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Dito isto, defendemos um conceito amplo de coisa, incluindo entidades do mundo externo
mesmo que não tenham existência corpórea. – Ex.: São coisas incorpóreas as obras, criações
do espírito objetivadas e, nesse sentido, separadas da pessoa, ou os processos de fabrico ou
inovações objeto de patentes. – Ponto diverso é o de saber se estas realidades são objeto do
direito das coisas ou se apenas integram outros ramos do direito.
Para além disto, devem ser também destacados os interesses protegidos pelo direito das
coisas. Distinguimos, assim, um interesse na imediação ou satisfação das necessidades sem
intervenção ou mediação de outra pessoa, o qual preside ao ser permitido ou ao conteúdo
do direito e um interesse na estabilização, que preside à proteção ou sanção que
acompanha o direito real, dirigida erga omnes. Esta distinção corresponde aos dois lados do
direito real, que distinguiremos quando tratarmos da sua conceção.
Além da distinção do problema, da função e dos interesses subjacentes ao direito das coisas,
é também o momento para destacar a sua importante função económica. Trata-se de fazer
uma breve referência à necessidade não só social, mas também económica de definição e
atribuição de direitos de exclusivo por uma ordem normativa. A literatura económica
salienta os fatores institucionais, e entre eles especificamente a definição de direitos de
exclusivo e os termos e eficácia da sua proteção como um dos mais relevantes fatores
explicativos do desenvolvimento e da “riqueza das nações”. Deve, também, fazer-se uma
breve referência à teoria económica da afetação dos property rights, à relevância no
mundo real dos custos de transação e aos efeitos distributivos da afetação inicial de
recursos, mesmo se não existissem custos de transação. Destaca-se, ainda, a diversidade de
função económica dos diversos tipos de direitos reais, alguns dos quais servem a utilização
ou gozo dos bens (direitos reais como que finais), enquanto outros servem a garantia de
créditos ou, até, a atividade de circulação pela aquisição de coisas. Também a relevância
sob o ponto de vista económico de uma ordenação não só definitiva, que proteja direitos
de exclusivo definitivos, mas também dos poderes de facto sobre as coisas, numa sua
ordenação provisória pela proteção da posse, deve ser destacada.
Em primeiro lugar, importa começar por referir que o direito das coisas se localiza no direito
privado e distingue-se da ordenação das coisas jurídico-pública.
Em segundo lugar, há que caracterizar o direito das coisas como direito patrimonial, isto é,
regulador de relações jurídicas que são suscetíveis de avaliação pecuniária, em dinheiro.
Além da recondução da patrimonialidade à pecuniaridade, importa problematizar o critério
da suscetibilidade de avaliação em dinheiro para a distinção entre os bens que são objeto
do direito das coisas e os bens pessoais. A caraterização como direito patrimonial implica
também que se destaque a ligação do direito das coisas ao sistema económico e social
vigente em cada ordem jurídica O direito das coisas é, assim, o pressuposto e o resultado
desse sistema, estando intimamente ligado ao tipo de sistema económico e social vigente.
O direito das coisas deve também ser caracterizado como um direito que se não centra
numa certa instituição social.
O direito das coisas distingue-se do direito das obrigações não só pela sua função e pelos
interesses que serve como pela caraterística estrutural de implicar o reconhecimento de
Como é que determinamos quais são as fontes da disciplina do direito das coisas?
• No Código Civil, as disposições sobre direitos reais não são só as normas incluídas nos
Arts. 1251º a 1574º como, também, as normas dos Arts. 656º a 761º, sobre direitos
reais de garantia, e outras normas onde se consagram direitos reais de aquisição.
• Além do Código Civil, importa fazer referência à legislação especial sobre direito das
coisas: quer o Código do Registo Predial e outros diplomas sobre registo, quer o
Decreto-Lei nº275/93, de 5 de agosto, sobre direito real de habitação periódica, quer
normas sobre propriedade horizontal e outra legislação complementar ao Código Civil
(por exemplo, o diploma sobre alojamento local – Lei nº62/2018, de 22 de agosto).
É também esta a sede para recordar o “sistema externo” do direito das coisas, e da ausência
de uma parte geral ou de disposições gerais no Código Civil, que adotou uma sistematização
do direito das coisas seguindo os diversos direitos subjetivos das coisas previstos. A par da
descrição do “sistema externo”, faz-se aqui logo uma curta referência ao “sistema interno”
cuja exata descrição e compreensão só é possível depois do estudo dos princípios
ordenadores dos direitos reais.
Importa agora relacionar o direito das coisas com outros ramos do direito. Trata-se não só
de expor a articulação das disposições sobre o direito das coisas com as normas da Parte
Geral (designadamente, os Arts. 201º-B a 216º do CC) com outras normas, designadamente
as relativas ao direito das obrigações e algumas normas do direito da família, mas também
de os relacionar sob o ponto de vista da função com os restantes ramos do direito privado,
quer do direito civil, quer de ramos de direito privado especial. É aqui acolhida especial
referência aos ramos de direito que lidam com coisas incorpóreas ou imateriais, tal como o
direito da propriedade industrial e o direito de autor, bem como aqueles que têm uma
função em grande medida instrumental do direito das coisas, como o direito registal e o
direito notarial.
Vamos atender agora à relação entre o direito das coisas e o direito constitucional e,
especificamente, às questões da proteção constitucional da propriedade e de outros
direitos reais e da eficácia nas relações de direito privado.
Para enunciar uma noção de direito real partimos da noção de direito subjetivo que o
concebe como um poder jurídico de livremente exigir ou pretender de outrem um
comportamento ativo ou passivo (direito subjetivo propriamente dito) ou de só de per si
ou integrado por um ato de uma autoridade pública, produzir determinados efeitos
jurídicos que se impõem inelutavelmente a uma outra pessoa (direito potestativo).
Trata-se de uma definição que assenta na noção de poder jurídico, isto é, de poder
decorrente da ordem jurídica. Trata-se de uma noção que, embora tenha subjacente uma
perspetiva funcional, de acordo com a qual o direito subjetivo visa a afetação de um bem
ao seu titular é fundamentalmente estrutural, não dependendo da caracterização desse
bem.
Deve caracterizar-se o direito subjetivo pelo que ele permite ao seu titular fazer, embora
se não ignore que nalguns casos é a afetação de um bem e designadamente de uma coisa
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a uma pessoa, que funcionalmente tem a primazia sobre a proteção do direito pelos deveres
impostos a terceiros, enquanto noutros o bem resulta sobretudo da previsão e do
cumprimento desses deveres.
O direito subjetivo não é simplesmente uma permissão normativa, mesmo que específica,
a qual, aliás, tanto pode ser de ação como de omissão e deverá ter como oposto deôntico a
proibição ou o imperativo, e como correlativo (de tal permissão) a inexistência de um
direito.
A aludida definição de direito subjetivo comporta duas categorias diversas, uma em que
está em causa um poder de exigir um comportamento, outra em que está em causa um
poder de eficácia jurídica, situando-se o direito real na primeira. O direito real é um direito
subjetivo propriamente dito sobre uma coisa, e dentro destes um direito absoluto, isto é,
um direito eficaz contra todas as pessoas. As especificidades do direito real residem, por
um lado, no facto de o seu objeto ser uma coisa, e, por outro lado, em ser um direito
oponível erga omnes.
Encontrado o conceito de direito real, tem lógica apurarmos agora as suas principais
características e, como tal, recorremos, nesta análise, à perspetiva de um confronto dos
direitos reais com os direitos de crédito.
Os direitos reais são eficazes erga omnes, o que se traduz, por um lado, na atribuição ao
seu titular do poder de os exercer em face de todos os outros e, por outro lado, na imposição
a estes da necessidade de respeitarem o direito que em face deles se apresenta.
É esta eficácia absoluta dos direitos reais uma das razões que levaram à sua sujeição ao
princípio da tipicidade ou numerus clausus (Art. 1306º do CC). Este princípio resulta da
impossibilidade em que se encontram os particulares de criar direitos reais de um tipo ou
com um conteúdo que não correspondam aos tipos e conteúdos desenhados na lei. Não há,
assim, liberdade de conformação interna dos direitos reais diversamente do que sucede nos
direitos de crédito. Este princípio da tipicidade surge-nos como uma resposta a uma
exigência derivada da eficácia absoluta dos direitos reais pelas seguintes razões: Em
primeiro lugar, se os direitos reais gozam de eficácia real devem ser respeitados por todos,
o que implica, por sua vez, a sua cognoscibilidade por todos os restantes membros da
coletividade. Por sua vez, esta cognoscibilidade só é possível se procedermos à tipicização
desses direitos. Em segundo lugar, esta proteção absoluta só deve ser garantida pelo
ordenamento jurídico se se verificar a existência de uma real necessidade nesse sentido,
pois vão ser criadas restrições à liberdade de ação de todos à exceção do titular desses
direitos e isto explica não ser permitida a criação de direitos reais de tipo ou conteúdo
Em suma, a primeira nota distintiva dos direitos reais em face dos direitos de crédito resulta
da circunstância dos direitos reais gozarem de uma eficácia absoluta, enquanto que os
direitos de crédito gozam de uma eficácia meramente relativa.
Nas hipóteses em que não se verifica uma situação material de incompatibilidade com o
direito, mas verifica-se a existência de uma situação jurídica suscetível de perturbar o
direito real, não há lugar à ação de revindicação. Porém, não deixa, também aí, de se
O direito de sequela é um direito exclusivo dos direitos reais. O direito de crédito não
proporciona um direito real sobre património do devedor, uma vez que o seu titular,
diferentemente do titular deste, não pode perseguir os bens que saem do património do
devedor, exceto através da chamada impugnação pauliana, verificados os pressupostos
deste instituto (Ex.: Má-fé nas alienações onerosos). Atenção que não se trata aqui do direito
de sequela, isto é, a impugnação pauliana não é uma manifestação do direito de sequela,
uma vez que esta implica, diferentemente do que resulta do exercício do direito de sequela,
a anulação do ato de transmissão da coisa para um terceiro adquirente, exigindo ainda, para
que possa ser exercida, a verificação de certos e determinados requisitos.
2) Prioridade do registo – A sequela não existe quando a lei faz depender do registo a
eficácia do direito em relação a terceiros que adquiram um direito real total ou
parcialmente incompatível. Assim sendo, a venda a terceiro que não se vem a registar
não invalida a venda. A venda é, efetivamente, validamente celebrada. O único efeito
do registo é a eficácia do ato em relação a terceiros. Percebemos então, onde está aqui
a exceção ao direito de sequela: temos um proprietário, mas este não pode invocar a
sua propriedade em face de um terceiro.
Crítica apontada pelo Dr. Mota Pinto: Deve ser dado o mérito a estes autores pelo
facto de revelarem a diferença dos direitos reais de garantia quando comparados com
os direitos reais de gozo, mas que não se deve ir tão longe ao ponto de recusar a
legitimidade da preferência nos direitos reais de gozo.
A diferença é que quanto aos direitos reais de garantia, o direito de preferência vai
estabelecer uma prioridade de exercício e quanto aos direitos reais de gozo, este
direito vai decidir a própria existência ou inexistência do direito.
Muitas vezes, no mundo do crédito, existe um interesse por certos credores de reservar
ou adquirir o direito de propriedade sobre certos bens até ao cumprimento dos
contratos de onde emergem os créditos de que são titulares. – Ex.: Venda com reserva
de propriedade (Art. 409º do CC). É o caso do leasing também, em que se trata de uma
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forma de financiamento em que tem lugar uma separação entre a propriedade dos
bens e o seu uso. Como percebemos, nestes casos de reserva ou constituição de
propriedade a favor de um credor, dá-se a sua maior proteção, maior do que aquela
que resultaria da uma simples relação creditícia.
Para além disto, é de notar que a prevalência não é uma caraterística apenas dos direitos
reais, já que o direito de prevalência também se encontra em alguns direitos de crédito:
• Um exemplo disso é o privilégio mobiliário geral. Os privilégios mobiliários gerais não
incidem sobre uma coisa certa e determinada, mas sobre o património do devedor e,
por isso, não constituem um direito real, mas uma garantia especial das obrigações. Os
casos em que estes podem surgir estão regulados nos Arts. 736º e 737º do CC. Estes
conferem ao seu titular a prevalência sobre os credores comuns do devedor. Se o titular
for o Estado ou autarquia local (como acontece para garantia de créditos resultantes
de determinados impostos (Art. 736º do CC)), esse privilégio atribui ao credor a
preferência mesmo sobre privilégios mobiliários especiais, que são já direitos reais.
Já o mesmo não sucede em relação aos privilégios mobiliários especiais, uma vez que o Art.
750º do CC determina o acatamento do direito de preferência, ao estatuir que “no caso de
conflito entre o privilégio mobiliário especial e um direito de terceiro, prevalece o que mais
cedo se houver adquirido”. Daqui decorre que havendo, nesta hipótese, um acatamento do
direito de preferência, as exceções a este restringem-se, neste domínio, aos privilégios
imobiliários especiais previstos nos Arts. 743º e 744º do CC referidos.
2.4. Inerência
Uma outra caraterística dos direitos reais é a inerência da coisa ao seu titular. Formula-se
mais correntemente esta ideia dizendo-se que os direitos reais conferem um domínio ou
soberania sobre a coisa, seu objeto. Porém, esta expressão: “domínio ou soberania”, é de
aplicação mais correta aos direitos reais de gozo (ao arrendamento, na opinião do Dr. Mota
Pinto), não surgindo com tanta nitidez nos restantes. Daí que seja preferível a designação
de relação de inerência da coisa do seu titular, como propomos. Esta é a caraterística que
se exprime ao falar-se do lado interno do direito real, de acordo com a teoria do Dr. Mota
Pinto, mais concretamente, a teoria eclética. E, em última análise, é um corolário da eficácia
absoluta do direito real, representando, como tal, uma síntese das ideias de sequela e de
preferência. A coisa adere ao seu titular.
Em suma, a inerência traduz a ligação íntima dos direitos reais às coisas que constituem os
seus objetos. Por isso, não se pode manter um direito real se o seu objeto mudar: “não é
juridicamente possível transferir o mesmo direito real de uma coisa para outra; caso
semelhante operação fosse tentada, o efeito seria a extinção do direito real e a constituição
de novo direito real”.
A doutrina refere outras caraterísticas que o Dr. Mota Pinto discute, mas que não defende.
