Você está na página 1de 206

Introdução ao Estudo do Direito II

Regente: Luís Lima Pinheiro


Assistente: João Pedro Marchante
Mafalda Luísa Condelipes Boavida
MAFALDA BOAVIDA
1º ANO TB12

Sistemática Jurídica
Ramos do Direito

Noção de ramo do Direito

Um ramo do Direito é um subsistema normativo, formado por normas, princípios e


nexos intrassistemáticos. É uma parte de um sistema normativo.
Todo o subsistema carece de uma delimitação e ordenação.
A delimitação de um subsistema normativo resulta da determinação do seu objeto
(que corresponde a um setor da realidade social) e do conteúdo das proposições
jurídicas que o integram.
O subsistema normativo é ordenado na medida em que as normas que o integram
são geralmente reconduzíveis a princípios jurídicos gerais e estão articuladas entre si
por nexos intrassistemáticos.

- Serve para a delimitação, ordenação e integração de lacunas


- Trabalho legiferante: legislar criar normas

Direito privado e Direito público

É uma distinção fundamental em Direitos da família romano-germânica. Desempenha


um papel menos importante na família do Common Law.
Por exemplo, o Direito Constitucional, Direito Administrativo e o Direito Penal são
Direito Público; o Direito das Obrigações, os Direitos Reais, o Direito da Família e o
Direito das Sucessões são direito privados.
Há diversos critérios de distinção. Por vezes é difícil traçar a fronteira entre Direito
Público e Direito privado, por exemplo, quanto ao Direito do Trabalho.

São três os critérios tradicionais de distinção:

à O critério dos interesses:


Atende ao caráter privado ou público dos interesses prosseguidos.
É um critério muito relativo porque também no Direito privado se prosseguem
“interesses gerais” ou “coletivos”, por exemplo, em matéria de Direito da Família.

2
MAFALDA BOAVIDA
1º ANO TB12

MARCELLO CAETANO formula-o de modo qualificado: “Para nós uma norma é de


direito público quando diretamente protege um interesse público (considerando
interesses públicos os que respeitam à existência, conservação e desenvolvimento da
sociedade política) e só indiretamente beneficia (se beneficia) interesses privados”.
A qualificação feita por MARCELO CAETANO, além das dificuldades que suscita
quanto à aferição do caráter direto da proteção de um interesse público, não resolve
todos os problemas.
As normas do Código Civil sobre a instituição de fundações protegem diretamente o
interesse público (cf. art. 185.º/1, 188.º/3/a e 190.º/2/b CC) e, no entanto, são direito
privado.
Inversamente há normas que sendo de Direito público protegem diretamente o
interesse dos particulares: por exemplo, as normas sobre direitos fundamentais, as
normas que asseguram a tutela dos particulares perante a Administração e as normas
que regulam a atividade assistencial.

à Critério da qualidade dos sujeitos:


Segundo este critério é público o Direito que regule a organização do Estado ou outro
ente público bem como as relações em que um dos sujeitos seja o Estado ou outro ente
público.
Entendido literalmente este critério é obviamente criticável. É sabido que o Estado e
entes públicos autónomos podem estabelecer relações com particulares sujeitas
principalmente ao Direito privado. Por exemplo, quando o Estado arrenda um imóvel para
nele instalar um serviço público.
Mas o critério da qualidade dos sujeitos é hoje geralmente qualificado pela exigência
que o Estado ou ente público intervenha na sua qualidade própria.
Este critério exprime uma conceção estatutária de Direito público: este Direito é
formado pelas normas privativas do Estado e de demais entes públicos.
O critério da participação na qualidade de sujeito dotado de poder soberano não se
confunde com o critério da posição, examinado em seguida, porque não é decisivo que
o particular se encontre subordinado ao sujeito público. O sujeito público intervém na sua
qualidade própria quando atua ao abrigo de normas específicas, privativas da sua
atuação, mesmo que elas estabeleçam uma relação paritária entre as partes.
A principal dificuldade suscitada por este critério tem que ver com a qualificação das
relações concretamente estabelecidas entre sujeitos públicos e particulares. Como

3
MAFALDA BOAVIDA
1º ANO TB12

determinar se o sujeito público intervém na sua qualidade própria ou enquanto particular?


Pela aplicabilidade de um regime especial de Direito público? E se a aplicabilidade deste
regime depender da qualidade em que o sujeito público intervém?

à Critério da posição dos sujeitos ou da subordinação:


Segundo este critério é público o Direito que constitui e organiza o Estado e outros
entes públicos e regula a sua atividade como entidade dotada de ius imperii, isto é,
dispondo de poderes de autoridade. Estes poderes de autoridade podem ser materiais
– a possibilidade de utilizar a coerção material – e jurídicos – a possibilidade de constituir,
modificar ou extinguir unilateralmente a relação.
Já é Direito privado o que regula as relações em que intervém um sujeito público em
posição de paridade com um particular.
Para OLIVEIRA ASCENSÃO é o critério que mais corretamente explica a divisão
tradicional. É também o critério defendido por CASTRO MENDES e TEIXEIRA DE
SOUSA.

Mas este critério não é inteiramente correto.


Por um lado, como já se assinalou, há relações paritárias que são reguladas por
regimes específicos que todos reconhecem ser de Direito público. É o que se verifica
com certos contratos administrativos, celebrados quer entre entes públicos quer entre
um ente público e um particular. Mas também a atividade assistencial do Estado é
realizada sem que o Estado atue poderes de autoridade.
Por outro lado, também no Direito privado há relações de subordinação: é o que se
verifica no Direito da Família, por exemplo, nas relações entre pais e filhos menores, e
no Direito das pessoas coletivas, por exemplo, nas relações entre as associações e os
seus membros.
É, no entanto, certo que no Direito público prevalece a subordinação e no Direito
privado a paridade

Combinação dos critérios


Alguns autores, como FREITAS DO AMARAL, defendem uma combinação dos critérios
anteriormente referidos.

4
MAFALDA BOAVIDA
1º ANO TB12

Posição adotada:
Há que separar dois planos.
Por um lado, a distinção entre estes ramos do Direito, que é feita em função dos
traços dominantes que os caracterizam.
Por outro, a inclusão de institutos ou relações em cada um destes ramos do Direito
que, sendo em parte uma questão de Direito positivo, é influenciada por fatores
históricos.

Comece-se pela distinção entre o Direito público e o Direito privado enquanto ramos
do Direito.
Aqui cabe perguntar quais são as características que individualizam os subsistemas
público e privado no seio do sistema jurídico.
As características gerais destes subsistemas são formais e materiais:
à Formalmente atender-se-á às notas jurídico-positivas alheias ao conteúdo e
função, designadamente as definições legais e a delimitação da jurisdição administrativa.
Saliente-se a complementaridade entre Direito substantivo e o Direito processual. A
jurisdição administrativa é competente para apreciar relações que são primariamente
submetidas ao Direito administrativo.
à Materialmente há que salientar fundamentalmente duas notas:
Þ uma nota estatutária, segundo a qual é o Direito público que regula a
organização do Estado e entes públicos autónomos e aquelas atividades
do Estado e entes públicos autónomos que, em virtude de valorações
específicas, estão submetidas a um regime específico;
Þ uma nota ligada à subordinação ou à vinculação e contraposta à
autonomia.
Explique-se esta segunda nota. Assinalei que no Direito público prevalece a
subordinação e no Direito privado a paridade. Por isso a subordinação ou a paridade têm
o valor de um indício para a caracterização.
Mas além da subordinação importa também atender à vinculação à lei. A vinculação
é uma característica mais geral que a subordinação.
O Direito privado é dominado por decisões livres que se baseiam na autonomia
negocial e nos poderes conferidos aos titulares de direitos subjetivos. Estas decisões
não estão sujeitas obrigatoriamente a uma fundamentação. Em regra, está excluído o
5
MAFALDA BOAVIDA
1º ANO TB12

controlo judicial da justiça da motivação, exceto, por exemplo, com respeito ao abuso de
direito. Ao passo que o Direito público é dominado pela decisão vinculada, isto é,
fundamentada na lei.

Assim, em geral, podemos dizer que o Direito privado é pautado pela tendencial
igualdade e pela liberdade e o Direito público pela tendencial subordinação e pela
vinculação à lei.

Passemos agora ao plano da inserção de institutos ou relações no Direito público ou


no Direito privado.
Como afirma LARENZ “Direito público e Direito privado não se deixam separar tão
precisamente como as duas metades de uma maçã cortada”. Estão engrenados um no
outro e há áreas de transição.
Por exemplo, o Direito do Trabalho embora tenda a ser encarado predominantemente
como um ramo do Direito privado também contém normas que devem ser consideradas
públicas (por exemplo, sobre a segurança e a higiene no trabalho).
A inserção deste ou daquele instituto ou relação no Direito público ou no Direito
privado é influenciada por razões históricas, de contiguidade e de mera oportunidade,
como assinala MENEZES CORDEIRO.

Por isso, há também que distinguir a perspetiva de iure condendo e de iure condito.
De iure condendo, devem ser inseridos no Direito público os institutos ou relações
que dizem respeito à constituição, organização e atividade vinculada do Estado e entes
públicos autónomos.
De iure condito, importa, em primeiro lugar atender à qualificação legal.

Na falta de qualificação legal, haverá que atender à existência de subordinação a um


ente público e, na sua falta, de uma atuação de um ente público vinculada a um regime
específico privativo da sua atuação.

Qual a relação que se estabelece entre Direito público e Direito privado?


Muitos autores entendem que o Direito público é especial relativamente ao Direito
privado. O Direito privado seria direito comum, aplicável à gestão privada da

6
MAFALDA BOAVIDA
1º ANO TB12

Administração e às questões suscitadas por relações de Direito público que não sejam
objeto de normas de Direito público.
Isto é em vasta medida exato. No entanto tem sido posto em causa que a relação
entre Direito público e Direito privado seja exatamente de especialidade.
Segundo a mais reputada doutrina administrativista, o Direito público é um Direito
original cuja especificidade decorre da razão de ser das entidades que organiza e cuja
atividade dirige.
Este Direito seria original e não especial, por constituir um subsistema autónomo com
os seus próprios conceitos e princípios, razão por que em caso de lacuna não se pode
recorrer diretamente ao Direito privado.
Segundo a maioria dos administrativistas, será necessário averiguar primeiro da
possibilidade de integrar a lacuna por analogia e com recurso aos princípios gerais do
ramo de Direito público em causa.

Na doutrina mais recente também é defendido que o Direito privado só será


subsidiariamente aplicável à atividade administrativa de gestão pública na medida em
que tal seja expressamente determinado por normas de Direito Administrativo ou,
quando muito, quando não se trate apenas de princípios de Direito privado, mas antes
aplicáveis a todos os setores da ordem jurídica.
A classificação em Direito público e privado não é exaustiva. Há ramos do Direito a
que esta classificação não se aplica.
Desde logo não se aplica ao Direito Internacional Público e ao Direito da União
Europeia.
Além disso, segundo o melhor entendimento, a distinção só se aplica ao Direito
substantivo e não ao Direito processual.

Direito Internacional Público

O adjetivo “público” é enganador. O Direito Internacional Público, além de regular as


relações entre Estados soberanos, entre organizações internacionais e entre aqueles e
estas, também contém normas que regulam relações claramente privadas, como é
evidente no caso das Convenções internacionais que unificam o Direito privado, por
exemplo, o regime da compra e venda internacional e de certos contratos de transporte
internacional.

7
MAFALDA BOAVIDA
1º ANO TB12

Há vários critérios caracterizadores do Direito Internacional Público.


Mencione-se quatro:
à sujeitos (principalmente Estados e organizações internacionais);
à interesses (da comunidade internacional e dos Estados enquanto entes
soberanos);
à fontes (processos específicos de criação de normas); e
à comunidade internacional (de que será expressão jurídica).

Convergindo com JORGE MIRANDA (na edição de 2012 do Curso de Direito


Internacional Público), podemos dizer que nenhum destes critérios é suficiente, mas que
cada um deles, e principalmente os critérios das fontes e da comunidade internacional
fornecem contributos que devem ser retidos.
O Direito Internacional Público caracteriza-se, em parte, pelas suas fontes
específicas (elemento formal), mas estas fontes exprimem a realidade da comunidade
internacional (elemento material).
A comunidade internacional começou por ser formada pelas relações recíprocas dos
Estados e de outras entidades para certos efeitos deles aproximadas, mas tende hoje a
abranger certas relações em que participam outras pessoas coletivas e indivíduos que
por extravasarem das fronteiras dos Estados ou dizerem respeito a direitos fundamentais
tendem a ter relevância internacional.

Direito da União Europeia

O Direito da União Europeia é a ordem jurídica da União Europeia.


Esta ordem jurídica é formada:
à Pelo Direito originário, constituído em primeira linha pelos Tratados instituintes,
inicialmente, das Comunidades Europeias e, atualmente, da União Europeia
(designadamente o Tratado da União Europeia e o Tratado sobre o Funcionamento da
União Europeia), bem como todos aqueles que os modificaram, completaram ou
adaptaram);
à Pelo Direito derivado emanado dos órgãos da União Europeia; e
à Por outras fontes reconhecidas pela comunidade jurídica da União Europeia.

8
MAFALDA BOAVIDA
1º ANO TB12

Direito Internacional Privado

O Direito Internacional Privado é o ramo do Direito que regula situações


transnacionais por meio de um processo conflitual.

Por exemplo, qual o regime ou regimes aplicáveis às relações conjugais entre um


português e uma espanhola que casaram e residem habitualmente em Roma. Será este
regime ou regimes definidos pela lei portuguesa, pela lei espanhola ou pela lei italiana?
Por situações transnacionais entendemos a situações que tendo um contacto
relevante com mais de um Estado soberano colocam um problema de determinação do
Direito aplicável que deve ser resolvido por este ramo do Direito.
O Direito Internacional Privado não regula diretamente estas situações, mas através
de normas de conflitos que remetem para o Direito aplicável. Por isso se diz que regula
as situações transnacionais por meio de um processo conflitual.
Por exemplo, do art. 25.º conjugado com o art. 31.º/1 CC resulta que o estado, a
capacidade, as relações de família e as sucessões por morte (que ainda não estejam
sujeitas a Regulamentos europeus) são, em princípio, regulados pela lei da
nacionalidade dos interessados.
O Direito Internacional Privado, enquanto ramo do Direito, abrange não só este
Direito de Conflitos, mas também o Direito de Reconhecimento, que regula os efeitos
que decisões estrangeiras sobre situações “privadas” podem produzir na ordem jurídica
portuguesa.

O Direito Internacional Privado é Direito Internacional?


Perante a conceção dominante de Direito Internacional, o Direito Internacional
Privado não constitui, no seu conjunto, uma parte do Direito Internacional.
O Direito Internacional Privado também não é, no seu conjunto, direito de fonte
interna. O Direito Internacional Público não se distingue do Direito Internacional Privado
por um critério de fontes.
O Direito Internacional Privado tanto tem fontes internas, como fontes internacionais,
europeias e transnacionais.
A diferença encontra-se antes no objeto destes ramos do Direito. O Direito
Internacional Privado distingue-se do Direito Internacional Público principalmente porque
a grande maioria das situações que regula (situações transnacionais) não tem relevância

9
MAFALDA BOAVIDA
1º ANO TB12

na ordem jurídica internacional. Por outras palavras, o Direito Internacional Público não
regula imediatamente a grande maioria das situações transnacionais.

É controversa a natureza pública ou privada do Direito Internacional Privado.


A posição mais ajustada às características atuais e às tendências de
desenvolvimento deste ramo do Direito é a de o considerar, fundamentalmente, como
direito privado.
Segundo a conceção dominante, é um Direito privado especial.

Ramos do Direito Público


Direito Constitucional, Direito Administrativo e Direito Penal

O Direito Constitucional é o ramo do Direito que rege o próprio Estado enquanto


comunidade e enquanto poder. Além das regras fundamentais da organização política,
o Direito Constitucional compreende hoje as normas sobre direitos fundamentais e a
organização económica.

Numa primeira aproximação, o Direito Administrativo é tradicionalmente encarado


como o ramo do Direito que regula a organização da Administração pública e a atividade
por ela realizada na sua qualidade própria.
Numa orientação mais recente (MARCELO REBELO DE SOUSA/SALGADO DE
MATOS) O Direito Administrativo é encarado de modo mais amplo como Direito da
função administrativa. A função administrativa é uma função do Estado em que se
prossegue os interesses públicos correspondentes às necessidades coletivas prescritas
pela lei.
Ex: os regulamentos são atos administrativos.

Perante esta orientação, o Direito administrativo não regula apenas a atuação da


Administração pública em sentido orgânico. Regula também:
Þ a atuação de todos os sujeitos jurídicos que exerçam a função
administrativa; e
Þ a atuação de qualquer sujeito jurídico quando e na medida em que
se interseccione com o exercício da função administrativa.
10
MAFALDA BOAVIDA
1º ANO TB12

Assim entendido o Direito Administrativo abrange complexos normativos incidentes


sobre três realidades diferentes:
Þ a organização administrativa;
Þ o funcionamento da Administração pública;
Þ o relacionamento da Administração pública com os particulares.

A tendência vai no sentido do desenvolvimento, a par do Direito Administrativo Geral,


de Direitos Administrativos especiais (Por exemplo, o Direito da Economia).

O Direito Penal é o ramo do Direito que define aquelas condutas que, por
representarem uma grave violação de bens jurídicos fundamentais, são consideradas
crimes e desencadeiam a aplicação de sanções punitivas.
Bens jurídicos fundamentais são, por exemplo, a vida, a integridade física, a honra, a
segurança pública, o património.
A conduta penalmente relevante pode consistir numa ação ou numa omissão. A
omissão é criminalmente punível quando o sujeito tinha o dever de evitar o resultado
previsto num tipo legal de crime e não o fez (Art. 10.º/2 C Penal).
A conduta pode ser intencional ou dolosa ou meramente negligente (mera culpa). No
primeiro caso o agente age com a intenção de realizar um facto que preenche um tipo
de crime ou aceita a produção do resultado como consequência necessária ou possível
da sua conduta (Art. 14.º C. Penal). No segundo caso não há aceitação do resultado,
mas este era evitável se o sujeito agisse com a diligência devida (Art. 15.º C. Penal).

A conduta negligente só é punível nos casos especialmente previstos pela lei (Art.
13.º C. Penal).
Por força do princípio da legalidade ou da tipicidade, que domina o Direito Penal nos
regimes democráticos, ninguém pode ser sentenciado criminalmente senão em virtude
de lei anterior que declare punível a ação ou omissão, nem sofrer medida de segurança
cujos pressupostos não estejam fixados em lei anterior (Art. 29.º/1 CRP e Art. 1.º/1 e 2
C. Penal).
No entanto, o Art. 29.º/2 CRP ressalva a punição, nos limites da lei interna, da conduta
que no momento da sua prática seja considerada criminosa segundo os princípios gerais
de Direito Internacional comummente reconhecidos.

