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MÓNICA JARDIM/MARGARIDA COSTA ANDRADE

PARTE GERAL

1. Distinção entre Direito das Coisas e Direito das Obrigações

1. O Direito Civil Patrimonial pode ser definido como “aquele conjunto de normas
atribuidoras de bens e definidoras da sua utilização, abrangendo outrossim aquelas regras
que regulam a troca dos bens entre as pessoas e a cooperação prestada por estas umas às
outras — bens e cooperação avaliáveis em dinheiro”1-2.
Dentro do Direito Civil Patrimonial — abstraindo do Direito Sucessório que deixa
às relações em jogo a sua peculiar estrutura de relações reais ou obrigacionais —
encontramos duas grandes categorias: o Direito das Obrigações e o Direito das Coisas.
O primeiro apenas regula o acesso às coisas, ou seja, o caminho para a directa
utilização das coisas, pois, mesmo quando se consente alguma utilização dos bens – como
nos contratos de locação e de comodato —, a estes só se chega com o cumprimento do
compromisso assumido pelo devedor; sem a realização da prestação a que este
voluntariamente se vinculou, o acesso ao bem não se concretiza.
O segundo disciplina, já não o acesso aos bens, mas o domínio3 autêntico, absoluto
(ab + solutus: independente) sobre as coisas; a directa e imediata utilização delas, como
exercício de um poder autónomo e não como reflexo de obrigações assumidas por
terceiros e de prestações por estes realizadas.

1
MOTA PINTO, Direitos Reais (lições coligidas por ÁLVARO MOREIRA e CARLOS FRAGA),
Coimbra, UNITAS, 1971, p. 12.
CALVÃO DA SILVA, Cumprimento e sanção pecuniária compulsória, BFD, Coimbra, 1987, p. 9,
define o direito civil patrimonial como “o conjunto das normas que disciplina, rege ou regulamenta os fins
económicos das pessoas ou, melhor, as actividades sociais pelas quais se realizam os fins económicos,
susceptíveis de avaliação pecuniária, da pessoa e se organiza a estrutura económica da sociedade”.
2
Utilizamos o termo “bem”, na sua acepção menos restrita, de modo a abranger tudo o que é apto a
satisfazer necessidades.
Por seu turno, não obstante o Código Civil, no art. 202.º, definir coisa como “tudo aquilo que pode ser
objecto de relações jurídicas”, tal definição revela-se pouco rigorosa. Basta recordarmo-nos das pessoas
que podem ser objecto de relações jurídicas e não são coisas ou das prestações que na sua essência se
traduzem em actuações (acções ou omissões) das pessoas e, por isso, incindíveis destas e insusceptíveis de
assumir o estatuto de coisa. Na verdade, o conceito de coisa abarca os seguintes elementos: objecto
impessoal; objecto com existência autónoma; objecto idóneo para satisfazer necessidades ou interesses
humanos; objecto apropriável, isto é, capaz da subordinação jurídica ao poder, acção ou disponibilidade
exclusiva de um ou alguns homens.
Em face do exposto, torna-se claro que todas as coisas são bens, mas nem todos os bens são coisas, pois
existem bens não coisificáveis.
Mais desenvolvidamente infra.
3
A expressão domínio é utilizada aqui, não no sentido etimológico que está ligado à propriedade
(dominus = proprietário), mas no sentido de poder sobre as coisas.
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Feita esta sumaríssima distinção entre o Direito das Obrigações e o Direito das
Coisas4, cumpre apartar o direito real do direito de crédito. Antes, porém, torna-se
necessário fazer uma advertência: utilizaremos indistintamente a expressão “Direito das
Coisas” e “Direitos Reais”. No entanto, como resulta do exposto, rigorosamente, a
expressão “Direito das Coisas” refere-se ao ramo do direito que rege a atribuição das
coisas com eficácia real ou que estabelece o regime dos diversos direitos reais, por
contraposição a outro ramo do direito: o das obrigações. Por seu turno, a expressão
“direitos reais” designa relações jurídico-reais por contraposição a relações jurídico-
creditórias.

2. Distinção entre direitos reais e direitos de crédito

2. O art. 397.º do Código Civil português5 dá-nos o conceito de obrigação:


“obrigação é um vínculo jurídico por virtude do qual determinada pessoa fica adstrita
para com outra à realização de uma prestação.” De outro modo: o direito de crédito é o
vínculo jurídico por virtude do qual uma pessoa (o credor) pode exigir de outra (o
devedor) a realização de certa prestação que pode ter por objecto uma coisa (dare), uma
actividade (facere) ou uma abstenção (non facere).
Muito mais difícil se revela definir o direito real. A prová-lo estão as múltiplas
tentativas feitas, ao longo da história, por parte da doutrina, no sentido de definir o ius in
re por contraposição com o direito de crédito6 que, como se sabe, deram origem a diversas
teorias, sem que nenhuma delas, na verdade, tenha permitido que na actualidade se tenha

4
Para mais desenvolvimentos vide ORLANDO DE CARVALHO, Direito das Coisas, coordenação:
Francisco Liberal Fernandes/Maria Raquel Guimarães/Maria Regina Redinha, Coimbra Editora, Coimbra,
2012, p.17 e ss. e p. 77 e ss.
5
Doravante, todos os preceitos sem indicação do diploma de origem pertencem ao Código Civil
português.
6
A propósito da noção, polémica, de direito real, na doutrina portuguesa, vide: ANTUNES VARELA,
Das Obrigações em Geral, vol. I, 9.º ed., Coimbra, Almedina, 1996, p. 189 e ss.; CARVALHO
FERNANDES, Lições de Direitos Reais, 5.ª ed., rev. e mer., Lisboa, Quid Iuris, 2007, p. 37 e ss.;
HENRIQUE MESQUITA, Direitos Reais, Sumários das Lições ao Curso de 1966-1967, Coimbra, p. 7 e
ss.; idem, Obrigações Reais e Ónus Reais, Coimbra, Almedina, 1990, p. 41 e ss.; JOSÉ DE ANDRADE
MESQUITA, Direitos Pessoais de Gozo, Coimbra, Almedina, 1999, p. 112 a 131; MENEZES
CORDEIRO, Direitos Reais, Lisboa, Lex, 1993, p. 188 e ss.; MOTA PINTO, Direitos Reais, ob. cit., p. 27
e ss.; OLIVEIRA ASCENSÃO, Direito Civil, Reais, (reimpressão), Coimbra, Coimbra Editora, 2000, p.
38 e ss. e p. 600 e ss.; ORLANDO DE CARVALHO, Direito das Coisas, ob. cit., p. 86 e ss.; RUI PINTO
DUARTE, Curso de Direitos Reais, 3.ª ed. rev. e aum., Estoril, Principia, 2013, p. 16 e ss. e p. 321 e ss.;
SANTOS JUSTO, Direitos Reais, 2.ª ed., Coimbra, Coimbra Editora, 2010, p. 13-14; MÓNICA JARDIM,
Os direitos reais e os direitos pessoais: distinções e aproximações, Direito Imobiliário Brasileiro, AAVV,
Livro II, São Paulo, Editora Quartier Latin, 2011, p. 252 e ss. e Cadernos do CENoR, n.º 1, 2013, p. 45 e
ss..
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atingido o consenso. De entre as diversas teorias destacaremos: a teoria realista, a teoria


personalista, a teoria eclética e a que passamos a denominar como teoria realista
renovada, à qual aderimos.

2.1. Teoria realista: o direito real como o poder directo e imediato sobre uma
coisa

3. Em traços largos, segundo a teoria clássica ou realista, o direito real é um poder


directo e imediato de uma pessoa sobre uma coisa.
O direito real exprime uma relação entre uma pessoa e uma coisa distinguindo-se,
assim, do direito de crédito (ou da obrigação), uma vez que este se traduz ou se exprime,
sempre, numa relação entre pessoas. No direito real não há intermediário entre o titular
e a coisa objecto do direito; o titular satisfaz o seu interesse mediante o exercício de
poderes sobre o objecto, não necessitando da cooperação de qualquer sujeito. Ao invés,
no direito de crédito – mesmo quando não se dirija à prestação de um facto, positivo ou
negativo, mas sim à prestação de uma coisa – o titular só acede ao objecto por mediação
de outro indivíduo, que é o devedor.
Um direito real tem uma estrutura simples, linear e não intersubjectiva. A relação
existente num direito de crédito, pelo contrário, é complexa, triangular e intersubjectiva.8

4. Esta caracterização do direito real tem as suas origens no Direito Romano,


muito embora os jurisconsultos romanos não tenham chegado a enunciar, em termos
conceituais, a noção de direito real.9 Assim, esta concepção de direito real foi formulada
pela Escola dos Glosadores e, seguidamente, desenvolvida pela Escola de Comentadores
que forneceram a noção de ius in re contrapondo-a à de direito de crédito: o ius in re é o
direito que incide directa e imediatamente sobre uma coisa, sem mediação de quem quer

8
Recordemos a explicação de PIRES DE LIMA, Lições de Direito Civil (Reais), Coimbra Editora,
Coimbra, 1941, p. 44: “[p]ara os clássicos encontram-se num direito real dois elementos constitutivos: 1.º
— Uma pessoa, titular do direito (ex.: proprietário, no direito de propriedade; possuidor na posse, etc.). 2.º
— Uma coisa, objecto do direito”; “[o] direito de crédito apresenta-nos uma natureza jurídica mais
complicada.” “Nestes direitos distinguem os clássicos três elementos fundamentais: 1.º — Um indivíduo,
sujeito activo do direito ou crèdor. 2.º — Um indivíduo, sujeito passivo ou devedor. 3.º — O objecto do
direito que consiste num facto positivo (dare ou facere), ou numa abstenção (non facere).” “É sobretudo
pelo seu objecto que o direito real se distingue do direito de crédito.” “O objecto do direito real é
necessàriamente uma coisa.” “O objecto do direito de crédito é um facto ou abstenção do devedor.”
9
Por todos vide SANTOS JUSTO, Direitos Reais, p. 47 e ss., HENRIQUE MESQUITA, Obrigações
Reais e Ónus Reais, p. 42 e s. (que seguimos de perto).
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que seja; a obligatio (vista pelo lado activo), por seu turno, é o direito que permite exigir
uma prestação a determinada pessoa.10
Subjacente a esta construção estava o Direito Processual Romano, que fazia a
contraposição entre a actio in personam e a actio in rem. À actio in personam recorria
quem pretendia obter o cumprimento de uma “obligatio”, quem pretendia exigir uma
prestação a determinada pessoa. E na intentio não podia deixar de constar o nome do
demandado (o devedor). À actio in rem recorria quem pretendia fazer valer direitos que
incidiam directa e imediatamente sobre coisas, independentemente de toda a ideia de
obrigação. Nesta acção o demandante reclamava de um terceiro o respeito do seu direito
sobre a coisa — direito que tanto podia ser a plena in re potestas como um ius in re aliena
—, terceiro este que não estava ligado ao autor da acção por qualquer obrigação. Por isso
na intentio não constava o nome do demandado. Com efeito, a fórmula da acção de
reivindicação (reivindicatio) que o pretor dirigia ao juiz apresentava a seguinte estrutura,
que simplificamos:
1.ª parte (intentio11): "Se te parecer que a coisa em causa pertence a A, segundo o
direito dos Quirites (ius civile) e, por tua ordem, não lhe for restituída",
2.ª parte (condemnatio12): "condena B a pagar a A o seu valor".
Como se observa, na primeira parte só figura o nome do proprietário, enquanto o
do demandado apenas surge na segunda parte.

