter de rendimentos agrícolas, os edifícios diretamente
ligadas materialmente ao prédio com carácter de afetos à produção agrícola, as aguas e as plantações. São urbanos,
permanência residualmente, os que não forem rústicos. Sempre que o prédio
tenha uma parte rústica e outra urbana é unitariamente
As partes integrantes são coisas originariamente
classificado “de acordo com a parte principal”, ou como prédio
móveis e autónomas que foram integradas com carácter de
misto, se nenhuma parte puder ser classificada como principal.
permanência numa coisa imóvel e que passaram, assim, a fazer
parte dela, perdendo a individualidade e autonomia que tinham →Este critério fiscal continua a assentar na mesma base de
antes e deixando de existir como coisas. É o caso, por exemplo de utilidade funcional;
um elevador, ou de uma escada rolante, ou de um equipamento de
Em conformidade com o critério legal, não devem considerar-se
ar condicionado, que sejam montados e integrados num imóvel de
prédios urbanos, mas partes componentes dos prédios rústicos, as
modo permanente. Não obstante poderem vir a ser desmontados e
construções que não tenham autonomia económica – adegas,
separados do imóvel – caso em que recuperam a sua autonomia
celeiros, etc. assim como não devem ser considerados prédios
como coisas móveis -, enquanto estiverem integrados no imóvel,
rústicos os logradouros de prédios urbanos – jardins, pátios,
tornam-se parte dele, são absorvidos por ele, são imobilizados.
quintas, etc. Ao logradouro deve ser atribuída a mesma natureza do
Ex.: motores elétricos, instalações de água e luz, ferros de edifício a que está ligado.
uma ramada, caixilho de um quadro, fechadura de uma porta;
A alienação de partes integrantes não tem de ser feita por escritura pública e
confere apenas ao adquirente até ao momento da separação, um simples direito • Águas
de crédito inoponível a quem adquira, entretanto, sobre o prédio, um direito real
incompatível; Enquanto não forem desintegradas da propriedade superficiária,
por lei ou negócio jurídico, as águas são partes componentes dos
Critério fiscal: classifica como prédios rústicos os terrenos situados respetivos prédios, tal como a terra, as pedras, etc. Quando
fora de um aglomerado urbano que não sejam de classificar como desintegradas, adquirem autonomia e são consideradas móveis.
terrenos para construção, desde que estejam afetos ou tenham
como destino normal uma utilização geradora de rendimentos
agrícolas ou, na falta dessa afetação, não se encontrem construídos
ou disponham apenas de edifícios ou construções de caracter
acessório, sem autonomia económica e de reduzido valor; e ainda
os terrenos, situados dentro de aglomerados urbanos, mas que aí
não possam ter utilização geradora de quaisquer rendimentos ou

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• Coisas simples e complexas; compostas e coletivas a utilidade especifica e autónoma das partes que possa integrar, e
serão coisas simples se assim não se suceder.
Artigo 206º - Coisas Compostas
Coisas compostas / universalidades → as coisas que
1. É havida como coisa composta, ou universalidade de facto, integram na sua unidade uma pluralidade de coisas;
a pluralidade de coisas móveis que, pertencendo à mesma pessoa, resultam de uma agregação de várias coisas simples,
têm um destino unitário. conservando estas a sua individualidade económica; - ex.:
2. As coisas singulares que constituem a universalidade rebanho, biblioteca, etc;
podem ser objeto de relações jurídicas próprias. →Têm um tratamento jurídico unitário, mas cujas partes
integrantes, enquanto não forem separadas, não são
Simples
juridicamente tratadas como coisas.
Coisas Compostas
Complexas
Coisas coletivas → Aquelas que têm um tratamento jurídico
Coletivas unitário como coisas sem que, todavia, as coisas que a
integram deixem de ser também autonomamente tratadas
Coisa simples → as coisas que não podem distinguir-se em mais de
como coisas.
uma coisa; coisas que, segundo os usos da vida e de acordo com um
critério jurídico-económico, são consideradas como uma unidade, A biblioteca é uma coisa coletiva porque pode ter um
entrando assim nas relações do comércio jurídico; - ex.: relógio, tratamento jurídico unitário como coisa, pode ser objeto de compra
anel com pedras preciosas, etc; e venda, ou de legado, no seu conjunto, sem que, no entanto, cada
um dos livros que a compõem deixe de ser tratado autonomamente
Coisas complexas → Uma coisa pode integrar na sua unidade uma
como coisa que pode ser individualmente objeto de relações
pluralidade de coisas sempre que a utilidade que tenha em si
jurídicas. Diferentemente, a estante é composta de tábuas que são
coexista com as diferentes utilidades que tenham as partes que a
originariamente coisas autónomas que perdem a autonomia
integram; ex.: uma máquina que tem uma utilidade própria unitária
quando são integradas na estante, mas podem recuperá-la quando
no seu conjunto de muitas peças, sem que, no entanto, cada uma
dela sejam desmontadas.
das suas peças deixe de ter a sua utilidade específica. Com a
utilidade global do conjunto que é maquina coexistem as suas
utilidades especificas de cada uma das suas peças. → A máquina é
No artigo 206º, a distinção é feita entre coisas singulares e
uma coisa complexa. As peças da máquina, por sua vez, poderão ser
universalidades (coisas compostas).
também coisas complexas, se com a sua utilidade própria coexistir
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As universalidades de facto são coisas complexas coletivas. Têm um As coisas fungíveis quando são objeto de relações jurídicas,
tratamento jurídico individual autónomo, sem prejuízo da podem ser substituídas, não sendo verdadeiramente importante a
individualidade jurídica dos seus componentes. (ex.: rebanhos, que sua identidade concreta.
podem ser transacionados e reivindicados como um todo, sem
Ex.: quando se compra uma
prejuízo da autonomia e individualidade jurídica de cada um dos
dúzia de cadernos sem que seja
animais que o compõem).
importante se se trata deste ou
≠ universalidade de direito → não são bens jurídicos nem coisas, daquele caderno, ou vinte litros
mas antes formas especiais de tratamento globalizado de situações de gasolina.
jurídicas – não desempenham qualquer função económica própria,
mas a lei unifica para certos efeitos jurídicos; (ex.: herança – o
herdeiro pode invocar um direito único sobre todo o acervo A moeda é a mais fungível das coisas, embora quando usada fora da
hereditário, independente e distinto dos que lhe cabem sobre os sua função monetária, como objeto de coleção, por exemplo, possa
vários elementos componentes. deixar de o ser.
Coisas coletivas em sentido estrito → visa o conjunto e não os Quando se paga uma quantia em dinheiro, é
elementos isoladamente considerados (ex.: o fato de homem/ par indiferente a identidade concreta das notas e moedas usadas.
de sapatos) Quando, porém, um colecionador adquire uma moeda rara, já a sua
identidade concreta é determinante e a coisa é, então, infungível,
Coisas fungíveis e infungíveis porque já não é indiferente que se trate daquela ou de outra moeda
Artigo 207º (Coisas fungíveis) e não é admissível a livre substituição.

São fungíveis as coisas que se determinem pelo seu género, →A mesma coisa pode ser fungível ou infungível consoante o
qualidade e quantidade, quando constituam objeto de relações negócio realizado;
jurídicas. As coisas fungíveis quando constituem objeto de obrigações dão
São fungíveis as coisas que intervêm nas relações jurídicas não in lugar às chamadas obrigações genéricas – artigo 539º e seguintes;
specie, isto é, como individualmente determinadas, mas in genere,
isto é, enquanto identificadas somente através de certas notas
genéricas (mais ou menos precisas) e da indicação duma
quantidade, a verificar por meio de contagem, pesagem ou medição.

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Coisas consumíveis e inconsumíveis As coisas consumíveis ao serem consumidas extinguem-se
como coisas, ainda que, numa perspetiva puramente física ou
Artigo 208º (coisas consumíveis) química, a sua matéria possa continuar a existir naquelas outras
São consumíveis as coisas cujo uso regular importa a sua coisas a que vieram a dar origem.
destruição ou a sua alienação.

O uso regular a que se refere a lei, é o uso que à coisa é dado Coisas divisíveis e indivisíveis
como bem, isto é, como meio próprio para a satisfação da
necessidade ou para a persecução do fim que é próprio da sua Artigo 209º (coisas divisíveis)
utilidade.
São divisíveis as coisas que podem ser fracionadas sem alteração da
Um livro é uma coisa não consumível, porque a sua leitura não sua substância, diminuição de valor ou prejuízo para o uso a que de
causa a sai destruição ou alienação. → é verdade que um livro pode destinam.
ser utilizado para acender uma lareira, mas não é essa a utilidade
O critério de divisibilidade jurídica das coisas assenta em
especifica do livro como bem jurídico. Do mesmo modo uma vela é
três fatores: a substância, o valor e o uso.
consumida ao ser utilizada na sua utilidade própria de iluminar,
embora possa deixar de o ser se for simplesmente utilizada como
objeto de decoração.
Só podem ser tidas como divisíveis juridicamente as coisas que
Uso regular também se refere a: para um livreiro o uso possam ser cindidas em partes, sem que percam a sua substância,
regular dos livros não é a sua leitura mas sim a sua venda, ou seja a sem que se reduza o seu valor e sem que o seu uso próprio seja
sua perda para o património do livreiro → neste caso o livro já se prejudicado. → se faltar uma destas características, a coisa é
trata de uma coisa consumível; juridicamente tida como indivisível
Há coisas consumíveis que perdem a sua existência e se
extinguem ao serem consumidas, como sucede com os
Ex.: Um avião deve ser classificado como coisa indivisível, embora
combustíveis, mas também há que, sem perderem a sua existência
seja desmontável num grande número de peças, um vez que, se for
física, são integradas noutras, ou são transformadas ou modificadas
dividido em asas e motores, deixa de poder voar e perde
em termos tais que perdem a sua individualidade e autonomia
consequentemente a sua utilidade específica e a sua substância
como coisas – é o caso de matérias primas utilizadas na indústria
como avião.
transformadora;

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A indivisibilidade por ser natural ou substancial, como será Coisas principais e acessórias
o caso de um quadro a óleo, ou legal, como será o caso de um
terreno rústico com uma área que, depois de dividida ficasse Artigo 210º (coisas acessórias)
inferior à unidade mínima de cultura, ou de um lote de terreno para 1- São coisas acessórias, ou pertenças, as coisas móveis que, não
construção que, segundo o respetivo regime urbanístico, não possa constituindo partes integrantes, estão afetadas por forma
ser dividido. duradoura ao serviço ou ornamentação de uma outra.
2- Os negócios jurídicos que têm por objeto a coisa principal não
Coisas presentes e futuras abrangem, salvo declaração em contrário, as coisas acessórias.

Artigo 211º (coisas futuras) As coisas acessórias são coisas moveis que desempenham uma
função instrumental ou ancilar em relação à coisa principal, que se
São coisas futuras as que não estão em poder do disponente, ou a traduz na afetação ao serviço ou à ornamentação da outra. São
que este não tem direito, ao tempo da declaração negocial. coisas auxiliares de outras. → Esta afetação tem de ser duradoura,
não sendo suficiente que seja instantânea ou acidental (no entanto
A lei considera como coisas futuras as coisas que ainda não
também não pode ter carácter permanente, pois tratar-se-ia então
existem e também as coisas alheias, isto é, aquela que já existem,
de partes integrantes).
mas que a pessoa que delas dispõe não tem ainda em seu poder ou
às quais não tem ainda direito. O preceito contido no nº2 pode suscitar algumas dúvidas.
Contraria a regra legal de que “o acessório segue o principal” – o
Ex.: coisas futuras – ações de uma companhia ainda não emitidas;
adquirente da coisa principal tem, por isso, o interesse em fazer
frutos ainda não produzidos; mercadorias ainda não fabricadas;
constar do contrato quais as pertenças que são abrangidas pelo
Em relação às coisas alheias, estas têm de ser consentidas pelas negócio.
partes, e aplica-se num negócio jurídico o regime relativo a coisas
Ex.: a compra e venda de uma casa de habitação não
futuras e não a bens alheios.
inclui em princípio a respetiva mobília, nem os
equipamentos que lhe não estejam ligados materialmente de
modo permanente, e de entre estes abrange apenas o que for
convencionalmente estipulado.
Nem a letra nem o espírito da lei exigem que a estipulação seja
expressa. Pode resultar de declaração tácita, da interpretação ou da
integração do negócio, do costume, das circunstancias em que foi
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celebrado, ou do tipo legal do contrato que, ainda que não A definição de fruto parte da conceção extrajurídica de fruto
expressamente estipulado, esteja subentendido ou implícito no como algo que é produzido e introduz-lhe duas características
contrato, tal como entendido entre as partes, que algumas delimitadoras: a periodicidade da sua produção e a preservação da
pertenças acompanhem a coisa principal, e que isso seja de tal substância da coisa frutífera.
modo óbvio que as partes nem sequem se tenham dado ao trabalho
Não deve ser tido como fruto tudo o que for necessário para
de o estipular expressamente (ex.: a compra e venda de um par de
manter a integridade da coisa frutífera e a sua capacidade de
sapatilhas é obvio que abrange os respetivos atacadores)
frutificação. – ex.: o resultado da colheita de fruta num pomar só
Em caso de dúvida, porém, o sentido do preceito legal impõe deve ser tido como fruto naquilo em que exceda o custo do
que devam ter-se por excluídas. investimento necessário à sua frutificação seguinte, pelo que devem
ser deduzidas as despesas de frutificação.
Frutos naturais → os produtos da frutificação natural da coisa, que
Coisas frutíferas e infrutíferas: os frutos ocorra em virtude das leis da natureza;
Artigo 212º (Frutos) Frutos civis → os que sejam produzidos de acordo com a lei civil
1- Diz-se fruto de uma coisa tudo o que ela produz periodicamente, Ex.: as uvas colhidas anualmente na vindima e as rendas pagas
sem prejuízo da sua substância. periodicamente pelo arrendatário são respetivamente frutos
2- Os frutos são naturais ou civis; dizem-se naturais os que provêm naturais e frutos civis.
diretamente da coisa, e civis as rendas ou interesses que a coisa Frutos pendentes → estão ainda ligados à coisa frutífera;
produz em consequência de uma relação jurídica.
Frutos separados → que dela foram já desligados, colhidos ou
3- Consideram-se frutos das universalidades de animais as crias consumidos;
não destinadas à substituição das cabeças que por qualquer causa
vieram a faltar, os despojos, e todos os proventos auferidos, ainda
que a título eventual:
Artigo 213º - Partilha de frutos
Artigo 214º - Frutos colhidos prematuramente
Artigo 215º - Restituição de frutos

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As benfeitorias
Artigo 216º (Benfeitorias)
1- Consideram-se benfeitorias todas as despesas feitas para
conservar ou melhorar a coisa.
2- As benfeitorias são necessárias, uteis ou voluptuarias.
3- São benfeitorias necessárias as que têm por fim evitar a perda,
destruição ou deterioração da coisa; úteis as que, não sendo
indispensáveis para a sua conservação, lhe aumentam, todavia, o
valor; voluptuárias as que, não sendo indispensáveis para a sua
conservação nem lhe aumentando o valor, servem apenas para
recreio do benfeitorizante.

São benfeitorias todas e quaisquer despesas feitas com o fim


de conservar e melhorar objetivamente a coisa. Todas as despesas e
ações de conservação, de manutenção e de melhoramento da coisa
parecem estar abrangidas pelo atual conceito legal de benfeitoria.
Benfeitorias necessárias → têm por fim evitar a deterioração da
coisa – benfeitorias sem as quais a coisa sofreria perda, destruição
ou deterioração;
Benfeitorias úteis → aumento do seu valor objetivo – despesas que
não são necessárias, no sentido que têm por fim evitar o prejuízo da
coisa, mas que têm por resultado o aumento do seu valor objetivo
Benfeitorias voluptuarias → despesas que não sejam necessárias
nem aumentem o valor da coisa, mas sirvam apenas para o recreio
do benfeitorizante – o benefício emergente da benfeitoria produz-
se apenas na pessoa do seu autor que tem com elas um prazer
acrescido no desfrute da coisa.

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Pessoas não respeitem a dignidade humana nem a centralidade da pessoa


em todo o Direito.

Capítulo 1 - AS PESSOAS SINGULARES Se se partir da personalidade para a atribuição de direitos e


obrigações, concluir-se-á, ao contrário, que a titularidade de
A PERSONALIDADE JURÍDICA direitos e obrigações é uma simples consequência do facto de se ser
pessoa, e não a sua causa. A personalidade das pessoas não é, então,
A personalidade é uma qualidade: a qualidade de ser pessoa.
algo que possa ser atribuído ou recusado pelo Direito, é algo que
É uma qualidade que o direito se limita a constatar e respeitar e
fica fora do alcance do poder de conformação social do legislador.
que não pode ser ignorada ou recusada. É um dado extrajurídico
Defende as pessoas contra os perigos e contra o condicionamento e
que se impõe ao Direito.
manipulação ou mesmo de recusa da personalidade a pessoas
Personalidade jurídica – suscetibilidade de direitos e obrigações ou individualmente consideradas ou a grupos de pessoas com base em
de situações jurídicas; critérios rácicos ou religiosos. Tem a desvantagem de dificultar a
teorização técnico-jurídica da personalidade coletiva.
Pessoa jurídica – todo o centro de imputação de situações jurídicas
ativas ou passivas, de direitos ou de obrigações; Há que assentar à partida que o Direito não pode deixar de
reconhecer às pessoas humanas a personalidade, assim como não
Se se partir da suscetibilidade de direitos e obrigações para
lhes pode recusar a dignidade humana, ou condicionar, limitar ou
a qualificação de certo ente como pessoa, chegar-se-á à conclusão
excluir a personalidade. Está fora do seu alcance por Direito
de que a personalidade é uma consequência da titularidade de
Natural. Daqui decorre que a suscetibilidade de direitos e
direitos e obrigações. Torna-se fácil admitir que a lei possa criar
obrigações, ou da sua titularidade, ou de ser deles sujeito, é uma
outras “pessoas jurídicas” para além das pessoas humanas, através
consequência da personalidade e não a sua causa. É necessário
do expediente de lhes atribui “ex lege” direitos e obrigações. É o
tratamento jurídico das pessoas como pessoas, isto é, como sujeito
que sucede com as pessoas coletivas. Assim sucede com a
e não como objeto de direitos e deveres. A personalidade jurídica
personalização de agrupamentos de pessoas direcionados a fins
das pessoas coletivas, também chamadas “pessoas jurídicas”: sem
específicos – associações e sociedades – ou com a
constituir uma pura ficção, a personalidade coletiva não deve,
institucionalização de certos fins dotados das massas patrimoniais
contudo, ser colocada no mesmo plano nem ser confundida com a
que lhes são afetadas e até com o próprio Estado, entes estaduais e
personalidade das pessoas humanas, com a qual não tem mais do
seus institutos personalizados. Tem, todavia, o defeito de colocar
que uma analogia.
no mesmo plano a personalidade das pessoas humanas e a as
pessoas coletivas, abrindo caminho para construções jurídicas que

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Direito objetivo e direito subjetivo de personalidade Na tutela subjetiva de personalidade, não se trata de um dever
geral de respeito, mas antes de um direito subjetivo de defender a
A tutela da personalidade humana tem uma vertente
dignidade própria, a exigir o seu respeito e a lançar mão dos meios
objetiva e uma vertente subjetiva. A tutela da personalidade tem a
juridicamente lícitos que sejam necessários, adequados e razoáveis
ver com a coletividade e com a pessoa, com o Estado e com o
para que essa defesa tenha êxito. Estes meios traduzem-se em
cidadão, com o propósito e com os outros. Nela se encontram e
poderes jurídicos que existem na esfera de cada indivíduo, que são
coexistem a tutela objetiva e o direito subjetivo.
inerentes à sua qualidade humana e cujo exercício é livre e depende
da autonomia de cada um.

