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DIREITO DAS COISAS

Dr.: Paulo Mota Pinto


Dra.: Margarida Costa Andrade

Ana Luísa Martins


1ª Turma
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2021/2022
Parte I – Introdução

1. O problema e a função do direito das coisas. Interesses subjacentes ao direito das


coisas. Terminologia.

Todas as sociedades confrontam-se com o problema da definição de poderes exclusivos


sobre entidades do mundo externo aos seres humanos, entidades que são meios para fins,
e não fins em si mesmos. O direito das coisas tem que definir quais são essas realidades que
podem ser objeto de poderes exclusivos, e, portanto, de direitos subjetivos. Esta definição,
complica-se assim que procuramos definir “coisa” com um mínimo de precisão necessária
para identificar o objeto de um direito real. Excluída a própria pessoa, aspetos, modos de
ser ou projeções da própria pessoa, ou a pessoa de outrem, devemos também excluir
comportamentos ou condutas de pessoas, isto é, prestações que não são entidades
estáticas nem separáveis das pessoas.

Dito isto, defendemos um conceito amplo de coisa, incluindo entidades do mundo externo
mesmo que não tenham existência corpórea. – Ex.: São coisas incorpóreas as obras, criações
do espírito objetivadas e, nesse sentido, separadas da pessoa, ou os processos de fabrico ou
inovações objeto de patentes. – Ponto diverso é o de saber se estas realidades são objeto do
direito das coisas ou se apenas integram outros ramos do direito.

Qual é o problema do direito das coisas?


• Em primeiro lugar, consiste na definição dos possíveis objetos de poderes exclusivos,
sobre os quais podem incidir direitos reais.
• Em segundo lugar, o direito das coisas procede à atribuição exclusiva das coisas a uma
pessoa, ou seja, é um direito de atribuição ou afetação de bens, definindo os poderes
de cada titular em relação à coisa que é objeto do direito real. Trata-se de delimitar o
conteúdo dos poderes ou faculdades que licitamente são atribuídos e que o titular pode
exercer sobre a coisa. O que está em causa no direito das coisas não é nem a circulação
nem o trânsito para as coisas, mas a sua afetação aos seus titulares e a atribuição de
um conjunto de poderes a estes, que são poderes diretos e imediatos sobre as coisas.
• Em terceiro lugar, o direito das coisas confere uma proteção dos poderes do titular
perante a generalidade das pessoas. Esta proteção visa a estabilização e conservação
dos poderes sobre a coisa.

Para além disto, devem ser também destacados os interesses protegidos pelo direito das
coisas. Distinguimos, assim, um interesse na imediação ou satisfação das necessidades sem
intervenção ou mediação de outra pessoa, o qual preside ao ser permitido ou ao conteúdo
do direito e um interesse na estabilização, que preside à proteção ou sanção que
acompanha o direito real, dirigida erga omnes. Esta distinção corresponde aos dois lados do
direito real, que distinguiremos quando tratarmos da sua conceção.

A afetação de coisas a pessoas e a sua proteção serve sobretudo interesses de conservação


do domínio sobre os bens e suas utilidades, pelo que se compreende que o mecanismo
característico desses direitos tenda a ser a sujeição de todos os outros sobretudo a
obrigações negativas. Trata-se de deveres de conservação dirigidos à “proteção de
existências”, distintos dos “deveres de prestação para incremento do património”
característicos do direito das obrigações. À diferença em relação ao domínio contratual
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corresponde, também, a diferença entre o interesse contratual positivo e o mero “interesse
na conservação” ou na proteção do existente. De qualquer modo, os direitos de crédito
dirigem-se, normalmente, a certos comportamentos, em regra ativos, e não lhes preside um
simples interesse na exclusão e conservação, pela simples não perturbação. Do mesmo
modo, os direitos das coisas servem em regra um interesse na duração, que também os
tende a distinguir dos direitos de crédito, os quais existem para o seu cumprimento. A
distinção entre estes interesses corresponde também à distinção entre a relação humana
específica entre uma pessoa e outra (ou outras) pessoa(s) determinadas e a relação entre
uma pessoa e todos os outros.

Além da distinção do problema, da função e dos interesses subjacentes ao direito das coisas,
é também o momento para destacar a sua importante função económica. Trata-se de fazer
uma breve referência à necessidade não só social, mas também económica de definição e
atribuição de direitos de exclusivo por uma ordem normativa. A literatura económica
salienta os fatores institucionais, e entre eles especificamente a definição de direitos de
exclusivo e os termos e eficácia da sua proteção como um dos mais relevantes fatores
explicativos do desenvolvimento e da “riqueza das nações”. Deve, também, fazer-se uma
breve referência à teoria económica da afetação dos property rights, à relevância no
mundo real dos custos de transação e aos efeitos distributivos da afetação inicial de
recursos, mesmo se não existissem custos de transação. Destaca-se, ainda, a diversidade de
função económica dos diversos tipos de direitos reais, alguns dos quais servem a utilização
ou gozo dos bens (direitos reais como que finais), enquanto outros servem a garantia de
créditos ou, até, a atividade de circulação pela aquisição de coisas. Também a relevância
sob o ponto de vista económico de uma ordenação não só definitiva, que proteja direitos
de exclusivo definitivos, mas também dos poderes de facto sobre as coisas, numa sua
ordenação provisória pela proteção da posse, deve ser destacada.

2. Âmbito de aplicação, sentido e caraterísticas do direito das coisas como direito


patrimonial. Complementaridade com o direito das obrigações.

Em primeiro lugar, importa começar por referir que o direito das coisas se localiza no direito
privado e distingue-se da ordenação das coisas jurídico-pública.

Em segundo lugar, há que caracterizar o direito das coisas como direito patrimonial, isto é,
regulador de relações jurídicas que são suscetíveis de avaliação pecuniária, em dinheiro.
Além da recondução da patrimonialidade à pecuniaridade, importa problematizar o critério
da suscetibilidade de avaliação em dinheiro para a distinção entre os bens que são objeto
do direito das coisas e os bens pessoais. A caraterização como direito patrimonial implica
também que se destaque a ligação do direito das coisas ao sistema económico e social
vigente em cada ordem jurídica O direito das coisas é, assim, o pressuposto e o resultado
desse sistema, estando intimamente ligado ao tipo de sistema económico e social vigente.

O direito das coisas deve também ser caracterizado como um direito que se não centra
numa certa instituição social.

O direito das coisas distingue-se do direito das obrigações não só pela sua função e pelos
interesses que serve como pela caraterística estrutural de implicar o reconhecimento de

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poderes relativamente a coisas que podem ser feitos valer contra quaisquer terceiros e que
não valem, portanto, apenas contra pessoas específicas.

3. Fontes do direito das coisas

Como é que determinamos quais são as fontes da disciplina do direito das coisas?
• No Código Civil, as disposições sobre direitos reais não são só as normas incluídas nos
Arts. 1251º a 1574º como, também, as normas dos Arts. 656º a 761º, sobre direitos
reais de garantia, e outras normas onde se consagram direitos reais de aquisição.
• Além do Código Civil, importa fazer referência à legislação especial sobre direito das
coisas: quer o Código do Registo Predial e outros diplomas sobre registo, quer o
Decreto-Lei nº275/93, de 5 de agosto, sobre direito real de habitação periódica, quer
normas sobre propriedade horizontal e outra legislação complementar ao Código Civil
(por exemplo, o diploma sobre alojamento local – Lei nº62/2018, de 22 de agosto).

É também esta a sede para recordar o “sistema externo” do direito das coisas, e da ausência
de uma parte geral ou de disposições gerais no Código Civil, que adotou uma sistematização
do direito das coisas seguindo os diversos direitos subjetivos das coisas previstos. A par da
descrição do “sistema externo”, faz-se aqui logo uma curta referência ao “sistema interno”
cuja exata descrição e compreensão só é possível depois do estudo dos princípios
ordenadores dos direitos reais.

Deve destacar-se, ainda, o contributo da jurisprudência, decisivo em várias questões


controversas e de grande importância no direito das coisas. É o caso, por exemplo, da
questão dos efeitos do registo e da noção de terceiros para efeitos de registo e de
problemas como, por exemplo, o da relação entre o regime das benfeitorias e da acessão,
os requisitos da posse, e o alcance da presunção de titularidade de direito resultante do
registo em conjugação com o regime da posse, relação entre direitos reais de garantia não
registados (como o direito de retenção do promitente-comprador) e a hipoteca, etc.

4. O direito das coisas e outros ramos do direito

Importa agora relacionar o direito das coisas com outros ramos do direito. Trata-se não só
de expor a articulação das disposições sobre o direito das coisas com as normas da Parte
Geral (designadamente, os Arts. 201º-B a 216º do CC) com outras normas, designadamente
as relativas ao direito das obrigações e algumas normas do direito da família, mas também
de os relacionar sob o ponto de vista da função com os restantes ramos do direito privado,
quer do direito civil, quer de ramos de direito privado especial. É aqui acolhida especial
referência aos ramos de direito que lidam com coisas incorpóreas ou imateriais, tal como o
direito da propriedade industrial e o direito de autor, bem como aqueles que têm uma
função em grande medida instrumental do direito das coisas, como o direito registal e o
direito notarial.

Quanto ao relacionamento com o direito público, o estatuto do domínio é decisivamente


conformado por normas de direito administrativo, designadamente de direito do
ordenamento do território e do urbanismo, e o direito do ambiente.

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É momento também para se fazer uma primeira referência ao regime jurídico das
nacionalizações, da requisição e da expropriação por utilidade pública.

Relativamente ao direito europeu existiram tentativas de harmonização ou aproximação do


direito das coisas nesse contexto. Importa antes de mais salientar os limites da competência
da União Europeia a este respeito. Além disso, faz-se referência a diretivas sobre alguns
pontos, às propostas de criação de garantias imobiliárias que possam circular na União e aos
trabalhos doutrinas que procuram construir uma base comum ou mesmo um direito das
coisas europeu.

5. Proteção constitucional da propriedade e de outros direitos reais

Vamos atender agora à relação entre o direito das coisas e o direito constitucional e,
especificamente, às questões da proteção constitucional da propriedade e de outros
direitos reais e da eficácia nas relações de direito privado.

Sobre a proteção constitucional do direito de propriedade, recorda-se o Art. 62º da CRP e


o seu âmbito de proteção. Depois desta referência, alarga-se a perspetiva para a
“constituição patrimonial privada”, fazendo uma referência à evolução da proteção
constitucional da propriedade privada desde 1974.

Neste ponto é, também, o momento para recordar alguma jurisprudência do Tribunal


Constitucional sobre a proteção constitucional da propriedade, designadamente a relativa
aos limites ao direito de apropriação ou à exclusão da propriedade privada de certos
setores, bem como à proteção diferenciada consoante o objeto em causa.

Inclui-se, também, neste ponto a referência à garantia constitucional contra a


expropriação, a qual só é possível com a justa indemnização.

Parte II – Direitos reais em geral


Capítulo I – Conceito e caraterísticas dos direitos reais

1. Conceito de direito real

Para enunciar uma noção de direito real partimos da noção de direito subjetivo que o
concebe como um poder jurídico de livremente exigir ou pretender de outrem um
comportamento ativo ou passivo (direito subjetivo propriamente dito) ou de só de per si
ou integrado por um ato de uma autoridade pública, produzir determinados efeitos
jurídicos que se impõem inelutavelmente a uma outra pessoa (direito potestativo).

Trata-se de uma definição que assenta na noção de poder jurídico, isto é, de poder
decorrente da ordem jurídica. Trata-se de uma noção que, embora tenha subjacente uma
perspetiva funcional, de acordo com a qual o direito subjetivo visa a afetação de um bem
ao seu titular é fundamentalmente estrutural, não dependendo da caracterização desse
bem.

Deve caracterizar-se o direito subjetivo pelo que ele permite ao seu titular fazer, embora
se não ignore que nalguns casos é a afetação de um bem e designadamente de uma coisa
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a uma pessoa, que funcionalmente tem a primazia sobre a proteção do direito pelos deveres
impostos a terceiros, enquanto noutros o bem resulta sobretudo da previsão e do
cumprimento desses deveres.

O direito subjetivo não é simplesmente uma permissão normativa, mesmo que específica,
a qual, aliás, tanto pode ser de ação como de omissão e deverá ter como oposto deôntico a
proibição ou o imperativo, e como correlativo (de tal permissão) a inexistência de um
direito.

A aludida definição de direito subjetivo comporta duas categorias diversas, uma em que
está em causa um poder de exigir um comportamento, outra em que está em causa um
poder de eficácia jurídica, situando-se o direito real na primeira. O direito real é um direito
subjetivo propriamente dito sobre uma coisa, e dentro destes um direito absoluto, isto é,
um direito eficaz contra todas as pessoas. As especificidades do direito real residem, por
um lado, no facto de o seu objeto ser uma coisa, e, por outro lado, em ser um direito
oponível erga omnes.

2. Caraterísticas dos direitos reais

Encontrado o conceito de direito real, tem lógica apurarmos agora as suas principais
características e, como tal, recorremos, nesta análise, à perspetiva de um confronto dos
direitos reais com os direitos de crédito.

Os direitos reais, como todos os direitos subjetivos, pressupõem uma relação


intersubjetiva entre pessoas, mas além disso pressupõem, também, um terceiro, ou seja,
só existem direitos reais quando a afetação da coisa ao titular é oponível a um terceiro.

2.1. Eficácia absoluta (erga omnes)

Os direitos reais são eficazes erga omnes, o que se traduz, por um lado, na atribuição ao
seu titular do poder de os exercer em face de todos os outros e, por outro lado, na imposição
a estes da necessidade de respeitarem o direito que em face deles se apresenta.

É esta eficácia absoluta dos direitos reais uma das razões que levaram à sua sujeição ao
princípio da tipicidade ou numerus clausus (Art. 1306º do CC). Este princípio resulta da
impossibilidade em que se encontram os particulares de criar direitos reais de um tipo ou
com um conteúdo que não correspondam aos tipos e conteúdos desenhados na lei. Não há,
assim, liberdade de conformação interna dos direitos reais diversamente do que sucede nos
direitos de crédito. Este princípio da tipicidade surge-nos como uma resposta a uma
exigência derivada da eficácia absoluta dos direitos reais pelas seguintes razões: Em
primeiro lugar, se os direitos reais gozam de eficácia real devem ser respeitados por todos,
o que implica, por sua vez, a sua cognoscibilidade por todos os restantes membros da
coletividade. Por sua vez, esta cognoscibilidade só é possível se procedermos à tipicização
desses direitos. Em segundo lugar, esta proteção absoluta só deve ser garantida pelo
ordenamento jurídico se se verificar a existência de uma real necessidade nesse sentido,
pois vão ser criadas restrições à liberdade de ação de todos à exceção do titular desses
direitos e isto explica não ser permitida a criação de direitos reais de tipo ou conteúdo

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determinados pela sua vontade. Assim, os tipos dos diferentes direitos reais e respetivos
conteúdos devem, pelas razões expostas, encontrar-se pré-determinados e descritos na lei.

Em suma, a primeira nota distintiva dos direitos reais em face dos direitos de crédito resulta
da circunstância dos direitos reais gozarem de uma eficácia absoluta, enquanto que os
direitos de crédito gozam de uma eficácia meramente relativa.

2.2. Sequela ou seguimento da coisa

O direito de sequela ou seguimento constitui uma consequência da eficácia absoluta dos


direitos reais. Isto significa que o direito segue a coisa, acompanha-a, podendo fazer-se
valer seja qual for a situação em que a coisa se encontre. O titular do direito real pode
sempre exercer os poderes correspondentes ao conteúdo do seu direito, ainda que o objeto
se encontre no domínio material ou esfera jurídica de outrem.

Hipótese tipicamente indicada para exemplificar o direito de sequela:


O proprietário pode reivindicar a coisa de um terceiro que dela se tenha apoderado e isto, tanto
no caso de essa apropriação ter resultado de um ato material, como no de provir de um ato de
natureza jurídica. Assim, suponha que um indivíduo comprou um prédio a A, mero locatário,
julgando ser este o proprietário respetivo. O proprietário pode reivindicar a coisa da pessoa que
a adquiriu por um título (compra e venda) normalmente idóneo para transferir a propriedade,
mas que, não o é, no caso em apreço, por o transmitente não possuir legitimidade para alienar
uma coisa que lhe não pertence. Não fica, por isso, o proprietário inibido de reivindicar a coisa,
podendo fazê-lo, exceto se, como é óbvio, entretanto se tiverem verificado os pressupostos de
usucapião a favor de terceiro adquirente. Pode muito bem suceder que a reivindicação da coisa
seja paralisada por uma exceção, a da aquisição por usucapião, oposta pelo seu possuidor desde
que tenham já decorrido os pressupostos dessa forma de aquisição da propriedade.

Retomando agora a hipótese referente ao exemplo utilizado, poderá dizer-se que o


proprietário exerce uma ação de reivindicação, constituindo este o meio processual pelo
qual a sequela se manifesta e que permite ao titular de um direito real de gozo obter o
reconhecimento do seu direito e a restituição do que lhe pertence, exceto se, entretanto,
não se tiverem verificado os pressupostos da usucapião a favor do terceiro adquirente. Não
obstante, é necessário realçar que a ação de reivindicação não é o único meio processual de
manifestação da sequela, embora o facto de esta ser correntemente exemplificada pudesse
sugerir o contrário.

No exemplo citado a sequela revestirá efetivamente a veste processual corresponde à ação


de reivindicação e isso deve-se ao facto de a coisa se encontrar numa situação material
incompatível com o direito, uma vez que ela se situa não na posse do seu proprietário ou
de quem a detivesse com permissão deste, mas na de um terceiro que a adquiriu de quem,
sem autorização do seu proprietário, não tinha legitimidade para a alienar. Nestes casos em
que a coisa se encontra numa situação material incompatível com o direito, a sequela vai
manifestar-se precisamente através da ação de reivindicação;

Nas hipóteses em que não se verifica uma situação material de incompatibilidade com o
direito, mas verifica-se a existência de uma situação jurídica suscetível de perturbar o
direito real, não há lugar à ação de revindicação. Porém, não deixa, também aí, de se

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manifestar a sequela. Se este não envolver um contacto direto com a coisa, a sequela
manifesta-se noutros sentidos. Por exemplo, tanto ao usufrutuário como ao titular de um
direito real de garantia, a hipoteca, assiste o direito de sequela, se a coisa for alienada a
terceiro pelo seu proprietário, isto na medida em que esses direitos reais podem ser opostos
ao terceiro adquirente para quem a coisa se transmitiu. Não há, todavia, nestes casos
qualquer razão que justifique o exercício de uma ação de reivindicação, desde logo porque,
por exemplo, na hipótese do usufruto, o usufrutuário até está na posse da coisa, não tendo
assim nada a reivindicar. Em que se manifesta aqui esse direito de sequela? Manifesta-se na
circunstância de o usufruto poder ser exercido em relação ao novo adquirente da sua
propriedade ou propriedade de raiz. Só que, agora, o exercício de sequela não se irá traduzir
numa ação de reivindicação, mas numa ação de simples apreciação. A ação de simples
apreciação será intentada pelo usufrutuário se surgirem dúvidas sobre a existência do seu
direito, para que este venha a ser declarado. Neste sentido, a ação de simples apreciação
constitui em hipóteses do tipo que prefiguramos, o usufruto, o meio processual idóneo para
o direito de sequela se manifestar. As coisas passam-se de forma idêntica à hipótese da
hipoteca. Também ao credor hipotecário, ao titular do direito real de garantia, assiste a
possibilidade de continuar a execução a coisa, objeto do seu direito, independentemente
de esta pertencer ainda ao proprietário que constitui a hipoteca, ou já a um posterior
adquirente. E é precisamente nessa possibilidade que o titular da hipoteca tem de fazer
valer o seu direito, independentemente da transmissão da propriedade, que reside esse
direito de sequela.

No que toca ao titular de direitos de crédito, diversamente do que vimos acontecer em


relação ao titular de direitos reais, não assiste o direito de sequela. Este surge-nos, assim,
como privativo dos direitos reais. – Ex.: No contrato promessa de comodato, o credor desta
promessa não pode opor o seu direito ao novo proprietário da coisa sobre que este incide se,
entretanto, for alienada. A posição do credor não acompanha a transmissão da propriedade
para um terceiro adquirente. Isto é, se A promete emprestar-nos o seu automóvel no próximo
fim-de-semana é-nos lícito exigir-lhe, chegando esse momento, o cumprimento da obrigação a
que se acha adstrito, facultando-nos o uso do veículo. Se, no momento do cumprimento, o
devedor (A) tiver, porém, alienado o automóvel, não podemos exigir ao novo proprietário que
nos faculte a utilização do veículo. A nossa posição de credor não aderiu, assim, à coisa, não a
acompanhou na transmissão da sua propriedade para um terceiro adquirente, o que conduz
necessariamente à conclusão de não nos assistir aqui o direito de sequela que permanece,
assim, exclusivo dos direitos reais.

O direito de sequela é um direito exclusivo dos direitos reais. O direito de crédito não
proporciona um direito real sobre património do devedor, uma vez que o seu titular,
diferentemente do titular deste, não pode perseguir os bens que saem do património do
devedor, exceto através da chamada impugnação pauliana, verificados os pressupostos
deste instituto (Ex.: Má-fé nas alienações onerosos). Atenção que não se trata aqui do direito
de sequela, isto é, a impugnação pauliana não é uma manifestação do direito de sequela,
uma vez que esta implica, diferentemente do que resulta do exercício do direito de sequela,
a anulação do ato de transmissão da coisa para um terceiro adquirente, exigindo ainda, para
que possa ser exercida, a verificação de certos e determinados requisitos.

Haverá situações em que, pelo menos, substancialmente, se verifiquem equivalentes a


exceções ao direito de sequela? Existem exceções à sequela:

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1) Alienação de imóvel (ou de móvel sujeito a registo) – As alienações de imóveis só são
eficazes em relação a terceiros para efeitos de registo, realizado o respetivo registo. De
acordo com o Dr. Mota Pinto, precedida a alienação de negócio jurídico cujo vício
justifica que seja declarada a sua invalidade. Declarado nulo ou anulado esse negócio,
os direitos adquiridos por terceiro não são prejudicados, desde que: a ação de
declaração de nulidade ou anulação não seja proposta dentro dos três anos posteriores
à conclusão do negócio e o terceiro registe a sua aquisição antes do registo da ação ou
do acordo entre as partes acerca da invalidade do negócio, de acordo com o Art. 291º
do CC. Esta solução é um compromisso entre os interesses que justificam a invalidade
do negócio e os legítimos interesses de terceiros e do tráfico.

2) Prioridade do registo – A sequela não existe quando a lei faz depender do registo a
eficácia do direito em relação a terceiros que adquiram um direito real total ou
parcialmente incompatível. Assim sendo, a venda a terceiro que não se vem a registar
não invalida a venda. A venda é, efetivamente, validamente celebrada. O único efeito
do registo é a eficácia do ato em relação a terceiros. Percebemos então, onde está aqui
a exceção ao direito de sequela: temos um proprietário, mas este não pode invocar a
sua propriedade em face de um terceiro.

Porém, não constitui exceção à sequela:


1) Aquisição “a non domino” de coisa móvel – Apesar da boa-fé do adquirente, o
verdadeiro adquirente continua a poder reivindicar a coisa e a exercer o seu direito em
face daquele terceiro adquirente. Não vale entre nós o princípio de que em matéria
de móveis a posse vale título. Este é um princípio presente em muitos ordenamentos
jurídicos, como o francês, o italiano, o alemão e o inglês e defende que o adquirente de
coisa móvel, ignorando os vícios de legitimidade da pessoa que lhe transmitiu, o adquira
definitivamente. Este princípio encontra a máxima expressão no sistema inglês, mas já
não se passa o mesmo no sistema francês, que lhe conhece exceções. As razões pelas
quais nós não aceitamos este princípio, trata-se de razões ligados aos interesses do
comércio, em que se pretende satisfazer as necessidades do tráfego. Para a doutrina,
sendo a sequela uma mera concretização ou consequência da absolutidade estrutural
do direito real e da sua eficácia erga omnes, é evidente que no conceito de sequela
também cabem as situações em que o titular de um direito real limitado para o fazer
valer, perante um subadquirente do domínio, não necessita de perseguir a coisa
(porque esta continua em seu poder, ou porque nunca esteve, nem deve estar, em seu
poder), bastando-lhe exigir, designadamente através de uma ação negatória, que o
subadquirente respeite o dever de abstenção que sobre si impende.

E nós desprotegemos completamente o terceiro adquirente de boa-fé? Não, nem


sempre. Embora o nosso legislador não tenha acolhido este princípio que se
fundamenta na necessidade de proteger os interesses do comércio, consagrou uma
solução que serve de compromisso, não sendo, mesmo assim, uma exceção à sequela.
Vejamos o Art. 1301º do CC, que determina que o proprietário pode exigir a coisa ao
terceiro que, de boa-fé, a comprou a comerciante que negoceie em coisa do mesmo ou
semelhante género, desde que lhe restitua o preço pago, gozando do direito de
regresso sobre quem culposamente causou o dano.

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No que toca à necessidade de proteção das coisas móveis nos casos em que não existe um
sistema de publicidade tabular (registral) sendo a sua apropriação dificilmente cognoscível,
podemos afirmar que esta necessidade não passou despercebida ao nosso legislador que
veio dar-lhe alguma guardiã na medida em que estabelece prazos mais curtos para
usucapião de móveis (Art. 1299º do CC).

2.3. Preferência ou prevalência temporal

O direito de prevalência ou preferência consiste na prioridade dos direitos reais sobre os


direitos de crédito e sobre os direitos reais constituídos posteriormente quando total ou
parcialmente incompatíveis com o anterior (prior in tempore, potior in iure). O direito de
prevalência surge-os como um corolário da eficácia absoluta dos direitos reais,
encontrando apoio no Art. 408º, nº1 do CC que estabelece a regra de transmissão dos
direitos por mero efeito do contrato (princípio da consensualidade), ou seja, a sua eficácia
absoluta confere, automaticamente, preferência sobre qualquer outro direito real
incompatível que tenha por objeto a mesma coisa.