10
Como se sabe, os juristas pertencentes àquela primeira escola trabalhavam em exegese da fonte
romana, em “respeito quase sagrado” (a expressão é de ALMEIDA COSTA, História do Direito Português,
Almedina, Coimbra, 1996, 3.ª ed., p. 215) pelos textos, o que os impediu de chegar a “construções
juridicamente inovadoras” (idem, ibidem). De qualquer modo, os glosadores foram conseguindo conciliar
princípios e elaborar regras, chegando a “uma estrutura doutrinal de conjunto”; “criaram ‘talvez a primeira
dogmática jurídica autónoma da história universal’” (ainda ALMEIDA COSTA, idem, p. 216, citando
WIEACKER). Mais tarde, já no séc. XIV, uma nova metodologia jurídica é desenvolvida pela Escola dos
Comentadores, que, como a própria designação permite perceber, substituíram a glosa pelo comentário,
pois que o método que se vinha usando não se mostrava capaz de “transformar o sistema romano num
direito actualizado, capaz de corresponder às exigências de época (idem, p. 237). Porque a matéria jurídica
se encara mais sistematizada e dialecticamente, e se enriquece para além do Corpus Iuris Civilis
(nomeadamente, das próprias glosas), os comentadores foram capazes de fazer avançar a ciência jurídica
sem perder de vista as exigências práticas da época, erigindo, então, “os alicerces de instituições e
disciplinas que não tinham raiz em categorias do direito romano ou que este apenas encarava
casuisticamente” (idem, p. 240). Assim chegaram estes jurisconsultos àquela noção de direito real a partir
do que lhes era oferecido pelas fontes.
11
“Intentio = indica o estado da questão, a pretensão do demandante” — SEBASTIÃO CRUZ, Direito
Romano (Ius Romanum), vol. I — Introdução. Fontes, Coimbra, 1984, p. 334.
12
“Condemnatio = cláusula que manda condenar ou absolver o demandado” — idem, ibidem.
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2.2. Teoria personalista: o direito real como uma relação de exclusão entre o
titular e todas as demais pessoas, adstritas à denominada obrigação passiva
universal

5. No século XIX, uma ampla corrente da doutrina, inspirada pelo pensamento


kantiano, considerou o conceito de direito real elaborado pela teoria realista inaceitável.
Sumariamente, de acordo com a teoria personalista, a intersubjectividade é um
elemento essencial a toda a relação jurídica13 e, por conseguinte, o direito real não pode
deixar de se traduzir num vínculo entre pessoas. Assim, a fundamental crítica que os
autores que optaram pela teoria personalista dirigiram à teoria realista foi a de que não há
relações entre homens e coisas — esta expressão apenas poderia ter um “valor imagético
ou alegórico”14 —, antes, somente, relações intersubjectivas.
O núcleo do direito subjectivo é sempre uma pretensão dirigida a um
comportamento humano. O que quer dizer que todos os direitos — incluindo, portanto,
os reais — supõem intersubjectividade, só em sentido figurado se podendo falar de uma
relação entre um homem e uma coisa. O que de especial ocorre nos direitos reais é um
desconhecimento (ou obnubilação) do sujeito passivo, desconhecimento que leva a pensar
a relação como sendo entre o homem (sujeito activo) e a coisa. Porém, embora não
havendo um outro homem, um contra-sujeito particularmente individualizado, há uma
multidão de contra-sujeitos ou sujeitos passivos. De outro modo: a posição de sujeito
passivo não é ocupada por um homem, mas por todos os homens — com excepção do
titular (ou sujeito activo) do direito — que possam entrar em relação de possível
interferência, de possível turbação, juridicamente relevante, com o exercício de poderes
sobre o objecto do direito real.
Assim, a contra-face de um direito real consubstancia-se numa obrigação de non
facere — obrigação passiva universal —, pois quem quer que (daqui, universal) entre em
relação15 com a coisa está obrigado a não interferir (daqui, passiva), de qualquer forma

13
“[É] (…) claro que uma pessoa que estivesse totalmente só na terra não poderia realmente ter ou
adquirir qualquer coisa exterior como sua; pois entre ele, como pessoa, e tod[a]s as outras realidades
externas, como coisas, não existe qualquer relação de vinculação. Não existe, portanto, entendida real e
literalmente, qualquer direito (direto) sobre uma coisa, mas é assim chamado aquele que alguém tem contra
uma pessoa que está com todos os outros (no estado civil) em posse comum” — KANT em A Metafísica
dos Costumes, cit. retirada de PAULO MOTA PINTO, Direito das Coisas — Relatório sobre o Programa,
Conteúdo e Métodos de Ensino, p. 73, nt. 141.
14
Tomamos em comodato a expressão de MOTA PINTO, Direitos Reais, p. 32, embora este autor tenha
adoptado a posição eclética (vide infra).
15
De acordo com a teoria personalista “mais desenvolvida”, não em relação material, mas em relação
de possível interferência ou ingerência juridicamente relevante.
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que seja, no exercício de poderes sobre ela de modo incompatível com o conteúdo do
direito. E é, então, esta natureza difusa do vínculo de omissão que cria a ilusão de uma
relação com a coisa (engodo em que teriam caído os realistas).
Consequentemente, defendem os personalistas que o direito real é o poder,
conferido ao respectivo titular, de excluir todas as demais pessoas de qualquer ingerência,
juridicamente relevante, na coisa que constitui o seu objecto, enquanto o direito de crédito
é o direito de exigir de outrem determinada prestação.16

6. Para além destas críticas contra o conceito de direito real formulado pela teoria
realista, outros argumentos sustentaram a opção pelo personalismo.
Alguns autores começaram por observar que o poder directo e imediato não
poderia definir a realidade, com base nos argumentos que de seguida se apresentam.
Primeiramente, disseram que havia direitos, como a hipoteca, cuja natureza real
era indisputável, mas em que se não observava o exercício de um poder directo sobre uma
coisa.
Depois, acrescentaram, havia direitos cuja natureza real ninguém negava, que até
envolviam poder directo e imediato sobre a coisa, mas em relação aos quais não podia
dizer-se que fosse pelo exercício desse poder que ficava satisfeito o interesse do titular
— assim sucederia, por exemplo, no penhor (contrato real, não só quanto à eficácia mas,
ainda, quanto à constituição17). Ora, se o titular do direito real não via satisfeito o seu

16
A teoria personalista tem como um dos seus porta-estandartes PLANIOL, que a construiu em crítica
directa à noção realista ou clássica de direito real adoptada por AUBRY e RAU (“direitos reais são aqueles
que criam uma relação imediata e directa entre uma coisa e a pessoa a cujo poder ela se submete, de modo
mais ou menos completo, são por isto mesmo susceptíveis de ser exercidos, não apenas contra uma pessoa
determina, mas em relação e contra todos” — CHARLES AUBRY e CHARLES-FREDERIC RAU, Cours
de Droit Civil Français d’Aprés la Mèthode de Zachariae, t. II, Imprimerie et Librairie Générale de
Jurisprudence, Paris, 1869, 4.ª ed., p. 50). Esta tese, escreveu PLANIOL, é “simples e agradável”, mostra
o titular do direito real sozinho, todos o deixando exercer o seu direito sobre a coisa sem ingerências e sem
que ele peça seja o que for a alguém; “mas é falsa”. “Não é correcto dizer que o direito real (…) consiste
em estabelecer uma relação directa entre uma pessoa e uma coisa. Esta relação directa não passa de um
facto e tem um nome: é a posse. Uma relação de natureza jurídica não pode existir entre uma pessoa e uma
coisa: tal seria um non sens. Por definição, todo o direito é uma relação entre pessoas. É a verdade
elementar sobre a qual se ergue toda a ciência do Direito e este axioma é inabalável. Apliquemo-lo ao
direito de propriedade: há uma pessoa que nos fornece já um dos dois lados da relação, é o proprietário; só
resta encontrar o outro e não é difícil descobri-lo: é toda a gente à excepção dele.” Assim sendo, a diferença
entre o direito real e o direito de crédito encontrar-se-ia no número de sujeitos passivos e no objecto da
obrigação: o direito real “est opposable a tout le monde, puisqu’il implique l’existence d’une obligation
dont tout le monde est tenu” (o adversário do titular do direito real não está definido); consequentemente,
o direito real “ne peut imposer qu’une simple abstention”. A teoria realista confundia, assim, o objecto da
obrigação (passiva universal) com o objecto mediato, que é a coisa determinada. Cfr. MARCEL PLANIOL,
Traité Élémentaire de Droit Civil, t. I, Librairie Générale de Droit & de Jurisprudence, Paris, 1928, p. 702
e ss..
17
Vide infra.
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interesse pelo exercício desse poder, então não podia ser este poder que dava natureza
real ao direito — ou, de outro modo, não podia definir-se o direito real como poder directo
e imediato sobre a coisa.
Finalmente, avançava-se com o facto de haver direitos, não qualificados como
reais, que envolviam poderes sobre as coisas e cuja satisfação do interesse que visavam
proporcionar era obtida, não através e como resultado de uma prestação de outrem, mas
mediante a actuação directa e imediata do titular sobre a coisa. Assim sucedia com o
direito do comodatário ou com o do arrendatário. Ou seja: havia direitos não reais cujo
titular exercia poderes directos e imediatos sobre uma coisa e através deles satisfazia o
seu interesse, razão pela qual a essência do direito real não poderia encontrar-se nesse
poder.18