Constitui o direito objetivo de personalidade a regulação • É disponível e situa-se no âmbito da autonomia privada;
jurídica relativa à defesa da personalidade, consagrada, quer no • O titular pode livremente tolerar as ofensas, prescindir da
direito supranacional, quer na lei constitucional, quer na lei sua defesa, ou mesmo dispor dele gratuita ou onerosamente;
ordinária, cuja ratio se funda em razões de ordem pública e é alheia • Tem o seu conteúdo preenchido por poderes que o seu
à autonomia privada. Tem a ver com a defesa da Humanidade, da titular pode exercer direta e livremente, se assim o desejar,
globalidade de toda a espécie humana, e com a exigência moral de a contra particulares ou contra o Estado, se necessário mesmo
respeitar. em ação direta, sem ficar à mercê da iniciativa e da
disponibilidade dos órgãos do Estado;
• Trata-se de um direito indisponível e situa-se no campo da
heteronomia;
• O titular não tem autonomia no seu exercício, não pode dele
A Lei e a Doutrina referem-se usualmente a um direito subjetivo
prescindir ou dispor;
geral de personalidade e a vários direitos subjetivos especiais de
• Tem como conteúdo um dever cujo garante é o Estado no
personalidade. Os chamados direitos especiais de personalidade
exercício do seu poder-dever de fazer respeitar a Lei e o
são poderes que integram o direito subjetivo de personalidade.
Direito. A sua garantia é desencadeada pela participação à
entidade pública competente que assim toma conhecimento
da violação e deve reagir para a fazer cessar, por mera
Tutela jurídica da personalidade
atuação administrativa ou policial, e, se for caso disso, para a
fazer punir, se constituir crime; O princípio do respeito pela personalidade, como
fundamento primordial do Direito, não pode deixar de beneficiar de
uma tutela jurídica fortíssima. Desde logo, num plano
suprapositivo, constitui um princípio de Direito Natural que se
impõe ao legislador, mesmo ao legislador constitucional, aos juízes,
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Mariana Cadaveira
aos juristas e a toda a gente. Vale mesmo que não conste das dignidade de pessoas ligadas à pessoa coletiva, mas quando assim
constituições e das leis, e, não obstante o que nelas esteja escrito for, do que se trata é do direito de personalidade destas pessoas
em contrário. É uma exigência da ideia de Direito. singulares.
2) Se as pessoas coletivas tivessem direitos de
Artigo 70º (Tutela geral da personalidade) personalidade estes estariam já regidos pelo artigo 70º o que
1- A lei protege os indivíduos contra qualquer ofensa ilícita ou tornaria inútil o artigo 484º.
ameaça de ofensa à sua personalidade física ou moral. 3) O artigo 70º, ao limitar o direito de personalidade ao
“indivíduo” exclui expressamente da sua titularidade as pessoas
2- Independentemente da responsabilidade civil a que haja lugar, a coletivas.
pessoa ameaçada ou ofendida pode requerer as providências
adequadas às circunstâncias do caso, com o fim de evitar a
consumação da ameaça ou atenuar os efeitos da ofensa já cometida. No nº 2 do artigo 70º está estatuído, para além da
responsabilidade civil a que haja lugar, a pessoa ameaçada ou
ofendida “pode requerer as providencias adequadas às
As pessoas coletivas têm direitos de personalidade? circunstâncias do caso, com o fim de evitar a consumação da
A referência a “indivíduos”, na letra do preceito, é intencional e tem ameaça ou atenuar os efeitos da ofensa já cometida”. Desta redação
o sentido de excluir da titularidade de direitos de personalidade as são de retirar 3 linhas de proteção dos direitos de personalidade: a
pessoas coletivas. responsabilidade civil, a tutela preventiva e a atenuação do
possível. Não se colocam todas no mesmo plano: de um lado há a
Alguns autores opinam que também as responsabilidade civil, que tem como finalidade o ressarcimento,
pessoas coletivas têm direito de personalidade e argumentam com em termos patrimoniais, dos danos materiais e morais sofridos
o artigo 484º do CC que comina com a responsabilidade civil a pelas vítimas; de outro lado estão os remedios diretos. De entre
afirmação ou difusão “de facto capaz de prejudicar o crédito ou o estes, há os que são preventivos e com os quais se pretende evitar
bom nome de qualquer pessoa, singular ou coletiva”. que as ameaças se concretizem em ofensas, e os atenuantes que são
Não acompanhamos esta opinião. destinados a atuar após a consumação, ou o início da consumação,
da ofensa e que, na impossibilidade de a prevenir, se destinam a
1) O direito de personalidade tem o seu fundamento ético- reduzir, dentro do possível, os efeitos da ofensa.
ôntico na dignidade humana – e esta não é ofendida pela afirmação
ou difusão de “factos capazes de prejudicar o crédito ou bom nome”
de pessoas coletivas. As pessoas coletivas só sofrem no seu
património. A afirmação ou difusão pode porventura ferir a
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Mariana Cadaveira
A defesa da personalidade das pessoas já falecidas III – cabe tomar posição. O que se protege neste preceito do Código
Civil é objetivamente o respeito pelos mortos, subjetivamente a
Segundo o artigo 71.º, “os direitos de personalidade gozam defesa da inviolabilidade moral dos seus familiares e herdeiros.
igualmente de proteção depois da morte do respetivo titular”. Não se trata de reconhecer ou de tutelar a personalidade dos
Indica nos pontos subsequentes quem tem legitimidade para mortos, que a não têm, mas sim de defender, no âmbito do direito
requerer as providências preventivas ou atenuantes, os familiares subjetivo de personalidade, o direito que os vivos têm a que os seus
ou herdeiros. mortos sejam respeitados. Artigos 70º e 81º, simbiose do direito
II – este preceito parece alargar a tutela da personalidade às objetivo e subjetivo de personalidade. O direito objetivo de
pessoas já falecidas, o que tem suscitado uma notável divergência personalidade tutela o respeito pelos mortos, o direito subjetivo de
de opiniões na Doutrina. personalidade que está na titularidade de pessoas vivas e tem no
seu conteúdo a tutela do respeito devido aos seus mortos. A lei
CAPELO DE SOUSA: “há bens da personalidade física e moral do equipara a familiares os herdeiros. Na concretização haverá que
defunto que continuam a influir no curso social e que, por isso distinguir até onde e em que casos concretos será justo equiparar
mesmo perduram no mundo das relações jurídicas e como tais são herdeiros a familiares. A difamação ou a injúria de um familiar já
autonomamente protegidos”. falecido, a ofensa ao seu nome ou à sua imagem, ou á sua
LEITE DE CAMPOS: sustenta que os “herdeiros do falecido não privacidade, podem afetar gravemente a dignidade dos seus
defendem um interesse próprio (…) mas sim um interesse do parentes ou herdeiros que lhe sobreviverem e podem causar-lhe
defunto”. sofrimento e afronta grave. Por isso, faz parte do conteúdo do
OLIVEIRA ASCENÇAO: a personalidade cessou com a morte e o que direito subjetivo de personalidade de cada um o poder de reagir
se protege agora, é a memória do falecido e, no que a este regime contra ofensas à dignidade dos seus parentes já falecidos. Não deve
jurídico concerne, não se pode já falar de direitos de personalidade, ser negada aos familiares e herdeiros a faculdade de exigir a
o “que terá necessariamente por consequência que a tutela dos indemnização dos danos morais e materiais causados.
direitos de personalidade não é um globo aplicável; só temos estas
restritas providências destinadas a proteger a memória dos Direito de personalidade e autonomia privada
defuntos”.
MOTA PINTO (a perspetiva que nos parece mais adequada): I – o art.º 81 do CC permite a limitação convencional dos direitos de
entende que o regime jurídico do art.º 71 traduz “uma proteção de personalidade, exceto se for “contrária aos princípios da ordem
interesses e direitos de pessoas vivas que seriam afetadas por atos pública”. (art. º280 CC) a limitação da autonomia privada, nesta
ofensivos da memória do falecido”. matéria, não se restringe à ordem pública e resulta também da
contrariedade à lei e aos bons costumes. As limitações, assim
convencionadas, aos direitos de personalidade são sempre
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Mariana Cadaveira
revogáveis. Este regime jurídico reflete uma prática bastante personalidade, ou o seu uso e tutela. De específico têm o regime de
vulgarizada e tida como lícita de regular por negócio jurídico certos revogabilidade contido no n.º2 do artigo 81.º do código civil. O
aspetos da personalidade ou certos direitos de personalidade contrato, sendo livremente revogável pelo titular do direito de
(utilização da imagem e da voz de certas pessoas no domínio da personalidade, é apenas unilateralmente vinculante. só uma das
publicidade mediante remuneração económica). Também a vida partes o pode revogar livremente, e não a outra. Encontra o seu
privada, ou certos aspetos da vida privada. Estas práticas são fundamento na especial natureza dos bens de personalidade. Seja
pacificamente aceites e não suscitam normalmente reparo. Já mais qual for a limitação, o titular do direito de personalidade
controversas são as práticas pelas quais certas pessoas põem em negocialmente limitado mantém sempre e a todo o tempo, a
perigo a integridade física ou psíquica em experiências médicas ou possibilidade de o recuperar. Só assim se pode manter que o titular
científicas. Reprováveis e objetivamente ilícitas nos parecem as do direito de personalidade nunca fica dele rigorosamente privado.
práticas que se traduzem no aviltamento público da dignidade de A sua disponibilidade negocial fica, assim, muito próxima da
pessoas em meios de comunicação social como modo de obtenção tolerância, porque só perdura enquanto o seu titular quiser. Daqui
de lucro e ganho económico. se pode concluir que os negócios de personalidade têm uma
eficácia mais legitimadora e reguladora do que vinculativa. A
II – (arts.º 81, 280) os mais importantes valores da personalidade eficácia vinculativa mantém, porém, toda a sua plenitude naquilo
são indisponíveis. A vida não pode ser trocada por dinheiro, nem é em que o negócio de personalidade vincula a outra parte. A
lícito suicídio. Mas já é lícito que a pessoa se submeta natureza dos negócios de personalidade é pois acentuadamente
voluntariamente a experiências médicas ou científicas das quais diferente da dos comuns negócios patrimoniais. O negócio pode ter
possa resultar perigo para a sua vida. Só quando não forem sido celebrado com ou sem termo. Se não tiver sido estipulado um
contrárias à Lei injuntiva, à Moral e à Ordem Pública, são lícitas as termo e do seu conteúdo não resultar uma limitação temporal para
limitações voluntárias dos direitos de personalidade. Constitui um a sua vigência, qualquer das partes pode, de acordo com as regras
bom exemplo das limitações à autonomia privada, fundadas na gerais, denunciá-lo mediante um pré-aviso razoável. O negócio
ordem pública e na moral, as proibições de disposição de tecido ou pode ser revogado pela parte cujo direito de personalidade é
órgãos de origem humana. É sempre proibida a venda de órgãos ou limitado, sem que tenha de invocar justa causa ou pré-aviso.
de substâncias humanas, e a sua disposição tem sempre de ser
rigorosamente gratuita. Pelas mesmas razões as doações só podem, IV – quando o titular do direito de personalidade revogue
em princípio, ter por objeto substâncias regeneráveis. unilateralmente a sua vinculação, fica obrigado a indemnizar os
prejuízos que com isso cause à outra parte. (n.º 2 do art.º 81). A
III – o artigo 81 do CC permite a celebração de negócios de outra parte não tem mais do que uma expectativa jurídica cuja
personalidade. Devem ser assim designados os negócios jurídicos frustração é suscetível de indemnização. Não pode recorrer a juízo
que tenham por objeto direitos de personalidade, ou bens de para forçar o cumprimento. Mas já na posição inversa o mesmo não
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Mariana Cadaveira
sucede e a posição jurídica do titular do direito limitado contém um os médicos fazer o possível para aliviar o sofrimento da morte. Na
poder, configurado como direito subjetivo, que lhe permite exigir agonia, mas não antes, é lícito ministrar aos moribundos
judicialmente o cumprimento e invocar a exceção de medicamentos que aliviem ou eliminem o sofrimento, ainda que
incumprimento para reter o cumprimento ou para resolver o com o efeito de encurtar a vida. Tal, não deve, porém, ser
contrato. Na fixação da indemnização: o valor fixado não deve ser confundido com a intenção suicida do doente que pede ao médico
de tal modo avultado que impeça, de facto, o exercício do poder de que lhe provoque a morte. O auxílio ao suicídio é lícito e constitui
revogação. De outro modo ficaria frustrado o regime de livre um crime punido pelo artigo 125º do CP, tal como o homicídio a
revogação. A sua expectativa é sempre necessariamente precária. pedido da vítima (artigo 134º).
Diferentemente, porém, é a situação em que o paciente, lúcida e
informada mente, opta por não se submeter a um tratamento ou
pela cessação do mesmo depois de iniciado, decidindo que é tempo
Direito à vida de entregar a sua vida. Ao paciente, desde que esteja lúcido, não
O direito à vida é o mais importante direito de deve ser recusada a decisão sobre o tratamento.
personalidade. Está formalmente consagrado no artigo 24º da CRP
que declara que “a vida humana é inviolável” e que “em caso algum Suicídio → O suicídio é um ato ilícito, embora sem natureza penal. A
haverá pena de morte”. ilicitude decorre da indisponibilidade da vida, tanto pelo próprio
como por outrem. No entanto, não é razoável punir criminalmente
Do direito à vida decorre a ilicitude do suicídio, do auxílio e da aquele que tentou sem êxito suicidar-se. Mas já constitui crime o
instigação ao suicídio e eutanásia. O direito à vida pode ainda incitamento e a ajuda ao suicídio, o homicídio a pedido da vítima e a
suscitar dúvidas relativamente às condições de ilicitude do aborto. própria propaganda do suicídio.

Aborto → Ao contrário de uma convicção muito generalizada, o


Direito à integridade física e psíquica
aborto não é lícito. Apenas não é punível.
O direito à integridade física e psíquica constitui um
Trata-se de uma prática ilícita que constitui crime, mas que, em
paradigma de defesa da personalidade contra ameaças e agressões
certas circunstâncias não é punível (artigos 140º, 141º e 142º do
que se traduzam em lesões da integridade física e psíquica das
CP).
pessoas. Não há razão para separar a defesa da integridade física da
defesa da integridade psíquica. Não existe uma fronteira nítida
Eutanásia → Desde logo, é necessário não confundir as práticas
entre a integridade física e a integridade psíquica, como bens de
médicas de alívio de sofrimento na morte com o encurtamento da
personalidade a defender, e mesmo muitas vezes as ameaças e
vida de doentes incuráveis. O Direito entrega à medicina a
determinação do estado de agonia. Nesse estado, podem e devem
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Mariana Cadaveira
agressões atingem necessariamente quer o físico, quer o psíquico, deliberação camarária pudesse contrariar o direito de
ou atingem um através do outro. personalidade.
O direito de personalidade prevalece sobre o regulamento do ruído.
A integridade física e psíquica são postas em causa sempre
que algo existe que as põe em perigo ou as ofende. Uma simples
A integridade física e psíquica são de uma vastíssima
agressão física (ofensa corporal) constitui lesão da personalidade,
amplidão e abrangem a saúde em geral, que a saúde física, que a
assim como a tortura física ou as práticas de lavagem de cérebro
psíquica. Sempre que a saúde de alguma pessoa esteja ameaçada ou
são violações da integridade física ou psíquica.
agredida, quer por condições ambientais concretas, como por
Também as práticas não intencionalmente dirigidas à lesão da exemplo, lixeiras a céu aberto ou emissões industriais venenosas,
integridade, mas que a tenham como resultado são ilícitas. pode essa pessoa requerer ao Tribunal que adote as providencias
adequadas à prevenção ou cessação da ofensa, ou à atenuação dos
Tal sucede, nomeadamente no caso de ruídos intensos
seus efeitos.
produzidos durante a noite por obras ou estabelecimentos de
diversão, que sejam de molde a impedir o sono, ou com a emissão
de gases de instalações industriais, que sejam nocivos à saúde, ou
de maus cheiros insuportáveis. O Direito à inviolabilidade moral
Os tribunais têm-se pronunciado numa orientação As pessoas são seres morais, que vivem num ambiente
jurisprudencial constante, no sentido de que o ruído que impeça o povoado de valores éticos que são da maior importância, que
sono, constitui violação do direito de personalidade, direito ao integram a sua personalidade e que merecem tutela jurídica,
repouso, ainda que o nível do ruído não exceda os limites fixados designadamente civil. É neste campo que se inserem a autonomia
pelo respetivo Regulamento → o direito de personalidade não pode moral, a liberdade religiosa de convicção e de culto, o respeito pelos
ser restringido por um simples regulamento. A compatibilização mortos e pela sua memória, o respeito pela honra, pela privacidade
jurídica do Regulamento do Ruído com o direito de personalidade e pelo pudor. São valores de maior dignidade cuja defesa não pode
deve ser feita no sentido de que todos devem limitar a emissão de ser encarada como ligeira.
ruídos, em geral, ao estabelecido no Regulamento, mas desse A CRP garante, no seu artigo 41º a liberdade de consciência,
Regulamento não resulta um “direito a fazer ruído” e muito menos de religião e de culto, estatuindo que ninguém pode ser
a licitude do impedimento do repouso alheio. Seria inconcebível discriminado pela sua crença religiosa, ou mesmo perguntado
admitir que um qualquer regulamento do ruído ou mesmo acerca dela. O mesmo preceito garante a objeção de consciência. O
respeito pelos mortos e pela sua memória é também uma
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Mariana Cadaveira
concretização da defesa da inviolabilidade moral dos seus São particularmente gravosas e merecem especial atenção,
familiares. as ofensas à honra cometidas através da comunicação social. É
sabido que a generalidade das pessoas acredita acriticamente nos
No entanto, a liberdade de culto não pode tornar lícitas
que os jornais, rádio e televisão comunicam e como são ineficazes
práticas que agridam direitos de personalidade alheios. Quando
os desmentidos posteriormente publicados.
assim suceda, ocorre um conflito de direitos de personalidade que
deve ser resolvido de acordo com os critérios gerais do artigo 355º A liberdade de imprensa não sobreleva ao direito à honra.
do CC. Apesar de estarem ambos consagrados da CRP como direitos,
liberdades e garantias, a defesa da honra situa-se no âmbito
superior dos direitos de personalidade.
O Direito à honra
O direito à honra é uma das mais importantes E no caso de “figuras públicas”?
concretizações da tutela e do direito de personalidade. A honra é a
dignidade pessoal pertencente à pessoa enquanto tal, e reconhecida O direito à honra e à privacidade podem ter de ser, em
na comunidade em que se insere e em que coabita e convive com as concreto, compatibilizados com o interesse público da revelação de
outras pessoas. Trata-se de um direito inerente à qualidade e à certos factos ou situações. Quando o interesse público o imponha, o
dignidade humana. direito à honra e à privacidade, não podem impedir a revelação
daquilo que for estritamente necessário e apenas do que for
A honra existe numa vertente pessoal (subjetiva) e numa estritamente necessário. Só deve admitir-se a exclusão da ilicitude
vertente social (objetiva). Na primeira, traduz-se no respeito e se e quando se demonstre convincentemente que o interesse
consideração que cada pessoa tem por si própria; na segunda, no público sofreria dano grave e real sem a agressão à honra ou à
respeito e consideração que cada pessoa merece ou de que goza na privacidade da pessoa ofendida.
comunidade a que pertence.
Com estes casos não devem ser confundidos os casos, sem dúvida
A lesão da honra pode não ser total – só em casos ilícitos, em que a ofensa à honra ou a violação da privacidade
excecionais o será – e limitar-se a um seu detrimento. A honra, ocorrem por simples interesse comercial ou de lucro, como sucede
neste caso, é lesada, mas não perdida. As causas de perda ou com os meios de comunicação social sensacionalista que exploram
detrimento da honra são, em temos gerais, ações da autoria da o “voyeurismo” e a curiosidade malsã de algum público, revelando
própria pessoa ou que lhe sejam imputadas, e que sejam a vida privada de pessoas com notoriedade e acusando escândalos
consideradas reprováveis na ordem ética vigente, que ao nível da que possam aumentar audiências.
própria pessoa, que ao nível da sociedade.