Ou seja, rejeitamos estas outras caraterísticas:
• A usucapião é uma forma de aquisição que apenas existe no universo dos direitos
reais, não existindo no domínio dos direitos de crédito:
Esta ideia deve ser rejeitada, uma vez que nem todos os direitos reais são passíveis
dessa forma de aquisição. Os direitos reais que podem ser objeto de usucapião são os
seguintes: a propriedade e os direitos reais de gozo, nos termos do Art. 1287º do CC. O
usufruto, a enfiteuse, a servidão e o direito de superfície. Não o podem ser: a hipoteca
e o direito real de garantia.
• Os direitos reais incidem sobre a totalidade das coisas que são objeto:
Esta ideia deve ser rejeitada, dado que esta caraterística não ocorre em relação a todos
os direitos reais, como é o caso da servidão de passagem em que o direito real não tem
de incidir sobre a totalidade da coisa, já que o direito de servidão de passagem incide
apenas na parte em que se passa. Não devemos confundir esta caraterística com o
princípio da individualidade ou da especialização.
A expressão direito das coisas é utilizada como sinónimo da expressão direitos reais, mas
em rigor não é assim. O direito das coisas refere-se a um ramo do direito patrimonial,
enquanto quando falamos nos direitos reais pensamos nos direitos em particular, como é
o exemplo do direito de propriedade, do direito de usufruto, entre outros.
Porque é que surgiu o direito patrimonial? É incontroverso que o Homem, para subsistir,
precisa de bens que são escassos ou porque há uma momentânea impossibilidade de os
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aceder ou porque são efetivamente escassos. Neste sentido, iriam surgir naturalmente
conflitos daí surgir o direito patrimonial para regular o acesso, a apropriação e a utilização
desses bens.
O que é um “bem”? "Bem" é tudo aquilo que é apto a satisfazer necessidades humanas.
“Bem” não é sinónimo de coisa. Todas as coisas são bens, uma vez que todas as coisas
servem para satisfazer as necessidades do Homem, mas nem todos os bens são coisas. – Ex.:
Nós satisfazemos necessidades através de outras pessoas, de comportamentos de outras
pessoas e as pessoas e os comportamentos não são coisas.
Dentro do direito patrimonial, encontramos o direito das coisas e o direito das obrigações.
Como é que distinguimos estes dois grandes ramos? O direito das obrigações regula apenas
o acesso à coisa e não a sua apropriação e utilização. No âmbito do direito das obrigações,
mesmo quando há utilização de uma coisa, há sempre antes uma relação entre duas
pessoas, uma relação que se estabeleceu entre aquele que vai ter a utilização da coisa e
aquele que a permite. A pessoa só acede ao bem porque se estabeleceu uma relação prévia.
– Ex: Na relação de arrendamento, o arrendatário só utiliza a coisa porque celebrou um contrato
de arrendamento. É o estabelecimento de uma obrigação e o seu cumprimento que vai permitir
a utilização da coisa. – Já o direito das coisas regula a direta e imediata utilização da coisa,
regula o poder que o Homem tem e exerce sobre a coisa, independentemente de qualquer
relação prévia sobre a coisa.
Não obstante, o que verdadeiramente nos interessa é a distinção entre os direitos reais e
os direitos de crédito. Quanto a saber o que é um direito de crédito, é simples, porque a lei
diz-nos no Art. 397º do CC o que é uma obrigação. O direito de crédito é o vínculo jurídico
por virtude do qual uma pessoa (credor) pode exigir de outra (devedor) a realização de certa
prestação que pode ter por objeto uma coisa (dare), uma atividade (facere) ou uma
abstenção (non facere). Mas o que é um direito real? Qual é a relação típica que existe
nestes direitos? Ao longo da história foram surgindo várias teorias, sendo que estas teorias
interessam para distinguir o direito real do direito de crédito.
Historicamente, a doutrina mais antiga é a teoria realista, que atende à relação entre o ser
humano e a coisa. De acordo a teoria realista, o direito real traduz-se num poder direto e
imediato sobre uma coisa: poder direto no sentido de ser um poder que não envolve o
estabelecimento de uma relação intersubjetiva e poder imediato no sentido de que o titular
do direito atua sobre a coisa autonomamente sem mediação, sem um terceiro ou o
comportamento de um terceiro. Ou seja, o direito real atende à relação entre uma pessoa
e uma coisa. Ao invés, o direito de crédito é uma relação intersubjetiva, traduzindo-se no
poder de exigir de outrem uma prestação. Se no direito real não existe nenhum mediador,
no direito de crédito, quando o sujeito do direito acede ao objeto, há sempre a mediação
de um individuo, um intermediário, que é o devedor.
Assim, se o direito real é um poder direto e imediato e o direito de crédito exprime uma
relação entre pessoas, o direito real traduz-se numa relação simples, linear e não
intersubjetiva. Já o direito de crédito exprime uma relação complexa, triangular e
Mais tarde, esta conceção de direito real foi explicitada pela Escola dos Glosadores, que
elaboraram pela primeira vez uma noção de direito real e foi, posteriormente, desenvolvida
pelos Comentadores. Enquanto o ius in re seria o direto que incide diretamente sobre uma
coisa, sem a mediação de qualquer sujeito, a obligatio, vista pelo lado ativo, seria o direito
que permite exigir uma prestação a determinada pessoa.
b) A própria conceção do direito real como um poder direto e imediato sobre a coisa
parece não fornecer um critério que esgote a análise da situação correspondente
ao direito real. Não podemos deixar de observar que este poder direto e imediato
sobre a coisa é uma consequência jurídica do poder de impor aos outros uma
abstenção e uma não ingerência na coisa que é objeto do direito. É porque existe,
do lado contrário àquele em que se situa o titular ativo do direito real, um dever
geral de abstenção que fica reservado para aquele o monopólio do uso exclusivo
da coisa e surge o tal poder direito e imediato sobre ela.
Carlos Alberto Mota Pinto aponta para o facto de ser absurdo falar-se de relações
entre uma pessoa e uma coisa, fazer da coisa o sujeito passivo. Assim, o direito é um
fenómeno social que existe porque existe sociedade e porque existe vida em relação.
O próprio direito pressupõe uma relação entre pessoas, sendo que, assim, o direito
real não pode bastar-se com a ligação entre o seu titular e a coisa, tendo de se exprimir
necessariamente num elo intersubjetivo. Só este é que explica, aliás, a obrigação de
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indemnizar em que se constitui o infrator no caso de violação de um direito real, como
por exemplo, no caso de destruição da coisa ou de qualquer prejuízo causado por nela.
A teoria realista foi a teoria base durante vários séculos, até que no séc. XIX surgiu a teoria
personalista fundada na filosofia kantiana. Para Kant, o direito era um fenómeno social e,
por isso, era impossível estabelecer relações entre sujeitos e coisas à luz desta teoria, já que
todas as relações são relações intersubjetivas. Se a intersubjetividade é um elemento
essencial de todas as relações jurídicas, o direito real não pode deixar de se traduzir num
vínculo entre pessoas. Assim, as relações jurídicas seriam sempre relações entre pessoas.
2) A segunda crítica que a teoria personalista dirigiu à teoria realista foi a seguinte: há
direitos reais que não conferem um poder direto e imediato sobre a coisa. No fundo,
não podemos definir os direitos reais como direitos que concedem poderes diretos e
imediatos sobre a coisa se encontrarmos direitos reais que não conferem poderes
diretos e imediatos sobre as coisas. Para ilustrar esta crítica os personalistas apoiaram-
se num direito real que ninguém duvida que é um direito real, mas que não concede
poderes diretos e imediatos sobre as coisas: é o caso das servidões negativas e de
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alguns direitos reais de garantia, como a hipoteca. A hipoteca é um direito real de
garantia que atribui ao seu titular o poder de satisfazer o seu crédito à custa do valor
de uma coisa com preferência face aos demais credores. – Ex.: Imaginemos que A precisa
de dinheiro para comprar uma casa e pretende celebrar com o banco um contrato de
mútuo, sendo que o banco exige uma garantia, o direito de hipoteca sobre a casa que vai
comprar. Se A não pagar, o banco pode satisfazer o seu crédito à custa da coisa, ou seja,
pode promover a venda judicial da coisa e com o produto da venda, é pago o titular da
hipoteca e só depois os restantes. O banco não fica com a casa em seu poder, o credor
hipotecário não tem um poder direto e imediato sobre a coisa (no sentido de poder
material). – Esta é uma crítica que veremos que não procede, já que dizer que o direito
real é um poder direto e imediato sobre a coisa não é a mesma coisa que dizer que a
coisa está nas mãos do titular que pode usar diretamente. O núcleo típico do direito
real de garantia é o poder de promover a venda judicial da coisa.
3) A terceira observação que os personalistas dirigem aos realistas foi a seguinte: o poder
direto e imediato sobre a coisa nem sempre constitui o instrumento através do qual
o titular satisfaz o seu interesse. Nos direitos reais de garantia, a satisfação dos
interesses do titular do direito real nunca advém do exercício de poderes materiais
sobre a coisa, porque estes não podem aproveitar as utilidades. Os personalistas dão
aqui como exemplo o penhor, que também é um direito real de garantia, mas que
incide sobre coisas móveis. Pode ser penhor de coisa ou penhor de direitos. A perfeição
do contrato de penhor exige um ato de execução da vontade que é a entrega, isto é,
sem a entrega o contrato não está perfeito (Art. 669º, nº1 do CC). O contrato de penhor
é um contrato real quanto à constituição (contrato real por meio do qual se
constituem, modificam, transmitem ou extinguem direitos reais) e um contrato real
quanto aos efeitos (contrato cuja execução está dependente de um ato de vontade,
normalmente, a entrega da coisa). Porém, importa referir que os contratos reais quanto
à constituição não são necessariamente reais quanto aos efeitos. Em suma, os
personalistas afirmam que há direitos reais que dão ao credor um poder direto e
imediato sobre a coisa (a coisa está nas suas mãos), mas não é esse poder que satisfaz
o seu interesse, é a venda judicial que satisfaz o interesse do credor pignoratício, ou
seja, apesar de ter a coisa na sua mão, não a usa. A garantia pignoratícia assume uma
função acessória ou instrumental. Assim, o exercício dos poderes materiais pelo credor
pignoratício tem duas funções próprias: a detenção própria pelo credor dá publicidade
à garantia; dificulta a alienação da coisa pelo devedor porque é muito mais difícil vender
um móvel que não se consiga transmitir de mão em mão. – Mais uma vez, esta crítica
não assume grande relevância para aqueles que entendem que o poder direto e
imediato não significa necessariamente o poder de usufruir da coisa.
4) A quarta crítica que a teoria personalista dirige à teoria realista foi a seguinte: há
direitos de natureza não real que conferem um poder direto e imediato sobre a coisa,
como é o caso da locação e do comodato. – Ex: A pede emprestado a B uma casa de praia
e B acede, entregando a chave. Celebraram um contrato de comodato, mas apenas com a
celebração do contrato e a entrega da chave A satisfaz o seu interesse? Não. O comodatário
satisfaz o seu interesse atuando diretamente sobre a coisa. – Só que os personalistas
estão, mais uma vez, a confundir o poder direto e imediato sobre a coisa com o poder
material, que ninguém duvida que um comodatário e um locatário tenham, uma vez
que ao exercerem poderes materiais sobre a coisa, aproveitam as utilidades que ela
Tendo surgido na Alemanha, esta teoria difundiu-se rapidamente para a Itália, Espanha,
França e Portugal. A teoria eclética é a teoria dominante em Portugal e na Escola de
Coimbra.
Esta teoria procura conciliar as teorias anteriores, mostrando que as suas divergências não
são irredutíveis. Neste sentido, reconhecendo virtudes tanto na teoria realista como na
teoria personalista sintetizou-as numa só afirmando que os direitos reais têm uma
estrutura complexa na medida em que dois elementos distintos se fundem:
• Elemento interno ou de conteúdo (defendido pelo Dr. Pires de Lima, Dr. Antunes
Varela, Dr. Mota Pinto, Dr. Orlando de Carvalho e Dr. Santos Justo) – Traduz-se no
poder direto e imediato sobre uma coisa, correspondendo ao plano funcional ou
instrumental, permitindo distinguir o direito real dos restantes.
No fundo, esta teoria junta as duas, uma vez que no lado interno adota a teoria realista e
no lado externo adota a teoria personalista.
A correlação estabelecida entre o lado interno e o lado externo do direito real não é
consensual entre os autores, ainda que considerando apenas aqueles que advogam a teoria
eclética:
1) O Dr. Mota Pinto considera o poder direto e imediato sobre a coisa é um corolário do
direito de excluir todos os outros de uma intervenção na coisa. É porque existe um
dever geral de abstenção que recai sobre todos os sujeitos que não sejam o titular do
direito que este último detém o monopólio do uso exclusivo da coisa, sendo que esse
uso exclusivo acaba por se consubstanciar num poder direto e imediato.
Esta orientação aponta no sentido de que a relação jurídica é uma relação da via ordenada
pelo direito e, por isso, tanto pode consistir numa relação entre pessoas, como entre uma
pessoa e um determinado objeto.
Os autores que defendem a teoria mista apontam, também, ao direito de crédito dois lados,
mas dois lados que não coincidem com aqueles dois que, no seu entender, conformam o
direito real:
• Lado interno – Poder de pretender um certo comportamento.
• Lado externo – Poder de exigir que o devedor realize o comportamento.
Entre os autores (atualmente, a maioria) que advogam esta conceção, o Dr. Orlando de
Carvalho acrescenta a esta análise estrutural uma análise funcional assente nos fins do
direito, baseando a diferenciação entre direitos reais e direitos de crédito nas duas
perspetivas. Segundo o autor, o direito real responde essencialmente a dois interesses
basilares:
• Interesse de imediação – Consiste no interesse na satisfação das necessidades sem
intervenção ou mediação de outra pessoa. O direito real permite que o seu titular
satisfaça o interesse próprio sem depender, para tal, de uma outra pessoa (porque o
conteúdo do direito real é um poder direto e imediato).
Apesar das possíveis críticas, a nossa posição (Dr. Mota Pinto) é a de que a teoria eclética
ou mista é a que retrata com maior fidelidade o regime jurídico dos direitos reais. O lado
interno mostra-nos um poder que incide imediatamente sobre uma coisa e, por isso,
permite distinguir os diversos direitos reais e o lado externo revela-nos que a sua tutela é
absoluta, dirige-se contra a generalidade das pessoas que podem interferir com o exercício
desse poder.
Para quem não seja eclético como é o caso da Dra. Margarida Costa Andrade, esta teoria
continua a não satisfazer porque trata-se de uma mera síntese verbal, não se conseguindo
decidir nem por um lado, nem por outro. Assim, a Dra. Margarida Costa Andrade acolhe a
teoria realista renovada defendida por Henrique Mesquita.