2.3. Teoria ecléctica ou mista: o direito real como poder directo e imediato
sobre uma coisa sancionado por uma obrigação passiva universal

7. As críticas dirigidas pelos personalistas à teoria realista, bem como a


constatação de que esta, por seu turno, sobrevaloriza o conteúdo do direito (desprezando
o momento da sanção, pois não dá resposta à questão de saber como se protege o direito)
e aquela desconhece o conteúdo do direito real (e sobrevaloriza o momento sancionatório,
pois afirma que o direito real se protege com a obrigação passiva universal ou, por outra
via, pelo exercício do poder de excluir ingerências de terceiros, sem dizer o que é ou em
que consiste esse direito)19, acabou por justificar o surgimento de uma posição ecléctica

18
Esta construção foi, entre nós, adoptada por MANUEL DE ANDRADE, Teoria Geral das Obrigações
(com a colaboração de Rui de Alarcão), vol. I, Almedina, Coimbra, 1958, p. 48 e ss.. “Os direitos reais, na
verdade, são direitos contra toda a gente (jura erga omnes). O seu titular pode, no todo ou em parte (direitos
reais limitados), excluir as outras pessoas de qualquer ingerência na coisa a que respeitam (…). No plano
funcional, isto é, se olharmos aos interesses em jogo, é claro que o poder directo e imediato sobre a coisa
será o momento capital dos direitos reais. Mas no plano estrutural, isto é, se olharmos ao instrumento
jurídico de que a lei se socorreu para prover à titela dos interesses do respectivo titular, então já parece, em
bom rigor, que tal poder não será mais do que um reflexo factual ou económico da obrigação negativa
universal” (citação das p. 48 e 57). Se não estamos em erro, a teoria personalista já não conhece adeptos
entre nós, ainda que haja, dentro das posições ecléticas, autores que dão maior ênfase ao elemento pessoal,
enquanto outros sublinham o real — vide infra.
19
Embora, como com perspicácia observa PIRES DE LIMA, Lições…, p. 54-55, “ainda uma prova da
insuficiência das doutrinas personalistas está o facto de os seus defensores ao enumerarem e definirem cada
um dos direitos reais, fugirem ao conceito que formularam abandonando a ideia da obrigação passiva
universal para lançarem mão dos poderes do titular do direito sôbre a coisa.” “Quere dizer, os personalistas
começando por criticar a doutrina clássica vêm afinal a cair nela.”
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na Alemanha(BEKKER)20, mas que rapidamente se difundiu em Itália, Espanha, França


e Portugal. País onde é, ainda hoje, é a dominante.21

8. Resumidamente, segundo os actuais defensores da teoria eclética, no direito


real, como em todos os direitos, é preciso atender ao conteúdo e à sanção, ao licere e à
protectio, ao lado interno e ao lado externo.22
Pelo lado interno, o direito real é um poder directo e imediato sobre uma coisa.
E é pela observação deste elemento, deste poder que se consegue proceder à distinção dos
direitos reais entre si. Pelo lado externo, é o poder de excluir toda e qualquer pessoa de
uma qualquer ingerência no objecto do direito, desde que essa ingerência seja
incompatível com o conteúdo do direito (“é o aspecto externo que resolve o êrro em que
caíram os clássicos e que nos apresenta o direito romano como relação jurídica que é”23)
A tutela real dirige-se, então, contra a generalidade das pessoas que podem interferir com
o exercício do direito, i. e., a quem está vinculado pela obrigação passiva universal. É,
pois, uma tutela absoluta, erga omnes.24

20
Segundo RUI PINTO DUARTE, o “lema” desta posição “está mesmo refletido nalguns textos
legislativos, como é o caso do paradigmático Código Civil alemão, cujo § 930 diz que o proprietário de
uma coisa pode agir em relação a ela de modo discricionário (lado interno) e excluir os outros de qualquer
intervenção (lado externo)” — Curso de Direitos Reais, Principia, Lisboa, 2013, 3.ª ed. revista e aumentada,
p. 17.
21
Além dos autores citados nos próximos parágrafos, GALVÃO TELLES, Direito das Obrigações
Coimbra Editora, Coimbra, 1997, 7.ª ed., p. 20, ANTUNES VARELA, Das Obrigações em Geral, p. 184,
SANTOS JUSTO, Direitos Reais, p. 52-53, PAULO MOTA PINTO, Direito das Coisas — Relatório…, p.
73-74 (“[a] nossa posição arrancará justamente da rejeição de relações jurídicas entre pessoas e coisas, e da
proteção jurídica dos poderes do titular perante todos os outros, explicada funcionalmente pela finalidade
de afetação do bem à pessoa. Portanto, damos primazia à relação entre o titular e todos os restantes membros
da ordem jurídica que tem jurisdição sobre a coisa (bem como todos os membros das outras ordens jurídicas
que a reconhecem), podendo embora tal proteção ‘ativar-se’, ou ganhar relevância prática e jurídica apenas
quando existir proximidade fática ou possibilidade de violação dos poderes do titular do direito real, e sendo
explicada funcionalmente pela afetação da coisa ao titular”).
22
ORLANDO DE CARVALHO, Direito das Coisas, p. 106.
23
PIRES DE LIMA, Lições…, p. 54.
24
CARLOS MOTA PINTO afirma que “o poder directo e imediato sobre a coisa existe como corolário
do direito que tem o seu titular de excluir todos os outros de uma intervenção na coisa. O poder directo e
imediato sobre a coisa não é uma realidade originária ou primária, mas uma consequência jurídica do poder
de impor aos outros uma abstenção e uma não ingerência na coisa que é objecto do direito. É porque existe,
do lado contrário àquele em que se situa o titular activo do direito real, um dever geral de abstenção, que
fica reservada para aquele o monopólio do uso exclusivo da coisa e surge o tal poder directo e imediato
sobre ela.” (Direitos Reais, ob. cit., p. 32).
Ao invés, ORLANDO DE CARVALHO entende que a obrigação passiva universal tem por escopo
defender ou garantir o poder sobre uma coisa, o que implica, como afirma, “que sem o licere [não] se [pode]
caracterizar a protectio, que sem o poder sobre a coisa [não] se [pode] caracterizar a obrigação de
abstenção” (ao contrário do pretendido pelos personalistas) — Direito das Coisas, p. 99, nt. 37. “[N]ão nos
iludamos: em todo o direito, real ou de crédito, o que o direito prossegue é sempre o poder sobre um
determinado bem, não sendo possível separar-se a protecção jurídica dessa fruição empírica que a determina
e condiciona, assim como esta fruição empírica, que move a protecção do Direito, só é fruição de direito
por aquela mesma protecção. O elemento do poder, o elemento empírico é que é o elemento causante e
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Do mesmo modo, também os direitos de créditos conhecem um lado interno e um


lado externo. O lado interno concretiza-se no poder que incide imediatamente sobre um
comportamento de outrem – o poder de exigir ou pretender a prestação de dare, de facere
ou de non facere – e só mediatamente sobre uma coisa (se for caso disso: obrigação de
dare). O lado externo consubstancia-se na tutela relativa – dirigida contra pessoa ou
pessoas certas e determinadas (devedores). O que é o mesmo que falar em eficácia relativa
ou inter partes25.26

conformante dos próprios termos da protectio do Direito — que há uma primazia funcional do conteúdo
sobre a sanção, na medida em que para esse empírico conteúdo é que a sanção tecnicamente se criou e se
talhou.” (Direito das Coisas, ob. cit., p. 104-105). Por isto (e também pesando que “o tipo dos direitos das
coisas surgiu historicamente e ainda se liga actualmente (…) com o propósito de organizar solidamente a
atribuição dos grandes meios de riqueza (…) em cada época e país”), chegou o autor a esta definição de
direito real: “poder directo e imediato sobre uma coisa, impondo-se à generalidade dos membros da
comunidade jurídica e constituindo uma aproximação, derivação ou expressão da forma plena de domínio
sobre os bens – com vista a organizar solidamente as infra-estruturas sócio-económicas dadas” (idem, p.
117).
25
Por todos, vide ORLANDO DE CARVALHO, que defende que a distinção entre os direitos reais e
os direitos de crédito envolve, para além de uma análise estrutural ou anatómica, uma análise funcional ou
dos fins e interesses que estão atrás dos direitos. Do ponto de vista funcional, ORLANDO DE CARVALHO
adere à posição de PICARD, segundo a qual “o direito real é (acentuando-se o lado interno) «o que impõe
a qualquer pessoa a obrigação de respeitar o poder jurídico que a lei confere a uma pessoa determinada de
extrair de bens exteriores todas ou parte das vantagens que permite a sua posse; ou (acentuando-se o lado
externo), «o que, atribuindo a uma pessoa um poder jurídico directo e imediato sobre uma coisa, é, por isso
mesmo, susceptível de ser exercido, não apenas contra certa pessoa determinada. Mas contra todos e em
confronto de todos»” (Cfr. Direito das Coisas, ob. cit., p. 106-107). Segundo este autor, do ponto de vista
funcional, o direito real responde essencialmente a dois interesses basilares: “ao interesse que chamaremos
de imediação – o interesse na satisfação das necessidades sem intervenção ou mediação de outra pessoa –,
o qual preside o seu licere ou ao conteúdo do direito; e ao interesse que chamaremos de estabilização – o
interesse numa maior estabilidade ou segurança –, o qual preside a protectio ou a sanção que o acompanha”
(Cfr. Direito das Coisas, ob. cit., p. 110).
26
Há, ainda, as teorias que, simplesmente, esbatem (sem aniquilar, é certo) a diferença entre direitos
reais e direitos de crédito. Como a de DEMOGUE, jurista francês que, observou MOTA PINTO, Direitos
Reais, p. 35, desenvolveu a teoria personalista e reuniu aqueles conceitos na obrigação passiva universal
(talvez por isto lhe chame PAULO MOTA PINTO “monismo personalista” — cfr. Direito das Coisas —
Relatório, p. 75). “Dizer que os direitos se exercem directamente sobre uma coisa sem a intermediação de
outrem, equivale a confundir o direito com o seu objecto. O direito supõe a vida em sociedade, por isto,
existe necessariamente na relação com alguém. Assim, um direito não existe numa relação com um bem.
Do mesmo modo que não existe entre duas coisas (…) [;] na verdade, os direitos não incidem sobre coisas.
Numa expressão deste género não há mais do que uma maneira cómoda de expressar um pensamento. É
possível que exista uma relação de facto entre um Robinson sozinho na sua ilha e os seus instrumentos, o
terreno que cultiva (…), mas não há uma relação de direito. O que é verdade é que a sociedade, ao consagrar
a propriedade (…) estabelece uma relação jurídica que não é mais do que a consagração de uma relação de
facto anterior que a tem em muito larga conta. Não poderia ela dizer o contrário sem prejudicar expectativas
muito naturais. Mas ao dar uma armadura jurídica a uma situação de facto não faz com que, desde o início,
ela tivesse sido uma situação de direito. Robinson era tanto proprietário como era legislador ou juiz (…).
Tanto o direito absoluto como o direito relativo pressupõem uma vida em sociedade. Só que esta armadura
jurídica do direito absoluto mascara um poder de facto, uma possibilidade que, sendo um facto, ou é ou não
é, e isto em relação a todos. (…) Mas a possibilidade do direito não revela a sua essência, que é uma relação
entre os homens. Podemos simplesmente dizer que ele contribui para dar à relação jurídica os seus traços
principais, mas não dá a sua essência. O direito absoluto é, então, um direito da mesma natureza do
relativo; só que há entre os dois esta diferença (…), que o segundo é oponível numa medida especial a uma
ou mais pessoas, enquanto que o primeiro é oponível igualmente a todos” — RENÉ DEMOGUE, Notions
MÓNICA JARDIM/MARGARIDA COSTA ANDRADE