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Mariana Cadaveira
O Direito à privacidade intimidade e a privacidade são gradativas e não podem ser
rigidamente distribuídas por prateleiras fixas.
A dignidade da pessoa exige que lhe seja reconhecido um Os limites da intimidade e da privacidade de certas pessoas não são
espaço de privacidade em que possa estar à vontade, ao abrigo da os mesmo em relação a este ou a outro dos seus irmãos, familiares
curiosidade dos outros, sejam eles simplesmente os vizinhos, ou e colegas de trabalho, tendo também relevância a matéria a abordar
sejam as autoridades públicas ou os meios de comunicação social, e outras circunstâncias.
ou sejam quaisquer outras pessoas. A distinção entre as três esferas é formal e introduz fraturas
Esfera da privacidade? Vida doméstica, familiar, sexual, afetiva. artificiais num continuum gradual de intensidade.
Mas, mais do que uma delimitação positiva do âmbito material da Entre o segredo total daquilo que não se conta a ninguém e a
esfera de privacidade, há que proceder à sua delimitação negativa. publicidade daquilo a que se dá abertura total, há uma relação de
polaridade. Não se deve, pois, concluir que isto é íntimo, aquilo é
Tem sido tentado um critério de determinação do conteúdo privado e o resto é público; mas antes que isto é mais íntimo ou
do direito à privacidade assente sobre a distinção entre três esferas mais privado que aquilo, e que esta pessoa é mais íntima que
concêntricas: a esfera da vida íntima, a esfera da vida privada e a aquela.
esfera da vida pública;
Esfera da vida íntima → compreender-se-ia o que de mais secreto O direito à privacidade só pode ser licitamente agredido
existe na vida pessoal, que a pessoa nunca ou quase nunca partilha quando e só quando um interesse público superior o exija, em
com outros, ou que comunga apenas com as pessoas mais próximas termos tais que o contrário possa ser causa de danos gravíssimos
(ex.: sexualidade, saúde, afetividade, nudez, etc.); para a comunidade.
Esfera da vida privada → pode incluir-se aspetos da vida pessoal, já
fora da intimidade, cujo acesso a pessoa permite a pessoas das suas Tal como sucede com o direito à honra, o direito de
relações, mas não a desconhecidos ou ao público; privacidade colide frequentemente com o direito à liberdade de
expressão, principalmente com a liberdade de imprensa. A
Esfera da vida pública → abrangeria tudo o mais, aquilo que, na divulgação e a credibilidade dos meios de comunicação social
vida de relação e na inserção na sociedade, todos têm acesso; agravam a ofensa e tornam-na praticamente irreparável. Cai,
Esta construção permite a ilusão formalista de exatidão e portanto, sobre os meios de comunicação social um dever agravado
rigor na aplicação do direito. No entanto, na questão de de prudência na divulgação de comunicações que possam agredir a
relacionamento da pessoa com os outros em que há que distinguir privacidade.
estratos, não se encontra justificação para que sejam apenas três. A Só uma necessidade imperiosa de interesse público pode tornar
lícita a ofensa. O modo de aferir, em concreto, a ponderação da
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Mariana Cadaveira
licitude da ofensa deve ser feitos no quadro do abuso de direito. A elas um estatuto pessoal degradado seria inconstitucional e
ofensa é lícita quando o interesse público em jogo seja de tal modo colidiria com o princípio da igualdade.
ponderoso e a necessidade da ofensa seja de tal modo imperiosa A compressão da esfera privada que eventualmente possam sofrer
que o exercício do direito à privacidade se torne abusivo, quando só pode fundar-se na publicidade e relevância do interesse em
“exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons questão e nunca pode resultar simplesmente da notoriedade da
costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”. Em casos pessoa.
como estes, há um dever de cidadania e de solidariedade que
sobreleva, em concreto, e que leva a qualificar como egoísta e O artigo 80º do CC consagra um aspeto parcelar do direito à
eticamente insustentável a persistência na defesa da reserva da privacidade, estatuindo que “todos devem guardar reserva sobre a
esfera privada. Tratar-se-ia, então, de abuso do direito à intimidade da vida privada de outrem”. Esta fórmula, na sua letra,
privacidade. só refere a proibição da divulgação do que respeite à vida privada
É ilícita a agressão à privacidade quando o interesse qua a de outrem. No entanto, o direito à privacidade é mais amplo e
impulsionar seja eticamente pouco relevante como o simples proscreve, além da divulgação também a penetração abusiva nesse
interesse de lucro, de tiragem ou de audiência, ou eticamente âmbito. Da fórmula restrita do artigo 80º não pode ser retirada “a
negativo, como o sensacionalismo, a inveja, o ódio, ou os intuitos de contrario” a licitude da invasão da privacidade alheia desde que
difamar ou de injuriar. mantida em reserva. A fórmula restrita tem apenas o efeito de
limitar o âmbito da restrição contida no nº2 do artigo à reserva,
sem que a mesma se aplique à invasão da intimidade da vida
Figuras Públicas: privada alheia. É proibido espreitar para dentro da casa dos outros,
mesmo sem revelar o que aí se vê.
Segundo algumas opiniões, a notoriedade dessas pessoas,
por um lado, tornaria justificada a curiosidade pública sobre a sua
vida privada e, por outro lado, tornaria justificada a curiosidade
pública sobre a sua vida privada e, por outro lado, o facto de a
exposição pública da pessoa ser tolerada ou mesmo O Direito à identidade pessoal e ao nome
intencionalmente procurada implicaria uma espécie de
consentimento objetivo que tornaria lícitas as ofensas à sua I. O artigo 26º da CRP prevê, como direito fundamental, um
privacidade. direito à identidade pessoal. Trata-se de um direito de
No entanto, entendemos que, as figuras públicas têm o personalidade, porque orientado funcionalmente à tutela da
mesmo direito à privacidade que todas as pessoas. Admitir para dignidade humana, através de defesa daquilo que garante a
infungibilidade, a indivisibilidade e a irrepetibilidade de cada uma
das pessoas humanas.
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Mariana Cadaveira
Todas as pessoas têm direito à sua individuação, como pessoa única As cartas-missivas confidenciais
com dignidade própria, não suscetível de ser amalgamada na massa
nem hipostasiada numa transpessoa. As cartas confidenciais inserem-se no âmbito dos bens
protegidos pelo direito à intimidade da vida privada e são
A identidade pessoal inclui também a identidade genética e o abordadas nos artigos 75º a 78º do CC.
património genético, que assumem recentemente imensa
importância perante os ricos nascentes de manipulação genética. O que faz de uma carta um documento confidencial?
O direito à identidade, ao património genético e à integridade À partida, qualquer carta dirigida por uma pessoa a outra, dentro
genética, proscrevem a duplicação da pessoa pela clonagem das regras da cortesia e da educação, não se confunde com uma
integral, a ocultação da paternidade biológica e ofensas possíveis carta aberta ou com uma notícia em jornal de parede.
que incidam sobre o genoma humana.
Existem várias teorias sobre a natureza confidencial das cartas:
Teoria subjetivista → a natureza confidencial de uma carta
II. Nos artigos 72º, 73º e 74º, o CC prevê o direito a ter nome, resultará da vontade do seu autor;
a usa-lo, completo ou abreviado, e a protege-lo contra o uso ilícito no entanto, a proteção da personalidade aplica-se a bens de
que dele seja feito. A pessoa pode, por exemplo, impedir que numa personalidade que o são efetivamente, não está na disponibilidade
obra de ficção seja usado um nome idêntico ou que possa ser das partes o criar bens de personalidade onde, por lei ou pela
confundido com o seu, em moldes que ofendam a sua dignidade. natureza das circunstâncias, eles não existam;
No caso de haver mais do que uma pessoa com o mesmo nome,
incumbe ao tribunal decretar “as providencias que, segundo juízos Teoria objetivista → a confidencialidade resulta do próprio
de equidade, melhor conciliem os interesses em conflito”. Ao nome teor da carta, independentemente da vontade do seu autor – assim,
é equiparado o pseudónimo, quando seja notório. a carta pode ser classificada como confidencial se se tratar de
matéria coberta por segredo profissional (ex.: cartas entre médicos
e pacientes, ou entre advogados e os respetivos clientes); por se
O Direito à imagem tratar de cartas sobre assuntos de intimidade privada (ex.: “cartas
de amor” ou questões de família); carta relativamente a um assunto
O artigo 79º do Código Civil consagra, como direito de que, já anteriormente, emitente e destinatário tivessem acordado
personalidade, o direito à imagem. Trata-se da defesa da pessoa expressa ou tacitamente manter apenas entre si e desde que o
contra a exposição, reprodução ou comercialização do seu retrato, assunto tenha dignidade; → Posição defendida por JAB
sem o seu consentimento.

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Mariana Cadaveira
A confidencialidade cessa (ou nem chega a surgir) quando colida levou ao seu conhecimento, responderá pelos danos patrimoniais e
com outros direitos de personalidade que, em concreto, morais a que der causa, nos termos dos artigos 483º e 496º, ainda
prevaleçam, segundo o regime do artigo 335º. que outra sanção não haja.
→Tratando-se de carta não confidencial, ou confidencial que não
seja objeto de qualquer das medidas previstas no nº2, uma vez
Teoria dos direitos de personalidade → a confidencialidade
falecido o destinatário, ela pertence à sua herança, que tenha, quer
resultará do teor da carta, embora o seu autor, dentro das regras do
não tenha valor patrimonial, ficando assim sujeita, quanto ao seu
Direito de personalidade, possa “interferir”, em certos limites.
destino, às regras próprias da sucessão por morte.
A confidencialidade é objetiva, resultante da lei especial, da boa fé
(obrigação de segredo como dever acessório) ou de estar em causa
um bem de personalidade; A vontade do remetente revela na
Artigo 76.º (Publicação de cartas confidenciais)
decisão de incluir em carta, matéria de personalidade que só a ele
próprio diga respeito e no não abdicar de personalidade; 1. As cartas-missivas confidenciais só podem ser publicadas com o
consentimento do seu autor ou com o suprimento judicial desse
consentimento; mas não há lugar ao suprimento quando se trate de
Artigo 75.º (Cartas-missivas confidenciais) utilizar as cartas como documento literário, histórico ou biográfico.
1. O destinatário de carta-missiva de natureza confidencial deve guardar 2. Depois da morte do autor, a autorização compete às pessoas
reserva sobre o seu conteúdo, não lhe sendo lícito aproveitar os designadas no n.º 2 do artigo 71.º, segundo a ordem nele indicada.
elementos de informação que ela tenha levado ao seu conhecimento.
→Podem ser várias as pessoas com legitimidade para a
2. Morto o destinatário, pode a restituição da carta confidencial ser
autorização, por exemplo, podem existir vários descendentes ou
ordenada pelo tribunal, a requerimento do autor dela ou, se este já tiver
falecido, das pessoas indicadas no n.º 2 do artigo 71.º; pode também ser
vários irmãos. Neste caso parece de exigir o consentimento de
ordenada a destruição da carta, o seu depósito em mão de pessoa idónea todos eles, ou o respetivo suprimento.
ou qualquer outra medida apropriada. →Os termos em que a lei afasta o suprimento judicial do
→A natureza confidencial da carta missiva deve resultar de consentimento mostram que ele só deve ser concedido (nos casos
declaração feita pelo seu autor. Essa declaração não tem de ser em que é admitido) quando um ponderoso interesse, não só de
expressa. Deve aplicar-se, por analogia, o disposto relativamente às ordem moral, como material, o justifique.
declarações negociais (artigo 217º).
→Se o destinatário tiver ilicitamente aproveitado, ou permitido a
terceiro que aproveite os elementos de informação que a carta
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Mariana Cadaveira
Artigo 77.º (Memórias familiares e outros escritos confidenciais) REGIME DO MAIOR ACOMPANHADO
O disposto no artigo anterior é aplicável, com as necessárias adaptações,
Lei 49/2018 de 14 de agosto:
às memórias familiares e pessoais e a outros escritos que tenham carácter
confidencial ou se refiram à intimidade da vida privada. Independentemente da idade, existem pessoas que se
encontram em situações menos aptas para conseguir praticar
→Este preceito vale sobretudo, na prática, para os diários, cadernos
determinados atos.
de memórias ou notas pessoais. A publicação dessas memórias está
sujeita ao regime estabelecido no artigo anterior, sendo necessário Só há incapacidade de exercício de pessoas maiores na
o consentimento ou o suprimento desse consentimento, nos termos medida em que essa incapacidade seja decretada pelo tribunal.
do mesmo artigo.
Artigo 131º - “Estando pendente contra o menor, ao atingir a
→Pode aplicar-se, por analogia, as providencias previstas na parte maioridade, ação de acompanhamento, mantêm -se as
final do nº2 do artigo 75º, quando sérias e ponderosas razões o responsabilidades parentais ou a tutela até ao trânsito em julgado
justifiquem. da respetiva sentença.”
Pessoas sujeitas a interdição - Artigo 138º → O maior
impossibilitado, por razões de saúde, deficiência ou pelo seu
Artigo 78.º (Cartas-missivas não confidenciais)
comportamento, de exercer, plena, pessoal e conscientemente, os
O destinatário de carta não confidencial só pode usar dela em termos que seus direitos ou de, nos mesmos termos, cumprir os seus deveres
não contrariem a expectativa do autor. beneficia das medidas de acompanhamento previstas no CC.
→Pode o autor, embora não atribua natureza confidencial à carta, Tais medidas de acompanhamento visam assegurar o bem-
estabelecer restrições quanto ao seu uso, como, por exemplo, não estar e a recuperação do maior, garantido p pleno exercício dos
permitir a sua publicação senão passado certo tempo, não fazer uso seus direitos e o cumprimento dos seus deveres. Nessa medida,
dela senão passado certo evento, etc. Mas além do respeito por tais regem-se por uma ideia de subsidiariedade. A medida de
limitações expressas, o destinatário deve respeitar a expectativa do acompanhamento só tem lugar quando as finalidades que com ela
autor, isto é, as limitações que resultem implicitamente do se prosseguem não sejam garantidas através dos deveres gerais de
conteúdo e natureza da carta. cooperação e assistência. Procura-se salvaguardar a vontade do
→Relativamente às sanções correspondentes à violação do dever sujeito, em sintonia com s orientações internacionais, de tal moco
imposto ao destinatário, veja-se a nota 2 ao artigo 75º. que, o acompanhamento tem de ser requerido pelo próprio maior
carecido de proteção ou, mediante autorização deste, pelo cônjuge,
pelo unido de facto ou por qualquer parente sucessível. Prescinde-

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Mariana Cadaveira
se, contudo, da autorização do beneficiário, quando este não possa
livre e conscientemente prestá-la ou quando se considere existir
um fundamento atendível. É ainda possível requerer-se o
acompanhamento sem qualquer autorização por iniciativa do
Ministério Público.
Na procura de respeito pela autonomia da pessoa, o
acompanhante, sendo designado judicialmente, é escolhido pelo
acompanhado ou pelo representante legal, e, só na falta de escolha,
é que se passa a ser deferido à pessoa que melhor salvaguarde o
interesse do beneficiário, designadamente uma das previstas nas
diversas alienas do nº2 do artigo 143º.
Nos termos do artigo 143º, nº1, o acompanhamento limita-
se ao necessário. Sendo que, o acompanhante tem os seguintes
poderes: o exercício das responsabilidades parentais ou dos meios
de as suprir; a representação geral ou especial, com indicação
expressa das categorias das categorias de atos para que seja
necessária; administração total ou parcial de bens; autorização
prévia para a prática de determinados atos ou categorias de atos.