11
MAFALDA BOAVIDA
1º ANO TB12

Segundo a opinião dominante, o Direito Penal é Direito público. Em sentido contrário


se pronuncia OLIVEIRA ASCENSÃO. Estou de acordo com a opinião dominante uma
vez que o Direito Penal estabelece sanções punitivas para a violação de obrigações de
conduta sem lugar para a igualdade e a liberdade que caracterizam o Direito privado.
Dos crimes distinguem-se as contraordenações.

As contraordenações são factos ilícitos sancionados com uma coima (Art. 1.º/1 do DL
nº 433/82). A coima é uma sanção pecuniária aplicada por órgãos administrativos e que
não é convertível em prisão no caso de não pagamento. Distingue-se assim da multa
que é aplicada por um tribunal e que é convertível em prisão no caso de não pagamento.
Os factos ilícitos punidos com coima – ilícitos de mera ordenação social – são aqueles
que embora violem injunções normativas não são suficientemente graves para terem
relevância penal.

Na doutrina é defendido, designadamente, que o Direito da Mera Ordenação social é


um Direito Penal especial ou um Direito Administrativo especial.

Direito Privado e Direito Civil

O Direito privado divide-se em Direito privado comum ou Direito civil e Direitos


privados especiais.
A par do Direito civil surgem Direitos privados especiais: por exemplo, o Direito
Comercial e o Direito do Trabalho.
Perante situações carecidas de regulação jurídica que não relevem do Direito público
e não sejam reguladas por Direitos privados especiais há que recorrer ao Direito Civil.

Tende a incluir-se no Direito civil regras gerais comuns a todos os ramos de Direito,
privados e públicos. É o que se verifica com parte do Livro I do CC, que compreende
dois títulos, com as epígrafes “Das leis, sua interpretação e aplicação” e “Das relações
jurídicas”.

No título I encontramos normas sobre normas, isto é, normas sobre fontes e normas
sobre a interpretação, integração e aplicação da lei, que são objeto da Teoria Geral do

12
MAFALDA BOAVIDA
1º ANO TB12

Direito e não só da Teoria Geral do Direito Civil. Estas normas são estudadas na nossa
disciplina.
No título I encontramos ainda normas de Direito Internacional Privado, que são
estudadas na disciplina de Direito Internacional Privado.
O título II contém normas sobre as pessoas e as situações jurídicas em geral que,
embora pudessem corresponder a uma Teoria Geral do Direito, são reguladas na ótica
do Direito Civil, razão por que a sua aplicação ao Direito público pode exigir as
necessárias adaptações. Esta matéria é estudada na disciplina de Teoria Geral do Direito
Civil.

A classificação germânica dos ramos do Direito Civil

Seguindo a classificação germânica das relações jurídicas, o Código Civil divide as


situações jurídicas em quatro categorias, que correspondem a outros tantos livros: o
Direito das Obrigações, os Direitos Reais, o Direito da Família e o Direito das Sucessões.
Na Teoria Geral de Direito Civil são estudados os critérios em que se baseia esta
classificação e ajuíza-se do seu mérito. Façamos agora uma breve referência a cada um
destes ramos do Direito Civil.

Direito das Obrigações

Consta principalmente do Livro II do CC. Mas também há muita legislação avulsa,


designadamente sobre certas modalidades contratuais.
Numa primeira aproximação, o Direito das Obrigações regula as relações em que
uma pessoa está vinculada a realizar em benefício de outra uma prestação, isto é, fazer
ou não fazer uma ação; entregar uma coisa (ver Art. 397.º CC). O sujeito ativo, o credor,
tem um direito de crédito. O sujeito passivo, o devedor, tem a correspondente obrigação.
As obrigações podem ser voluntárias, tendo por fonte um negócio jurídico,
designadamente um contrato.
As obrigações podem ser involuntárias, designadamente quando são geradas pela
violação de um direito ou interesse juridicamente protegido.
Por isso, o Direito das Obrigações também compreende a responsabilidade civil
extracontratual, instituto que regula a obrigação de reparar os danos resultantes da
violação de um direito ou interesse juridicamente protegido doutrem.

13
MAFALDA BOAVIDA
1º ANO TB12

Direitos Reais ou Direito das Coisas

É objeto do Livro III do CC.


O Direito das Coisas regula a afetação de coisas corpóreas aos fins de pessoas
individualmente consideradas, de tal modo que a pessoa fica com um Direito oponível a
terceiros.
O Direito real paradigmático é a propriedade, que é o direito real de gozo pleno. Há
direitos reais de gozo limitados, como o usufruto, que consiste num direito temporário ao
gozo de coisa alheia.

Também há direitos reais de garantia e de aquisição.


Os direitos reais de garantia estão subordinados à realização de um direito de crédito.
Por exemplo, a hipoteca que se institua sobre um prédio para garantir a satisfação do
crédito gerado por um contrato de mútuo.
Os direitos reais de aquisição conferem um poder de aquisição de uma coisa.

Direito da Família

O Direito da Família regula a constituição da família e as relações que se estabelecem


no seu seio.
Tradicionalmente, as relações familiares derivam do casamento, procriação e
adoção. Temos assim as relações entre os cônjuges, as relações entre pais e filhos, etc.
Família é o conjunto de pessoas ligadas entre si pelo vínculo conjugal, pelo
parentesco, pela afinidade e pela adoção.
As relações familiares podem ser pessoais ou patrimoniais, embora o Direito da
Família só regule as relações patrimoniais que estão subordinadas às relações pessoais.

Direito das Sucessões

O Direito das Sucessões regula a transmissão do património por morte do seu titular.
Há várias espécies de sucessão, atendendo ao título por que os sucessores são
chamados:
a) sucessão voluntária, em que o título é um negócio jurídico, fundamentalmente um
testamento;

14
MAFALDA BOAVIDA
1º ANO TB12

b) sucessão legal, em que o título é a lei.

A sucessão legal subdivide-se em sucessão legitimária e sucessão legítima.


A sucessão legitimária opera a favor dos herdeiros legitimários, mesmo contra a
vontade do autor da sucessão. No Direito português, são herdeiros legitimários o
cônjuge, os descendentes e os ascendentes.
A sucessão legítima opera a favor dos familiares e do Estado segundo o esquema
supletivo fixado pela lei, para o caso do autor da sucessão não ter manifestado nenhuma
vontade, em relação aos bens não abrangidos pela sucessão legitimária.

Direito da Personalidade

Chama-se hoje a atenção para a necessidade de autonomizar uma matéria muito


importante do Direito Civil que é o Direito da Personalidade.

No Código Civil encontramos os direitos de personalidade no âmbito da parte geral,


a propósito das pessoas singulares, na Secção II do Cap. I do Subtítulo I do Título II do
Livro I, que formula uma regra legal sobre a tutela da personalidade física ou moral e
contém preceitos especiais sobre determinados direitos de personalidade (direito ao
nome, direito à imagem, direito à reserva sobre a intimidade da vida privada, etc.) (arts.
70.º e segs.)
A maior parte dos direitos de personalidade consta da própria Constituição, porque
constituem direitos fundamentais, ver arts. 24.º e segs. CRP, designadamente sobre o
direito à vida, direito à integridade moral e física, direito ao bom nome e à reputação,
direito à liberdade, etc.

Os direitos de personalidade são tutelados pelo instituto da responsabilidade civil e,


em certos casos, a sua violação também gera responsabilidade penal. Além disso a
pessoa ameaçada ou ofendida pode requerer as providências adequadas às
circunstâncias do caso, com o fim de evitar a consumação da ameaça ou atenuar os
efeitos da ofensa já cometida (art. 70.º/2 CC).
Esta matéria é estudada em parte na disciplina de Direitos Fundamentais, e, noutra
parte, na Teoria Geral do Direito Civil.

15
MAFALDA BOAVIDA
1º ANO TB12

Direitos privados especiais


Direito Comercial

Em certos setores da vida social verificam-se circunstâncias especiais que justificam


valorações específicas e, com elas, a criação de um Direito especial. É assim que
surgem Direitos privados especiais que se contrapõem ao Direito privado comum ou
Direito Civil.

Na atividade económica surgiu um Direito especial, o Direito Comercial que, se em


parte é justificado pelas características da atividade económica realizada por empresas,
noutra parte resulta mais de fatores histórico-culturais do que de razões objetivas.

Entre as características da atividade económica que justificariam este Direito especial


são referidas:
à a celeridade e a confiança, que levam ao sacrifício de certas formalidades ou
cautelas exigidas no tráfico civil;
à o reforço do crédito, do qual resulta uma proteção mais acentuada do credor
comercial;
à o fim lucrativo que caracteriza toda a atividade comercial.

O Direito Comercial surgiu como um Direito dos comerciantes, mas tende a ser hoje
um Direito dos atos de comércio, aplicável igualmente aos não comerciantes que
praticam atos de comércio.
A toda a pessoa que praticar algum dos atos objetivamente regulados pela lei
comercial aplica-se diretamente esta lei.

Mas todos os atos dos comerciantes que de sua natureza não forem exclusivamente
civis ficam em princípio sujeitos à lei comercial, por se presumirem resultantes da
atividade comercial.
A delimitação entre as relações económicas regidas por este Direito especial e as
que são disciplinadas pelo Direito comum não obedece a um critério uniforme.
Em todo o caso, pode dizer-se que esta delimitação é influenciada pela ideia de
empresa, que leva alguns a defender a evolução do Direito Comercial para um Direito
da Empresa.

16
MAFALDA BOAVIDA
1º ANO TB12

O núcleo do Direito Comercial seria então constituído pelo regime aplicável aos entes
que normalmente exploram empresas, como é o caso das sociedades comerciais (veja-
se, designadamente, o Código das Sociedades Comerciais), e às atividades que
normalmente são desenvolvidas por empresas.

Verifica-se a tendência para se autonomizarem novos ramos do Direito, a partir do


Direito Comercial, em função da especialidade do seu objeto, designadamente o Direito
Marítimo, o Direito dos Seguros, o Direito Bancário, o Direito da Propriedade Industrial e
o Direito dos Valores Mobiliários.

O Direito Comercial regula também os títulos de crédito, designadamente as letras,


livranças e cheques.
O Direito Comercial não é hoje, propriamente, um ramo do Direito, mas um conjunto
de matérias agrupado segundo diversos critérios mais marcados por condicionamentos
histórico-culturais que por considerações funcionais e sistemáticas.

A própria autonomia do Direito Comercial relativamente ao Direito Civil é contestada


por uma parte da doutrina. Para MENEZES CORDEIRO, o Direito Comercial é Direito de
todos e do dia-a-dia e o Direito Civil mantém-se como instância científica inovadora onde
os conceitos e as soluções mais avançadas devem ser procuradas. O que o leva a
concluir que o Direito Comercial se separa do Civil por puras razões de natureza histórica
e que não há justificações de fundo que alicercem a sua autonomia.

Direito do Trabalho

Como já foi assinalado, o Direito do Trabalho tende a ser encarado


predominantemente como um ramo do Direito privado, embora também contenha
normas que devem ser consideradas públicas (por exemplo, sobre a segurança e a
higiene no trabalho).
Nesta medida, o Direito Trabalho é predominantemente direito privado especial. Tem
principalmente por objeto o contrato de trabalho e, por conseguinte, a sua especialidade
recorta-se principalmente em relação ao Direito das Obrigações.

17
MAFALDA BOAVIDA
1º ANO TB12

O Código do Trabalho de 2009 define contrato de trabalho como “aquele pelo qual
uma pessoa singular se obriga, mediante retribuição, a prestar a sua atividade a outra
ou outras pessoas, no âmbito de organização e sob a autoridade destas” (Art. 11.º).

O Direito do Trabalho regula hoje também a constituição, competência e


funcionamento dos entes laborais coletivos (as comissões de trabalhadores, as
associações sindicais e as associações de empregadores); os instrumentos de
regulamentação coletiva de trabalho e, em especial, a negociação coletiva; e os conflitos
coletivos de trabalho, designadamente a greve.

Direito Processual

O Direito Processual regula o processo, isto é, o conjunto de atos realizados pelos


tribunais, no exercício da função jurisdicional, e pelos particulares que perante eles
atuam.
Contrapõe-se o Direito Processual, como direito adjetivo, ao restante Direito, que é
direito substantivo. Com esta qualificação quer-se significar que o Direito Processual é
instrumental relativamente ao restante Direito.

O Direito substantivo define a relação material controvertida, designadamente através


da definição dos poderes e deveres dos sujeitos da relação. Por exemplo, A deve 10.000
euros a B; A é proprietário do prédio rústico X.

O Direito adjetivo, além de regular a organização, competência e funcionamento dos


tribunais, também atribui direitos e impõe deveres às partes, mas trata-se então de definir
a relação processual que se estabelece entre cada uma delas e o tribunal.

Tradicionalmente considera-se o Direito Processual como público porque regula a


atividade de órgãos públicos, os tribunais.
Diferentemente, há autores que entendem que a divisão entre privado e público só
diz respeito ao Direito substantivo, e não ao Direito adjetivo (LARENZ). Creio que esta
segunda opinião é de preferir porque o Direito Processual nem sempre regula a atividade
de órgãos públicos. Os tribunais da arbitragem voluntária não são órgãos públicos, mas

18
MAFALDA BOAVIDA
1º ANO TB12

também podem ser sujeitos a regras processuais, como se verifica na Lei de Arbitragem
Voluntária.
O Direito Processual não é um ramo do Direito. A cada ramo do Direito substantivo
corresponde em princípio um ramo do Direito adjetivo.

Temos assim, designadamente:


à para o Direito Internacional Público, o Direito Processual Internacional,
designadamente sobre o processo a seguir quando se atua perante o Tribunal
Internacional de Justiça;
à para o Direito da União Europeia, o Direito do Contencioso da União Europeia
quando se atua perante órgãos jurisdicionais da União Europeia;
à para o Direito Constitucional, o Direito Processual Constitucional quando se atua
perante o Tribunal Constitucional;
à para o Direito Civil e alguns Direitos privados especiais, o Direito Processual Civil;
à para o Direito do Trabalho, o Direito Processual do Trabalho;
à para o Direito Penal, o Direito Processual Penal;
à para o Direito Administrativo, o Direito Processual Administrativo ou Direito do
Contencioso Administrativo;
à para o Direito Fiscal, o Direito Processual Fiscal ou Direito do Contencioso
Tributário.

A grande divisão no processo civil traça-se entre processo declarativo e processo


executivo.
O processo declarativo destina-se a obter a fixação da situação jurídica. A sentença
pode consistir na condenação do réu a realizar determinada conduta, na declaração de
existência ou inexistência de um direito ou na constituição, modificação ou extinção de
uma situação jurídica.
Se a sentença condenatória não for cumprida pela parte vencida há o processo
executivo que se destina à sua realização coativa. Por exemplo, se o réu não paga a
indemnização a que foi condenado, o processo executivo permite a apreensão e venda
de bens da sua propriedade por forma a satisfazer o crédito indemnizatório.
A decisão proferida por um tribunal pode em certos casos ser objeto de recurso para
um tribunal superior. Pode mesmo haver um segundo grau de recurso. O tribunal
superior fixa a solução definitiva do caso. Quando a decisão já não admite recurso

19
MAFALDA BOAVIDA
1º ANO TB12

ordinário nem reclamação diz-se que transitou em julgado (cf., designadamente, art.
628.º CPC e sobre o valor das sentenças transitadas em julgado arts. 619.º e segs. CPC).

O Processo Civil, o Processo Penal, o Contencioso Administrativo e Tributário e o


Contencioso da União Europeia são objeto de disciplinas autónomas no curso de Direito.
Em princípio, os outros processos seriam estudados a propósito do ramo do Direito
substantivo a que respeitam, mas nem sempre a extensão das matérias a lecionar o
permite.

Codificação e técnicas legislativas

Noção de código e lei avulsa

O código é uma lei. Vamos centrar a nossa atenção no código moderno.


Entre as leis o código distingue-se por:
Þ ser global, contém as principais regras, se não a generalidade das regras que
regulam um ramo do Direito;
Þ ser sistemático, porque dispõe de um complexo de normas organizado e
unificado em torno de um núcleo de princípios fundamentais, por forma
coerente.
Þ ser científico: as matérias estão repartidas e ordenadas segundo um plano
elaborado pela Ciência do Direito.

O código moderno é um instrumento da codificação.


Pode vir formalmente separado do diploma que o põe em vigor, ou pode com ele
confundir-se. Na maioria dos casos publica-se um diploma, em que se aprova o código,
e que é seguido do texto do código.
Por exemplo, já sabemos que o Código Civil foi aprovado pelo DL n.º 47344.
Esta distinção entre o código e o diploma que o aprova é meramente formal.

Materialmente o código faz parte da lei que o aprova e tem o mesmo valor como fonte
do Direito.
Os códigos podem ou não estar divididos em partes. A divisão fundamental é, em
geral, o livro e, dentro deste, o título. Segue-se por vezes o subtítulo, o capítulo, a secção
20
MAFALDA BOAVIDA
1º ANO TB12

e a subsecção. A unidade básica é o artigo, que geralmente contém uma ou várias


proposições jurídicas.

Embora os códigos existentes tendam a cobrir todo o Direito privado, as leis que
alteram os códigos, ou que vão além da regulação neles contida, sem neles serem
integradas, designam-se por leis avulsas.
Por exemplo, as disposições do Código Civil sobre arrendamento rural foram
revogadas pelo DL n.º 201/75, de 15/4, e constam hoje do DL n.º 294/2009, de 13/10.

Entre as leis avulsas contam-se os estatutos e as leis orgânicas.


Os estatutos são diplomas que regulam certa matéria de modo unitário, sem que esta
matéria tenha a dignidade ou amplitude suficiente para justificar a designação de código.
O principal exemplo são as leis que regulam por foram sistemáticas e unitárias uma
determinada atividade, carreira ou profissão. Temos assim, por exemplo o Estatuto do
Artesão, o Estatuto dos Solicitadores e o Estatuto dos Magistrados Judiciais.

Designa-se por lei orgânica aquela que organiza e regula o funcionamento de um


serviço público, por exemplo, a Lei Orgânica do Ministério das Finanças e a Lei de
Organização do Sistema Judiciário.
Certas leis são designadas “código” apesar de não se revestirem das características
atrás assinaladas.
Por exemplo, o Código das Custas Judiciais não abrange um ramo do Direito.
Em contrapartida uma constituição como a portuguesa é um verdadeiro Código de
Direito Constitucional, embora não se use esta designação.