2.4. A teoria realista renovada — posição adoptada: o direito real como a


relação jurídica por força da qual uma coisa fica directamente subordinada ao
domínio ou soberania de uma pessoa (soberania positiva) de acordo com um certo
estatuto que é fonte de poderes, mas, também de obrigações (as obrigações reais)

a) A posição de HENRIQUE MESQUITA

9. De acordo com o entendimento de HENRIQUE MESQUITA, “direito real é a


relação jurídica através da qual uma coisa fica directamente subordinada ao domínio ou
soberania de uma pessoa, segundo certo estatuto, que constitui a fonte não apenas dos
poderes que assistem ao respectivo titular, mas também dos deveres que sobre ele
impedem”27.
Assim, embora HENRIQUE MESQUITA considere que o núcleo de qualquer
relação real é o domínio ou soberania de uma pessoa sobre uma coisa28 — deste modo
caminhando em direcção ao realismo —, afasta-se de qualquer uma das concepções
precedentes, pois que não concebe o direito real sem uma parcela estrutural que se
compõe dos deveres a que o respectivo titular se encontra adstrito só pelo facto
(precisamente) de ser titular de um direito real. Razão pela qual baptizamos esta posição
como realismo renovado.

10. HENRIQUE MESQUITA considera, então, que o núcleo de qualquer relação


real é, sem sombra de dúvidas, pelo menos no plano dos efeitos prático-económicos que
visa produzir, o domínio ou soberania de uma pessoa sobre uma coisa. Isto porque, é
através desse domínio, e não por via da relacionação com as outras pessoas — mais
concretamente, pela via do cumprimento do dever geral de abstenção a que todas elas se
encontram adstritas —, que o titular do direito obtém a satisfação do seu interesse. “Se
dissermos ao proprietário de determinado prédio que, em tal qualidade, está constituído

Fondamentales du Droit Privé — Essai Critique (Pour Servir d’Introduction à l’Étude des Obligations),
Arthur Rousseau, Paris, 1911, p. 411-413, it. nosso.
Apoiemo-nos nas palavras de MOTA PINTO, Direitos Reais, p. 35, que subscrevemos: para
DEMOGUE, “a diferença entre direito real e direito de crédito não seria verdadeiramente qualitativa mas
mais quantitativa, uma vez que, havendo em ambos essa obrigação passiva universal, esta é o elemento
fundamental dos direitos reais, enquanto nos direitos de crédito consista na imposição ‘erga omnes’, pelo
credor, do seu direito à prestação do devedor.” “Esta doutrina carece, porém, de fundamento material a
partir do momento em que o sistema jurídico não admita o chamado efeito externo das obrigações a que
esta concepção conduz.” Sobre este doutrina vide infra.
27
Obrigações Reais e Ónus Reais, ob. cit., p. 125-126.
28
Obrigações Reais e Ónus Reais, ob. cit., p. 56, p. 70 e ss. e p. 128.
MÓNICA JARDIM/MARGARIDA COSTA ANDRADE

em miríade de relações jurídicas com as demais pessoas, ele não alcançará por certo o
que isto significa. Mas se, diversamente, lhe dissermos que tem um poder exclusivo sobre
o imóvel — isto é, um poder que nenhuma outra pessoa pode arrogar-se — ele sentirá
imediatamente que se lhe fala do cerne do seu direito. Na expressão vulgar ‘isto é meu’
(res mea est) está compreendida, pelo menos no plano fenomenológico, toda a essência
do domínio”29. Afasta-se, então, e claramente tanto da teoria personalista, como da
eclética.
Mais: segundo HENRIQUE MESQUITA, a afirmação de que a existência de
direitos supõe relações intersubjectivas e obrigações nunca foi demonstrada30. “Sem
dúvida que o Direito só se justifica porque há conflitos de interesses entre os homens.
Mas daqui não decorre que esses conflitos apenas possam ser compostos ou solucionados
através de relações intersubjectivas. A tutela dos interesses humanos, designadamente dos
interesses de natureza patrimonial, pode ser alcançada não só por via de relações de
cooperação, mas também pela via da ordenação directa dos bens – da sua imediata
subordinação aos sujeitos a quem a ordem jurídica reconhece, verificados certos
pressupostos, legitimidade para deles tirar proveito ou praticar certos actos que os tenham
por objecto.”31

11. Mas a posição adoptada por HENRIQUE MESQUITA também se distingue


da teoria realista clássica. Fundamentalmente por duas razões.
Por um lado, dá resposta à questão de saber como se protege o direito real: através
do poder de afastar ou excluir ingerências de terceiros — vinculados pelo dever geral de
abstenção — que não envolve ou supõe qualquer relação intersubjectiva (e por isto rejeita
a obrigação passiva universal). O que quer dizer que aquilo que segundo a posição
eclética era elemento do direito real é postergado para fora dele, sem contudo se negar a
existência de uma sanção para todo aquele que não cumpra o dever de se eximir de
qualquer ingerência no exercício do poder directo e imediato sobre a coisa.

29
Obrigações Reais e Ónus Reais, ob. cit., p. 56.
30
Obrigações Reais e Ónus Reais, ob. cit., p. 57 a 61.
31
Obrigações Reais e Ónus Reais, ob. cit., p. 57, últ. it. nosso.
MÓNICA JARDIM/MARGARIDA COSTA ANDRADE

Por outro lado, distingue os direitos reais dos direitos pessoais de gozo, tendo em
conta o diferente fundamento ou fonte do poder directo e imediato sobre a coisa e a
diversidade de efeitos que o mesmo produz nas respectivas relações jurídicas.32

12. Nesta sumária descrição da construção de HENRIQUE MESQUITA33 fica


ainda por sublinhar devidamente o recurso à categoria de estatuto enquanto por ele faz
entrar no conceito do direito real os tais deveres que, ao lado dos poderes sobre a coisa,
são inerentes à condição de titular do direito real.
Segundo este autor, a cada passo, deparamo-nos com normas legais que criam
directamente ou permitem criar (por negócio jurídico), no âmbito das relações de natureza
real, vinculações ou deveres de conteúdo positivo que oneram o titular do direito. E tais
deveres fazem, inquestionavelmente, parte do conteúdo da posição jurídica do titular do
direito, não podendo, por isso, deixar de ser tomadas em linha de conta aquando da
definição de direito real.34 Por isto, o recurso à expressão estatuto revela-se
particularmente feliz, na medida em que compreende um feixe de poderes e de deveres
(de conteúdo positivo) atribuídos a quem titule o direito real.
Claro está que HENRIQUE MESQUITA não nega que o titular de um direito real
esteja também constrangido por deveres de conteúdo negativo, de não fazer (por exemplo,
não construir a menos de 1,5 m de distância do prédio vizinho quando se queira abrir uma
janela — art. 1360.º). Porém, estes não fazem parte do estatuto do direito real; antes,
comprimem-no de fora, auxiliando na definição do conteúdo do direito por exclusão.

32
Além das posições que fomos sumariamente descrevendo, formulações nacionais partem do conceito
de direito subjectivo. Segundo MENEZES CORDEIRO (na esteira de GOMES DA SILVA, para quem o
direito subjectivo se caracteriza pela afectação de um bem aos fins de pessoas individualmente
consideradas; o direito real é um direito subjectivo em que esse bem é uma coisa — Curso de Direitos
Reais, AAFD, Lisboa, 1955, p. 64-65), o direito real é “uma permissão normativa específica de
aproveitamento de uma coisa corpórea” (ao passo que “o direito de crédito traduz a permissão normativa
específica de aproveitamento de uma prestação”, de uma conduta humana) — Tratado de Direito Civil
Português, vol. VI, Direito das Obrigações: Introdução, Sistemas e Direito Europeu, Dogmática Geral,
Almedina, Coimbra, 2012, 2.ª ed., p. 443. No mesmo caminho, CARVALHO FERNANDES define o
direito real como “direito absoluto e inerente a uma coisa corpórea, afectada à realização de interesses
jurídico-privados de uma pessoa determinada” (Lições de Direitos Reais, p. 48) e MENEZES LEITÃO diz
ser “um direito absoluto e inerente a uma coisa corpórea, que permite ao seu titular determinada forma de
aproveitamento jurídico desta” (Direitos Reais, Almedina, Coimbra, 2011, 2.ª ed, p. 105). Segundo
OLIVEIRA ASCENSÃO, numa fórmula que faz derivar directamente da noção de direito subjectivo de
GOMES DA SILVA, o direito real é um direito absoluto, inerente a uma coisa e funcionalmente dirigido a
afectar vantagens intrínsecas desta ao titular (Direito Civil, Reais, p. 54).
33
Apresentamos, por agora, a posição de HENRIQUE MESQUITA de forma muito sumária, porque a
ela voltaremos, com o pormenor devido, quando apresentarmos a nossa posição sobre a polémica em
apreço, uma vez que aderimos à sua tese na íntegra.
34
Obrigações Reais e Ónus Reais, ob. cit., p. 10 e ss., p. 101 e p. 287, entre outras.
MÓNICA JARDIM/MARGARIDA COSTA ANDRADE

b) Posição adoptada

13. Tal como HENRIQUE MESQUITA, entendemos que o direito real é, além de
um poder directo e imediato sobre uma coisa, fonte de obrigações de conteúdo positivo
de dare ou de facere (são as designadas obrigações reais).