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Mariana Cadaveira
Início da personalidade jurídica e o estatuto jurídico do nascituro necessidade de regular os casos em que não chega a haver
nascimento com vida.
Segundo o artigo 66º do CC, a personalidade adquire-se no
momento do nascimento completo e com vida. Os direitos que a lei A limitação do relacionamento com a mãe impede a capacidade de
reconhece aos nascituros dependem do seu nascimento. exercício e dispensa a própria capacidade de gozo, salvo em
matérias que são inerentes à própria qualidade de pessoa, como os
Deve ser feita uma distinção entre nascituros e concepturos. direitos de personalidade, e alguns limitados direitos de conteúdo
A designação nascituro é dada aos que já foram concebidos e têm patrimonial. A pessoa pré-nascida tem a titularidade dos mais
vida no seio da sua mãe, mas ainda não nasceram. Trata-se de uma importantes direitos de personalidade, como o direito a viver, à
situação transitória e limitada pelo tempo. Os concepturos são identidade pessoal e genética, à integridade genética e física. Tem o
aqueles que ainda não foram sequer concebidos. Os concepturos direito a nascer, a não ser ferida fisicamente, a não ser manipulada
não existem, são simples esperanças ou expectativas, no entanto a ou perturbada geneticamente, a ser bem tratada e a receber os
lei permite que lhes sejam destinadas certas atribuições cuidados que a sua condição impõe. A Moral comum assim o exige e
patrimoniais, para o caso de virem a ser gerados. a CRP reconhece-o nos artigos 24º e 25º.
A relevância da pessoa para no Direito é sobretudo interpessoal. A precaridade impõe que se encontre solução jurídica para os casos
Por isso, o nascimento tem uma grande relevância jurídica. Mas em que, após a gestação, o embrião não logra êxito e morre antes
nem por isso a pessoa deixa de existir e de ser relevante para o de nascer. É para estes casos, que o nº2 do artigo 66º estatui que
Direito antes de nascer. A sua natureza humana é a mesma, a sua “os direitos que a lei reconhece aos nascituros dependem do seu
situação biológica continua a evoluir, a sua situação jurídica nascimento”. Se houver nascimento com vida, a pessoa continua a
modifica-se de acordo com a natureza das coisas. vida e a personalidade jurídica que já tinha, a sua capacidade de
gozo torna-se genérica, com as limitações apenas da sua natureza
humana e aquelas que a lei estabelece, e fica numa situação de
Na fase pré-natal, a situação da pessoa tem duas incapacidade de exercício geral, como menor. O nascimento traduz
características especialmente marcantes: o relacionamento pessoal apenas o início da capacidade genérica de gozo.
exclusivo com a mãe e a precariedade.
Se não chegar a nascer com vida, o nascituro é tido pela lei como
O relacionamento pessoal exclusivo com a mãe, com a não tendo chegado a existir. A morte pré-natal não desencadeia a
concomitante ausência de relacionamento social, dispensa muito da sucessão. Os direitos de personalidade extinguem-se com a
complexidade e da riqueza do estatuto jurídico das pessoas já extinção da personalidade. Os direitos patrimoniais e outros que
nascidas; a precariedade da pessoa pré-nascida suscita a seriam suscetíveis de sucessão são extintos retroativamente. Os
direitos que o pré-nascido tenha adquirido por doação ou sucessão,

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Mariana Cadaveira
e cuja administração foi exercida pelos pais ou outros, cessam alargada, no entanto a sua capacidade de exercício continua a ser
retroativamente e tudo se passa como se não tivesse chegado a nula (estatuto jurídico da menoridade).
existir.
Se morrer antes de nascer a sua morte extingue a personalidade,
Parte importante da doutrina portuguesa tem-se mostrado impressionada pela como se sucede com qualquer pessoa. A única diferença encontra-
letra do artigo 66º. Pires de Lima e Antunes Varela consideram que, antes do se na sua esfera jurídica patrimonial. Não é aberta sucessão por sua
nascimento, o nascituro não tem verdadeiramente personalidade e que, assim
morte e os seus direitos patrimoniais extinguem-se.
sendo, “não adquire nenhum direito subjetivo à herança, logo à morte do de
cujus, mas uma simples expectativa ao futuro chamamento. Mota Pinto recusa
admitir a personalidade pré-natal, considera direitos sem sujeito aqueles que são
atribuídos por herança ou doação aos nascituros, até que ocorra o nascimento Concepturos:
completo com vida; todavia admite que o filho peça indemnização por danos
físicos ou psíquicos sofridos no ventre da mãe, causados por um medicamento ou Em relação aos concepturos, sendo que não estão ainda
qualquer acidente. concebidos, não tendo vida humana, não se coloca sequer a
possibilidade de reconhecimento de personalidade ou capacidade.
Mais recentemente tem-se verificado um movimento doutrinário no sentido da
admissão da personalidade do nascituro já concebido. Oliveira Ascensão, embora Quando uma doação é feita a um nascituro, o bem ou o direito
com cautela, admite que o nascituro já concebido tem personalidade jurídica
desde o momento da conceção;
doado entra na sua titularidade desde o tempo da doação. Se ainda
for concepturo, o bem ou direito doado não pode entrar na
É incontestável que o nascituro tem vida e substância titularidade de quem não existe e mantém-se na esfera jurídica do
humana desde a conceção. Daí decorre que tem a qualidade de doador até que, porventura, venha a ser concebido o designado. A
pessoa humana. A personalidade é a qualidade de ser pessoa que o doação deve ser entendida como feita sob condição suspensiva da
Direito se limita a constar, sem ter de reconhecer e sem poder conceção. Se o concepturo não vier a ser concebido, a doação
negar. Assim é inegável a personalidade jurídica do nascituro desde acabará por caducar quando houver a certeza de que se não poderá
a sua conceção. verificar (artigo 275º, nº1). Se vier a haver conceção, o bem ou o
direito doado, entram na titularidade do nascituro, na data em que
O nascimento tem relativamente pouca relevância biológica no
for fixada a conceção, se posterior à doação, ou na data da doação,
nascituro. É no aspeto relacional que esse facto tem um impacto
se posterior à conceção. Se o nascituro, após ter adquirido por
importante: o relacionamento pessoal da criança, que até ao
doação, vier a morrer antes do nascimento, a lei considera que não
nascimento se reduzia à mãe, alarga-se então a outras pessoas. Com
chegou a existir e a doação caduca com eficácia retroativa,
o nascimento, o recém-nascido, que já tinha vida humana e
ficcionando-se que o bem ou o direito doado nunca chegou a deixar
personalidade jurídica, sai do seio da mãe e ingressa na polis. Se o
a titularidade do doador.
nascituro vier a nascer com vida a sua capacidade de gozo é

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Mariana Cadaveira
A lei distingue o regime da administração da herança ou do legado, A verificação da morte compete aos médicos. Se a pessoa estiver
consoante se trate de nascituro ou concepturo: no primeiro caso a doente ou tiver um médico assistente, deverá a morte ser verificada
administração cabe a quem caberia se já tivesse nascido (2240º, por esse médico. Se assim não for, e se a pessoa morrer sem
nº2) ; no segundo é diferida às pessoas de quem seria filho ou, se assistência medica, o óbito será verificado pelo médico “que em
for incapaz, ao seu representante legal (2240º, nº1) primeiro lugar compareça”. O médico deverá lavrar um registo
sumário do óbito, donde deve constar a identificação do falecido, o
O termo da personalidade jurídica: a morte local, data e hora da morte, e ainda a “informação clínica ou
O termo da personalidade jurídica, de acordo com o artigo observações eventualmente úteis”. Quando a pessoa estiver em
68º, ocorre com a morte. A Lei nº 141/99, de 28 de Agosto, rege a situação de “sustentação artificial das funções cárdio-circulatória e
verificação da morte das pessoas. Segundo o seu artigo 2º, “a morte respiratória, a verificação da morte deve ser efetuada pois dois
corresponde à cessação irreversível das funções do tronco médicos”.
cerebral”.
A morte é um facto jurídico com uma enorme relevância. Trata-se Sucede, por vezes, que duas ou mais pessoas morrem
de um dado pré ou extrajurídico, no sentido de que não é a lei que conjuntamente, em circunstancias tais que se torna impossível
determina a morte das pessoas. determinar se alguma delas sobreviveu à outra.
A verificação da morte e a determinação do seu tempo, nem Para resolver este problema o CC adotou a regra da comoriência no
sempre é fácil ou clara. O Direito comete essa tarefa aos médicos e à artigo 68º, nº2 – presumir, em caso de dúvida, que faleceram
Medicina. simultaneamente, sem que uma delas tenha sobrevivido à outra.
O desenvolvimento das técnicas de prolongamento artificial da vida Esta presunção de comoriência pode ser ilidida por prova em
pode suscitar questões de grande delicadeza e dificuldade quanto à contrário, de acordo com o regime geral do artigo 350º, nº2.
determinação do tempo da morte, quando a pessoa se mantém viva
apenas com o auxílio de meios técnicos artificiais. Esta é uma
matéria em que o Direito recebe da ciência e da deontologia A morte é verificada, em princípio, perante o cadáver.
médicas os critérios decisórios. A este propósito, o Código Porém, devido a certas circunstâncias de morte (guerra, atentados
Deontológico da Ordem dos Médicos aceita que cesse o apoio terroristas, catástrofes violentas). Quando não é possível encontrar
técnico à “sobrevida artificial em caso de como irreversível, com ou identificar o cadáver, o desaparecimento tenha ocorrido em
cessação sem regresso da função cerebral”. A verificação da “morte circunstâncias tais “que não permitam duvidar da morte”, o nº3 o
cerebral” e do seu tempo compete ao médico. artigo 68º estatuiu que se tem a pessoa por falecida.

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Mariana Cadaveira
O estatuto jurídico do cadáver Seria violento, contrário aos bons costumes e à sensibilidade
comum, um regime puramente solidarista que impedisse
O cadáver é o corpo humano sem vida, já não é considerado totalmente a recusa, deixando o cadáver, à mercê das necessidades
no sistema jurídico como uma pessoa. Apresenta-se como algo alheias. Mas também a exigência de consentimento prévio iria
sagrado, sendo tratado com respeito muito especial e a sua limitar em demasia, na prática, a disponibilidade de órgãos e de
profanação constitui um crime. Trata-se do prolongamento da tecidos para transplantes, com prejuízo grave para os doentes e
dignidade da pessoa humana depois de morta e a sua sepultura para a investigação científica → A solução encontrada traduz um
constitui muitas vezes o suporte da memória do defunto. meio termo entre o interesse e a liberdade individual, por um lado,
e o bem comum, pelo outro.

A lei nº12/93 de 22 de abril, permite a colheita e


aproveitamento de órgãos e tecidos do cadáver. Entende-se que o
cadáver se destina a desaparecer e, por isso, a colheita dos seus
órgãos ou tecidos não o prejudica na sua dignidade e sacralidade,
desde que utilizados para a cura ou alívio do sofrimento de outras
pessoas, ou para o avanço do conhecimento humano que se venha a
traduzir na melhoria da possibilidade de cura ou alívio do
sofrimento.
Um dos grandes problemas implicados pela colheita e
aproveitamento dos órgãos prende-se com o regime do
consentimento.
A lei portuguesa optou pela seguinte solução:
dispensa o consentimento expresso, mas permite que
a pessoa, em vida, recuse expressamente a colheita e
aproveitamento dos seus órgãos e tecidos → “são
considerados como potenciais doadores post mortem
todos os cidadãos nacionais e os apátridas e
estrangeiros residentes em Portugal que não tenham
manifestado junto do Ministério da Saúde a sua
qualidade de não doadores”;
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Mariana Cadaveira
A capacidade jurídica Uma dada pessoa pode ser titular de um direito ou de uma situação
jurídica e, não obstante essa titularidade, não poder agir sobre eles
Artigo 67º → A capacidade jurídica é a suscetibilidade de ser pessoal e livremente. Tal sucede no caso dos menores, dos
titular de situações ou posições jurídicas ativas ou passivas, de interditos, dos inabilitados que, em virtude de deficiência de
direitos e vinculações. discernimento e de vontade, a lei priva da liberdade de atuação
-Natureza quantitativa (não deve ser confundido com a livre e pessoal.
personalidade, sendo esta de natureza qualitativa); Com o fim de os proteger, a lei estabelece um regime em que os
De acordo com o artigo 69º, ninguém pode renunciar à capacidade, menores e interditos não podem atuar no direito a não ser por
quer no todo, quer em parte. intermediário de representantes legais, e os inabilitados estão
sujeitos, na sua atuação jurídica, à autorização e vigilância de
A noção de capacidade desdobra-se em duas áreas distintas: a da curadores. Sem que a titularidade seja posta em causa, existem,
titularidade e a do exercício pessoal e livre: nestes casos, restrições ao livre e pessoal exercício.
A importância da distinção entre capacidade de gozo e
capacidade de exercício reside também em tornar claro que a
titularidade não fica prejudicada pela insusceptibilidade de
exercício pessoal e livre. Os interditos e os inabilitados não deixam
de ser titulares dos seus direitos, obrigações e situações jurídica, no
Capacidade de Gozo e Capacidade de Exercício entanto, não podem exerce-los de forma pessoal e livre.

Capacidade de gozo (capacidade de direito) → titularidade - Capacidade e Legitimidade


suscetibilidade de ser titular de direitos, de situações jurídicas;
A legitimidade é a particular posição da pessoa perante um
Capacidade de exercício (capacidade de agir) → exercício – concreto interesse ou situação jurídica que lhe permite agir sobre
suscetibilidade que a pessoa tem de exercer pessoal e livremente os eles. Resulta sempre de uma situação privilegiada entre a pessoa
direitos e cumprir as obrigações que estão na sua titularidade, sem que age e os concretos interesses ou situações sobre os quais ela
a intermediação de um representante legal ou o consentimento de está habilitada a agir.
um assistente; é a possibilidade que cada pessoa tem de agir
Em regra, a legitimidade coincide com a titularidade. Nas situações
pessoal e diretamente;
normais, quem tem legitimidade para exercer um direito, para
cumprir um dever, para dispor de um bem ou para agir sobre um

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Mariana Cadaveira
interesse são os seus titulares. No entanto, tal pode não suceder e estaria ligado de forma duradoura, como o estado civil; seria
não haver coincidência entre a titularidade e a legitimidade. objetivo, aquele correspondente à pertença da pessoa a certa
comunidade, grupo, associação, profissão ou posição na sociedade,
como o estatuto profissional ou funcional, estatuto de sócio de certa
A legitimidade não deve ser confundida com a capacidade. associação, etc.
A capacidade está relacionada com a possibilidade de titularidade
Em Direito Civil, é particularmente importante o “estado civil”, que
ou do livre e pessoal exercício de direitos e obrigações por parte da
exprime a condição jurídica da pessoa enquanto maior ou menor,
pessoa e tem a ver com essa mesma pessoa independentemente de
capaz ou incapaz.
um especial relacionamento com situações ou interesses.

Há casos no Direito em que, para além do titular, outras pessoas A esfera jurídica
podem ter legitimidade para agir, como por exemplo no
cumprimento de obrigações, que pode ser feito por terceiro ou a A esfera jurídica trata-se do complexo de direitos e
terceiro. vinculações de que uma determinada pessoa é titular, e que podem
ser muito variáveis de pessoa para pessoa e, na mesma pessoa, em
cada momento.
O Estado, Status ou Estatuto Na esfera jurídica podem distinguir-se dois hemisférios:
esfera jurídica pessoal e esfera jurídica patrimonial.
Chamamos de “estado”, “status” ou “estatuto” à posição
jurídica complexa que integra direitos e deveres, de poderes e A distinção é possível através do critério da patrimonialidade –
vinculações, de situações ativas e passivas, em que a pessoa é Pertencem à esfera jurídica patrimonial as situações, direitos e
investida, por inerência da sua qualidade pessoal de membro de vinculações jurídicas avaliáveis em dinheiro, suscetíveis de
uma comunidade ou grupo e do papel que nela desempenha. O apreciação em valor pecuniário; os demais pertencem à esfera
status designa a pertença da pessoa à comunidade, classe ou grupo jurídica pessoal;
e com os seus demais membros, e ainda a posição que aí assume, ou
o papel que aí desempenha.
Pode distinguir-se um elemento subjetivo – enquanto O Património
condição de uma pessoa – e um elemento objetivo – enquanto O património de uma pessoa corresponde à sua esfera
pertença de uma pessoa a um grupo. Seria, assim, subjetivo, o jurídica patrimonial e compreende todas as situações jurídicas
estatuto pessoal inerente a uma qualidade de certa pessoa, que lhe ativas e passivas de caracter patrimonial que em cada momento se
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Mariana Cadaveira
encontram na titularidade dessa pessoa. Situações jurídicas ativas Domicílio e residência habitual
correspondem a direitos patrimoniais; situações jurídicas passivas
correspondem a obrigações de carácter patrimonial; O domicílio é a sede jurídica das pessoas. A normalidade das
pessoas tem uma localização própria. Localizam-se num espaço
O património é eminentemente variável, sendo que a sua mais ou menos circunscrito, onde fixam a sua vida e onde ancoram
composição vai variando à medida que essa pessoa vai adquirindo geograficamente a sua existência. Para além da localização pessoal
ou alienando bens patrimoniais e vai constituindo e solvendo e efetiva, é importante, para fixar qual a sede jurídica das pessoas, a
dívidas e obrigações. localização que é relevante para o direito.
Não há pessoas sem património, no entanto há pessoa com Domicílio, de carácter normativo, é o local onde o Direito considera
património vazio ou negativo. ser a sede da pessoa, embora esse local possa eventualmente não
Nenhuma pessoa tem mais do que um património – embora a coincidir com a sua efetiva e real localização.
pessoa possa ter o seu património, ou partes dele, sujeitos a Para a fixação desta localização, o Direito não pode ignorar a real
diversos regimes jurídicos, como sucede se esses bens se localização da pessoa, mas não fica completamente preso a essa
encontrarem em diferentes países ou estiverem, por razões de localização, podendo fixar domicílios especiais, para certos efeitos
Direito Internacional Privado, sujeitos a ordens jurídicas diversas, o restritos, em que a real localização da pessoa cede perante outras
património continua a ser um só, porque ele mesmo se define como razões objetivamente e juridicamente relevantes.
o complexo de situações jurídicas patrimoniais, ativas e passivas,
que estão na titularidade de uma pessoa. O artigo 82º estabelece os critérios para a determinação do
domicílio geral das pessoas: a residência habitual – local onde a
A autonomia patrimonial tem o sentido de que pelas pessoa fixa o centro da sua vida pessoal e onde habitualmente
situações passivas de um património respondem apenas as reside, que pode não ser permanente. No caso de ter residências
situações ativas que o integram. Isto significa que, nos casos em que secundárias, o Direito considera relevante a residência principal;
os bens que integram o património não sejam suficientes para no caso da pessoa ter mais do que uma residência habitual, tem-se
satisfazer o respetivo passivo, não poderão os credores recorrer a por domiciliada em qualquer uma delas;
outro património para obter a satisfação do seu crédito.

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Mariana Cadaveira
Domicílio Geral Estatuto jurídico da ausência
Domicílios voluntários ou 89º - 121º
eletivos
Domicílios Especiais
A ausência é a situação de alguém que desaparece e de quem
Domicílios legais ou necessários não existem notícias, não se sabendo se está viva ou morta, e que
deixou bens que carecem de administração. Tem que haver a
necessidade de administração dos bens e, não ter deixado
representante legal ou procurador.
De entre os domicílios especiais, o CC refere no artigo 83º, refere o A existência de uma massa de bens carente de
domicílio profissional, que corresponde ao lugar onde a profissão é administração, na titularidade de alguém que desapareceu e se não
exercida. Se tiver mais do que uma profissão, considera-se sabe se está vivo ou morto, constitui fator de perturbação e de
domiciliada em cada um desses locais, no que respeita às situações potencial perigo. Perigo para os bens do ausente e perigo para a paz
e relações jurídicas respetivas. pública que pode ser perturbada por apetências ou cobiças
O domicílio eletivo é um domicílio convencional que as partes fixam eventualmente geradoras de conflito.
para o efeito de determinados negócios. A finalidade que funda o regime da ausência e que orienta as
soluções legais são a defesa da paz pública e a proteção do
património do ausente e dos interesses dos seus sucessores.