Existem autores que recusam a distinção entre os direitos reais e os direitos de crédito,
integrando esses direitos num conceito unitário que enfatiza ora o elemento obrigacional
ora o elemento real. Assim, dentro das doutrinas da unidade temos:
1) Monismo personalista – Defendido por Demogue que considera não haver distinção,
uma vez que afirma que corresponde a ambos os direitos uma obrigação passiva
universal, uma eficácia erga omnes. De acordo com este autor, a única diferença seria
que o direito real era um direito forte, porque a relação jurídica é estabelecida
diretamente entre o seu titular e as demais pessoas, enquanto o direito de crédito é
um direito fraco, visto estar apenas o devedor adstrito à realização da prestação,
devendo as demais pessoas abster-se de dificultar ou impedir o seu cumprimento. É
facilmente refutável, visto o nosso sistema jurídico não admitir o efeito externo das
obrigações.
2) Monismo realista – Defendido por Gaudemet olha para os direitos de crédito como
direitos reais, uma vez que são igualmente direitos sobre coisas. Estes incidem sobre
coisas determinadas, enquanto aqueles têm por objeto o património do devedor. Como
argumento invoca-se a impugnação pauliana, cujos efeitos só aproveitam ao credor que
a requeira (Art. 616º do CC) e que permite ao credor executar os bens no património
do terceiro adquirente, gozando este direito de crédito da sequela, tal como um direito
real. É criticável visto que a impugnação pauliana exige a prova da titularidade do
crédito e depende de vários requisitos, como a boa-fé ou má-fé das partes.
Existe, finalmente a doutrina eclética ou mista, que defende a distinção entre direitos de
crédito e direitos reais. Distinguem-se nos seguintes termos:
Capítulo III – Hipóteses de qualificação real controvertida e figuras ligadas aos direitos
reais
Há certas situações acerca das quais se discute se têm ou não a natureza de direitos reais.
Nalgumas delas, no termo da discussão, não se chega a uma conclusão segura e continua,
assim, a sua qualificação a ser duvidosa.
A categoria dos direitos pessoais de gozo encontra-se referida nos Arts. 407º, 1682º-A, nº1
a) e 2 do CC. Alguns autores pretendem qualificar os direitos pessoais de gozo como direitos
reais.
Uma das questões que suscitou mais debate é a do direito do locatário. Este direito do
locatário é um direito de crédito ou um direito real? Há quem defende que é um direito
real, outros que é um direito de crédito e outros que, por sua vez, consideram que é um
direito com qualificação intermédia, considerando que este direito é composto por
1) Existe uma qualificação que defende que este direito é um direito de crédito, porque o
locatário não tem um poder direto e imediato sobre a coisa e as suas possibilidades de
gozo da coisa passam pela mediação de um outro sujeito, o locador. Neste sentido, o
locatário tem o direito de exigir do locador que lhe proporcione o gozo da coisa, mas
não tem um direito sobre a coisa em face de todos os outros.
2) Para que se possa afirmar que é um direito real, temos de verificar se estão verificados
aqui as características principais dos direitos reais:
• Sequela – Esta existe na locação, como claramente revela o Art. 1057º do CC,
querendo isto dizer que o locatário pode continuar a exercer os seus poderes sobre
a coisa, pode continuar a utilizá-la mesmo depois de ter sido vendida a terceiro.
Assim sendo, o seu direito ou posição jurídica tem eficácia em relação o novo
adquirente da coisa. Quem defende o direito do locatário como um direito de
crédito, aponta para o facto de se entender ser isto uma manifestação da cessão
da posição contratual. Contudo, apontamos para o facto de que se se tratasse
efetivamente de uma cessão da posição contratual, esta teria de ser pactuada
entre o alienante e o adquirente que este adquiria a posição de locador e teria de
haver consentimento da outra pate, ou seja, do locatário. Esta solução não é
aceitável porque este efeito é imperativo, impõe-se sem a sua vontade ou mesmo
até contra ela. Concluindo, esta solução imperativa é uma expressão do direito de
sequela. Semelhante é a situação do usufrutuário, pois para a manutenção do seu
direito é irrelevante a alienação da propriedade.
• Direito de preferência – Existe na situação do locatário, só que esta nota aqui não
é decisiva, pois o Art. 407º do CC mostra-nos a sua existência mesmo nos direitos
de crédito.
• Poder direto, mas não imediato sobre a coisa - Este é um dos argumentos
utilizados pelos adversários da qualificação real do direito do arrendatário. Para
eles, o locatário não teria uma ligação direta e imediata com a coisa, mas apenas
mediata, isto é, as suas probabilidades de gozo da coisa passariam pela cooperação
do senhorio. O locatário teria somente o poder de exigir ao senhorio que lhe
proporcionasse o gozo da coisa. No fundo, com isto nega-se a inerência da coisa
ao seu titular (uma caraterística dos direitos reais). Esta afirmação era concretizada
através da enunciação de certas obrigações que cabem ao locador. Este tem certas
obrigações especiais, contrapondo-se à obrigação passiva geral própria dos
direitos reais, o que tornaria o direito do locatário um puro direito de crédito.
Porém, não nos parece decisiva esta maneira de ver as coisas. Sem dúvida que, por
exemplo, o Art. 1031º do CC impõe obrigações ao senhorio (a obrigação de
entregar a coisa ao locatário, de lhe assegurar o gozo desta para os fins a que se
destina) e daqui se pode desentranhar toda uma série de obrigações (Ex.: ter de
fazer obras de conservação de coisa). O Art. 1037º do CC prescreve-lhe a abstenção
de prática de atos que diminuam ou impeçam o gozo da coisa pelo locatário. O Dr.
Mota Pinto não crê que o facto de poder haver deveres especiais do senhorio para
com o locatário seja incompatível com a qualificação como direito real da posição
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deste, sendo que situações deste tipo surgem, também, quer no usufruto (Art.
1473º do CC), quer no direito de superfície (Arts. 1532º, 1533º 3 1567º do CC).
Sempre que exista uma concorrência de direitos reais sobre a mesma coisa, como
por exemplo o direito de propriedade e um direito real limitado, podem surgir
deveres especiais a cargo de um dos titulares desses direitos reais limitados. Isto
parece não excluir decisivamente a qualificação do direito do locatário como real.
Não é forçoso concluir a partir desses deveres especiais a não existência de uma
inerência da coisa ao seu titular. Onde a inerência encontra expressão é na
circunstância de o titular do direito poder perseguir a coisa, acompanhá-la em
todas as suas deslocações. Será um sistema nítido de aderência do direito à coisa,
da inerência e isto acontece no direito de arrendatário, nos termos do Art. 1057º
do CC. É certo que existem direitos de crédito como o comodatário, o depositário
que tem contacto com a coisa e exercem até certos poderes sobre ela, mas não há
inerência, o comodatário não pode manter o direito de o usar em face do novo
adquirente da propriedade desse automóvel.
Quanto à usucapião, de acordo com o Art. 1287º do CC, esta é reservada para a
aquisição de propriedade e de outros direitos reais de gozo, não estando, contudo,
claramente definido se o direito de arrendatário é ou não um direito real de gozo.
A nível formal sistemático, está regulado no âmbito das obrigações, mas isto nada
quer dizer, pois muitos outros direitos reais de garantia estão lá como o pacto de
preferência com eficácia real ou o contrato promessa com eficácia real.
Do ponto de vista das soluções já apontadas não nos parece ser possível chegar a
uma solução de tal forma firme que justifique ou sustente uma pura dedução, de
onde resulte há ou não usucapião. O que fazer? Vamos obter a resposta partindo da
usucapião e não através de uma dedução de uma qualificação prévia.
Atenção, não propomos uma solução definitiva, mas sim pretender suscitar uma
reflexão.
Há quem saliente que não se trata de um verdadeiro direito real, mas sim de uma espécie
de pré-anotação registal, tendo prioridade sobre qualquer outra posterior. Apesar de aqui
não haver um poder direto e imediato sobre a coisa, o Dr. Mota Pinto defende que a posição
4. Pretensões reais
4.1. Noção
A pretensão real é uma relação jurídica decorrente, em regra, da violação de um direito real
que atribui ao seu titular o poder de exigir uma determinada prestação (positiva ou
negativa). Pode, em determinadas situações, não resultar de um facto ilícito.
A pretensão real não se confunde com as obrigações reais. Embora ambas as relações
tenham como fonte o estatuto de um direito real, nas obrigações reais o devedor é
determinado pela titularidade de um direito real e o credor pode ser ou não titular de um
direito real, enquanto nas pretensões reais é o credor que se encontra necessariamente
ligado a um ius in rem. Mas pode mesmo haver uma pretensão real que se fundamente no
incumprimento de uma obrigação real.
Exemplos:
• A possui ou detém ilegalmente um automóvel que pertence a B;
• C depositou, sem autorização, materiais de construção num prédio de D;
• E passa abusivamente no prédio de F e protesta que continuará a fazê-lo.
1) A primeira utiliza-se quando a violação do direito real origina uma situação de posse ou
de detenção ilegítima por parte do terceiro demandado: o proprietário exige que a
coisa lhe seja restituída.
As obrigações reais ou propter rem são obrigações que estão ligadas à titularidade de um
direito real. É um vínculo jurídico em que o titular de um direito real se encontra adstrito
para com outra pessoa à realização de uma prestação positiva (dare ou facere). A pessoa
obrigada (devedor) determina-se por ser titular de um direito real. Já o seu titular ativo
(credor) pode ser ou não titular de um direito real. Se o lado ativo estiver ligado a um direito
real, fala-se de crédito propter rem.
Note-se que não devemos confundir as obrigações reais com as obrigações que integram a
responsabilidade civil extracontratual (ou aquiliana), decorrentes de danos causados
culposamente a um direito real. Embora se trate da violação de um direito desta natureza,
tais obrigações incidem sobre indemnizações. As obrigações que integram a
responsabilidade civil extracontratual supõem um ato ilícito, danoso e culposo do agente e
integram-se no instituto da responsabilidade extracontratual, enquanto as obrigações reais
não pressupõem necessariamente um ato ilícito, um dano e a culpa do agente.
Não obstante, não pertencem ao âmbito das obrigações reais, por terem conteúdo
negativo, os seguintes casos:
Exemplos:
1. O proprietário não pode construir nem manter no seu prédio quaisquer obras, instalações
ou depósitos de substâncias corrosivas ou perigosas, se for de recear que possam ter sobre
o prédio vizinho efeitos nocivos não permitidos na lei. Quem quer que seja proprietário
dum prédio tem aquela obrigação;
2. O dono do prédio inferior e o dono do prédio superior não podem fazer obras que,
respetivamente, estorvem ou agravem o escoamento natural das águas. Não importa que
o proprietário de qualquer desses prédios seja A ou B;
3. O proprietário não pode abrir, no seu prédio, minas ou poços e fazer escavações que privem
os prédios vizinhos do apoio necessário para evitar desmoronamentos ou deslocações de
terra.
Nas duas hipóteses, o proprietário violou limitações impostas ao seu direito real: a de
não desviar as águas fluviais e a de não abrir janela para o prédio vizinho sem deixar
espaço legalmente fixado. Na primeira hipótese, deve repristinar a situação material
anterior às obras. Na segunda hipótese, é obrigado a tapar a janela ou a transformá-la
numa abertura cujas medidas obedeçam aos limites estabelecidos na lei.
A lei não refere expressamente estas obrigações. Por isso, se considerarmos que as
obrigações reais são apenas as que a lei direta e expressamente prevê e as que permite criar
por via negocial, estas obrigações não são reais. No entanto, há também quem entenda que
são igualmente reais as obrigações que resultam da violação do estatuto de direito real. É a
doutrina que nos parece preferível e mais adequada aos interesses dos proprietários dos
prédios vizinhos: quem for proprietário (seja o antigo que lesou o vizinho, seja outro que
adquiriu o prédio onde as obras foram feitas) tem o dever de destruir a obra realizada ou
de a pôr em sintonia com a lei. Em suma, o curso defende a ideia de que são obrigações
Finalmente, importa referir que as obrigações reais podem surgir fora do seu campo
normal, isto é, podem surgir fora do campo das relações de vizinhança. – Ex.: Demolição de
uma obra não licenciada ordenada por uma Câmara Municipal ao abrigo do Regulamento Geral
das Edificações Urbanas, porque o seu proprietário não a demoliu no prazo fixado. Não
demolindo a obra, o proprietário violou o dever imposto pelo direito público e incorre numa
contraordenação punível com coima e é ainda obrigado a pagar à Câmara as despesas feitas.
Esta (última) obrigação, porque tem a sua fonte “no estatuto dos direitos sobre as coisas, deve
ser qualificada como obrigação real”.
Tendo presente a nossa conceção de direito real como direito subjetivo, parece inadequado
falar-se de relação jurídica que compreende, também, as obrigações reais. Por isso, a
doutrina personalista (doutrina dominante) considera-as verdadeiras obrigações, ou seja,
afastadas dos direitos reais, embora reconheça, que são acessórias ou não autónomas.
Acresce que, na Lição de Antunes Varela, “o regime geral das obrigações fixado pelo nosso
Código prescinde deliberadamente do nexo que as prende ao facto jurídico donde
provierem” e, por isso, não afasta as obrigações reais sem prejuízo de se reconhecerem
alguns desvios.
6. Ónus reais
Traduz-se numa situação jurídica cuja manifestação fundamental é o direito de obter uma
prestação periódica, geralmente pecuniária, que grava de forma especial e direta um bem
imóvel, em termos de o seu titular ser responsável por essa prestação. De acordo com
Henrique Mesquita, é uma relação que se traduz num peso ou encargo sobre uma coisa.
Considerado do lado ativo, o ónus real é constituído por:
• O direito de exigir, em regra periodicamente, determinada prestação a quem, na data
do seu vencimento, for titular de um direito real de gozo sobre a coisa onerada, como
a propriedade ou o usufruto;
• A faculdade de, em sede executiva, obter essa prestação à custa da coisa onerada, com
preferência sobre os respetivos credores que não disponham de melhor garantia;
Menezes Cordeiro, entende que se trata de um direito real de aquisição, pois proporciona
ao seu titular o aparecimento de créditos, existindo também a inerência, a tipicidade, o
registo e a proteção através da ação de reivindicação, caraterísticas dos direitos reais;
Henrique Mesquita, entende que o ónus real é uma figura composta por dois elementos:
a) Obrigação real por ficar incorporada pelo seu lado passivo numa relação de soberania;
b) Garantia imobiliária porque confere ao seu titular também o direito de executar a coisa
onerada, mesmo que tenha sido alienada pelo devedor;
Mota Pinto, não considerando como um direito real autónomo, aponta para a identificação
desta figura como os privilégios creditórios imobiliários, visto que, pelas obrigações
anteriores só responde com o prédio, enquanto pelas obrigações posteriores responde com
todos os seus bens, mas o credor das prestações tem direito de garantia especialmente
onerado.