Existe, no entanto, divergência doutrinal quanto à prevalência como característica dos


direitos reais:
• O Dr. Menezes Cordeiro considera-a como caraterística dos direitos reais;
• O Dr. Pinto Coelho e o Dr. Oliveira de Ascensão defendem que prevalência é uma
caraterística que se estende não a todos os direitos reais, mas exclusivamente aos
direitos reais de garantia. Estes apontam, por exemplo, para o caso da hipoteca, que
consiste num direito real de garantia, e dá o exemplo do caso em que sobre a mesma
coisa se constituem a ordem de exercício dos referidos direitos, o que se consegue fazer
prevalecer é o primeiramente constituído ou, no caso da hipoteca, o primeiramente
registado. Na prática isto resulta que o titular da segunda hipoteca só pode vir a pagar
depois de o titular da primeira hipoteca ter obtido satisfação do seu crédito pelo valor
da coisa, isto é que seria uma autêntica e genuína preferência. Porque é que para estes
autores já não se verifica este direito de preferência no caso dos direitos reais de gozo?
Porque neste caso, perante o conflito de ambos, verificar-se-ia a existência de um
direito e de um não-direito e isto porque, tendo-se o transmitente despojado do seu
direito na primeira transferência não pode, agora, na segunda, transmitir um direito
que não possui.

Crítica apontada pelo Dr. Mota Pinto: Deve ser dado o mérito a estes autores pelo
facto de revelarem a diferença dos direitos reais de garantia quando comparados com
os direitos reais de gozo, mas que não se deve ir tão longe ao ponto de recusar a
legitimidade da preferência nos direitos reais de gozo.

A diferença é que quanto aos direitos reais de garantia, o direito de preferência vai
estabelecer uma prioridade de exercício e quanto aos direitos reais de gozo, este
direito vai decidir a própria existência ou inexistência do direito.

Muitas vezes, no mundo do crédito, existe um interesse por certos credores de reservar
ou adquirir o direito de propriedade sobre certos bens até ao cumprimento dos
contratos de onde emergem os créditos de que são titulares. – Ex.: Venda com reserva
de propriedade (Art. 409º do CC). É o caso do leasing também, em que se trata de uma
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forma de financiamento em que tem lugar uma separação entre a propriedade dos
bens e o seu uso. Como percebemos, nestes casos de reserva ou constituição de
propriedade a favor de um credor, dá-se a sua maior proteção, maior do que aquela
que resultaria da uma simples relação creditícia.

Para além disto, é de notar que a prevalência não é uma caraterística apenas dos direitos
reais, já que o direito de prevalência também se encontra em alguns direitos de crédito:
• Um exemplo disso é o privilégio mobiliário geral. Os privilégios mobiliários gerais não
incidem sobre uma coisa certa e determinada, mas sobre o património do devedor e,
por isso, não constituem um direito real, mas uma garantia especial das obrigações. Os
casos em que estes podem surgir estão regulados nos Arts. 736º e 737º do CC. Estes
conferem ao seu titular a prevalência sobre os credores comuns do devedor. Se o titular
for o Estado ou autarquia local (como acontece para garantia de créditos resultantes
de determinados impostos (Art. 736º do CC)), esse privilégio atribui ao credor a
preferência mesmo sobre privilégios mobiliários especiais, que são já direitos reais.

• Outro exemplo disso é a concessão sucessiva de direitos pessoais de gozo


incompatíveis a diferentes pessoas, em que vai prevalecer o direito mais antigo, sem
prejuízo das regras próprias do registo (Art. 407º do CC). – Ex.: Dois comodatários
adquirem, por contratos sucessivos, o direito à entrega da coisa para o mesmo dia. Há aqui
uma incompatibilidade, já que o devedor não pode cumprir simultaneamente os dois
contratos ou não pode, por exemplo, facultar a utilização do seu automóvel no mesmo dia
a duas pessoas diferentes. O Art. 407º do CC resolve a questão fazendo prevalecer o direito
mais antigo em data. Ora, é esta solução, uma consagração do direito de preferência.

A prevalência tem exceções:


1) Prioridade do registo – Nem sempre o direito real mais antigo prefere sobre o direito
real mais recente. Quando a lei atribui eficácia ao registo perante terceiros, se o
primeiro adquirente não registar a sua aquisição, não prefere sobre o segundo
adquirente que, apesar de posterior, registou a sua aquisição. O registo só por si não
concede eficácia perante terceiros, dado que a própria eficácia absoluta, sem registo,
o faz. O que acontece é que sem o registo o direito não é oponível perante terceiros
para efeitos de registo. – Ex.: Se A vender a B e depois a C, não tendo ninguém registado,
tudo se resolverá de acordo com o Art. 408º, nº1 do CC. Caso C registe, este verá o seu
direito ser oponível a B, de acordo com o Art. 5º, nº4 do CC. Aqui temos um caso de
transmitente comum. Diferente é o caso do Art. 291º do CC, caso em que se dá uma
transmissão sucessiva de direitos. Ambos são terceiros para efeitos de registo, sendo o
primeiro caso mais relevante para efeitos desta disciplina.

2) Privilégios creditórios imobiliários especiais – Estes constituem garantias reais das


obrigações, isto é, direitos reais de garantia, definidos no Art. 733º do CC, traduzindo-
se na faculdade que a lei, em atenção à causa do crédito, concede a certos credores de
serem pagos pelo valor de certos bens com preferência a outros e isto
independentemente do registo. Os privilégios creditórios não estão sujeitos a registo,
produzindo a sua eficácia sem necessidade de registo. É a lei que os atribui diretamente,
não resultando, assim, de uma convenção das partes. São privilégios legais concedidos
em atenção à causa de crédito, que estão previstos nos Arts. 743º e 744º do CC. Os
titulares desses créditos são, assim, simultaneamente titulares de um direito real de
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garantia, isto é, de um privilégio creditório imobiliário sobre esses bens. Nos termos do
Art. 751º do CC, estes privilégios imobiliários preferem à consignação de rendimentos,
à hipoteca, ao direito de retenção, ainda que estas garantias tenham sido
anteriormente constituídas.

3) O direito de retenção prevalece ainda que a hipoteca seja registada anteriormente –


Seguindo a regra priori in tempore, potior in iure, caso a hipoteca fosse primeiramente
constituída, por maioria de razão, seria esta a que, primeiramente, seria satisfeita.
Contudo, de acordo com o Art. 759º, nº2 do CC, o direito de retenção prevalecerá
sobre a hipoteca, mesmo que esta tenha sido constituída antes daquele.

Já o mesmo não sucede em relação aos privilégios mobiliários especiais, uma vez que o Art.
750º do CC determina o acatamento do direito de preferência, ao estatuir que “no caso de
conflito entre o privilégio mobiliário especial e um direito de terceiro, prevalece o que mais
cedo se houver adquirido”. Daqui decorre que havendo, nesta hipótese, um acatamento do
direito de preferência, as exceções a este restringem-se, neste domínio, aos privilégios
imobiliários especiais previstos nos Arts. 743º e 744º do CC referidos.

2.4. Inerência

Uma outra caraterística dos direitos reais é a inerência da coisa ao seu titular. Formula-se
mais correntemente esta ideia dizendo-se que os direitos reais conferem um domínio ou
soberania sobre a coisa, seu objeto. Porém, esta expressão: “domínio ou soberania”, é de
aplicação mais correta aos direitos reais de gozo (ao arrendamento, na opinião do Dr. Mota
Pinto), não surgindo com tanta nitidez nos restantes. Daí que seja preferível a designação
de relação de inerência da coisa do seu titular, como propomos. Esta é a caraterística que
se exprime ao falar-se do lado interno do direito real, de acordo com a teoria do Dr. Mota
Pinto, mais concretamente, a teoria eclética. E, em última análise, é um corolário da eficácia
absoluta do direito real, representando, como tal, uma síntese das ideias de sequela e de
preferência. A coisa adere ao seu titular.

Em suma, a inerência traduz a ligação íntima dos direitos reais às coisas que constituem os
seus objetos. Por isso, não se pode manter um direito real se o seu objeto mudar: “não é
juridicamente possível transferir o mesmo direito real de uma coisa para outra; caso
semelhante operação fosse tentada, o efeito seria a extinção do direito real e a constituição
de novo direito real”.

2.5. Outras caraterísticas

A doutrina refere outras caraterísticas que o Dr. Mota Pinto discute, mas que não defende.
Ou seja, rejeitamos estas outras caraterísticas:

• Os direitos reais são permanentes e os direitos de crédito são transitórios:


Esta ideia deve ser rejeitada. Se entendermos permanência como perpetuidade,
existem direitos reais temporários, como é o caso do direito de usufruto (Art. 1439º do
CC). E se entendermos permanência como estabilidade, chegamos à conclusão de que
esta é meramente tendencial, uma vez que existem direitos reais que se extinguem
pelo seu exercício, como é o caso dos direitos reais de garantia e dos direitos reais de
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aquisição. Além disto, a transitoriedade nem sempre se encontra nos direitos de
crédito, já que existem obrigações de facto negativo e positivo permanentes.

• A violação dos direitos reais resulta de um comportamento positivo (ação, facere),


enquanto a dos direitos de crédito resulta, geralmente, de um facto negativo
(omissão, non facere):
O facto positivo que lesa o direito real dá direito a indemnização com fundamento no
Art. 483º do CC. Sendo que o titular do direito real lesado pode pedir ou indemnização
ou, sendo caso disso, exercer o seu direito à restituição da coisa mediante uma
reivindicação (a esta se refere o Art. 1277º do CC e os Arts. 1311º do CC este último
integrado na propriedade, mas aplicáveis aos restantes direitos reais por força do Art.
1315º do CC). Também o usufrutuário, no caso de ter sido despojado da coisa, pode
reivindicar da coisa ou tem o direito de exigir que seja mantido na sua posse no caso de
lesão ou perturbação desta. Ou seja, as pretensões reais são o direito à restituição da
coisa e a indemnização. A palavra “pretensão” é utilizada devido à noção desta palavra
em alemão que é sinonimo de direito de crédito, e “reais” para acentuar a origem
destes direitos. Ora, estas pretensões por estarem ligadas aos direitos reais, não deixa,
todavia, de ter algum significado: estas são uma manifestação de garantia dos direitos
reais, o que faz com que, pelo menos alguns, tenham um regime diverso do comum dos
direitos de crédito. O direito à indemnização é prescritível, o que já não acontece com
direito à restituição, não seguindo assim, o regime geral dos direitos de crédito (Art.
1313º do CC). Não obstante, esta ideia deve ser rejeitada, uma vez que há direitos reais
que visam prestações de facto negativo.

• A usucapião é uma forma de aquisição que apenas existe no universo dos direitos
reais, não existindo no domínio dos direitos de crédito:
Esta ideia deve ser rejeitada, uma vez que nem todos os direitos reais são passíveis
dessa forma de aquisição. Os direitos reais que podem ser objeto de usucapião são os
seguintes: a propriedade e os direitos reais de gozo, nos termos do Art. 1287º do CC. O
usufruto, a enfiteuse, a servidão e o direito de superfície. Não o podem ser: a hipoteca
e o direito real de garantia.

• Os direitos reais incidem sobre a totalidade das coisas que são objeto:
Esta ideia deve ser rejeitada, dado que esta caraterística não ocorre em relação a todos
os direitos reais, como é o caso da servidão de passagem em que o direito real não tem
de incidir sobre a totalidade da coisa, já que o direito de servidão de passagem incide
apenas na parte em que se passa. Não devemos confundir esta caraterística com o
princípio da individualidade ou da especialização.

3. Natureza jurídica do direito real

A expressão direito das coisas é utilizada como sinónimo da expressão direitos reais, mas
em rigor não é assim. O direito das coisas refere-se a um ramo do direito patrimonial,
enquanto quando falamos nos direitos reais pensamos nos direitos em particular, como é
o exemplo do direito de propriedade, do direito de usufruto, entre outros.

Porque é que surgiu o direito patrimonial? É incontroverso que o Homem, para subsistir,
precisa de bens que são escassos ou porque há uma momentânea impossibilidade de os
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aceder ou porque são efetivamente escassos. Neste sentido, iriam surgir naturalmente
conflitos daí surgir o direito patrimonial para regular o acesso, a apropriação e a utilização
desses bens.

O que é um “bem”? "Bem" é tudo aquilo que é apto a satisfazer necessidades humanas.
“Bem” não é sinónimo de coisa. Todas as coisas são bens, uma vez que todas as coisas
servem para satisfazer as necessidades do Homem, mas nem todos os bens são coisas. – Ex.:
Nós satisfazemos necessidades através de outras pessoas, de comportamentos de outras
pessoas e as pessoas e os comportamentos não são coisas.

Dentro do direito patrimonial, encontramos o direito das coisas e o direito das obrigações.
Como é que distinguimos estes dois grandes ramos? O direito das obrigações regula apenas
o acesso à coisa e não a sua apropriação e utilização. No âmbito do direito das obrigações,
mesmo quando há utilização de uma coisa, há sempre antes uma relação entre duas
pessoas, uma relação que se estabeleceu entre aquele que vai ter a utilização da coisa e
aquele que a permite. A pessoa só acede ao bem porque se estabeleceu uma relação prévia.
– Ex: Na relação de arrendamento, o arrendatário só utiliza a coisa porque celebrou um contrato
de arrendamento. É o estabelecimento de uma obrigação e o seu cumprimento que vai permitir
a utilização da coisa. – Já o direito das coisas regula a direta e imediata utilização da coisa,
regula o poder que o Homem tem e exerce sobre a coisa, independentemente de qualquer
relação prévia sobre a coisa.

Não obstante, o que verdadeiramente nos interessa é a distinção entre os direitos reais e
os direitos de crédito. Quanto a saber o que é um direito de crédito, é simples, porque a lei
diz-nos no Art. 397º do CC o que é uma obrigação. O direito de crédito é o vínculo jurídico
por virtude do qual uma pessoa (credor) pode exigir de outra (devedor) a realização de certa
prestação que pode ter por objeto uma coisa (dare), uma atividade (facere) ou uma
abstenção (non facere). Mas o que é um direito real? Qual é a relação típica que existe
nestes direitos? Ao longo da história foram surgindo várias teorias, sendo que estas teorias
interessam para distinguir o direito real do direito de crédito.

3.1. Teoria clássica (ou realista)

Historicamente, a doutrina mais antiga é a teoria realista, que atende à relação entre o ser
humano e a coisa. De acordo a teoria realista, o direito real traduz-se num poder direto e
imediato sobre uma coisa: poder direto no sentido de ser um poder que não envolve o
estabelecimento de uma relação intersubjetiva e poder imediato no sentido de que o titular
do direito atua sobre a coisa autonomamente sem mediação, sem um terceiro ou o
comportamento de um terceiro. Ou seja, o direito real atende à relação entre uma pessoa
e uma coisa. Ao invés, o direito de crédito é uma relação intersubjetiva, traduzindo-se no
poder de exigir de outrem uma prestação. Se no direito real não existe nenhum mediador,
no direito de crédito, quando o sujeito do direito acede ao objeto, há sempre a mediação
de um individuo, um intermediário, que é o devedor.

Assim, se o direito real é um poder direto e imediato e o direito de crédito exprime uma
relação entre pessoas, o direito real traduz-se numa relação simples, linear e não
intersubjetiva. Já o direito de crédito exprime uma relação complexa, triangular e

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intersubjetiva. No primeiro caso, temos dois polos: o homem e a coisa. No segundo caso,
temos três polos: dois sujeitos e uma coisa.

Esta conceção encontra as suas raízes no direito romano. Apesar de os jurisconsultos


romanos não terem feito esta teorização, souberam aplicá-la no campo do direito
processual: para obter o cumprimento de uma obligatio recorria-se à actio in personam, em
cuja intentio constava o nome do demandado, já para a defesa de um direito real recorria-
se à actio in rem, em cuja intentio não figurava o nome do demandado. Enquanto na
primeira o credor pretendia o cumprimento de um dever a que estava adstrito o devedor,
na segunda o demandante reclamava de um terceiro o respeito do seu direito sobre uma
coisa, de se abster de o perturbar.

Mais tarde, esta conceção de direito real foi explicitada pela Escola dos Glosadores, que
elaboraram pela primeira vez uma noção de direito real e foi, posteriormente, desenvolvida
pelos Comentadores. Enquanto o ius in re seria o direto que incide diretamente sobre uma
coisa, sem a mediação de qualquer sujeito, a obligatio, vista pelo lado ativo, seria o direito
que permite exigir uma prestação a determinada pessoa.

Críticas à teoria clássica:


a) A atribuição de um significado decisivo à prestação nos direitos de crédito não é
uma posição totalmente isenta de dificuldade ou de dúvidas. Aponta-se para que
nos direitos de crédito o que interessa ao credor não é o comportamento, a
atividade do devedor em si, sendo que o que lhe satisfaz o seu interesse é a própria
coisa, algo visível, por exemplo, nas obrigações de prestação de coisa. Tanto é
assim que:
• Se excetuarmos as obrigações de prestação de facto não fungível, o credor
pode pedir, com vista à satisfação do seu direito, a execução específica por
virtude da qual a coisa é apreendida e entregue ao credor, obtendo este, sem
que seja o devedor a efetuar a prestação, satisfação.
• Pode também o cumprimento ser efetuado por terceiro.
Isto significa que no plano funcional, como já dissemos, o credor tem interesse
não na prestação, mas sim no bem que esta proporciona.

b) A própria conceção do direito real como um poder direto e imediato sobre a coisa
parece não fornecer um critério que esgote a análise da situação correspondente
ao direito real. Não podemos deixar de observar que este poder direto e imediato
sobre a coisa é uma consequência jurídica do poder de impor aos outros uma
abstenção e uma não ingerência na coisa que é objeto do direito. É porque existe,
do lado contrário àquele em que se situa o titular ativo do direito real, um dever
geral de abstenção que fica reservado para aquele o monopólio do uso exclusivo
da coisa e surge o tal poder direito e imediato sobre ela.

Carlos Alberto Mota Pinto aponta para o facto de ser absurdo falar-se de relações
entre uma pessoa e uma coisa, fazer da coisa o sujeito passivo. Assim, o direito é um
fenómeno social que existe porque existe sociedade e porque existe vida em relação.
O próprio direito pressupõe uma relação entre pessoas, sendo que, assim, o direito
real não pode bastar-se com a ligação entre o seu titular e a coisa, tendo de se exprimir
necessariamente num elo intersubjetivo. Só este é que explica, aliás, a obrigação de
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indemnizar em que se constitui o infrator no caso de violação de um direito real, como
por exemplo, no caso de destruição da coisa ou de qualquer prejuízo causado por nela.

3.2. Teoria personalista

A teoria realista foi a teoria base durante vários séculos, até que no séc. XIX surgiu a teoria
personalista fundada na filosofia kantiana. Para Kant, o direito era um fenómeno social e,
por isso, era impossível estabelecer relações entre sujeitos e coisas à luz desta teoria, já que
todas as relações são relações intersubjetivas. Se a intersubjetividade é um elemento
essencial de todas as relações jurídicas, o direito real não pode deixar de se traduzir num
vínculo entre pessoas. Assim, as relações jurídicas seriam sempre relações entre pessoas.

Esta teoria fez várias críticas à teoria anterior, entre as quais:


1) A primeira observação que os personalistas dirigiram aos realistas foi a seguinte: a ideia
de que existia uma relação jurídica entre um sujeito e uma coisa era uma mera
alegoria, isto é, tinha a vantagem de com imediaticidade permitir ao destinatário de
passagem perceber que através de um direito real se exercem direitos sobre coisas,
mas não traduzia com rigor aquilo que é o cerne dos direitos reais. Para sabermos o
que é um direito real, temos de o inserir na sociologia e encontrar dentro dele um ou
mais sujeitos. No cerne do direito real estava, também, uma relação intersubjetiva,
mas o sujeito passivo estava escondido. Isto é, quando olhamos para o direito real e
vemos a tal alegoria, o que se vê é a sombra do direito real (que é o exercício de poderes
sobre a coisa), mas não se vê a realidade que está por detrás da sombra, que é a relação
entre o sujeito que é titular do direito real e toda a comunidade jurídica. O que se via
era a relação de poder sobre uma coisa, porém, o que verdadeiramente traduzia o
direito real era uma relação entre o titular do direito real e toda a comunidade jurídica.
Partindo desta premissa, o direito real foi definido como o poder de afastar ou de
excluir ingerências de terceiros incompatíveis com o conteúdo do direito, ou seja, o
direito real passou a ser visto como o vinculo entre o titular do direito e todas as outras
pessoas, impondo a estas a chamada obrigação passiva universal, no sentido em que
os que estão por ela obrigados têm de prestar um determinado comportamento de
natureza passiva/negativa e é universal porque oneram todos aqueles sujeitos que
pertencem à comunidade jurídica e que podem interferir no direito àquela coisa. Em
suma, na teoria personalista houve uma evolução: inicialmente dizia-se que era uma
relação entre o titular e todos e, posteriormente, entre o titular do direito e todos
aqueles que possam praticar atos de ingerência incompatível com o conteúdo do
direito. Foi a partir daqui que se disse que o direito real tem eficácia erga omnes ou
absoluta. No que toca aos direitos de crédito, os personalistas não mexem na natureza
jurídica dos direitos de crédito, porque estes já se traduziam numa relação
intersubjetiva.

2) A segunda crítica que a teoria personalista dirigiu à teoria realista foi a seguinte: há
direitos reais que não conferem um poder direto e imediato sobre a coisa. No fundo,
não podemos definir os direitos reais como direitos que concedem poderes diretos e
imediatos sobre a coisa se encontrarmos direitos reais que não conferem poderes
diretos e imediatos sobre as coisas. Para ilustrar esta crítica os personalistas apoiaram-
se num direito real que ninguém duvida que é um direito real, mas que não concede
poderes diretos e imediatos sobre as coisas: é o caso das servidões negativas e de
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alguns direitos reais de garantia, como a hipoteca. A hipoteca é um direito real de
garantia que atribui ao seu titular o poder de satisfazer o seu crédito à custa do valor
de uma coisa com preferência face aos demais credores. – Ex.: Imaginemos que A precisa
de dinheiro para comprar uma casa e pretende celebrar com o banco um contrato de
mútuo, sendo que o banco exige uma garantia, o direito de hipoteca sobre a casa que vai
comprar. Se A não pagar, o banco pode satisfazer o seu crédito à custa da coisa, ou seja,
pode promover a venda judicial da coisa e com o produto da venda, é pago o titular da
hipoteca e só depois os restantes. O banco não fica com a casa em seu poder, o credor
hipotecário não tem um poder direto e imediato sobre a coisa (no sentido de poder
material). – Esta é uma crítica que veremos que não procede, já que dizer que o direito
real é um poder direto e imediato sobre a coisa não é a mesma coisa que dizer que a
coisa está nas mãos do titular que pode usar diretamente. O núcleo típico do direito
real de garantia é o poder de promover a venda judicial da coisa.

3) A terceira observação que os personalistas dirigem aos realistas foi a seguinte: o poder
direto e imediato sobre a coisa nem sempre constitui o instrumento através do qual
o titular satisfaz o seu interesse. Nos direitos reais de garantia, a satisfação dos
interesses do titular do direito real nunca advém do exercício de poderes materiais
sobre a coisa, porque estes não podem aproveitar as utilidades. Os personalistas dão
aqui como exemplo o penhor, que também é um direito real de garantia, mas que
incide sobre coisas móveis. Pode ser penhor de coisa ou penhor de direitos. A perfeição
do contrato de penhor exige um ato de execução da vontade que é a entrega, isto é,
sem a entrega o contrato não está perfeito (Art. 669º, nº1 do CC). O contrato de penhor
é um contrato real quanto à constituição (contrato real por meio do qual se
constituem, modificam, transmitem ou extinguem direitos reais) e um contrato real
quanto aos efeitos (contrato cuja execução está dependente de um ato de vontade,
normalmente, a entrega da coisa). Porém, importa referir que os contratos reais quanto
à constituição não são necessariamente reais quanto aos efeitos. Em suma, os
personalistas afirmam que há direitos reais que dão ao credor um poder direto e
imediato sobre a coisa (a coisa está nas suas mãos), mas não é esse poder que satisfaz
o seu interesse, é a venda judicial que satisfaz o interesse do credor pignoratício, ou
seja, apesar de ter a coisa na sua mão, não a usa. A garantia pignoratícia assume uma
função acessória ou instrumental. Assim, o exercício dos poderes materiais pelo credor
pignoratício tem duas funções próprias: a detenção própria pelo credor dá publicidade
à garantia; dificulta a alienação da coisa pelo devedor porque é muito mais difícil vender
um móvel que não se consiga transmitir de mão em mão. – Mais uma vez, esta crítica
não assume grande relevância para aqueles que entendem que o poder direto e
imediato não significa necessariamente o poder de usufruir da coisa.

4) A quarta crítica que a teoria personalista dirige à teoria realista foi a seguinte: há
direitos de natureza não real que conferem um poder direto e imediato sobre a coisa,
como é o caso da locação e do comodato. – Ex: A pede emprestado a B uma casa de praia
e B acede, entregando a chave. Celebraram um contrato de comodato, mas apenas com a
celebração do contrato e a entrega da chave A satisfaz o seu interesse? Não. O comodatário
satisfaz o seu interesse atuando diretamente sobre a coisa. – Só que os personalistas
estão, mais uma vez, a confundir o poder direto e imediato sobre a coisa com o poder
material, que ninguém duvida que um comodatário e um locatário tenham, uma vez
que ao exercerem poderes materiais sobre a coisa, aproveitam as utilidades que ela

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produz. Porém, isso não significa que efetivamente exista um poder direto e imediato,
já que o acesso à coisa local e comodatária está dependente de um ato de colaboração
do proprietário, dado que este tem de oferecer o acesso à coisa. Sem este ato de
colaboração, o comodatário e o locatário não podem usar a coisa. A partir do momento
em que o acesso às utilidades que a coisa produza estejam dependentes de um ato de
colaboração, então nós nunca podemos ter um direito real, mas estamos perante um
direito de crédito. Na verdade, vimos nós dizer contra os personalistas que estes
direitos não reais não oferecem poderes diretos e imediatos sobre a coisa, oferecem
poderes materiais sobre a coisa, mas só se podem exercer esses poderes materiais a
partir de um ato de colaboração do proprietário. O comodatário tem um poder direto
e imediato sobre a coisa? Tem, se o entendermos como poder material. O poder direto
e o poder material são a mesma coisa? Não. A locação e o comodato não são direitos
reais. Embora uma parte da doutrina diga que estamos perante direitos pessoais de
gozo, estes direitos pessoais de gozo para uma parte da doutrina são meros direitos de
crédito que criam relações obrigacionais. Para outra parte da doutrina, como é o caso
da Dra. Mónica Jardim, eles criam um tertium genius, uma figura intermédia entre os
direitos reais e os direitos de crédito.