No estatuto jurídico da ausência há 3 fases diferentes que são e


tendencialmente sequenciais (mas podem não ser), em que o
interesse dominante se vai transferido da defesa do interesse do
ausente, na perspetiva da sua sobrevivência e do seu regresso, para
o interesse dos seus sucessores, na expectativa de que já não
sobreviva.

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Mariana Cadaveira
o Curadoria Provisória Legitimação – artigo 91º:
A lei é muito liberal no que respeita à legitimidade para requerer, a
Existem três requisitos para a instituição da curadoria provisória: instituição da curadoria. A intervenção autónoma do MP ao
• O desaparecimento da pessoa, sem que dela haja notícias, requerer a instituição da curadoria provisória é feita na persecução
sem que dele se saiba parte. A falta de notícias não se do interesse da defesa da paz pública que a continuação daquela
restringe com o seu paradeiro e tem também a ver com a massa de bens ao abandono poderia por em perigo.
incerteza sobre a sua morte – a certeza da morte faz
extinguir a ausência (artigo 98º, a)); A quem deve ser deferida a curadoria provisória – artigo 92º:
Mais restrita é já a legitimidade para exercer a função de curador
• Que o ausente não tenha deixado representante legal ou provisório. A lei poderia ter adotado a solução de nomear a pessoa
procurador que o queira ou possa representar (artigo 89º, que requereu a instituição. Mas o interesse principal é o interesse
nº2); Se existir um representante do ausente que queira e patrimonial do ausente e, em segundo plano, dos seus sucessores e
esteja em condições de prover acerca da administração dos titulares de expectativas legitimas sobre os bens. É dada ao
seus bens, não haverá já a necessidade de fazer intervir o Tribunal a liberdade de escolher com interesse na conservação dos
Tribunal para a nomeação de um curador provisório, que bens. Nessa escolha, o tribunal deve ter como critério as qualidades
seria então supérfluo; concretas dessas pessoas eu as tornem particularmente elegíveis
para o desempenho dessa função, mas sempre na perspetiva do
• Que algum interessado ou o Ministério Público → A interesse do ausente e na expectativa de que venha a regressar e a
instituição da curadoria provisória não é automática e a retomar a administração dos seus bens.
simples ausência sem notícias, ainda que existindo bens
carentes de administração não determina por si só a
intervenção do Tribunal. É sempre necessário que um Relação dos bens e Caução – artigo 93º:
interessado ou o MP tomem a iniciativa de assim requerer Antes de entregar os bens do ausente à administração do
ao Tribunal. Se não o fizerem a situação mantem-se e os curador provisório, o Tribunal procede à sua relacionação e fixa
bens continuam por administrar. uma caução que este deve prestar. Se ele não prestar a caução
fixada pelo Tribunal será substituído. Só em casos de urgência isto
pode não acontecer.

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Mariana Cadaveira
Direitos e obrigações do curador provisório – artigo 94º: o Curadoria Definitiva
O curador deve agir em defesa do ausente quando este seja
demandado, mas ativamente só poderá propor ações e requer Embora se trate de uma segunda fase do regime jurídico da
providências cautelares urgentes, que não possam ser proteladas ausência, não pressupõe que tenha sido antes instituída a curadoria
sem detrimento dos interesses postos a seu cargo. provisória.
Os requisitos de instauração da curadoria definitiva são os
Prestação de contas – artigo 95º mesmo, com apenas uma diferença:
Tem o dever de prestar contas da sua gestão, anualmente e sempre • Qua a situação de ausência sem notícias dure há 2 anos, se o
que lhe forem pedidas pelo Tribunal; ausente não tiver deixado representante legal ou
procurador, ou há 5 anos no caso contrário;
Remuneração do curador – artigo 96º
Tem o direito a uma remuneração de 10% da receita líquida
realizada; Legitimidade – artigo 100º:
No que diz respeito à legitimidade a lei já é mais exigente.
Substituição – artigo 97º A legitimidade é restrita ao cônjuge não separado de pessoas e
Pode ser sempre substituído a requerimento do MP ou de qualquer bens, aos herdeiros do ausente, a “todos os que tiverem sobre os
interessado sempre que a permanência no cargo se mostre bens do ausente direito dependente da condição da sua morte” e ao
inconveniente. Ministério Público.

→A curadoria provisória cessa, segundo o artigo 98º, quando o A curadoria definitiva acarreta a abertura provisória da
ausente regressar, quando este providenciar acerca da sucessão do ausente. Não se trata ainda de presumir a sua morte,
administração dos seus bens ou quando surgir alguém com poderes mas de antecipar de algum modo os seus efeitos patrimoniais. São
de representação suficientes, quando seja instaurada a curadoria abertos os testamentos do ausente, se existirem, e os seus bens são
definitiva ou quando haja a certeza da sua morte. entregues aos herdeiros e legatários que a eles teriam direito em
caso da morte do ausente.

São tidos como curadores definitivos aqueles a quem os


bens do ausente tiveram sido entregues, não havendo agora
unidade na administração. Os bens do ausente passam a ser
administrados pelas pessoas a quem foram entregues, do que
resulta que a administração é, ou pode ser, plural.
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Mariana Cadaveira
Os poderes dos curadores na administração dos bens que lhes o Morte Presumida
forem entregues são os mesmos do curador provisório.
A terceira fase do regime jurídico da ausência é a morte
O regime da caução deixa de ser obrigatória, mas pode ser exigida presumida, sendo que também não é pressuposto que antes do
pelo Tribunal. seu decretamento tenham sido instituídas as fases anteriores.
A curador passa a ter direito à totalidade dos frutos dos bens que A morte presumida é decretada quando se verifiquem os
tiver recebido, devendo, todavia, aqueles que não sejam requisitos da ausência e subsista um património que necessite
ascendentes, discedentes ou cônjuges do ausente reservar para este de ser administrado: passados 10 anos sobre as últimas
um terço do respetivo rendimento líquido. notícias; ou apenas 5 anos se o ausente tiver, entretanto
completado 80 anos.
Mantem-se o regresso do ausente e a certeza da sua morte como
causas da cessação de ausência. Não poderá ser presumida a morte do ausente antes de
decorridos 5 anos sobre a data em que este completaria a
A entrega dos bens aos curadores definitivos (98º, d)) tem maioridade se fosse vivo.
correspondência na declaração de morte presumida. Data da morte presumida – fim do dia em que ocorreram as
últimas notícias do ausente.
Enquanto na curadoria provisória se instituía um regime de
administração unitário do património do ausente, no interesse do
próprio ausente e na perspetiva e expectativa do seu regresso, na Os bens do ausente são entregues a título definitivo aos seus
curadoria definitiva é aberta a sucessão do ausente, antecipando- sucessores, já não a título de curadores, mas de verdadeiros
se, assim, a consequência patrimonial da sua morte, no interesse titulares.
dos seus sucessores e na perspetiva e expectativa da morte do Se tiver ocorrido antes o regime de curadoria definitiva, os bens
ausente. Embora se mantenha ainda a esperança do regresso do mantêm-se em poder dos que eram curadores definitivos. A
ausente, a expectativa é agora mais a da sua morte do que a do seu equiparação à morte operada pela declaração de morte
regresso. presumida tem uma exceção importante no que respeita ao
casamento do ausente que, embora em princípio não se extinga,
não impede que o seu conjugue contrarie um novo casamento.

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Mariana Cadaveira
O Regresso do Ausente Em relação à esfera jurídica do ausente:
Segundo o artigo 119º, se o ausente regressar ou dele houver
A presunção de morte não extingue o casamento do ausente, notícias que revelem que está vivo, ser-lhe-á devolvido o seu
embora a lei autorize o seu cônjuge a casar de novo. Se o ausente património no estado em que se encontrar. Em relação aos bens
vier a regressar ou se vier a provar-se que o ausente ainda estava que, entretanto, tenham sido alienados, terá o ausente direito a
vivo quando foi celebrado o segundo casamento do seu cônjuge, receber.
considera-se dissolvido por divórcio o anterior casamento à data da Quando se prove que o óbito do ausente ocorreu em data diferente
declaração de morte presumida. da que tiver sido fixada na sentença de declaração de morte
Se o ausente casado regressar depois de lhe ter sio presumida a presumida, entende-se, segundo o artigo 118º, que têm direito à
morte, o seu casamento mantem-se sem interrupção → de acordo herança aqueles “que naquela data lhe deveriam suceder”.
com as regras gerais, o primeiro casamento deveria prevalecer
sobre o segundo; no entanto, essa solução seria de grande injustiça, Em relação aos direitos que vierem à titularidade do ausente depois
sendo evidente que, pelo menos na normalidade do casos, que, ao do seu desaparecimento sem notícias, não entram efetivamente na
contrair o novo casamento, o cônjuge do ausente cuja morte foi sua titularidade e não virão a entrar na sua sucessão aqueles “que
presumida, cortou espiritual e afetivamente os laços próprios do sejam dependentes da condição da sua existência”. Para efeitos
anterior casamento; sucessórios, o ausente é tido como morte e não assume a posição de
herdeiro ou de legatário nas sucessões em que, se não estivesse
De acordo com o artigo 116º, depois de ser decretada a ausente, seria sucessor, sem prejuízo das regras da representação
morte presumida, o cônjuge do ausente pode contrair novo sucessória.
casamento sem que tenha de ser expressamente dissolvido o
anterior, porque se entende que o extinguiu; mas também pode
suceder que não contrarie novo casamento. Se o ausente vier a
regressar depois de decretada a morte presumida e o seu cônjuge
não tiver contraído novo casamento, mantém-se o seu casamento. O
mesmo regime se aplica se, não obstante o ausente não chegar a
regressar, se provar que ele ainda estava vivo ao tempo em que o
seu cônjuge celebrou o novo casamento.

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Mariana Cadaveira
Incapacidades • Incapacidade dos menores
O Direito Civil não ignora que existem pessoas cujos níveis De acordo com o artigo 122º são menores todos aqueles que
de esclarecimento e de liberdade são inferiores ao normal, ao que é ainda não completaram 18 anos.
comum. São pessoas que, em virtude de circunstâncias várias,
→A lei reconhece a capacidade dos menores praticarem negócios
sofrem deficiências de esclarecimento e de liberdade que as
próprios da vida corrente do menor que impliquem despesas ou
colocam em situações de inferioridade na vida de relação.
disposições de bens de pequena importância.
Essas pessoas são, desde logo, os menores. Mas podem ser também
De acordo com o artigo 123º, os menores carecem, em
os maiores, sendo que a maturidade própria da idade adulta é por
princípio, de capacidade de exercício. Nestes casos não há
vezes perturbada por deficiências que lhes diminuem, ou mesmo os
incapacidade de exercício, mas verdadeira incapacidade de gozo,
privam totalmente da liberdade e esclarecimento exigíveis para
porque se não trata apenas da limitação ao pessoal e livre exercício
uma atuação autónoma no Direito, em consequência de decrepitude
de direito, mas antes à sua titularidade.
da idade, de doenças ou de acidentes sofridos, de deficiências
originárias ou adquiridas, ou mesmo de desvios de carácter e de São exceções à incapacidade de exercício – artigo 127º:
comportamento. O Direito Civil prevê a vigência de regimes
especiais de proteção, que devem ser aplicados quando, por • Os atos de administração ou disposição de bens que o menor
qualquer destas causas, ou eventualmente de outras, as pessoas tenha adquirido pelo seu trabalho → na autorização para o
maiores sofram de deficiências de liberdade e de esclarecimento menor exercer uma profissão está implícita a atribuição da
tais que os coloquem abaixo do padrão comum de normalidade e capacidade de exercício para os respetivos atos;
que seja tais que exijam ou justifiquem uma proteção especial. • Os negócios jurídicos próprios da vida corrente do menor
que, estando ao alcance da sua capacidade natural, só
impliquem despesas ou disposições de vens, de pequena
importância;
• Os negócios jurídicos relativos à profissão, arte ou ofício que
o menor tenha sido autorizado a exercer, ou os praticados
no exercício dessa mesma profissão;

→A incapacidade dos menores cessa quando atingem a maioridade


ou quando são emancipados – artigo 129º;

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Mariana Cadaveira
Artigo 124º - a incapacidade dos menores é suprida pelo Artigo 126º - não poderá ser invocada a anulabilidade do ato, com
poder paternal, pela tutela e pelo regime da administração dos fundamento na menoridade do seu autor, se este, ao praticar o ato
bens. A incapacidade do menor é suprida pela tutela segundo o se tiver feito passar por maior, usando de dolo. → Esta limitação
artigo 1921º, quando os pais tenham falecido, ou estejam inibidos seria aplicada tão só quando a anulação fosse pedida pelo próprio
do poder paternal quanto à regência do filho ou quando sejam menor, não abrangendo os casos em que o requerimento partisse
incógnitos. Nestes casos, o menor é representado pelo tutor. O do seu legal representante ou de um seu herdeiro, nos moldes que
menor não fica privado dos seus direitos, mas não pode exerce-los tal é permitido no artigo 125º. O dolo bloqueia a invocação da
pessoalmente. Tanto no exercício dos direitos como no invalidade, quer pelo próprio menor, quer pelos seus leais
cumprimento das suas obrigações, o menor não age pessoalmente, representantes ou herdeiros.
mas através de outrem, o seu legal representante.
A consequência dos atos praticados pessoalmente pelo Art. 127º CC – O menor pode celebrar:
menor com a violação da sua incapacidade de exercício é a
invalidade, na modalidade da anulabilidade. • Os negócios jurídicos próprios da sua vida corrente, ao alcance da
sua capacidade natural e que impliquem despesas ou disposições
Artigo 125º
de bens de pequena importância a “pequena importância” deve ser
Sem prejuízo do disposto no n.º 2 do artigo 287.º, os negócios jurídicos prudentemente ponderada pelo julgador, de acordo com o caso
celebrados pelo menor podem ser anulados: concreto e, particularmente, com a condição económica do menor
a) A requerimento, conforme os casos, do progenitor que exerça o
em jogo) – art. 127º/1/b
poder paternal, do tutor ou do administrador de bens, desde que a acção seja
• Os negócios jurídicos relativos à profissão, arte ou ofício que
proposta no prazo de um ano a contar do conhecimento que o requerente
haja tido do negócio impugnado, mas nunca depois de o menor atingir a tenha sido autorizado a exercer e os praticados no exercício dessa
maioridade ou ser emancipado, salvo o disposto no artigo 131.º; profissão, arte ou oficio – art. 127º/1/c
b) A requerimento do próprio menor, no prazo de um ano a contar da
sua maioridade ou emancipação; • Os negócios relativos à administração ou disposição de bens que o
c) A requerimento de qualquer herdeiro do menor, no prazo de um menor de dezasseis anos tenha adquirido pelo seu trabalho – art.
ano a contar da morte deste, ocorrida antes de expirar o prazo referido na 127º/1/a
alínea anterior.

2. A anulabilidade é sanável mediante confirmação do menor depois de


atingir a maioridade ou ser emancipado, ou por confirmação do progenitor
que exerça o poder paternal, tutor ou administrador de bens, tratando-se de
ato que algum deles pudesse celebrar como representante do menor.

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Mariana Cadaveira
O poder paternal
Art. 124º - A incapacidade dos menores é suprida pelo poder
paternal e, subsidiariamente, pela tutela.
O poder paternal corresponde a um conjunto multifacetado de
direitos e poderes funcionais, todos a exercer no interesse dos
filhos – art. 1878º/1.
Poder de representação – art. 1881º/1 – o grosso da representação
legal tem a ver com a administração dos bens dos filhos. Além
disso, ela inclui-se na lógica global do poder paternal, como um
todo.
Ler: Arts. 1901º/1; 1902º/1; 1903º; 1904; 1905º; 1908º.
Inibição ou limitação do poder paternal: a inibição opera
automaticamente nas hipóteses do art. 1913º/1 e pode ocorrer por
acção específica a tanto destinada no caso do art. 1915º.
Tutela
A tutela é subsidiária em relação ao poder paternal – art. 124º.
O menor está, obrigatoriamente, sujeito a tutela nos casos do art.
1921º/1.

Regime de administração de bens – meio destinado a suprir o


poder paternal quando os pais estejam excluídos de o fazer ou
quando a entidade que designar tutor indique outra pessoa para o
fazer – art. 1922º.
O tutor tem os direitos e as obrigações dos pais, com determinadas
modificações e restrições – art. 1935º/1; deve exercer o encargo
com a diligência do bom pai de família.

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Mariana Cadaveira

AS PESSOAS COLETIVAS Existe sempre na sua génese e no seu fundamento, direta ou


indiretamente, pessoas humanas, interesses e fins humanos. É a
Prof. Menezes Cordeiro: em Direito, pessoa é um centro de persecução dos interesses e fins das pessoas humanas que justifica
imputação de normas jurídicas. A pessoa é singular, quando esse e funda juridicamente a sua existência. A personalidade coletiva,
centro corresponda a um ser humano; é coletiva em todos os outros embora tenha muito de instrumental, não perde nunca um ligame
casos. com a personalidade humana, ligame este que pode ser mais tenso
ou mais ténue, mas que nunca deixa de existir e de ter um papel
Sabemos que, só a pessoa humana tem dignidade própria
relevante na sua posição no seio do Direito.
originária, autónoma e supra jurídica, que não é criada pelo Direito
e este se limita a reconhecer, tem o dever de respeitar e tem por As pessoas coletivas vão-se progressivamente autonomizando das
missão defender. A personalidade coletiva é algo que não pode ser pessoas que as constituíram e ganham uma individualidade
confundido com a personalidade singular, nem posto no mesmo própria.
plano, embora seja pelo Direito construída à sua imagem e
semelhança. A personalidade coletiva tem uma natureza jurídica As pessoas coletivas representam a interposição de uma nova
análoga à da personalidade singular. Trata-se de realidades subjetividade. É esta nova subjetividade que é socialmente
semelhantes que, enquanto semelhantes, não são iguais, mas constatável e relevante que justifica que, perante o Direito, sejam
também não são completamente diferentes. tidas como pessoas, como sujeitos, como centros de imputação de
situações jurídicas, de direitos e de vinculações. As pessoas
As pessoas coletivas têm em comum com as pessoas humanas coletivas correspondem a algo que existe com autonomia e com
aquilo em que correspondem ao exercício jurídico coletivo de relevância no tecido social, a uma nova subjetividade social e
pessoas humanas – associações e sociedades de pessoas – e à jurídica que é diferente da dos fundadores e da dos seus membros,
autonomização de massas patrimoniais ou à institucionalização de o que é mais do que uma simples técnica jurídica de prossecução de
fins de pessoas humanas – sociedades de capitais e fundações. As interesses grupais das pessoas singulares ou de prossecução e
pessoas coletivas nascem, ou da institucionalização de institucionalização dos seus fins.
agrupamentos de pessoas humanas que através dela prosseguem
organizadamente os seus interesses, ou da institucionalização de
fins de pessoas humanas, que são por seu intermédio A personalidade coletiva é uma criação do Direito que se traduz na
autonomizados, dotados de meios e prosseguidos, ou da criação de uma nova subjetividade jurídica diferente da dos seus
autodeterminação de massas patrimoniais de pessoas humanas que fundadores, da dos seus membros, da dos seus beneficiários, da dos
são afetadas à persecução de fins humanos. titulares dos seus órgãos e da de terceiros, sem deixar contudo de ter
a sua razão de ser na prossecução, mais próxima ou mais

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Mariana Cadaveira

O Substrato, a organização e o reconhecimento das pessoas coletivas obtenham por si próprias. Estes bens constituem o
património da pessoa coletiva.
coletivas Quando percam o seu património, as pessoas coletivas extinguem-
se por falência.