Assim, podemos falar em códigos em sentido formal – que são os que o legislador
assim denomina – e códigos em sentido material que são os que se revestem das
características atrás assinaladas.

21
MAFALDA BOAVIDA
1º ANO TB12

Código e compilação

Muitos dos códigos antigos eram na realidade compilações de leis, a que faltava a
sistematicidade e a cientificidade.
Uma compilação de leis pode incluir disposições revogadas, o que é impensável num
código.
O objeto da compilação não são necessariamente leis. Também pode haver
compilação de costumes, que são assim reduzidos a escrito. Pode haver compilações
de jurisprudência. E pode haver compilações mistas, que abranjam a totalidade das
fontes existentes.

Significado e valor da codificação

O movimento codificador surgiu no séc. XVIII como resultado de três fatores


principais: a difusão do iluminismo, a unificação política dos Estados europeus e o labor
de sistematização realizado pela ciência jurídica.
O movimento iluminista encontrou expressão, ao nível da Ciência do Direito e da
Filosofia do Direito, no jusracionalismo, que foi atrás caracterizado.

O Direito tradicional é criticado pela sua casualidade histórica, pelas suas


particularidades irracionais e por sujeitar os cidadãos à arbitrariedade do juiz. BENTHAM
qualificou o Common Law do seu tempo como “Dog-Law”, Direito dos Cães, porque à
semelhança do adestramento de um cão, uma pessoa só poderia saber que uma
conduta era proibida e punida quando lhe fosse aplicada a pena.

Contra isto o jusracionalismo exigia leis que excluíssem toda a arbitrariedade dos
juízes e que, por isso, tudo deveriam prever.
Acresce que os cidadãos deveriam poder conhecer as regras jurídicas, razão por que
elas deveriam ser formuladas por forma clara e sistemática e ser escritas em linguagem
compreensível e transparente.
A sistematicidade do Direito também decorre da exigência de racionalidade que é
apanágio do jusracionalismo. Deveria renunciar-se à casuística, e fazer assentar as
regras jurídicas em princípios retores.

22
MAFALDA BOAVIDA
1º ANO TB12

Mas não se trata apenas de dar uma nova forma ao Direito preexistente. O
jusracionalismo postula também a sua reforma.
Por um lado, o iluminismo opõe-se aos privilégios e estatutos especiais de certos
grupos sociais. Por isso o jusracionalismo defendeu que as leis deveriam estabelecer a
igualdade e liberdade dos cidadãos.
Por outro lado, a ideia de que todas as regras jurídicas devem decorrer da razão. Isto
pode traduzir a crença utópica na possibilidade de formular de uma vez por todas um
sistema ideal de Direito fundado na razão. Mas também exprime o desígnio de
racionalizar o Direito em função das necessidades criadas pela evolução económica e
social. Esta evolução e, em especial, a revolução industrial, não era compatível com o
estado caótico em que se encontravam as fontes do Direito.

Estas ideias presidiram às primeiras grandes codificações, como o code civil, Código
Civil francês de 1804. Napoleão interveio pessoalmente na sua feitura. Este código
influenciou as primeiras codificações em Portugal, Espanha e Itália.

Como outro fator que impulsionou a codificação refira-se a unificação política dos
Estados europeus. A codificação, com a eliminação ou subalternização das leis ou
costumes locais, constituiu em Estados como a França, a Espanha, a Itália e a Alemanha
um instrumento para a preparação ou consolidação da unidade política.
Enfim, estas codificações só foram possíveis porque a ciência jurídica desde há dois
séculos se esforçava por uma apresentação sistemática do Direito, em torno a princípios.
A codificação pressupõe um determinado estádio de desenvolvimento científico na
análise e organização do material jurídico que só se alcançou no final do séc. XVIII. A
visão de conjunto de cada ramo do Direito proporcionada pelos avanços doutrinários
esta na base dos códigos que foram surgindo.

Hoje a codificação é típica dos países da família romanogermânica. Além do code


civil são de mencionar o Código Civil alemão de 1896, o Código Civil suíço de 1907, e o
Código das Obrigações suíço de 1911, o Código Civil italiano de 1942, e o Código Civil
português de 1966, que foi influenciado, designadamente, pelos códigos alemão e
italiano.

23
MAFALDA BOAVIDA
1º ANO TB12

Tem havido grandes disputas quanto ao mérito da codificação. As vantagens


resultam do anteriormente dito: fundamentalmente o conhecimento fácil e o caráter
sistemático que evita incoerências, ajuda a interpretação e integração de lacunas e
facilita a construção científica do Direito.
A sistematização científica facilita a busca das soluções. No dizer de OLIVEIRA
ASCENSÃO, dá ao intérprete um mapa onde situar facilmente cada novo caso. Perante
casos omissos, este mapa também pode constituir um ponto de partida para a integração
de lacunas.

A grande desvantagem é a rigidez. O código representa um grande esforço, que deve


ser respeitado. Não é de ânimo leve que se deve alterar um código. Pode ser um
obstáculo à evolução futura da legislação. Pode também influir negativamente na
evolução da ciência jurídica. Mas o código também não pode ser considerado uma tábua
sagrada. A adaptação tem de ser feita frequentemente, porque a vida muda
constantemente, embora deva ser cuidadosa e bem refletida.
Em suma, as vantagens superam as desvantagens.
Em todo o caso, constitui um bom princípio de técnica legislativa que os Códigos se
circunscrevam às matérias mais estáveis e se deixe para a legislação avulsa as matérias
que estão mais sujeitas a alteração.

Principais códigos em vigor

Em primeiro lugar, como já foi assinalado, a própria Constituição é um Código de


Direito Constitucional, embora não seja usual designá-la como tal.
Em seguida, temos o Código Civil, aprovado pelo DL n.º 47 344, de 25/11/66, e que
foi reformado pelo DL n.º 496/77, de 25/11, tendo em vista designadamente a sua
conformação com a Constituição de 1976.
No Direito privado temos ainda o Código Comercial, que foi aprovado em 1888. Parte
da matéria abrangida por este código é hoje objeto do Código das Sociedades
Comerciais, aprovado em 1986.
De referir ainda o Código do Trabalho, de 2009, o Código do Direito de Autor e dos
Direitos Conexos, de 1985, o Código da Propriedade Industrial, de 2003, e, em matéria
de registo, o Código de Registo Civil, de 1995, o Código de Registo Predial, de 1984, e
o Código do Registo Comercial, de 1986.

24
MAFALDA BOAVIDA
1º ANO TB12

No Direito público, é de salientar o Código Penal, de 1982.


Enfim, no Direito Processual, há a referir o recente Código de Processo Civil,
aprovado em 2013, e o Código de Processo Penal, de 1987.

Partes gerais

Se examinarmos a sistemática do Código Civil, verificamos que o Livro I é designado


parte geral e que nos restantes livros há divisões do código subordinadas à epígrafe
“Disposições gerais”.
Tanto num caso como noutro se trata de partes gerais. Estas partes gerais constituem
um imperativo de técnica legislativa: para evitar repetições parte-se do geral para o
particular, começando pelas disposições comuns.
Por exemplo, o contrato de compra e venda é regulado no Livro II do Código Civil,
nos arts. 874.º e segs. Mas a maior parte dos requisitos de validade do contrato de
compra e venda são comuns aos outros contratos e, até, à generalidade dos negócios
jurídicos.
É o que se verifica com a capacidade negocial das partes e com os requisitos de
validade do objeto e do fim. Por isso são regulados na parte geral do Código Civil, no
título II do Livro I (arts. 67.º, 122.º e segs., 280.º e 281.º).
Quanto à forma do contrato de compra e venda, no Livro II só encontramos uma regra
que estabelece forma legal para a compra e venda de imóveis (art. 875.º). No que toca
à compra e venda de móveis, às consequências da inobservância da forma legal e ao
âmbito da forma legal temos também de recorrer à parte geral, mais precisamente aos
arts. 219.º e segs.
Como é observado por MENEZES CORDEIRO, a articulação entre a parte geral do
Código Civil e as partes especiais não obedece a um critério inteiramente lógico, sendo
também influenciada por fatores histórico-culturais.
Já noutros Códigos a divisão entre parte geral e parte especial é traçada em função
de um critério científico claro. É o que se verifica com o Código Penal de 1982.

25
MAFALDA BOAVIDA
1º ANO TB12

Remissões

A remissão é outra técnica legislativa de que o legislador se serve para evitar


repetições.
Por exemplo, quanto aos efeitos da resolução do contrato entre as partes o art. 433.º
CC estabelece que “na falta de disposição especial, a resolução é equiparada, quanto
aos seus efeitos, à nulidade ou anulabilidade do negócio jurídico, com ressalva do
disposto nos artigos seguintes”. Portanto, para sabermos quais são os efeitos da
resolução do contrato entre as partes temos de recorrer às normas que estabelecem os
efeitos da nulidade ou anulabilidade do negócio jurídico. Estas normas constam do art.
289.º CC. No n.º 3 deste artigo encontramos uma nova remissão para o disposto nos
arts. 1269.º e segs. em matéria de efeitos da posse.

A remissão resulta de uma proposição remissiva, isto é, uma proposição que em lugar
de estabelecer o regime aplicável à situação descrita na sua previsão manda aplicar
outras normas ou complexos normativos.
Supondo que todas as proposições remissivas são verdadeiras normas, o que como
adiante veremos é discutível, podemos contrapor as normas remissivas às normas
materiais que são aquelas que regulam diretamente as situações nelas previstas.

Noutros casos, em vez de uma remissão para as normas de outro diploma, temos
uma disposição legal que estende o regime de certo instituto a outro ou outros.
Por exemplo, o art. 939.º CC manda aplicar as normas da compra e venda aos outros
contratos onerosos de alienação, na medida em que sejam conformes com a sua
natureza e não estejam em contradição com as disposições legais respetivas.
Nestes casos é frequente que a proposição remissiva utilize a expressão “com as
necessárias adaptações” ou expressão semelhante. Tem o mesmo sentido a expressão
latina “mutatis mutandis”.
Por exemplo, o Art. 1156.º CC manda aplicar as disposições sobre o contrato de
mandato “com as necessárias adaptações, às modalidades do contrato de prestação de
serviço que a lei não regule especialmente”. Quer isto dizer que o intérprete pode e deve
ajustar as normas que regulam o contrato de mandato às particularidades do contrato de
prestação de serviço em causa.

26
MAFALDA BOAVIDA
1º ANO TB12

Com efeito, quando se estende o regime de um instituto a outro instituto é preciso ter
em conta que os institutos não são iguais, mas simplesmente análogos. As diferenças
existentes podem justificar que a extensão não abranja todas as normas contidas nesse
regime ou que as consequências jurídicas desencadeadas por algumas dessas normas
devam ser modificadas.

Entre os casos expostos podemos distinguir aqueles em que há uma remissão


integradora, que se destina a suprir as lacunas na regulação de um instituto que dispõe,
em princípio, de um regime próprio, e uma remissão total, quando o regime do instituto
é primariamente definido por via remissiva.

As normas de conflitos de Direito Internacional Privado são normas de remissão,


porque regulam as situações transnacionais através do chamamento de normas
materiais. Também são normas de remissão as normas sobre a aplicação da lei no
tempo, ou normas de Direito Intertemporal. Perante uma sucessão de leis, estas normas
chamam a lei nova ou a lei antiga a regular uma situação ou um aspeto de uma situação.
As normas de remissão que acabamos de examinar, normas de conflitos de leis no
espaço e no tempo, têm um significado muito diferente das proposições remissivas
inicialmente referidas.

As proposições remissivas inicialmente referidas vêm geralmente a traduzir-se numa


extensão da previsão das normas para que remetem, sendo discutível que se trate de
verdadeiras normas.
Há quem entenda que são apenas um complemento das normas para que remetem.
Ao passo que as normas de conflitos de Direito Internacional Privado e Direito
Intertemporal são verdadeiras normas de regulação indireta, porque exprimem
valorações autónomas, prosseguindo finalidades próprias do Direito Internacional
Privado e do Direito Intertemporal.

27
MAFALDA BOAVIDA
1º ANO TB12

Ficções legais

A ficção legal é uma técnica legislativa pela qual se estabelece que um facto ou
situação a regular se considera juridicamente como igual a outro facto ou situação que
se encontra legalmente regulado.
Por exemplo, na alinea c) do n.º 2 do art. 805.º CC estabelece-se que se o próprio
devedor impedir a interpelação, se considera interpelado na data em que normalmente
o teria sido.
Nas obrigações sem prazo certo, e que não tenham a sua fonte num facto ilícito, o
devedor só fica constituído em mora, e, portanto, obrigado a reparar os danos causados
ao credor, depois de interpelado, isto é, depois de o credor comunicar ao devedor a sua
vontade de receber a prestação.
A lei prevê um facto – a interpelação do devedor – e estabelece uma consequência
em caso de incumprimento da obrigação: a constituição em mora.
Mas se o devedor se furtar à interpelação, ou por outra forma a impedir, considera-
se a interpelação verificada. Equipara-se juridicamente a tentativa de interpelação
frustrada pelo devedor à interpelação.
Há aqui uma assimilação fictícia de realidades factuais diferentes para as submeter
ao mesmo regime jurídico.
Ao mesmo resultado se chegaria mediante uma proposição remissiva que mandasse
regular o facto ou situação pelas normas aplicáveis a outro facto ou situação.

No século XIX, as ficções legais foram muito utilizadas na legislação e, sobretudo, na


doutrina. Hoje a ciência jurídica dispõe de instrumentos que dispensam este
artificialismo.
O legislador pode recorrer a proposições remissivas. Mas em certos casos, como nos
exemplos referidos, a utilização da ficção jurídica pelo legislador é perfeitamente
aceitável, porque é claro que se trata de situações que do ponto de vista dos efeitos
jurídicos devem ser equiparadas e porque a introdução de uma proposição remissiva só
viria complicar a redação do preceito.
Já o intérprete nunca tem de recorrer a ficções: a aplicação de uma norma a uma
situação que não se encontra prevista deve fundamentar-se na analogia.

28
MAFALDA BOAVIDA
1º ANO TB12

Definições e classificações legais

As definições e classificações são técnicas frequentemente utilizadas na legislação.


O Código Civil está recheado de definições e classificações. Por exemplo, temos no
art. 202.º a noção de coisa, nos arts. 203.º e segs. as classificações das coisas, no art.
397.º a noção de obrigação, no art. 874.º a noção de compra e venda, no art. 1439.º a
noção de usufruto e no art. 1577.º a noção de casamento.
As proposições que estabelecem definições e classificações são proposições
jurídicas incompletas e, portanto, não são normas. Geralmente as definições e
classificações são proposições que servem para determinar o sentido e alcance da
previsão de normas jurídicas.
Assim, por exemplo, a norma contida no art. 875.º CC sujeita o contrato de compra e
venda de imóveis a escritura pública ou a documento particular autenticado. A previsão
desta norma é o contrato de compra e venda de imóveis. A determinação do conteúdo
dos conceitos de “contrato de compra e venda” e de “imóvel” é coadjuvada pelo art. 874.º
que contém a noção de compra e venda e pelo art. 204.º que nos indica quais são as
coisas imóveis.
Por vezes a definição legal contida num artigo serve para determinar o sentido e
alcance da previsão das normas contidas nos artigos seguintes. É o que se verifica, por
exemplo, com a noção de compra e venda e com a noção de outros contratos regulados
no Código Civil.
Ponto algo controverso é o do caráter prescritivo da definição. Por exemplo, se o
legislador dá uma noção de contrato de sociedade no art. 980.º CC ficará o intérprete
vinculado a aplicar o regime contido nos arts. 981.º e segs. a todos os contratos que
correspondem a essa noção e a não aplicar diretamente esse regime a quaisquer outros
contratos?
Para DIAS MARQUES e OLIVEIRA ASCENSÃO a definição é um elemento de
orientação mas não é decisiva. O regime é que é vinculativo e, por isso, prevalece sobre
a definição. OLIVEIRA ASCENSÃO acrescenta que a definição é uma operação
extremamente delicada que deve ser evitada.
Se entendo corretamente o autor, isto significa que para delimitarmos a realidade que
está sujeita a um determinado regime temos de atender principalmente ao próprio regime
estabelecido.

29
MAFALDA BOAVIDA
1º ANO TB12

Por exemplo, para saber se um contrato deve estar submetido ao regime do contrato
de sociedade não bastaria verificar se apresenta as notas típicas contidas na noção
legal, seria preciso também atender às notas típicas que se inferem do regime legal.
OLIVEIRA ASCENSÃO admite, porém, que os próprios termos da definição
impliquem um regime jurídico, caso em que virá revestida de “indireta injuntividade”. Mas
então, dir-se-á que já não se trata de uma mera definição, mas de uma verdadeira norma
jurídica, que dispõe de uma estatuição.
BAPTISTA MACHADO admite que a técnica legislativa da definição é perigosa, mas
entende que as definições legais têm caráter prescritivo. Através das definições legais o
legislador constrói, por uma forma indireta, previsões a que se ligam as consequências
jurídicas de determinadas normas. A definição dada pelo legislador, ainda que
incompleta ou imperfeita, compreende sempre uma vontade ou intenção normativa.

Na minha ótica, o legislador tem a opção de fixar taxativamente os pressupostos de


aplicação de um determinado regime, ou de fornecer uma mera orientação, deixando ao
intérprete a missão de a concretizar. É um problema de interpretação da lei. Em princípio,
a intenção legislativa ao formular uma definição ou noção legal é a de fixar taxativamente
os pressupostos de aplicação de um determinado regime.
Por isso, as definições legais têm um certo valor prescritivo.

Mas mesmo quando a definição legal exprima a intenção legislativa de fixar


taxativamente os pressupostos de aplicação de um determinado regime, será de excluir
que deste regime se possam inferir notas típicas adicionais, que não constam da
definição legal? Assim, por exemplo, para OLIVEIRA ASCENSÃO, as disposições do
Código Civil sobre sociedade pressupõem que a sociedade dá origem à estruturação de
uma empresa, razão por que o mero contrato de sociedade para objetivo ocasional, que
não origine uma empresa, pode ser chamado sociedade, “mas não cabe nos dispositivos
do art. 980.º e segs. do Código Civil”.

Este ponto diz sobretudo respeito ao Direito das Obrigações. Direi apenas que em
minha opinião quando o legislador define uma modalidade contratual se deve partir do
princípio que só as notas típicas indicadas pelo legislador são relevantes para a
qualificação. Outros traços típicos que se infiram do regime só relevam para a aplicação
de algumas normas contidas no regime.