O ónus real distingue-se das obrigações reais nos seguintes termos: em ambos os casos,
quer no ónus real quer nas obrigações propter rem, a necessidade de efetuar uma prestação
incumbe ao titular de um certo direito real. Há, em ambos os casos, uma ligação direta de
uma obrigação ao seu sujeito passivo que é determinado através da titularidade de um
direito real.
Nas obrigações reais os deveres que cabem ao proprietário serviente para com o titular do
prédio dominante, isto é, os deveres entre os vários comproprietários, cabem ao adquirente
do direito real que por inerência, da qual surge a obrigação, só é responsável pelas
obrigações surgidas para o futuro, enquanto no ónus real o titular do prédio gravado com
o ónus responde pelas obrigações já vencidas antes da sua aquisição.
O direito mais amplo é o direito de propriedade, que é um direito real de gozo, que permite
ao seu titular usar a coisa, fruir (retirar as utilidades que dela emerjam), dispor, onerar e
alienar a coisa, e, por vezes, até transformar (material e juridicamente) (Art. 1305º do CC).
Ou seja, é “o direito real máximo, mediante o qual é assegurada a certa pessoa, com
exclusividade, a generalidade dos poderes de aproveitamento global das utilidades de certa
coisa”. Acresce que, o proprietário tem o direito de não ser privado arbitrariamente da sua
propriedade (Art. 1308º do CC).
De acordo com o preceituado nos Arts. 1414º e 1420º, nº1 do CC, do modo como o
legislador se expressa poder-se-ia retirar que na propriedade horizontal congregar-se-iam
dois direitos reais distintos: um de propriedade singular sobre cada uma das frações e
outro de compropriedade ou comunhão, cujo objeto é constituído pelas partes comuns do
Art. 1421º do CC. Este entendimento sairia confirmado do nº2 do Art. 1420º do CC. No
entanto, a propriedade horizontal é mais do que a mesa justaposição destes dois direitos,
isto é, trata-se de um tipo autónomo de direito real que ultrapassa a aplicação pura e
simples do regime da propriedade e da comunhão (Arts. 1414º a 1438º-A do CC).
1.3. Os direitos reais de gozo sobre coisa alheia ou direitos reais limitados de gozo
a) Direito de usufruto
O direito de usufruto (Arts. 1439º e ss. do CC) prevê o uso, fruição, administração e até a
transformação (Ex.: Benfeitorias (Art. 1450º do CC), despesas feitas numa coisa que são
necessárias e indispensáveis), temporariamente, mas plenamente, de uma coisa ou direito
alheio, sem alterar a sua forma ou a sua substância. Como tal, o direito de usufruto depois
da propriedade horizontal e superficiária é o direito mais amplo, visto que concede uma
série de poderes.
Quanto aos direitos e obrigações do usufrutuário, o Art. 1445º do CC determina que estes
são regulados pelo título constitutivo, e, na sua falta ou insuficiência, são observadas as
normas supletivas (Arts. 1446º e ss. do CC).
O usufruto é um tipo aberto (Art. 1445º do CC), visto que, apesar de vigorar o princípio da
taxatividade em Portugal (Art. 1306º do CC), as partes podem moldar o seu conteúdo, desde
que não ponham em causa os seus pilares caraterizadores, dispostos no Art. 1439º do CC.
Ou seja, os direitos reais são os previstos na lei, mas o regime de cada direito real pode ser
moldado pelas partes. Ademais, o usufrutuário pode alterar o destino económico da coisa
(Art. 1446º do CC).
O direito de usufruto pode ser temporário, durante o tempo previsto pelas partes, ou
vitalício, durante o tempo de vida do usufrutuário. Já se for constituído a favor de pessoa
coletiva a duração máxima são 30 anos (Art. 1443º do CC).
De acordo com o Art. 1484º do CC, estão em causa dois direitos diferentes, quer quanto ao
objeto, quer quanto às faculdades atribuídas ao seu titular.
2) Direito de habitação – Consiste no direito de usar uma casa de morada, sem poder
trespassar, onerar ou locar.
Devemos ter em conta que a conceção de família nesta matéria não é rigorosa e não
coincide com o conceito usado no Direito da Família (Art. 1487º do CC). Não faz parte da
família os filhos casados ou a quem não sejam tidos alimentos. Por outro lado, são
considerados família pessoas que se encontrem ao serviço do usuário ou morador.
c) Direito de superfície
Assim, o direito de superfície constitui uma exceção ao princípio superficies solo cedit, já
que ao proprietário do solo não pertence tudo o que a ele se vem implantar ou a incorporar,
pela ação da natureza ou do homem.
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d) Servidão predial
De acordo com o Art. 1543º do CC, a servidão predial trata-se de um encargo imposto a um
prédio, em benefício de outro prédio, pertencentes a donos diferentes. O prédio sujeito à
servidão designa-se como serviente e o que beneficia da servidão como dominante.
Quatro notas que concorrem cumulativamente para a identificação deste direito real:
1) A servidão é um encargo;
2) Encargo que recai sobre um prédio;
3) Aproveita outro prédio;
4) Os prédios devem pertencer a donos diferentes;
Deste modo, estão excluídas do âmbito das servições prediais quer as servidões de gleba,
que oneram uma pessoa a favor de um prédio, quer as servidões pessoais, que oneram um
prédio em proveito de uma pessoa. Para haver servidão predial, o aproveitamento das
utilidades do prédio serviente tem de ser feito por intermédio do prédio dominante. Caso
inexista esta relação de predialidade, não estamos perante uma servidão.
Classificações de servidões:
• Servidões legais (Art. 1547º, nº2 do CC) – São as que estão previstas na lei e podem ser
constituídas coercivamente, mediante decisão judicial ou administrativa. – Ex.: Servidão
de passagem (Art. 1550º, nº1 do CC).
• Servidões voluntárias (Art. 1547º, nº1 do CC) – São as que não podem ser constituídas
coercivamente. Podem ser constituídas por contrato, usucapião e destinação de pai de
família.
• Servidões aparentes (Art. 1362º, nº1 do CC) – Revelam-se por sinais visíveis e
permanentes. São oponíveis independentemente de registo (Art. 5º, nº2 do Código do
Registo Predial).
• Servidões não aparentes (Art. 1548º, nº2 do CC) – Não se revelam por sinais visíveis e
permanentes. Não podem ser adquiridas por usucapião (Arts. 1293º a) e 1548º, nº1 do
CC). Devem ser registadas, para produzirem efeitos perante terceiros. No Art. 1280º do
CC menciona-se a relevância das ações de defesa da posse, sendo que não são aplicáveis
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as ações de defesa da posse, a não ser que se funde em título provindo do proprietário
do prédio serviente ou de quem lho transmitiu.
Assim, o direito real de habitação periódica consiste no direito de usar durante um ou vários
períodos determinados de tempo, em cada ano, para habitação, uma unidade de
alojamento integrada em hotéis-apartamentos, aldeamentos turísticos ou apartamentos
turísticos, mediante o pagamento de uma prestação periódica (ónus real) ao proprietário,
ao cessionário do empreendimento ou quem o administre (Arts. 1º, 21º, 22º e 23º do DL
nº275/93). Esta prestação pode ter um valor fixo ou variável e pode ser sujeita a atualização
(Art. 22º, nº3 do DL nº275/93).
Ainda que por vezes o legislador diga tratar-se de um direito de gozo, não é isso que está
em causa aqui. O morador pode usar o imóvel para habitação permanente ou para outro
fim, se o contrato o previr ou o proprietário o autorizar (Art. 9º, nº2 do DL nº1/2020), mas
já não concede ao morador o gozo.
Este direito carateriza-se por uma grande carga obrigacional, desde logo porque o seu
titular é obrigado a pagar uma caução, acrescida de uma prestação pecuniária mensal de
valor acordado pelas partes (Art. 7º, nº1 DL nº1/2020) e dos montantes relativos ao IMI (Art.
9º, nº1 b) do DL nº1/2020). Para além disso, deve remeter ao proprietário, a cada oito anos,
uma ficha de avaliação do nível de conservação da habitação (Art. 10º, nº2 do DL nº1/2020),
promovendo ou permitindo a análise do seu estado e suportando o custo das obras de
conservação ordinária na habitação (Art. 9º, nº1 c) e d) do DL nº1/2020).
Por sua vez, o proprietário deve assegurar que a habitação é entregue ao morador num
estado de conservação, no mínimo, médio (Art. 8º a) do DL nº1/2020) e promover as obras
de conservação extraordinária (Arts. 8º d) e 3º e) DL nº1/2020). Para além disso, quando a
habitação seja fração de um prédio sujeito ao regime de propriedade horizontal, no Art. 8º
b) DL nº1/2020, que parece ter uma redação infeliz, o legislador manda que este pague, “na
parte relativa à habitação, os custos de obras e demais encargos relativos às partes comuns
do prédio e, no caso de condomínio constituído pagar as quotizações e cumprir as demais
obrigações enquanto condómino”.
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O direito real de habitação duradoura é um direito vitalício (Art. 2º do DL nº1/2020), de
modo que o legislador espera que ele se extinga apenas com a morte do morador, não sendo
autorizada o termo ou a condição resolutiva. É proibida a transmissão mortis causa (Art.
12º do DL nº1/2020). Contudo, é possível onerar o direito em causa com uma hipoteca, mas
apenas quando esta sirva para garantir o crédito que seja concedido ao morador para pagar,
no todo ou em parte, o valor da caução (Art. 13º, nº1 do DL nº1/2020).
Acresce que, o proprietário pode transmitir livremente o seu direito de propriedade, mas
não pode constituir outros direitos ou garantias reais sobre ela, salvo a hipoteca (Art. 11º,
nº1 do DL nº1/2020). Note-se que, ainda assim, que, apesar de poder constituir uma
hipoteca sobre um imóvel onerado com o direito real de habitação duradoura, o
proprietário não pode constituir este direito sobre um imóvel já hipotecado (Art. 5º, nº2 do
DL nº1/2020).
Com base no Art. 5º, nº3 do DL nº1/2020, o contrato é celebrado por escritura pública ou
por documento particular, sendo que está sujeito a inscrição no registo predial. O morador
deve requerer no prazo de 30 dias a contar da data de celebração do contrato (Art. 5º, nº4
do DL nº1/2020).
No que toca à extinção deste direito, pode ocorrer por reunião do direito real de habitação
duradoura com a propriedade na mesma pessoa, caducidade, renúncia ou por resolução
do contrato por meio do qual se constituiu o direito. A extinção determina que o morador
fica obrigado à entrega do imóvel e o proprietário fica obrigado à devolução da caução (Art.
15º, nº1 do DL nº1/2020). Acresce que, entre a extinção do direito e a entrega do prédio, o
morador incorre no pagamento de uma “indemnização”, cujo valor aumenta diariamente,
pela sua utilização a título precário (Art. 19º, nº2 DL nº1/2020).
Os direitos reais de garantia são direitos que asseguram a realização, ainda que subsidiária,
de um crédito, ou seja, contribuem para assegurar o cumprimento das obrigações. Assim,
por um lado, encorajam o devedor a observar a obrigação com receio das consequências da
reação do credor ao incumprimento e, por outro, permitem que este possa sempre ser
ressarcido através do valor ou dos rendimentos de uma coisa, com preferência sobre os
demais credores do devedor que não beneficiem de garantia prioritária. Deste modo,
podemos assumir que os direitos reais de garantia têm uma função instrumental face aos
direitos de crédito.
O titular do direito real de garantia não pode, em regra, praticar atos de uso ou fruição.
Porém, é consagrada uma exceção, sendo que, na consignação de rendimentos, pode
desencadear um ato de disposição da coisa, satisfazendo-se paulatinamente através do
crédito, uma vez ocorrido o incumprimento do crédito.
a) Hipoteca
A hipoteca é uma garantia real que confere ao credor o direito de ser pago pelo valor de
certas coisas imóveis ou equiparadas pertencentes ao devedor ou a terceiro, com
preferência sobre os mais credores que não gozem de privilégio especial ou prioridade sobre
o registo (Art. 686º do CC). Embora seja um direito acessório, que apenas existe em função
da obrigação cujo cumprimento assegura, a hipoteca pode garantir uma obrigação futura
ou condicional (Art. 686º, nº2 do CC).
O devedor pode hipotecar bens de terceiros, desde que goze de poderes de disposição sobre
eles, apesar de não deter a sua propriedade (Art- 715º do CC). Além do mais, a hipoteca não
envolve a perda da posse sobre a coisa objeto da garantia.
No que toca à sua constituição, esta está dependente da inscrição do facto constitutivo no
registo, configurando uma exceção ao princípio da consensualidade.
2) Hipoteca judicial (Art. 710º do CC) – Resulta de uma sentença que, condenando o
devedor à realização de uma prestação fungível, serve como título para que se possa
registar a garantia real. Assim, a sentença não tem caráter constitutivo, podendo
apenas servir de base para o registo. Tem o valor de pré-penhora.
3) Hipoteca voluntária (Art. 712º do CC) – Encontram o seu título num contrato ou numa
declaração unilateral do seu autor, que deve ser reduzido a escritura pública,
documento particular autenticado ou testamento (Art. 714º do CC). Uma vez que a
hipoteca deve ser registada, o registo funciona como modo (Arts. 687º do CC e 4º, nº2
do Código do Registo Predial).
Importa referir que inexiste um processo especial para a venda de coisa hipotecada e
subsequente pagamento do credor hipotecário e que a hipoteca está sujeita a um conjunto
de princípios impostos por lei, designadamente:
• Princípio da especialidade (Arts. 693º e 716º do CC e 96º do Código do Registo Predial)
– Deve incidir sobre uma coisa certa e determinada e o valor deve ser determinado.
• Proibição do pacto promissório (Art. 694º do CC) – Não pode ser convencionado entre o
devedor e o credor a oneração da coisa, em caso de incumprimento.
• Proibição da cláusula de inalienabilidade dos bens hipotecados (Art. 695º do CC) – O
credor não pode impor ao devedor que não pode vender o bem.