Substrato: a personalidade coletiva é atribuída pelo Direito perante Elemento teleológico → todas as pessoas coletivas são
a verificação do respetivo substrato. O substrato é a realidade constituídas para a prossecução de fins, que são os fins sociais.
social constituído por um complexo de realidade que têm de ser As fundações têm necessariamente fins de interesse social e as
reunidas e que se traduzem em 3 elementos: pessoas (elemento associações fins não lucrativos. Em todas as pessoas coletivas, é o
pessoal), bens (elemento patrimonial) e fins (elemento elemento teleológico do seu substrato, o fim social, que determina a
teleológico). Os elementos do substrato não devem ser encarados sua atuação.
separados uns dos outros, mas antes integrados entre si.
Reconhecimento → reunido o substrato, as pessoas coletivas são
Elemento pessoal → As pessoas desempenham um papel reconhecidas como tais.
importante em todas as pessoas coletivas;
Nas fundações o elemento pessoal do substrato concentra-se na
pessoa do fundador que institui a pessoa coletiva e lhe fixa o fim
que esta prosseguirá. As fundações não têm sócios, nem associados, A Tipicidade das Pessoas Coletivas
e o papel dos fundadores, resume-se, em princípio, ao ato da
fundação. Não é admitida a constituição de pessoas coletivas atípicas,
Nas associações o elemento pessoal já assume uma importância mistas ou de outros tipos: apenas podem ser constituídas pessoas
amais marcante e integra as pessoas dos fundadores e bem assim coletivas dos tipos expressamente previstos na lei → regime de
dos associados que venham a ingressar na associação tipicidade taxativa fechada.
posteriormente à sua constituição e que regem os destinos da
pessoa coletiva durante toda a sua vida. Os tipos legais de pessoas coletivas têm alguma elasticidade.
Quer isto dizer que, é ainda ilícito estipular com alguma amplitude,
Elemento patrimonial → as pessoas coletivas carecem de nos respetivos estatutos ou no respetivo contrato social, dentro da
meios para a prossecução dos seus fins. Estes meios são os bens margem de liberdade que a lei deixa à autonomia privada.
que os fundadores as dotam no ato da sua constituição, os que lhes Existe autonomia no que respeita à decisão de criar a pessoa
advenham posteriormente, ou por aumento de capital, ou pela coletiva e de modelar os seus estatutos, com respeito embora pelos
entrada de novos sócios, e ainda aqueles que as próprias pessoas
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Mariana Cadaveira
preceitos injuntivos da lei, e com a limitação de que a constituição Mas, no âmbito do exercício jurídico existem limitações
das fundações está sujeita à anuência da autoridade administrativa importantes decorrentes da natureza das coisas → excetua-se à
no que respeita ao fim social e à suficiência dos meios. Mas a capacidade de exercício das pessoas coletivas a titularidade de
autonomia não abrange, nem a criação de novos tipos de pessoas situações jurídicas que sejam inseparáveis da personalidade
coletivas, nem a constituição de pessoa coletivas atípicas. As singular;
pessoas coletivas podem desviar-se em relação ao cerne do tipo, se
As pessoas coletivas não têm copo, nem sentidos,
que, todavia, deixem de ser típicas e sem violar o princípio da
nem sentimentos, etc. Não têm por isso as pessoas coletivas
tipicidade.
capacidade de gozo para a titularidade de situações e posições
jurídicas que pressuponham a qualidade humana – ex.: casamento,
perfilhação, adoção, feitura de um testamento.
Capacidade de gozo das pessoas coletivas
A capacidade de gozo das pessoas coletivas é, em princípio,
genérica – artigo 160º, nº1: O Fim e o Objeto Social das Pessoas Coletivas
“1. A capacidade das pessoas coletivas abrange todos os direitos e O fim é o objetivo que desencadeia a ação do agente e que,
obrigações necessários ou convenientes à prossecução dos seus por isso, está imanente nessa ação. É o fim social que orienta a vida
fins”. das pessoas coletivas e que torna compreensíveis e juridicamente
valoráveis as suas ações.
Não se trata de uma limitação à capacidade de gozo – Não há pessoas coletivas que não tenham um fim próprio.
dela não resulta uma inibição da titularidade de
certas situações ou posições jurídicas típicas, de O objeto social é o abito de atividade que a pessoa coletiva se
certos direitos ou obrigações; → estes atos podem propõe desenvolver a título principal para prosseguir o seu fim
afastar-se, quanto ao objeto, dos fins da pessoa (ex.: o fim de realizar lucro pelo exercício de atividade bancária). O
coletivas, como por exemplo a organização de uma objeto social concretiza o sentido do fim social.
festa com o fim de angariar fundos para a
coletividade; O fim e o objetivo social têm grande importância pata a
determinação do âmbito da atividade principal da pessoa coletiva.
O artigo 160º reconhece às pessoas coletivas a capacidade jurídica
correspondente aos direitos e obrigações necessários e
convenientes à prossecução dos seus fins, excetuando aqueles que
sejam vedados pela lei ou aqueles que sejam inseparáveis da
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Mariana Cadaveira
pessoa singular. Só devem, pois, ser considerados fora desta área os ÓRGÃO DELIBERATIVO → Assembleia Geral
atos ou atividades que não sejam sequer instrumentais, que não
• É composta pelos sócios, em princípio a sua totalidade;
sejam sequer úteis para a prossecução do objeto social, isto é, dos
quais não resulte, nem sequer indireta ou reflexamente, algum • Tem como função principal a formação da vontade funcional
contributo, mesmo que apenas coadjuvante, para a realização do da pessoa coletiva, a eleição de titulares de órgãos sociais, a
objeto social. fiscalização da gestão e a aprovação das contas;
• Geralmente têm competência exclusiva para deliberar sobre
alterações de estatutos, modificação e dissolução da pessoa
Capacidade de Exercício ou Organicidade nas Pessoas Coletivas
coletiva;
As pessoas coletivas não têm consciência nem vontade
• As fundações não têm AG porque não têm sócios;
próprias. A formação e a expressão da vontade funcional necessita
do suporte de órgãos, sendo esta necessidade própria da sua
natureza. Se o substrato constitui a substância da pessoa coletiva, a
ÓRGÃO EXECUTIVO → Conselho de administração/Direção
organização é a sua forma. Não se deve falar assim de uma
incapacidade genérica de exercício das pessoas coletivas. • Tem como principal função a gestão da pessoa coletiva e a
sua atuação ou “representação externa”;
• Os seus membros são eleitos pela AG de entre os sócios ou
Organização das Pessoas Coletivas terceiros;
• Nas fundações que não têm AG, os membros são nomeados
A organização da pessoa coletiva compreende os seus
no ato de instituição ou pela entidade pública competente
órgãos, através dos quais forma a sua vontade funcional, atua
pelo seu reconhecimento;
exteriormente, controla o seu funcionamento.
O órgão de uma pessoa coletiva pode ser definido como “um
centro institucionalizado de poderes funcionais a exercer por um ÓRGÃO DE FISCALIZAÇÃO → Conselho Fiscal
indivíduo ou por um colégio de indivíduos que nele sejam providos,
• Tem como principais funções fiscalizar a gestão e as contas da
com o objetivo de exprimir a vontade juridicamente imputável à
pessoa coletiva;
pessoa coletiva”.

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Mariana Cadaveira
Os órgãos das pessoas coletivas têm funções e campos de atuação quer dizer, o fim social em sentido concreto, não tem a ver com o
próprios que se exprimem nas suas diferentes competências. A âmbito da capacidade de gozo das pessoas coletivas, mas antes com
competência de certo órgão corresponde ao âmbito de atuação que a legitimidade da pessoa coletiva para agir sobre bens, interesses e
lhe é próprio, designa matérias sobre as quais ele tem legitimidade situações jurídicas que sejam alheias a esse mesmo fim. A questão
para agir e integra os poderes funcionais que a lei e os estatutos lhe que suscita não é de incapacidade, mas antes de ilegitimidade. A
conferem para a prossecução dos fins sociais. A separação de regra tem uma grande elasticidade. Não se restringe aos atos e
competência entre os órgãos resulta do princípio da separação de atividades que sejam rigorosamente necessários à prossecução do
poderes. No entanto, há casos em que a competência é, em fim social e alarga-se também aos que sejam simplesmente
princípio, de um órgão, mas pode pertencer a outro por delegação convenientes, que sejam coadjuvantes, auxiliares ou que, para tal,
do primeiro. Podem surgir conflitos de competência entre órgãos, possam contribuir numa maior ou menor medida. Na grande
mas trata-se de uma questão de foro interno. maioria das pessoas coletivas privadas, hoje, o fim e o objeto social
são determinados livremente pelos seus membros e podem por
eles ser modificados também livremente. Constituem exceção
praticamente apenas as fundações e outras pessoas coletivas
Os Atos Ultra Vires
sujeitas a regimes especiais de licenciamento, como, por exemplo,
É da conexão entre a pessoa coletiva e o fim social, tal como as instituições financeiras. O artigo 160.º do CC não contém
concretizado pelo objeto social, que decorre o critério de qualquer regra explícita quanto às consequências jurídicas dos atos
legitimidade da sua ação. São legítimos os atos e atividades da praticados ou das atividades exercidas pela pessoa coletiva fora do
pessoa coletiva que são dirigidos à prossecução do seu fim, no campo do que seja necessário ou conveniente à prossecução dos
âmbito do seu objeto social. Estão viciados por ilegitimidade os atos seus fins. Embora a doutrina tradicional opte, sem grande
e atividades das pessoas coletivas que sejam alheios aos seus fins e discussão, pela nulidade dos atos ultra ires, em rigor, tal solução
ou que estejam fora do seu objeto. São atos e atividades ultra vires. não está consagrada no preceito.
A interpretação do artigo 160.º conduz à conclusão de que os
atos praticados pelas pessoas coletivas fora deste âmbito são nulos
por falta de capacidade de gozo, por aplicação conjunta dos artigos Quando o fim e o objeto são fixados por lei ou por órgão do
160.º e 294.º. Estado no exercício de poderes públicos de autoridade, não podem
os membros da pessoa coletiva ou os seus órgãos modificar
A influência do fim e do objeto social sobre o âmbito de ação unilateral nem livremente esses fins e objeto sociais. Assim sucede,
das pessoas coletivas, não deve ser entendida como limitação da entre outros, no caso das fundações, cujo fim e objeto social devem
sua capacidade de gozo, nem deve incidir apenas sobre os seus atos ser apreciados e aprovados pelo Estado (artigo 188.º do CC). Mas
isoladamente considerados. O fim, concretizado pelo objeto social, em regra, a fixação do fim e do objeto social das pessoas coletivas
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Mariana Cadaveira
privadas é livre e está dentro da livre disponibilidade dos real não coincida com o fim estatuário. (Artigos 182.º n.º2 b) e 192.º
fundadores da pessoa coletiva e dos seus órgãos modificá-los mais n.º2 b)). O desvio do fim como causa de extinção das pessoas
tarde. coletivas não está ligado à prática de atos isolados, mas antes à de
atividades a que a pessoa coletiva se dedique com um mínimo de
Nestes casos, os limites à atuação e à titularidade de situações
constância e duração.
jurídicas decorrentes do fim e do objeto social da pessoa coletiva
não são de ordem pública, são de ordem privada e estão ao alcance Na interpretação da lei deve procurar-se um sentido que
das forças da autonomia privada. Ora, se os órgãos das pessoas permita alcançar as soluções mais acertadas e razoáveis. Cominar
coletivas privadas podem, em regra, modificar livremente o seu fim hoje com a nulidade de todos e cada um dos atos jurídicos que a
e objeto, tal significa que não há, em princípio, questões de ordem pessoa coletiva pratique e que, em concreto, sejam tidos como não
pública que afetem o fim e o âmbito de atuação das pessoas necessários ou não convenientes à prossecução do seu fim social
coletivas. A atuação para além do fim e do objeto social terá então a seria totalmente inadequado à vida de relação e gerador de uma
ver exclusivamente com as relações internas da pessoa coletiva e insustentável insegurança no tráfego jurídico. A sanção da
com a tutela de terceiros que com ela contactem e contratem. nulidade, com o seu regime jurídico característico de poder ser
declarada oficiosamente e de poder ser invocada a todo o tempo
Não há que distinguir entre fim e objeto social, tanto o fim
por qualquer interessado, viria obrigar os terceiros, com quem a
como o objeto social são fixados pelos fundadores da pessoa
pessoa coletiva contacta e contrata no quotidiano, a ter de sindicar,
coletiva, seja ela uma fundação, uma associação, uma sociedade
em relação a cada ato da pessoa coletiva, se ele se encontra dentro
comercial, ou outra, e é dos respetivos estatutos que ambos
ou fora do limite necessariamente impreciso da necessidade e, mais
constam. Fim e objeto social não devem ser desintegrados: o objeto
grave ainda, da conveniência à prossecução do fim. Seria
constitui uma precisão do fim social.
demasiado violento e gerador de excessiva insegurança considerar
O desvio do fim constitui fundamento para a dissolução e nulo; onerar os terceiros que contactam e contratam com a pessoa
extinção das pessoas coletivas. É constante, na lei, a consequência coletiva no quotidiano com o risco da eventual declaração de
jurídica do desvio do fim, não enquanto prática isolada deste ou nulidade dos atos da pessoa coletiva, seria uma injustiça violente e
daquele ato, mas como atividade consistente e prolongada. O fim é juridicamente insuportável. Melhor a solução que resulta do n.º4 do
um dos elementos do substrato e a pessoa coletiva não pode artigo 6.º do CSC, que consiste em considerar válido o ato e
sobreviver sem ele. Por isso, a pessoa coletiva extingue-se, quando responsabilizar pela sua prática a pessoa que, em nome da pessoa
o seu fim não possa continuar a ser prosseguido, ou porque se coletiva, o praticou, ou os titulares do órgão que deliberou a sua
esgotou, ou porque se tornou impossível. A mesma consequência prática, se dele resultarem danos para a pessoa coletiva. Isto deve
jurídica é imposta pela lei quando o fim seja prosseguido comunicar-se ao artigo 160.º do CC.
sistematicamente por meios ilícitos ou imorais e quando o seu fim

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Mariana Cadaveira
Deve, contudo, admitir-se que sejam cominados com a sanção A Responsabilidade das Pessoas Coletivas
da nulidade os atos praticados pelos órgãos da pessoa coletiva em
seu nome quando se conclua que a sua prática é contrária à ordem As pessoas coletivas agem e interagem na vida e no
pública. Assim sucederá quando o objeto da pessoa coletiva esteja comércio jurídico como entes social e juridicamente autónomas e
fora da sua disponibilidade, seja fixado por lei ou autorizado ou independentes. O seu agir existe no âmbito da autonomia privada e
aprovado pelo Estado. Também a sanção de nulidade será de tem como inerente a responsabilidade – As pessoas coletivas são
admitir quando a prática do ato seja especialmente vedada por lei. também responsáveis pelos seus atos e pelas consequências do seu
Nestes casos, porém, a nulidade não é consequente de falta de agir.
capacidade de gozo da pessoa coletiva, mas antes de contrariedade a A Doutrina do Direito Civil tem-se debruçado sobre o tema
lei injuntiva ou à ordem pública, do ato praticado (artigo 280.º do da responsabilidade das pessoas coletivas a propósito da velha
CC). discussão da sua capacidade de exercício. O regime da
responsabilidade das pessoas coletivas tem sido utilizado como
argumento para a conclusão sobre se as pessoas coletivas sofrem
A Vinculação das Pessoas Coletivas de uma genérica incapacidade de exercício, sendo então
Tal como sucede no que respeita à questão da validade dos atos necessariamente representadas pelos titulares dos seus órgãos, ou
praticados pelas associações e fundações para além dos respetivos se, ao invés, a organicidade que as caracteriza, dispensa o recurso
objetos sociais, em analogia com o regime das sociedades ao regime da incapacidade de agir. Nesta última alternativa, hoje
comerciais, as limitações de atividades decorrentes do objeto cada vez mais dominante, o órgão pertencente à pessoa coletiva,
social, dos respetivos estatutos e das deliberações dos órgãos das não lhe é terceiro, e, por isso, os atos por ele praticados são
pessoas coletivas só devem ser oponíveis a terceiros que, no caso diretamente imputáveis à pessoa coletiva.
concreto, conheçam ou não devam desconhecer essas limitações, se A questão afigura-se relevante numa perspetiva
entretanto os atos em questão não forem expressa ou tacitamente concetualista. Perante o conceito jurídico de representação, a
assumidos por deliberação dos seus órgãos, e não podendo pessoa coletiva dificilmente poderia ser responsabilizada pelos atos
concluir-se conhecimento dessas limitações a partir da simples praticados e pelos danos causados pelos titulares dos seus órgãos,
publicidade dada por lei aos respetivos estatutos. Tanto na questão considerados como seus representantes. O vínculo de
da vinculação das pessoas coletivas pelos atos praticados para além representação, concetualmente entendido, apenas permitiria a
do objeto social, como na da respetiva validade, esta solução é a que imputação à pessoa coletiva representada dos atos lícitos
melhor respeita o princípio da confiança e da aparência. praticados pelos seus representantes. A própria essência da
representação não permitiria que fossem imputados às pessoas
coletivas os atos ilícitos praticados pelos seus representantes. Eles

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Mariana Cadaveira
seriam juridicamente imputáveis aos representantes que os Esta responsabilidade mantém-se ainda que o comissário tenha
praticassem. cumprido defeituosamente as instruções do comitente ou mesmo
Esta construção seria inadequada e acarretaria injustiças, que tenha intencionalmente violado essas instruções (500º, nº2). O
deixando os terceiros vítimas dos danos limitados a responsabilizar comitente não pode defender-se invocando a violação ou
os titulares dos órgãos das pessoas coletivas, cujo património incumprimento das suas instruções-
poderia ser insuficiente para a indemnização e deixaria incólume a
pessoa coletiva, não obstante ser ela a beneficiária do ato ilícito
danoso. Responsabilidade civil contratual das pessoas coletivas →
800º, nº1 – no incumprimento dos contratos e outras obrigações
Manuel de Andrade conclui que “a exclusão da emergentes do negócio jurídico, são imputáveis à pessoa coletiva os
responsabilidade contratual das pessoas coletivas viria traduzir-se, atos e omissões dos titulares dos seus órgãos;
aliás, num privilégio injustificável”. Sendo hoje as pessoas coletivas,
principalmente as sociedades comerciais, os principais agentes da
vida económica, a concentração da responsabilidade nos titulares
dos órgãos das pessoas coletivas, viria resultar numa terrível
perturbação da economia, já que ninguém lhe concederia crédito
superior à dimensão dos patrimónios pessoais dos titulares dos
seus órgãos. A solução, além de ser eticamente injusta seria
também praticamente nociva.