I. O direito real é um poder directo e imediato sobre uma coisa

14. Consideramos que, em virtude de um direito real, uma coisa fica directa e
imediatamente subordinada ao domínio ou à soberania jurídica de uma pessoa (o titular
do ius in re). De facto, na nossa perspectiva, repetimos, o núcleo essencial do direito real
traduz-se no domínio ou soberania de uma pessoa sobre uma coisa, de modo tal que só
pode afirmar-se a sua natureza absoluta ou independente. Ora, é desta subordinação da
coisa que resulta a exclusão de terceiros; ou, se se quiser, de outra perspectiva, da
soberania do titular do direito real sobre a coisa resulta uma força capaz de excluir ou
expulsar todos os terceiros de tal esfera de domínio, que é o que permite afirmar o direito
real como ius excludendi omnes alios. Por isto, o direito real é um direito absoluto e a sua
eficácia erga omnes mais não é do que uma consequência necessária ou um corolário
lógico do conceito de realidade.
Vejamos mais desenvolvidamente.

15. O direito real é estruturalmente absoluto, no sentido de direito independente


ou de direito que não implica uma relação ou um vínculo para com outrem: um direito
absolutus. A absolutidade em termos estruturais traduz-se, pois, na satisfação do direito
através da actuação directa e imediata sobre a coisa que é objecto do domínio ou da
soberania, na ausência de uma qualquer relação intersubjectiva.
Contra não procede o argumento segundo o qual todo o direito supõe
intersubjectividade, pois, sendo inquestionável que o Direito só se justifica porque há
conflitos de interesses entre os homens, daí não decorre que esses conflitos apenas possam
ser compostos ou solucionados através de relações intersubjectivas. A tutela dos
interesses humanos, designadamente dos interesses de natureza patrimonial, pode ser
alcançada não só por via de relações de cooperação, mas também pela via da ordenação
directa dos bens — da sua imediata subordinação aos sujeitos a quem a ordem jurídica
reconhece, verificados certos pressupostos, legitimidade para deles tirar proveito ou
MÓNICA JARDIM/MARGARIDA COSTA ANDRADE

praticar certos actos que os tenham por objecto.”35 Ou, por outra via, se o Direito
pressupõe, seguramente, outros homens — uma vez que visa arbitrar conflitos —, não
tem de implicar, em todos os casos, uma relação de cooperação e uma obrigação.
Já as relações obrigacionais são sempre de cooperação e, portanto,
necessariamente intersubjectivas, pois tendo por escopo, como já o dissemos, o de
proporcionar ao credor certa prestação, traduzem-se num vínculo ou ligação entre o
credor e o devedor. E, como é evidente, “ninguém pode ser devedor para com uma coisa
e uma coisa, por sua vez, também não pode ser devedora de quem quer que seja nem
perante quem quer que seja”36. Ao invés, no domínio dos direitos reais é perfeitamente
concebível que a relação jurídica se estabeleça directamente entre o titular do direito e a
coisa, uma vez que, por um lado, não estamos perante uma relação, do mesmo tipo das
relações obrigacionais, que suponha cooperação, mas sim, em face de uma relação que
podemos denominar como ordenadora ou atributiva. E, por outro, porque “o que o
conceito ou categoria de relação jurídica exige, de modo imprescindível, é apenas a
existência de dois pólos ou termos que a ordem jurídica interliga. Ora, visando os direitos
reais, no plano funcional, delimitar o poder de cada um sobre as coisas ou, por outras
palavras, atribuir aos respectivos titulares a plena soberania (caso da propriedade) ou
determinada soberania (caso dos direitos reais limitados) sobre uma coisa, essa atribuição
pode perfeitamente operar-se através de uma relação jurídica estabelecida, recta via, entre
o sujeito do direito e o objecto sobre que este incide”37.

16. No entanto, no direito real, na medida em que dele resulta, para o seu titular,
uma esfera de domínio exclusivo sobre a coisa, a todos os demais está vedado interferir
na esfera para aquele reservada. Porquanto, se a ordem jurídica atribui a determinada
pessoa a soberania sobre uma coisa, correlativamente impõe, a todas as demais, o dever
de respeitar essa soberania, pois uma pessoa só tem o domínio de uma coisa quando, para
além de poder interferir com ela, puder também excluir todos os outros de interferirem
com ela na medida em que tal ingerência seja incompatível com o conteúdo do seu direito.
Assim, a ordem jurídica, ao atribuir a alguém a soberania ou certa soberania sobre uma
coisa, correspectivamente, impõe a todos os demais cidadãos o dever de nela (na
soberania, entenda-se) não interferir, de a respeitar. “O objecto do direito real constitui,

35
HENRIQUE MESQUITA, Obrigações Reais e Ónus Reais, ob. cit., p. 57, últ. it. nosso.
36
HENRIQUE MESQUITA, Obrigações Reais e Ónus Reais, ob. cit., p. 58.
37
HENRIQUE MESQUITA, Obrigações Reais e Ónus Reais, ob. cit., p. 58 e 59.
MÓNICA JARDIM/MARGARIDA COSTA ANDRADE

na medida dos poderes que sobre esse objecto podem ser exercidos, uma esfera reservada
ao respectivo titular e, por conseguinte, o nascimento do direito necessariamente há-de
implicar, para todos os não-titulares, um dever geral de abstenção”38.
Porém, a ordem jurídica, ao impor o dever geral da abstenção, não visa relacionar
o titular do direito real com todas as outras pessoas. Visa precisamente o contrário: criar
uma situação de total afastamento ou separação do titular perante os não titulares, isolar
cada homem dos outros e pô-lo em contacto directo com a coisa. Porque assim é, o dever
geral de abstenção mais não é do que um reflexo ou corolário da soberania positiva
atribuída ao titular do direito real. O prius lógico é o poder do titular do direito real sobre
a coisa; o posterius, ou a consequência, é a correspondente exclusão de todos os demais
sujeitos. Por isto, não obstante concordarmos com a ideia de que proteger torna jurídico
o poder, não consideramos que o proteger seja elemento do poder.
Em suma, defendemos que a denominada obrigação passiva universal é apenas
o dever geral de respeito ou de abstenção — o dever de não impedir, nem embaraçar o
exercício do direito real ou de respeitar a soberania que lhe é inerente — e não uma
verdadeira obrigação integrada numa relação intersubjectiva; e que tal dever não é, não
pode ser de forma alguma, o contrapolo do direito em que está investido o titular do
direito real, uma vez que o conteúdo deste não é constituído pelo resultado da observância
do dever geral de abstenção ou, por outras palavras, uma vez que o cumprimento do dever
geral de abstenção não assume a função de realizar o direito do titular do direito real. Na
verdade, o interesse típico do titular de um direito real não obtém satisfação — não se
realiza — através de uma qualquer prestação efectuada por outrem, mas sim, como
começámos por afirmar, através da actuação directa e imediata sobre a coisa que não
encontra a sua fonte em um compromisso assumido por quem quer que seja.
O fenómeno da realidade traduz-se na subordinação da coisa à soberania de uma
pessoa. Este é o seu núcleo essencial. O dever geral de abstenção e a eficácia erga omnes
surgem reflexamente, como efeitos ou consequências da atribuição da soberania positiva.
Por isso, reafirmamos, a absolutidade em termos estruturais, típica dos direitos
reais, traduz-se na satisfação do direito através da actuação directa e imediata sobre a
coisa e, consequentemente, na ausência de uma relação intersubjectiva e,
consequentemente, de qualquer obrigação39.

38
HENRIQUE MESQUITA, Obrigações Reais e Ónus Reais, ob. cit., p. 61.
39
Sobre a conceitualização dos direitos reais como direitos de domínio ou soberania —
Herrschaftsrechte, na terminologia alemã —, e não como direitos que originam ou implicam uma relação
MÓNICA JARDIM/MARGARIDA COSTA ANDRADE

Em suma: “os direitos reais não são direitos contra as pessoas ou em relação a
pessoas, mas sim direitos de soberania (Herrschaftsrechte) sobre as coisas” e “o direito
real pode ser definido como todo aquele que, sendo estruturalmente absoluto, atribui
imediatamente utilidades de uma coisa”40.