Críticas à teoria personalista:


a) Visão jurídica que ignora o conteúdo do direito e sobrevaloriza o momento
sancionatório: sabemos que o direito se protege através da obrigação passiva
universal, mas ficamos sem saber o que é ou em que consiste esse direito.
b) Esta obrigação passiva universal não tem conteúdo patrimonial, não podendo, por
isso, ser contrapartida do direito real.
c) Ignora-se o núcleo da relação real que é o domínio ou soberania do seu titular sobre
uma coisa e, por isso, o dever geral de abstenção surge como efeito daquela
soberania ou poder.
d) Cai no absurdo de conceber uma relação em cujo lado passivo se encontra a
generalidade dos homens, de acordo com o Dr. Menezes Cordeiro e com o Dr.
Carvalho Fernandes, não concordando com o Dr. Orlando de Carvalho, dado que o
autor aponta que tal entendimento tem por base dizer que quem quer que entre
em relação com o objeto tem obrigação de respeitar aquele direito.

3.3. Teoria eclética ou mista

Tendo surgido na Alemanha, esta teoria difundiu-se rapidamente para a Itália, Espanha,
França e Portugal. A teoria eclética é a teoria dominante em Portugal e na Escola de
Coimbra.

Esta teoria procura conciliar as teorias anteriores, mostrando que as suas divergências não
são irredutíveis. Neste sentido, reconhecendo virtudes tanto na teoria realista como na
teoria personalista sintetizou-as numa só afirmando que os direitos reais têm uma
estrutura complexa na medida em que dois elementos distintos se fundem:
• Elemento interno ou de conteúdo (defendido pelo Dr. Pires de Lima, Dr. Antunes
Varela, Dr. Mota Pinto, Dr. Orlando de Carvalho e Dr. Santos Justo) – Traduz-se no
poder direto e imediato sobre uma coisa, correspondendo ao plano funcional ou
instrumental, permitindo distinguir o direito real dos restantes.

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• Elemento externo ou de sanção – Consiste no poder de excluir toda e qualquer pessoa
da ingerência no objeto do direito, consistindo este no plano estrutural ou essencial.
Identifica-se com a relação entre o titular do direito e as demais pessoas. É a eficácia
absoluta ou a obrigação passiva universal.

No fundo, esta teoria junta as duas, uma vez que no lado interno adota a teoria realista e
no lado externo adota a teoria personalista.

A correlação estabelecida entre o lado interno e o lado externo do direito real não é
consensual entre os autores, ainda que considerando apenas aqueles que advogam a teoria
eclética:
1) O Dr. Mota Pinto considera o poder direto e imediato sobre a coisa é um corolário do
direito de excluir todos os outros de uma intervenção na coisa. É porque existe um
dever geral de abstenção que recai sobre todos os sujeitos que não sejam o titular do
direito que este último detém o monopólio do uso exclusivo da coisa, sendo que esse
uso exclusivo acaba por se consubstanciar num poder direto e imediato.

2) Já o Dr. Orlando de Carvalho considera que a obrigação geral de respeito é a garantia


do poder sobre a coisa e que a sanção que acompanha a obrigação passiva universal é
um instrumento de efetivação do acesso à coisa pelo titular do direito real sobre ela.
Dá-se aqui uma acentuação dos poderes do sujeito sobre a coisa.

Esta orientação aponta no sentido de que a relação jurídica é uma relação da via ordenada
pelo direito e, por isso, tanto pode consistir numa relação entre pessoas, como entre uma
pessoa e um determinado objeto.

Os autores que defendem a teoria mista apontam, também, ao direito de crédito dois lados,
mas dois lados que não coincidem com aqueles dois que, no seu entender, conformam o
direito real:
• Lado interno – Poder de pretender um certo comportamento.
• Lado externo – Poder de exigir que o devedor realize o comportamento.

Entre os autores (atualmente, a maioria) que advogam esta conceção, o Dr. Orlando de
Carvalho acrescenta a esta análise estrutural uma análise funcional assente nos fins do
direito, baseando a diferenciação entre direitos reais e direitos de crédito nas duas
perspetivas. Segundo o autor, o direito real responde essencialmente a dois interesses
basilares:
• Interesse de imediação – Consiste no interesse na satisfação das necessidades sem
intervenção ou mediação de outra pessoa. O direito real permite que o seu titular
satisfaça o interesse próprio sem depender, para tal, de uma outra pessoa (porque o
conteúdo do direito real é um poder direto e imediato).

• Interesse de estabilização – Consiste no interesse numa maior estabilidade ou


segurança. O direito real, por ter eficácia erga omnes, assegura o uso ou gozo da coisa
sem o risco de ataques exteriores (designadamente sem o risco de ingerências de
terceiros como se pode verificar nos direitos de crédito).

Porém, apesar de tudo isto, podem tecer-se críticas a esta teoria.


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Críticas à teoria eclética:
Define o direito real através de uma componente subjetiva (sancionatória). O direito
real é uma relação ordenadora e não, em caso algum, uma relação intersubjetiva.

3.4. Posição adotada

Apesar das possíveis críticas, a nossa posição (Dr. Mota Pinto) é a de que a teoria eclética
ou mista é a que retrata com maior fidelidade o regime jurídico dos direitos reais. O lado
interno mostra-nos um poder que incide imediatamente sobre uma coisa e, por isso,
permite distinguir os diversos direitos reais e o lado externo revela-nos que a sua tutela é
absoluta, dirige-se contra a generalidade das pessoas que podem interferir com o exercício
desse poder.

Para quem não seja eclético como é o caso da Dra. Margarida Costa Andrade, esta teoria
continua a não satisfazer porque trata-se de uma mera síntese verbal, não se conseguindo
decidir nem por um lado, nem por outro. Assim, a Dra. Margarida Costa Andrade acolhe a
teoria realista renovada defendida por Henrique Mesquita.

4. Confronto entre os direitos reais e os direitos de crédito

Não é pacífica a distinção entre os direitos reais e os direitos de crédito, afirmando-se


mesmo que não há um critério indiscutível para distinguir o direito real do direito pessoal.

Existem autores que recusam a distinção entre os direitos reais e os direitos de crédito,
integrando esses direitos num conceito unitário que enfatiza ora o elemento obrigacional
ora o elemento real. Assim, dentro das doutrinas da unidade temos:
1) Monismo personalista – Defendido por Demogue que considera não haver distinção,
uma vez que afirma que corresponde a ambos os direitos uma obrigação passiva
universal, uma eficácia erga omnes. De acordo com este autor, a única diferença seria
que o direito real era um direito forte, porque a relação jurídica é estabelecida
diretamente entre o seu titular e as demais pessoas, enquanto o direito de crédito é
um direito fraco, visto estar apenas o devedor adstrito à realização da prestação,
devendo as demais pessoas abster-se de dificultar ou impedir o seu cumprimento. É
facilmente refutável, visto o nosso sistema jurídico não admitir o efeito externo das
obrigações.

2) Monismo realista – Defendido por Gaudemet olha para os direitos de crédito como
direitos reais, uma vez que são igualmente direitos sobre coisas. Estes incidem sobre
coisas determinadas, enquanto aqueles têm por objeto o património do devedor. Como
argumento invoca-se a impugnação pauliana, cujos efeitos só aproveitam ao credor que
a requeira (Art. 616º do CC) e que permite ao credor executar os bens no património
do terceiro adquirente, gozando este direito de crédito da sequela, tal como um direito
real. É criticável visto que a impugnação pauliana exige a prova da titularidade do
crédito e depende de vários requisitos, como a boa-fé ou má-fé das partes.

Existe, finalmente a doutrina eclética ou mista, que defende a distinção entre direitos de
crédito e direitos reais. Distinguem-se nos seguintes termos:

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1) Os direitos reais são direitos absolutos, isto é, impõem-se a todas as pessoas que são
obrigadas a respeitá-los, gozando, assim, de eficácia erga omnes. Os direitos de crédito
são direitos relativos, vinculando pessoas determinadas (o/os devedor/es).
2) Os direitos reais são direitos de exclusão, traduzem a subordinação direta e imediata
de coisas determinadas ao domínio ou soberania dos seus titulares. Os direitos de
crédito são relações de cooperação entre os seus titulares e os devedores pelas quais
passa a satisfação do interesse dos credores.
3) Os direitos reais têm como objeto coisas corpóreas individualizadas (certas e
determinadas), por isso sendo, em regra, acompanhados de publicidade. Os direitos de
crédito têm por objeto prestações, só sendo conhecidos pelos devedores respetivos.

Qual é o ponto de contacto entre direitos reais e direitos de crédito?


• Ambos os direitos podem surgir, por regra, por mero efeito do contrato, por isso é que
dizemos que no ordenamento jurídico português vigora o princípio da consensualidade
(herança do ordenamento jurídico francês). Ora, o contrato é capaz de produzir quer
efeitos reais, quer obrigacionais.
• Por regra, os direitos reais e os direitos de crédito são transmissíveis, porém temos
exceções: servidões prediais, devido à relação de predialidade entre os prédios; direito
de uso; e direito de habitação.
• Existem direitos reais acessórios de direitos obrigacionais.
• Há direitos reais que podem ter por objeto direitos de crédito: penhor de crédito e
usufruto de direitos.
• A violação de direitos reais cria uma relação obrigacional entre o titular do direito e o
autor da lesão (pretensões reais).
• Há obrigações que surgem pelo facto de se ser titular de um direito real (obrigações
reais).

Capítulo III – Hipóteses de qualificação real controvertida e figuras ligadas aos direitos
reais

Há certas situações acerca das quais se discute se têm ou não a natureza de direitos reais.
Nalgumas delas, no termo da discussão, não se chega a uma conclusão segura e continua,
assim, a sua qualificação a ser duvidosa.

1. Direitos pessoais de gozo

A categoria dos direitos pessoais de gozo encontra-se referida nos Arts. 407º, 1682º-A, nº1
a) e 2 do CC. Alguns autores pretendem qualificar os direitos pessoais de gozo como direitos
reais.

2. Natureza do direito do locatário

Uma das questões que suscitou mais debate é a do direito do locatário. Este direito do
locatário é um direito de crédito ou um direito real? Há quem defende que é um direito
real, outros que é um direito de crédito e outros que, por sua vez, consideram que é um
direito com qualificação intermédia, considerando que este direito é composto por

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elementos desses dois tipos de relações jurídicas. No entanto, embora seja uma posição
duvidosa, o curso considera que é um direito real.

1) Existe uma qualificação que defende que este direito é um direito de crédito, porque o
locatário não tem um poder direto e imediato sobre a coisa e as suas possibilidades de
gozo da coisa passam pela mediação de um outro sujeito, o locador. Neste sentido, o
locatário tem o direito de exigir do locador que lhe proporcione o gozo da coisa, mas
não tem um direito sobre a coisa em face de todos os outros.

2) Para que se possa afirmar que é um direito real, temos de verificar se estão verificados
aqui as características principais dos direitos reais:
• Sequela – Esta existe na locação, como claramente revela o Art. 1057º do CC,
querendo isto dizer que o locatário pode continuar a exercer os seus poderes sobre
a coisa, pode continuar a utilizá-la mesmo depois de ter sido vendida a terceiro.
Assim sendo, o seu direito ou posição jurídica tem eficácia em relação o novo
adquirente da coisa. Quem defende o direito do locatário como um direito de
crédito, aponta para o facto de se entender ser isto uma manifestação da cessão
da posição contratual. Contudo, apontamos para o facto de que se se tratasse
efetivamente de uma cessão da posição contratual, esta teria de ser pactuada
entre o alienante e o adquirente que este adquiria a posição de locador e teria de
haver consentimento da outra pate, ou seja, do locatário. Esta solução não é
aceitável porque este efeito é imperativo, impõe-se sem a sua vontade ou mesmo
até contra ela. Concluindo, esta solução imperativa é uma expressão do direito de
sequela. Semelhante é a situação do usufrutuário, pois para a manutenção do seu
direito é irrelevante a alienação da propriedade.

• Direito de preferência – Existe na situação do locatário, só que esta nota aqui não
é decisiva, pois o Art. 407º do CC mostra-nos a sua existência mesmo nos direitos
de crédito.

• Poder direto, mas não imediato sobre a coisa - Este é um dos argumentos
utilizados pelos adversários da qualificação real do direito do arrendatário. Para
eles, o locatário não teria uma ligação direta e imediata com a coisa, mas apenas
mediata, isto é, as suas probabilidades de gozo da coisa passariam pela cooperação
do senhorio. O locatário teria somente o poder de exigir ao senhorio que lhe
proporcionasse o gozo da coisa. No fundo, com isto nega-se a inerência da coisa
ao seu titular (uma caraterística dos direitos reais). Esta afirmação era concretizada
através da enunciação de certas obrigações que cabem ao locador. Este tem certas
obrigações especiais, contrapondo-se à obrigação passiva geral própria dos
direitos reais, o que tornaria o direito do locatário um puro direito de crédito.
Porém, não nos parece decisiva esta maneira de ver as coisas. Sem dúvida que, por
exemplo, o Art. 1031º do CC impõe obrigações ao senhorio (a obrigação de
entregar a coisa ao locatário, de lhe assegurar o gozo desta para os fins a que se
destina) e daqui se pode desentranhar toda uma série de obrigações (Ex.: ter de
fazer obras de conservação de coisa). O Art. 1037º do CC prescreve-lhe a abstenção
de prática de atos que diminuam ou impeçam o gozo da coisa pelo locatário. O Dr.
Mota Pinto não crê que o facto de poder haver deveres especiais do senhorio para
com o locatário seja incompatível com a qualificação como direito real da posição
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deste, sendo que situações deste tipo surgem, também, quer no usufruto (Art.
1473º do CC), quer no direito de superfície (Arts. 1532º, 1533º 3 1567º do CC).
Sempre que exista uma concorrência de direitos reais sobre a mesma coisa, como
por exemplo o direito de propriedade e um direito real limitado, podem surgir
deveres especiais a cargo de um dos titulares desses direitos reais limitados. Isto
parece não excluir decisivamente a qualificação do direito do locatário como real.
Não é forçoso concluir a partir desses deveres especiais a não existência de uma
inerência da coisa ao seu titular. Onde a inerência encontra expressão é na
circunstância de o titular do direito poder perseguir a coisa, acompanhá-la em
todas as suas deslocações. Será um sistema nítido de aderência do direito à coisa,
da inerência e isto acontece no direito de arrendatário, nos termos do Art. 1057º
do CC. É certo que existem direitos de crédito como o comodatário, o depositário
que tem contacto com a coisa e exercem até certos poderes sobre ela, mas não há
inerência, o comodatário não pode manter o direito de o usar em face do novo
adquirente da propriedade desse automóvel.

• Pagamento de renda ou de aluguer – Não pode, também, invocar-se como


argumento decisivo a favor da qualificação creditícia do direito do locatário, o facto
de este ter de pagar uma renda ou aluguer, uma vez que isso também acontece
em muitas hipóteses de direito real. Temos o exemplo do direito de superfície,
onde se pode ter convencionado que o superficiário pague uma importância
periódica ao proprietário do solo, em vez de pagar uma importância global. Isto
não exclui a classificação real do direito do superficiário.

• Intenções do legislador – De acordo com o Art. 1037º do CC se o legislador


considerasse o direito de locatário como um direito real não teria facultado a este
expressamente os meios de tutela possessória, que lhe confere no nº2 desse
artigo. E isso porque, como titular do direito real, ele já teria a posse e
genericamente nele incluídos estes poderes. Este argumento está longe de ser
decisivo. O Dr. Mota Pinto aponta para o facto de dizer que o legislador fez isso
por ser duvidoso que se tratasse de um direito real ou de um direito de crédito.
Aponta, também, para necessidade de se ter de passar além destas intenções do
legislador.

• Direito de indemnização do locatário pelo autor de um facto danoso, que danifica


o objeto e impossibilita a sua utilização - Rejeitando-se o efeito externo das
obrigações, poderia sustentar-se que seria um direito absoluto (direito de
locatário), que originaria a indemnização devida. Contudo, o Dr. Mota Pinto
aponta para a inutilidade deste argumento sobretudo pelo facto de que idêntico
direito teria A se fosse comodatário e o comodato não atribui um direito real,
faltando-lhe a sequela. O direito real de A poderia descortinar-se numa posse
(ainda que precária ou em nome alheio) ou na mera detenção.

• O arrendamento adquirido por prescrição aquisitiva ou usucapião – Este


problema adquire especial relevância relativamente aos arrendamentos para fins
comerciais ou profissões liberais visto que, ao contrário do arrendamento para
habitação, pois é formal e não se pode provar através da apresentação dos recibos
de venda. Nos arrendamentos para fins comerciais mesmo que existam recibos de
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venda, o contato é nulo se não ter sido reduzido a escritura pública. Assim sendo,
se após 20 anos de recibos comprovativos de pagamento de renda, pode adquirir-
se por usucapião a posição de arrendatário?
a) Corrente maioritária – Segue o sentido do Ac. do STJ de 1966, sendo que com
tal concorda Vaz Serra, entendendo-se que a resposta deve ser negativa.
b) No sentido de existir essa possibilidade temos Dias Marques (posição
expressamente afirmada) e Oliveira de Ascensão (interpretação retirada do
facto de considerar o direito de arrendatário como direito real).

Quanto à usucapião, de acordo com o Art. 1287º do CC, esta é reservada para a
aquisição de propriedade e de outros direitos reais de gozo, não estando, contudo,
claramente definido se o direito de arrendatário é ou não um direito real de gozo.

A nível formal sistemático, está regulado no âmbito das obrigações, mas isto nada
quer dizer, pois muitos outros direitos reais de garantia estão lá como o pacto de
preferência com eficácia real ou o contrato promessa com eficácia real.

Do ponto de vista das soluções já apontadas não nos parece ser possível chegar a
uma solução de tal forma firme que justifique ou sustente uma pura dedução, de
onde resulte há ou não usucapião. O que fazer? Vamos obter a resposta partindo da
usucapião e não através de uma dedução de uma qualificação prévia.

a) A usucapião tem como função servir o interesse social na clarificação das


situações e na sua estabilização. Esta destina-se a pôr o direito de acordo com
o facto.
b) O titular do direito tem interesse em dispor de forma de justificação do seu
direito que o dispense de ter, sempre e necessariamente, de invocar os títulos
constitutivos desse direito (cadeia de transferências e de títulos que conferem
a certo indivíduo um determinado direito ou de apresentar título antigo que já
não se encontra - a probatio diabólica).
c) Conclusão: Não vemos razões para a usucapião não poder aproveitar ao
arrendatário que esteja há mais de 20 anos (Art. 1296º do CC), tal como
aproveita ao enfiteuta e ao usufrutuário. Se bem pensarmos, seria algo
chocante poder o locador, que durante 20 anos recebeu as vendas
correspondentes ao arrendamento para fins comerciais ou para exercício de
profissões liberais, poder vir invocar a nulidade do contrato para obter a
recuperação da coisa e invocar, consequentemente, o despejo do arrendatário.

Atenção, não propomos uma solução definitiva, mas sim pretender suscitar uma
reflexão.

3. O direito do beneficiário de promessa de transmissão com eficácia em relação a


terceiros

Há quem saliente que não se trata de um verdadeiro direito real, mas sim de uma espécie
de pré-anotação registal, tendo prioridade sobre qualquer outra posterior. Apesar de aqui
não haver um poder direto e imediato sobre a coisa, o Dr. Mota Pinto defende que a posição

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deste beneficiário deve ser equiparada à posição do beneficiário de um direito real de
preferência, valendo aqui a sequela, possivelmente.

4. Pretensões reais
4.1. Noção

A pretensão real é uma relação jurídica decorrente, em regra, da violação de um direito real
que atribui ao seu titular o poder de exigir uma determinada prestação (positiva ou
negativa). Pode, em determinadas situações, não resultar de um facto ilícito.

A pretensão real não se confunde com as obrigações reais. Embora ambas as relações
tenham como fonte o estatuto de um direito real, nas obrigações reais o devedor é
determinado pela titularidade de um direito real e o credor pode ser ou não titular de um
direito real, enquanto nas pretensões reais é o credor que se encontra necessariamente
ligado a um ius in rem. Mas pode mesmo haver uma pretensão real que se fundamente no
incumprimento de uma obrigação real.

Exemplos:
• A possui ou detém ilegalmente um automóvel que pertence a B;
• C depositou, sem autorização, materiais de construção num prédio de D;
• E passa abusivamente no prédio de F e protesta que continuará a fazê-lo.

No primeiro caso, o proprietário pode reivindicar o automóvel, exigindo que A lho


entregue. No segundo caso, D tem o direito de exigir que C retire os materiais do seu
prédio. No último caso, F pode exigir, além do mais, que E se abstenha de continuar a
passar o seu prédio. Como se verifica, as pretensões reais protegem os direitos em que
se fundamentam.

4.2. Plano processual

As pretensões reais mais importantes realizam-se através da ação de reivindicação e da


ação negatória.

1) A primeira utiliza-se quando a violação do direito real origina uma situação de posse ou
de detenção ilegítima por parte do terceiro demandado: o proprietário exige que a
coisa lhe seja restituída.

2) A segunda é simultaneamente declarativa, reparadora e preventiva. Se viu o seu direito


real violado, mas não está privado da coisa, intenta uma ação negatória (veja-se o
exemplo supra dos materiais de construção que foram depositados), e quer que a
situação que existia antes das violações seja reposta na medida do possível. Uma ação
negatória tem três pedidos:
• Por um lado, pede-se que se declare que o outro não tinha um qualquer direito
que legitimasse a sua ação (daí vem o nome negatória);
• Segundo, que se reponha situação que existia anteriormente (que seja condenado
– Uma ação de condenação);
• Pode ainda haver um terceiro pedido, que em regra é feito mas pode não estar,
que é pedir uma indemnização dos prejuízos causados;
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Exemplo clássico das ações negatórias: Suponhamos que A é dono de um terreno e que como
este é pequeno quer construir até à extrema (o limite do seu prédio). Do ponto de vista dos
direitos reais ele pode fazê-lo (não estamos a pensar do ponto de vista do direito do urbanismo,
que depois também depende de Câmara para Câmara), mas se o quiser fazer não pode abrir
janelas, varandas, portas (na zona que for até à extrema) para não devassar o prédio do vizinho.
Ora, A abre enormes janelas a dar sobre o prédio do vizinho. Este vizinho pode reagir, intentando
uma ação negatória (ao abrir as janelas, A está a violar o dever geral de abstenção do direito de
propriedade do vizinho, logo faz nascer uma pretensão real, passa a estar obrigado e o vizinho
passa a ter um direito de crédito, atuando essa pretensão real através de uma ação negatória).
Ele não precisa de perseguir a coisa e vai pedir que se declare que o A não tem um qualquer
direito que legitime a abertura da janela (podia ter uma servidão de vistas, mas não tem), depois
faria outro pedido de condenação a repor a situação que existia antes, de não devassa (fechar a
janela).

4.3. Regime jurídico

Através da ação de reivindicação e da ação negatória, as pretensões reais protegem os


direitos reais em que se apoiam e, por isso, o regime jurídico a que se encontram sujeitas
há de harmonizar-se com os direitos que tutelam. Assim, são imprescritíveis, sem prejuízo
dos direitos adquiridos por usucapião e da extinção por não uso nos casos legalmente
admitidos.

4.4. Natureza jurídica

Há quem considere que as pretensões reais têm natureza obrigacional, reconhecendo-se,


ainda assim, que a sua origem está nos estatutos dos direitos reais. Mas se a proteção de
um direito real passa por uma relação obrigacional, os direitos reais são postos num estado
de dependência ou de inferioridade em relação aos direitos de crédito: não são
autossuficientes, carecem de direitos de crédito que assegurem a sua proteção. O sujeito
passivo não é o devedor duma relação de crédito, mas o violador de um direito real e só
nesses termos é que nasce a obrigação, pelo que se entende serem direitos reais.

5. Obrigações reais ou propter rem

As obrigações reais ou propter rem são obrigações que estão ligadas à titularidade de um
direito real. É um vínculo jurídico em que o titular de um direito real se encontra adstrito
para com outra pessoa à realização de uma prestação positiva (dare ou facere). A pessoa
obrigada (devedor) determina-se por ser titular de um direito real. Já o seu titular ativo
(credor) pode ser ou não titular de um direito real. Se o lado ativo estiver ligado a um direito
real, fala-se de crédito propter rem.

Note-se que não devemos confundir as obrigações reais com as obrigações que integram a
responsabilidade civil extracontratual (ou aquiliana), decorrentes de danos causados
culposamente a um direito real. Embora se trate da violação de um direito desta natureza,
tais obrigações incidem sobre indemnizações. As obrigações que integram a
responsabilidade civil extracontratual supõem um ato ilícito, danoso e culposo do agente e
integram-se no instituto da responsabilidade extracontratual, enquanto as obrigações reais
não pressupõem necessariamente um ato ilícito, um dano e a culpa do agente.

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Exemplos:
1. Se o proprietário do prédio onerado com uma servidão assumiu, no título constitutivo desta
servidão, a obrigação de pagar as despesas referentes às obras necessárias ao exercício da
servidão, essa obrigação é real: quem quer que venha a ser proprietário do prédio onerado
(dito serviente) é obrigado a suportar essas despesas;
2. O titular de um direito de habitação periódica é obrigado a pagar anualmente ao
proprietário do imóvel uma prestação pecuniária fixada no título constitutivo. Quem quer
que seja titular desse direito real é obrigado a satisfazer aquela prestação;
3. O proprietário de edifício ou obra que ameace ruir e, em consequência, possa causar danos
a um prédio vizinho, é obrigado a tomar as providências necessárias para eliminar o perigo.
Será devedor da obrigação quem seja o proprietário.