Responsabilidade civil aquilina →


artigo 165º CC; artigo 6º, nº5 CSC;
artigo 998º, nº1 CC
(sociedades civis simples);

remissão para o artigo 500º CC → quem manda alguém fazer


alguma coisa fica, segundo o artigo 500º, responsável por aquilo
que essa pessoa faça; → a responsabilidade do comitente pelos atos
ou omissões do comissário depende de se verificarem em relação a
este – ao comissário – os pressupostos da responsabilidade civil:
“desde que sobre esse recaia também a obrigação de indemnizar”.
49
Mariana Cadaveira
A Desconsideração da Personalidade Coletiva juridicamente relevantes e o da imputação da responsabilidade
patrimonial. No primeiro caso, é imputado à sociedade o
As pessoas coletivas são juridicamente autónomas em conhecimento ou consciência pelo sócio de certas situações como
relação às pessoas dos seus instituidores ou membros. São sujeitos qualificantes de boa ou má fé. Propõe-se ainda a desconsideração
de direito diferentes. Assim, os atos e situações jurídicas imputadas para solucionar casos de interposição fictícia de pessoas em que o
às pessoas coletivas não podem ser imputadas aos seus sócio oculta a sua intervenção pessoal atrás da pessoa coletiva ou
instituidores ou membros e, vice-versa, os atos e situações jurídicas vice-versa. Em casos como estes, a desconsideração permitiria
imputados aos instituidores e membros das pessoas coletivas não “levantar o véu” da personalidade coletiva de modo a obter a
podem a estas ser imputado. imputação ao verdadeiro ator, fazendo assim prevalecer a realidade
Quando têm autonomia patrimonial perfeita – no caso das sobre a aparência. No segundo caso, é a responsabilidade
associações, fundações as pessoas coletivas permitem a limitação patrimonial da sociedade que é imputada ao sócio, ou vice-versa, de
do risco económico da sua específica atividade. O insucesso modo a evitar a frustração dos créditos quando o património do
económico do empreendimento não se comunica aos instituidores formal devedor se revele insuficiente.
nem aos sócios ou aos membros. A autonomia patrimonial perfeita
que se alcança com o regime da responsabilidade limitada constitui
uma vantagem importantíssima que se traduz em manter o
património pessoal dos instituidores, sócios ou membros da pessoa
coletiva livre e protegido dos credores da pessoa coletiva. Os
instituidores, sócios ou membros da pessoa coletiva perdem apenas
o que nela investiram, mas não mais. Conseguem assim proteger o
seu património pessoal.
A “desconsideração da personalidade coletiva” ocorre
quando, não obstante a separação entre as esferas jurídicas da
pessoa coletiva e dos respetivos sócios, inerente à personalidade
coletiva, o Direito imputa ao sócio a autoria ou a responsabilidade
de atos da pessoa coletiva, ou vice-versa, como se, no caso concreto,
personalidade coletiva não houvesse, sem que por isso, a existência
e a personalidade da pessoa coletiva em causa sejam denegadas. A
desconsideração atua em dois campos principais: o da imputação
subjetiva de conhecimentos, qualidades ou comportamentos
50
Mariana Cadaveira
AS ASSOCIAÇÕES Órgãos:
É composta, pelo menos, por 3 órgãos: a assembleia geral, a
As Associações são pessoas coletivas de tipo corporativo, direção e o conselho fiscal.
com fim não lucrativo1, e estão registadas nos artigos 167º a 184º. A assembleia geral, a direção e o conselho fiscal. A assembleia geral
é o órgão deliberativo por excelência a quem cabe a formação da
vontade interna da associação. É composta pela universalidade dos
Constituição: associados. O órgão coletivo de administração é usualmente
Constituem-se por um negócio jurídico, mais concretamente denominado direção. As suas atribuições e competência são fixados
um contrato, entre os associados fundadores (2 pelo menos), sendo nos estatutos. Cabe-lhe, em geral, a administração e direção da
que o nj está sujeito a uma forma especial - escritura pública – associação e também, salvo preceito em contrário nos estatutos, a
princípio da liberdade de associação (artigo 46º CRP), a constituição sua representação exterior. O órgão coletivo de fiscalização é
de associações é livre. denominado conselho fiscal e compete-lhe, em geral, proceder à
fiscalização da atividade e das contas da associação. Além destes,
Da escritura de constituição da associação deve constar os podem os associados dotar a associação com outros órgãos desde
estatutos da associação (artigo 167º). Na mesma escritura consta o que o façam constar dos respetivos estatutos.
ato constitutivo e por outro lado temos os estatutos, que constam
genericamente do mesmo documento – a escritura pública de Os órgãos das associações funcionam através da tomada de
constituição. deliberações sociais. As deliberações sociais são atos jurídicos não
Publicidade – artigo 168º - o notário que celebra a escritura pública negociais pelos quais a pessoa coletiva forma a sua vontade
tem o dever de comunicar oficiosamente à entidade administrativa funcional. As deliberações sociais têm uma dupla natureza
e ao Ministério Público uma cópia do ato constitutivo, e ainda o consoante são encaradas na perspetiva dos membros do órgão ou
dever de remeter para o jornal oficial um extrato desse ato. Não se na da própria pessoa coletiva. No que concerne aos membros do
trata de um ato praticado pelas partes, mas sim de um dever órgão, as deliberações são um ato plural composto pelos atos de
funcional do notário. cada um dos sócios; as deliberações são um ato plural composto
pelos atos de cada um dos sócios que exprimem o voto. O voto é um
A personalidade coletiva da associação adquire-se com a escritura. ato individual do sócio; as deliberações integram o conjunto dos
votos e nesse sentido são atos plurais. Porém na perspetiva da
associação, a deliberação é um ato unitário imputável à própria
associação. Característico da deliberação social é o princípio
maioritário. Diferentemente dos contratos, que exigem o acordo
entre todos os intervenientes, a deliberação é tomada, em princípio,
51
Mariana Cadaveira
por maioria. Por isso, a discordância de membros do órgão não contrária à OP e, pela mesma razão, não pode manter-se sem se
impede a deliberação desde que se forme uma maioria, não extinguir aquela associação cuja existência se tenha posteriormente
obstante essa discordância que se exprime em votos contrários. tornado contrária à OP. É dos limites da autonomia privada que se
Como atos jurídicos, as deliberações sociais podem ser viciadas e trata. Se a constituição das associações, e bem assim das demais
sofrer de invalidade, ineficácia, ou mesmo de inexistência. A pessoas coletivas, pressupõe a existência do respeito substrato, a
invalidade das deliberações sociais decorre da sua contrariedade à falta desse substrato determina a sua extinção. Extinta a associação,
lei e aos estatutos e traduz-se em anulabilidade. há que prover ao destino dos seus bens, segundo o artigo 166.º do
CC.
Modificação: O artigo 182º é taxativo – não pode haver extinção das
associações para além dos casos previstos no artigo 182º. Porquê?
O artigo 175º, nº3, dispõe que as deliberações sobre as Porque a extinção de uma associação implica a extinção de certos
alterações dos estatutos exigem o voto favorável de ¾ dos direitos, nomeadamente de direitos de sócios. Por outro lado, a
associados presentes. Resulta do disposto que a competência para a extinção de associações, se fosse possível em casos não previstos na
alteração dos estatutos é dos associados, que se reúnem para o lei, poderia colocar em causa a liberdade de associação.
efeito em Assembleia Geral.

1 – O artigo 157º levante um problema sobre o âmbito das associações.


Extinção: Diz o CC que os preceitos seguintes se aplicam às associações que não
tenham por fim o lucro económico dos associados – Podemos retirar que
As associações extinguem-se nos casos previstos no artigo a associação em si mesma pode praticar atividades lucrativas, podendo até
182.º do CC. A extinção da pessoa coletiva decorre da autonomia mesmo praticar atos de comércio, não há qualquer impedimento no artigo.
Por outro lado, também se retira que a associação pode visar a obtenção
privada e da extinção do seu substrato ou de elementos do
de lucro para terceiros. Então o que é que o art.º 157.º não admite que
substrato. Funda-se na autonomia privada a extinção por
seja o fim de uma associação? Não admite é que essa associação se destine
deliberação da assembleia geral, pelo decurso do prazo ou outra a repartir os lucros que obtenha pelos seus associados, em função da
causa extintiva prevista nos estatutos. O princípio da liberdade de entrada de cada um. Com isto, quer-se dizer que está excluído do art.º
associação implica a liberdade de extinção da associação. Nestes 157.º que a associação seja constituída para obter lucros e reparti-los
casos também é da autonomia privada que se trata. As associações pelos seus associados de acordo com a sua participação económica na
são constituídas, de acordo com o princípio da liberdade de associação. Mas já não está excluído que a associação se constitua para
associação, por ato de autonomia privada. Esta, porém, encontra obter lucros e ajudar com eles os seus associados. Na verdade, neste caso
como limite, entre outros, o da Ordem Pública. A autonomia não temos uma repartição dos lucros em função da entrada de cada um.
privada não pode constituir associações cuja existência seja AS FUNDAÇÕES
52
Mariana Cadaveira
As fundações são pessoas coletivas especialmente regidas intervenção do fundador esgota-se, em princípio, no ato de
nos artigos 185.º a 194.º, que correspondem à institucionalização instituição; apenas quando a fundação é instituída em vida, o
de fins humanos, a cuja prossecução é afeta uma massa de bens. fundador pode pertencer aos seus órgãos dirigentes e assim
influenciar a sua vida, mas não faz parte do seu substrato.
A Lei Quadro das Fundações, no seu artigo 3º, nº2 estatuiu
que “são considerados fins de interesse social aqueles que se O substrato da fundação compreende ainda uma massa de
traduzem no benefício de uma ou mais categorias de pessoas bens (elemento patrimonial) e um fim institucional (elemento
distintas do fundador, seus parentes ou afins, ou de pessoas ou teleológico). Não há uma hierarquia clara entre estes dois
entidades a ele ligadas por relações de amizade ou de negócios, elementos do substrato. Pode ser mais valorizada a massa
como por exemplo: a) a assistência e pessoas com deficiências; b) patrimonial ou o fim institucional. Há fundações em que o fim
preservação do património histórico, artístico ou cultural; c) institucional é dominante, sendo o património variável
promoção das artes; d) proteção e apoio à família; e) prevenção e determinado apenas pela sua aptidão para suportar
erradicação da pobreza; economicamente a prossecução do fim. Outras fundações existem
que o património assume uma maior centralidade, sendo o fim
Classificasse depois as fundações em:
institucional ligado a esse património ou a parte dele, de tal modo
Fundações Privadas – são criadas por uma ou mais pessoas de
que deixa de ser fungível. De todo o modo, o fim institucional é
direito privado, em conjunto ou não com pessoas coletivas públicas,
dominante e o património constitui o seu suporte.
desde que estas, isoladas ou conjuntamente, não detenham sobre a
fundação uma influência dominante. Pode em bom rigor não haver logo património, mas tem que haver
Fundações Públicas e de direito público – são criadas um esquema que permita à pessoa coletiva obter património para
exclusivamente por pessoas coletivas públicas, bem como os satisfazer os seus fins. Pelas dívidas da fundação responde o seu
fundos personalizados criados exclusivamente por pessoas património. As fundações têm que ser constituídas com um
coletivas públicas; interesse social, e para que elas sejam reconhecidas têm de estar
Fundações Púbicas de Direito Privado – são cridas por uma ou mais preenchidos estes dois requisitos - existência de um fim de
pessoas coletivas públicas, em conjunto ou não com pessoas de interesse social e por outro lado uma dotação patrimonial
direito privado, desde que aquelas, isoladas ou conjuntamente, suficiente para atingir os seus fins (art.º 188.º n.ºs 1 e 2).
detenham uma influência dominante sobre a fundação;
Quando o fim social se centre sobre certos bens ou exija a
sua titularidade, a fixidez e a infungibilidade funcional desses
mesmos bens é determinada pelo fim institucional. Pode, por isso,
O substrato das fundações não tem carácter corporativo, não
entender-se a fundação como a institucionalização de fins humanos
assenta num agrupamento de pessoas. O instituidor que constitui a
fundação, em vida ou por morte, não faz parte do seu substrato. A
53
Mariana Cadaveira
para cuja prossecução é personalizada uma organização dotada dos As fundações tem de ser reconhecidas caso a caso pela
bens e do suporte económico necessários. autoridade administrativa e adquirem personalidade jurídica com
esse reconhecimento. O reconhecimento não se une com a
instituição num contrato. É um ato administrativo (competência do
Constituição: Ministro que tutela a área em que a fundação irá exercer a sua
atividade) pelo qual se reconhece que o fim da fundação é de
1. Instituição;
interesse social e que o património com que é dotada é suficiente
2. Elaboração dos estatutos; para o prosseguir.
O reconhecimento só poderá ser recusado se o fim não for de
3. Reconhecimento; interesse social, ou se os bens que lhe forem afetos se mostrarem
Começando pela instituição, trata-se de um negócio jurídico insuficientes para a sua prossecução.
unilateral, que pode ser inter vivos ou mortis causa.
Há uma pessoa - o instituidor - que afeta um certo património à No que respeita à orgânica, as fundações divergem das
pessoa coletiva a criar. associações apenas por não terem assembleia geral. Não tendo
O ato de instituição, quando seja entre vivos, deve ser celebrado por associados, as fundações não podem, por isso, ter como órgão a
escritura pública (art.º 185.º n.º 3), mas também, quando seja um respetiva assembleia. A administração concentra as funções de
negócio mortis causa, a instituição resulta de um testamento. formação da vontade funcional da fundação e de gestão. A
O ato de instituição deve indicar o fim da fundação - o tal fim de administração é nomeada nos estatutos, que devem fixar também o
interesse social - e deve indicar os bens que são destinados ao fim da modo de designação, substituição dos seus membros, assim o da
fundação (art.º 186.º n.º 1). duração e cessação dos respetivos mandatos. Tal como as
Quando esse ato conste de escritura pulica, deve ser publicado no associações, as fundações podem ter ainda outros órgãos, desde
Diário da República (art.º 185.º n.º 5) que especialmente previstos nos respetivos estatutos.
Em relação aos estatutos da fundação, estes devem contem
os restantes elementos necessários à atividade da fundação que
não constem do ato de instituição.
Os estatutos podem ser elaborados pelo instituidor, mas também
por outras entidades como o executor do testamento ou a entidade
competente para o reconhecimento – artigo 187º.
Modificações:
Os estatutos devem também ser publicados no Diário da República,
segundo o disposto no nº5 do artigo 185º. Após a sua constituição, as fundações podem sofrer
modificações importantes. O artigo 189º admite a modificação dos
54
Mariana Cadaveira
estatutos, que pode ocorrer a todo o tempo, mas pela entidade O artigo 192º prevê as causas de extinção das fundações,
competente para o reconhecimento, sob proposta da Administração apresentando no nº3 regras quanto ao destino a dar aos bens da
da Fundação, mas com 2 limites: 1) deve ser respeitado o fim fundação.
essencial da fundação; 2) deve ser respeitada a vontade do seu A extinção das fundações suscita a questão do destino dos
instituidor. bens que tenha no seu património. O CC rege a matéria n o artigo
O novo fim deve aproximar-se tanto quanto possível do fim fixado 166º em comum para as associações e fundações, de modo distinto.
pelo instituidor. Com a instituição da fundação o instituidor perde a A questão é, todavia, mais delicada no que respeita às fundações do
propriedade e o controlo, pelo menos o controlo direto dos bens que às associações e merecia tratamento separado.
com que dotou a fundação; passa a ser a entidade competente para Há fundações em que certos bens assumem um papel muito
o reconhecimento da fundação, como titular dos interesses da particular quanto à realização do fim institucional. Assim sucede,
comunidade, que tem legitimidade para controlar a atividade da quando esse fim incida sobre certos bens, por exemplo, visando a
fundação e prossecução dos seus fins. sua proteção, conservação, beneficiação, aproveitamento ou
afetação desses bens a certos fins. São estes casos que levam a
Doutrina a entender a fundação como personificação de bens ou de
A fundação pode estar onerada com encargos. No ato da
massas de bens. Estes bens – bens vinculados – assumem um
instituição, o instituidor pode ter fixado nos estatutos um ou mais
estatuto especial na fundação e não podem deixar de ter um
encargos, a favor de terceiros ou a seu próprio favor. O ato da
estatuto também especial na sua extinção.
instituição envolve uma atribuição patrimonial gratuita, embora se
Segundo o artigo 166º, deve distinguir-se consoante os bens que
não esgote nela. Esta atribuição patrimonial pode estar sujeita a
estão especialmente afetados a certos fins (bens vinculados) e
ónus. A oneração pode ainda ser superveniente ao tempo da
aqueles que o não estão (bens livres).
instituição e resultar da aceitação pela fundação de uma doação
Os bens vinculados serão entregues a outra pessoa coletiva que
modal. A oneração traduz-se na vinculação a um fim. Pode
tenha um fim compatível e que deverá continuar a sua vinculação.
distinguir-se consoante essa vinculação afete a fundação como um
Os bens livres terão o destino que lhes for dado em lei especial, se
todo ou apenas certos bens do seu património. No primeiro caso, a
houver, ou nos estatutos se estiver estipulado, ou na deliberação de
vinculação faz parte do fim institucional; no segundo constitui um
extinção. Se o seu destino não estiver estipulado em nenhum destes
simples ónus que afeta esses bens. Pode, porém, suceder que certa
meios deverá o tribunal afetá-los a outra pessoa coletiva ou ao
vinculação venha a revelar-se impeditiva ou mesmo a dificultar
Estado.
gravemente a prossecução do fim institucional.
Extinção:
AS SOCIEDADES CIVIS SIMPLES

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Mariana Cadaveira
980º-1021º CC têm igual poder de administrar, mas qualquer deles pode opor-se
aos atos de administração praticado por um outro, cabendo então à
Na sistemática do Código Civil as sociedades civis simples não estão
maioria decidir – 985º. A situação jurídica dos administradores
incluídas entre as pessoas coletivas, são tratadas simplesmente
rege-se pelas regras do mandato – 987º.
como o tipo legal do contrato de sociedade civil.
Os sócios têm direito à distribuição anual dos lucros
apurados, cuja distribuição é feita, em princípio, na proporção do
No artigo 980º, o contrato de sociedade é definido como
valor das entradas – 991º e 992º.
“aquele em que duas ou mais pessoas se obrigam a contribuir com
bens ou serviços para o exercício em comum de certa atividade
A cessação de quotas exige o consentimento da totalidade
económica, que não seja de mera fruição, a fim de repartirem os
dos sócios e deve obedecer à forma necessária para a transmissão
lucros resultantes dessa atividade.
dos bens sociais – 995º.
Elementos essências:
1. A intervenção de duas ou mais pessoas; A responsabilidade dos sócios pelas dívidas da sociedade é
2. Que contribuam ou se obriguem a contribuir com bens ou subsidiária em relação à sociedade, mas solidária entre os sócios
serviços; (997º). Vigora o benefício da excussão. Os sócios que não sejam
3. Para o exercício em comum; administradores podem, no contrato, limitar ou mesmo excluir a
4. De uma atividade económica; sua responsabilidade pelo passivo social.
5. Que não seja de mera fruição; Pelos factos ilícitos praticados pelos seus representantes,
6. A fim de repartirem entre si os lucros dela resultantes – agentes e mandatários por sua conta, responde a sociedade, nos
elemento teleológico; mesmos termos em que os comitentes respondem pelos atos e
omissões dos mandatários – 998º. Se, porém, o património social
Artigo 281º – A forma do contrato é livre, mas deve ter a solenidade for insuficiente, respondem subsidiariamente e solidariamente os
que for exigida para as entradas; sócios.