17. Por fim, cumpre sublinhar que nos direitos de crédito não existe qualquer
esfera de domínio exclusivo. O que deles resulta é, apenas, como já referimos, a faculdade
de o credor exigir ao devedor certa prestação, de conteúdo positivo (dare ou facere) ou
negativo (non facere)41. O direito de crédito tem por escopo proporcionar ao credor certa
prestação (de dare, de facere, ou de non facere) e, naturalmente, envolve um vínculo ou
ligação entre o credor e o devedor, ou seja, uma relação intersubjectiva de cooperação –
porque a prestação enquanto comportamento de uma pessoa é, evidentemente, incindível
dessa pessoa42.
A relação obrigacional é uma relação jurídica em que um dos sujeitos (o sujeito
activo) pode exigir de outro (sujeito passivo) a realização de uma prestação, havendo
perfeita correspondência entre o conteúdo e o objecto do direito do credor e o conteúdo e
o objecto da obrigação do devedor. Na relação obrigacional, o cumprimento tem a função
de realizar o direito do credor, sendo, simultaneamente, um instrumento suficiente para
satisfazer tal direito43. Portanto, nos direitos de crédito — mesmo quando se dirigem a
uma coisa e não a uma prestação de facto positivo ou negativo — não existe qualquer
esfera de domínio exclusivo, ao contrário do que ocorre nos direitos reais. O que deles

jurídica entre o respectivo titular e todas as demais pessoas (a relação jurídica estabelece-se directamente
entre o titular e a coisa), veja-se a bibliografia referida por HENRIQUE MESQUITA, Obrigações Reais e
Ónus Reais, ob. cit., nota 50, p. 63.
40
Cfr. HENRIQUE MESQUITA, Obrigações Reais e Ónus Reais, ob. cit., p. 71.
41
Vide, a propósito e neste sentido: HEDEMANN, Tratado de Derecho Civil, vol. II (Derechos Reales),
Versão espanhola e notas de José Luis Diez Pastor e Manuel Gonzalez Enriquez, Editorial Revista de
Derecho Privado, Madrid, 1955, p. 35; HENRIQUE MESQUITA, Obrigações Reais e Ónus Reais, ob. cit.,
p. 61.
42
Ou seja, “o direito de crédito pode desde logo dirigir-se, não à prestação de uma coisa, mas à de um
facto, positivo ou negativo, uma acção ou omissão; mas, mesmo quando se dirige a uma coisa, quando é o
direito a uma coisa, dirige-se ao comportamento do devedor, que é a sua entrega, intercedendo entre o
titular activo e a coisa a mediação de um comportamento do devedor que é a prestação.” (Cfr. MOTA
PINTO, Direitos Reais, ob. cit., p. 28).
43
Como é evidente, o que realmente tem interesse para o credor é a coisa (nas obrigações de prestação
de coisa) ou o resultado da prestação (nas prestações de facto). No entanto, a verdade é que não sendo
realizada a prestação, voluntária ou coercivamente, nunca o credor obtém a satisfação do seu direito.
MÓNICA JARDIM/MARGARIDA COSTA ANDRADE

resulta é, apenas, a faculdade de o credor exigir ao devedor certa prestação, de conteúdo


positivo (dare ou facere) ou negativo (non facere)44.

i. Crítica à teoria personalista

18. A teoria personalista desconhece o conteúdo do direito e sobrevaloriza o


momento sancionatório. O núcleo de qualquer relação real é, sem sombra de dúvidas,
pelo menos no plano dos efeitos prático-económicos que visa produzir, o domínio ou
soberania de uma pessoa sobre uma coisa. É através desse domínio, e não por via da
relacionação com as outras pessoas, que o titular do direito obtém a satisfação do seu
interesse”45.
De facto, repetimos, a ordem jurídica, não visa relacionar o titular do direito real
com todas as outras pessoas. Visa precisamente o contrário: criar uma situação de total
afastamento ou separação do titular perante os não titulares, isolar cada homem dos
outros e pô-lo em contacto directo com a coisa.
A denominada obrigação passiva universal é apenas o dever geral de respeito ou
de abstenção — o dever de não impedir, nem embaraçar o exercício do direito real ou de
respeitar a soberania que lhe é inerente — e não uma verdadeira obrigação integrada numa
relação intersubjectiva; e que tal dever não é, não pode ser de forma alguma, o contrapolo
do direito em que está investido o titular do direito real, uma vez que o conteúdo deste
não é constituído pelo resultado da observância do dever geral de abstenção ou, por outras
palavras, uma vez que o cumprimento do dever geral de abstenção não assume a função
de realizar o direito do titular do direito real. Na verdade, o interesse típico do titular de
um direito real não obtém satisfação – não se realiza – através de uma qualquer prestação
efectuada por outrem, mas sim, como começámos por afirmar, através da actuação directa
e imediata sobre a coisa que não encontra a sua fonte em um compromisso assumido por
quem quer que seja.

19. Acresce que nem sequer existe qualquer necessidade de recorrer à


intersubjectividade para explicar as soluções dadas por lei aos denominados conflitos de
direitos reais: concurso de direitos reais e relações de vizinhança.

44
Vide, a propósito e neste sentido: HEDEMANN, Tratado de Derecho Civil, vol. II, ob. cit., p. 35;
HENRIQUE MESQUITA, Obrigações Reais e Ónus Reais, ob. cit., p. 61.
45
Vide HENRIQUE MESQUITA, Obrigações Reais e Ónus Reais, ob. cit., p. 56.
MÓNICA JARDIM/MARGARIDA COSTA ANDRADE

O concurso de direitos existe quando sobre uma mesma coisa incide mais do que
um direito real, quer em causa estejam direitos de tipo diferente (ex.: sobre um prédio
podem incidir: um direito de propriedade e uma hipoteca ou um direito de usufruto e uma
servidão), quer direitos reais do mesmo tipo, mas de conteúdo diverso (ex.: sobre um
prédio incide uma servidão de passagem ou de trânsito e uma servidão de aqueduto), quer,
por último, direitos reais do mesmo tipo e conteúdo (ex.: sobre um prédio incidem várias
servidões de passagem ou de trânsito). Esta última modalidade de concurso não é possível
em relação ao direito de propriedade, nem ao de usufruto, pois tais direitos, no respeitante
aos poderes ou à soberania que conferem, abrangem todas ou quase todas,
respectivamente, as utilidades que a coisa seja capaz de proporcionar (cfr. arts. 1305.º e
1349.º).
E, é claro que, as situações de concurso podem gerar conflitos entre os titulares
dos direitos concorrentes e que a lei tem que estabelecer uma disciplina adequada a evitar
ou a solucionar tais conflitos. Ora, o direito das coisas é o conjunto de normas que realiza
a ordenação directa dos bens, subordinando-os ao domínio ou soberania das pessoas e
para que essa ordenação se faça com precisão, o legislador não pode apenas enunciar os
tipos de direitos de que as coisas podem ser objecto. Tem, ainda, que indicar o exacto
conteúdo desses direitos, os poderes que conferem ao seu titular e os limites objectivos
dentro dos quais tais poderes podem ser exercidos. Só assim o legislador define com rigor
o conteúdo da relação jurídica entre o titular do direito e a coisa.
Pois bem, o que se passa no caso de concurso de direitos reais é que a lei fixa com
precisão os limites de cada um destes direitos, para possibilitar a sua coexistência e evitar
conflitos entre os titulares. A lei não estabelece relações entre os titulares dos diversos
direitos; na verdade, cada um deles encontra-se perante os outros na mesma situação que
um qualquer terceiro: tem de respeitar a esfera de soberania alheia, não por força de uma
relação intersubjectiva existente entre eles, mas por força do dever geral de abstenção.
Os direitos reais menores — ou iura in re aliena —46, com as suas diferentes
amplitudes de soberania, provam que o direito real não envolve ou supõe qualquer relação
intersubjectiva, nem mesmo entre os respectivos titulares e o titular do direito real mais
amplo (por regra, a propriedade)47. Tal resulta de forma clara quando se tem presente que

46
Estes direitos, quando constituídos pelo proprietário, como veremos, são produto de correspondentes
contracções ou retracções do direito de propriedade (elasticidade) e a sua constituição é ainda, obviamente,
uma manifestação do poder de domínio ou soberania.
47
Neste sentido, vide HENRIQUE MESQUITA, Obrigações Reais e Ónus Reais, ob. cit., p. 82 e ss..
MÓNICA JARDIM/MARGARIDA COSTA ANDRADE

entre os títulos de constituição dos direitos reais limitados consta a usucapião (e que as
relações obrigacionais não são susceptíveis de constituição pela via da posse e sucessiva
usucapião, pois supõem cooperação). Ou que os direitos reais sobre coisa alheia podem
surgir independentemente de qualquer relação jurídica com outro sujeito e, mesmo que
surjam a partir de um direito, este só tem uma função genética ou matricial. Ou seja, por
exemplo, se sobre um mesmo prédio coexistirem o direito de propriedade e o direito de
usufruto é evidente que os titulares de cada um dos direitos não pode desrespeitar o direito
de outro; mas isto é assim porque cada um deles está onerado por um dever geral de
abstenção em relação ao direito de outro, não porque estejam em relação entre si. Mesmo
que a fonte do contrato de usufruto seja um contrato. Depois de este ter sido validamente
celebrado intervém a lei para estabelecer qual o espectro de poderes e de deveres de
conteúdo positivo que compõem o núcleo do seu direito.48
De facto, os direitos reais, uma vez constituídos (por exemplo, através de contrato
ou testamento), desligam-se dessa matriz e conferem ao seu titular uma posição jurídica
que não depende de ninguém; por isso se afirma que o poder directo e imediato que
conferem ao seu titular tem a verdadeira matriz na relação de soberania. O titular do
direito real mais amplo apenas sente de modo particularmente mais intenso a soberania
do titular do direito real limitado, pois esta limita ou comprime a sua esfera de poderes.
Finalmente, os direitos reais limitados não são afectados pela extinção do direito real mais
amplo, mas sim pelo desaparecimento da coisa sobre a qual incidem ou pela verificação
do evento de que dependia a sua própria duração49. Portanto, repise-se, os direitos reais
limitados não supõem, de facto, uma relação intersubjectiva.

20. Por seu turno, em matéria de relações de vizinhança50, a lei também não cria
nem pretende criar relações entre os proprietários; estabelece, isso sim, uma
regulamentação minuciosa dos conflitos a que os direitos de propriedade podem dar
origem, regulamentação essa que amplia e limita, em termos correspondentes, o conteúdo

48
Mesmo que estes deveres possam ter por fonte o contrato, tal só pode acontecer se e nos termos em
que a lei o permitir. Vide infra sobre as obrigações reais.
49
Ao afirmado cumpre acrescentar que, quanto às coisas móveis, os direitos reais limitados podem
incidir sobre res nullius; consequentemente, a obrigação de suportar (a patientia) e a de non facere não são
necessárias ao conceito de direito real limitado. Acresce que, se determinada coisa se torna res nulius, nem
por isso se extinguem os direitos menores que sobre ela incidem.
50
A lei visando a coexistência e o exercício harmónico dos direitos reais sobre imóveis limítrofes (é em
relação a imóveis que o problema fundamentalmente se suscita) estabelece uma regulação minuciosa dos
conflitos que tais direitos podem originar. A tal regulação dá-se o nome de direito de vizinhança.
Nas relações de vizinhança também surgem conflitos de direitos reais, mas estes direitos não incidem,
ao contrário do que acontece no concurso, sobre uma mesma coisa.
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do direito de propriedade sobre prédios vizinhos, determinando que os limites objectivos


do domínio não coincidem com os limites materiais da coisa sobre a qual o direito real
incide, mas que se situam além ou aquém destes limites51. Deste modo, fixa a lei a medida
ou o conteúdo objectivo do direito. De facto, em certos casos, a lei permite ao respectivo
titular a prática, no seu prédio, de actos cujos efeitos se repercutem noutros prédios52 ou,
indo mais longe, admite-lhe intromissões no prédio vizinho53, pois permite que actue
sobre ele. Noutros casos, ao invés, no interesse dos vizinhos, a lei proíbe determinadas
actuações mesmo dentro dos limites materiais do objecto do direito54.
Deste modo, a lei limita-se a fixar o estatuto da ordenação jurídica dos bens,
determinando em que termos estes são postos à disposição do titular; não estabelece,
repetimos, relações entre proprietários.