Não obstante, não pertencem ao âmbito das obrigações reais, por terem conteúdo
negativo, os seguintes casos:

Exemplos:
1. O proprietário não pode construir nem manter no seu prédio quaisquer obras, instalações
ou depósitos de substâncias corrosivas ou perigosas, se for de recear que possam ter sobre
o prédio vizinho efeitos nocivos não permitidos na lei. Quem quer que seja proprietário
dum prédio tem aquela obrigação;
2. O dono do prédio inferior e o dono do prédio superior não podem fazer obras que,
respetivamente, estorvem ou agravem o escoamento natural das águas. Não importa que
o proprietário de qualquer desses prédios seja A ou B;
3. O proprietário não pode abrir, no seu prédio, minas ou poços e fazer escavações que privem
os prédios vizinhos do apoio necessário para evitar desmoronamentos ou deslocações de
terra.

O problema discutido relaciona-se com as situações decorrentes da violação do estatuto


de um direito real. Referimos dois casos:
1. O proprietário de prédio rústico desviou o curso normal das águas pluviais, agravando
a situação dos proprietários de prédios inferiores, sem haver servidão de escoamento;
2. O proprietário de prédio urbano abriu janela voltada para o prédio vizinho, a menos de
metro e meio da linha divisória.

Nas duas hipóteses, o proprietário violou limitações impostas ao seu direito real: a de
não desviar as águas fluviais e a de não abrir janela para o prédio vizinho sem deixar
espaço legalmente fixado. Na primeira hipótese, deve repristinar a situação material
anterior às obras. Na segunda hipótese, é obrigado a tapar a janela ou a transformá-la
numa abertura cujas medidas obedeçam aos limites estabelecidos na lei.

A lei não refere expressamente estas obrigações. Por isso, se considerarmos que as
obrigações reais são apenas as que a lei direta e expressamente prevê e as que permite criar
por via negocial, estas obrigações não são reais. No entanto, há também quem entenda que
são igualmente reais as obrigações que resultam da violação do estatuto de direito real. É a
doutrina que nos parece preferível e mais adequada aos interesses dos proprietários dos
prédios vizinhos: quem for proprietário (seja o antigo que lesou o vizinho, seja outro que
adquiriu o prédio onde as obras foram feitas) tem o dever de destruir a obra realizada ou
de a pôr em sintonia com a lei. Em suma, o curso defende a ideia de que são obrigações

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reais não apenas aquelas que a lei prevê direta e expressamente, mas também as que
resultam da violação de um estatuto de um direito real.

Finalmente, importa referir que as obrigações reais podem surgir fora do seu campo
normal, isto é, podem surgir fora do campo das relações de vizinhança. – Ex.: Demolição de
uma obra não licenciada ordenada por uma Câmara Municipal ao abrigo do Regulamento Geral
das Edificações Urbanas, porque o seu proprietário não a demoliu no prazo fixado. Não
demolindo a obra, o proprietário violou o dever imposto pelo direito público e incorre numa
contraordenação punível com coima e é ainda obrigado a pagar à Câmara as despesas feitas.
Esta (última) obrigação, porque tem a sua fonte “no estatuto dos direitos sobre as coisas, deve
ser qualificada como obrigação real”.

5.1. Regime jurídico

As obrigações reais são estruturalmente verdadeiras obrigações. Todavia, a sua conexão


com os direitos reais impõe alguns desvios ao regime geral das obrigações:
• Subordinação ao princípio do numerus clausus;
• Prescrição – Enquanto persistirem os seus pressupostos, a obrigação real mantém-se,
sem prejuízo da constituição, por usucapião, de um direito incompatível (Ex.: a
obrigação do proprietário fazer obras para evitar o gotejamento sobre o prédio vizinho
subsiste até que, por usucapião, adquira a servidão de estilicídio).
• Renúncia liberatória – É o ato pelo qual o devedor põe o seu direito real à disposição
do credor extinguindo a sua obrigação real. Uma vez levada ao conhecimento do
credor, produz automaticamente a extinção da obrigação real. Trata-se de um direito
potestativo: o credor não pode impedir o seu exercício por parte do devedor.

Importa, no entanto, distinguir:


a) O devedor é comproprietário ou titular de um direito de um usufruto, de servidão, de
superfície ou de habitação periódica e o credor é, respetivamente, comproprietário,
titular da sua propriedade, proprietário do prédio serviente, proprietário do solo ou do
edifício. O credor adquire automaticamente a parte do devedor e a propriedade plena
por efeito do princípio da elasticidade ou vis attractiva;

b) O devedor é titular de um direito de propriedade. Há quem considere que este direito


se transmite ao credor por mero efeito da declaração de renúncia. Mas há também
quem rejeite esta solução por contrariar o princípio segundo o qual ninguém deve ser
afetado na sua esfera jurídica, mesmo favoravelmente, em consequência de uma
declaração negocial de outrem. Segundo esta doutrina, a renúncia libera o devedor da
sua obrigação real, mas não impõe, por si só, a aquisição por parte do credor. Por isso,
a renúncia cumpre duas funções: libera o devedor daquela obrigação e põe o imóvel à
disposição do credor que o poderá adquirir se for essa a sua vontade. Porém, a
declaração do devedor (renúncia) “tem o sentido de uma proposta contratual de
transmissão” e, para se produzir a transferência do direito renunciado é necessário que
o credor a aceite (Art. 1567º, nº1 do CC) e a proposta e declaração de aceitação
obedeçam à forma legalmente exigida para a transferência do direito real. O que
significa que, satisfeitos estes requisitos, a declaração do devedor propter rem não se
pode qualificar como negócio de renúncia, porque se integra num negócio jurídico
bilateral;
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5.2. Natureza jurídica

A doutrina encontra-se dividida relativamente à natureza das obrigações reais, dificuldades


estas que alguma imprecisão terminológica agrava. Há fundamentalmente, duas posições:
• Doutrina personalista (defendida por Manuel de Andrade e Antunes Varela) –
Considera que a obrigação real é um vínculo obrigacional, embora não autónomo ou
acessório da relação jurídica real, acessoriedade ou conexão que justifica os desvios
assinalados ao regime geral das obrigações;
• Doutrina realista (defendida por Henrique Mesquita) – Considera que faz parte do
conteúdo de um direito real, embora estruturalmente constitua uma verdadeira
obrigação;

Tendo presente a nossa conceção de direito real como direito subjetivo, parece inadequado
falar-se de relação jurídica que compreende, também, as obrigações reais. Por isso, a
doutrina personalista (doutrina dominante) considera-as verdadeiras obrigações, ou seja,
afastadas dos direitos reais, embora reconheça, que são acessórias ou não autónomas.
Acresce que, na Lição de Antunes Varela, “o regime geral das obrigações fixado pelo nosso
Código prescinde deliberadamente do nexo que as prende ao facto jurídico donde
provierem” e, por isso, não afasta as obrigações reais sem prejuízo de se reconhecerem
alguns desvios.

5.3. Obrigação ambulatória

Considerando que a obrigação real se encontra genericamente ligada a um direito real, a


opinio communis entende que o direito real acompanha sempre que o seu titular o
transmita a outra pessoa. Por isso, Ferini considera-a uma obrigação ambulatória. Há, no
entanto, quem se oponha a esta doutrina, sustentando que, uma vez constituídas, as
obrigações reais são não ambulatórias: “radicam em certa pessoa, ganham autonomia em
relação ao direito real de que são conexas e seguem o regime das obrigações em geral”. E
também quem, considerando os interesses dos intervenientes, entenda que há obrigações
reais ambulatórias e não ambulatórias. Serve de exemplo a seguinte hipótese:
O administrador de um condomínio celebrou um contrato, no âmbito da sua competência com
um construtor que se obrigou a reparar o telhado do prédio em regime de propriedade
horizontal. Tendo o administrador assumido a obrigação de pagar as respetivas despesas e
devendo ser repartidas pelos condomínios, suponhamos que um dos condóminos vendeu a sua
fração:
a) Antes da reparação do telhado: o adquirente não ignorava que o telhado precisava de
reparação e, por isso, conhecia (ou devia conhecer) o encargo a que ficava sujeito. Ou seja,
a reparação do telhado não constitui surpresa e, por isso, não há razão para que a obrigação
propter rem não o vincule. Estamos, portanto, perante uma obrigação ambulatória, uma
vez que a obrigação real acompanha a transferência do direito sobre a fração e partes
comuns;
b) Depois da reparação do telhado: O adquirente não dispõe de elementos objetivos que
denunciem a existência da obrigação. Por outro lado, a realização da reparação ampliou o
valor do prédio e, por isso, beneficiou o alienante da fração que vendeu (ou podia vender)
por maior preço. Em consequência, deve pagar a sua parte naquelas despesas, sob pena de
se trair a expectativa do adquirente e de se enriquecer o alienante à sua custa. Estamos,
neste caso, perante uma obrigação real não ambulatória;

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Esta solução é defendida por Henrique Mesquita e é considerada aceitável por Carvalho
Fernandes, embora entenda que “em bom rigor, só as obrigações ambulatórias merecem o
qualificativo de reais”.

6. Ónus reais

Traduz-se numa situação jurídica cuja manifestação fundamental é o direito de obter uma
prestação periódica, geralmente pecuniária, que grava de forma especial e direta um bem
imóvel, em termos de o seu titular ser responsável por essa prestação. De acordo com
Henrique Mesquita, é uma relação que se traduz num peso ou encargo sobre uma coisa.
Considerado do lado ativo, o ónus real é constituído por:
• O direito de exigir, em regra periodicamente, determinada prestação a quem, na data
do seu vencimento, for titular de um direito real de gozo sobre a coisa onerada, como
a propriedade ou o usufruto;
• A faculdade de, em sede executiva, obter essa prestação à custa da coisa onerada, com
preferência sobre os respetivos credores que não disponham de melhor garantia;

6.1. Natureza jurídica

• Ónus como direito de crédito garantido por hipoteca legal;


• Direito real sui generis;
• Direito real de garantia;

Menezes Cordeiro, entende que se trata de um direito real de aquisição, pois proporciona
ao seu titular o aparecimento de créditos, existindo também a inerência, a tipicidade, o
registo e a proteção através da ação de reivindicação, caraterísticas dos direitos reais;

Henrique Mesquita, entende que o ónus real é uma figura composta por dois elementos:
a) Obrigação real por ficar incorporada pelo seu lado passivo numa relação de soberania;
b) Garantia imobiliária porque confere ao seu titular também o direito de executar a coisa
onerada, mesmo que tenha sido alienada pelo devedor;

Mota Pinto, não considerando como um direito real autónomo, aponta para a identificação
desta figura como os privilégios creditórios imobiliários, visto que, pelas obrigações
anteriores só responde com o prédio, enquanto pelas obrigações posteriores responde com
todos os seus bens, mas o credor das prestações tem direito de garantia especialmente
onerado.

A obrigação de efetuar a prestação periódica transfere-se com as deslocações do imóvel, de


modo que o titular do imóvel em cada momento é responsável por essa prestação que
acompanha ou grava sobre ele. Desta forma, há aqui uma verdadeira sequela, uma vez que
a transferência do bem importa a transferência da obrigação. Por um lado, temos uma
obrigação ligada a um direito real de gozo e, por outro lado, a própria coisa garante a
obrigação. O adquirente responde por todas as obrigações, inclusive as já vencidas antes da
aquisição (Ex.: O IMI é um exemplo de ónus real. No direito privado, encontramos um ónus real
no crédito do cônjuge sobrevivo a alimentos da herança do falecido). Quanto às obrigações
anteriores, o adquirente só responde até ao valor da coisa. Já quanto às obrigações
posteriores, responderá com todo o seu património.
Ana Luísa Martins
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Os ónus reais são direitos reais, mas não parecem revestir autonomia em face dos direitos
reais de garantia, dos privilégios creditórios imobiliários.

6.2. Ónus reais vs. Obrigações reais

O ónus real distingue-se das obrigações reais nos seguintes termos: em ambos os casos,
quer no ónus real quer nas obrigações propter rem, a necessidade de efetuar uma prestação
incumbe ao titular de um certo direito real. Há, em ambos os casos, uma ligação direta de
uma obrigação ao seu sujeito passivo que é determinado através da titularidade de um
direito real.

Nas obrigações reais os deveres que cabem ao proprietário serviente para com o titular do
prédio dominante, isto é, os deveres entre os vários comproprietários, cabem ao adquirente
do direito real que por inerência, da qual surge a obrigação, só é responsável pelas
obrigações surgidas para o futuro, enquanto no ónus real o titular do prédio gravado com
o ónus responde pelas obrigações já vencidas antes da sua aquisição.

Capítulo II – Categorias de direitos reais e os seus conteúdos – Visão panorâmica

1. Os direitos reais de gozo


1.1. A propriedade como direito real de gozo pleno

O direito mais amplo é o direito de propriedade, que é um direito real de gozo, que permite
ao seu titular usar a coisa, fruir (retirar as utilidades que dela emerjam), dispor, onerar e
alienar a coisa, e, por vezes, até transformar (material e juridicamente) (Art. 1305º do CC).
Ou seja, é “o direito real máximo, mediante o qual é assegurada a certa pessoa, com
exclusividade, a generalidade dos poderes de aproveitamento global das utilidades de certa
coisa”. Acresce que, o proprietário tem o direito de não ser privado arbitrariamente da sua
propriedade (Art. 1308º do CC).

No Art. 1344º do CC são definidos os limites materiais da propriedade. O princípio


superfícies solo cedit prevê que tudo o que se implante ou incorpore no solo passa, em
regra, a integrar o direito de propriedade que tenha objeto.

1.2. A propriedade horizontal

De acordo com o preceituado nos Arts. 1414º e 1420º, nº1 do CC, do modo como o
legislador se expressa poder-se-ia retirar que na propriedade horizontal congregar-se-iam
dois direitos reais distintos: um de propriedade singular sobre cada uma das frações e
outro de compropriedade ou comunhão, cujo objeto é constituído pelas partes comuns do
Art. 1421º do CC. Este entendimento sairia confirmado do nº2 do Art. 1420º do CC. No
entanto, a propriedade horizontal é mais do que a mesa justaposição destes dois direitos,
isto é, trata-se de um tipo autónomo de direito real que ultrapassa a aplicação pura e
simples do regime da propriedade e da comunhão (Arts. 1414º a 1438º-A do CC).

1.3. Os direitos reais de gozo sobre coisa alheia ou direitos reais limitados de gozo

Ana Luísa Martins


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Os direitos reais de gozo sobre coisa alheia surgem quando ocorre uma contração ou
retração do direito de propriedade, que dá espaço à constituição de um direito real menor
do que a propriedade, mas que incide direta e imediatamente sobre a coisa. Existe um nexo
causal entre a contração do direito de propriedade e a constituição de um novo direito
sobre a coisa, que se adquire por aquisição derivada constitutiva. Os poderes que ao titular
do novo direito competem correspondem aos poderes que o proprietário deixa de poder
exercer. Porém, este último mantém sempre um potencial domínio absoluto e completo.

Pertencem a esta categoria os seguintes direitos reais: usufruto, uso e habitação,


superfície, servidão e direito real de habitação periódica.

a) Direito de usufruto

O direito de usufruto (Arts. 1439º e ss. do CC) prevê o uso, fruição, administração e até a
transformação (Ex.: Benfeitorias (Art. 1450º do CC), despesas feitas numa coisa que são
necessárias e indispensáveis), temporariamente, mas plenamente, de uma coisa ou direito
alheio, sem alterar a sua forma ou a sua substância. Como tal, o direito de usufruto depois
da propriedade horizontal e superficiária é o direito mais amplo, visto que concede uma
série de poderes.

Quanto aos direitos e obrigações do usufrutuário, o Art. 1445º do CC determina que estes
são regulados pelo título constitutivo, e, na sua falta ou insuficiência, são observadas as
normas supletivas (Arts. 1446º e ss. do CC).

O usufruto é um tipo aberto (Art. 1445º do CC), visto que, apesar de vigorar o princípio da
taxatividade em Portugal (Art. 1306º do CC), as partes podem moldar o seu conteúdo, desde
que não ponham em causa os seus pilares caraterizadores, dispostos no Art. 1439º do CC.
Ou seja, os direitos reais são os previstos na lei, mas o regime de cada direito real pode ser
moldado pelas partes. Ademais, o usufrutuário pode alterar o destino económico da coisa
(Art. 1446º do CC).

O direito de usufruto pode ser temporário, durante o tempo previsto pelas partes, ou
vitalício, durante o tempo de vida do usufrutuário. Já se for constituído a favor de pessoa
coletiva a duração máxima são 30 anos (Art. 1443º do CC).

Está expressamente prevista no Art. 1444º do CC a transmissibilidade inter vivos do direito


de usufruto, desde que do título constitutivo não resulte o contrário. Daqui resulta que o
usufrutuário pode vender, doar e permutar o seu direito de usufruto. Além de também estar
autorizado a onerá-lo. Porém, já não é possível a transmissão mortis causa deste direito
real. A lei apenas admire que o usufruto seja vitalício, caso em que se extinguirá com a morte
do seu titular.

b) Direito de uso e direito de habitação

De acordo com o Art. 1484º do CC, estão em causa dois direitos diferentes, quer quanto ao
objeto, quer quanto às faculdades atribuídas ao seu titular.

Ana Luísa Martins


1ª Turma
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1) Direito de uso – Ao contrário do disposto na letra da lei, o direito de uso confere mais
do que o uso da coisa. Trata-se de um direito de usar e fruir de uma coisa alheia, na
medida das suas necessidades e da sua família. Como tal, é um direito de natureza
pessoal, e, por isso, não pode ser trespassado, locado ou onerado (Art. 1488º do CC).
É, também, insuscetível de aquisição por usucapião (Arts. 1485º e 1283º, b) do CC).

2) Direito de habitação – Consiste no direito de usar uma casa de morada, sem poder
trespassar, onerar ou locar.

Devemos ter em conta que a conceção de família nesta matéria não é rigorosa e não
coincide com o conceito usado no Direito da Família (Art. 1487º do CC). Não faz parte da
família os filhos casados ou a quem não sejam tidos alimentos. Por outro lado, são
considerados família pessoas que se encontrem ao serviço do usuário ou morador.

c) Direito de superfície

O direito de superfície é a faculdade de construir ou manter, perpétua ou temporariamente,


uma obra em terreno alheio ou de nele fazer ou manter plantações (Art. 1524º do CC). Estas
faculdades podem ser de forma temporária ou perpétua (Arts. 1524º e 1538º do CC), a
título gratuito ou oneroso (Art. 1530º do CC). Neste último caso pode ser fixada uma única
prestação (preço) ou uma prestação anual (cânone superficiário).

Assim, o curso entende que ao conceder o direito de superfície na modalidade de construir


ou plantar, o proprietário do solo está automaticamente a atribuir ao superficiário também
o direito de manter a futura obra ou plantação.

O Art. 1528º do CC que prevê o desmembramento do objeto do domínio, dado que a


propriedade do solo permanece no património de um sujeito e a propriedade da obra ou
plantação passa para outro. Desta forma, este direito pode assumir duas modalidades:
1) A de fazer obra/plantar em prédio alheio e, depois, manter o direito de superfície da
mesma – O objeto do direito de superfície tem de ser determinado tendo em conta os
seus dois momentos. Num primeiro momento limita-se ao direito real de gozo de
construir ou plantar sobre aquela parcela de solo alheio. Já no segundo momento, o
objeto do direito de superfície é o solo e a obra ou plantação.

2) A de manter obra/plantação já existente, em prédio alheio, que envolve o


desmembramento do objeto do domínio – O objeto do direito de superfície é o solo e
a obra ou plantação.

A propriedade do superficiário não corresponde à propriedade clássica. Por um lado,


porque lhe falta a característica da exclusividade, visto que supõe sempre a propriedade
do dono do solo. Por outro, porque lhe falta a plenitude de poderes, sendo que este sofre
limitações. Por fim, porque nem sempre é perpétua. Por tudo isto, é tida como propriedade
superficiária.

Assim, o direito de superfície constitui uma exceção ao princípio superficies solo cedit, já
que ao proprietário do solo não pertence tudo o que a ele se vem implantar ou a incorporar,
pela ação da natureza ou do homem.
Ana Luísa Martins
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d) Servidão predial

De acordo com o Art. 1543º do CC, a servidão predial trata-se de um encargo imposto a um
prédio, em benefício de outro prédio, pertencentes a donos diferentes. O prédio sujeito à
servidão designa-se como serviente e o que beneficia da servidão como dominante.

Quatro notas que concorrem cumulativamente para a identificação deste direito real:
1) A servidão é um encargo;
2) Encargo que recai sobre um prédio;
3) Aproveita outro prédio;
4) Os prédios devem pertencer a donos diferentes;

Deste modo, estão excluídas do âmbito das servições prediais quer as servidões de gleba,
que oneram uma pessoa a favor de um prédio, quer as servidões pessoais, que oneram um
prédio em proveito de uma pessoa. Para haver servidão predial, o aproveitamento das
utilidades do prédio serviente tem de ser feito por intermédio do prédio dominante. Caso
inexista esta relação de predialidade, não estamos perante uma servidão.

Características das servidões:


• Atipicidade de conteúdo (Art. 1544º do CC) – Quaisquer utilidades que o prédio possa
proporcionar podem ser objeto de uma servidão predial, mesmo que estas sejam futuras
ou eventuais. A servidão é um tipo aberto, sendo que o seu conteúdo pode ser moldado
segundo a vontade das partes.
• Inseparabilidade (Art. 1545º do CC) – As servidões não podem ser separadas nem do
prédio a que pertencem, nem do prédio que oneram. A servidão predial recai sobre o
prédio serviente, independentemente de quem seja o proprietário. O proprietário do
prédio dominante não pode transmitir a servidão sem transmitir a propriedade do
prédio.
• Indivisibilidade (Art. 1546º do CC) - Caso a divisão respeite ao prédio dominante, a
servidão mantém-se, passando a beneficiar cada um dos novos titulares, que a podem
usar sem altercação nem mudança. Se for dividido o prédio serviente, cada uma das
parcelas continua a suportar a servidão, tal como ela existia anteriormente, na parte que
já a onerava, enquanto parte do todo.

Classificações de servidões:
• Servidões legais (Art. 1547º, nº2 do CC) – São as que estão previstas na lei e podem ser
constituídas coercivamente, mediante decisão judicial ou administrativa. – Ex.: Servidão
de passagem (Art. 1550º, nº1 do CC).
• Servidões voluntárias (Art. 1547º, nº1 do CC) – São as que não podem ser constituídas
coercivamente. Podem ser constituídas por contrato, usucapião e destinação de pai de
família.
• Servidões aparentes (Art. 1362º, nº1 do CC) – Revelam-se por sinais visíveis e
permanentes. São oponíveis independentemente de registo (Art. 5º, nº2 do Código do
Registo Predial).
• Servidões não aparentes (Art. 1548º, nº2 do CC) – Não se revelam por sinais visíveis e
permanentes. Não podem ser adquiridas por usucapião (Arts. 1293º a) e 1548º, nº1 do
CC). Devem ser registadas, para produzirem efeitos perante terceiros. No Art. 1280º do
CC menciona-se a relevância das ações de defesa da posse, sendo que não são aplicáveis
Ana Luísa Martins
1ª Turma
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as ações de defesa da posse, a não ser que se funde em título provindo do proprietário
do prédio serviente ou de quem lho transmitiu.

e) O direito real de habitação periódica

A habitação periódica pode ser entendida enquanto esquema ou regime de exploração de


um empreendimento turístico a quem ficam subordinados certos edifícios que nele se
integram ou enquanto situação jurídica adquirida pelos utentes desse empreendimento
(direito parcelar da habitação periódica).

Assim, o direito real de habitação periódica consiste no direito de usar durante um ou vários
períodos determinados de tempo, em cada ano, para habitação, uma unidade de
alojamento integrada em hotéis-apartamentos, aldeamentos turísticos ou apartamentos
turísticos, mediante o pagamento de uma prestação periódica (ónus real) ao proprietário,
ao cessionário do empreendimento ou quem o administre (Arts. 1º, 21º, 22º e 23º do DL
nº275/93). Esta prestação pode ter um valor fixo ou variável e pode ser sujeita a atualização
(Art. 22º, nº3 do DL nº275/93).

f) Direito real de habitação duradoura

De acordo com o Art. 2º do DL nº1/2020, o direito real de habitação duradoura faculta a


uma ou várias pessoas o gozo de uma habitação alheia para residência permanente, por um
período vitalício, mediante o pagamento de uma caução e ainda de contrapartidas
periódicas, cujo montante é estabelecido no contrato (Art. 7º, nº1 do DL nº1/2020). Assim,
trata-se de um direito real de gozo limitado, onerando um imóvel pertencente a outrem
(Art. 5º, nº1 do DL nº1/2020).

Ainda que por vezes o legislador diga tratar-se de um direito de gozo, não é isso que está
em causa aqui. O morador pode usar o imóvel para habitação permanente ou para outro
fim, se o contrato o previr ou o proprietário o autorizar (Art. 9º, nº2 do DL nº1/2020), mas
já não concede ao morador o gozo.

Este direito carateriza-se por uma grande carga obrigacional, desde logo porque o seu
titular é obrigado a pagar uma caução, acrescida de uma prestação pecuniária mensal de
valor acordado pelas partes (Art. 7º, nº1 DL nº1/2020) e dos montantes relativos ao IMI (Art.
9º, nº1 b) do DL nº1/2020). Para além disso, deve remeter ao proprietário, a cada oito anos,
uma ficha de avaliação do nível de conservação da habitação (Art. 10º, nº2 do DL nº1/2020),
promovendo ou permitindo a análise do seu estado e suportando o custo das obras de
conservação ordinária na habitação (Art. 9º, nº1 c) e d) do DL nº1/2020).