• Tendencial indivisibilidade (Art. 696º do CC) – Se a coisa se dividir, a hipoteca continua
a vigorar sobre tal crédito.
b) Penhor
De acordo com o disposto no Art. 666º, nº2 do CC, o penhor confere ao credor o direito à
satisfação do seu crédito, bem como dos juros, se houver, com preferência sobre os demais
credores. O penhor pode garantir uma obrigação presente, futura ou condicional.
O penhor pode incidir sobre coisas móveis (não equiparadas a imóveis) e direitos que
tenham por objeto coisas móveis suscetíveis de transmissão (que não sejam objeto da
hipoteca) (Arts. 666º, nº1 e 680º, nº1 do CC). Quando em causa esteja o penhor de um
direito de crédito, na perspetiva do curso, não existe qualquer direito real.
Apenas tem legitimidade quem poder alienar a coisa ou o direito, sendo que o objeto
empenhado pode ser do devedor ou de terceiro.
A constituição do penhor de coisa (Art. 669º do CC) exige, em geral, a entrega da coisa
empenhada, salvo se ocorrer a entrega de um documento que atribua a disponibilidade
exclusiva dessa coisa ao credor pignoratício ou a um terceiro, e, portanto, consagra-se uma
exceção ao princípio da consensualidade (Art. 408º, nº1 do CC). O Art. 669º, nº2 do CC
consagra a possibilidade do penhor de coisa se constituir mediante a atribuição de
composse que impeça o devedor pignoratício de dispor materialmente da coisa
empenhada.
Quando em causa esteja um penhor de direitos, a sua constituição está sujeita à forma e à
publicidade exigidas para a transmissão dos direitos empenhados (Art. 681º do CC). O
titular do direito empenhado deve entregar ao credor pignoratício os documentos
comprovativos desse direito que estiverem na sua posse e em cuja conservação não tenha
interesse legítimo (Art. 682º do CC).
Em regra, o penhor, ao contrário da hipoteca, não está sujeito a registo, a não ser que seja
o penhor de um direito de crédito cujo cumprimento esteja garantido com uma hipoteca ou
consignação de rendimentos (Art. 2º do Código do Registo Predial).
Deste modo, o Art. 678º do CC remete para os preceitos em matéria de hipoteca, valendo
em matéria de penhor de coisa os grandes princípios que regem a hipoteca.
Finalmente, o credor pignoratício pode intentar ações de defesa da posse, mesmo contra o
dono (Art. 670º a) do CC), mas, a menos que o contrato disponha em contrário ou que tal
seja indispensável à conservação da coisa, não a deve usar (Art. 671º b) do CC). Por outro
lado, se a coisa for frutífera, o credor pode ir satisfazendo o seu crédito à custa dos
rendimentos da coisa (Art. 672º, nº1 do CC), aproximando-se o penhor à consignação de
rendimentos.
c) Direito de retenção
Note-se que o objeto do direito de retenção pode ser uma coisa móvel, equiparando-se o
retentor a um credor pignoratício (Art. 758º do CC) ou imóvel, aplicando-se o regime da
hipoteca (Art. 759º, nº1 do CC) e as regras do penhor quanto aos direitos e obrigações do
titular (Art. 759º, nº3 do CC).
Acresce que a eficácia do direito de retenção não depende de registo para consolidar a
oponibilidade perante terceiros, já que ele é publicitado através da retenção material do
bem e que o direito de retenção sobre imóvel prevalece sobre a hipoteca, mesmo que
anteriormente constituída (Art. 759º, nº2 do CC), uma vez que não seria justo que outro
credor se satisfizesse com o valor da coisa que contribuiu para as despesas do titular do
direito de retenção.
O privilégio creditório consiste na faculdade atribuída por lei, e apenas por lei, a certos
credores de serem pagos por preferência em relação aos demais, em atenção à natureza
dos seus créditos independentemente de registo (Art. 733º do CC).
Os privilégios creditórios imobiliários especiais são direitos reais, mas são um perigo para
o comércio jurídico. Para além de se constituírem e serem oponíveis para terceiros,
independentemente de registo, gozam de preferência sobre os restantes direitos reais de
garantia anteriormente constituídos (Art. 751º do CC).
Da penhora e do respetivo registo, decorre um direito real de garantia para o credor que
era um credor comum e este passa a estar noutra situação, tendo preferência na satisfação
do seu crédito em relação aqueles bens.
A penhora, em sentido amplo, pode ser definida como um conjunto de atos ordenados,
complementares e funcionalmente ligados com vista a produzir um efeito único: a
vinculação dos bens à satisfação do crédito do que intenta a ação executiva ou a vinculação
dos bens ao processo, assegurando a viabilidade dos atos executivos. Em sentido estrito, a
penhora traduz-se num ato de apreensão de bens identificados e individualizados, bens
esses que vão ser vendidos no âmbito da ação executiva, para satisfação do crédito. O ato
de apreensão produz efeitos jurídicos e um deles é o previsto no Art. 822º do CC, sendo que
o credor exequendo passa a ter o poder de ser pago com preferência a qualquer outro
credor que não tenha garantia real anterior à custa do valor dos bens apreendidos. Ou seja,
a penhora não é um direito real de garantia, mas da penhora e do registo nasce um direito
real de garantia, nos termos do Art. 822º do CC.
Assim, ao contrário do que ocorre com a generalidade dos direitos reais de garantia, aqui o
cumprimento não é assegurado pelo valor da própria coisa, mas vai ocorrendo à medida
que os rendimentos por ela produzidos vão sendo entregues ao credor, não sendo
necessário esperar pelo incumprimento para que se ponha em prática a garantia real. É
apenas necessário que o devedor tenha legitimidade para dispor dos rendimentos em causa
(Art. 657º, nº1 do CC), ainda que não a tenha face ao próprio bem.
Acresce que esta é uma figura maleável, podendo os bens em causa continuar no poder do
concedente ou passar para o poder do credor (que, se assim for, passa a ser equiparado ao
locatário). De acordo com o Art. 658º do CC, a consignação pode ser voluntária (resulta de
negócio entre vivos ou de testamento) ou judicial (resulta de uma decisão do tribunal). A
consignação voluntária depende sempre de registo (Art. 2º, nº1 h) do Código de Registo
Predial), a menos que tenha por objeto títulos de crédito nominativos, e constitui-se por
escritura pública, documento particular autenticado ou testamento se tiver por objeto bens
imóveis, ou apenas de escrito particular se o seu objeto for um móvel.
Os direitos reais de aquisição, que se encontram dispersos ao longo do CC, atribuem ao seu
titular a faculdade de aquisição de um direito real de garantia ou de gozo sobre uma coisa,
tendo, por isso, uma função instrumental. Apenas estamos perante um direito real de
aquisição se através do seu exercício se conseguir adquirir um direito real de garantia ou de
gozo. Em causa tem de estar um verdadeiro direito. É uma construção da doutrina da
jurisprudência germânica, tendo um campo de aplicação relativamente reduzido.
Assim, não se confundem com a aquisição de um direito real pelo exercício de um poder
que a lei atribui indiscriminadamente a todas as pessoas ou de uma faculdade incluída no
conteúdo de certo direito. – Ex.: Nesta hipótese está o caso, por exemplo, do Art. 1323º do CC,
referente à ocupação, sendo que quem encontrar um animal ou uma coisa móvel perdida terá
de tentar saber a quem pertence, avisando as autoridades. Contudo, se continuar sem
determinar o dono, a coisa será havida como perdida decorrido 1 ano, sendo que quem
encontrou pode fazer sua a coisa. Qualquer pessoa pode tornar-se proprietária da mesma,
desde que siga os passos fixados no artigo. Esta é uma faculdade que a lei atribui
indiscriminadamente e, portanto, não estamos perante um direito real de aquisição.
O direito real de aquisição não pode ser um poder ou uma faculdade contida no conteúdo
inderrogável de um direito. – Ex.: O direito de propriedade, em que o proprietário tem o poder
de usar, fruir, transformar, etc. Contudo, por vezes surgem faculdades no conteúdo de um
direito real que permitem a aquisição de outro direito. Se estiver em causa o conteúdo
inderrogável de outro direito real não estamos perante um direito real de aquisição. – Ex.:
É o que acontece à faculdade que é atribuída ao proprietário de um prédio encravado de adquirir
uma servidão de passagem ou de trânsito sobre prédios vizinhos. Do conteúdo inderrogável do
direito de propriedade, sobre um prédio encravado consta a faculdade de vir a adquirir uma
servidão e, portanto, não é um direito real de aquisição.
Para parte da doutrina, estamos perante um direito real de aquisição, sendo assim, há
quem entenda que a ação de execução específica, depois de ser registada, se traduz num
direito real de aquisição. Do contrato-promessa nasce um direito de crédito a que venha a
ser celebrado o contrato definitivo e nasce também o direito a intentar a ação específica.
Para além desta posição, na doutrina, há outra, nos termos da qual, o direito do promissório
é um direito real de aquisição, porque o promissório tem um direito de crédito à prestação,
tem o direito de intentar a ação de execução específica e depois, do tribunal se substituir
ao faltoso e emitir a declaração, a pessoa adquire o direito real com prevalência sobre o
terceiro porque sempre teve um direito real de aquisição, desde o início. Esta é a posição
maioritária. Na nossa perspetiva continua a não fazer sentido falar em direito real de
aquisição, já que se pode chegar ao mesmo resultado de outro modo.
No entanto, o Dr. Calvão da Silva diz que nasce um direito de crédito com eficácia perante
terceiros, nasce o direito à execução específica e depois do tribunal se substituir ao faltoso
e emitir a declaração, o promissório vê o seu direito prevalecer em relação aos terceiros,
porque a sentença constitutiva vai retroagir os seus efeitos à data do contrato promessa.
Note-se que, nem sempre é feito um registo provisório para depois ser feito um registo
definitivo. No caso da sentença e de acordo com o Código do Registo Predial, antes de haver
o registo da sentença, há o registo da ação provisório, e quando é proferido o registo da
O legislador português admitiu que, a par dos direitos reais, determinados direitos de
crédito, pudessem aceder ao registo (inscrição definitiva). Quando permitiu isso foi para
atribuir a eficácia equiparada a um direito de crédito em face de terceiros, o tal direito de
crédito, uma vez registado, não muda de natureza, isto é, não passa a direito real, mas passa
a ser eficaz perante a terceiros para efeitos de registo. Quando o promissório faz o registo
do direito de crédito, passa a ter um direito oponível perante terceiros. Consequentemente,
todos os negócios que celebrar com terceiros que ponham em causa a celebração do
contrato prometido serão tidos como ineficazes perante aquele direito de crédito. Se for
celebrado o contrato prometido, no final de uma ação executiva, todos os negócios
celebrados com terceiro que podiam impedir a celebração do contrato prometido que
padeceram de eficácia relativa e provisória, quando for celebrado o contrato e for feito o
registo de aquisição, todos esses negócios passam a ser definitivamente ineficazes.
O direito de preferência dotado de eficácia em relação a terceiros (Art. 421º do CC), para o
curso não se trata de um direito real de aquisição.
No pacto de preferência, se uma parte se decidir a alienar, terá de dar preferência. Pode
ocorrer que a pessoa se vincule a dar preferência e depois não dá. Neste caso, se for dotado
de eficácia real, o preferente pode intentar a ação de preferência e substituir-se ao terceiro,
sendo havido como parte, e por isso vir a adquirir o direito.
Na perspetiva de preferente não há qualquer direito real nestes três momentos. Note-se
que, o que diz prefiro também passa a estar obrigado a celebrar o contrato. Quando se
exerce positivamente o direito de preferência cria-se uma situação próxima ao contrato
promessa.
Em causa está uma relação jurídica complexa e não um direito real de aquisição, sendo que
é integrada por vários direitos de crédito e direitos potestativos.
De acordo com o Art. 202º do CC, coisa que é o objeto dos direitos reais é “tudo aquilo que
pode ser objeto de relações jurídicas”. Contudo, este artigo não é particularmente feliz,
dado que nem tudo o que é objeto de relação jurídica é uma coisa. – Ex.: Não são coisas as
pessoas e as pessoas são suscetíveis de ser objeto de relação jurídica. Não são coisas as
prestações e estas são objeto de relação jurídica. Não são coisas as situações económicas, sendo
que são suscetíveis de ser apropriadas. – Assim, entende-se que a noção é demasiado ampla.
Não podem ser objeto de direitos reais as coisas que estão no domínio público e as que
sejam insuscetíveis, por natureza, de apropriação pessoal. Deste modo, o conceito jurídico
de coisa tem de ser restringido.
Para estarmos perante coisas devem reunir-se os seguintes requisitos:
• Impessoalidade – Carência de personalidade jurídica.
Exemplo: Uma mesa da sala de aula reúne todas estas caraterísticas, mas o painel de azulejos
poderia estar a venda, se fosse de domínio privado, e então não está individualizado, visto que
faz parte de um todo, isto é, da faculdade, e porque assim o é não é considerado coisa. Assim,
este painel de azulejos fixado na parede, uma vez que não é uma coisa não pode beneficiar de
direitos reais, com a ressalva de enquanto aquele painel não for autonomizado (individualizado).
Mas se esse painel for retirado da parede já será individualizado e então será uma coisa.
Neste sentido, não cabe na noção jurídica de coisa o que tenha personalidade jurídica
(pessoas), qualquer objeto que não tenha existência autónoma (partes integrantes e partes
componentes), algo insuscetível de apropriação, ou seja, que o homem não possa dispor ou
usar ou algo que seja suscetível de apropriação, mas não seja exclusiva. Também não são
coisas aquilo que não seja apto a satisfazer necessidades ou interesses humanos.
Para o Dr. Orlando Carvalho, coisa é uma entidade do mundo externo, dotada de suficiente
individualidade e economicidade para assumir o estatuto permanente de objeto de
domínio.
Em suma, coisas são sempre bens, mas nem todos os bens são coisas.
As coisas corpóreas são suscetíveis de serem apreendidas pelos sentidos, ou seja, não é
necessariamente uma coisa com corpo e que ocupa um espaço. – Ex.: Eletricidade. Já as
coisas incorpóreas são insuscetíveis de serem apreendidas pelos sentidos, sendo
apreendidas pelo intelecto. – Ex.: Direitos objetos de outros direitos.
O legislador português não formula uma distinção entre ambas, realizando apenas uma
enumeração taxativa – coisa imóvel (Art. 204º do CC) e coisa móvel (Art. 205º do CC).
Assim, o que não conste do Art. 204º do CC é havido como móvel. Esta distinção releva em
matéria de forma, de registo, de direitos reais e de usucapião.