Artigo 282º –As alterações supervenientes do contrato exigem a Enquanto a sociedade subsistir, os credores particulares dos
unanimidade, salvo se diferentemente estipulado, o que confirma o sócios só podem fazer-se pagar pelo respetivo direito aos lucros e à
carácter contratual e pessoal deste tipo de sociedades; quota de liquidação (999º) e não é admitida a compensação entre
créditos e débitos da sociedade e dos sócios (1000º).
O regime da administração é semelhante ao da
compropriedade, que para ele remete (1407º, nº1). Todos os sócios
56
Mariana Cadaveira
Por morte do sócio a sua quota, em princípio, não é herdada, • Possibilidade de a sociedade subsistir durante seis meses como
sendo liquidada em benefício dos herdeiros, mas os outros sócios um único sócio, sem que, durante a situação de unipessoalidade,
podem preferir a dissolução da sociedade – 1001º. ocorra a confusão entre as situações jurídicas da sociedade e do
O sócio pode exonerar-se (1002º) e pode ser excluído sócio único.
(1003º).
• Possibilidade de limitação ou mesmo exclusão da
A sociedade dissolve-se em casos análogos à extinção das responsabilidade dos sócios que não sejam administradores,
pessoas coletivas: por acordo dos sócios; pelo decurso do prazo, se admitida no artigo 997º, nº3, desde que a administração não
tiver sido estipulado; pela realização ou pela impossibilidade do seja composta exclusivamente por não sócios. Neste caso, a
objeto social; pela extinção da pluralidade dos sócios, se não for autonomia patrimonial seria mesmo completa.
reconstituída no prazo de seis meses; por insolvência; ou por outra
causa prevista dos estatutos (1007º). • A proibição da compensação de créditos e dívidas de terceiros à
sociedade e aos sócios (1000º), implicaria uma separação de
patrimónios e a distinção entre a titularidade dos créditos e
dívidas pela sociedade e pelos sócios.
O Problema da Personificação das Sociedades Civis
Simples • Quanto ao regime de imputação de atos ilícitos é o mesmo, no
artigo 998º, quanto às sociedades civis simples, e no artigo
165º, quanto às pessoas coletivas, associações e fundações.
A Favor da personificação:
• Argumenta-se que as entradas dos sócios implicam a alienação Todas estas parcelas de regime implicariam a criação de uma nova
de bens do património destes e a sua entrada no património da subjetividade jurídica diferente da dos sócios, que outra coisa não
sociedade. Esses bens saem da titularidade dos sócios e passam seria senão a personalidade coletiva.
para a titularidade da sociedade. Do mesmo modo a distribuição
dos lucros implica a transmissão de bens da titularidade da
sociedade para a dos sócios, e o mesmo sucede com a partilha
em caso de extinção.

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Mariana Cadaveira
Em sentido contrário: Critério da personificação:

• Se as sociedades civis fossem pessoas coletivas, aqueles A perplexidade da doutrina portuguesa quanto à
regimes legais seriam supérfluos e redundantes: não seria personalidade das sociedades civis simples é uma consequência da
sequer necessário fazê-los constar da lei porque naturalmente dualidade de respostas e dos modos de entender a questão nos
resultariam da sua natureza de pessoas coletivas. Do facto de a sistemas alemão e português.
lei sentir a necessidade de os consagrar expressamente, retira a
Enquanto que, no sistema alemão a personalidade coletiva depende
doutrina contrária a conclusão de que as sociedades civis
da autonomia patrimonial; no sistema português a personalidade
simples não têm personalidade coletiva.
coletiva é independente da autonomia patrimonial perfeita, como
sucede nas sociedades em nome coletivo e nas sociedades em
• Se há preceitos na lei que apontam no sentido da
comandita simples.
personificação e que se não compreendem mesmo sem ela, Há
também casos de sociedades civis tão pouco estruturadas que
não tem sentido personifica-las. Seriam sociedades informais
A personalidade coletiva responde à necessidade de fazer
não aparentes, cuja existência os sócios mantêm entre si sem
intervir no diálogo social novos autores, além das pessoas físicas,
revelar perante terceiros, que não têm sequer orgânica
mas exige um mínimo de formalização que permita e suporte a
estabelecida nem empresa que as suporte (sociedades
reconhecibilidade social e exterior (perante terceiros) dos novos
internas) e as sociedades instantâneas, efémeras, constituídas
entes como sujeitos de direito autónomos. Este mínimo de
por um ato só.
formalização é satisfeito pela escritura pública e pelo registo. É
Haveria que dualizar e admitir a possibilidade de subsistirem, lado imprescindível que terceiros com que a sociedade civil
a lado, sociedades civis simples com personalidade e outras personificada contacta possam saber com facilidade e segurança
meramente contratuais, sem personalidade jurídica. que ela tem personalidade jurídica.
A personalização está sempre acompanhada por uma clara
formalização: as pessoas coletivas, sejam associações ou fundações,
são constituídas por ato formal solene (escritura pública ou
testamento) e registadas; para as sociedades, atualmente, o registo
satisfaz a exigência de publicidade necessária.

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Mariana Cadaveira
Entende-se que, o sistema de forma e publicidade das personificadas que não constituem sujeitos de direito autónomo
sociedades comerciais deve ser também aplicado às sociedades dos seus sócios, em que os atos e situações jurídicas ativas e
simples, uma vez que as sociedades civis ganham personalidade passivas são imputadas a todos os sócios conjuntamente e não à
coletiva se adotarem um tipo comercial com as respetivas forma e sociedade que juridicamente não é sujeito de direito, mas apenas
publicidade. um contrato e uma comunhão.

Em segundo lugar, nas sociedades com personalidade, as


Os requisitos dos artigos 167º e 168º satisfazem as participações sociais envolvem uma relação jurídica entre o sócio e
exigências mínimas de substrato e organização. A sociedade tem de a sociedade (embora, apenas secundariamente, possa envolver
ter os seus estatutos registados – e, portanto, cognoscíveis – ter também relações entre sócios), enquanto que nas sociedades sem
uma denominação que permita identifica-la e autonomiza-la dos personalidade jurídica as participações sociais traduzem-se apenas
sócios, a menção clara do seu substrato pessoal (identificação dos em relações jurídicas entre os sócios enquanto tais.
sócios), patrimonial (discriminação das entradas e dos bens que
Em terceiro lugar, os bens da sociedade civil simples
constituem o seu património) e teleológico (fim e objeto social).
personificada pertencem-lhe a si própria e não aos respetivos
Também a sua orgânica (modo como funciona, delibera, como se
sócios; ao contrário, a sociedade civil simples não personificada,
obriga) fica estabelecida e publicitada com a satisfação das
não sendo pessoa jurídica, não tem um património próprio, e os
exigências dos artigos 167º e 168º.
bens que lhe estão afetados pertencem conjuntamente aos sócios,
numa forma de comunhão em mão comum – fundo comum – ,que
se não confunde com propriedade. → As sociedades personificadas
Diferenças de regime
têm um património diferente do dos sócios; as sociedades não
As sociedades civis simples personificadas e não personificadas têm um fundo comum, que pertence em comum aos
personificadas não são iguais e não têm o mesmo regime jurídico, sócios → Assim, as entradas, na sociedade personificada, envolvem
apesar da unidade do regime jurídico do contrato de sociedade a transmissão dos bens de cada sócio para a sociedade; na
tipificado nos artigos 980º e seguintes. sociedade não personalizada, os bens mudam também de estatuto
Em primeiro lugar, as sociedades civis simples embora de um modo diferente: de propriedade individual de cada
personificadas são sujeitos de direito, os atos que pratiquem são- sócio passam para o fundo comum, que constitui comunhão em
lhes diretamente imputados, e não aos respetivos sócios. Também mão comum de todos os sócios.
as situações jurídicas ativas (direitos, poderes) e passivas (deveres,
vinculações, adstrições) se fixam diretamente na sua esfera
jurídica. Diferentemente sucede nas sociedades civis simples não

59
Mariana Cadaveira
Às sociedades civis simples personificadas aplicam-se os As Associações Sem Personalidade Jurídica e as Comissões
respetivos estatutos, os preceitos dos artigos 980º e seguintes do Especiais
CC, e ainda, por analogia induzida pelo artigo 157º, as regras
relativas às associações. Às sociedades civis não personificadas, Nos artigos 195º a 201º, o CC contém uma regulamentação
aplicam-se as regras contratuais que tenham sido celebradas entre especial para associações sem personalidade e para as comissões
os sócios, os preceitos dos artigos 980º e seguintes do CC e ainda, especiais.
por analogia induzida pelo 195º, as regras relativas às associações
“excetuadas as que pressupõem a personalidade destas”.
Associações sem personalidade
Note-se que as sociedades civis constituem uma espécie do
género das associações, o que justifica que lhes sejam aplicados os O regime dos artigos 195º a 198º rege os casos de
artigos 195º a 197º do CC. Exclui-se a aplicação do nº3 do artigo associações que não obtenham a personalidade jurídica, por
195º e o artigo 198º, porque as matérias que regem está já exemplo, por não terem sido constituídas por escritura pública ou
especificamente regulada pelos artigos 997º e 1002º quanto às por não cumprirem as demais exigências do artigo 158º.
sociedades civis simples.
Este regime é adequado também para reger os casos de
O regime jurídico do tipo contratual da sociedade civil sociedades simples sem personalidade jurídica. As sociedades são
simples, contido nos artigos 980º e seguintes, rege apenas o uma espécie de associação.
contrato de sociedade, e tem a maleabilidade suficiente para Aquelas que respeitam os artigos 167º e 168º, nº1 serão pessoas
abranger ambos os casos em que a sociedade tem e não tem coletivas e reger-se-ão pelas regras do respetivo tipo, com início no
personalidade. Ao celebrá-lo, os sócios podem optar por constituir citado artigo 980º e termo no artigo 1021º.
uma sociedade civil com ou sem personalidade. Aquelas que não tenham sido registadas ou que não satisfaçam as
exigências do 167º e não tenham personalidade jurídica,
Se quiserem constituir uma sociedade civil simples personificada encontram a sua disciplina nos artigos 980º e seguintes, e 195º a
deverão satisfazer as exigências do 157º, adotar a forma de 197º, com aplicação analógica das regras relativas às associações,
escritura pública (168º) e registar a sociedade no Registo Nacional tal como previsto no 195º, nº1. Como consta expressamente do
das Pessoas Coletivas. 195º, nº1, está naturalmente excluído tudo aquilo que pressupuser
a personalidade jurídica.

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Mariana Cadaveira
O contrato e o fundo comum O fundo comum tem uma certa autonomia patrimonial.
No artigo 95º, o regime jurídico da organização interna e da Embora pertença aos associados e não à associação, que não tem
administração das associações sem personalidade – onde se personalidade jurídica e como tal não pode ser titular de situações
incluem as sociedades civis simples sem personalidade jurídica – é jurídicas designadamente patrimoniais, o nº2 do 196º dispõe que,
cometido, em geral, à autonomia privada: são regidas, em princípio, enquanto a associação subsistir, nenhum associado pode exigir a
pelas regras estabelecidas pelos associados. Na falta dessas regras, divisão do fundo e não podem também os credores dos associados
são aplicáveis os preceitos legais relativos às associações, que não executá-los por dívidas estranhas à associação, o que constitui um
pressuponham a personalidade jurídica. desvio importante em relação às regras da comunhão que, sem este
preceito legal, seriam aplicáveis.
Não obstante não terem personalidade jurídica, a lei prevê, Pelas dívidas contraídas em nome das associações sem
nos artigos 196º a 198º, que estas associações tenham um fundo personalidade, responde em primeiro lugar o fundo comum. Se este
comum. Este fundo comum é composto pelas contribuições dos não for suficiente, responde então o património do associado ou,
associados, pelos bens que com o produto destas contribuições solidariamente, o dos associados que tiverem contraído as dívidas
vieram a ser adquiridos pelas associações sem personalidade e ou responsabilidades de que se trate. Se estes patrimónios forem
ainda pelos que lhes forem doados ou deixados. O fundo comum insuficientes, responderão então os patrimónios dos demais
não segue as regras comuns da compropriedade, porque tem a associados, na proporção das suas entradas.
natureza de comunhão em mão comum. De diferente do regime
geral da compropriedade, o fundo comum tem a não aplicabilidade
dos regimes de disposição e oneração das quotas dos consortes e
de divisibilidade.
As regras estabelecidas pelos associados e o fundo comum
exprimem o contrato e a comunhão (de mão comum), estruturas
menos sofisticadas, embrionárias e geneticamente prévias à
personalidade coletiva.
O fundo comum corresponde à contitularidade dos bens
pelos associados. Não havendo personalidade coletiva, não há um
ente jurídico diferente dos associados a quem imputar a
titularidade das posições jurídicas ativas patrimoniais. Os bens
atribuídos à associação sem personalidade ingressam nos
patrimónios dos associados, em comunhão. É este o sentido do
fundo comum a que se referem os artigos 196º e 198º.
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Mariana Cadaveira
As comissões especiais comissão poderão os respetivos fundos ser restituídos aos
Diferentemente das associações sem personalidade e subscritores.
juridicamente mais ténues e menos sofisticadas são as comissões Se os fundos se revelarem insuficientes para o fim tido em vista, se
especiais, previstas nos artigos 199º, 200º e 201º. este fim se revelar impossível ou se restar algum saldo depois da
Trata-se de casos em que uma pluralidade de pessoas se sua realização, os fundos recolhidos terão o destino que tiver sido
incumbe, ou é incumbida, de uma certa tarefa, da prossecução de previamente previsto. Caso nada tenha sido previsto, poderão ser
um certo fim, a quem é cometida a realização de algo. Daí o seu utilizados com um fim análogo ou poderão ainda ser afetados pela
nome: “comissão”. autoridade administrativa a um outro fim que respeite, tanto
quanto possível, à intenção do subscritor que para ele tenham
contribuído.
O artigo 199º enumera alguns fins de que as comissões
sejam incumbidas. Esta enumeração é meramente exemplificativa,
podendo ainda ser prosseguidos outros fins “semelhantes” aos
enunciados.
Qual é o critério da semelhança?
O que existe em comum entre os fins
enunciados no 199º é serem fins altruístas,
sobretudo não lucrativos. É possível discernir
aqui algo de semelhante aos fins das
fundações: não têm de ser fins do Estado, nem
fins públicos, nem fins de interesse geral; mas
sim que sejam fins lícitos altruístas.

No que respeita ao regime patrimonial, a lei não admite a


constituição de um fundo comum com alguma autonomia
patrimonial, referindo-se apenas a “fundos recolhidos” ou aos
“fundos angariados”. Os membros da comissão e as pessoas
encarregadas de administrar os fundos recolhidos são pessoal e
solidariamente responsáveis pela sua conservação e pela sua
afetação ao fim visado, e ainda pelas dívidas contraídas em nome da
comissão. Só quando não se cumpra o fim para que foi constituída a
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Mariana Cadaveira
O Alargamento dos Direitos de Personalidade às Pessoas Coletivas A determinação abstrata dos direitos de personalidade suscetíveis
de assistir às pessoas coletivas coloca algumas dificuldades, mas
Os direitos de personalidade foram histórica e não é insuperável.
dogmaticamente pensados para servir o ser humano: a pessoa
singular. Transpô-los para além desse campo equivaleria a uma Desde logo haverá que excluir do âmbito da tutela os direitos
distorção da figura. Tal transposição poderia prejudicar os próprios relativos ao círculo biológico: vida e integridade física. Os direitos
direitos de personalidade. de personalidade patrimoniais teriam uma vocação de princípios
para assistirem às pessoas coletivas.
À partida, ter-se-ia um conjunto de razoes sérias que
limitariam, às pessoas singulares, a titularidade de direitos de Em suma, caso a caso haverá que verificar que direitos de
personalidade. personalidade podem operar perante pessoas coletivas, com que
Todavia a tutela dos direitos de personalidade e os próprios adaptações e em que limites.
direitos de personalidade veio a ser alargada às pessoas coletivas.
Na origem encontram-se problemas práticos a que os tribunais não
podiam deixar de dar resposta.

A personalidade coletiva apenas traduz um centro de


imputação de normas jurídicas, diverso do implicado por uma
pessoa singular. Mas as pessoas singulares são sempre, em última
análise, as destinatárias de quaisquer deveres. Podem sê-lo em
modo singular, altura em que as regras se lhe aplicam diretamente,
ou em modo coletivo, situação que implica novas normas jurídicas,
antes de se chegar ao destinatário do comando.

A desonra de uma pessoa coletiva repercute-se sobre as pessoas


que lhe sirvam de suporte ou que, para ela, trabalhem ou atuem.
Naturalmente, qualquer transposição da tutela de personalidade
para pessoas coletivas deve sempre ser feita tendo em conta os fins
a que elas se destinem e a natureza da situação envolvida.

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