21. Depois, revendo as duas outras críticas que alguns dos defensores da teoria
personalista dirigem à teoria realista, somos levados a concluir que não são nada
convincentes.
Ambas as críticas são sustentadas no facto de os autores em causa confundirem
poder directo e imediato com poder material sobre a coisa.
Vejamos com mais pormenor.
Quanto à primeira crítica, o credor hipotecário, realmente, não tem o poder directo
e imediato se por esta expressão entendermos poder material: o titular da garantia
hipotecária não pode dispor, fruir ou usar a coisa (nem a sua detenção material terá). Mas
pode intentar uma acção executiva para promover a venda judicial do bem e, com o
produto desta, ver satisfeito o seu direito de crédito, com preferência em face dos restantes
credores que não beneficiem de uma melhor garantia. É ainda possível verificar formas

51
Os limites de um direito são os limites postos à actuação do respectivo titular e tais limites nem
sempre coincidem com os limites materiais ou objectivos da coisa. Veja-se que, nos termos do n.º 1 do art.
1344.º, “a propriedade dos imóveis abrange o espaço aéreo correspondente à superfície, bem como o
subsolo, com tudo o que neles se contém e não esteja desintegrado do domínio por lei ou negócio jurídico.”
Seguimos de perto HENRIQUE MESQUITA, Obrigações Reais e Ónus Reais, ob. cit., p. 57 a 61, p.
71, p. 82 a 98. No mesmo sentido, vide ACHILLE GIOVENE, Per una teoria del negozio giuridico rispetto
ai terzi, Rivista del Diritto Commerciale e del Diritto Generale delle Obbligazioni, vol. XIV, 1916, 1.ª
parte, p. 595; idem, Il Negozio Giuridico Rispetto ai Terzi, 2.ª ed., Turim, UTET, 1917, p. 82.;
FRANCESCO CARNELUTTI, Appunti sulle obbligazioni, Rivista del Diritto Commerciale e del Diritto
Generale delle Obbligazioni, vol. XIII, 1915, 1.ª parte, p. 533; JOSÉ DE ANDRADE MESQUITA,
Direitos Pessoais de Gozo, ob. cit., p. 119 e ss.; LUIGI MOSCO, I Frutti nel Diritto Positivo, Milano,
Giufré, 1947, p. 442.
52
Cfr. art. 1346.º, a contrario.
53
Cfr., por exemplo, o art. 1349.º.
54
Cfr., por exemplo, os arts. 1346º e 1365.º.
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de poder do credor hipotecário antes deste momento — veja-se, por exemplo, o art. 692.º
e o art. 701.º, ambos do Código Civil —; ainda que elas sirvam o mesmo propósito, i. e.,
o de assegurar a manutenção de um determinado valor “responsável” pelo
inadimplemento. Há, portanto, um poder directo e imediato sobre a coisa, mas que
consiste numa afectação jurídica de uma das vantagens que a coisa pode oferecer: é a de
transformar o seu valor numa quantia pecuniária, que, por sua vez, satisfará o direito de
crédito do credor hipotecário. Ou seja, o direito real de garantia traz para o seu titular a
vantagem da oneração de coisa, certa e determinada, enquanto esta sirva, pelo seu valor,
o propósito de ressarcir com preferência o credor confrontado com o incumprimento. O
interesse do credor garantido não é a utilidade que a coisa produza, pois que não é por
essa utilidade que satisfará o seu interesse. O que ele procura é o valor de troca que a
coisa encerra, um dos atributos da coisa, ao lado da sua capacidade produtiva lato sensu.
Ora, é nesta afectação da qualidade “valor” à satisfação do interesse do credor que se
encontra a inegável matriz realista de uma garantia de cumprimento. Nos direitos reais de
garantia, a relação que se estabelece entre o titular do direito e a coisa não se caracteriza
pelo gozo ou sequer pelo poder material — como comprova a hipoteca —, mas pela
afectação jurídica de uma (outra) qualidade da coisa, um (outro) modo de ser dela, que é
a sua permutabilidade. Aliás, isto mesmo é confirmado pelo próximo argumento.
Com a segunda crítica o que se pretendia afirmar é que a entrega da coisa (e,
assim, o poder directo e imediato, entendido, repita-se, como poder material) não é o
modo de satisfação do titular do direito real de penhor, pois que o interesse do titular deste
direito se satisfaz pelo cumprimento do crédito garantido, ainda que pela execução da
coisa onerada, e não pelo facto de a coisa ter passado das mãos do devedor para as do
credor pignoratício. Ora, como começámos por referir, constata-se uma confusão entre
poder directo e imediato sobre a coisa — no sentido de aproveitamento, pelo menos, das
utilidades que esta produza — e poder material. Realmente, o credor pignoratício nem
sequer pode, em princípio, usar a coisa (cfr. al. b) do art. 671.º) — mas, é titular de um
poder directo e imediato sobre a coisa (poder jurídico), no sentido de que pode aproveitar
uma outra das qualidades desta, que é o seu valor, para satisfazer o seu interesse, através
da acção executiva e consequente venda judicial. E isto independentemente do facto de o
desapossamento do devedor ser (tendencialmente) imperativo segundo a lei portuguesa
(que serve, primordialmente, interesses de publicidade57). Tanto assim é que em alguns

57
Dizemos “primordialmente” para não descartar em absoluto a outra razão que é tendencialmente
avançada para o desapossamento, ou seja, a de que ele protege o credor de alienações a terceiro pelo
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ordenamentos jurídicos, como o francês, o desapossamento (poder material) pode ser


substituído por outro meio de publicitação da garantia (registo) sem se questionar a
existência de um direito real, precisamente porque a qualidade valor está juridicamente
afecta à satisfação do interesse do seu titular.
Como é evidente, o domínio ou soberania jurídica de uma pessoa sobre uma coisa
— que traduz, no essencial, o fenómeno da realidade — assume gradações diversas,
consoante as várias modalidades de direitos reais que a lei admite. A soberania atinge a
amplitude máxima no direito de gozo que é a propriedade — o direito real por excelência
—, uma vez que o proprietário tem o monopólio das vantagens que a coisa é susceptível
de proporcionar, dentro dos limites fixados por lei.
Nos direitos reais de gozo sobre coisa alheia, a soberania traduz-se no poder de
praticar sobre a coisa determinados actos (de uso, fruição ou transformação) indicados
por lei. Actos esses que, se o direito real limitado de gozo não existisse, poderiam ser
realizados pelo proprietário ou que este podia impedir que um terceiro os praticasse (é o
que ocorre nas servidões positivas, por exemplo, na servidão de passagem ou na de
aqueduto)58. Nos direitos reais de garantia, o respectivo titular não pode praticar actos de
uso ou fruição da coisa, mas, como estes direitos conferem ao credor o direito de se pagar
à custa do valor de certos bens, com preferência sobre os demais credores do devedor, o
seu titular pode desencadear um acto de disposição para, assim, realizar à custa da coisa
determinado valor (o valor de crédito garantido), independentemente da cooperação do
proprietário ou mesmo contra a sua vontade. Portanto, a soberania que confere um direito
real de garantia traduz-se no poder do seu titular de promover a venda judicial da coisa,
de modo a satisfazer o seu crédito com preferência sobre os credores comuns, bem como
sobre os credores que disponham de uma garantia de grau inferior. Sublinhe-se, por fim,
que a obrigatoriedade de esse valor ser realizado com a cooperação de um órgão estadual
não altera a essência do direito. Nos direitos reais de aquisição, a soberania traduz-se tão
somente no facto de o respectivo titular poder adquirir ou constituir determinado direito
real sobre uma coisa.59

proprietário-devedor. Vide infra.


58
Sobre as servidões negativas vide infra.
59
Em face de tudo o que foi dito, pode concluir-se afirmando que os direitos reais sobre coisa alheia,
ao contrário do direito da propriedade, conferem ao seu titular apenas uma parcela da soberania de que a
coisa é susceptível.
Refira-se, ainda, que como é evidente, apenas tendo em conta a soberania atribuída ao titular do direito
real podemos individualizar os vários direitos reais, mesmo os que integram uma mesma categoria e,
consequentemente, a amplitude do poder de excluir ingerências de terceiros.
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Todos os direitos reais consistem num poder directo e imediato sobre coisa certa
e determinada, mas cada um deles tem conteúdo diferente, consoante as faculdades que a
lei lhes associa. De outro modo: o poder (directo e imediato) sobre a coisa altera-se em
função do tipo de direito real que se exerce sobre ela.

ii. Crítica à teoria ecléctica

22. Em face do acabado de expor, é evidente que, defendo nós que os direitos reais
não se traduzem em relações intersubjectivas ou de cooperação, mas sim ordenadoras ou
atributivas, também recusamos a teoria ecléctica ou mista. Mais concretamente:
recusamos que possa definir-se o direito real através de uma componente subjectiva,
mesmo que sancionatória, como o fazem os defensores da teoria eclética. Pois, repisamos,
a ordem jurídica, não visa relacionar o titular do direito real com todas as outras pessoas.
Visa precisamente o contrário: criar uma situação de total afastamento ou separação do
titular perante os não titulares, isolar cada homem dos outros e pô-lo em contacto directo
com a coisa.
O núcleo de qualquer relação real é, sem sombra de dúvidas, pelo menos no plano
dos efeitos prático-económicos que visa produzir, o domínio ou soberania de uma pessoa
sobre uma coisa. É através desse domínio, e não por via da relacionação com as outras
pessoas, que o titular do direito obtém a satisfação do seu interesse. Efectivamente, o
interesse típico do titular de um direito real não se realiza através de uma qualquer
prestação efectuada por outrem, mas sim através da actuação directa e imediata sobre a
coisa que não encontra a sua fonte em um compromisso assumido por quem quer que
seja.