30
MAFALDA BOAVIDA
1º ANO TB12

Por exemplo, certas normas relativas à organização e ao património social da


sociedade não serão aplicáveis, por falta de objeto, a uma sociedade ocasional. A
exclusão de um contrato de sociedade que preencha a noção legal do regime contido
nos arts. 980.º e segs. só poderá justificar-se através de uma redução teleológica,
método que adiante examinaremos.
Inversamente, a aplicação do regime estabelecido para uma modalidade contratual
definida pelo legislador a um contrato que não apresenta uma das notas típicas contidas
na definição deverá, em princípio, basear-se na analogia.

Presunções

Segundo a noção do art. 349.º CC, as presunções “são as ilações que a lei ou o
julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido”.
O Código Civil acolhe assim a distinção entre presunções legais ou iuris e presunções
judiciais ou hominis.
Nas presunções legais, o legislador supõe que um facto desconhecido – o facto
presumido – acompanha um facto conhecido.
Por outras palavras, as presunções legais são as ilações que, no plano dos factos, a
lei retira de certo evento já demonstrado.
Assim, por exemplo, o art. 441.º CC determina que no contrato-promessa de compra
e venda se presume que tem caráter de sinal toda a quantia entregue pelo promitente-
comprador ao promitente-vendedor.

Quer isto dizer, que se o promitente-comprador entrega uma quantia ao promitente-


vendedor, ainda que a título de princípio de pagamento do preço, se supõe que esta
quantia tem caráter de sinal, isto é, de garantia de cumprimento, por forma que se o
promitente-comprador não cumprir o promitente-vendedor pode fazer seu o sinal; se for
o promitente-vendedor a incumprir o promitente-comprador tem a faculdade exigir a
restituição do sinal em dobro (art. 442.º/2, que estabelece um regime especial quando
houve tradição da coisa a que se refere o contrato prometido).

As presunções legais relacionam-se com o regime do ónus da prova, que está


regulado nos arts. 342.º CC e segs. Conforme dispõe o art. 350.º/1 quem tem a seu favor
a presunção legal escusa de provar o facto a que ela conduz. Dadas as dificuldades de

31
MAFALDA BOAVIDA
1º ANO TB12

prova de certos factos em determinadas situações a lei vem em socorro de uma das
partes estabelecendo a seu favor uma presunção legal.

As presunções legais admitem, em regra, prova em contrário, isto é, prova de que o


facto presumido não acompanhou o facto que serve de base à presunção. É o que resulta
do art. 350.º/2 CC. Estas presunções, que admitem prova em contrário, dizem-se
relativas ou iuris tantum.
É o caso da presunção contida no art. 441.º. Pode provar-se que a quantia entregue
pelo promitente-comprador não tem caráter de sinal.

As presunções que não admitem prova em contrário dizem-se absolutas ou iuris et


de iure. Encontramos um exemplo deste tipo de presunção no art. 243.º/3 CC. O art.
243.º/1 determina que a nulidade proveniente da simulação não pode ser arguida pelo
simulador contra terceiro de boa fé. O n.º 3 estabelece que se considera sempre de má
fé o terceiro que adquiriu o direito posteriormente ao registo da ação de simulação,
quando a este haja lugar.
Esta solução funda-se por seu turno na própria presunção de conhecimento que
resulta da inscrição da ação no registo.
O resultado da presunção absoluta é semelhante ao da ficção e da proposição
remissiva. Será aplicável ao facto ou situação real o regime estabelecido para o facto ou
situação presumida.
As presunções judiciais são as ilações que, com base num facto já apurado, o
julgador faça, considerando outros factos como demonstrados. Estas presunções
traduzem um afloramento da regra da livre apreciação da prova. A estas presunções se
refere o art. 351.º CC quando dispõe que as presunções judiciais só são admitidas nos
casos em que seja admissível a prova testemunhal.

Conceitos indeterminados

O conteúdo dos conceitos utilizados pela grande maioria das normas materiais pode
ser determinado em abstrato, isto é, independentemente de uma situação concreta, com
razoável precisão. Neste sentido pode dizer-se que são conceitos determinados.
Por exemplo, “crédito”, “credor”, “devedor”, “contrato”, “propriedade”, “casamento”,
“sucessão”.

32
MAFALDA BOAVIDA
1º ANO TB12

A maior parte destes conceitos é suscetível de uma definição, isto é, de uma


delimitação abstrata do seu conteúdo, por meio da indicação de notas definidoras ou
características.
Por exemplo, “crédito” é o direito de exigir de outrem uma prestação. O conteúdo do
conceito é delimitado por duas notas: um direito e o objeto desse direito que é uma
prestação.

A certeza do Direito objetivo e a previsibilidade das decisões jurisdicionais postulam


que na construção das proposições jurídicas seja dada primazia a conceitos
determinados.
Mas o Direito vigente também não prescinde, em certos casos, de conceitos
indeterminados, cujo conteúdo se reveste de um elevado grau de indeterminabilidade.

Vejamos alguns exemplos.


Segundo o art. 762.º/2 CC, no cumprimento da obrigação, assim como no exercício
do direito correspondente, devem as partes proceder de boa fé. “Boa fé” é, neste
contexto, um conceito indeterminado.
O art. 280.º/2 CC estabelece que é nulo o negócio contrário à ordem pública, ou
ofensivo dos bons costumes. “Ordem pública” e “bons costumes” são conceitos
indeterminados.

O conteúdo destes conceitos não pode ser delimitado por forma razoavelmente
precisa e de uma vez por todas. Esta delimitação tem de ser feita face às circunstâncias
de cada caso, através de sucessivas operações de concretização. A definição destes
conceitos ou não é possível ou não é suficiente para apreender o seu conteúdo. Tem
antes de se recorrer a exemplos geralmente reconhecidos.

São diversas as razões que podem levar à utilização de conceitos indeterminados.


Assinalarei quatro.
Primeiro, a multiplicidade das situações da vida pode tornar impossível a tipificação
das situações que geram determinada consequência jurídica ou a concretização da
própria consequência jurídica. Por isso o legislador deixa ao intérprete a missão de
concretizar a previsão ou a estatuição em função das circunstâncias do caso concreto.

33
MAFALDA BOAVIDA
1º ANO TB12

Nestes casos os conceitos indeterminados ligam-se à individualização da solução,


como atrás foi assinalado. Em lugar de prescindir completamente da aplicação de uma
regra jurídica, o legislador flexibiliza a regra, permitindo que através da concretização do
conceito indeterminado o intérprete disponha de uma certa margem de liberdade na
apreciação do caso.
Em segundo lugar, noutros casos, os conceitos indeterminados representam uma
abertura a valorações extrajurídicas, designadamente à moral. Segundo o entendimento
tradicional é o que se passa com o conceito de bons costumes. Ao considerar nulo o
negócio contrário aos bons costumes a norma legal estará a conferir eficácia jurídica a
valores e normas morais.
Terceiro, o conceito indeterminado pode exprimir uma remissão para “regras gerais
de experiência”, fazendo apelo à experiência que o intérprete tem da realidade social. É
o que se passa quando o conceito manda atender ao que é normal ou usual.
Enfim, no que toca ao Direito Internacional Privado, a indeterminabilidade dos
conceitos utilizados na previsão das normas de conflitos decorre da necessária abertura
a realidades jurídicas diferentes e até desconhecidas do Direito material português.

Do exposto resulta que os conceitos indeterminados são muito diversos entre si. Esta
diversidade significa também que não há uniformidade nos problemas metodológicos
suscitados pelos conceitos indeterminados.
As atenções têm-se centrado nos conceitos indeterminados “carecidos de
preenchimento valorativo”, que são conceitos indeterminados que veiculam certos
valores e/ou princípios jurídicos, e que carecem de ser concretizados à sua luz, mediante
uma valoração. É o caso dos conceitos de “boa fé” (no contexto referido), “justa causa”,
“interesse público”, etc.
Para preencher o conteúdo destes conceitos tem de se atender ao conjunto do
sistema jurídico e à consciência jurídica geral, por forma a esclarecer quais os valores e
(ou) princípios veiculados.
A concretização dá-se através da sucessiva aplicação ou não aplicação da
proposição que contém o conceito indeterminado a casos concretos.

A solução adotada relativamente a um certo caso é generalizável a todos os casos


comparáveis. Através da formação de grupos de casos e da indagação dos traços típicos

34
MAFALDA BOAVIDA
1º ANO TB12

que os caracterizam pode avançar-se muito na concretização do conceito indeterminado.


Este processo de concretização é interminável.
Quando o conceito “carecido de preenchimento valorativo” é utilizado na previsão da
norma, a sua concretização tem de atender à adequação da consequência jurídica
estabelecida.
Dada a sua indeterminação o conceito permite que a previsão da norma abranja todas
as situações que, à luz da valoração subjacente, devem desencadear a consequência
jurídica nela estatuída. Por outras palavras, a previsão terá o alcance que convém à
estatuição.
Por exemplo, para determinar se uma pessoa é ou não responsável por danos
causados não intencionalmente pela sua conduta, se empregou ou não a diligência de
um bom pai de família (conceito carecido de preenchimento valorativo)), tem em última
análise de se averiguar se, à luz da valoração legal e do instituto da responsabilidade
civil no seu conjunto, se justifica fundamentar a responsabilidade, impor a obrigação de
indemnizar naquele caso.

Cláusulas gerais

Em regra, a previsão das normas reporta-se a uma categoria de situações ou a um


aspeto típico de situações da vida. Por exemplo, as normas que se reportam ao contrato
de compra e venda, à propriedade, ao casamento, à sucessão por morte. Estas
situações são delimitadas com recurso a notas típicas, ou características, e, por isso,
pode dizer-se que a previsão é tipificadora.
Diferentemente, algumas proposições jurídicas dispõem de uma previsão muito
ampla, que não é tipificadora, porque não se reporta a uma categoria de situações ou a
um aspeto típico de situações da vida. Fala-se, a este respeito, de cláusulas gerais.

Vejamos alguns exemplos.


O art. 334.º CC estabelece que é “ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular
exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo
fim social ou económico desse direito”. Trata-se do instituto do abuso do direito. Esta
proposição reporta-se ao exercício de quaisquer direitos, ou até ao exercício de
quaisquer posições jurídicas e é, por isso, considerada uma cláusula geral.

35
MAFALDA BOAVIDA
1º ANO TB12

O art. 483.º CC determina que “Aquele que, com dolo ou mera culpa, violar
ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger
interesse alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da
violação”. Esta proposição geral de responsabilidade civil reporta-se à violação de
qualquer direito ou interesse legalmente protegido (sem prejuízo da especialidade da
responsabilidade contratual) e é, por isso, uma cláusula geral.

Mas a expressão cláusula geral também tem sido utilizada, designadamente na


Alemanha e entre nós, para designar proposições jurídicas que embora disponham de
uma previsão muito ampla, se reportam a uma categoria de situações ou a um aspeto
típico de situações da vida.
Por exemplo, o n.º 2 do art. 762.º CC determina que “No cumprimento da obrigação,
assim como no exercício do direito correspondente, devem as partes proceder de boa
fé”. À semelhança do que se verifica com o art. 242.º CC alemão, tem-se entendido que
há aqui uma cláusula geral. No entanto, esta proposição reporta-se a um aspeto típico –
o cumprimento – de uma categoria de situações – as obrigações.

Fica assim a ideia de que as cláusulas gerais são uma categoria de proposições
jurídicas de contornos vagos, marcada por uma certa relatividade: previsão mais ampla
do que é normal.
Tenho muitas dúvidas sobre a utilidade do conceito de cláusula geral com o alcance
que lhe vem sendo atribuído. Também aqui verificamos que as ditas cláusulas gerais
são muito diversas entre si e que não há uniformidade nos problemas metodológicos por
elas suscitados.

Uma cláusula geral que utilize exclusivamente conceitos determinados não coloca os
mesmos problemas que uma cláusula geral que empregue conceitos “carecidos de
preenchimento valorativo”.
Segundo creio, o que justifica maior atenção da Teoria Geral do Direito não são os
conceitos indeterminados ou as cláusulas gerais na sua globalidade, mas os conceitos
“carecidos de preenchimento valorativo”. As cláusulas gerais que utilizam estes
conceitos suscitam os mesmos problemas metodológicos que foram atrás examinados.
Assim, por exemplo, a partir do momento em que se aceite que determinado ato de
exercício de um direito representa um abuso de direito, por exceder os limites impostos

36
MAFALDA BOAVIDA
1º ANO TB12

pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito, torna-
se possível indagar quais os atos que, por serem comparáveis com o primeiro,
constituem igualmente um abuso do direito.
Com a sucessiva aplicação da cláusula, tornar-se-á possível conformar tipos de atos
que constituem abuso do direito.
Além disso, seria a meu ver preferível adotar um conceito restrito de cláusula geral,
que apenas abrangesse proposições jurídicas com uma previsão não tipificadora e que
não devem ser consideradas princípios jurídicos. Este conceito delimitaria uma categoria
de proposições jurídicas.

O Sistema

Sistema jurídico – considerações preliminares

Na visão mais comum, o sistema jurídico é encarado como um conjunto de


proposições jurídicas, e, principalmente, como um conjunto de normas. A atual literatura
jurídica dá conta, porém, que esta ideia não é de modo algum pacífica. Encontram-se as
posições mais diversas sobre o que se deve entender por sistema jurídico e sobre a sua
relevância para a interpretação e aplicação do Direito.

Para entender estas divergências é necessário esclarecer o conceito de sistema de


que se parte. Com efeito, uma parte destas divergências deve-se aos diferentes
conceitos de sistema e às diferentes funções, atribuídas ao sistema, que lhe estão
ligadas.
A sistematização parece ser uma tendência natural do pensamento humano. KANT
falou de uma natureza “arquitetónica” da razão, que aspira a considerar todos os
conhecimentos “como pertencendo a um sistema possível”. Isto levou-o a conceber o
sistema como unidade, sob uma ideia, de conhecimentos diversos ou, por outras
palavras, a ordenação de várias realidades em função de pontos de vista unitários.
Este conceito corresponde a um sistema de conhecimentos ou ideias. Este conceito
de sistema é diferente daquele que tem feito curso nas ciências sociais, designadamente
na sociologia, e que se reporta a sistemas de ação.

37
MAFALDA BOAVIDA
1º ANO TB12

Enquanto o sistema de conhecimentos é estático, exprimindo-se em nexos entre


ideias, o sistema de ação refere-se a estruturas de conduta, a interações.
Assim, a sociedade, enquanto sistema social, é vista como um sistema de interações,
isto é, uma conexão entre seres humanos que se estabelece por as suas condutas
estarem em correlação segundo determinados padrões de conduta e, assim,
configurarem uma estrutura de conduta complexa.
Se quisermos abranger estes conceitos de sistema numa fórmula mais abrangente
poderemos dizer que um sistema é um conjunto estruturado de elementos e nexos, ou
por outras palavras, um conjunto delimitado e ordenado.
Se partirmos desta fórmula abrangente o Direito pode ser concebido como sistema
segundo diversas perspetivas.

Vamos salientar para já quatro perspetivas possíveis: parte da ordem social (ou
subsistema social), sistema científico de conceitos, sistema legal e Direito objetivo (ou
sistema normativo),
Primeiro, o Direito pode ser encarado como uma parte da ordem social, que
desempenha, antes do mais, uma função estabilizadora, através do estabelecimento de
normas e princípios de conduta vinculativos. Claro que o Direito só pode desempenhar
esta função se houver uma certa articulação interna entre as normas e princípios de
conduta que o integram. Enfim, este processo de institucionalização também pressupõe
a existência de certos valores fundamentais comuns, que devem estar subjacentes às
normas e aos princípios de conduta.
De tudo isto decorre que todo o Direito, assim encarado, se apresenta como um
conjunto suficientemente ordenado para ser considerado como um sistema ou
subsistema.
É neste sentido que o Direito é encarado como um subsistema social em algumas
das recentes obras de sociologia do Direito.
Este modo de encarar as coisas é compatível com a ideia de ordem jurídica que
apresentei na I parte do nosso curso. Mas isto é dizer também que o Direito não pode
pois ser visto apenas como sistema normativo. Do ponto de vista da sua estrutura tem
de incluir outros elementos: valores, meios de tutela jurídica, estruturas sociais
juridicamente relevantes e situações jurídicas concretas.

38
MAFALDA BOAVIDA
1º ANO TB12

Uma tendência importante da moderna Sociologia do Direito faz aplicação das teorias
sistémicas, que suponho já conhecerem.
Recordarei apenas que segundo estas teorias os sistemas são abertos ou fechados
conforme há ou não interação entre o sistema e o ambiente através de “entradas” e
“saídas” [inputs e outputs].
Na conceção dominante, que corresponde ao modelo sistémico de EASTON, todos
os sistemas sociais são em maior ou menor grau abertos. A análise incide sobre as
transações com o meio ambiente em que as “entradas” surgem como solicitações e
apoios e as “saídas” como decisões e ações. O esquema inclui ainda o processo de
retroação ou efeito de retorno [feedback] das “saídas” em “entradas” com a mediação do
meio ambiente.
Nesta ótica, o Direito estadual, enquanto subsistema social, está em interação com o
sistema global, a sociedade, e com cada um dos outros subsistemas sociais, em especial
o sistema político e o sistema económico.
O sistema político produz decisões que constituem “entradas” no sistema jurídico,
mas estas decisões são tomadas segundo processos regulados pelo sistema jurídico e,
portanto, há programas de conduta emitidos pelo sistema jurídico que constituem
“entradas” no sistema político.

O sistema político também apoia o sistema jurídico, por exemplo, através da


disponibilidade de meios de coerção, e o sistema jurídico apoia o sistema político,
através da legitimação das decisões produzidas pelo sistema político, da promoção da
paz social, do acesso a meios jurídicos de resolução de conflitos, etc.
A ordem jurídica estadual também estabelece interações com outros sistemas
jurídicos, designadamente o sistema jurídico internacional, o sistema jurídico da União
Europeia e sistemas jurídicos estrangeiros.

Nas teorias sistémicas mais recentes o problema das transações do sistema com o
meio é visto como um problema de comunicação, isto é, de circulação de informação
sintetizada, o que vai ter certa influência no surgimento das teorias, a que adiante se fará
uma alusão, que vêm os sistemas sociais como sistemas autopoiéticos.

39
MAFALDA BOAVIDA
1º ANO TB12

Numa segunda perspetiva, os conhecimentos jurídicos podem ser estruturados como


um sistema. Isto é uma tarefa científica, que incumbe à ciência jurídica. A ciência jurídica
realiza esta tarefa, desde logo, quando, nas suas obras, sistematiza o material jurídico.
O sistema científico de conceitos, que examinarei melhor no próximo ponto, constitui
um sistema de conhecimentos. Como veremos, a unidade e coerência deste sistema
resulta principalmente de um método lógico-conceptual. Mas nada obsta a que o sistema
comporte também nexos funcionais e valorativos.
É claro que na construção deste sistema a ciência jurídica não deve alhear-se da
realidade da ordem jurídica e, que, portanto, há uma relação entre esta perspetiva e as
outras perspetivas sobre o sistema jurídico.