Por sua vez, o proprietário deve assegurar que a habitação é entregue ao morador num
estado de conservação, no mínimo, médio (Art. 8º a) do DL nº1/2020) e promover as obras
de conservação extraordinária (Arts. 8º d) e 3º e) DL nº1/2020). Para além disso, quando a
habitação seja fração de um prédio sujeito ao regime de propriedade horizontal, no Art. 8º
b) DL nº1/2020, que parece ter uma redação infeliz, o legislador manda que este pague, “na
parte relativa à habitação, os custos de obras e demais encargos relativos às partes comuns
do prédio e, no caso de condomínio constituído pagar as quotizações e cumprir as demais
obrigações enquanto condómino”.
Ana Luísa Martins
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O direito real de habitação duradoura é um direito vitalício (Art. 2º do DL nº1/2020), de
modo que o legislador espera que ele se extinga apenas com a morte do morador, não sendo
autorizada o termo ou a condição resolutiva. É proibida a transmissão mortis causa (Art.
12º do DL nº1/2020). Contudo, é possível onerar o direito em causa com uma hipoteca, mas
apenas quando esta sirva para garantir o crédito que seja concedido ao morador para pagar,
no todo ou em parte, o valor da caução (Art. 13º, nº1 do DL nº1/2020).

Acresce que, o proprietário pode transmitir livremente o seu direito de propriedade, mas
não pode constituir outros direitos ou garantias reais sobre ela, salvo a hipoteca (Art. 11º,
nº1 do DL nº1/2020). Note-se que, ainda assim, que, apesar de poder constituir uma
hipoteca sobre um imóvel onerado com o direito real de habitação duradoura, o
proprietário não pode constituir este direito sobre um imóvel já hipotecado (Art. 5º, nº2 do
DL nº1/2020).

Com base no Art. 5º, nº3 do DL nº1/2020, o contrato é celebrado por escritura pública ou
por documento particular, sendo que está sujeito a inscrição no registo predial. O morador
deve requerer no prazo de 30 dias a contar da data de celebração do contrato (Art. 5º, nº4
do DL nº1/2020).

No que toca à extinção deste direito, pode ocorrer por reunião do direito real de habitação
duradoura com a propriedade na mesma pessoa, caducidade, renúncia ou por resolução
do contrato por meio do qual se constituiu o direito. A extinção determina que o morador
fica obrigado à entrega do imóvel e o proprietário fica obrigado à devolução da caução (Art.
15º, nº1 do DL nº1/2020). Acresce que, entre a extinção do direito e a entrega do prédio, o
morador incorre no pagamento de uma “indemnização”, cujo valor aumenta diariamente,
pela sua utilização a título precário (Art. 19º, nº2 DL nº1/2020).

1.4. Os direitos reais de garantia

Os direitos reais de garantia são direitos que asseguram a realização, ainda que subsidiária,
de um crédito, ou seja, contribuem para assegurar o cumprimento das obrigações. Assim,
por um lado, encorajam o devedor a observar a obrigação com receio das consequências da
reação do credor ao incumprimento e, por outro, permitem que este possa sempre ser
ressarcido através do valor ou dos rendimentos de uma coisa, com preferência sobre os
demais credores do devedor que não beneficiem de garantia prioritária. Deste modo,
podemos assumir que os direitos reais de garantia têm uma função instrumental face aos
direitos de crédito.

O titular do direito real de garantia não pode, em regra, praticar atos de uso ou fruição.
Porém, é consagrada uma exceção, sendo que, na consignação de rendimentos, pode
desencadear um ato de disposição da coisa, satisfazendo-se paulatinamente através do
crédito, uma vez ocorrido o incumprimento do crédito.

Os direitos reais de garantia existentes no ordenamento jurídico português são: a


consignação de rendimentos (Arts. 656º e ss. do CC), o penhor (Arts. 666º e ss. do CC), a
hipoteca (Art. 686º e ss. do CC), o direito de retenção (Arts. 754º a 761º do CC), os
privilégios creditórios especiais (mobiliários - Arts. 738º e ss. do CC – e imobiliários – Arts.
Ana Luísa Martins
1ª Turma
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743º e 744º do CC) e o direito atribuído ao exequente como resultado da penhora e do
respetivo registo prévio (Art. 822º do CC).

a) Hipoteca

A hipoteca é uma garantia real que confere ao credor o direito de ser pago pelo valor de
certas coisas imóveis ou equiparadas pertencentes ao devedor ou a terceiro, com
preferência sobre os mais credores que não gozem de privilégio especial ou prioridade sobre
o registo (Art. 686º do CC). Embora seja um direito acessório, que apenas existe em função
da obrigação cujo cumprimento assegura, a hipoteca pode garantir uma obrigação futura
ou condicional (Art. 686º, nº2 do CC).

O devedor pode hipotecar bens de terceiros, desde que goze de poderes de disposição sobre
eles, apesar de não deter a sua propriedade (Art- 715º do CC). Além do mais, a hipoteca não
envolve a perda da posse sobre a coisa objeto da garantia.

No que toca à sua constituição, esta está dependente da inscrição do facto constitutivo no
registo, configurando uma exceção ao princípio da consensualidade.

Três modalidades da hipoteca quanto ao título constitutivo:


1) Hipoteca legal (Art. 704º do CC) – É permitida pela lei (e não resulta imediatamente
dela, como dita a letra do Art. 704º do CC), que atribui a certos credores a faculdade de
solicitarem a inscrição registal como modo de assegurarem o cumprimento da
obrigação em causa. Assim, o registo da hipoteca legal tem caráter constitutivo.

2) Hipoteca judicial (Art. 710º do CC) – Resulta de uma sentença que, condenando o
devedor à realização de uma prestação fungível, serve como título para que se possa
registar a garantia real. Assim, a sentença não tem caráter constitutivo, podendo
apenas servir de base para o registo. Tem o valor de pré-penhora.

3) Hipoteca voluntária (Art. 712º do CC) – Encontram o seu título num contrato ou numa
declaração unilateral do seu autor, que deve ser reduzido a escritura pública,
documento particular autenticado ou testamento (Art. 714º do CC). Uma vez que a
hipoteca deve ser registada, o registo funciona como modo (Arts. 687º do CC e 4º, nº2
do Código do Registo Predial).

Importa referir que inexiste um processo especial para a venda de coisa hipotecada e
subsequente pagamento do credor hipotecário e que a hipoteca está sujeita a um conjunto
de princípios impostos por lei, designadamente:
• Princípio da especialidade (Arts. 693º e 716º do CC e 96º do Código do Registo Predial)
– Deve incidir sobre uma coisa certa e determinada e o valor deve ser determinado.
• Proibição do pacto promissório (Art. 694º do CC) – Não pode ser convencionado entre o
devedor e o credor a oneração da coisa, em caso de incumprimento.
• Proibição da cláusula de inalienabilidade dos bens hipotecados (Art. 695º do CC) – O
credor não pode impor ao devedor que não pode vender o bem.
• Tendencial indivisibilidade (Art. 696º do CC) – Se a coisa se dividir, a hipoteca continua
a vigorar sobre tal crédito.

Ana Luísa Martins


1ª Turma
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Por fim, podem existir garantias ocultas, não registadas que, em alguns casos, prevalecem
sobre os direitos do credor hipotecário. – Ex.: Os privilégios creditórios imobiliários (Art. 751º
do CC) e direito de retenção (Art. 759º, nº2 do CC).

b) Penhor

De acordo com o disposto no Art. 666º, nº2 do CC, o penhor confere ao credor o direito à
satisfação do seu crédito, bem como dos juros, se houver, com preferência sobre os demais
credores. O penhor pode garantir uma obrigação presente, futura ou condicional.

O penhor pode incidir sobre coisas móveis (não equiparadas a imóveis) e direitos que
tenham por objeto coisas móveis suscetíveis de transmissão (que não sejam objeto da
hipoteca) (Arts. 666º, nº1 e 680º, nº1 do CC). Quando em causa esteja o penhor de um
direito de crédito, na perspetiva do curso, não existe qualquer direito real.

Apenas tem legitimidade quem poder alienar a coisa ou o direito, sendo que o objeto
empenhado pode ser do devedor ou de terceiro.

A constituição do penhor de coisa (Art. 669º do CC) exige, em geral, a entrega da coisa
empenhada, salvo se ocorrer a entrega de um documento que atribua a disponibilidade
exclusiva dessa coisa ao credor pignoratício ou a um terceiro, e, portanto, consagra-se uma
exceção ao princípio da consensualidade (Art. 408º, nº1 do CC). O Art. 669º, nº2 do CC
consagra a possibilidade do penhor de coisa se constituir mediante a atribuição de
composse que impeça o devedor pignoratício de dispor materialmente da coisa
empenhada.

Quando em causa esteja um penhor de direitos, a sua constituição está sujeita à forma e à
publicidade exigidas para a transmissão dos direitos empenhados (Art. 681º do CC). O
titular do direito empenhado deve entregar ao credor pignoratício os documentos
comprovativos desse direito que estiverem na sua posse e em cuja conservação não tenha
interesse legítimo (Art. 682º do CC).

Em regra, o penhor, ao contrário da hipoteca, não está sujeito a registo, a não ser que seja
o penhor de um direito de crédito cujo cumprimento esteja garantido com uma hipoteca ou
consignação de rendimentos (Art. 2º do Código do Registo Predial).

Deste modo, o Art. 678º do CC remete para os preceitos em matéria de hipoteca, valendo
em matéria de penhor de coisa os grandes princípios que regem a hipoteca.

Finalmente, o credor pignoratício pode intentar ações de defesa da posse, mesmo contra o
dono (Art. 670º a) do CC), mas, a menos que o contrato disponha em contrário ou que tal
seja indispensável à conservação da coisa, não a deve usar (Art. 671º b) do CC). Por outro
lado, se a coisa for frutífera, o credor pode ir satisfazendo o seu crédito à custa dos
rendimentos da coisa (Art. 672º, nº1 do CC), aproximando-se o penhor à consignação de
rendimentos.

c) Direito de retenção

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Nos casos em que o devedor tem como obrigação entregar certa coisa, mas dispõe, contra
o seu credor, de um crédito correspondente às despesas realizadas com a sua conservação
ou danos por ela causados, goza do direito de retenção, podendo recusar-se a entregar o
bem ou satisfazer-se com a sua venda judicial, com preferência sobre os demais credores
(Art. 754º do CC).

Requisitos para a existência do direito de retenção previsto no Art. 754º do CC:


• O titular do direito deter licitamente uma coisa que deva entregar a outrem;
• O titular do direito, obrigado à restituição da coisa, ser simultaneamente credor daquele
a quem a deve restituir;
• Que entre os dois créditos exista uma relação de conexão;

O direito de retenção é admitido com caráter excecional em relação ao transportador,


albergueiro, mandatário, gestor de negócios, depositário, comodatário ou beneficiário da
promessa de transmissão ou constituição de direito real que obteve a tradição da coisa a
que se refere o contrato prometido (Art. 755º, nº1 do CC).

Note-se que o objeto do direito de retenção pode ser uma coisa móvel, equiparando-se o
retentor a um credor pignoratício (Art. 758º do CC) ou imóvel, aplicando-se o regime da
hipoteca (Art. 759º, nº1 do CC) e as regras do penhor quanto aos direitos e obrigações do
titular (Art. 759º, nº3 do CC).

Acresce que a eficácia do direito de retenção não depende de registo para consolidar a
oponibilidade perante terceiros, já que ele é publicitado através da retenção material do
bem e que o direito de retenção sobre imóvel prevalece sobre a hipoteca, mesmo que
anteriormente constituída (Art. 759º, nº2 do CC), uma vez que não seria justo que outro
credor se satisfizesse com o valor da coisa que contribuiu para as despesas do titular do
direito de retenção.

d) Privilégios creditórios especiais

O privilégio creditório consiste na faculdade atribuída por lei, e apenas por lei, a certos
credores de serem pagos por preferência em relação aos demais, em atenção à natureza
dos seus créditos independentemente de registo (Art. 733º do CC).

Podemos falar em privilégios imobiliários e mobiliários, gerais ou especiais. Apenas são


direitos reais de garantia os privilégios especiais, quer sejam imobiliários (Arts. 743º e 744º
do CC) ou mobiliários (Arts. 738º a 742º do CC), já que apenas estes recaem sobre coisa
certa e determinada. Os privilégios gerais recaem sobre todo o património do devedor, quer
mobiliário quer imobiliário.

Os privilégios creditórios imobiliários especiais são direitos reais, mas são um perigo para
o comércio jurídico. Para além de se constituírem e serem oponíveis para terceiros,
independentemente de registo, gozam de preferência sobre os restantes direitos reais de
garantia anteriormente constituídos (Art. 751º do CC).

e) O direito real de garantia que resulta da penhora e do respetivo registo

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Trata-se do direito que resulta da penhora e do respetivo registo no âmbito de uma ação
executiva. Qualquer credor pode, no caso de incumprimento, intentar a ação executiva. A
diferença deste credor, é que quando nomeia a penhora de certos bens não tem a certeza
se tem a possibilidade de satisfazer o seu crédito com aqueles bens, porque sobre aqueles
bens podem recair garantias reais, sendo que os credores destes direitos reais de garantia
são os que satisfazem o seu crédito com preferência face ao credor comum que intentou a
ação executiva.

Da penhora e do respetivo registo, decorre um direito real de garantia para o credor que
era um credor comum e este passa a estar noutra situação, tendo preferência na satisfação
do seu crédito em relação aqueles bens.

A penhora, em sentido amplo, pode ser definida como um conjunto de atos ordenados,
complementares e funcionalmente ligados com vista a produzir um efeito único: a
vinculação dos bens à satisfação do crédito do que intenta a ação executiva ou a vinculação
dos bens ao processo, assegurando a viabilidade dos atos executivos. Em sentido estrito, a
penhora traduz-se num ato de apreensão de bens identificados e individualizados, bens
esses que vão ser vendidos no âmbito da ação executiva, para satisfação do crédito. O ato
de apreensão produz efeitos jurídicos e um deles é o previsto no Art. 822º do CC, sendo que
o credor exequendo passa a ter o poder de ser pago com preferência a qualquer outro
credor que não tenha garantia real anterior à custa do valor dos bens apreendidos. Ou seja,
a penhora não é um direito real de garantia, mas da penhora e do registo nasce um direito
real de garantia, nos termos do Art. 822º do CC.

f) Consignação de rendimentos ou anticrese

A consignação de rendimentos é o direito real de garantia que permite a afetação ou


adjudicação dos rendimentos de certos bens imóveis ou móveis sujeitos a registo, ao
pagamento de dívidas, sejam presentes, futuras ou condicionais (Art. 656º do CC). Nos casos
em que esta garantia vise assegurar o pagamento de juros, os frutos da coisa são imputados
primeiro neles e só depois no capital (Art. 661º, nº2 do CC).

Assim, ao contrário do que ocorre com a generalidade dos direitos reais de garantia, aqui o
cumprimento não é assegurado pelo valor da própria coisa, mas vai ocorrendo à medida
que os rendimentos por ela produzidos vão sendo entregues ao credor, não sendo
necessário esperar pelo incumprimento para que se ponha em prática a garantia real. É
apenas necessário que o devedor tenha legitimidade para dispor dos rendimentos em causa
(Art. 657º, nº1 do CC), ainda que não a tenha face ao próprio bem.

Acresce que esta é uma figura maleável, podendo os bens em causa continuar no poder do
concedente ou passar para o poder do credor (que, se assim for, passa a ser equiparado ao
locatário). De acordo com o Art. 658º do CC, a consignação pode ser voluntária (resulta de
negócio entre vivos ou de testamento) ou judicial (resulta de uma decisão do tribunal). A
consignação voluntária depende sempre de registo (Art. 2º, nº1 h) do Código de Registo
Predial), a menos que tenha por objeto títulos de crédito nominativos, e constitui-se por
escritura pública, documento particular autenticado ou testamento se tiver por objeto bens
imóveis, ou apenas de escrito particular se o seu objeto for um móvel.

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Para além disso, pode durar um certo número de anos (não mais de 15 anos se incidir sobre
rendimentos de bens imóveis) ou até ao pagamento da dívida garantida (Art. 659º do CC).
Pode também ser constituída por terceiro, caso em que se extingue se este não puder
subrogar-se nos direitos do credor (Art. 717º, nº1 do CC, aplicável por força do Art. 657º,
nº2 do CC).

Finalmente, o Art. 665º do CC determina que se siga, na consignação, o regime da hipoteca


no que se refere à transferência do direito para o valor da indemnização em caso de perda
ou deterioração (Art. 692º do CC), à proibição do pacto comissório (Art. 694º do CC), à
proibição da cláusula de inalienabilidade (Art. 695º do CC), à indivisibilidade (Art. 696º do
CC), à substituição ou reforço (Art. 701º do CC), e ainda ao seguro (Art. 702º do CC).

1.5. Direitos reais de aquisição

Os direitos reais de aquisição, que se encontram dispersos ao longo do CC, atribuem ao seu
titular a faculdade de aquisição de um direito real de garantia ou de gozo sobre uma coisa,
tendo, por isso, uma função instrumental. Apenas estamos perante um direito real de
aquisição se através do seu exercício se conseguir adquirir um direito real de garantia ou de
gozo. Em causa tem de estar um verdadeiro direito. É uma construção da doutrina da
jurisprudência germânica, tendo um campo de aplicação relativamente reduzido.

Assim, não se confundem com a aquisição de um direito real pelo exercício de um poder
que a lei atribui indiscriminadamente a todas as pessoas ou de uma faculdade incluída no
conteúdo de certo direito. – Ex.: Nesta hipótese está o caso, por exemplo, do Art. 1323º do CC,
referente à ocupação, sendo que quem encontrar um animal ou uma coisa móvel perdida terá
de tentar saber a quem pertence, avisando as autoridades. Contudo, se continuar sem
determinar o dono, a coisa será havida como perdida decorrido 1 ano, sendo que quem
encontrou pode fazer sua a coisa. Qualquer pessoa pode tornar-se proprietária da mesma,
desde que siga os passos fixados no artigo. Esta é uma faculdade que a lei atribui
indiscriminadamente e, portanto, não estamos perante um direito real de aquisição.

O direito real de aquisição não pode ser um poder ou uma faculdade contida no conteúdo
inderrogável de um direito. – Ex.: O direito de propriedade, em que o proprietário tem o poder
de usar, fruir, transformar, etc. Contudo, por vezes surgem faculdades no conteúdo de um
direito real que permitem a aquisição de outro direito. Se estiver em causa o conteúdo
inderrogável de outro direito real não estamos perante um direito real de aquisição. – Ex.:
É o que acontece à faculdade que é atribuída ao proprietário de um prédio encravado de adquirir
uma servidão de passagem ou de trânsito sobre prédios vizinhos. Do conteúdo inderrogável do
direito de propriedade, sobre um prédio encravado consta a faculdade de vir a adquirir uma
servidão e, portanto, não é um direito real de aquisição.

Exemplos de direitos reais de aquisição dispersos pelo CC:


• União ou confusão de boa-fé na acessão industrial imobiliária (Art. 1333º, nº1 do CC);
• Obras, sementeiras ou plantações feitas de má-fé em terreno alheio na acessão
industrial imobiliária (Arts. 1341º e 1342º, nº1 do CC);
• Prolongamento de edifício por terreno alheio na acessão industrial imobiliária (Art.
1343º, nº1 do CC);

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• Possibilidade de afastamento da servidão pela aquisição de prédio encravado (Art.
1551º, nº1 do CC);
• Direito de habitação na casa de morada de família e direito de uso do recheio no qual
o cônjuge sobrevivo pode ser encabeçado no momento da partilha (Art. 2103º-A, nº1
do CC).

a) Direito do promissório no contrato-promessa de transmissão ou constituição de


direitos reais sobre imóveis ou móveis sujeitos ao registo quando as partes atribuem
eficácia real

Para o curso, não se trata de um direito real de aquisição.

O contrato-promessa é dotado de eficácia real se tiver por objeto a transmissão ou


constituição de direitos reais sobre imóveis ou móveis sujeitos ao registo, se for reduzido a
escrito, se constar menção expressa que as partes pretendem dotar de eficácia externa e se
for sujeito a registo.

Para parte da doutrina, estamos perante um direito real de aquisição, sendo assim, há
quem entenda que a ação de execução específica, depois de ser registada, se traduz num
direito real de aquisição. Do contrato-promessa nasce um direito de crédito a que venha a
ser celebrado o contrato definitivo e nasce também o direito a intentar a ação específica.

Na nossa perspetiva, o direito à execução específica não é um qualquer direito real de


aquisição. O direito à execução específica é potestativo e acessório ao direito de crédito (a
celebração do contrato prometido). Do contrato promessa nasce um direito de crédito, bem
como o direito de exigir da outra parte a declaração negocial. A par deste direito, existe o
direito à execução específica, sendo que, quando dotada de eficácia real permite a
satisfação do direito de crédito in natura (vai ser emitida a declaração negocial) e não por
equivalente. O objetivo é que o tribunal, através de sentença constitutiva, dê por celebrado
o contrato e, portanto, não há aqui um direito real de aquisição.

Para além desta posição, na doutrina, há outra, nos termos da qual, o direito do promissório
é um direito real de aquisição, porque o promissório tem um direito de crédito à prestação,
tem o direito de intentar a ação de execução específica e depois, do tribunal se substituir
ao faltoso e emitir a declaração, a pessoa adquire o direito real com prevalência sobre o
terceiro porque sempre teve um direito real de aquisição, desde o início. Esta é a posição
maioritária. Na nossa perspetiva continua a não fazer sentido falar em direito real de
aquisição, já que se pode chegar ao mesmo resultado de outro modo.

No entanto, o Dr. Calvão da Silva diz que nasce um direito de crédito com eficácia perante
terceiros, nasce o direito à execução específica e depois do tribunal se substituir ao faltoso
e emitir a declaração, o promissório vê o seu direito prevalecer em relação aos terceiros,
porque a sentença constitutiva vai retroagir os seus efeitos à data do contrato promessa.

Note-se que, nem sempre é feito um registo provisório para depois ser feito um registo
definitivo. No caso da sentença e de acordo com o Código do Registo Predial, antes de haver
o registo da sentença, há o registo da ação provisório, e quando é proferido o registo da

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sentença este retrotrai-se à data do registo da ação (não é a data do contrato promessa).
Os efeitos que se retrotraem são os do registo.

Em suma, na nossa perspetiva temos apenas um direito, um direito de crédito a exigir a


prestação (declaração negocial necessária para ser celebrado o contrato prometido), sendo
que a este direito se junta um direito potestativo (direito de intentar a execução específica).
Deste modo, não precisamos de falar de um direito real de aquisição.

O legislador português admitiu que, a par dos direitos reais, determinados direitos de
crédito, pudessem aceder ao registo (inscrição definitiva). Quando permitiu isso foi para
atribuir a eficácia equiparada a um direito de crédito em face de terceiros, o tal direito de
crédito, uma vez registado, não muda de natureza, isto é, não passa a direito real, mas passa
a ser eficaz perante a terceiros para efeitos de registo. Quando o promissório faz o registo
do direito de crédito, passa a ter um direito oponível perante terceiros. Consequentemente,
todos os negócios que celebrar com terceiros que ponham em causa a celebração do
contrato prometido serão tidos como ineficazes perante aquele direito de crédito. Se for
celebrado o contrato prometido, no final de uma ação executiva, todos os negócios
celebrados com terceiro que podiam impedir a celebração do contrato prometido que
padeceram de eficácia relativa e provisória, quando for celebrado o contrato e for feito o
registo de aquisição, todos esses negócios passam a ser definitivamente ineficazes.

b) Direito de preferência dotado de eficácia em relação a terceiros

O direito de preferência dotado de eficácia em relação a terceiros (Art. 421º do CC), para o
curso não se trata de um direito real de aquisição.

Parte da doutrina, entende que os direitos de preferência legais e convencionais dotados de


eficácia em relação a terceiros são direitos reais de aquisição. Outra parte da doutrina,
entende que são direitos potestativos constitutivos. Na nossa perspetiva, não é assim, não
é necessário recorrer à figura do direito real de aquisição e, por outro lado, não é apenas
um direito potestativo constitutivo. Na verdade, a doutrina quando analisa a natureza do
direito de preferência apenas tem em conta a fase final, altura em que é intentada a ação
de preferência e o preferente é havido como parte contratual e por isso adquire um direito.

No pacto de preferência, se uma parte se decidir a alienar, terá de dar preferência. Pode
ocorrer que a pessoa se vincule a dar preferência e depois não dá. Neste caso, se for dotado
de eficácia real, o preferente pode intentar a ação de preferência e substituir-se ao terceiro,
sendo havido como parte, e por isso vir a adquirir o direito.

Análise do direito de preferência nas suas várias fases:


• 1º momento (direito de crédito a ser notificado) – O obrigado a dar preferência decidiu
que ia alienar a coisa, arranjado um comprador, com um preço determinado (contrato
de compra e venda). O obrigado à preferência deve notificar o preferente. O preferente
tem o direito a esta prestação. Aquele que está obrigado a dar preferência está
vinculado por uma obrigação, sendo que o preferente é titular de um direito de crédito.
Não há qualquer direito real nem direito potestativo neste primeiro momento.

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• 2º momento (direito potestativo de preferir) – Ocorreu a notificação e o titular da
preferência pode: nada dizer e deixa caducar; não aceitar a preferência (renunciar ao
direito potestativo) ou preferir.

• 3º momento (obrigação de celebrar o contrato e o direito de crédito a que seja emitida


a declaração necessária para ser celebrada o contrato) – Se preferir, vai colocar o que
está obrigado pela preferência inevitavelmente numa determinada situação,
produzindo-se efeitos jurídicos na sua esfera jurídica, visto que fica obrigado à
declaração negocial e a celebrar o contrato definitivo. O direito de dizer “prefiro” é um
direito potestativo. O titular do direito de preferência passa a ter um novo direito de
crédito, isto é, a celebração do contrato definitivo.

Na perspetiva de preferente não há qualquer direito real nestes três momentos. Note-se
que, o que diz prefiro também passa a estar obrigado a celebrar o contrato. Quando se
exerce positivamente o direito de preferência cria-se uma situação próxima ao contrato
promessa.