iii. Crítica à teoria realista clássica

23. Uma insuficiência que tem de apontar-se à teoria realista é a de por ela se não
logra distinguir um direito real de um direito pessoal de gozo, uma vez que os titulares
dos direitos pessoais de gozo também satisfazem o seu interesse exercendo um poder
directo e imediato sobre a coisa. De facto, também nestes direitos o titular para efectivá-
los, para satisfazer o interesse que os levou a adquiri-los, actua sobre a coisa e sem a
colaboração de ninguém. Efectivamente, o titular de um direito pessoal de gozo tem
acesso às utilidades da coisa apesar de ninguém estar vinculado ao cumprimento de uma
prestação positiva permanente. Na verdade, apenas existe (quando existe), a cargo do
concedente, uma obrigação de entrega que é cumprida através de uma prestação
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instantânea e não duradoura. Sendo assim, para caracterizar o direito real, de forma a
distingui-lo dos direitos de natureza pessoal que conferem também poderes directos e
imediatos sobre uma coisa torna-se necessário indicar o fundamento ou fonte de tais
poderes e os efeitos que o mesmo produz na relação jurídica75. De outro modo:
envolvendo um direito real um poder directo e imediato sobre a coisa tal não obsta à sua
distinção perante os direitos de natureza pessoal que conferem também poderes directos
e imediatos sobre uma coisa (direitos pessoais de gozo), desde que se determine o
fundamento de tais poderes e os efeitos que o mesmo produz na relação jurídica76.
O poder conferido por um direito pessoal de gozo, embora se exerça de modo
directo e imediato sobre a coisa, não assenta numa relação de soberania, mas sim numa
relação obrigacional — estabelecida com quem tenha legitimidade para dispor do gozo
da coisa, da qual nunca se desprende. Ou seja, nos direitos pessoais de gozo a fonte do
poder directo e imediato sobre as coisas é uma vinculação obrigacional assumida pela
pessoa a quem competia o gozo da coisa (proprietário, usufrutuário, etc.). E, porque assim
é, os direitos pessoais de gozo têm uma eficácia relativa, ou seja, são apenas eficazes inter
partes.
Ao invés, nos direitos reais, o fundamento ou a fonte do poder directo e imediato
é a relação de domínio ou soberania estabelecida entre o titular do direito e a coisa. O
poder directo e imediato é autónomo ou independente, não pressupondo a cooperação ou
a vinculação obrigacional de quem quer que seja. Na verdade, os direitos reais são
absolutos e, mesmo quando constituídos (e conformados, na medida em que a lei o
permita77) por negócio jurídico desligam-se dessa fonte — que tem apenas uma função
genética — conferindo ao seu titular uma posição jurídica que não depende de ninguém.
Por isso se afirma que o poder directo e imediato conferido pelos direitos reais ao seu
titular tem a sua verdadeira matriz na relação de soberania.
Consequentemente, os direitos pessoais de gozo são direitos estruturalmente
relativos, uma vez que assentam numa relação jurídica entre pessoas, e, portanto, são
eficazes inter partes. Diferentemente os direitos reais são absolutos, não implicam
nenhuma relação intersubjectiva e, assim, são eficazes erga omnes.

24. Explicitando.

75
Vide HENRIQUE MESQUITA, Obrigações Reais e Ónus Reais, ob. cit., nota 17, p. 52 e 53.
76
Vide HENRIQUE MESQUITA, Obrigações Reais e Ónus Reais, ob. cit., nota 17, p. 52 e 53.
77
Vide infra sobre o princípio da taxatividade.
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Os direitos pessoais de gozo (por exemplo, o direito do locatário, o direito do


locatário financeiro, o direito do comodatário, o direito do titular de uma “servidão
pessoal”, etc.) apresentam-se estruturalmente complexos: têm uma zona periférica e um
núcleo central.
A zona periférica é consubstanciada em várias obrigações (positivas e negativas),
as quais, sendo de vital importância para o nascimento, a manutenção e, até, para a
caracterização de um direito de gozo, não efectivam o gozo da coisa, limitando-se a
possibilitá-lo. Assim, desde logo, a atribuição de um direito pessoal de gozo implica
sempre a vinculação do concedente a nada fazer que perturbe o direito concedido; caso
contrário, o direito do concessionário perderia toda a consistência.
O núcleo central do direito pessoal de gozo é constituído pelo direito de retirar da
coisa certas utilidades.
Quando se fala em direito pessoal de gozo para abranger ambas as zonas – o
direito de retirar utilidades da coisa e as obrigações positivas e de non facere – está a
tomar-se o direito em sentido amplo ou impróprio. Quando se refere o direito de retirar
utilidades da coisa, está a atender-se a um sentido estrito ou próprio.
Como resulta do exposto, os direitos pessoais de gozo, em sentido estrito ou
próprio, não se reconduzem nem aos direitos reais, nem aos direitos de crédito,
constituindo, antes, direitos imediatos relativos que implicam a existência de uma relação
jurídica entre o titular e o concedente. De facto, diferentemente dos direitos absolutos,
que não implicam nenhuma relação intersubjectiva, os direitos pessoais de gozo são
direitos estruturalmente relativos, uma vez que assentam numa relação jurídica entre
pessoas. Ou seja, são direitos que pressupõem, necessariamente, uma relação entre dois
sujeitos: não existe um concessionário sem um concedente. Assim, os direitos pessoais
de gozo, porque não são marcados pela absolutidade estrutural, não podem ser
identificados com os direitos reais de gozo, não obstante serem imediatos.
Contudo, os direitos pessoais de gozo, em sentido estrito ou próprio, também não
envolvem uma relação creditória pura, uma vez que o titular satisfaz o seu interesse sem
a colaboração de ninguém. De facto, o titular de um direito pessoal de gozo tem acesso às
utilidades da coisa, apesar de ninguém estar vinculado ao cumprimento de uma prestação
positiva permanente, isto é, a um comportamento, quotidie et singulis momentis, destinado
a fornecer o gozo da coisa ao titular do direito. Efectivamente, apenas existe (quando
existe), a cargo do concedente, uma obrigação de entrega que é cumprida através de uma
prestação instantânea e não duradoura. Nos direitos pessoais de gozo, o que se verifica é
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um afastamento e alheamento do concedente relativamente à coisa que, em algumas


situações, nem sequer conhece (como sucede, normalmente, na locação financeira). O
titular de um direito pessoal de gozo não satisfaz o seu direito pelo simples facto de o
concedente cumprir a obrigação de pati. Ou seja, o cumprimento da obrigação de conteúdo
negativo a cargo do concedente não é idóneo, por si só, para realizar o direito do titular do
direito pessoal de gozo; a abstenção por parte do concedente possibilita o exercício do
direito pessoal de gozo, mas não realiza o conteúdo deste. O titular pode satisfazer o seu
interesse sem a colaboração de ninguém, através dos poderes (de uso, fruição e,
eventualmente, transformação) que lhe é lícito exercer directamente sobre a coisa.
Os direitos pessoais de gozo são, portanto, imediatos, ao contrário dos direitos de
crédito que, mesmo que dirigidos a uma coisa, são mediatos78, mas tal como estes são
relativos.
Portanto, os direitos em apreço, em sentido estrito ou próprio, são um tertium
genus: não sendo verdadeiros direitos reais, não se traduzem em figuras de índole
exclusivamente creditória.

25. A teoria realista não está, por outro lado, capaz de traduzir uma importante
faceta do direito real: o facto de o titular de um direito real, pelo simples facto de o ser,
ficar obrigado a determinados comportamentos de conteúdo positivo (as obrigações
reais).

II. O direito real é também fonte de obrigações de conteúdo positivo — as


obrigações reais (remissão)

26. A teoria realista clássica falha também ao reservar para o titular de um direito
real uma esfera de poderes, de soberania, ignorando as obrigações de conteúdo positivo,
que, como dissemos logo no início desta exposição sobre a noção de direito real, e
seguindo HENRIQUE MESQUITA, entendemos serem parte do núcleo essencial do
direito real (e que, consequentemente, têm de ser referidas aquando da definição do ius
in re).

78
Como resulta do exposto, aderimos à tese de JOSÉ DE ANDRADE MESQUITA, Direitos Pessoais
de Gozo, ob. cit., p. 133 a 167, sobre a natureza dos direitos pessoais de gozo. A propósito dos direitos
pessoais de gozo, vide, ainda, por todos, GIORGIANNI, Contributo alla Teoria dei Diritti di Godimento su
Cosa Altrui, vol. I, Milano, Giuffrè, 1940 e HENRIQUE MESQUITA, Obrigações Reais e Ónus Reais, ob.
cit., nota 17, p. 49 e ss..
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No núcleo do direito real (no seu estatuto), só entram as obrigações de conteúdo


positivo — de dare ou de facere —, pelo que só recebem o epíteto de obrigações reais as
obrigações reais de conteúdo positivo que oneram o titular do direito real pelo simples
facto de o ser. É evidente que há também restrições de conteúdo negativo que ao titular
do direito real se impõem, sendo especial, mas não exclusivamente visíveis, a propósito
dos conflitos de vizinhança — por exemplo, não emitir fumos para o terreno vizinho de
modo a prejudicar substancialmente o uso do imóvel (art. 1346.º). Elas não são, porém,
obrigações, por ausência de intersubjectividade; mas, como já referimos, são restrições
ao direito real, auxiliando a descobrir o conteúdo deste a partir da compressão que sofre,
por acção da lei, do exterior.79
Mais adiante desenvolveremos este tema.

79
Evidentemente, nada impede que o titular de um direito real assuma uma (verdadeira) obrigação de
conteúdo negativo em benefício de um outro sujeito, titular ou não de um direito real. Neste caso, a fonte
da obrigação é a vontade das partes, que exercem a sua autonomia negocial e que não modelam o estatuto
do direito real (e, consequentemente, não pode assumir eficácia erga omnes).

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