Em terceiro lugar, temos o sistema legal. O sistema legal resulta da arrumação de


matérias feita pelo legislador. Assim, todos os códigos modernos se nos apresentam
sistematizados, isto é, com as matérias ordenadas segundo um ou mais critérios
tendencialmente racionais.
O sistema legal não é alheio ao sistema científico de conceitos. O legislador baseia-
se, pelo menos em parte, no sistema de conceitos elaborado pela ciência jurídica. Por
seu turno, a ciência jurídica não pode ignorar os conceitos legais, e, sem prejuízo da
autonomia que adiante será sublinhada, tende frequentemente a basear-se na
sistemática legal.

Numa última perspetiva, o Direito pode ser visto como uma ordem objetiva de
conduta, como Direito objetivo.
É esta perspetiva que corresponde melhor à visão mais comum de sistema jurídico.
Para quem pense que a norma, ainda que não seja o único elemento desta ordenação,
será um elemento essencial, será natural designar esta dimensão do Direito como
normativa, e o sistema que lhe corresponde como “normativo”.

O sistema normativo apresenta-se-nos, numa primeira aproximação, como um


conjunto de proposições jurídicas que regulam a vida em sociedade.
Na doutrina alemã, este sistema é frequentemente designado como “sistema interno”,
mas esta expressão seria de preferir relativamente a “sistema normativo” caso se
entendesse que as regras não são um elemento essencial do sistema ou, até, que não
são elementos do sistema.

40
MAFALDA BOAVIDA
1º ANO TB12

A relevância de cada uma destas perspetivas depende do contexto em que a questão


se coloque e das funções que, nesse contexto, se pretenda atribuir ao sistema.
Para uma introdução ao Direito, que procure definir o seu papel na sociedade e
abranger todas as suas dimensões, impõe-se a perspetiva mais abrangente (ordem
jurídica).
Para a “dogmática”, a segunda perspetiva (sistema científico de conceitos).
Para a ciência jurídica prática, que se ocupa da interpretação e aplicação do Direito,
da integração de lacunas, da resolução dos problemas suscitados pelo concurso de
normas, a perspetiva fundamental é a última (sistema normativo). Daí que no
desenvolvimento que se segue dedique mais atenção ao sistema normativo.

Mas antes de estudar o sistema normativo procederei a um exame dos conceitos


jurídicos, do sistema científico de conceitos e das operações metodológicas que lhe
estão associadas.

Conceitos jurídicos
Sistema científico de conceitos
Construção

As regras jurídicas utilizam conceitos para delimitar a sua previsão e para formular a
sua estatuição.
Assim, por exemplo, o art. 502.º CC determina que “Quem no seu próprio interesse
utilizar quaisquer animais responde pelos danos que eles causarem, desde que os danos
resultem do perigo especial que envolve a sua utilização”. Encontramos aqui vários
conceitos. Na previsão temos “interesse próprio”, “animal”, “utilização”, “perigo especial”.
Na estatuição temos “danos” e “responder pelos danos”.

Alguns destes conceitos são essencialmente fácticos ou descritivos: “animal”,


“utilização” e “perigo especial”. A determinação do seu conteúdo baseia-se na
experiência social do intérprete e nos usos linguísticos gerais.
Outros conceitos já são técnico-jurídicos ou normativos, porque a determinação do
seu conteúdo exige o recurso a outras normas ou à elaboração realizada pela ciência
jurídica.

41
MAFALDA BOAVIDA
1º ANO TB12

Assim, o significado de “responder por danos” só se obtém mediante a inserção da


regra no contexto do regime da responsabilidade pelo risco e, mais em geral, no contexto
das normas sobre responsabilidade civil.

Esta distinção entre conceitos fácticos e conceitos normativos carece, no entanto, de


ser relativizada.
A determinação do alcance dos conceitos fácticos utilizados numa norma pode
suscitar problemas de interpretação a resolver, entre outros critérios, à luz da intenção
do legislador histórico. Daí decorre que não raramente surjam divergências entre os usos
linguísticos gerais e o alcance de um conceito fáctico utilizado numa norma.
Assim, por exemplo, segundo os usos linguísticos gerais dificilmente se pode dizer
que a eletricidade é uma coisa. Mas o conceito jurídico de coisa abrange a eletricidade.
Há também divergências entre o significado atribuído a uma palavra por outras ciências,
e aquele que releva para o Direito. Por exemplo, as bactérias foram inicialmente
classificadas pelas ciências da natureza como animais, mas desde sempre se entendeu
que não cabiam no conceito de animal utilizado por normas como o art. 502.º CC.

Tradicionalmente assume grande importância na formação dos conceitos normativos


o processo de abstração.
Quanto aos conceitos utilizados para delimitar a previsão da norma este processo
consiste na seleção, de entre os vários elementos das situações da vida carecidas de
regulação jurídica, das notas que são juridicamente relevantes. Deste modo obtêm-se
conceitos que delimitam categorias de situações da vida que apresentam as
características relevantes, por exemplo, “contrato”, “negócio jurídico unilateral”,
“propriedade”, “usufruto”, etc.

Através da eliminação de parte destas notas é possível obter conceitos com


diferentes níveis de abstração e generalidade.
Assim, por exemplo, abstraindo de certas notas das obrigações contratuais, das
obrigações geradas por negócios jurídicos unilaterais e das obrigações involuntárias
obtém-se o conceito geral de obrigação. À obrigação, como posição passiva,
corresponde o direito de crédito, como posição ativa. Abstraindo de certas notas da
propriedade, do usufruto e de outros direitos reais chega-se ao conceito de direito real.

42
MAFALDA BOAVIDA
1º ANO TB12

Por seu turno, abstraindo de certas notas dos direitos de crédito e dos direitos reais
será possível chegar ao conceito, mais abstrato e mais geral de direito subjetivo.
Estes conceitos, que poderemos designar por conceitos abstratos, são
representações das notas comuns a vários objetos.
O “sistema de conceitos” que assim se obtém baseia-se em regras de lógica formal.
O processo de abstração permite que a interpretação e a aplicação da lei se baseiem
na definição dos conceitos utilizados na previsão das normas e no silogismo de
subsunção. Estes pontos serão adiante examinados a propósito da interpretação e
aplicação. Numa primeira aproximação pode dizer-se que a norma se aplica quando as
notas contidas no conceito que delimita a sua previsão estão presentes na situação em
causa.
Garante-se assim, aparentemente, a certeza do Direito objetivo e a previsibilidade
das soluções.

Mas o processo de obtenção da solução só poderia ser realizado com puros meios
lógico-conceptuais se o sistema normativo tivesse certas características,
designadamente a de utilizar só conceitos abstratos determinados e de ser caracterizado
pela plenitude, isto é, não ter lacunas, ou poder ser integrado através de operações de
lógica formal.
Isto foi defendido pela jurisprudência dos conceitos. Ao longo do século XX diversas
correntes do pensamento jurídico, começando pela jurisprudência dos interesses e pela
Escola do Direito Livre, vieram demonstrar que a interpretação e a aplicação do Direito
colocam questões que não se deixam resolver através de operações de lógica formal.
Primeiro, como adiante veremos melhor, muitas das palavras utilizadas nas normas
têm vários sentidos possíveis, dando origem a problemas de interpretação. Para a
resolução destes problemas é frequentemente importante, e até decisivo, averiguar qual
o sentido que melhor corresponde às finalidades prosseguidas com a norma. Portanto a
interpretação pode envolver uma valoração. Isto é particularmente evidente no caso dos
conceitos carecidos de preenchimento valorativo.
De onde decorre também que a mesma palavra pode ter um significado diferente
conforme seja utilizada numa ou noutra norma. Por exemplo, a palavra “empresa” é
umas vezes empregue no sentido de empresário, outras vezes no sentido de
“empresário coletivo”, isto é, de uma pessoa coletiva que explora uma empresa, outras
vezes ainda no sentido de unidade de ação económica organizada.

43
MAFALDA BOAVIDA
1º ANO TB12

Segundo, o Direito positivo é lacunar. A integração de lacunas não pode ser feita
através de uma dedução, mas envolve uma valoração, quer para estabelecer a analogia,
concretizar um princípio ou criar uma solução compatível com o sistema.
Enfim, e mais em geral, o pensamento lógico-conceptual tem sido criticado por dar
primazia à lógica formal, designadamente aos mecanismos dedutivos e à subsunção,
em prejuízo da teleologia (da lógica dos fins) e da ética jurídica.

Chama-se a atenção para a importância que têm assumido outras formas de


pensamento jurídico, tais como o pensamento baseado em princípios jurídicos e em
tipos, para técnicas legislativas como os conceitos indeterminados e as cláusulas gerais,
para a necessidade de formular conceitos jurídicos que não são “abstratos” mas
“funcionalmente determinados”.

Mas com isto não se renunciará à precisão e clareza conceptuais, que são
necessárias à certeza e a previsibilidade jurídicas, e não se dará demasiada liberdade
ao órgão de aplicação?
Este é um dos pontos em que se mostra necessário um equilíbrio entre as exigências
dos valores materiais e dos valores formais do Direito.

Este equilíbrio deve ter presente duas ordens de considerações.


Por um lado, deve observar-se que a limitação do método lógico-conceptual
representa um sacrifício da certeza e previsibilidade jurídicas menor do que pareceria à
primeira vista, porque a jurisprudência dos conceitos se mostrou particularmente atreita
a artifícios conceptuais e habilidades retóricas para justificar o resultado desejado pelo
intérprete.
Nesta medida o conceptualismo contribui para algum descrédito da ciência jurídica,
para a ideia de que o jurista encontra sempre uma boa argumentação para qualquer
tese.
Por outro lado, não se justifica hoje a desconfiança com que o primeiro liberalismo e
o primeiro constitucionalismo encaravam os juízes, que ainda eram lembrados como
servidores do rei.
Nas modernas sociedades democráticas os tribunais gozam de independência e
estão em vasta medida fora da esfera de influência dos partidos políticos e dos grupos
de interesses, o que lhes tem permitido obter uma considerável confiança social. Por

44
MAFALDA BOAVIDA
1º ANO TB12

isso, parece não só metodologicamente inevitável, mas também justificado


materialmente deixar ao poder judicial uma certa quota na solução dos problemas da
justiça.
Do exposto não decorre que o método lógico-conceptual seja posto de parte, mas
antes a necessidade de o conjugar com outros modos de pensamento na resolução de
questões jurídicas.

O método lógico-conceptual continua a ser necessário quer na atividade legislativa


quer na sistematização científica.

Os conceitos abstratos têm um papel fundamental a desempenhar na elaboração das


leis. Este papel será tanto mais importante quanto maiores forem as exigências da
segurança, certeza e previsibilidade na matéria em causa. Também as partes gerais se
têm de basear principalmente em conceitos abstratos.
Estes conceitos também têm um papel a desempenhar na sistematização científica
e no ensino do Direito. Por exemplo, a apreensão de matérias como a personalidade, a
capacidade jurídica e o direito subjetivo tem de ser feita com base em conceitos
abstratos.

Na formação destes conceitos o legislador e a ciência jurídica não se limitam a


proceder a sucessivas operações de abstração. Em conceitos como “personalidade” e
“direito subjetivo” também se projetam valorações e conceções jurídicas gerais. Não são
conceitos neutros.
Mas a lei também utiliza conceitos de outro tipo, como já resulta do exame feito aos
conceitos indeterminados e às cláusulas gerais. Os conceitos “carecidos de
preenchimento valorativo” não são conceitos abstratos.
A lei pode utilizar conceitos que incluam notas funcionais, atendendo à função
económico-social ou aos nexos funcionais entre normas ou institutos jurídicos.
Por exemplo, os conceitos de “relações de família” e “sucessões por morte” não se
baseiam nas características estruturais das situações jurídicas em causa, mas na sua
relação com a instituição familiar e com uma vicissitude jurídica (a transmissão do
património por morte do seu titular).

45
MAFALDA BOAVIDA
1º ANO TB12

O conceito de direito real de garantia inclui uma nota funcional: a subordinação do


direito à garantia de um crédito.
Em determinados domínios, como é o caso de certos contratos, justifica-se um
pensamento tipológico, que se baseia na imagem global que decorre dos traços típicos
que se inferem do conjunto do regime legal aplicável. Na falta de uma definição legal
vinculativa, a recondução de um contrato concreto ao tipo contratual não depende da
verificação de todos os traços particulares, mas da sua correspondência à imagem global
do tipo.

No caso de se tratar de um tipo contratual que se desenvolveu no tráfico negocial, e


que ainda não é legalmente regulado, a caracterização do tipo tem de assentar na função
económica e nos modelos contratuais e cláusulas usuais. Daí retiram-se traços
caracterizadores que através de uma comparação com outros tipos contratuais podem
fornecer indicações relevantes para a determinação do regime aplicável.
Enfim, há uma considerável independência entre os conceitos utilizados pela ciência
jurídica e os conceitos empregues na lei. O legislador deve empregar os conceitos
funcionalmente mais adequados à resolução dos problemas de regulação. Embora,
como assinalei, também se apoie no esforço de sistematização realizado pela ciência
jurídica, o legislador não está vinculado ao sistema científico de conceitos. A extensão
do conceito utilizado para delimitar a previsão da norma é um problema de adequação
aos fins e não um problema de sistematização científica.
Por seu turno, a ciência jurídica tem a liberdade de construir conceitos diferentes dos
que são utilizados na lei, por entender serem outros os conceitos que melhor servem
para apreender e ordenar o Direito.

O sistema científico de conceitos releva ainda, para a ciência jurídica, com respeito a
uma operação metodológica que poderemos designar por construção jurídica.
Tradicionalmente fala-se a este respeito de determinação da natureza jurídica, por
exemplo, da natureza de um contrato, da natureza de um instituto jurídico, etc.

A construção consiste na recondução de uma realidade jurídica a um conceito


científico, isto é, que faz parte do sistema de conceitos da ciência jurídica.

46
MAFALDA BOAVIDA
1º ANO TB12

Tome-se como exemplo o instituto da posse. A posse é definida pelo art. 1251.º CC
como o poder que se manifesta quando alguém atua por forma correspondente ao
exercício do direito de propriedade ou de outro direito real.
Por exemplo, uma pessoa exerce relativamente a uma coisa os poderes que assistem
ao proprietário, porventura convencida que é o seu proprietário, sem que o seja.
A posse está regulada nos artigos seguintes.
Pois bem tem-se discutido se a posse, é um direito subjetivo e, no caso de ser um
direito subjetivo, se é ou não um direito real.
Não é raro que se confunda a construção com a qualificação, o que representa uma
inversão metodológica, característica da jurisprudência dos conceitos.
A qualificação é uma operação diferente, que adiante estudaremos, e que consiste
na recondução de uma situação da vida, ou de um seu aspeto, à previsão de uma norma.
Da qualificação depende a aplicação da norma e, por isso, a qualificação é uma operação
relevante para a determinação do regime aplicável.
Por exemplo, se um contrato pelo qual uma pessoa se obriga a realizar determinados
serviços para outra pessoa for qualificado como contrato de trabalho, será aplicável o
regime do contrato de trabalho, que contém muitas normas protetoras do trabalhador.
Se for qualificado como contrato de prestação de serviço já se aplica outro regime que
não contém tais normas protetoras.

A construção nada tem que ver, pelo menos diretamente, com a determinação do
regime aplicável.
Por exemplo, a posse é regulada nos arts. 1252.º e segs. CC. A construção da posse
como direito real ou como direito subjetivo de outra natureza é, em princípio, irrelevante
para a determinação do regime aplicável.

Não pode basear-se a determinação do regime na construção; é antes a construção


que pressupõe a determinação do regime aplicável. Com efeito, só após a determinação
do regime aplicável se conhecem os traços caracterizadores do instituto e se pode
averiguar se o instituto se integra neste ou naquele conceito científico.
Para a construção pode ser importante não só o conteúdo jurídico do instituto, mas
também a sua função económico-social e a sua função jurídica, isto é, o papel que o
instituto desempenha no sistema normativo.

47
MAFALDA BOAVIDA
1º ANO TB12

Os elementos funcionais serão relevantes quando se trate de integrar o instituto num


conceito científico que inclua notas funcionais.
Também não se exclui que a construção possa envolver uma valoração, quando o
conceito não seja puramente abstrato e envolva, na determinação do seu conteúdo, uma
valoração.
Assim, por exemplo, para a construção da cláusula de reserva da propriedade, que é
normalmente uma cláusula acessória do contrato de venda, pode ser relevante a função
económico-social de garantia do crédito do preço da venda e a função jurídica que é a
de reservar o direito de resolução do vendedor e de acautelar a eficácia da resolução
perante terceiros e o direito à restituição da coisa. A esta luz seria concebível incluir a
reserva da propriedade num conceito de “propriedade-garantia”, que englobaria as
diferentes modalidades de utilização da propriedade em garantia.

Foi atrás assinalado que a construção não tem que ver diretamente com a
determinação do regime aplicável. Mas parece que indiretamente, ao contribuir para uma
melhor compreensão do instituto, a construção pode ter alguma relevância para resolver
problemas de regime que não encontram uma resposta inequívoca na lei

Sistema normativo – razão de ordem

Vimos anteriormente que o sistema normativo se nos apresenta, numa primeira


aproximação, como um conjunto de proposições jurídicas que regulam a vida em
sociedade. Mas que a doutrina diverge sobre os elementos deste sistema e sobre a sua
caracterização.
Impõe-se por isso que comece por expor as principais conceções sobre o sistema
normativo, para em seguida enunciar a posição por mim adotada e, em conformidade
com esta posição, examinar os princípios jurídicos enquanto um dos elementos do
sistema normativo e a relevância prática do sistema normativo.
O outro elemento basilar do sistema normativo – a regra jurídica – será examinado
no próximo Título.

48
MAFALDA BOAVIDA
1º ANO TB12

Principais conceções sobre o sistema

Pensamento sistemático de raiz positivista:


à Positivismo normativo (KELSEN)
à Neopositivismo (HART)
à Teoria autopoiética (LUHMANN, TEUBNER)

Pensamento sistemático de pendor neojusnaturalista:


à ESSER
à DWORKIN
à LARENZ, CANARIS, OLIVEIRA ASCENSÃO e MENEZES CORDEIRO

Críticos do pensamento sistemático:


à PEINE
à ZIPPELIUS

O moderno pensamento jurídico tende a encarar o Direito objetivo como um sistema.


