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1º) Encontro.

Relação jurídica obrigacional

1. Âmbito do direito das obrigações

A pessoa é o centro de atenções da ciência do direito. Ao nascer adquire personalidade jurídica —


aptidão genérica de contrair direitos e deveres na ordem civil —, podendo constituir relações jurídicas
na sociedade.

Como é sabido a pessoa goza de direitos extrapatrimoniais (direitos da personalidade - vida,


liberdade, nome, disposição do próprio corpo - arts. 11/21, CC/02) e direitos patrimoniais (bens
jurídicos apreciáveis economicamente, que são divididos em direitos reais e obrigacionais).

Pelo direito real, a coisa fica sujeita à vontade de seu titular, que exerce esse direito sem intervenção
de quem quer que seja. Por exemplo, pelo direito de propriedade uma pessoa que adquire um imóvel
tem o direito de usar, gozar, dispor e reavê-lo (art. 1.228, CC/02), esse estudo é realizado no direito
das coisas.

Pelo direito obrigacional (pessoal ou de crédito), objeto do nosso estudo, analisa-se o cumprimento
de uma prestação devida pelo devedor ao credor, que se encontram vinculados em uma relação
jurídica obrigacional. Por exemplo, certa pessoa (devedor) compromete-se a entregar um objeto
(veículo) a outro indivíduo (credor), podendo este exigir daquele a prestação jurídica desse mesmo
objeto.

2. Principais características do direito das obrigações

a) assentado sobre o princípio da autonomia da vontade1: as pessoas têm ampla liberdade para
externar sua vontade, desde que não desrespeitem os princípios gerais de direito, a ordem pública, os
bons costumes, a boa-fé e respeitem o que foi avençado.

b) menos sensível às mutações sociais e locais: alguns direitos como o da família e das coisas, sofrem
bastante mutação a depender da organização política e social, notadamente, em relação à moral e à
religião. O direito obrigacional, por outro lado, não sofre com a mesma intensidade esse efeito, já que
seus elementos recebem quase que o mesmo tratamento nos ordenamentos jurídicos.

c) universal: as situações dele decorrentes são, praticamente, as mesmas em todo o mundo. Por
exemplo, a compra e venda apresenta-se com as mesmas características gerais em qualquer país, ou
seja, de um lado, o vendedor, que se propõe a vender determinado objeto ao comprador, que, de outro
lado, por sua vez, manifestando sua intenção de comprar, se compromete a pagar o preço desse
mesmo objeto.

d) evolução ligada ao fator econômico: é por meio das relações obrigacionais que se estrutura o
regime econômico, sob formas definidas de atividade produtiva e permuta de bens.

1
Indica-se a leitura do artigo elaborado por AMARAL NETO, F. S. “A autonomia privada como princípio fundamental
da ordem jurídica”. Disponível em: https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/181930/000444811.%20pdf?s
equence=1&isAllowed=y
1
3. Evolução histórica do conceito de obrigação

3.1. Direito grego

ÁLVARO VILLAÇA AZEVEDO sustenta que, apesar da expressão “obrigação” não ser encontrada
no povo da Grécia antiga, eles tinham a noção desse instituto jurídico. Para este autor, foi Aristóteles
quem dividiu as relações obrigatórias em dois tipos: as voluntárias e as involuntárias.

→ As voluntárias são as relações travadas a partir de um acordo entre as partes, são obrigações
provenientes do contrato (ex contractu), por exemplo, compra e venda, o mútuo e o
comodato (contratos de empréstimo), o depósito; dentre outros.

→ As involuntárias são as provenientes do delito ou ato ilícito, que se divide em: ato ilícito
cometido às escondidas (Ex.: furto) e ato ilícito cometido com violência (Ex.: roubo).

3.2. Direito Romano

O velho Direito Romano também não conheceu o termo “obrigação”, por isso, não é encontrado no
texto da Lei das XII Tábuas2 e muito menos na terminologia jurídica dessa época. A expressão mais
próxima do sentido de obrigação era “nexum” que significa ligar, prender, unir.

ÁLVARO VILLAÇA AZEVEDO sustenta que o “nexum” conferia poder ao credor de exigir do
devedor o cumprimento de determinada prestação. Em caso de inadimplemento, o devedor respondia
com seu próprio corpo, podendo ser reduzido à condição de escravo.

Três regras podem ser lembras em relação ao objeto do nosso estudo:

→ A Tábua Terceira, da Lei das XII Tábuas (450 a.C.), não deixa dúvidas quanto à existência
dessa execução pessoal: “Se são muitos os credores, é permitido, depois do terceiro dia de
feira, dividir o corpo do devedor em tantos pedaços quantos sejam os credores, não
importando cortar mais ou menos; se os credores preferirem, poderão vender o devedor a
um estrangeiro”.