E se a pessoa se obrigou a dar preferência e não cumpriu com a obrigação de notificar? Ou


notificou e depois do preferente dizer prefiro ainda assim alienou a terceiro? Ou houve
violação de dar preferência e o negócio foi celebrado com terceiro? O preferente deve
intentar a ação de preferência. Através da ação de preferência, o preferente pede ao
tribunal que o substitua face ao terceiro. O preferente quer a posição contratual do terceiro
para si, pretendendo subrogar-se à posição do terceiro. Trata-se de um direito potestativo.
Nesta última fase não se deve pedir que o contrato com terceiro seja declarado nulo,
anulado ou ineficaz. O que o preferente pretende é efetivamente aquele contrato, e,
naturalmente, quer um contrato válido. Do ponto de vista do registo, também não se pede
o cancelamento, continua a valer, mas para o preferente. Todos os atos celebrados pelo
terceiro são considerados como atos sobre coisa alheia, sendo nulos.

Em causa está uma relação jurídica complexa e não um direito real de aquisição, sendo que
é integrada por vários direitos de crédito e direitos potestativos.

Capítulo V – Objeto dos direitos reais

1. Noção de coisa suscetível de constituir objeto de um direito real

De acordo com o Art. 202º do CC, coisa que é o objeto dos direitos reais é “tudo aquilo que
pode ser objeto de relações jurídicas”. Contudo, este artigo não é particularmente feliz,
dado que nem tudo o que é objeto de relação jurídica é uma coisa. – Ex.: Não são coisas as
pessoas e as pessoas são suscetíveis de ser objeto de relação jurídica. Não são coisas as
prestações e estas são objeto de relação jurídica. Não são coisas as situações económicas, sendo
que são suscetíveis de ser apropriadas. – Assim, entende-se que a noção é demasiado ampla.
Não podem ser objeto de direitos reais as coisas que estão no domínio público e as que
sejam insuscetíveis, por natureza, de apropriação pessoal. Deste modo, o conceito jurídico
de coisa tem de ser restringido.
Para estarmos perante coisas devem reunir-se os seguintes requisitos:
• Impessoalidade – Carência de personalidade jurídica.

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• Autonomia – Objeto com existência autónoma ou distinto e separado, que seja certo,
atual e determinado.
• Utilidade – É um objeto apto a satisfazer necessidades, portanto, é dotada de
economicidade.
• Apropriabilidade – Suscetibilidade de apropriação exclusiva. Só estamos perante uma
coisa se ela for suscetível de ser apropriada e aproveitada, subordinando-se à
disponibilidade jurídica de um homem ou de alguns homens, mas não por todos.

Exemplo: Uma mesa da sala de aula reúne todas estas caraterísticas, mas o painel de azulejos
poderia estar a venda, se fosse de domínio privado, e então não está individualizado, visto que
faz parte de um todo, isto é, da faculdade, e porque assim o é não é considerado coisa. Assim,
este painel de azulejos fixado na parede, uma vez que não é uma coisa não pode beneficiar de
direitos reais, com a ressalva de enquanto aquele painel não for autonomizado (individualizado).
Mas se esse painel for retirado da parede já será individualizado e então será uma coisa.

Neste sentido, não cabe na noção jurídica de coisa o que tenha personalidade jurídica
(pessoas), qualquer objeto que não tenha existência autónoma (partes integrantes e partes
componentes), algo insuscetível de apropriação, ou seja, que o homem não possa dispor ou
usar ou algo que seja suscetível de apropriação, mas não seja exclusiva. Também não são
coisas aquilo que não seja apto a satisfazer necessidades ou interesses humanos.

Para o Dr. Orlando Carvalho, coisa é uma entidade do mundo externo, dotada de suficiente
individualidade e economicidade para assumir o estatuto permanente de objeto de
domínio.

Em suma, coisas são sempre bens, mas nem todos os bens são coisas.

2. Classificações das coisas relevantes para o direito das coisas


2.1. Coisas corpóreas e coisas incorpóreas

As coisas corpóreas são suscetíveis de serem apreendidas pelos sentidos, ou seja, não é
necessariamente uma coisa com corpo e que ocupa um espaço. – Ex.: Eletricidade. Já as
coisas incorpóreas são insuscetíveis de serem apreendidas pelos sentidos, sendo
apreendidas pelo intelecto. – Ex.: Direitos objetos de outros direitos.

2.2. Coisas imóveis e móveis

O legislador português não formula uma distinção entre ambas, realizando apenas uma
enumeração taxativa – coisa imóvel (Art. 204º do CC) e coisa móvel (Art. 205º do CC).
Assim, o que não conste do Art. 204º do CC é havido como móvel. Esta distinção releva em
matéria de forma, de registo, de direitos reais e de usucapião.

2.3. Coisas fungíveis

As coisas fungíveis (Art. 207º do CC) são coisas que se determinam pelo seu género,
qualidade e quantidade. Por outro lado, são determinadas por conta, peso e medida, de
acordo com o Dr. Manuel de Andrade. Não são entidades certas e determinadas na espécie,

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sendo que só se tornam certas e determinadas depois da escolha, e, portanto, não são
suscetíveis de serem objeto de direitos reais.

2.4. Coisas futuras

As coisas futuras (Art. 211º do CC) são aquelas que não estão em poder do disponente ou
que este não tem direito ao tempo da relação negocial.

Distingue-se:
• Coisa relativamente futura – Coisa que já existe, mas ainda não está no poder do
disponente ao momento da declaração negocial. No entanto, ele tem a legítima
expectativa de vir a adquiri-la, dando conta disso à contraparte e o negócio é celebrado
nessa suposição (Arts. 408º, nº2, 893º e 942º do CC).
• Coisa absolutamente futura – Coisa que não existe, mas que é esperada.
• Coisa alheia – Coisa que já existe, não está em poder do disponente e este não tem a
legítima expectativa de vir a adquirir (Arts. 892º, 893º, 942º e 956º do CC).
• Coisa inexistente – Coisa que não existe na disponibilidade do disponente, nem de quer
que seja, sendo que o disponente não tem a legítima expectativa de vir a adquirir.

2.5. Partes componentes e partes integrantes

As partes componentes são constituintes da estrutura da coisa, ou seja, são elementos que
compõe a coisa, sem os quais não está completa ou não está apta ao uso ou ao fim que se
destina, sendo que, apesar disto, podem ser separadas da coisa. – Ex.: Porta ou as telhas de
uma casa. – Enquanto as partes integrantes (Art. 204º, nº3 do CC) são coisas móveis unidas
materialmente e com carácter de permanência, com o intuito de aumentar as utilidades da
coisa, tornando-a mais produtiva, mais segura, mais cómoda ou embelezar. Não fazem parte
da estrutura e sem ela a coisa continua a estar apta ao fim e ao uso a que se destina,
portanto, podem ser levantadas. – Ex.: Louça sanitária ou um painel solar. – Ambas não
podem ser objeto de direitos reais autónomos enquanto não forem separadas da coisa
principal. Assim, podem ser objeto de negócio distinto daquele que tem por objeto a coisa
principal, ou seja, posso vender a porta principal da minha casa. No entanto, enquanto ela
estiver na estrutura da casa, este negócio da venda da porta não vai produzir efeitos reais,
mas apenas efeitos obrigacionais. Só no momento da separação é que se produz o efeito
real. Deste modo, o negócio que tenha por objeto a coisa principal abrange quer partes
componentes, quer partes integrantes. No entanto, pode haver negócios que tenham por
objeto apenas as partes componentes ou as partes integrantes. Se tivermos uma coisa
autónoma, certa e determinada, que perca a sua autonomia e passe a ser parte integrante
ou componente de uma coisa principal deixam de poder ser objeto de relações jurídico reais
autónomas (Art. 408º, nº2 do CC).

Exemplo: Os elevadores são coisas autónomas, mas se forem integrados num prédio sujeito a
um regime de propriedade horizontal, deixam de ser objeto do direito de propriedade que
existia anteriormente e passam a ser objeto da propriedade horizontal, pois passam a ser parte
do prédio.

2.6. Coisas acessórias (artigo 210º do CC)

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As coisas acessórias (Art. 210º do CC) são coisas autónomas, separadas e distintas, que não
compõe a estrutura de outra, nem estão ligadas com carácter de permanência a outra coisa,
ou seja, não são partes componentes (não fazem parte da estrutura) nem são partes
integrantes (não tem caráter de permanência). No entanto estão afetadas de forma
duradoura ao serviço ou a ornamentação de outra, estando ligadas a uma coisa apenas pelo
destino económico. O negócio que tenha por objeto a coisa principal não abrange a coisa
acessória, sendo uma coisa distinta. Contudo, não será assim se tal for convencionado (Art.
210º, nº2 do CC). Quanto aos negócios reais que tenham por objeto coisas acessórias
produzem os seus efeitos quando as partes o previrem, ou seja, imediatamente, se nada for
dito.

Exemplo: A vende a B o seu apartamento, com a propriedade do imóvel não segue o recheio, a
não ser que o contrário seja expressamente acordado.

2.7. Frutos

Aos frutos (Art. 212º e ss. do CC), o legislador atribui a caraterística da periodicidade, sendo
que se trata de tudo aquilo que a coisa produz periodicamente sem prejuízo da sua
substância. Assim, distinguem-se os frutos naturais que provem diretamente da coisa (Ex.:
laranjas), dos frutos civis que se traduzem em rendas ou interesses que a renda produz em
consequência de uma relação jurídica (Ex.: as rendas que uma casa gera em virtude de um
contrato de arrendamento ou juros). Por sua vez, os frutos pendentes são os que já existem,
mas ainda não foram colhidos. Os frutos percebidos já foram produzidos e já foram
colhidos. E os frutos percebendo são frutos que a coisa poderia ter gerado, mas não gerou,
já que estavam em poder de outrem. O Art. 213º do CC prevê o regime da partilha de frutos,
sendo que em consonância o Art. 214º do CC vai ao encontro desse artigo. Já o Art. 215º do
CC estabelece a restituição de frutos.

2.8. Benfeitorias e acessões

De acordo com o Art. 216º, nº1 do CC consideram-se benfeitorias todas as despesas feitas
para conservar ou melhorar a coisa. Desta forma, distinguem-se as benfeitorias necessárias
que correspondem a despesas feitas numa coisa para evitar a sua perda ou deterioração,
das benfeitorias úteis que se traduzem em despesas feitas numa coisa que, não sendo
imprescindíveis para evitar a perda ou deterioração, lhe aumentam o valor e das
benfeitorias voluptuárias que são despesas que não são feitas para evitar a deterioração
ou perda da coisa nem lhe aumentar o valor, mas para o recreio do benfeitorizante. As
acessões são inovações realizadas em uma coisa à margem de qualquer relação jurídica,
constituindo um título de aquisição originária do direito de propriedade imobiliária, ao lado
da usucapião. Distinguir ambas tem sido um trabalho doutrinal ao longo dos anos. Assim,
benfeitoria é uma despesa feita numa coisa já existente com vista ou à sua conservação, ou
à sua valorização ou a gerar um maior recreio. Já a acessão conduz a um ato que se traduz
num ato de inovação e criação de uma nova realidade.

No Código de Seabra distinguia-se afirmando que a benfeitoria beneficiava uma coisa já


existente (despesa), já uma acessão era um ato de inovação que alterava a substância de
uma coisa. Contudo, o Dr. Cunha Gonçalves veio dizer que esta distinção não era suficiente,
já que não basta dizer que é uma despesa existente ou que é apenas um ato de inovação
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que introduza uma altercação na substância, sendo que há negócios em que se introduz
uma inovação, se altera a substância da coisa e ainda assim o legislador manda aplicar o
regime das benfeitorias. No atual código, o Dr. Antunes Varela, o Dr. Pires Lima e o Dr.
António Carvalho Martins consideram que a distinção deve ser feita com base na existência
ou inexistência da relação jurídica. A benfeitoria é praticada por quem tenha uma relação
jurídica com a coisa e a acessão por quem não tem uma relação jurídica com a coisa.

Capítulo IV – Princípios ordenadores dos direitos reais

1. Sentido dos princípios ordenadores dos direitos reais

Os direitos reais são um domínio específico do ordenamento jurídico, uma zona do mundo
jurídico. Todo o domínio específico do ordenamento jurídico assenta sobre determinados
princípios fundamentais. Neste sentido, os direitos reais também estão, portanto,
submetidos a certos princípios, determinados por ideias de caráter ideológico-político,
histórico, económico, etc. e pela técnica jurídica.

Por entendermos ser a teoria eclética a que retrata melhor o regime jurídico dos direitos
reais, defendemos que estes têm dois lados:
• Lado interno – O lado interno relaciona-se com o facto de um direito real ser um poder
direto e imediato sobre uma coisa;
• Lado externo – O lado externo liga-se à obrigação geral passiva de todos os demais
sujeitos em relação ao titular do direito real, com a tutela absoluta destes direitos;

Assim, temos princípios que se relacionam com o lado interno, com o poder direto e
imediato do titular do direito real sobre uma coisa certa e determinada e outros que dizem
respeito ao lado externo, ou seja, à tutela absoluta caracterizadora destes direitos.

Seguindo o pensamento e a lição de Orlando de Carvalho, de que assumimos ser tributários:


a) Princípios ligados ao lado interno do direito real:
• Princípio da coisificação;
• Princípio da especialidade ou individualização;
• Princípio da compatibilidade ou da exclusão;
• Princípio da elasticidade ou da consolidação;

b) Princípios ligados ao lado externo do direito real:


• Princípio da tipicidade fechada (taxatividade ou numerus clausus);
• Princípio da transmissibilidade;
• Princípio da causalidade;
• Princípio da consensualidade;
• Princípio da publicidade;

A. Princípios ligados ao lado interno do direito real


1. Princípio da coisificação

Segundo princípio da coisificação do objeto do direito real, só podem existir direitos reais
sobre coisas, isto é, sobre entidades do mundo externo, desprovidas de personalidade ou

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não integradoras do substrato desta, distintas dos comportamentos humanos e diversas dos
animais, e que podem ser objeto de relações jurídicas. Assim, nem a própria pessoa, nem os
bens que integram a personalidade podem ser objeto de direitos reais, embora possam ser
objeto de outro tipo de direitos absolutos, como os direitos de personalidade.

A este propósito, aprofundamos os atributos dos possíveis objetos de direitos reais,


começando pela distinção entre coisas corpóreas ou materiais, que têm existência física e
coisas incorpóreas ou imateriais. Apesar do disposto no Art. 1302º, nº1 do CC (“só as coisas
corpóreas móveis ou imóveis, podem ser objeto do direito de propriedade”), consideramos
superado o dogma que restringiu durante séculos os direitos reais à res corporalis, expresso
na restrição da noção de coisas a objetos com existência corpórea. Não obstante, o Art.
1303º do CC não só admite que pode haver propriedade para lá da contemplada no código,
como é o caso da chamada “propriedade intelectual”, como admite que lhe pode ser
estendido subsidiariamente o regime estabelecido. Neste sentido, também as coisas
incorpóreas, como criações intelectuais, descobertas ou a marca, podem ser objeto de
direitos reais, embora sejam objeto, em regram de ramos de direito próprios (o direito de
autor e o direito da propriedade industrial). Atente-se no exemplo das informações (Ex.:
dados pessoais, códigos PIN e outras informações) em si mesmas não parecem, em princípio,
poder ser objeto do direito das coisas, não sendo esta a sede para curar do seu exclusivo,
devendo ser distinguidas dos suportes materiais em que se encontram (e estes podem ser
objeto de direitos reais). Quanto a outros aspetos (designadamente, autoral), devem ser
submetidas a um regime especial, tendo em conta o disposto nos Arts. 1302º, nº1, e 1303º
do CC.

Para além disto, parece ser útil a distinção, que se encontra na doutrina comparatística,
entre coisas “reais”, que são aquelas que se encontram autonomizadas na natureza, para
serem objeto de direitos reais, antes da sua qualificação normativa como tal e “coisas
normativas”, as quais dependem da sua delimitação normativa, incluindo, desde logo, os
próprios imóveis que carecem de uma delimitação física, quer quando sejam prédios
rústicos, quer quando sejam, por exemplo, frações de prédios urbanos.

Relativamente à questão das coisas corpóreas e incorpóreas, trata-se, também, a este


respeito, da qualificação da energia que possa ser apropriável, em particular da energia
elétrica, que tem existência corpórea (embora como um fluxo) e deve ser considerada como
coisa móvel. Quanto ao software, este parece poder ser considerado uma coisa incorpórea,
e objeto tanto de contratos obrigacionais como de transmissão. Parece admissível que, por
exemplo, apps ou obras em formato digital (Ex.: livros) sejam objeto de um contrato de
compra e venda. O problema está em saber se tais programas não só podem ser objeto de
transmissão por compra e venda como constituem ponto de referência objetivo adequado
para um verdadeiro direito real, o que, a nosso ver, não pode ser excluído. Existem
programas que são comprados como sucedâneos de verdadeiras coisas corpóreas (Ex.:
opção entre comprar um livro em papel ou online, como exemplar digital da obra, em suporte
informático), e cuja proteção pode, independentemente dos aspetos autorais, carecer
também de eficácia erga omnes, como os direitos reais. Incluímos, também, nas coisas
incorpóreas e normativas, embora com substrato corpóreo, o estabelecimento comercial,
que pode ser objeto de direitos reais.

Ana Luísa Martins


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Os direitos subjetivos também podem ser equiparados a coisas para o efeito de serem
objeto de direitos reais, no fenómeno dos chamados “direitos sobre direitos” (Ex.: Arts. 666º,
nº1, 679º, 688º al. b) a e) e 1439º do CC). A “coisificação” dos direitos, como objeto de outros
direitos ou de transmissão é, também, a ocasião para analisar o problema dos direitos sobre
participações sociais, bem como do estatuto do dinheiro enquanto objeto de direitos.

Para terminar a exposição do princípio da coisificação importa fazer uma referência à


distinção entre coisas e animais, introduzida no CC pela Lei nº8/2017, de 3 de março.
Consideramos os animais como objeto de direitos, e de especial proteção jurídica, distintos
das coisas. Analisamos, a este respeito, o âmbito de aplicação do Art. 201º-B do CC e a sua
definição de animais que têm proteção jurídica, bem como algumas normas relativas ao
especial regime jurídico de direitos reais sobre animais, já que o legislador português se não
limitou a uma proclamação genérica de distinção entre os animais e as coisas, antes previu
normas imperativas sobre, por exemplo, a propriedade de animais (Art. 1305º-A do CC).

Em suma, o princípio da coisificação abrange, em regra, todos os bens coisificáveis (tanto as


coisas em sentido estrito como as coisas em sentido amplo), mas nem todas essas coisas
são objeto de todas as situações reais, variando a área das coisas abrangidas com a situação
concreta.

2. Princípio da especialidade ou individualização

O princípio da especialidade, determinação ou individualização está consagrado no Art.


408º, nº2 do CC. De acordo com este princípio, o direito real ao conferir um poder direto e
imediato sobre um objeto, pressupõe necessariamente um objeto especificamente
delimitado e individualizado. Porém, não basta uma mera determinação do género, a
individualização ou determinação tem de ser absoluta, plena e integral, podendo embora
ser física ou jurídica. Caso não exista tal delimitação, o direito real estender-se-á à
totalidade da coisa. Não há direitos reais sobre coisas genéricas definidas qualitate et
quantitate, ao contrário do que acontece com as obrigações (Arts. 539º e ss. do CC).

Há, portanto, que pôr em relação este princípio com o regime das partes componentes (Art.
204º do CC) e das partes integrantes (Art. 204º, nº1 c) e 3 do CC), objeto do direito que
incide sobre a coisa, distinguindo-as de determinados objetos que são apenas dependentes
de outra coisa, designadamente pelo seu fim, como é o caso das coisas acessórias ou
pertenças. Do mesmo modo, contrapõe-se a parte integrante e a parte componente às
universalidades de facto, identificadas pelo CC com coisas compostas (Art. 206º do CC). Em
qualquer caso, trata-se de coisas passíveis de uma identificação na sua individualidade, mas
que encontrando-se estreitamente conexas com uma coisa diferente, não sofrem a
incidência de direitos reais diversos dos que incidem sobre a última. Ao produzir-se a
separação é que serão objeto de um direito real distinto, tendo somente o negócio que
prevê a aquisição deste objeto até esse momento da separação uma eficácia obrigacional.
A individualização pode fazer-se pela separação de partes ligadas a coisas, o que inclui
também a colheita de frutos. A noção de frutos é tratada, neste contexto, autonomizando-
a dos produtos da coisa e das vantagens pelo uso da coisa.

O princípio da especialidade ou individualização obriga também a tratar do regime da


acessão, na medida em que este, por um lado, exprime tal princípio e, por outro lado, lhe
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introduz algumas exceções ao não prever em todos os casos a extensão do direito real à
coisa unida. Explica-se, assim, sumariamente, neste contexto, o regime da acessão natural
e da acessão industrial, mobiliária e imobiliária, pondo-o em relação com o princípio da
especialidade. Assim, para existir um jus in re é necessária a individualização de uma coisa,
mas enquanto não estiver individualizada, uma vez que se trata de coisas conexas a ela se
estende o direito que recai sobre o conjunto, definido pelo género ou coisa principal. Porém,
tal como já foi mencionado, existem exceções: no caso da acessão, a consequência lógica
deste princípio seria a extensão ao valor adjunto do direito que incide sobre o objeto
enriquecido. Contudo, esta regra só tem aplicação absoluta em matéria de acessão natural
(com os desvios na hipótese da avulsão, Arts. 1329º, nº1 e 1331º, nº2 do CC). Na acessão
industrial esta regra só vale para a má-fé do acessor (Arts. 1334º e 1337º do CC) no caso de
acessão mobiliária. Quanto ao resto valerá o princípio do maior valor para se determinar a
quem o conjunto pertence. Na acessão industrial imobiliária deparamo-nos com a regra da
primazia do solo (que seria a consequência lógica do princípio da individualização) que vale
para a incorporação feita em terreno próprio com materiais alheios (Art. 1339º do CC) e
para os casos de incorporação de má-fé (Arts. 1341º, 1342º, nº2 e 1343º a contrario sensu
do CC). Já para os casos de boa-fé, desde que não haja culpa dos donos dos materiais alheios,
vale a regra do maior valor (Arts. 1340º, 1342º, nº1 e 1343º do CC).

Também o surgimento de novas coisas pela sua transformação, confusão com outra coisa
ou especificação é referido neste contexto. E, ainda, a compatibilização do princípio da
especialidade ou individualização com a propriedade horizontal, a superfície e as servidões
(na medida em que possam pôr em causa a extensão do direito que incide sobre o solo a
todas as partes a este conexas) e com a compropriedade (em que não existe individualização
do objeto físico, mas antes do objeto jurídico do direito) é igualmente tratada a este
propósito.

Ainda como decorrência da ideia de determinação, insere-se aqui a exigência de atualidade


da coisa. Não existem direitos reais sobre coisas futuras, nem sobre coisas absolutamente
futuras, nem sobre coisas ainda relativamente futuras para determinada pessoa. A ratio
última deste princípio reside, também aqui, no facto de não se poder exercer
imediatamente o poder sobre uma coisa futura. O princípio da atualidade explica também
a razão por que os direitos reais se extinguem logo que perece a coisa (seu objeto) sobre
que incidem (Ex.: O Art. 1476º, nº1 d) do CC, nos termos do qual o usufruto se extingue pela
perda total da coisa). Diz-se que só há direito real em face de coisas presentes, que existam
e que estejam em poder do alienante. Não existem coisas enquanto elas não existem ou
não estão disponíveis no património do alienante.

Por fim, quanto à ideia de totalidade, o direito real abrange todas as partes integrantes do
objeto do direito. Os elementos componentes são aqueles que não se podem separar sem
destruir a coisa (Art. 204º, nº3 do CC para os imóveis) e distinguem-se de elementos
acessórios ou integrantes, que não estão ligadas à estrutura da coisa.

3. Princípio da compatibilidade ou da exclusão

O princípio da compatibilidade ou da exclusão, determina que apenas pode existir um


direito real na medida em que seja compatível com outro direito real sobre a mesma coisa,
ou seja, na medida em que ele não seja excluído por força de um prevalente ou pré-existente
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jus in re. Os critérios da compatibilidade variam consoante o tipo de direitos que está em
causa. Assim, a propriedade plena é incompatível com outra propriedade sobre a mesma
coisa, o mesmo acontecendo com dois usufrutos, o que não colide com a possibilidade de
contitularidade, em que o direito incide sobre uma quota ideal do objeto ou incide sobre
todo o objeto, tendo dois titulares, mas é só um direito.

O fundamento deste princípio reside em que um poder direto e imediato, com determinado
conteúdo de utilidades, tende a excluir qualquer outro poder direto e imediato que
comporte o mesmo conteúdo de utilidades, não podendo conciliar-se os dois direitos
apenas no momento do cumprimento, como acontece com os direitos de crédito. Porém,
não significa que não possa existir compatibilização. Quando é que existe uma
compatibilidade dos direitos reais? Existirá uma compatibilidade entre eles, quando o poder
conferido sobre a coisa a um titular do direito real não impeça o outro titular do exercício
do seu poder que lhe foi conferido. Esta compatibilidade não se verifica nos direitos reais
com funções diferentes como os direitos reais de gozo e os de garantia, mas apenas entre
os direitos reais do mesmo género como nos direitos reais de gozo entre si. – Ex.: A partir da
propriedade pode estabelecer-se um usufruto, bem como a partir de um usufruto se poderá́
constituir um direito de servidão, desde que seja servidão passiva, constituída sobre o prédio
em usufruto em benefício de outro prédio (Art. 1460, nº2 do CC). – Contudo, não há um
concurso de direitos nem problemas de compatibilização entre um direito real de certa
espécie sobre uma parte alíquota de um bem e um segundo direito real, da mesma espécie
do primeiro, sobre outra parte alíquota deste bem, de acordo com o fenómeno da
compropriedade. Não existe uma compatibilização porque o objeto dos dois direitos é
distinto. Mas, tratando-se de concurso de direitos de preferências ou de penhores,
hipotecas, aqui já deverá existir esta compatibilidade, uma vez que sobre o mesmo bem
incidem os mesmos direitos e as mesmas utilidades. Acontece que este conteúdo é
essencialmente um direito de aquisição que admite concorrência de direitos congéneres
desde que exista uma escala de graduação, que resulta:
• Do Art. 422º do CC – direitos de preferência;
• Do Art. 686º, nº1 do CC – hipoteca;
• Do Art. 745º e ss. do CC – privilégios;
• Do Art. 759º, nº2 do CC – direito de retenção;

A concretização dos critérios de compatibilização ou exclusão é posta em confronto com a


existência de alegadas exceções a esse princípio.