O pensamento dominante é, por conseguinte, um pensamento sistemático.

A importância do sistema para o moderno pensamento jurídico revela-se logo a


propósito da identificação das normas jurídi-cas. De acordo com o anteriormente exposto
a norma é jurídica se pertence ao sistema jurídico. O critério de identifi-cação é um
critério de pertença ao sistema. Nisto convergem as mais diversas correntes, desde o
positivismo normativo [KELSEN] ao institucionalismo [SANTI ROMANO].
Mas o sistema normativo pode ter outros planos de relevância, designadamente o
controlo da validade das normas, a interpretação e a integração de lacunas, a resolução
de problemas de concurso de normas e até a eventual correção de soluções
individualizadas.

Segundo uma conceção muito divulgada, e que é adotada pelo positivismo normativo,
o sistema jurídico, ou normativo, é formado por normas. KELSEN distingue dois tipos de
sistema.
No sistema que designa por estático as normas que constituem o sistema podem ser
deduzidas a partir de uma norma fundamental que contém um postulado ético. As

49
MAFALDA BOAVIDA
1º ANO TB12

normas encontram-se associadas umas às outras pelo seu conteúdo, pois cada uma
delas é uma concretização do postulado ético ou moral contido na norma fundamental.

Podemos dizer que o critério de pertença ao sistema é “material”, isto é, diz respeito
ao conteúdo da norma. Observe-se que este tipo de sistema parece abranger o sistema
axiomático, que é aquele em que as soluções particulares podem ser obtidas por
dedução a partir de certas proposições gerais cuja verdade é evidente.

O sistema dito dinâmico é por BOBBIO exposto da seguinte forma: as normas que
constituem o sistema derivam umas das outras através de sucessivas delegações de
poder, de tal modo que, partindo da norma emanada pela autoridade inferior para a
norma emanada pela autoridade imediatamente superior se chega à norma fundamental
que constitui a base de validade de todas as normas do sistema. Esta norma fundamental
não tem outro conteúdo senão a atribuição de poder à autoridade legisladora máxima.

O critério de integração destas normas no sistema não diz respeito ao seu conteúdo,
mas ao facto de serem emanadas através de sucessivas delegações de poder a partir
de uma autoridade máxima. Podemos dizer que é um critério genético.

Entre nós, DIAS MARQUES parece refletir um conceção de sistema algo semelhante,
quando encontra o fator que liga e ordena as normas, por forma a constituírem um
sistema, na hierarquia que resulta de todo o ato criador de Direito ter o seu fundamento
num comando jurídico que tenha autorizado a sua prática. Observe-se, contudo, que
este autor não restringe as fontes do Direito aos atos normativos, preferindo a expressão
mais ampla “facto normativo”, que inclui o costume.

Da crítica anteriormente dirigida ao sistema lógico-conceptual da “jurisprudência dos


conceitos” decorre já que o sistema normativo não pode ser encarado como um sistema
axiomático e, mais em geral, como um sistema de tipo dito “estático”. Assim como não é
possível que as soluções para todos os problemas de regulação jurídica sejam
deduzíveis de um conceito supremo, também não é possível deduzi-las de uma norma
fundamental.

50
MAFALDA BOAVIDA
1º ANO TB12

Mas há outras razões por que o sistema normativo não pode ser concebido como um
sistema dito “estático”. É que um sistema deste tipo não admite contradições e é
caracterizado pela plenitude. Ora no sistema jurídico há contradições e lacunas.
Por acréscimo, o conteúdo da norma nunca pode ser o único critério de pertença ao
sistema, uma vez que há uma pluralida-de de sistemas jurídicos, em que vigoram muitas
normas de conteúdo semelhante ou idêntico. O sistema dito “estático” nada nos diz, por
exemplo, sobre a questão de saber se uma norma pertence ao sistema nacional A ou ao
sistema nacional B.
Já o sistema dito dinâmico permite, pelo menos à primeira vista, resolver a questão
que acabo de colocar. A norma pertence ao sistema A se foi criada em conformidade
com a sua norma fundamental.

Mas este conceito de sistema também depara com objeções.


Algumas destas objeções são formuladas por autores que podemos designar por
neopositivistas. Assim HART assinala que o sistema de tipo dinâmico, quando entendido
nos termos expostos, não pode explicar a relevância do costume como fonte do Direito,
uma vez que as regras consuetudinárias não são criadas mediante o exercício de uma
competência normativa.
Parece, no entanto, duvidoso que KELSEN entenda o sistema de tipo dinâmico nos
termos expostos. Com efeito, segundo o autor, a norma fundamental tanto pode instituir
como facto produtor de normas o facto legislativo como um facto consuetudinário.

Mas ainda que entendido nestes termos, surgem outras objeções, designadamente
as formuladas por RAZ.
Em primeiro lugar, para KELSEN esta norma fundamental seria uma norma
pressuposta, segundo a qual as normas devem ser criadas em conformidade com a
primeira Constituição histórica e com as normas constitucionais estabelecidas em
conformidade com ela. Ao procurar justificar a norma fundamental, KELSEN argumenta
que para interpretar uma ordem coerciva globalmente eficaz como um sistema de
normas jurídicas válidas temos de pressupor a norma fundamental. O que
aparentemente significa que só depois de conhecidas as normas que pertencem a uma
ordem jurídica se está em posição de conhecer o conteúdo da norma fundamental. Mas,
se é assim, então a norma fundamental não constitui um critério de identificação das
normas do sistema.

51
MAFALDA BOAVIDA
1º ANO TB12

Em segundo lugar, pode suceder que, gradualmente, venha a afirmar-se uma nova
fonte do Direito num sistema jurídico, por exemplo, o gradual estabelecimento de um
sistema de precedente vinculativo. Neste caso não pode dizer-se que a jurisprudência é
fonte do Direito em conformidade com a primeira Constituição histórica. Mas este
argumento suscita questões complexas, pois é legítimo perguntar se as normas
constitucionais sobre a produção do Direito não podem ser modificadas em
conformidade com a primeira Constituição histórica.
Para HART o critério de identificação da norma jurídica é fornecido por uma “regra
de reconhecimento”. Esta regra especificará certo traço ou traços que a regra primária
deve possuir.
Assim, a regra de reconhecimento pode assumir uma grande variedade de formas.
Os traços a que atende podem ser o facto de as regras primárias serem emanadas de
um órgão específico, de um prática costumeira longa ou a sua relação com decisões
judiciais. Ao providenciar uma “marca de autoridade”, a regra de reconhecimento
introduz, ainda que em forma embrionária, a ideia de sistema: as regras primárias são
unificadas pela presença da marca que as caracteriza.

Segundo HART, para a existência de um sistema jurídico são necessárias e


suficientes duas condições mínimas. Por um lado, que aquelas regras de conduta que
são válidas segundo os critérios de validade últimos do sistema sejam geralmente
observadas e, por outro lado, que as regras de reconhecimento especificando os critérios
de validade jurídica sejam efetivamente aceites como padrões públicos comuns de
conduta oficial pelos órgãos de aplicação.
O que permite concluir não ser estritamente necessário que os particulares aceitem
a regra de reconhecimento como válida; basta que os particulares observem as regras
que os órgãos de aplicação identificam como válidas.

Quanto ao fundamento da “regra de reconhecimento” o autor não é, porém,


inequívoco.
Por um lado, afirma que a “regra de reconhecimento” é uma regra “última”, porque a
sua vigência não depende de qualquer outra regra. A regra de reconhecimento existe
como uma prática dos tribunais, autoridades e particulares na identificação do Direito por
referência a determinados critérios. A sua existência é uma questão de facto: afirmar que
a regra existe é fazer uma declaração sobre o modo como as regras de um sistema

52
MAFALDA BOAVIDA
1º ANO TB12

“eficaz” são identificadas. Eu creio que assim entendida a “regra de reconhecimento” não
é uma verdadeira regra, não é uma proposição normativa, que estabeleça como é que
as regras jurídicas devem ser identificadas, mas uma proposição descritiva, que
descreve o modo como se formam as regras numa determinada sociedade.
Noutro passo, porém, o autor afirma que a regra de reconhecimento é uma regra de
costume jurisprudencial [judicial customary rule] que só existe se é aceite e praticada
nas operações de identificação e aplicação do Direito pelos tribunais. Então a regra não
se fundamenta só num facto, há uma prática e uma convicção de vinculatividade por
parte dos órgãos de aplicação.
Enfim, com a conceção positivista de sistema jurídico é ainda possível relacionar a
recente teoria autopoiética, defendida designadamente por LUHMANN, WILLKE e
TEUBNER, e que entre nós encontrou eco em BOAVENTURA SOUSA SANTOS,
ENGRÁCIA ANTUNES e TEIXEIRA DE SOUSA.

Agora não se trata, ou não se trata apenas, de atribuir às normas sobre a produção
jurídica um papel fundamental na conformação do sistema, mas de sustentar que os
elementos do sistema são produzidos pelo próprio sistema, nisto consistindo a unidade
do sistema. Designa-se isto por clausura “recursiva” (LUHMANN) ou “operacional” do
sistema (TEUBNER).

Para compreender corretamente este postulado é necessário distinguir entre


comunicação e ação.
O Direito existiria só como comunicação. O próprio sistema jurídico determina quais
os factos que têm um significado juridicamente relevante e que, assim, entram na
autorreprodução do sistema. Logo, é impossível identificar estes factos sem o
conhecimento do sistema jurídico. A constituição destes elementos é um resultado
autónomo do sistema que ocorre no processo de auto-observação e de auto-descrição.
Mas ao mesmo tempo o sistema jurídico é “cognitivamente aberto”, isto é, a sua
constante reprodução é dependente da possibilidade de verificação de certas condições.
Estas condições referem-se a algo externo ao sistema, a factos. Por conseguinte,
mediante uma programação interna o sistema torna-se dependente de factos. Por este
meio realiza-se uma coordenação do processamento jurídico de informação com o
ambiente.

53
MAFALDA BOAVIDA
1º ANO TB12

Esta teoria rompe com a conceção de KELSEN porquanto opõe a ideia de


circularidade das teorias sistémicas ao esquema piramidal de um sistema jurídico
fundado na norma fundamental.
Também relativamente à construção de HART se verifica que o papel por este autor
atribuído à “regra de reconhecimento” é aparentemente substituído pela ideia de
“autorreferência”, isto é, se a entendo corretamente, uma referência ao sistema
considerado no seu conjunto.
Como nas construções anteriormente examinadas, manifesta-se aqui o desígnio de
conceber o sistema por forma a que os seus elementos possam ser identificados com
razoável grau de certeza e que a sua validade possa ser controlada. Mas a teoria
autopoiética exprime, além disso, uma determinada conceção sobre a função do Direito
e a inter-relação dos subsistemas societários.

Ao Direito é atribuída uma função essencialmente estabilizadora. O papel do Direito


não é o de constituir um instrumento de intervenção direta, mas o de conformar as inter-
relações dos subsistemas societários, por forma descentralizada, isto é, sem que
nenhum subsistema possa generalizar a sua própria racionalidade, ou visão do mundo,
para a impor aos outros.
Sem prejuízo das críticas genéricas que possam ser dirigidas às conceções de
sistema de raiz positivista, a que adiante me referirei, deixo apenas algumas
interrogações, e desde logo, a de se não nos encontraremos perante uma transposição
apressada de modelos sistémicos desenvolvidos nas ciências da natureza e,
designadamente, na biologia.
Em segundo lugar, perguntaria se não se estabelecerá aqui uma confusão entre
regulação pelo sistema dos processos de produção dos seus elementos e “auto-
determinação” do sistema. Pela circunstância de o sistema jurídico regular as fontes do
Direito e, designadamente, o processo legislativo não deixa, a meu ver, de haver “saídas”
do sistema político que representam “entradas” no sistema jurídico, uma vez que a
iniciativa do ato normativo e o seu conteúdo não são, em princípio, determinadas pelo
sistema jurídico.
Acresce que em sistemas jurídicos como o português também se opera a receção
de fontes de outros sistemas jurídicos – a ordem jurídica internacional e a ordem jurídica
da União Europeia – o que ainda parece mais afastado de uma ideia de “auto-
determinação”.

54
MAFALDA BOAVIDA
1º ANO TB12

Em terceiro lugar, perguntaria se com a palavra “auto-reprodução” não se quer dizer


simplesmente que cada elemento é portador da validade normativa do sistema porque
foi produzido segundo as regras estabelecidas no sistema e satisfaz as exigências de
validade por ele postas. Em caso afirmativo, será que a teoria autopoiética supera as
conceções de sistema atrás examinadas?

Enfim, não haverá aqui uma passagem insensível do plano do ser, da explicação do
funcionamento do sistema e do esclarecimento dos seus pressupostos e
condicionamentos funcionais, para o plano do dever ser, daquilo que o sistema e cada
um dos seus componentes deve ser, segundo um modelo ideal de “condução”
descentralizada da sociedade?

A esta conceção de um sistema formado exclusivamente por normas segundo um


critério de identificação que é, em princípio, formal, vieram as correntes modernas
neojusnaturalistas opor não só a necessidade de atender à dimensão valorativa, ou
axiológica, do Direito, aspeto que já foi anteriormente sublinhado, mas também, e em
ligação com isso, ao importante papel desempenhado pelos princípios jurídicos.

Para a compreensão dos princípios jurídicos, e do papel que se propõe atribuir-lhes,


convém recuar até ao movimento codificador do séc. XIX. Em algumas destas
codificações manda-se integrar as lacunas mediante a aplicação dos “princípios gerais
de Direito” ou, como sucedia no art. 16.º do Código de Seabra, na falta de analogia, pelos
“princípios de direito natural”.

Segundo o positivismo legalista os “princípios gerais de Direito” eram normas dotadas


de elevado grau de generalidade, implícitas, que se obtinham mediante sucessivas
generalizações das normas particulares do sistema. Já a expressão “princípios de direito
natural” representa uma óbvia manifestação do jusnaturalismo, embora a influência do
positivismo tenha levado a que por vezes esta expressão tenha sido tomada como
sinonímia de “princípios gerais de Direito”.
Toda a evolução posterior do conceito de "princípio jurídico" é marcada pela atração
exercida por cada um destes entendimentos: o de proposição geral de Direito positivo
ou de princípio suprapositivo.

55
MAFALDA BOAVIDA
1º ANO TB12

No século XX, a importância dos princípios jurídicos começa por ser assinalada por
autores como ROSCOE POUND e HEINRICH STOLL, que aliás nada têm que ver com
o neojusnaturalismo.
Mas o trabalho decisivo sobre a formação dos princípios e a sua função no processo
judicial deve-se a ESSER (1956). Este autor verificou que, quando não é possível
encontrar a solução do caso dentro dos quadros fixados pelo texto da lei, a jurisprudência
faz frequentemente apelo a “conceções jurídicas gerais” ou “princípios” que infere da lei
ou alega inferir da lei.
Este apelo a “conceções jurídicas gerais” que se inferem de certos trechos legais é
considerado uma fundamentação aparente. Na verdade, estes princípios vigorariam
independentemente da lei. Eles justificar-se-iam pela “natureza das coisas ou do instituto
em causa”.
Este autor também procurou superar a oposição entre conceito “positivo” e
“suprapositivo” de princípio. Para ESSER os princípios não são inferidos indutivamente
a partir da legislação, nem obtidos por dedução a partir de um sistema de Direito Natural
ou de uma ordem objetiva de valores.

Já assinalei que o autor faz apelo à “natureza das coisas” ou de um determinado


instituto, o que podemos interpretar como uma referência ao sentido ordenador imanente
a certas relações ou estruturas sociais.
ESSER faz ainda apelo aos “domínios pré-positivos de princípios ético-jurídicos e
convicções gerais”, o que não pode deixar de significar que o Direito se fundamenta, pelo
menos até certo ponto, na moral.

A jurisprudência atua como “transformador” dos “princípios pré-positivos em


proposições jurídicas positivas e institutos”.
O princípio começa por ser “revelado” num caso concreto e só depois se generaliza
como critério de solução de uma série de casos. Uma vez descoberto, o seu posterior
desenvolvimento na jurisprudência não é uma simples “aplicação”, mas um processo
duradouro e criativo de “conformação”. O princípio necessita ainda, para vigorar na
prática, de ser reconhecido judicialmente ou legalmente como uma diretiva vinculativa.

Em todas as culturas jurídicas se verifica uma circulação entre revelação do


problema, formação de princípios e consolidação do sistema. Enquanto soluções

56
MAFALDA BOAVIDA
1º ANO TB12

generalizadas de problemas os princípios são os verdadeiros elementos formadores do


sistema.
A investigação realizada alguns anos mais tarde, por DWORKIN, só no âmbito dos
sistemas do Common Law, apresenta um claro paralelo com a investigação feita por
ESSER, embora aparentemente a desconheça.
DWORKIN faz valer que na determinação da solução do caso, em especial nos
“casos difíceis” [hard cases] os juristas utilizam padrões [standards] que não funcionam
como regras, mas como princípios, políticas [policies] e outros tipos de padrões.

Em sentido estrito, “princípio” é um padrão que deve ser observado porque é uma
exigência da justiça [justice or fairness] ou de outra dimensão da moral. Ao passo que a
“política” é um padrão que estabelece um objetivo a ser atingido, geralmente uma
melhoria num aspeto económico, político ou social da comunidade.
Esta conceção de princípio exprime com toda a clareza uma fundamentação moral
do Direito.

DWORKIN dá um contributo fundamental para a distinção entre regra e princípio. A


diferença entre regra e princípio é lógica ou, talvez com mais rigor, relativa à sua
estrutura lógica. Contrariamente à regra no princípio as consequências jurídicas não
decorrem automaticamente da verificação dos pressupostos de facto. O princípio é
apenas um “ponto de partida” para encontrar a solução; aponta a direção em que a
solução deve ser encontrada.

Esta distinção segundo a estrutura não se confunde com a distinção segundo o grau
de generalidade, que identifica princípio com regra geral e se relaciona com o conceito
positivista de “princípio geral de Direito”.
DWORKIN assinala que os positivistas (designadamente HART numa primeira fase)
entendem que se um caso não é controlado por uma regra estabelecida o juiz deve
decidi-lo no exercício da discricionariedade judicial. O juiz pode tomar em conta outros
padrões que não sejam regras, mas não estaria obrigado a fazê-lo. O autor defende,
pelo contrário, que os princípios vinculam o juiz.
Segundo o autor, a vigência dos princípios inviabiliza a tentativa de basear o sistema
numa “regra de reconhecimento”. Não seria possível formular como uma regra única,
ainda que complexa, o conjunto de padrões móveis, em desenvolvimento e interação em

57
MAFALDA BOAVIDA
1º ANO TB12

que se baseia a argumentação a favor de um princípio. Mesmo que se conseguisse


formular tal regra seria demasiado incerta para identificar claramente o Direito válido,
que é uma preocupação fundamental para o positivismo normativo.
As proposições jurídicas são “verdadeiras” se decorrem dos princípios da justiça
substantiva [justice, fairness] e da justiça processual [procedural due process] que
fornecem a melhor interpretação construtiva da prática legal da comunidade. Os
fundamentos do Direito [grounds of law] assentam na integridade, isto é, na melhor
interpretação construtiva das decisões jurídicas passadas. A interpretação construtiva é
aquela que propõe a melhor justificação moral para a prática.