→ A Tábua Sexta guardando relação com a noção obrigacional assegurava que: “Quando
alguém faz um juramento, contrato ou venda, anunciando isso oralmente em público, deverá
cumprir sua promessa”.

→ A Tábua Sétima relacionava-se com a responsabilidade civil ao preconizar que: “Se alguém
destruir algo de alguém será obrigado pelo juiz a reconstruir ou restituir tal coisa”.

A expressão obrigação surgiu no Baixo Império (326 a.C.) com a edição da Lei Petélia Papíria3 que
aboliu o “nexum” não mais se admitindo a execução pessoal.
Com o progresso do conceito de obrigação, passou sua execução (no caso de seu não cumprimento)
da pessoa do devedor para o patrimônio deste, perdendo aquela antiga e deplorável característica
que possuía.

2
A Lei das doze Tábuas constituía uma antiga legislação que está na origem do direito romano. Formava o cerne da
constituição da República Romana
3
A Lex Poetelia Papiria foi uma lei da República Romana que aboliu o nexum, ou seja, o acordo pelo qual um devedor
dava como garantia de um empréstimo a escravidão de si próprio (ou de um membro da família sobre o qual ele tinha
autoridade, como uma criança) em nome do credor em troca da extinção do débito (escravidão por dívida).
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4. Conceitos de obrigação civil e natural

→ Obrigação

A palavra obrigação vem do latim ob + ligatio, ela contém uma ideia de vinculação, de liame, de
cerceamento da liberdade de ação em benefício de pessoa determinada ou determinável, cuja
submissão pode ser criada pelo próprio agente ou ser o resultado de uma norma a todos imposta.

→ Obrigação civil

A obrigação civil abrange os direitos pessoais e consiste na relação jurídica transitória, existente entre
um sujeito ativo (credor/accipiens) e um sujeito passivo (devedor/solvens), tendo como objeto direto
uma prestação de dar, de fazer ou não fazer, e como objeto indireto o bem da vida. Havendo o
descumprimento ou inadimplemento obrigacional, poderá o credor se satisfazer no patrimônio do
devedor. É possível notar neste conceito que a obrigação civil comporta dois elementos a dívida e a
responsabilidade.

→ Obrigação natural (ou incompleta, imperfeitas)

É intermediária entre o mero dever de consciência e a obrigação juridicamente exigível. É o meio


caminho entre a moral e o direito. É mais do que um dever moral e menos do que uma obrigação
civil. Este tipo de obrigação comporta apenas um elemento. Veja:

a) Existe dívida, mas não existe responsabilidade. Neste caso, quem voluntariamente solve a
obrigação natural não tem repetição do indébito, ou seja, não pode pedir a devolução dos valores
pagos, pois a dívida existe, apenas não pode ser exigida4. Eis alguns exemplos:

→ Dívida prescrita - art. 882, CC.


→ Mútuos feito a menor de idade - art. 588 e 589, CC.
→ Dívida de jogo e aposta. Se o jogo e aposta foram lícitos e não regulamentados, a
obrigação é natural (Ex.: aposta no jogo do flamengo). Se o jogo for lícito e
regulamentado, a obrigação é civil (Ex.: jogo da mega-sena). Se o jogo for ilícito, a
obrigação é nula em razão do objeto5 (Ex.: jogo do bicho).

Observação: cuidado com a dívida de jogo e aposta contraída em países estrangeiros onde o jogo e
a aposta são regulamentados, neste caso se aplica a lei do local, logo a dívida é exigível (STF, Carta
Rogatória nº 9.897/2002)6, sendo a base legal o art. 9º, da Lei de Introdução às normas do Direito
Brasileiro7, ou seja, não se aplica o art. 17 do mesmo diploma legal.

b) Existe responsabilidade, mas não existe dívida. São situações em que um terceiro responde
por dívida alheia. Esta responsabilidade pode decorrer da lei (Ex.: o empregador que responde pelos
danos produzidos pelo empregado - art. 932, III, CC) ou decorrer da vontade (Ex.: fiador – art. 818,
CC).

4
De acordo com o art. 882, do CC/02, não se pode repetir o que se pagou para solver dívida prescrita, ou cumprir obrigação
judicialmente inexigível.
5
De acordo com o art. 104, II do CC/02, para um negócio jurídico ser válido, ele deve contemplar um objeto lícito,
possível, determinado ou determinável. Caso contrário, ele será nulo de pleno direito, conforme art. 166, II, do CC/02.
6
Para uma análise direto na fonte segue o endereço eletrônico do acórdão. Disponível em: https://stf.jusbrasil.com.br/
jurisprudencia/19156828/carta-rogatoria-cr-9897-stf
7
Decreto-Lei nº 4.657, de 4 de setembro de 1942. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del
4657compilado.htm.
3
5. Elementos da obrigação: subjetivo, objetivo e jurídico

A. Elemento subjetivo: a) sujeito ativo ou credor (accipiens) é o titular do direito de crédito, é


aquele que tem o poder de exigir, em caso de inadimplemento, o cumprimento coercitivo (judicial)
da prestação pactuada; b) sujeito passivo ou devedor (solvens) é aquele que tem o dever de efetuar a
prestação.