4. Princípio da elasticidade ou da consolidação

Segundo este princípio, o direito real tende a abranger o máximo de utilidades que um
direito daquele tipo propicia ao titular e, portanto, consentindo embora uma limitação
desse conteúdo de utilidades (legal, judicial ou negocial), que se pode comprimir
(elasticidade dita “passiva”), tende a expandir-se (ou a reexpandir-se) até ao máximo de
faculdades que abstratamente contém (elasticidade “ativa”).

A elasticidade é, desde logo, uma caraterística da propriedade, enquanto direito real


máximo. A propriedade é o “direito-base”, a partir do qual as onerações se podem
constituir, e reexpande-se quando aquelas se extinguem.

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Este princípio não tem validade para todos os direitos reais, na medida em que apenas faz
sentido para aqueles que permitam uma sua oneração ou limitação, isto é, um gravame
mais restrito que limita o seu conteúdo de utilidades. Assim, o princípio da elasticidade ou
da consolidação vale, desde logo, para a propriedade e para o usufruto, a partir dos quais
se pode constituir, por exemplo, uma servidão ou uma hipoteca. E vale também para o
direito de superfície. Mas já não vale para direitos reais de garantia ou de aquisição, que
não têm uma estrutura “elástica” de poderes, que possa limitar-se e expandir-se.

A. Princípios ligados ao lado externo do direito real


1. Princípio da tipicidade fechada (taxatividade ou numerus clausus) dos direitos reais

Como primeiro princípio ligado predominantemente ao lado externo do direito real


encontramos a tipicidade fechada, taxatividade ou numerus clausus.

A exposição deste princípio começa com uma exposição sobre a ideia de tipo na ciência do
direito, o pensamento tipológico e diversas espécies de tipos, e uma remissão para outros
ramos de direito que conhecem uma tipicidade legal. Na prática social e económica, em
resultado de caraterísticas do direito real como a sua eficácia absoluta, mas também pela
sua função económica, os direitos reais tendem a oferecer-se em tipos correspondentes a
determinados conteúdos de utilidades das coisas para a pessoa, com certa estabilidade e
permanência. Se a tipicidade se traduz no aparecimento dos direitos sobre as coisas,
oponíveis a terceiros que não intervieram na sua definição, mas em determinados tipos, a
ideia de numerus clausus, tipicidade fechada ou taxatividade encerra esses tipos na
enumeração ou definição de direitos reais resultante do direito objetivo, e em particular da
lei. Não obstante, este princípio não significa que a doutrina ou a jurisprudência não possa,
por interpretação ou integração da lei, entender que determinadas figuras correspondem a
direitos reais. E não obsta, também, à previsão legal de tipos cujas caraterísticas deixam
espaços de conformação à autonomia privada – denominados por vezes como “tipos
abertos”, como é exemplo claro o caso das servidões prediais.

Existe uma discussão entre nós, no plano de iure condendo, sobre a justificação e a
conveniência da consagração do numerus clausus dos direitos reais, embora esta seja a
solução claramente predominante na maioria das ordens jurídicas europeias. Também na
nossa doutrina se fizeram ouvir vozes criticando este princípio no plano do direito a fazer
ou defendendo uma sua reponderação.

A justificação do princípio de iure condendo é feita, normalmente, chamando a atenção


para o facto de os direitos reais serem absolutos e, como tal, importarem restrições de
liberdade para terceiros que não participaram na sua modelação. Pelo que não se
compreende que quaisquer particulares, por acordo entre si, possam, sem consentimento
dos atingidos, criar um agravamento das situações de liberdade para os restantes membros
da comunidade. Isso só deve ser possível onde e quando a lei entenda que corresponde a
interesses públicos, ou pelo menos a interesses dignos de proteção no aproveitamento das
coisas, dando expressão a esse entendimento através da consagração de um tipo. O
princípio do numerus clausus é, pois, fator de estabilidade e de segurança também para os
terceiros afetados, protegendo a sua liberdade negativa.

Ana Luísa Martins


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Acresce que a previsão de direitos de exclusão sobre coisas, oponíveis a todos os outros,
correspondente ao seu aproveitamento social e económico, é, em regra, matéria ligada a
interesses superiores de ordem pública, que, por isso, se compreende seja regulada
imperativamente pela lei. A consagração de um “numerus apertus” de direitos reais,
conduziria, provavelmente, a uma indesejável proliferação de uma grande variedade de
direitos reais, muitos possivelmente até ressuscitando alguns dos direitos reais
característicos de uma estrutura feudal da propriedade, que o próprio legislador
constitucional quis abolir.

Criticamente, costuma apontar-se a limitação à autonomia privada e uma suposta restrição


às possibilidades de livre aproveitamento económico e social das coisas, com
oponibilidade a terceiros, como desvantagens do princípio da taxatividade.

A tipicidade não é apenas caraterística dos direitos reais, mas que é um princípio estrutural
caraterístico de bens transmissíveis, cuja consagração no domínio do direito das coisas se
encontra consolidada e que serve interesses de segurança também na circulação dos
direitos sobre as coisas. Isto sendo certo que existe uma oferta ampla de tipos de direitos
reais, e que existem espaços de livre conformação autónoma, mesmo dentro do princípio
do numerus clausus, seja por limitações obrigacionais, seja mesmo por limitações de tipo
real. Pelo que a capacidade de inovação não deixa, mesmo com tal princípio, de ser
preservada.

Não alinhamos nas posições críticas do princípio da taxtividade ou numerus clausus, embora
reconhecendo que não se trata de matéria necessariamente caraterística dos direitos reais,
antes correspondendo, em grande medida a uma opção de política e de técnica legislativa
nesta área. Este é, hoje, o entendimento dominante na nossa doutrina.

Notamos, depois, a consagração legal expressa do princípio da taxatividade, no Art. 1306º


do CC. A formulação do Art. 1306º, nº1 do CC, na parte em que se refere às “figuras
parcelares” da propriedade, baseia-se ainda na ideia de “desmembramento” da
propriedade como forma de criação de direitos limitados, que não corresponde hoje a
nenhum dos tipos de direitos reais limitados, embora possa ter utilidade como forma de
designação do âmbito da proibição. A concretização do sentido da taxatividade exige a
análise da sua aplicação aos diversos elementos definidores dos direitos reais, que
contendem com a extensão das utilidades conferidas ao seu titular. Existem duas vertentes
desse princípio: por um lado, a limitação aos tipos previstos, que impede as partes de
criarem um direito real não correspondente a esse tipo. Por outro lado, a proibição de
alteração do tipo, que impede a modificação do tipo, sem a qual a própria imposição do
tipo perderia eficácia prática. A concretização dos limites da proibição de modificação do
tipo exige, antes de mais, a análise do tipo de direito real, para ver em que medida este é,
ou não, “aberto”, isto é, em que medida consente espaços de modelação pelos particulares.
Há, assim, que discernir, para determinar os limites da alteração do tipo, as modificações
permitidas e as não permitidas.

Seguidamente, ilustramos a aplicação do princípio da taxatividade, dando exemplos de


casos de violação do princípio do numerus clausus, e analisando as consequências dessa
violação: a nulidade e a conversão ope legis da limitação numa restrição ao direito de
propriedade (isto é, numa vinculação) com eficácia meramente obrigacional, conversão à
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qual se não aplicará, portanto, o regime geral do ónus da prova resultante do Art. 293º do
CC, mas permitindo a prova em contrário da conversão188.

Embora a questão tenha sobretudo cabimento na exposição das causas de produção de


efeitos reais, importa distinguir o alcance do numerus clausus dos direitos reais de uma
pretensa taxatividade dos negócios com eficácia real. Na realidade, o primeiro não implica
necessariamente o numerus clausus dos contratos reais quoad effectum, translativos ou
constitutivos desses direitos das coisas, não existindo nenhuma dependência entre a
questão do numerus clausus ou numerus apertus dos negócios com eficácia real e a questão
da taxatividade dos direitos que incidem sobre as coisas: os direitos reais típicos podem
constituir-se por negócios atípicos ou inominados.

2. Princípio da transmissibilidade

No que toca ao princípio da transmissibilidade dos direitos reais, sendo estes bens
transmissíveis, que constituem ativos patrimoniais cujo valor é muitas vezes concretizado
pelo seu valor de troca, a sua transmissibilidade é um princípio ordenador dos direitos reais.
A transmissibilidade está garantida constitucionalmente, no Art. 62.º, nº1 da CRP, que
reconhece a todos o direito à transmissão, em vida ou por morte, da propriedade.

Este princípio significa que a ligação entre os direitos reais e o seu titular é em regra cindível,
podendo ser quebrada por vontade do titular ou por outra causa de transmissão. Tal
princípio implica a alienabilidade e a hereditabilidade de princípio dos direitos reais.
Cumpre notar, ainda, que este princípio não tem validade absoluta, mas só tendencial, pois
comporta exceções:
1) Usufruto – Nos termos do Art. 1443º do CC, este direito não pode exceder a vida do
usufrutuário e não é, por isso, hereditável. É alienável entre vivos, prevendo o Art.
1444º do CC o seu “trespasse” a terceiro, definitiva ou temporariamente. Esta
transmissão apenas produzirá efeitos durante o prazo pelo qual foi constituído
inicialmente o usufruto, ou, se tiver sido constituído por tempo indeterminado, até
quando falecer a pessoa a cuja vida o usufruto estava ligado. Já em caso de falecimento
do transmissário do usufruto, discute-se o regime aplicável, parecendo que se justifica
aqui a transmissão aos seus herdeiros, embora sempre limitado o usufruto pelo prazo
estipulado ou pela vida do primitivo usufrutuário;

2) Direito de uso e habitação – A limitação à transmissibilidade encontra-se


expressamente prevista no Art. 1488º do CC. O seu fundamento está, a nosso ver, na
funcionalização do direito de uso e habitação, revelada pelo seu âmbito e conteúdo,
limitados pela medida das necessidades do titular ou da sua família, e não incluindo,
assim, a possibilidade de fruição por intermédio de um transmissário. O direito de uso
e habitação é forçosamente intransmissível e está ligado à satisfação das necessidades
do seu titular ou da sua família;

3) Servidões prediais – As servidões prediais caracterizam-se pela imposição de um


encargo a um prédio em benefício de outro prédio. Não são admissíveis, como direitos
reais, as servidões pessoais, em benefício de uma pessoa ou incidentes sobre uma
pessoa com independência da titularidade de um prédio cujas utilidades são afetas a
outros prédios. Definindo o Art. 1543º do CC servidão como encargo imposto num
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prédio em proveito exclusivo de outro prédio pertencente a dono diferente, não são
separáveis dos prédios a cujo proveito se destinam, de modo que o seu titular não pode
transmitir isoladamente, só o pode fazer conjuntamente com a transmissão do prédio
a cujo proveito exclusivo ela está afetada. Isto decorre do facto de o direito de servidão
não estar ligado diretamente ao respetivo titular, mas através de um quid intermédio
consistente na titularidade do direito real por força do qual se tem a servidão. O Art.
1545º do CC formula a regra da inseparabilidade das servidões, importando uma
restrição ao princípio da transmissibilidade;

4) Direitos legais de preferência – Direitos reais de aquisição ligados por disposição legal
a determinadas situações (como comproprietário, arrendatário, proprietário do solo,
proprietário de prédio onerado com servidão de passagem). Estes direitos de
preferência não podem ser transmitidos isoladamente, não podendo ceder-se o direito
de preferência sem a situação que legalmente é determina. Trata-se de uma
inseparabilidade com semelhanças em relação à das servidões;

Tratamos, por fim, das restrições convencionais à transmissibilidade de direitos reais,


perguntando se pode excluir-se, por convenção das partes a transmissibilidade dos direitos
reais. Ponderando a questão perante os dados jurídico-positivo existentes, afastamos a sua
solução pela aplicação analógica das normas sobre cessão de créditos (Arts. 577º, nº2, e
588º do CC), no sentido de concluir pela inoponibilidade das cláusulas de
intransmissibilidade a terceiros, a não ser que estes a conhecessem no momento da
aquisição. Com efeito, tais cláusulas não podem produzir efeitos reais por tal implicar uma
modificação do tipo em violação do Art. 1306º, nº1 do CC, na vertente de proibição de
modificação do tipo: a cláusula de inalienabilidade introduziria uma restrição ao direito de
propriedade que não está prevista em geral na lei. Não é, assim, possível inserir na
propriedade uma indisponibilidade resultante de o seu titular ter assumido por contrato
essa limitação, e, caso tal seja estipulado, a cláusula só pode ter efeitos obrigacionais, entre
vendedor e comprador, mas não em relação a terceiros que adquiram do comprador que se
obrigara a não transmitir. Só não é assim se a lei acolher a previsão da intransmissibilidade,
como acontece com o regime das substituições fideicomissárias, que comporta em certos
termos uma inalienabilidade, figura admitida nas doações e nos testamentos, nos Arts. 962º
e 2286º e ss. do CC. E também o Art. 959º do CC admite a possibilidade de o doador se
reservar, ele próprio, o direito de dispor de coisa determinada, podendo esta reserva ser
registada, para ter eficácia em relação a terceiros. Fora dessas hipóteses, a cláusula de
inalienabilidade não produzirá efeitos reais.

Vamos agora passar a uma exposição sobre os sistemas de transmissão de direitos reais,
designadamente o “sistema do título e do modo”, o “sistema do modo” e o “sistema do
título”. Mais do que uma perspetiva histórica, privilegiamos a explicação sob uma
perspetiva funcional ou teleológica, do ponto de vista dos interesses subjacentes à
titularidade e transmissão dos direitos reais. Enquadramos, assim, a exposição em dois
interesses subjacentes ao interesse de estabilidade ou de estabilização que preside à tutela
dos direitos reais. Estabilização significa impossibilidade de contestação, o que implica
“regularidade da conformação e indiscutibilidade dessa conformação”, isto é, do efeito real.
Estes dois interesses estão ligados, pois a definitiva indiscutibilidade resulta da autêntica
regularidade.

Ana Luísa Martins


1ª Turma
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Apuramos, neste momento, a noção de “título” que, em sentido amplo, é o fundamento
jurídico ou a causa que justifica a aquisição. Pode incluir, em princípio, todas as razões em
que se funda a aquisição de um direito real, sendo, em sentido estrito, o ato que funda a
vontade de transmitir ou constituir, e de adquirir, o direito real. Já o “modo” é o ato que
concretiza e executa a vontade de atribuir e de adquirir o direito real, firmada no título, ato
pelo qual se realiza efetivamente a atribuição e a aquisição do direito real, ou ato ad hoc de
produção do efeito real e não apenas expressão da vontade de o obter.

• “Sistema do título e do modo” – O referido compromisso entre o interesse da


regularidade e o interesse da indiscutibilidade faz-se pela “dupla dependência” do
efeito real tanto do título como do modo. Neste sistema o título está separado do
modo, mas não abstrai dele, uma vez que a produção do efeito real depende tanto do
modo como do título. Há uma exigência de causalidade, mas não é suficiente para a
produção do efeito real a causa de atribuição consistente no título;

• “Sistema do modo” (vigente na Alemanha) – Verifica-se que o interesse na


regularidade é sacrificado, pelo menos num primeiro momento, ao interesse da
indiscutibilidade, pela irrelevância de princípio da justa causa de atribuição, instituindo-
se para isso uma separação do modo e a abstração deste em relação à causa da
transmissão ou constituição do direito real. Há não só uma cisão entre título e modo,
mas abstração do efeito real em face do título;

• “Sistema do título” (vigente em Portugal - Art. 408º, nº1 do CC) – Em princípio sacrifica-
se o interesse na indiscutibilidade ao interesse na regularidade, não só excluindo
qualquer separação entre título e modo, como considerando o efeito real causado pelo
ato em que se exprime a vontade de atribuir ou de adquirir o direito real, ou seja, pelo
título, regendo um estrito princípio da causalidade. A transmissão ou constituição do
direito real depende da existência, validade e procedência do título, isto é, e em regra,
do contrato que constitui a justa causa de atribuição e apenas desse título. O negócio
é, assim, único, simultaneamente obrigacional e real quoad effectum, com uma
“unidade do processo de atribuição ou disposição” do direito real. O contrato é fonte
de efeitos obrigacionais e de efeitos reais, os quais não se produzem se não existir, não
for válido ou eficaz.

Esta exposição dos sistemas de transmissão dos direitos reais é, em nosso entender,
imprescindível para a compreensão dos princípios seguintes.

3. Princípio da causalidade

Segundo o princípio da causalidade, princípio oposto ao princípio da abstração, a produção


do efeito real depende da existência, validade e procedência de uma “justa causa de
atribuição”, consistente no título. A constituição ou transmissão do direito depende da
causa jurídica que precede a produção desse efeito. Este princípio distingue-se do que
vigora no sistema germânico, em que não só se distingue e separa o negócio obrigacional
do negócio real ou de disposição, como o efeito real é consequência apenas deste negócio,
que fundamenta o modo de aquisição, abstraindo a sua produção da validade e eficácia do
negócio que é causa da disposição. Porém, nos sistemas de “dupla dependência” ou do

Ana Luísa Martins


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título e do modo, vigora uma exigência de causalidade, conquanto também se separe o
modo do título.

O princípio da causalidade resulta do Art. 408º, nº1 do CC e, para os mais importantes


contratos com efeitos reais, das normas que os preveem: Arts. 879º e 954º do CC,
respetivamente para a compra e venda e para a doação. Este princípio dá primazia ao
interesse na regularidade da produção do efeito real, pois a falta de eficácia da causa
impede essa produção, não deixando para outros meios as consequências corretivas dessa
irregularidade. Relativamente ao princípio da abstração, embora pareça prima facie
proteger mais os interesses do causado, nem resulta, na verdade, das fontes romanas, nem
faculta uma proteção tão mais acentuada, tendo em conta, por um lado, a necessidade de
corretivos para os casos de falta de causa válida e eficaz, mediante o instituto do
enriquecimento sem causa, e, por outro lado, a possibilidade, nos sistemas em que vigora a
causalidade, de proteção dos terceiros da boa-fé, mesmo que em exceção àquela exigência.

Importa justamente analisar os casos excecionais, em que o nosso sistema admite uma
aquisição apesar de não existir uma causa válida e eficaz:
• “Efeito central do registo” - A ilegitimidade do alienante e, portanto, a consequente
nulidade da aquisição do terceiro, não é oponível ao adquirente que registe, quando a
anterior transmissão não está ainda registada;
• Art. 243º do CC – Prevê a inoponibilidade da nulidade proveniente de simulação a
terceiros de boa-fé;
• Art. 291º do CC – Prevê a inoponibilidade da nulidade ou anulação a terceiros de boa-
fé;

Deve, porém, notar-se que o nosso sistema se caracteriza justamente por limitar as
exceções à causalidade, dando prevalência, com muito limitadas exceções, ao interesse na
regularidade da aquisição, perante o interesse na sua indiscutibilidade. Assim, não existe
qualquer exceção genérica para os móveis, ao contrário do que acontece em sistemas como
o francês, em que “posse vale título. Pelo contrário, a regra geral é a de que o proprietário
legítimo pode reivindicar coisas móveis mesmo ao possuidor, como a qualquer pessoa que
não tenha adquirido por uma causa válida e eficaz (Art. 1301º do CC).

4. Princípio da consensualidade

O princípio da consensualidade é uma decorrência do sistema do título para a produção do


efeito real, consagrado no Art. 408º, nº1 do CC, segundo o qual a constituição e transmissão
de direitos reais se dá “por mero efeito do contrato”, salvas as exceções previstas na lei.

Este princípio tem como sentido que, nos direitos reais que podem ser convencionalmente
estabelecidos, é suficiente para a produção do efeito real, em regra, um título, que é o
contrato, não sendo necessário um modo. O título é, em regra, não só condição necessária,
mas também suficiente para a produção do efeito real, o qual se produz, neste sentido, ex
contractu. Diversamente do exigido noutros sistemas, não é necessária a tradição da coisa
para a transferência de um direito real sobre móveis, nem se exige para os imóveis outro
ato, como o registo, bastando o contrato, constitutivo ou translativo de direitos reais, para
que estes se constituam ou se transfiram.

Ana Luísa Martins


1ª Turma
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2021/2022
O princípio da consensualidade, tal como já foi referido anteriormente, está ligado ao
sistema do título, mas não vigora nem no sistema do modo, nem no sistema do título e do
modo. O sistema do título dá maior peso à vontade das partes, considerando-a bastante
para efetuar a constituição ou transmissão dos direitos reais, entendendo-se que, pela
leveza e celeridade que imprime à transferência ou constituição dos direitos reais,
fundando-as só na vontade das partes, constituiu um progresso, primeiro consagrado no
direito francês, daí expandindo-se para outras ordens jurídicas.

Importa notar que a expressão “princípio da consensualidade” tem outro sentido, idêntico
com o princípio da liberdade de forma. Nessa aceção, são consensuais os negócios que não
carecem, para a sua eficácia, de formalismo especial (Art. 219º do CC). Não é neste sentido,
relativo à formação do negócio, que se fala no princípio da consensualidade neste contexto,
mas antes num sentido relativo aos efeitos reais do negócio.

Existe uma discussão sobre o alcance e imperatividade deste princípio. Há vozes que põem
em causa o entendimento que, entre nós, maioritariamente lhe tem sido dado em face do
disposto no Art. 408º do CC. Sustenta-se que as exceções a que alude a parte final do nº1
do Art. 408º do CC “abrangem um conjunto impressionante de contratos translativos”, de
tal modo que esse preceito é transformado em regra residual e supletiva, sendo o princípio
da transmissão solo consensu “quase um mito”.

A este propósito, analisam-se também as exceções ao princípio da consensualidade: seja


em casos em que a lei exige a prática de um modo, seja nos casos em que se difere
convencionalmente a transmissão da propriedade até à prática de determinado ato. O
enquadramento destes casos como exceções ao princípio da consensualidade, ou ainda suas
manifestações, não sendo o fundamento do efeito real apenas no contrato contrariado pelo
diferimento da sua produção é, em especial, objeto de discussão, existindo quem ponha em
causa mesmo a possibilidade de exceções convencionais, entendendo que o princípio é
imperativo.

5. Princípio da publicidade

O último princípio de que tratamos é o princípio da publicidade. Este princípio é imposto


pelo facto de o direito real ser um direito absoluto, com eficácia erga onmes, pelo que é
conveniente e útil que todos os interessados possam conhecer a sua existência. A
publicidade tem uma ligação ao tipo de sistema de produção de efeitos reais, dependendo
o seu papel dessas determinantes de direito material.

A cognoscibilidade do direito real é o interesse fundamental, para salvaguarda da


segurança e celeridade do comércio jurídico, no sistema do modo. Por isso, a publicidade é
mesmo constitutiva nesse sistema. No sistema de título, como o nosso, atende-se aos
interesses das partes, sacrificando-se o interesse da segurança e celeridade do comércio
jurídico e o interesse da indiscutibilidade da posição dos terceiros, a favor do interesse da
regularidade na constituição do direito real. Daí a necessidade de uma publicidade
adequada, para defesa dos interesses de terceiros e da segurança jurídica. Mas essa
publicidade será declarativa e não constitutiva, via de regra. A publicidade pode ser
espontânea, resultando designadamente do próprio exercício do direito real, e em
particular do exercício, manifestado por sinais exteriores, do poder de facto.
Ana Luísa Martins
1ª Turma
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Importa fazer sobretudo referência aos sistemas organizados de publicidade provocada de
direitos reais, designadamente pelo registo. Tratamos, por isso, a este propósito, da
publicidade dos direitos reais, com especial referência ao regime do registo predial. Após
uma referência geral ao instituto do registo predial e à caraterização do direito registal,
indicamos a sua mais relevante fonte, o Código do Registo Predial. A definição do âmbito
do registo predial exige a exposição, com recurso ao Código do Registo Predial, dos atos
sujeitos a registo, do objeto do registo, do título e da legitimidade para registo, bem como
dos tipos de registo admitidos. Autonomizamos também um conjunto de princípios do
registo predial, que explicamos e que incluem o princípio da obrigatoriedade, introduzida
pelo Decreto-Lei nº116/2008, de 4 de julho, o princípio da legalidade, o princípio da
instância, o princípio do trato sucessivo e o princípio da prioridade.

A nossa lei procura, em geral, satisfazer os interesses de terceiros e a segurança do comércio


jurídico imobiliário, no quadro do nosso “sistema do título”, através de um registo de valor
meramente declarativo, condição da oponibilidade dos atos sujeitos a registo em relação a
terceiros (Art. 5º, nº1 do CC). É este o “efeito central do registo”, que deve ser distinguido
de: outros efeitos relativos à hipótese de outras normas (como a do Art. 291º do CC), do
efeito constitutivo previsto, por exemplo, para a hipoteca (Arts. 687º do CC, e 4º, nº1, do
Cod. Reg. Pred.) ou do efeito presuntivo da titularidade do direito (Art. 7º do Cod. Reg.
Pred.).

Trata-se, a este propósito, da relevante noção de terceiros para efeitos de registo, que está
ligada à determinação do alcance e da própria função do registo. O STJ, no Acórdão de
uniformização de jurisprudência nº15/97, de 20 de maio de 1997, decidiu que “terceiros,
para efeitos de registo predial, são todos os que, tendo obtido registo de um direito sobre
determinado prédio, veriam esse direito ser arredado por qualquer facto jurídico anterior
não registado ou registado posteriormente”, adotando, portanto, um conceito amplo de
terceiros. Em 1999, o Acórdão de uniformização de jurisprudência nº3/99, de 18 de maio
de 1999, decidiu rever a doutrina daquele aresto, dizendo que “terceiros, para efeitos do
disposto no Art. 5º do Cod. do Reg. Pred., são os adquirentes de boa-fé, de um mesmo
transmitente comum, de direitos incompatíveis, sobre a mesma coisa”. O STJ passou a exigir
um “mesmo transmitente comum”, bem como a boa-fé do terceiro, considerando, no caso
concreto, que o exequente penhorante não era terceiro em relação ao adquirente anterior
de direitos sobre o mesmo prédio ou fração, que não registara a sua aquisição. Perante esta
alteração, o legislador interveio, pelo DL. nº533/99, de 11 de dezembro, acrescentando ao
Art. 5º do Cod. Reg. Pred. um novo nº4, que dispõe: “Terceiros, para efeitos de registo, são
aqueles que tenham adquirido de um autor comum direitos incompatíveis entre si”.