As coisas fungíveis (Art. 207º do CC) são coisas que se determinam pelo seu género,
qualidade e quantidade. Por outro lado, são determinadas por conta, peso e medida, de
acordo com o Dr. Manuel de Andrade. Não são entidades certas e determinadas na espécie,
As coisas futuras (Art. 211º do CC) são aquelas que não estão em poder do disponente ou
que este não tem direito ao tempo da relação negocial.
Distingue-se:
• Coisa relativamente futura – Coisa que já existe, mas ainda não está no poder do
disponente ao momento da declaração negocial. No entanto, ele tem a legítima
expectativa de vir a adquiri-la, dando conta disso à contraparte e o negócio é celebrado
nessa suposição (Arts. 408º, nº2, 893º e 942º do CC).
• Coisa absolutamente futura – Coisa que não existe, mas que é esperada.
• Coisa alheia – Coisa que já existe, não está em poder do disponente e este não tem a
legítima expectativa de vir a adquirir (Arts. 892º, 893º, 942º e 956º do CC).
• Coisa inexistente – Coisa que não existe na disponibilidade do disponente, nem de quer
que seja, sendo que o disponente não tem a legítima expectativa de vir a adquirir.
As partes componentes são constituintes da estrutura da coisa, ou seja, são elementos que
compõe a coisa, sem os quais não está completa ou não está apta ao uso ou ao fim que se
destina, sendo que, apesar disto, podem ser separadas da coisa. – Ex.: Porta ou as telhas de
uma casa. – Enquanto as partes integrantes (Art. 204º, nº3 do CC) são coisas móveis unidas
materialmente e com carácter de permanência, com o intuito de aumentar as utilidades da
coisa, tornando-a mais produtiva, mais segura, mais cómoda ou embelezar. Não fazem parte
da estrutura e sem ela a coisa continua a estar apta ao fim e ao uso a que se destina,
portanto, podem ser levantadas. – Ex.: Louça sanitária ou um painel solar. – Ambas não
podem ser objeto de direitos reais autónomos enquanto não forem separadas da coisa
principal. Assim, podem ser objeto de negócio distinto daquele que tem por objeto a coisa
principal, ou seja, posso vender a porta principal da minha casa. No entanto, enquanto ela
estiver na estrutura da casa, este negócio da venda da porta não vai produzir efeitos reais,
mas apenas efeitos obrigacionais. Só no momento da separação é que se produz o efeito
real. Deste modo, o negócio que tenha por objeto a coisa principal abrange quer partes
componentes, quer partes integrantes. No entanto, pode haver negócios que tenham por
objeto apenas as partes componentes ou as partes integrantes. Se tivermos uma coisa
autónoma, certa e determinada, que perca a sua autonomia e passe a ser parte integrante
ou componente de uma coisa principal deixam de poder ser objeto de relações jurídico reais
autónomas (Art. 408º, nº2 do CC).
Exemplo: Os elevadores são coisas autónomas, mas se forem integrados num prédio sujeito a
um regime de propriedade horizontal, deixam de ser objeto do direito de propriedade que
existia anteriormente e passam a ser objeto da propriedade horizontal, pois passam a ser parte
do prédio.
Exemplo: A vende a B o seu apartamento, com a propriedade do imóvel não segue o recheio, a
não ser que o contrário seja expressamente acordado.
2.7. Frutos
Aos frutos (Art. 212º e ss. do CC), o legislador atribui a caraterística da periodicidade, sendo
que se trata de tudo aquilo que a coisa produz periodicamente sem prejuízo da sua
substância. Assim, distinguem-se os frutos naturais que provem diretamente da coisa (Ex.:
laranjas), dos frutos civis que se traduzem em rendas ou interesses que a renda produz em
consequência de uma relação jurídica (Ex.: as rendas que uma casa gera em virtude de um
contrato de arrendamento ou juros). Por sua vez, os frutos pendentes são os que já existem,
mas ainda não foram colhidos. Os frutos percebidos já foram produzidos e já foram
colhidos. E os frutos percebendo são frutos que a coisa poderia ter gerado, mas não gerou,
já que estavam em poder de outrem. O Art. 213º do CC prevê o regime da partilha de frutos,
sendo que em consonância o Art. 214º do CC vai ao encontro desse artigo. Já o Art. 215º do
CC estabelece a restituição de frutos.
De acordo com o Art. 216º, nº1 do CC consideram-se benfeitorias todas as despesas feitas
para conservar ou melhorar a coisa. Desta forma, distinguem-se as benfeitorias necessárias
que correspondem a despesas feitas numa coisa para evitar a sua perda ou deterioração,
das benfeitorias úteis que se traduzem em despesas feitas numa coisa que, não sendo
imprescindíveis para evitar a perda ou deterioração, lhe aumentam o valor e das
benfeitorias voluptuárias que são despesas que não são feitas para evitar a deterioração
ou perda da coisa nem lhe aumentar o valor, mas para o recreio do benfeitorizante. As
acessões são inovações realizadas em uma coisa à margem de qualquer relação jurídica,
constituindo um título de aquisição originária do direito de propriedade imobiliária, ao lado
da usucapião. Distinguir ambas tem sido um trabalho doutrinal ao longo dos anos. Assim,
benfeitoria é uma despesa feita numa coisa já existente com vista ou à sua conservação, ou
à sua valorização ou a gerar um maior recreio. Já a acessão conduz a um ato que se traduz
num ato de inovação e criação de uma nova realidade.
Os direitos reais são um domínio específico do ordenamento jurídico, uma zona do mundo
jurídico. Todo o domínio específico do ordenamento jurídico assenta sobre determinados
princípios fundamentais. Neste sentido, os direitos reais também estão, portanto,
submetidos a certos princípios, determinados por ideias de caráter ideológico-político,
histórico, económico, etc. e pela técnica jurídica.
Por entendermos ser a teoria eclética a que retrata melhor o regime jurídico dos direitos
reais, defendemos que estes têm dois lados:
• Lado interno – O lado interno relaciona-se com o facto de um direito real ser um poder
direto e imediato sobre uma coisa;
• Lado externo – O lado externo liga-se à obrigação geral passiva de todos os demais
sujeitos em relação ao titular do direito real, com a tutela absoluta destes direitos;
Assim, temos princípios que se relacionam com o lado interno, com o poder direto e
imediato do titular do direito real sobre uma coisa certa e determinada e outros que dizem
respeito ao lado externo, ou seja, à tutela absoluta caracterizadora destes direitos.
Segundo princípio da coisificação do objeto do direito real, só podem existir direitos reais
sobre coisas, isto é, sobre entidades do mundo externo, desprovidas de personalidade ou
Para além disto, parece ser útil a distinção, que se encontra na doutrina comparatística,
entre coisas “reais”, que são aquelas que se encontram autonomizadas na natureza, para
serem objeto de direitos reais, antes da sua qualificação normativa como tal e “coisas
normativas”, as quais dependem da sua delimitação normativa, incluindo, desde logo, os
próprios imóveis que carecem de uma delimitação física, quer quando sejam prédios
rústicos, quer quando sejam, por exemplo, frações de prédios urbanos.
Há, portanto, que pôr em relação este princípio com o regime das partes componentes (Art.
204º do CC) e das partes integrantes (Art. 204º, nº1 c) e 3 do CC), objeto do direito que
incide sobre a coisa, distinguindo-as de determinados objetos que são apenas dependentes
de outra coisa, designadamente pelo seu fim, como é o caso das coisas acessórias ou
pertenças. Do mesmo modo, contrapõe-se a parte integrante e a parte componente às
universalidades de facto, identificadas pelo CC com coisas compostas (Art. 206º do CC). Em
qualquer caso, trata-se de coisas passíveis de uma identificação na sua individualidade, mas
que encontrando-se estreitamente conexas com uma coisa diferente, não sofrem a
incidência de direitos reais diversos dos que incidem sobre a última. Ao produzir-se a
separação é que serão objeto de um direito real distinto, tendo somente o negócio que
prevê a aquisição deste objeto até esse momento da separação uma eficácia obrigacional.
A individualização pode fazer-se pela separação de partes ligadas a coisas, o que inclui
também a colheita de frutos. A noção de frutos é tratada, neste contexto, autonomizando-
a dos produtos da coisa e das vantagens pelo uso da coisa.
Também o surgimento de novas coisas pela sua transformação, confusão com outra coisa
ou especificação é referido neste contexto. E, ainda, a compatibilização do princípio da
especialidade ou individualização com a propriedade horizontal, a superfície e as servidões
(na medida em que possam pôr em causa a extensão do direito que incide sobre o solo a
todas as partes a este conexas) e com a compropriedade (em que não existe individualização
do objeto físico, mas antes do objeto jurídico do direito) é igualmente tratada a este
propósito.
Por fim, quanto à ideia de totalidade, o direito real abrange todas as partes integrantes do
objeto do direito. Os elementos componentes são aqueles que não se podem separar sem
destruir a coisa (Art. 204º, nº3 do CC para os imóveis) e distinguem-se de elementos
acessórios ou integrantes, que não estão ligadas à estrutura da coisa.
O fundamento deste princípio reside em que um poder direto e imediato, com determinado
conteúdo de utilidades, tende a excluir qualquer outro poder direto e imediato que
comporte o mesmo conteúdo de utilidades, não podendo conciliar-se os dois direitos
apenas no momento do cumprimento, como acontece com os direitos de crédito. Porém,
não significa que não possa existir compatibilização. Quando é que existe uma
compatibilidade dos direitos reais? Existirá uma compatibilidade entre eles, quando o poder
conferido sobre a coisa a um titular do direito real não impeça o outro titular do exercício
do seu poder que lhe foi conferido. Esta compatibilidade não se verifica nos direitos reais
com funções diferentes como os direitos reais de gozo e os de garantia, mas apenas entre
os direitos reais do mesmo género como nos direitos reais de gozo entre si. – Ex.: A partir da
propriedade pode estabelecer-se um usufruto, bem como a partir de um usufruto se poderá́
constituir um direito de servidão, desde que seja servidão passiva, constituída sobre o prédio
em usufruto em benefício de outro prédio (Art. 1460, nº2 do CC). – Contudo, não há um
concurso de direitos nem problemas de compatibilização entre um direito real de certa
espécie sobre uma parte alíquota de um bem e um segundo direito real, da mesma espécie
do primeiro, sobre outra parte alíquota deste bem, de acordo com o fenómeno da
compropriedade. Não existe uma compatibilização porque o objeto dos dois direitos é
distinto. Mas, tratando-se de concurso de direitos de preferências ou de penhores,
hipotecas, aqui já deverá existir esta compatibilidade, uma vez que sobre o mesmo bem
incidem os mesmos direitos e as mesmas utilidades. Acontece que este conteúdo é
essencialmente um direito de aquisição que admite concorrência de direitos congéneres
desde que exista uma escala de graduação, que resulta:
• Do Art. 422º do CC – direitos de preferência;
• Do Art. 686º, nº1 do CC – hipoteca;
• Do Art. 745º e ss. do CC – privilégios;
• Do Art. 759º, nº2 do CC – direito de retenção;
Segundo este princípio, o direito real tende a abranger o máximo de utilidades que um
direito daquele tipo propicia ao titular e, portanto, consentindo embora uma limitação
desse conteúdo de utilidades (legal, judicial ou negocial), que se pode comprimir
(elasticidade dita “passiva”), tende a expandir-se (ou a reexpandir-se) até ao máximo de
faculdades que abstratamente contém (elasticidade “ativa”).
A exposição deste princípio começa com uma exposição sobre a ideia de tipo na ciência do
direito, o pensamento tipológico e diversas espécies de tipos, e uma remissão para outros
ramos de direito que conhecem uma tipicidade legal. Na prática social e económica, em
resultado de caraterísticas do direito real como a sua eficácia absoluta, mas também pela
sua função económica, os direitos reais tendem a oferecer-se em tipos correspondentes a
determinados conteúdos de utilidades das coisas para a pessoa, com certa estabilidade e
permanência. Se a tipicidade se traduz no aparecimento dos direitos sobre as coisas,
oponíveis a terceiros que não intervieram na sua definição, mas em determinados tipos, a
ideia de numerus clausus, tipicidade fechada ou taxatividade encerra esses tipos na
enumeração ou definição de direitos reais resultante do direito objetivo, e em particular da
lei. Não obstante, este princípio não significa que a doutrina ou a jurisprudência não possa,
por interpretação ou integração da lei, entender que determinadas figuras correspondem a
direitos reais. E não obsta, também, à previsão legal de tipos cujas caraterísticas deixam
espaços de conformação à autonomia privada – denominados por vezes como “tipos
abertos”, como é exemplo claro o caso das servidões prediais.
Existe uma discussão entre nós, no plano de iure condendo, sobre a justificação e a
conveniência da consagração do numerus clausus dos direitos reais, embora esta seja a
solução claramente predominante na maioria das ordens jurídicas europeias. Também na
nossa doutrina se fizeram ouvir vozes criticando este princípio no plano do direito a fazer
ou defendendo uma sua reponderação.
A tipicidade não é apenas caraterística dos direitos reais, mas que é um princípio estrutural
caraterístico de bens transmissíveis, cuja consagração no domínio do direito das coisas se
encontra consolidada e que serve interesses de segurança também na circulação dos
direitos sobre as coisas. Isto sendo certo que existe uma oferta ampla de tipos de direitos
reais, e que existem espaços de livre conformação autónoma, mesmo dentro do princípio
do numerus clausus, seja por limitações obrigacionais, seja mesmo por limitações de tipo
real. Pelo que a capacidade de inovação não deixa, mesmo com tal princípio, de ser
preservada.
Não alinhamos nas posições críticas do princípio da taxtividade ou numerus clausus, embora
reconhecendo que não se trata de matéria necessariamente caraterística dos direitos reais,
antes correspondendo, em grande medida a uma opção de política e de técnica legislativa
nesta área. Este é, hoje, o entendimento dominante na nossa doutrina.
2. Princípio da transmissibilidade
No que toca ao princípio da transmissibilidade dos direitos reais, sendo estes bens
transmissíveis, que constituem ativos patrimoniais cujo valor é muitas vezes concretizado
pelo seu valor de troca, a sua transmissibilidade é um princípio ordenador dos direitos reais.
A transmissibilidade está garantida constitucionalmente, no Art. 62.º, nº1 da CRP, que
reconhece a todos o direito à transmissão, em vida ou por morte, da propriedade.
Este princípio significa que a ligação entre os direitos reais e o seu titular é em regra cindível,
podendo ser quebrada por vontade do titular ou por outra causa de transmissão. Tal
princípio implica a alienabilidade e a hereditabilidade de princípio dos direitos reais.