Observação: nos negócios jurídicos bilaterais, as partes são reciprocamente credoras e devedoras.

B. Elemento objetivo: a prestação é o objeto próximo, imediato, direto da obrigação, ela


consiste em um dar, um fazer ou um não fazer algo. O objeto remoto, mediato, indireto da obrigação
é o bem vida (objeto direto da prestação).

Ex.: João deve dar o carro.


João deve fazer o muro.
João deve não fazer o muro.

C. Elemento jurídico: é o elemento imaterial, virtual, espiritual, que consiste no liame legal
que une as partes envolvidas. É o vínculo jurídico que liga o credor ao devedor. Segundo a teoria de
ALOIS BRINZ8, este vínculo é composto por dois elementos (teoria dualista do vínculo).

i) DÍVIDA/DÉBITO (Schuld ou debitum). É o dever legal de cumprir com a obrigação (Ex.: o


vendedor tem por dívida entregar o bem vendido). Havendo o adimplemento da obrigação surgirá
apenas esse conceito. Havendo o inadimplemento a responsabilidade (Haftung).

ii) RESPONSABILIDADE (Haftung ou obligatio). Caso haja inadimplemento da obrigação, o


credor tem a prerrogativa de tomar bens do devedor, mediante um processo judicial. Isso porque, o
direito das obrigações tem como base o princípio da responsabilidade patrimonial do devedor.

Segundo este princípio, o patrimônio do devedor responderá pelos prejuízos sofridos pelo credor
(arts. 391, 942, CC). Apesar da literalidade do art. 391, CC, segundo o qual todos os bens do devedor
respondem pelo inadimplemento, o sistema garante ao devedor um patrimônio mínimo, cuja base
constitucional é a proteção da dignidade da pessoa humana (LUIZ EDSON FACHIN), por exemplo,
a impenhorabilidade de bem de família9, salário; dentre outros (art. 833, CPC/2015).

Outro ponto a ser destacado é que, em regra, a responsabilidade é apenas patrimonial. Contudo a
Constituição admite no art. 5º, LXVII duas hipóteses de prisão civil por dívidas, resquício da
execução pessoal. O devedor que injustificadamente deixa de pagar pensão alimentícia e o
depositário infiel.

Ϯ PENSÃO ALIMENTÍCIA
Só cabe prisão pelos alimentos atuais e não para os pretéritos que devem ser cobrados mediante penhora.
Pela Súmula nº 309/STJ são pretéritas as 3 últimas prestações vencidas antes do ajuizamento da execução.
Também é possível a prisão quanto aos alimentos que vencerem no curso do processo.
Alimentos e prescrição: de acordo com o art. 206, §2º, do CC, a pretensão para haver prestações alimentares
prescrevem em dois anos a partir da data em que se vencerem. Todavia, o art. 197, II, do CC preconiza que
não corre a prescrição entre ascendentes e descendentes, durante o poder familiar. Nesse caso, o direito do
filho de cobrar os alimentos só prescreverá dois anos após completar sua maioridade civil.

8
Indicação de leitura: SIMÃO, José Fernando. A teoria dualista do vínculo obrigacional e sua aplicação ao direito civil
brasileiro. Disponível em: https://es.mpsp.mp.br/revista_esmp/index.php/RJESMPSP/article/view/80
9
A Súmula nº 364/STJ afirma que o conceito de impenhorabilidade de bem de família abrange também o imóvel
pertencente a pessoas solteiras, separadas e viúvas.
4
Ϯ DEPOSITÁRIO INFIEL

O depositário tem o dever de guardar, conservar e restituir a coisa ao seu dono. Quando ele se nega a
restitui-la, ocorre a quebra de confiança que justifica a prisão civil, historicamente, o direito tratava o caso
assim. O STF, mesmo depois que o Brasil ratificou o pacto de São José da Costa Rica (tratado internacional)
- que não admite tal prisão -, seguia o entendimento pelo qual o tratado não tinha condão de afastar a
incidência constitucional. A questão se alterou com o julgamento dos RE 349.70310 e 466.343, quando o
STF, seguindo o entendimento do Ministro Gilmar Mendes, passou a afirmar que este tratado internacional,
por versar sobre direitos humanos, tem caráter supralegal, ou seja, não revoga a Constituição, mas retira a
eficácia de todas as leis infraconstitucionais que permitem a prisão do depositário. Posteriormente, o
STF editou a Súmula Vinculante nº 25 pela qual é ilícita a prisão civil do depositário infiel, qualquer que
seja a modalidade do depósito.

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Disponível em: http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=595406.
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