Poderia então dizer-se que os princípios são o critério de identificação (e também de


validade) dos elementos do sistema jurídico.

Mas encontram-se em DWORKIN indicações no sentido de os elementos do sistema


serem exclusivamente os princípios, e as regras apenas o resultado da sua
concretização.
A “reconstrução” do sistema jurídico com base nos princípios ético-jurídicos que
derivam da melhor teoria moral que justifica o sistema, feita por DWORKIN, aproxima-se
da conceção do sistema como “ordem axiológico-teleológica de princípios gerais”
sustentada por CANARIS e em vasta medida seguida por LARENZ.
Segundo CANARIS e LARENZ, a unidade inerente ao sistema jurídico reclama certos
pontos centrais de referência aos quais se possa reconduzir a diversidade do particular.
Estes pontos centrais de referência são, na linha do defendido por ESSER, os princípios
ético-jurídicos.
Os princípios são pré-dados ao ordenamento jurídico positivo e plasmam-se nele
enquanto expressão do Direito justo. Por isso são vistos por estes autores como uma
“mediação” entre a ideia de Direito, como fundamento último da normatividade do Direito,
e as regulações concretas do Direito positivo.

Afirma LARENZ que os princípios não se obtêm mediante um procedimento


generalizador a partir de regras jurídicas. A sua revelação exige antes uma viagem de
retorno desde as regras às ideias que as enformam e a partir das quais elas surgem
como um conjunto dotado de sentido.

58
MAFALDA BOAVIDA
1º ANO TB12

A relação entre a ideia de Direito e os princípios jurídicos gerais, bem como entre os
princípios jurídicos gerais e as normas jurídicas que podem ser vistas como sua
concretização, não é dedutiva, nem indutiva, mas uma relação de “esclarecimento
recíproco”. Os princípios fornecem pontos de vista orientadores para a obtenção da
solução de casos concretos e veem o seu conteúdo enriquecido e o seu sentido
explicitado por estas soluções concretizadoras.

Para CANARIS o sistema jurídico é composto exclusivamente de princípios. Os


traços deste sistema resultam em primeiro lugar das características dos princípios, que
em grande parte coincidem com a doutrina de DWORKIN:
à Os princípios jurídicos não vigoram sem exceções e podem entrar em oposição ou
contradição;
à Não reclamam exclusividade, isto é, não podem ser formulados segundo um
esquema “só quando... então”;
à Só revelam o seu conteúdo próprio num conjunto de recíprocos complementos e
limitações;
à Carecem para a sua concretização de subprincípios e de valorações particulares
com conteúdo material próprio.

Para CANARIS o sistema deve entender-se como um sistema aberto, o que, para o
“sistema interno”, significa a mutabilidade histórica das valorações jurídicas
fundamentais

Esta conceção de sistema é em vasta medida acolhida por MENEZES CORDEIRO,


que fala de um sistema aberto, móvel, heterogéneo e cibernético.
Na expressão de MENEZES CORDEIRO o sistema é aberto, em termos extensivos,
pela sua não plenitude; e, em termos intensivos, porque se compatibiliza, mesmo nas
áreas cuja cobertura assegure, com inclusão de elementos materiais que lhe são
estranhos.
É móvel por, no seu seio, as proposições não se encontrarem hierarquizadas,
surgindo antes como permutáveis.
É heterogéneo por apresentar, no seu corpo, áreas de densidade diversa: desde
coberturas integrais por proposições rígidas até quebras intrassistemáticas e lacunas
rebeldes à analogia.

59
MAFALDA BOAVIDA
1º ANO TB12

É, enfim, cibernético, por atentar nas consequências de decisões que legitime,


modificando-se e adaptando-se em função desses elementos periféricos.

Por seu turno, OLIVEIRA ASCENSÃO considera a conceção de sistema adotada por
MENEZES CORDEIRO como conforme à doutrina moderna, embora discorde do papel
central atribuído por este autor à ciência jurídica, tornando-a constitutiva do próprio
Direito, uma vez que onde não há consciência do método nem ciência jurídica não deixa
de haver Direito.

Também para estes autores as normas não são elementos do sistema jurídico.
Para OLIVEIRA ASCENSÃO a norma é um modo individual de expressão da ordem
jurídica, entre outros modos de expressão. Chega-se à norma mediante a interpretação
da fonte. Mas a norma não é sequer um modelo prefixado e individualizado que o
intérprete reconstitui. Só a ordem e as fontes seriam uma realidade objetiva preexistente,
ao passo que as normas seriam “criação do intérprete”, seriam “um veículo ou
instrumento, como expressão da ordem e mediador da solução do caso”.

A mobilidade do sistema é um ponto especialmente controverso. Perante esta


conceção de sistema, trata-se de saber se, na resolução de cada problema, um
determinado critério de decisão pode reclamar preferência, ou se, entre os diferentes
princípios e valores não existe uma hierarquia rígida

Caso se entenda, como parece ser o caso de CANARIS, que o sistema só é móvel
quando, em regra, há uma liberdade de apreciação do peso relativo de cada um dos
argumentos que podem constituir critério de decisão, inclino-me a pensar que a
imobilidade fundamental do sistema também é válida para o Direito português.
Isto porque na maior parte dos casos o fator decisivo no modelo de decisão jurídica
é constituído por normas, e porque a necessidade de conjugar diferentes normas que
estão ao mesmo nível hierárquico e de as interpretar à luz de valores e princípios não
significa, em regra, que o intérprete possa ou deva optar entre uma norma e outra norma
ou princípio.
Mas para isto ser assim, também se terá de considerar as normas como elementos
do sistema, ponto a que adiante se retornará.

60
MAFALDA BOAVIDA
1º ANO TB12

Esta conceção de sistema atribui-lhe múltiplos planos de relevância no processo de


obtenção da solução do caso, que vão além da já referida relevância para a interpretação
e a integração. Oferece especial interesse o tratamento dado por CANARIS às normas
contrárias ao sistema e às “normas estranhas ao sistema”.
No caso das normas contrárias ao sistema, o autor centra as suas atenções nas
“lacunas de colisão”.
Estas lacunas podem desde logo surgir em virtude de contradições de normas, em
que a mesma situação da vida é objeto de duas normas vigentes que estabelecem
consequências jurídicas incompatíveis entre si. Não sendo possível aplicar
simultaneamente ambas as normas, e se também não se justificar a primazia de uma
delas sobre a outra, verifica-se que as normas se anulam mutuamente dando origem a
uma “lacuna de colisão”.

Já é mais controverso se no caso de uma contradição valorativa as normas que


exprimem cada uma das valorações se anulam mutuamente dando origem a uma lacuna
de colisão. Neste caso as consequências jurídicas das normas em presença não são
incompatíveis entre si; trata-se antes de uma contradição na forma porque são valoradas
situações semelhantes ou análogas.
A posição do intérprete é distinta no caso de contradições normativas e de
contradições valorativas. No caso de contradições normativas, para empregar uma
expressão que surgiu na doutrina internacional privatística, temos uma situação em que
“não pode ser assim”; ao passo que nas contradições valorativas trata-se de uma
situação em que pode, mas “não deve ser assim”. Pergunta-se se neste último caso, a
decisão do legislador não terá, apesar de tudo, de ser respeitada.

CANARIS resolve este problema com recurso ao princípio constitucional da


igualdade: as normas “contrárias ao sistema”, por exprimirem valorações contraditórias
entre si, podem atentar contra o princípio da igualdade e, por isso, serem consideradas
inválidas. Com efeito, pode tratar-se de uma diferença de tratamento que viole a
proibição de arbítrio legislativo.
Mas isto não quer dizer que todas as normas que exprimam contradições valorativas
sejam inválidas, visto que, como assinalei a propósito dos valores do Direito, o princípio
da igualdade, ao proibir o arbítrio legislativo, satisfaz-se com um fundamento material
bastante ou suficiente para a diferença de tratamento. Portanto, nem toda a contradição

61
MAFALDA BOAVIDA
1º ANO TB12

constitui uma violação da proibição de arbítrio. De onde resulta que pode haver normas
“contrárias ao sistema” válidas, que vigoram na ordem jurídica.

No caso das “normas estranhas ao sistema”, não há uma contradição normativa ou


valorativa, mas um isolamento valorativo da norma relativamente ao sistema porque não
é reconduzível a um princípio geral ou ideia reitora; a sua ratio não possui suficiente força
persuasiva para poder valer como um enriquecimento consequente dos valores
fundamentais do domínio jurídico em causa.

Esta “estranheza” ao sistema não prejudica a vigência da norma, a menos que


constitua uma violação do princípio constitucional da igualdade. Salvaguardada esta
última hipótese, a “norma estranha ao sistema” é uma norma válida, mas que, no
entender de CANARIS, deverá ser interpretada restritivamente ou, pelo menos, não ser
interpretada extensivamente.
Repare-se, portanto, que esta conceção de sistema não implica necessariamente que
os princípios jurídicos sejam um critério de validade das normas do sistema, embora
também não exclua a possibilidade de decorrerem de certos princípios ou valores
fundamentais exigências materiais quanto ao conteúdo das normas.
Mas a ideia que hoje prevalece é a que em constituições como a alemã ou a
portuguesa os princípios ou valores fundamentais têm a sua sede na Constituição e que,
portanto, o problema da compatibilidade das normas com estes princípios ou valores se
reconduz, em princípio, à questão da sua constitucionalidade.

Mas há autores, como BAPTISTA MACHADO, que manifestando maior pendor


jusnaturalista, e aproximando-se mais do pensamento de um DWORKIN, encontram o
critério de validade das normas nos princípios jurídicos.
Mais, o próprio legislador seria limitado por princípios fundamentais de Direito,
decorrentes da “ideia de Direito” e que se sedimentaram na cultura humana ao longo da
história.
Isto apresenta alguma proximidade com a posição que anteriormente adotei, mas eu
salientei que o património adquirido de valores e princípios fundamentais deve ser
entendido à luz do sentido da evolução verificada.

62
MAFALDA BOAVIDA
1º ANO TB12

Resta assinalar que o sistema concebido deste modo não desempenha a função
identificadora dos elementos do sistema normativo nem a função de individualização do
sistema.
A não realização da função identificadora verifica-se desde logo com as normas,
porquanto as normas são excluídas do sistema.
A circunstância de uma norma poder ser vista como concretização de um princípio
do sistema não significa que ela faça parte do ordenamento em causa, uma vez que,
como atrás assinalei com respeito ao sistema dito estático (na terminologia de KELSEN),
a norma pode fazer parte de outro ordenamento.
Inversamente, uma norma pode não se reconduzir a nenhum princípio (caso da dita
“norma estranha ao sistema”) sem que por isso deixe de vigorar no ordenamento em
causa.

Por sua vez, a identificação dos princípios fica dependente da referência à “ideia de
Direito” e às normas jurídico-positivas. Mas como a “ideia de Direito” é um conceito vago,
se não obscuro, e não se fornece qualquer critério de identificação das normas jurídico-
positivas, esta conceção de sistema também não fornece, por si, um critério capaz de
identificar os princípios que formam o sistema.
Enfim, é perfeitamente possível que sistemas aparentados sejam dominados pelos
mesmos princípios jurídicos. Como se individualiza o sistema relativamente a outros
sistemas? Não encontro resposta nesta conceção de sistema.

Em contrapartida, as conceções de sistema que fazem apelo aos valores e princípios


jurídicos têm o mérito de pôr em relevo o sentido do Direito, a orientação a valores que
é uma das suas notas caracterizadoras, e que se liga, nos termos que atrás ficaram
expostos, à própria fundamentação do Direito.
Ao abstraírem desta nota, as conceções de sistema de pendor positivista normativista
não permitem captar o sentido do Direito e dificilmente podem encontrar outro
fundamento para o Direito que não seja o da sua imposição pelo poder político.
Por último, faça-se uma breve referência à crítica do pensamento sistemático feita
em algumas obras recentes.

Segundo PEINE, a ordem jurídica só poderia ser um sistema se os fins prosseguidos


pelas normas pudessem ser ordenados por forma a que os fins das normas

63
MAFALDA BOAVIDA
1º ANO TB12

infraordenadas pudessem ser vistos como um meio em relação aos fins das normas
supraordenadas, formando, assim, um esquema piramidal. Ora, isto só se verifica dentro
de certos domínios jurídicos e, por isso, o Direito como conjunto de todas as normas
vigentes não seria um sistema; só seriam pensáveis sistemas parciais.
Pode dizer-se que este modo de ver as coisas é predeterminado por um certo
conceito de sistema, que é semelhante ao sistema dito “estático”, embora não adote um
critério identificador lógico-formal, mas teleológico. Mas também pode perguntar-se se,
na verdade, o esforço por encontrar pontos de vista unitários mediante o apelo a valores
e princípios jurídicos não tende a escamotear a existência, a este nível, de grandes
diferenças entre os diversos domínios jurídicos.

Em sentido parcialmente convergente, outra corrente, de que se nomeará


ZIPPELIUS, opõe o pensamento problemático ou a “primazia da perspetiva concreta”
àquilo que designa por “dogmatismo sistemático”, com apelo às contribuições
metodológicas de HARTMANN e POPPER .
O “dogmatismo sistemático” parte de uma conceção global – designadamente uma
determinada conceção de Direito Natural, um materialismo histórico ou um formalismo
ético – para a solução de problemas concretos. O “dogmatismo sistemático” subordina
os problemas concretos à coerência do sistema, através da escolha e recorte dos
problemas e, em caso de necessidade, através da supressão e deformação dos
problemas não conformes e da dedução forçada da solução do problema da conceção
global.
Ao passo que a dar-se primazia à perspetiva concreta, os princípios gerais, a que se
reconduzem as soluções particulares, não podem valer como axiomas, mas apenas
como assunções a título experimental, que estão sob reserva de correção a todo o
tempo, caso os resultados das pesquisas singulares o exijam. As soluções particulares
não têm forçosamente de se ajustar aos princípios gerais.

Não se nega que a sistematização do Direito sirva para tornar compreensível o


conjunto das normas e para evitar as contradições. Mas da “primazia da perspetiva
concreta” decorre também que o fim dos esforços sistematizadores não deverá ser um
sistema rígido, mas um sistema (parcial) variável de proposições jurídicas, predisposto
a ser correntemente complementado e modificado.

64
MAFALDA BOAVIDA
1º ANO TB12

Isto torna claro que os princípios jurídicos não podem constituir um critério de
identificação e de validade das normas jurídicas. Mas não resulta daí uma clara
divergência prática, quanto ao processo de obtenção da solução, relativamente às
conceções sistemáticas moderadas.

A flexibilidade do sistema é limitada pela fixação da previsão legal por forma


inequívoca. Esta flexibilidade parece então traduzir-se, no essencial, numa relativização
dos princípios e dos valores do sistema e no apelo que, na falta de um critério “exato”
para a escolha entre as várias soluções se faz ao “sentimento jurídico”, ligado à ideia de
consenso social proporcionado pela solução.

Posição adotada

Em minha opinião há toda a vantagem em procurar conceber como um sistema o


conjunto de proposições jurídicas que constituem o Direito objetivo, sejam elas regras
ou princípios. Neste sentido têm convergido autores de diferentes tendências, como
entre nós, MARCELO REBELO DE SOUSA e TEIXEIRA DE SOUSA, na doutrina
germânica, ALEXY e PAWLOWSKI e, na doutrina de língua inglesa, mais recentemente,
HART.
Isto corresponde não só à exigência de coerência interna postulada pela supremacia
do Direito e pelo princípio da igualdade, mas também às exigências de certeza, de
previsibilidade e de aptidão para a realização das tarefas que o Direito é chamado a
realizar nas modernas sociedades industriais.

Quer isto dizer que o modo por que hoje e aqui concebo o sistema normativo não
constitui um modelo válido para todos os tempos e para todas as sociedades, ou, por
outras palavras, não é um modelo inerente ao conceito de Direito.
Quer isto dizer também que este sistema dificilmente pode ser concebido como um
conjunto de elementos que pelo seu conteúdo e fim sejam reconduzíveis a um postulado
fundamental.
O que também não implica que se abstraia do sentido do Direito, quando tomado no
seu conjunto, do conteúdo das normas e dos valores que procuram realizar. É antes de
reconhecer que o Direito pode servir para a realização de valores de diferente natureza

65
MAFALDA BOAVIDA
1º ANO TB12

e que diversos domínios jurídicos podem ser dominados por diferentes valores e
princípios jurídicos.

Alguns domínios jurídicos fundamentais são dominados por valores e princípios que
têm uma base moral, como o Direito Privado ou o Direito Penal, outros apresentam a par
destes outros valores e princípios de caráter político, económico, etc., como é caso do
Direito Constitucional, outros, como o Direito da Economia, têm mais que ver opções de
política social e económica.
A isto soma-se a receção, por parte de uma ordem jurídica estadual como a
portuguesa, do Direito Internacional Público geral ou comum, do Direito Internacional
convencional e derivado que vincule o Estado português e do Direito da União Europeia,
isto é, das fontes de sistemas jurídicos diferentes.

Este modo de ver as coisas tem como corolário que, segundo creio, o sistema
normativo não deve ser concebido em função de uma particular teoria moral.

Isto não só porque a base moral dos diferentes domínios jurídicos é muito variável,
mas também porque as diferentes teorias morais são objeto de vasta controvérsia, e a
questão do sistema, com toda a relevância que tem para a ciência jurídica prática, não
deve ficar refém da posição que se tome nesta controvérsia.
O que não implica, como atrás foi exposto, que se negue a objetividade ou
racionalidade do discurso sobre questões de moral e de justiça, nem que se negue que
a moral coloca determinadas exigências ao Direito.

Deve ainda sublinhar-se que o sistema normativo, concebido como um conjunto de


normas e princípios que até certo ponto estão ligados por nexos intrassistemáticos, está
inserido naquele sistema mais amplo que corresponde à ordem jurídica no seu conjunto,
e que é através desta inserção que se estabelece uma relação com os valores, estruturas
sociais juridicamente relevantes e situações jurídicas individualizadas.
À indistinção entre estes dois planos, e dos diferentes sistemas que lhe
correspondem, deve-se uma boa parte das divergências entre as principais conceções
de sistema.