Até pelo contraste com o teor da jurisprudência que fora fixada pelo Acórdão de 1999
citado, ficou claro que o legislador não quis exigir, como requisitos para a proteção do
terceiro registante, nem a sua boa-fé nem a onerosidade da aquisição do terceiro. A
referência a um “autor comum”, em vez de um “transmitente comum” é, a nosso ver,
literalmente compatível com a inclusão na noção de terceiros também daqueles que
adquirem um direito mesmo sem intervenção voluntária do causante, posição que não
temos dúvida em considerar preferível e em conformidade com a razão de ser da limitação
resultante da falta de registo. Apesar desta clarificação, a divergência de opiniões persiste,
na doutrina e na jurisprudência, não já em relação à adoção de uma noção “amplíssima” de
terceiros, mas sim quanto à necessidade de o terceiro registante estar de boa-fé, e de
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1ª Turma
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adquirir onerosamente, bem como quanto à exigência de uma aquisição baseada numa
atuação voluntaria do “autor comum”.

Existe um setor da doutrina que exige a onerosidade da aquisição do terceiro, e que este
esteja de boa-fé, para que possa ser “protegido” pelo registo, enquanto outros exigem
apenas a boa-fé do terceiro que primeiro regista. A posição tradicional, diversamente,
rejeita, em nome da eficácia da garantia dada pelo registo, a exigência tanto da onerosidade
como da boa-fé do terceiro registante, como condições para que este possa adquirir com
base no seu registo. Temo-nos inserido nesta última posição, que parece em conformidade
com a letra da lei, com a intenção do legislador e com a intenção de não diminuir o alcance
da garantia dada pelo registo, sujeitando o registante à prova de estados subjetivos que
enfraqueceria tal garantia. Isto, embora reconheçamos que existem bons argumentos para
excluir a proteção do terceiro que conhece efetivamente a disposição anterior, seja por via
do instituto do abuso de direito, seja por se considerar que o conhecimento efetivo deve
chegar para substituir o conhecimento “presumido” do terceiro, como o que se presume
resultar da publicidade registal.

Parte II – Posse e direitos reais em especial


Capítulo I – A posse

A figura da posse encontra-se prevista no Livro III do CC, mais precisamente no seu Art.
1251º, como o “poder que se manifesta quando alguém acuta por forma correspondente
ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real”.

A interpretação deste preceito dá lugar a dois problemas fundamentais com que se vem
debatendo a doutrina: por um lado, impõe-se saber se o exercício de poderes de facto sobre
uma coisa (corpus) tem de ser acompanhado por uma especial intenção (animus possidendi)
e, por outro lado, impõe-se saber qual a natureza jurídica deste instituto jurídico.

1. Os elementos constitutivos da posse e a posição adotada pelo Código Civil


Português

Existem dois tipos de sistemas possessórios: o sistema subjetivista e o sistema objetivista.

Savigny defendeu que a posse romana exigia, não apenas um poder de facto sobre a coisa,
mas que esse poder se exercesse em termos de domínio (animus dominandi). Por esta razão,
a posse decompor-se-ia em dois elementos: o corpus, que se traduz na possibilidade física
de exercer uma influência imediata sobre uma coisa e de excluir toda a influência estranha
(elemento objetivo ou material) e o animus, em que o poder material é exercido como se
aquele que o exerce fora o proprietário da coisa (elemento subjetivo). Mais tarde,
considerando inadmissível a restrição do animus ao direito de propriedade, alguns autores
alargaram o elemento subjetivo à vontade de exercer o direito real como seu titular (animus
possidendi), ao passo que outros optaram por considerá-lo como intenção de exercer sobre
a coisa um poder no próprio interesse (animus sibi habendi).

O sistema objetivista, que teve como porta-voz Ihering, partiu do poder de facto exercido
sobre a coisa, opondo-se à espiritualização da posse. Para esta posição, toda a relação
material entre uma pessoa e uma coisa é uma relação possessória, a não ser que a lei diga
Ana Luísa Martins
1ª Turma
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o contrário, relegando-a para a mera detenção. Não obstante, para haver posse não bastaria
um qualquer contacto com a coisa, é necessário que se verifique uma certa estabilidade.
Importa mencionar que esta teoria objetivista não está destituída de qualquer elemento
intencional, já que os poderes de facto têm de resultar de uma atuação voluntária. Tanto é
posse o poder de facto que tenha por base um título de direito real, como um que assente
num direito de crédito.

A posição subjetivista é, atualmente, ainda maioritária, apesar existe uma dualidade entre
a Escola de Coimbra que opta pela posição subjetivista e a Escola de Lisboa que adota a
teoria objetivista. Este “duelo” reproduz-se quando a questão é a de saber qual a posição
adotada pelo legislador português. Parte significativa da doutrina e da jurisprudência
considera ter o legislador português optado pela posição subjetivista, uma vez que apesar
de o animus não estar ipsis verbis consagrado no Art. 1251º do CC, a essencialidade da sua
presença deriva de outras disposições, nomeadamente do Art. 1253º do CC. Segundo o Dr.
Orlando de Carvalho no texto do Art. 1251º do CC, o animus parece que não avulta, diluído
numa como que pura caraterização da catividade empírica. Não existe corpus sem animus
nem animus sem corpus, há uma relação biunívoca. O corpus é o exercício de poderes de
facto que intende uma vontade de domínio, de poder jurídico-real e o animus é a intenção
jurídico-real, a vontade de agir como titular de um direito real, que se exprima de certa
atuação de facto. Nos termos do Art. 1253º a) do CC, são detentores os que atuam sobre a
coisa “sem a intenção de agir como beneficiários do direito”. Já para se atingir o estatuto
mais exigente de possuidor, será necessário associar ao corpus a intenção de atuar como
beneficiário do direito real correspondente. E, para além do disposto no Art. 1253º do CC,
ainda podem adiantar-se outros argumentos, nos termos do nº2 do Art. 1252º do CC,
presume-se a posse naquele que exerce os poderes de facto sobre a coisa, este preceito não
faria muito sentido se o corpus bastasse para afirmar a presença da posse. Em suma, o CC
português adota uma posição subjetivista, embora mitigada. Assim, dois são os elementos
constitutivos da posse: em primeiro lugar, o corpus e, em segundo lugar, tem de juntar-se o
animus.

Segundo as alíneas do Art. 1253º do CC, os detentores pertencerão a três categorias que
podem entrecruzar-se na posição jurídica daquele que exerce poderes de facto (corpus)
sobre coisa certa e determinada sem, contudo, apoiar-se na intenção de exercer um direito
real (animus):
1) Os que praticam atos sobre a coisa sem a intenção de agir como beneficiários do direito.
2) Os que praticam sobre a coisa atos de mera tolerância, que são os atos praticados por
um indivíduo que não é o titular da coisa ou do direito sobre que incidem, e que, em
virtude de motivos de amizade de parentesco ou de vizinhança, a lei supõe praticados
com o consentimento daquele titular e não significam a afirmação de um direito
próprio. – Ex.: O sujeito que atravessa um prédio propriedade de um vizinho amigo é
apenas detentor e não possuidor. Os atos de mera tolerância nunca poderão dar origem a
uma situação possessória, por lhes faltar o animus possidendi.
3) Os que representam ou são mandatários do possuidor e, de um modo geral, todos os
que possuem em nome de outrem. – Ex.: Casos do arrendatário, do comodatário ou do
depositário.

Por fim, embora, o CC português adote a posição subjetivista, a verdade é que algum
esbatimento se imprime na discussão quando vemos que a alguns detentores o legislador
Ana Luísa Martins
1ª Turma
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optou por estender a tutela possessória: locatário (Art. 1037º, nº2 do CC), parceiro pensador
(Art. 1125º, nº2 do CC), comodatário (Art. 1133º, nº2 do CC), depositário (Art. 1188º, nº2
do CC) e o locatário financeiro (Art. 10º, nº2, al. c) do CC).

2. Âmbito da posse

Em termos de que outros direitos reais pode a posse ser exercida? Não há dúvida de que
pode ser exercida em termos de qualquer direito real de gozo, restam, então, os direitos
reais de aquisição e os direitos reais de garantia. A expressão “qualquer direito real de gozo”
exige uma precisão. Nos termos do Art. 1280º do CC, as acotoes de defesa da posse não são
aplicáveis à defesa das servidões não aparentes, salvo quando a posse se funde em título
provindo do proprietário do prédio serviente ou de quem lho transmitiu.

Quanto à possibilidade de constituir-se uma relação possessória com uma coisa em termos
de um direito real de aquisição, parece ser duvidosa. Sendo direitos cujo exercício permite
a aquisição de um direito real de gozo, não parecem permitir uma prática de atos materiais
sobre uma coisa com a estabilidade necessária à verificação de corpus, esgotam-se pelo
mero exercício.

No que se refere aos direitos reais de garantia interessam apenas aqueles que permitem o
exercício de poderes materiais sobre a coisa: o penhor e a retenção. O primeiro não tem
relevância em matéria de posse imobiliária, mas o segundo já a tem. Se o corpus implica
necessariamente o poder de uso e/ou de fruição, então não há como afirmar uma relação
possessória entre o retentor e a coisa. Porem, a presença do corpus não depende do
aproveitamento das utilidades da coisa ou dos frutos por ela produzidos, mas sim de um
poder de facto, que se verifica tanto nos direitos reais de gozo, como em alguns direitos
reais de garantia, que pressupõem necessariamente a detenção material de uma coisa (Arts.
669º e 754º do CC). Para o Dr. Pires de Lima e para o Dr. Antunes de Varela, as garantias
reais são direitos acessórios dos direitos de crédito e dificilmente se concebe que possam
constituir-se ou fazer-se valer independentemente dos direitos de que dependem, por isso
na usucapião se referem os direitos reais de gozo e não os de garantia (Art. 1287º do CC).
Um dos preceitos legais que não pode ser contornado é o Art. 670º a) do CC, no qual se
afirma a faculdade de o credor pignoratício defender os seus poderes sobre a coisa através
das ações de defesa da posse e esta norma é aplicável, por remissão, ao retentor (Art. 759º,
nº3 do CC). Mais uma vez a doutrina diverge:
• Dr. Henrique Mesquita – Daquele preceito pode retirar-se que o legislador considera o
credor pignoratício e o retentor como não possuidores, aos quais deve estender a tutela
possessória
• Dr. Orlando de Carvalho – “A existência da posse parece-nos (...) indiscutível, e é o que
a lei confirma (...) (Art. 670 a) do CC), o que, por força dos Arts. 758º e 759º, nº3 do CC,
vale também para o retentor. E acrescenta a favor da sua posição a diferença de
formulação entre o Art. 670º a) do CC e, por exemplo, o nº2 do Art. 1037º do CC.
• Dr. Menezes Cordeiro – Admite a posse para todos os direitos reais que impliquem o
controlo material da coisa sobre que incidam, incluindo os direitos reais de garantia que
permitam o acossamento. Não apenas invoca o disposto nos Arts. 690º a) e 669º do CC,
mas, igualmente, a função da posse enquanto modo de tutela da ligação à coisa,
impedindo ingerências estranhas. Trata-se aqui de uma posse meramente interdital, na
medida em que não há acesso a usucapião (Art. 1287º do CC).
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Neste aspeto, concordamos com o Dr. Menezes de Cordeiro.

3. Aquisição da posse

O ato de aquisição da posse tem de conter os dois elementos definidores deste conceito,
isto é, o corpus e o animus.

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4. Caraterísticas da posse
5.1. Posse titulada e posse não titulada

Posse titulada é a que se funda num título em abstrato idóneo à aquisição do direito real
nos termos do qual se possui (Art. 1259º do CC). De acordo com o legislador, tal título não
deve padecer de vícios formais, mas pode conter enfermidades materiais, posição que
grande parte da doutrina critica, desde logo porque existem vícios substanciais que afastam
a própria posse em si, como ocorre com a simulação ou a reserva mental. Para além disso,
o título não tem, mais uma vez ao contrário do que dita a letra da lei, de se consubstanciar
num negócio jurídico. Sempre que a posse é titulada, presume-se de boa-fé (Art. 1260º, nº2
do CC) e que o possuidor o é desde a data do título (Art. 1254º, nº2 do CC).

5.2. Posse de boa-fé e posse de má-fé

A posse é de boa-fé sempre que, ao adquiri-la, o possuidor ignorava estar a lesar um direito
de outrem (Art. 1260º, nº1 do CC). Ora, ao contrário do Dr. Orlando de Carvalho, o Dr.
Santos Justo entende que só conta aqui a ignorância sem culpa. Uma vez que é de difícil
prova, a posse de boa-fé presume-se sempre que seja titulada. Pelo contrário, a posse não
titulada presume-se de má-fé.

5.3. Posse pacífica e posse violenta

A posse é pacífica quando foi adquirida sem violência, e violenta quando foi adquirida
mediante coação física ou moral (Art. 1261º do CC). A posse violenta presume-se, de forma
inilidível, de má-fé (Art. 1260º, nº3 do CC).

5.4. Posse pública e posse oculta

A posse é pública sempre que for adquirida (e não exercida, como resulta da lei) de modo a
ser cognoscível por um homem médio colocado na posição dos interessados que, em regra,
são os anteriores possuidores (Art. 1262º do CC).

5. Efeitos da posse
5.1.Presunção da titularidade de direito

O possuidor goza da presunção da titularidade do direito, a menos que exista um registo


que atribua a sua titularidade da posse a outra pessoa e seja anterior à sua aquisição por
parte do sujeito considerado (Art. 1268º do CC).

5.2.Usucapião

A usucapião verifica-se sempre que o exercício da posse pública e pacífica (Arts. 1297º e
1300º, nº1 do CC) por um determinado período de tempo leve ao nascimento de um direito
real definitivo da titularidade do possuidor, tratando-se, por isso, de uma forma de
aquisição originária do mesmo (Art. 1287º do CC). Os seus efeitos retroagem ao início do
exercício da posse, isto é, o possuidor considera-se, desde aí, titular do direito real em causa
(Art. 1288º do CC).

Ana Luísa Martins


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Ainda assim, esta não opera ope legis, carecendo de ser invocada (Art. 1292º do CC)
(embora o possa ser por terceiros – Art. 305º do CC, por analogia), judicial ou
extrajudicialmente (Art. 303º do CC, por analogia). Há quem entenda que a invocação deve
ocorrer mediante escritura de justificação notarial ou num processo de justificação que
decorre na conservatória do registo predial, e há, também, quem entenda que pode
verificar-se por qualquer forma.

Acresce que a usucapião pode ser invocada para a aquisição de qualquer real de gozo, salvo
as servidões não aparentes e os direitos de uso e habitação (Art. 1293º do CC).

O prazo de invocação da usucapião quanto à posse de imóveis, é de 10 anos no caso de ser


titulada, de boa-fé e registada, de 15 anos se for titulada, de má-fé e registada e de 20 anos
se for titulada, de má-fé e não registada (Art. 1294º do CC). No caso da posse não titulada
e, portanto, não registada, o prazo é de 15 anos se a posse for de boa-fé e de 20 anos no
caso contrário (Art. 1296º do CC). No caso dos móveis sujeitos a registo, a usucapião pode
ser intentada num prazo de 2 anos se a posse for titulada, registada e de boa-fé, de 4 anos
se for titulada, registada e de má-fé, ou de 10 anos se for não registada (Art. 1298º do CC).
Finalmente, o prazo para a invocação da usucapião quanto a móveis não sujeitos a registo
é de 3 anos se a posse for titulada e de boa-fé ou de 6 anos nos restantes casos (Art. 1299º
do CC).

A contagem do prazo é suspensa ou interrompida de acordo com o disposto nos Arts. 318º
a 322º do CC, aplicados por analogia.

6.3. Frutos

5.3.Benfeitorias

Quanto às benfeitorias necessárias, o possuidor tem sempre direito a ser indemnizado,


quer esteja de boa ou má-fé (Art. 1273º, 1ª parte do CC), mas só no primeiro caso goza do
direito de retenção até receber o pagamento (Arts. 754º e 756º, a contrario do CC). Para
além disso, o possuidor tem sempre direito a levantar as benfeitorias úteis ou, se não o

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poder fazer sem deteriorar a coisa, a ser compensado nos termos do enriquecimento sem
causa (Art. 1273º, nº1, 2ª parte do CC), só o possuidor de boa-fé podendo exercer o direito
de retenção (Arts. 754º e 756º, a contrario do CC). Finalmente, só o possuidor de boa-fé
pode levantar as benfeitorias voluptuárias, o possuidor de má-fé perde-as (Art. 1275º do
CC).

6.5. Perda ou deterioração da coisa

Se o titular do direito real intentar uma ação contra o possuidor e não puder ser invocada a
usucapião, este terá de entregar a coisa, respondendo pela sua perda ou deterioração se
tiver atuado com culpa (Art. 1269º do CC).

No caso da posse de má-fé, há quem entenda que o possuidor deve ser sempre
responsabilizado, independentemente da culpa. Porém, há quem entenda que, uma vez que
sabe estar a lesar o direito de outrem e ter o dever de entregar a coisa, o possuidor de má-
fé é um devedor em mora (Art. 805º, nº2 b) do CC), tornando-se responsável pelos prejuízos
do credor, a menos que prove que estes teriam ocorrido mesmo se a obrigação tivesse sido
observada atempadamente (Art. 807º, nº2 do CC).

6. Tutela possessória

A posse é suscetível de defesa, prevendo a lei vários meios de tutela possessória, todos
dirigidos à manutenção da situação de facto.

6.1. Meios extrajudiciais de tutela possessória

• Ação direta — Art. 1277º do CC


• Legítima defesa — Art. 337º do CC

6.2. Meios judiciais de tutela possessória

Todos os meios judiciais exigem a prova da posse que nos é facilitada pelo Art. 1252º, nº2
do CC. Para que se possa recorrer a estes meios, tem de haver um facto que viole ou
constitua uma ameaça de violação (ilegítima) da relação possessória. Este facto pode ter
natureza material ou jurídica, ter curta ou longa duração, e terá de ser acompanhado de
animus turbandi ou animus spoliandi. Dirigem-se os factos violadores da posse à
constituição de uma posse contrária à que exista sobre a coisa.

• Ação de prevenção (Art. 1276º do CC)

• Ação de manutenção (Art. 1278º do CC) – Meio adequado para reagir contra atos de
turbação (só atos materiais que diminuam, alterem ou modifiquem o gozo ou o modo
de exercício da posse, acompanhados que sejam de animus turbandi, dirigidos à
constituição de uma posse contrária à que é exercida). É necessário que o possuidor
mantenha a posse – Ex: Passagem através de prédio alheio; Destruição ou realização de
uma sementeira em prédio alheio. – O Art. 1281º, nº1 do CC dá-nos a conhecer quem é
que tem legitimidade processual ativa e quem é que tem legitimidade processual
passiva na ação de manutenção.
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• Ação de restituição (Art. 1278º do CC) – Meio adequado para reagir contra atos de
esbulho (privam o possuidor da sua posse) – Ex: A instalasse numa casa possuída por B e
impede B de a habitar; A destrói um aqueduto existente em prédio seu para conduzir águas
para o terreno de B. – O Art. 1281º, nº2 do CC indica-nos quem é que detém a
legitimidade processual ativa e passiva na ação de restituição.

Tanto na ação de manutenção, como na ação de restituição fica pendente a


procedência do pedido, por regra, de a posse ter mais de um ano (Art. 1278º, nº2
do CC). Isto é assim porque se tem entendido que a posse com duração inferior não
tem a estabilidade suficiente para merecer tutela jurídica, nem deve ser tomada
como base para presumir a titularidade do direito. Mas, quando a posse tiver menos
de um ano, ela continua a poder ser defendida através destas acotoes, só que terá
de competir com o que se dispõe nos nº2 e 3 o Art. 1278º do CC.

No que toca à questão da caducidade, a ação de manutenção, bem como a ação de


restituição, caducam se não forem intentadas dentro do ano subsequente ao facto
da turbação ou do esbulho ou ao conhecimento dele quando tenha sido praticado a
ocultas (Art. 1282º do CC conjugado com o Art. 1267º, nº1 d) do CC).

Quanto aos efeitos destas ações, estes estão disciplinados nos Arts. 1283º e 1284º
do CC.

• Ação de restituição por esbulho violento (Art. 1279º do CC) – Meio de reação célere
por ser mais simples e não ter de ser ouvido o esbulhador. Traduz-se num
procedimento cautelar, será necessário intentar uma ação de restituição (cfr.
caducidade)

• Embargos de terceiro – Meio adequado para reagir contra os atos judiciais ofensivos
da posse. Os seus termos são regulados pela lei processual.

7. Perda de posse

De acordo com o Art. 1267º do CC, o possuidor perde a posse nas seguintes situações:
• Abandono – Deixam de verificar-se os elementos constitutivos da posse. A posse perde-
se independentemente da sua aquisição por outrem. Este preceito não tem aplicação
à posse em termos dos direitos reais de natureza perpétua (Art. 1257º do CC).

• Perda ou destruição material da coisa ou por esta ser posta fora do comércio —
Consiste na perda do corpus, na primeira hipótese. Na segunda hipótese, o Art. 202º,
nº2 do CC vem esclarecer que consideram-se fora do comércio todas as coisas que não
podem ser objeto de direitos privados, tais como as que se encontram no domínio
público e as que são, por sua natureza, insuscetíveis de apropriação individual. A
doutrina portuguesa é pacífica quanto á impossibilidade de a posse se poder exercer
sobre coisa de domínio publico, já que se trata de um instituto de direito privado, que
não se pode manifestar sobre aquilo que o legislador exclui, expressamente, do
comércio jurídico-privado.

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• Cedência – Quando há a intenção do cedente de se desfazer da sua posse (não é, por
exemplo, o que acontece quando o senhorio entrega a casa ao arrendatário: Arts. 1253º
c) e 1252º, nº1 do CC).

• Pela posse de outrem, mesmo contra a vontade do antigo possuidor, se a nova posse
houver durado por mais de um ano.

Naturalmente, também se perde a posse com a perda do animus, quando o possuidor passa
a detentor, como acontece no constituto possessório.

8. Natureza jurídica da posse

O Dr. Manuel Rodrigues considerava a posse como um direito. Para este autor, a posse é
um facto jurídico por virtude dos efeitos que a lei lhe atribui e é um direito real, porque é
um poder direto e imediato sobre uma coisa e o seu titular tem a faculdade de exigir de
todos os indivíduos uma abstenção que lhe permita exercer os elementos constitutivos do
direito que exterioriza. Dentro de ano, o possuidor tem o direito de se reintegrar na sua
posse, qualquer que seja o indivíduo que possua o seu prédio e o título porque o possui.
Outros autores da Escola de Coimbra, nomeadamente, o Dr. Henrique Mesquita e o Dr.
Mota Pinto adotaram uma posição idêntica acrescentando a ideia de provisoriedade do
direito, na medida em que, pelo decurso do prazo, a posse permite a aquisição do direito
real a que corresponde (usucapião) ou cessa pela reivindicação bem-sucedida. O Dr. Manuel
Rodrigues considera que no plano físico ou naturalístico, a posse é realmente um facto. Este
facto é recebido pelo direito independentemente de qualquer indagação sobre a existência,
na titularidade do possuidor, do direito real correspondente aos poderes por este exercidos
sobre certa coisa. A posse figura na esfera jurídica do possuidor como um valor patrimonial.
A posse é negociável, permitindo a lei que o possuidor, em certos casos, ceda a sua posição
independentemente da tradição material ou simbólica da coisa. A cedência é possível
mesmo a favor do titular do direito, o qual, para evitar os incómodos e as incertezas do
processo de reivindicação, pode preferir adquirir, por via negocial, a posse que
judicialmente teria o direito de reclamar. Além disso, a posse é transmissível por via
hereditária e suscetível de inscrição no registo predial Art. 2º, nº1 f) do Cód. do Registo
Predial. Pode ser defendida contra atos de turbação ou esbulho. Sendo assim, parece não
poder negar-se ao possuidor um verdadeiro direito subjetivo. A posse nasce como pura
relação de facto, mas, uma vez nascida, converte-se num direito, isto é, numa relação
produtora de efeitos jurídicos. Confrontado com os demais direitos subjetivos, o direito do
possuidor tem apenas de específica a sua natureza provisoria. Mas este aspeto não exclui
que ao possuidor, enquanto não for judicialmente convencido (em ação petitória) pelo
reivindicante, se reconheça a titularidade de um verdadeiro direito. O Dr. Mota Pinto, no
mesmo sentido, considera poder dizer-se que a posse não é um mero facto, é um direito
real provisório dotado de garantia jurídica. É um direito real provisório, porque esta
proteção só se mantém, ou melhor, cessa, não havendo anteriormente usucapião, perante
a ação de reivindicação.

O Dr. Orlando de Carvalho afirma que a posse é o poder de facto exercido sobre uma coisa,
que, mesmo sendo fonte de consequências jurídicas e até de direitos, não deixa de ser uma
situação de facto juridicamente relevante. Um dos efeitos da posse é a presunção da
existência do direito real correspondente (Art. 1268º, nº1 do CC), como tal, se a posse fosse
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um direito, não faria sentido que dele se presumisse um outro direito. Por outro lado, o
exercício da posse por um determinado período de tempo permite a aquisição de um direito
real, logo, se a posse fosse um direito, teríamos um direito a permitir a aquisição originária
de um outro direito. Finalmente, também seria de estranhar que a posse, sendo um direito,
fosse apenas tutelado se exercido de boa-fé, de modo pacífico e público (Arts. 1269º e ss.,
Art. 1267º, nº2, 1282º, 1297º, 1300º, nº1 do CC). Neste sentido, este autor considera que a
posição segundo a qual a posse é um direito só pode justificar-se no prolongamento de um
erro terminológico, na medida em que, tanto a escola dos Glosadores como a dos
Comentadores, para se referirem a posse, adotaram a expressão ius possessionis, dando
lugar à confusão entre a posse e o direito à posse.

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