Cumpre notar, ainda, que este princípio não tem validade absoluta, mas só tendencial, pois
comporta exceções:
1) Usufruto – Nos termos do Art. 1443º do CC, este direito não pode exceder a vida do
usufrutuário e não é, por isso, hereditável. É alienável entre vivos, prevendo o Art.
1444º do CC o seu “trespasse” a terceiro, definitiva ou temporariamente. Esta
transmissão apenas produzirá efeitos durante o prazo pelo qual foi constituído
inicialmente o usufruto, ou, se tiver sido constituído por tempo indeterminado, até
quando falecer a pessoa a cuja vida o usufruto estava ligado. Já em caso de falecimento
do transmissário do usufruto, discute-se o regime aplicável, parecendo que se justifica
aqui a transmissão aos seus herdeiros, embora sempre limitado o usufruto pelo prazo
estipulado ou pela vida do primitivo usufrutuário;
4) Direitos legais de preferência – Direitos reais de aquisição ligados por disposição legal
a determinadas situações (como comproprietário, arrendatário, proprietário do solo,
proprietário de prédio onerado com servidão de passagem). Estes direitos de
preferência não podem ser transmitidos isoladamente, não podendo ceder-se o direito
de preferência sem a situação que legalmente é determina. Trata-se de uma
inseparabilidade com semelhanças em relação à das servidões;
Vamos agora passar a uma exposição sobre os sistemas de transmissão de direitos reais,
designadamente o “sistema do título e do modo”, o “sistema do modo” e o “sistema do
título”. Mais do que uma perspetiva histórica, privilegiamos a explicação sob uma
perspetiva funcional ou teleológica, do ponto de vista dos interesses subjacentes à
titularidade e transmissão dos direitos reais. Enquadramos, assim, a exposição em dois
interesses subjacentes ao interesse de estabilidade ou de estabilização que preside à tutela
dos direitos reais. Estabilização significa impossibilidade de contestação, o que implica
“regularidade da conformação e indiscutibilidade dessa conformação”, isto é, do efeito real.
Estes dois interesses estão ligados, pois a definitiva indiscutibilidade resulta da autêntica
regularidade.
• “Sistema do título” (vigente em Portugal - Art. 408º, nº1 do CC) – Em princípio sacrifica-
se o interesse na indiscutibilidade ao interesse na regularidade, não só excluindo
qualquer separação entre título e modo, como considerando o efeito real causado pelo
ato em que se exprime a vontade de atribuir ou de adquirir o direito real, ou seja, pelo
título, regendo um estrito princípio da causalidade. A transmissão ou constituição do
direito real depende da existência, validade e procedência do título, isto é, e em regra,
do contrato que constitui a justa causa de atribuição e apenas desse título. O negócio
é, assim, único, simultaneamente obrigacional e real quoad effectum, com uma
“unidade do processo de atribuição ou disposição” do direito real. O contrato é fonte
de efeitos obrigacionais e de efeitos reais, os quais não se produzem se não existir, não
for válido ou eficaz.
Esta exposição dos sistemas de transmissão dos direitos reais é, em nosso entender,
imprescindível para a compreensão dos princípios seguintes.
3. Princípio da causalidade
Importa justamente analisar os casos excecionais, em que o nosso sistema admite uma
aquisição apesar de não existir uma causa válida e eficaz:
• “Efeito central do registo” - A ilegitimidade do alienante e, portanto, a consequente
nulidade da aquisição do terceiro, não é oponível ao adquirente que registe, quando a
anterior transmissão não está ainda registada;
• Art. 243º do CC – Prevê a inoponibilidade da nulidade proveniente de simulação a
terceiros de boa-fé;
• Art. 291º do CC – Prevê a inoponibilidade da nulidade ou anulação a terceiros de boa-
fé;
Deve, porém, notar-se que o nosso sistema se caracteriza justamente por limitar as
exceções à causalidade, dando prevalência, com muito limitadas exceções, ao interesse na
regularidade da aquisição, perante o interesse na sua indiscutibilidade. Assim, não existe
qualquer exceção genérica para os móveis, ao contrário do que acontece em sistemas como
o francês, em que “posse vale título. Pelo contrário, a regra geral é a de que o proprietário
legítimo pode reivindicar coisas móveis mesmo ao possuidor, como a qualquer pessoa que
não tenha adquirido por uma causa válida e eficaz (Art. 1301º do CC).
4. Princípio da consensualidade
Este princípio tem como sentido que, nos direitos reais que podem ser convencionalmente
estabelecidos, é suficiente para a produção do efeito real, em regra, um título, que é o
contrato, não sendo necessário um modo. O título é, em regra, não só condição necessária,
mas também suficiente para a produção do efeito real, o qual se produz, neste sentido, ex
contractu. Diversamente do exigido noutros sistemas, não é necessária a tradição da coisa
para a transferência de um direito real sobre móveis, nem se exige para os imóveis outro
ato, como o registo, bastando o contrato, constitutivo ou translativo de direitos reais, para
que estes se constituam ou se transfiram.
Importa notar que a expressão “princípio da consensualidade” tem outro sentido, idêntico
com o princípio da liberdade de forma. Nessa aceção, são consensuais os negócios que não
carecem, para a sua eficácia, de formalismo especial (Art. 219º do CC). Não é neste sentido,
relativo à formação do negócio, que se fala no princípio da consensualidade neste contexto,
mas antes num sentido relativo aos efeitos reais do negócio.
Existe uma discussão sobre o alcance e imperatividade deste princípio. Há vozes que põem
em causa o entendimento que, entre nós, maioritariamente lhe tem sido dado em face do
disposto no Art. 408º do CC. Sustenta-se que as exceções a que alude a parte final do nº1
do Art. 408º do CC “abrangem um conjunto impressionante de contratos translativos”, de
tal modo que esse preceito é transformado em regra residual e supletiva, sendo o princípio
da transmissão solo consensu “quase um mito”.
5. Princípio da publicidade
Trata-se, a este propósito, da relevante noção de terceiros para efeitos de registo, que está
ligada à determinação do alcance e da própria função do registo. O STJ, no Acórdão de
uniformização de jurisprudência nº15/97, de 20 de maio de 1997, decidiu que “terceiros,
para efeitos de registo predial, são todos os que, tendo obtido registo de um direito sobre
determinado prédio, veriam esse direito ser arredado por qualquer facto jurídico anterior
não registado ou registado posteriormente”, adotando, portanto, um conceito amplo de
terceiros. Em 1999, o Acórdão de uniformização de jurisprudência nº3/99, de 18 de maio
de 1999, decidiu rever a doutrina daquele aresto, dizendo que “terceiros, para efeitos do
disposto no Art. 5º do Cod. do Reg. Pred., são os adquirentes de boa-fé, de um mesmo
transmitente comum, de direitos incompatíveis, sobre a mesma coisa”. O STJ passou a exigir
um “mesmo transmitente comum”, bem como a boa-fé do terceiro, considerando, no caso
concreto, que o exequente penhorante não era terceiro em relação ao adquirente anterior
de direitos sobre o mesmo prédio ou fração, que não registara a sua aquisição. Perante esta
alteração, o legislador interveio, pelo DL. nº533/99, de 11 de dezembro, acrescentando ao
Art. 5º do Cod. Reg. Pred. um novo nº4, que dispõe: “Terceiros, para efeitos de registo, são
aqueles que tenham adquirido de um autor comum direitos incompatíveis entre si”.
Até pelo contraste com o teor da jurisprudência que fora fixada pelo Acórdão de 1999
citado, ficou claro que o legislador não quis exigir, como requisitos para a proteção do
terceiro registante, nem a sua boa-fé nem a onerosidade da aquisição do terceiro. A
referência a um “autor comum”, em vez de um “transmitente comum” é, a nosso ver,
literalmente compatível com a inclusão na noção de terceiros também daqueles que
adquirem um direito mesmo sem intervenção voluntária do causante, posição que não
temos dúvida em considerar preferível e em conformidade com a razão de ser da limitação
resultante da falta de registo. Apesar desta clarificação, a divergência de opiniões persiste,
na doutrina e na jurisprudência, não já em relação à adoção de uma noção “amplíssima” de
terceiros, mas sim quanto à necessidade de o terceiro registante estar de boa-fé, e de
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adquirir onerosamente, bem como quanto à exigência de uma aquisição baseada numa
atuação voluntaria do “autor comum”.
Existe um setor da doutrina que exige a onerosidade da aquisição do terceiro, e que este
esteja de boa-fé, para que possa ser “protegido” pelo registo, enquanto outros exigem
apenas a boa-fé do terceiro que primeiro regista. A posição tradicional, diversamente,
rejeita, em nome da eficácia da garantia dada pelo registo, a exigência tanto da onerosidade
como da boa-fé do terceiro registante, como condições para que este possa adquirir com
base no seu registo. Temo-nos inserido nesta última posição, que parece em conformidade
com a letra da lei, com a intenção do legislador e com a intenção de não diminuir o alcance
da garantia dada pelo registo, sujeitando o registante à prova de estados subjetivos que
enfraqueceria tal garantia. Isto, embora reconheçamos que existem bons argumentos para
excluir a proteção do terceiro que conhece efetivamente a disposição anterior, seja por via
do instituto do abuso de direito, seja por se considerar que o conhecimento efetivo deve
chegar para substituir o conhecimento “presumido” do terceiro, como o que se presume
resultar da publicidade registal.
A figura da posse encontra-se prevista no Livro III do CC, mais precisamente no seu Art.
1251º, como o “poder que se manifesta quando alguém acuta por forma correspondente
ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real”.
A interpretação deste preceito dá lugar a dois problemas fundamentais com que se vem
debatendo a doutrina: por um lado, impõe-se saber se o exercício de poderes de facto sobre
uma coisa (corpus) tem de ser acompanhado por uma especial intenção (animus possidendi)
e, por outro lado, impõe-se saber qual a natureza jurídica deste instituto jurídico.
Savigny defendeu que a posse romana exigia, não apenas um poder de facto sobre a coisa,
mas que esse poder se exercesse em termos de domínio (animus dominandi). Por esta razão,
a posse decompor-se-ia em dois elementos: o corpus, que se traduz na possibilidade física
de exercer uma influência imediata sobre uma coisa e de excluir toda a influência estranha
(elemento objetivo ou material) e o animus, em que o poder material é exercido como se
aquele que o exerce fora o proprietário da coisa (elemento subjetivo). Mais tarde,
considerando inadmissível a restrição do animus ao direito de propriedade, alguns autores
alargaram o elemento subjetivo à vontade de exercer o direito real como seu titular (animus
possidendi), ao passo que outros optaram por considerá-lo como intenção de exercer sobre
a coisa um poder no próprio interesse (animus sibi habendi).
O sistema objetivista, que teve como porta-voz Ihering, partiu do poder de facto exercido
sobre a coisa, opondo-se à espiritualização da posse. Para esta posição, toda a relação
material entre uma pessoa e uma coisa é uma relação possessória, a não ser que a lei diga
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o contrário, relegando-a para a mera detenção. Não obstante, para haver posse não bastaria
um qualquer contacto com a coisa, é necessário que se verifique uma certa estabilidade.
Importa mencionar que esta teoria objetivista não está destituída de qualquer elemento
intencional, já que os poderes de facto têm de resultar de uma atuação voluntária. Tanto é
posse o poder de facto que tenha por base um título de direito real, como um que assente
num direito de crédito.
A posição subjetivista é, atualmente, ainda maioritária, apesar existe uma dualidade entre
a Escola de Coimbra que opta pela posição subjetivista e a Escola de Lisboa que adota a
teoria objetivista. Este “duelo” reproduz-se quando a questão é a de saber qual a posição
adotada pelo legislador português. Parte significativa da doutrina e da jurisprudência
considera ter o legislador português optado pela posição subjetivista, uma vez que apesar
de o animus não estar ipsis verbis consagrado no Art. 1251º do CC, a essencialidade da sua
presença deriva de outras disposições, nomeadamente do Art. 1253º do CC. Segundo o Dr.
Orlando de Carvalho no texto do Art. 1251º do CC, o animus parece que não avulta, diluído
numa como que pura caraterização da catividade empírica. Não existe corpus sem animus
nem animus sem corpus, há uma relação biunívoca. O corpus é o exercício de poderes de
facto que intende uma vontade de domínio, de poder jurídico-real e o animus é a intenção
jurídico-real, a vontade de agir como titular de um direito real, que se exprima de certa
atuação de facto. Nos termos do Art. 1253º a) do CC, são detentores os que atuam sobre a
coisa “sem a intenção de agir como beneficiários do direito”. Já para se atingir o estatuto
mais exigente de possuidor, será necessário associar ao corpus a intenção de atuar como
beneficiário do direito real correspondente. E, para além do disposto no Art. 1253º do CC,
ainda podem adiantar-se outros argumentos, nos termos do nº2 do Art. 1252º do CC,
presume-se a posse naquele que exerce os poderes de facto sobre a coisa, este preceito não
faria muito sentido se o corpus bastasse para afirmar a presença da posse. Em suma, o CC
português adota uma posição subjetivista, embora mitigada. Assim, dois são os elementos
constitutivos da posse: em primeiro lugar, o corpus e, em segundo lugar, tem de juntar-se o
animus.
Segundo as alíneas do Art. 1253º do CC, os detentores pertencerão a três categorias que
podem entrecruzar-se na posição jurídica daquele que exerce poderes de facto (corpus)
sobre coisa certa e determinada sem, contudo, apoiar-se na intenção de exercer um direito
real (animus):
1) Os que praticam atos sobre a coisa sem a intenção de agir como beneficiários do direito.
2) Os que praticam sobre a coisa atos de mera tolerância, que são os atos praticados por
um indivíduo que não é o titular da coisa ou do direito sobre que incidem, e que, em
virtude de motivos de amizade de parentesco ou de vizinhança, a lei supõe praticados
com o consentimento daquele titular e não significam a afirmação de um direito
próprio. – Ex.: O sujeito que atravessa um prédio propriedade de um vizinho amigo é
apenas detentor e não possuidor. Os atos de mera tolerância nunca poderão dar origem a
uma situação possessória, por lhes faltar o animus possidendi.
3) Os que representam ou são mandatários do possuidor e, de um modo geral, todos os
que possuem em nome de outrem. – Ex.: Casos do arrendatário, do comodatário ou do
depositário.
Por fim, embora, o CC português adote a posição subjetivista, a verdade é que algum
esbatimento se imprime na discussão quando vemos que a alguns detentores o legislador
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optou por estender a tutela possessória: locatário (Art. 1037º, nº2 do CC), parceiro pensador
(Art. 1125º, nº2 do CC), comodatário (Art. 1133º, nº2 do CC), depositário (Art. 1188º, nº2
do CC) e o locatário financeiro (Art. 10º, nº2, al. c) do CC).
2. Âmbito da posse
Em termos de que outros direitos reais pode a posse ser exercida? Não há dúvida de que
pode ser exercida em termos de qualquer direito real de gozo, restam, então, os direitos
reais de aquisição e os direitos reais de garantia. A expressão “qualquer direito real de gozo”
exige uma precisão. Nos termos do Art. 1280º do CC, as acotoes de defesa da posse não são
aplicáveis à defesa das servidões não aparentes, salvo quando a posse se funde em título
provindo do proprietário do prédio serviente ou de quem lho transmitiu.
Quanto à possibilidade de constituir-se uma relação possessória com uma coisa em termos
de um direito real de aquisição, parece ser duvidosa. Sendo direitos cujo exercício permite
a aquisição de um direito real de gozo, não parecem permitir uma prática de atos materiais
sobre uma coisa com a estabilidade necessária à verificação de corpus, esgotam-se pelo
mero exercício.
No que se refere aos direitos reais de garantia interessam apenas aqueles que permitem o
exercício de poderes materiais sobre a coisa: o penhor e a retenção. O primeiro não tem
relevância em matéria de posse imobiliária, mas o segundo já a tem. Se o corpus implica
necessariamente o poder de uso e/ou de fruição, então não há como afirmar uma relação
possessória entre o retentor e a coisa. Porem, a presença do corpus não depende do
aproveitamento das utilidades da coisa ou dos frutos por ela produzidos, mas sim de um
poder de facto, que se verifica tanto nos direitos reais de gozo, como em alguns direitos
reais de garantia, que pressupõem necessariamente a detenção material de uma coisa (Arts.
669º e 754º do CC). Para o Dr. Pires de Lima e para o Dr. Antunes de Varela, as garantias
reais são direitos acessórios dos direitos de crédito e dificilmente se concebe que possam
constituir-se ou fazer-se valer independentemente dos direitos de que dependem, por isso
na usucapião se referem os direitos reais de gozo e não os de garantia (Art. 1287º do CC).
Um dos preceitos legais que não pode ser contornado é o Art. 670º a) do CC, no qual se
afirma a faculdade de o credor pignoratício defender os seus poderes sobre a coisa através
das ações de defesa da posse e esta norma é aplicável, por remissão, ao retentor (Art. 759º,
nº3 do CC). Mais uma vez a doutrina diverge:
• Dr. Henrique Mesquita – Daquele preceito pode retirar-se que o legislador considera o
credor pignoratício e o retentor como não possuidores, aos quais deve estender a tutela
possessória
• Dr. Orlando de Carvalho – “A existência da posse parece-nos (...) indiscutível, e é o que
a lei confirma (...) (Art. 670 a) do CC), o que, por força dos Arts. 758º e 759º, nº3 do CC,
vale também para o retentor. E acrescenta a favor da sua posição a diferença de
formulação entre o Art. 670º a) do CC e, por exemplo, o nº2 do Art. 1037º do CC.
• Dr. Menezes Cordeiro – Admite a posse para todos os direitos reais que impliquem o
controlo material da coisa sobre que incidam, incluindo os direitos reais de garantia que
permitam o acossamento. Não apenas invoca o disposto nos Arts. 690º a) e 669º do CC,
mas, igualmente, a função da posse enquanto modo de tutela da ligação à coisa,
impedindo ingerências estranhas. Trata-se aqui de uma posse meramente interdital, na
medida em que não há acesso a usucapião (Art. 1287º do CC).
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Neste aspeto, concordamos com o Dr. Menezes de Cordeiro.
3. Aquisição da posse
O ato de aquisição da posse tem de conter os dois elementos definidores deste conceito,
isto é, o corpus e o animus.
Posse titulada é a que se funda num título em abstrato idóneo à aquisição do direito real
nos termos do qual se possui (Art. 1259º do CC). De acordo com o legislador, tal título não
deve padecer de vícios formais, mas pode conter enfermidades materiais, posição que
grande parte da doutrina critica, desde logo porque existem vícios substanciais que afastam
a própria posse em si, como ocorre com a simulação ou a reserva mental. Para além disso,
o título não tem, mais uma vez ao contrário do que dita a letra da lei, de se consubstanciar
num negócio jurídico. Sempre que a posse é titulada, presume-se de boa-fé (Art. 1260º, nº2
do CC) e que o possuidor o é desde a data do título (Art. 1254º, nº2 do CC).
A posse é de boa-fé sempre que, ao adquiri-la, o possuidor ignorava estar a lesar um direito
de outrem (Art. 1260º, nº1 do CC). Ora, ao contrário do Dr. Orlando de Carvalho, o Dr.
Santos Justo entende que só conta aqui a ignorância sem culpa. Uma vez que é de difícil
prova, a posse de boa-fé presume-se sempre que seja titulada. Pelo contrário, a posse não
titulada presume-se de má-fé.
A posse é pacífica quando foi adquirida sem violência, e violenta quando foi adquirida
mediante coação física ou moral (Art. 1261º do CC). A posse violenta presume-se, de forma
inilidível, de má-fé (Art. 1260º, nº3 do CC).
A posse é pública sempre que for adquirida (e não exercida, como resulta da lei) de modo a
ser cognoscível por um homem médio colocado na posição dos interessados que, em regra,
são os anteriores possuidores (Art. 1262º do CC).
5. Efeitos da posse
5.1.Presunção da titularidade de direito
5.2.Usucapião
A usucapião verifica-se sempre que o exercício da posse pública e pacífica (Arts. 1297º e
1300º, nº1 do CC) por um determinado período de tempo leve ao nascimento de um direito
real definitivo da titularidade do possuidor, tratando-se, por isso, de uma forma de
aquisição originária do mesmo (Art. 1287º do CC). Os seus efeitos retroagem ao início do
exercício da posse, isto é, o possuidor considera-se, desde aí, titular do direito real em causa
(Art. 1288º do CC).
Acresce que a usucapião pode ser invocada para a aquisição de qualquer real de gozo, salvo
as servidões não aparentes e os direitos de uso e habitação (Art. 1293º do CC).
A contagem do prazo é suspensa ou interrompida de acordo com o disposto nos Arts. 318º
a 322º do CC, aplicados por analogia.
6.3. Frutos
5.3.Benfeitorias
Se o titular do direito real intentar uma ação contra o possuidor e não puder ser invocada a
usucapião, este terá de entregar a coisa, respondendo pela sua perda ou deterioração se
tiver atuado com culpa (Art. 1269º do CC).
No caso da posse de má-fé, há quem entenda que o possuidor deve ser sempre
responsabilizado, independentemente da culpa. Porém, há quem entenda que, uma vez que
sabe estar a lesar o direito de outrem e ter o dever de entregar a coisa, o possuidor de má-
fé é um devedor em mora (Art. 805º, nº2 b) do CC), tornando-se responsável pelos prejuízos
do credor, a menos que prove que estes teriam ocorrido mesmo se a obrigação tivesse sido
observada atempadamente (Art. 807º, nº2 do CC).
6. Tutela possessória
A posse é suscetível de defesa, prevendo a lei vários meios de tutela possessória, todos
dirigidos à manutenção da situação de facto.
Todos os meios judiciais exigem a prova da posse que nos é facilitada pelo Art. 1252º, nº2
do CC. Para que se possa recorrer a estes meios, tem de haver um facto que viole ou
constitua uma ameaça de violação (ilegítima) da relação possessória. Este facto pode ter
natureza material ou jurídica, ter curta ou longa duração, e terá de ser acompanhado de
animus turbandi ou animus spoliandi. Dirigem-se os factos violadores da posse à
constituição de uma posse contrária à que exista sobre a coisa.
• Ação de manutenção (Art. 1278º do CC) – Meio adequado para reagir contra atos de
turbação (só atos materiais que diminuam, alterem ou modifiquem o gozo ou o modo
de exercício da posse, acompanhados que sejam de animus turbandi, dirigidos à
constituição de uma posse contrária à que é exercida). É necessário que o possuidor
mantenha a posse – Ex: Passagem através de prédio alheio; Destruição ou realização de
uma sementeira em prédio alheio. – O Art. 1281º, nº1 do CC dá-nos a conhecer quem é
que tem legitimidade processual ativa e quem é que tem legitimidade processual
passiva na ação de manutenção.
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• Ação de restituição (Art. 1278º do CC) – Meio adequado para reagir contra atos de
esbulho (privam o possuidor da sua posse) – Ex: A instalasse numa casa possuída por B e
impede B de a habitar; A destrói um aqueduto existente em prédio seu para conduzir águas
para o terreno de B. – O Art. 1281º, nº2 do CC indica-nos quem é que detém a
legitimidade processual ativa e passiva na ação de restituição.
Quanto aos efeitos destas ações, estes estão disciplinados nos Arts. 1283º e 1284º
do CC.
• Ação de restituição por esbulho violento (Art. 1279º do CC) – Meio de reação célere
por ser mais simples e não ter de ser ouvido o esbulhador. Traduz-se num
procedimento cautelar, será necessário intentar uma ação de restituição (cfr.
caducidade)
• Embargos de terceiro – Meio adequado para reagir contra os atos judiciais ofensivos
da posse. Os seus termos são regulados pela lei processual.
7. Perda de posse
De acordo com o Art. 1267º do CC, o possuidor perde a posse nas seguintes situações:
• Abandono – Deixam de verificar-se os elementos constitutivos da posse. A posse perde-
se independentemente da sua aquisição por outrem. Este preceito não tem aplicação
à posse em termos dos direitos reais de natureza perpétua (Art. 1257º do CC).
• Perda ou destruição material da coisa ou por esta ser posta fora do comércio —
Consiste na perda do corpus, na primeira hipótese. Na segunda hipótese, o Art. 202º,
nº2 do CC vem esclarecer que consideram-se fora do comércio todas as coisas que não
podem ser objeto de direitos privados, tais como as que se encontram no domínio
público e as que são, por sua natureza, insuscetíveis de apropriação individual. A
doutrina portuguesa é pacífica quanto á impossibilidade de a posse se poder exercer
sobre coisa de domínio publico, já que se trata de um instituto de direito privado, que
não se pode manifestar sobre aquilo que o legislador exclui, expressamente, do
comércio jurídico-privado.
• Pela posse de outrem, mesmo contra a vontade do antigo possuidor, se a nova posse
houver durado por mais de um ano.
Naturalmente, também se perde a posse com a perda do animus, quando o possuidor passa
a detentor, como acontece no constituto possessório.
O Dr. Manuel Rodrigues considerava a posse como um direito. Para este autor, a posse é
um facto jurídico por virtude dos efeitos que a lei lhe atribui e é um direito real, porque é
um poder direto e imediato sobre uma coisa e o seu titular tem a faculdade de exigir de
todos os indivíduos uma abstenção que lhe permita exercer os elementos constitutivos do
direito que exterioriza. Dentro de ano, o possuidor tem o direito de se reintegrar na sua
posse, qualquer que seja o indivíduo que possua o seu prédio e o título porque o possui.
Outros autores da Escola de Coimbra, nomeadamente, o Dr. Henrique Mesquita e o Dr.
Mota Pinto adotaram uma posição idêntica acrescentando a ideia de provisoriedade do
direito, na medida em que, pelo decurso do prazo, a posse permite a aquisição do direito
real a que corresponde (usucapião) ou cessa pela reivindicação bem-sucedida. O Dr. Manuel
Rodrigues considera que no plano físico ou naturalístico, a posse é realmente um facto. Este
facto é recebido pelo direito independentemente de qualquer indagação sobre a existência,
na titularidade do possuidor, do direito real correspondente aos poderes por este exercidos
sobre certa coisa. A posse figura na esfera jurídica do possuidor como um valor patrimonial.
A posse é negociável, permitindo a lei que o possuidor, em certos casos, ceda a sua posição
independentemente da tradição material ou simbólica da coisa. A cedência é possível
mesmo a favor do titular do direito, o qual, para evitar os incómodos e as incertezas do
processo de reivindicação, pode preferir adquirir, por via negocial, a posse que
judicialmente teria o direito de reclamar. Além disso, a posse é transmissível por via
hereditária e suscetível de inscrição no registo predial Art. 2º, nº1 f) do Cód. do Registo
Predial. Pode ser defendida contra atos de turbação ou esbulho. Sendo assim, parece não
poder negar-se ao possuidor um verdadeiro direito subjetivo. A posse nasce como pura
relação de facto, mas, uma vez nascida, converte-se num direito, isto é, numa relação
produtora de efeitos jurídicos. Confrontado com os demais direitos subjetivos, o direito do
possuidor tem apenas de específica a sua natureza provisoria. Mas este aspeto não exclui
que ao possuidor, enquanto não for judicialmente convencido (em ação petitória) pelo
reivindicante, se reconheça a titularidade de um verdadeiro direito. O Dr. Mota Pinto, no
mesmo sentido, considera poder dizer-se que a posse não é um mero facto, é um direito
real provisório dotado de garantia jurídica. É um direito real provisório, porque esta
proteção só se mantém, ou melhor, cessa, não havendo anteriormente usucapião, perante
a ação de reivindicação.
O Dr. Orlando de Carvalho afirma que a posse é o poder de facto exercido sobre uma coisa,
que, mesmo sendo fonte de consequências jurídicas e até de direitos, não deixa de ser uma
situação de facto juridicamente relevante. Um dos efeitos da posse é a presunção da
existência do direito real correspondente (Art. 1268º, nº1 do CC), como tal, se a posse fosse
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um direito, não faria sentido que dele se presumisse um outro direito. Por outro lado, o
exercício da posse por um determinado período de tempo permite a aquisição de um direito
real, logo, se a posse fosse um direito, teríamos um direito a permitir a aquisição originária
de um outro direito. Finalmente, também seria de estranhar que a posse, sendo um direito,
fosse apenas tutelado se exercido de boa-fé, de modo pacífico e público (Arts. 1269º e ss.,
Art. 1267º, nº2, 1282º, 1297º, 1300º, nº1 do CC). Neste sentido, este autor considera que a
posição segundo a qual a posse é um direito só pode justificar-se no prolongamento de um
erro terminológico, na medida em que, tanto a escola dos Glosadores como a dos
Comentadores, para se referirem a posse, adotaram a expressão ius possessionis, dando
lugar à confusão entre a posse e o direito à posse.