66
MAFALDA BOAVIDA
1º ANO TB12

Tenho por evidente que é reducionista uma conceção que reduza o fenómeno jurídico
a um conjunto de proposições jurídicas, mas nada impede que no seio da ordem jurídica
se, conforme, entre outros componentes, um sistema normativo.

O que se me afigura dificilmente defensável é que se pretenda conceber o sistema


jurídico, enquanto ordem objetiva de conduta, com exclusão das normas.
CANARIS argumenta que um sistema de normas seria pouco consequente, porque
o que está em causa é encontrar os nexos que ligam as normas e que os princípios
jurídicos unificadores só em parte diminuta constituem proposições jurídicas
suficientemente determinadas para constituírem normas. Ora esta consideração apenas
justifica que os princípios sejam vistos como elementos unificadores do sistema, já não
obriga a excluir as normas do sistema.

A razão profunda porque CANARIS se esforça por excluir as normas residirá


porventura na manifesta impossibilidade de reconduzir todas as normas jurídicas a
princípios ético-jurídicos.
Mas esta razão desaparece se admitirmos que nem todos os princípios jurídicos têm
um fundamento moral e que o sistema não se tem de caracterizar por um grau tão
elevado de “unidade” como o autor defende.

Outra objeção que pode ser oposta à conceção de um sistema formado por normas
e princípios é a de que a norma é um produto da interpretação, e que a interpretação é
enquadrada pelo sistema. Se o sistema é anterior à norma, não faria sentido entender o
sistema em função da norma. É esta a objeção que me parece decorrer da posição de
OLIVEIRA ASCENSÃO, se a entendo corretamente.
Mas a circunstância de a norma ser um produto da interpretação – visto que é a
interpretação que faculta o conhecimento da norma através da compreensão do
significado das proposi-ções jurídicas por que a norma se exprime – não obsta a que ela
seja uma realidade (cultural) de algum modo “objetiva”.
Todo o sentido simbólico da conduta humana e das suas interações, incluindo os
valores, só pode ser acedido mediante uma interpretação, mas isto, nos termos que
foram expostos anteriormente, não impede a objetivação dos padrões de conduta e dos
valores.

67
MAFALDA BOAVIDA
1º ANO TB12

A dificuldade suscitada pela necessária intervenção do sistema na obtenção da


norma é a meu ver ultrapassada pela hermenêutica: a relação entre a norma e o sistema
deve ser vista como um relação circular entre a parte e o todo, em que o todo entra na
constituição da parte e a parte entra na constituição do todo.
Por outras palavras, o sistema só pode ser entendido à luz do conjunto das normas
e princípios que o formam, assim como cada uma das normas e princípios tem de ser
entendida à luz do sistema.
Claro que é concebível uma ordem jurídica formada principal ou exclusivamente por
proposições jurídicas pouco determinadas, por princípios e máximas. Será este
porventura o caso dos Direitos tradicionais.
Mas a norma representa um importante recurso de racionalização e formalização da
ordem jurídica, com relevância ao nível da adequação legislativa, da certeza e
previsibilidade jurídicas e da facilidade na aplicação do Direito, de que as sociedades
modernas não podem prescindir.
A certeza e a previsibilidade das soluções jurídicas são essenciais para que o Direito
possa realizar a sua função de orientação de condutas e para que os sujeitos jurídicos
possam fazer o planeamento das suas vidas.

No que se refere à vida económica, uma ordem jurídica que não se baseie em normas
razoavelmente claras e precisas cria riscos económicos adicionais para as empresas
que lhe estão submetidas e aumenta, por isso, os seus custos, tornando a economia do
respetivo país menos competitiva.

Decorre do anteriormente exposto que o sistema, para realizar as funções de


individualização relativamente a outros sistemas e de identificação dos seus elementos,
não pode ser concebido segundo um critério primário que atenda ao conteúdo e ao fim
dos elementos que o compõem.
Quando se pergunta por aquilo que individualiza um sistema jurídico relativamente a
outros sistemas jurídicos, nós pensamos não propriamente no seu conteúdo e valores
mas na pertinência desse sistema a uma determinada sociedade, que, no caso de um
sistema jurídico nacional é uma determinada sociedade estadual.

68
MAFALDA BOAVIDA
1º ANO TB12

O que sugere que a individualização de um sistema normativo se tem de entender à


luz da sua inserção na ordem jurídica global, como ordem institucionalizadora de uma
determinada sociedade.

Quanto à identificação dos elementos do sistema, trata-se, antes do mais, de uma


questão de fontes do Direito. Quer isto dizer que, à primeira vista, o critério de
identificação é um critério genético: pertence ao sistema o elemento que foi produzido
segundo um processo idóneo para o efeito.
Segundo o entendimento atrás adotado, o problema das fontes tem em última análise
de ser resolvido segundo a conceção normativa sobre os processos idóneos para
gerarem regras jurídicas que integra a consciência jurídica geral e, em especial, a
consciência da comunidade jurídica.

Também assinalei que a teoria das fontes está pensada para a formação das normas,
e que o reconhecimento dos princípios jurídicos como elementos do sistema, com caráter
vinculativo, vem colocar novos problemas.
A vigência do princípio jurídico pressupõe a sua consagração num determinado
conjunto de regras jurídicas (legais ou consuetudinárias) ou, faltando esta consagração,
a formação de um costume jurisprudencial, pelo qual o princípio seja reconhecido como
vinculante perante a consciência jurídica geral.

Quanto às exigências materiais que devam ser colocadas às normas para que
possam constituir elementos válidos do sistema, creio, em primeiro lugar, que se deve
seguir aquele entendimento, acolhido tanto pelas conceções sistemáticas moderadas
como pelos defensores da “primazia da perspetiva concreta”, segundo a qual a validade
de uma norma jurídica não depende necessariamente de ser reconduzível a um princípio
jurídico nem é necessariamente prejudicada pela sua contrariedade a um princípio
jurídico.
Decorre daqui que a pertença ao sistema não depende, em princípio, de um critério
material.

As considerações relativas ao conteúdo das normas, aos princípios e aos valores da


ordem jurídica já assumem grande importância para a realização de outras funções tais
como:

69
MAFALDA BOAVIDA
1º ANO TB12

à A de permitir a construção do sistema como um conjunto coerente e ordenado, por


forma a evitar contradições normativas e valorativas;
à A de orientar a resolução dos problemas suscitados pelas contradições que apesar
de tudo ocorram;
à A de fornecer critérios orientadores para a interpretação e integração;
à A de facilitar a apreensão do conjunto, mediante a referência a ideias rectoras, aos
grandes vetores que dominam as soluções particulares.

Quais são as características do sistema assim entendido?


Em primeiro lugar este sistema não pode apresentar aquela unidade que caracteriza
um sistema de tipo “estático”. Há princípios e outras ideias rectoras que dominam áreas
jurídicas mais ou menos vastas, mas não se exige que estas ideias rectoras possam ser
vistas como concretização de um postulado fundamental.
A afirmação da heterogeneidade do sistema vai por isso além da simples existência
de quebras intrassistemáticas e lacunas rebeldes à analogia, significa também a
existência de subsistemas relativamente autónomos no seu seio e de zonas de baixa
densidade sistemática que não formam, por si, um subsistema.
Em segundo lugar, a coerência do sistema é relativa, uma vez que comporta
contradições normativas e valorativas, embora vise evitá-las e eliminá-las. A coerência
do sistema, e o próprio sistema, nunca são algo de acabado, mas algo permanentemente
em construção.
Em terceiro lugar, de acordo com o anteriormente exposto, que dou aqui por
reproduzido, o sistema é fundamentalmente imóvel.
Em quarto lugar, o sistema é aberto, porque não contém soluções para todos os
problemas de regulação jurídica, podendo incorporar soluções que decorrem de
valorações feitas pelo intérprete e princípios descobertos através destas soluções.
Enfim, é também certo que há um “processo de retroação” ou efeito de retorno
mediante o qual o sistema atende às consequências sociais das normas e decisões que
produz, modificando-se e adaptando-se em função dessas consequências. É, no
entanto, controverso se se pode designar esta característica do sistema como
cibernética.

A importância dos princípios como polos centralizadores de soluções singulares e,


que nessa medida, vêm esclarecer os nexos axiológicos que ligam conjuntos de normas,

70
MAFALDA BOAVIDA
1º ANO TB12

não deve fazer esquecer a existência de outros nexos intrassistemáticos que se


estabelecem entre as normas.
Vou limitar-me a referir alguns destes nexos, a título exemplificativo.

Alguns destes nexos já resultam de desenvolvimentos anteriores.


É o caso do nexo de especialidade, que como sabem se estabelece entre uma norma
geral e uma norma especial.
É também o caso do nexo de subsidiariedade, que se estabelece geralmente entre
conjuntos de normas. Nos termos deste nexo as normas subsidiárias são aplicáveis a
uma categoria de situações da vida ou a um aspeto destas situações quando surgir uma
lacuna no conjunto de normas que lhe é primariamente aplicável.
Por exemplo, as normas reguladoras da compra e venda são aplicáveis a outros
contratos onerosos de alienação na medida em que sejam conformes com a sua
natureza e não estejam em contradição com as disposições legais estabelecidas para
estes contratos (art. 939.º CC).

Mas há outros nexos a considerar.


Um destes nexos é aquele que podemos designar por nexo de pressuposição, em
que o conceito utilizado na previsão de uma norma se reporta a uma situação jurídica
definida por outra norma ou normas.
Por exemplo, o art. 1316.º CC determina que o direito de propriedade se adquire por
contrato, sucessão por morte, ocupação, acessão e demais modos previstos na lei. Se
admitirmos que a consequência jurídica é a aquisição da propriedade, os conceitos
utilizados na previsão “contrato”, “sucessão por morte”, “ocupação” e “acessão”
reportam-se a situações jurídicas que são definidas por outras normas, as que regulam
os contratos de alienação, a sucessão por morte, a ocupação e a acessão.

Outro dos nexos que têm sido referidos pelos autores é o nexo operativo. Este nexo
estabelece-se entre duas normas quando a observância ou inobservância de uma delas
desencadeia a atuação da outra.
Por exemplo, a observância da norma que confere o poder para a celebração do
contrato obrigacional desencadeia a aplicação da norma que impõe a obrigação dele
decorrente, isto a admitir que a liberdade contratual e o efeito obrigacional do contrato
são produto de normas.

71
MAFALDA BOAVIDA
1º ANO TB12

Por seu turno, a inobservância da norma que impõe a obrigação desencadeia a


aplicação da norma que estabelece a sanção (para quem entenda que a proposição que
estabelece a sanção exprime uma norma independente).
Forma-se assim um determinado tipo de conjunto funcional.

Um terceiro nexo é o genético. Este nexo estabelece-se entre uma norma e as


normas cuja validade depende dessa norma. Por exemplo, entre as normas de uma lei
e a norma constitucional que confere competência à Assembleia da República; entre um
regulamento e a lei com base na qual é editado.

Também se pode falar de um nexo hierárquico, embora segundo um entendimento


(OLIVEIRA ASCENSÃO) a hierarquia entre as fontes seja mais importante do que a
hierarquia entre as normas. Adiante tomarei posição sobre este ponto.
Certo é que da superioridade da lei constitucional sobre a lei ordinária, e da lei
ordinária formal sobre os regulamentos, por exemplo, também resulta que as normas
regulamentares se têm de conformar com as normas legais e as normas da lei ordinária
com as normas constitucionais.

Especialmente importantes são, a meu ver, os nexos que se estabelecem entre as


normas que regulam uma determinada situação típica. Por exemplo, as normas que
regulam o contrato de compra e venda, as normas que regulam o direito de propriedade.
Estas normas complementam-se e limitam-se reciprocamente (o que não constitui,
portanto, uma característica distintiva dos princípios) por forma a proporcionar uma
disciplina da situação que, ao mesmo tempo, seja coerente e exprima adequadamente
a ideia ou ideias reitoras que lhe estão subjacentes.

Encontramos aqui um outro tipo de conjunto funcional, que é especialmente


importante para a interpretação de cada uma das regras que o integra.
Enfim, observe-se que também se estabelecem nexos entre complexos normativos,
por exemplo, entre o instituto da responsabilidade civil e as normas que atribuem e
regulam direitos (que é um nexo operativo).

72
MAFALDA BOAVIDA
1º ANO TB12

Princípios jurídicos

Os princípios jurídicos são, a par das regras jurídicas e de outros nexos


intrassistemáticos, elementos do sistema normativo. Nos dois números que antecederam
houve ocasião para examinar o conceito de princípio jurídico, a sua distinção da regra
jurídica, e o seu modo de revelação e vigência. Vou agora começar por resumir quanto
foi dito a este respeito.
Afirmou-se que o princípio é uma proposição jurídica com elevado grau de
indeterminação que, exprimindo diretamente um fim ou valor da ordem jurídica, constitui
uma diretriz de solução.

A diferença entre regra e princípio reside então na sua estrutura lógica:


contrariamente à regra no princípio as consequências jurídicas não decorrem
automaticamente da verificação dos pressupostos de facto.

O princípio é apenas um “ponto de partida” para encontrar a solução; aponta a direção


em que a solução deve ser encontrada.
A indeterminação verifica-se quer quanto à previsão quer quanto à estatuição. Não
se encontra delimitada por forma rígida a categoria de situações a que se aplica o
princípio; e a consequência jurídica também não é determinada com precisão.

Cabe agora acrescentar que embora caracterizados, na sua generalidade, pela


referida indeterminação, os princípios apresentam diferentes graus de concretização.
Nos menos concretizados não há uma separação entre previsão e consequência
jurídica, mas apenas uma ideia jurídica retora, que orienta a concretização. É o que se
passa, por exemplo, com o princípio da dignidade da pessoa humana.

Outros princípios já apresentam o esboço de uma separação entre previsão e


estatuição, como é o caso do princípio da igualdade – veja-se o art. 13.º CRP – e o
princípio da confiança, por exemplo enquanto se exprime no subprincípio da não
retroatividade da lei nova e na tutela da posição da pessoa que, com razões objetivas,
atua com base numa situação aparente que não corresponde à realidade. Estes
princípios já não se apresentam muito longe de constituírem regras de que pode resultar
diretamente a decisão de casos concretos.

73
MAFALDA BOAVIDA
1º ANO TB12

Graças à sua indeterminação o princípio serve para realizar na máxima medida


possível um fim ou valor da ordem jurídica. Neste sentido pode dizer-se, com ALEXY,
que se trata de um “comando de otimização”, por contraposição às regras, que são
“comandos definitivos”.

Os princípios jurídicos desempenham uma dupla função.

A função positiva consiste na já assinalada orientação do processo de obtenção da


solução. Esta função é desempenhada:
à na resolução de problemas de interpretação, em especial quando se trate de
conceitos carecidos de preenchimento valorativo;
à na integração de lacunas, pelo menos quando não seja possível supri-las mediante
o recurso à norma aplicável a casos análogos;

A função negativa pode consistir:


à na não aplicação de uma norma a situações que, em princípio, caberiam na sua
previsão, ou redução teleológica;
à ou até na invalidade da norma incompatível com o princípio, o que, de acordo com
anteriormente exposto, só se verifica, normalmente, com os princípios constitucionais.

Quanto à revelação dos princípios, afirmou-se que os princípios não se obtêm


mediante um procedimento generalizador a partir de regras jurídicas.

No que toca aos princípios subjacentes a um conjunto de regras jurídicas, a sua


revelação exige uma viagem de retorno desde as regras às ideias que as enformam e a
partir das quais elas surgem como um conjunto dotado de sentido.
A maior parte dos princípios encontra-se hoje consagrada na lei. Alguns destes
princípios são expressamente referidos na constituição e noutras leis.
Por exemplo, o princípio do Estado de Direito e o princípio da dignidade da pessoa
humana decorrem desde logo dos arts. 1.º e 2.º CRP. Também o princípio da igualdade
tem assento constitucional. O princípio da autonomia privada encontra expressão em
normas constitucionais e na lei ordinária.

74
MAFALDA BOAVIDA
1º ANO TB12

Outros princípios são obtidos a partir de um exame das razões que justificam várias
normas ou complexos normativos. Por exemplo, o princípio da confiança.
Mas além disso, como assinalei, certos princípios são revelados de outro modo: são
“descobertos” e formulados pela jurisprudência ou pela ciência jurídica com relação a
determinados casos, que não são resolúveis de outro modo, designadamente casos
omissos na lei, como decorrência de um valor do sistema jurídico, vindo depois a impor-
se na “consciência jurídica geral” graças à sua aptidão para a realização deste valor.

Em qualquer dos casos, o princípio vem a obter um modo de vigência no sistema


jurídico.
De acordo com o anteriormente exposto, inclino-me a pensar que esta vigência se há
de fundamentar ou na sua consagração em regras jurídicas ou na formação de uma
proposição jurídico-consuetudinária, designadamente um costume jurisprudencial.

Deu-se conta anteriormente que para ESSER, e autores que adotam a sua conceção
dos princípios, estes têm sempre um caráter pré-positivo e ético-jurídico.
Se aceitarmos que nem todos os ramos do Direito são dominados por princípios ético-
jurídicos e que, mesmo nos ramos em que isto se verifica, podem desempenhar algum
papel outras diretrizes de solução que, na sua estrutura, são idênticas aos princípios
ético-jurídicos, parece de preferir um conceito mais amplo de princípio jurídico, que
corresponde à noção atrás apresentada.
Nesta ordem de ideias um princípio também pode exprimir um fim ou valor de índole
económica, política, cultural, ambiental, etc.
Deve ainda acrescentar-se que nem todas as considerações de política legislativa se
reconduzem a princípios.

Quanto às características dos princípios, foram assinaladas, quando expus a


construção de CANARIS, as seguintes:
à os princípios jurídicos não vigoram sem exceções e podem entrar em oposição ou
contradição;
à os princípios não reclamam exclusividade, isto é, não podem ser formulados
segundo um esquema “só quando... então”;
à os princípios só revelam o seu conteúdo próprio num conjunto de recíprocos
complementos e limitações;

75
MAFALDA BOAVIDA
1º ANO TB12

à os princípios carecem para a sua concretização de subprincípios e valorações


particulares com conteúdo material próprio.

Também já decorre do anteriormente exposto que, a meu ver, estas características


apenas permitem traçar uma distinção tendencial entre regras e princípios.
As regras também podem entrar em contradição, ainda que esta contradição seja
resolvida no próprio plano da interpretação.
Certos princípios reclamam “exclusividade” – por exemplo o princípio da não
discriminação – e não comportam restrições.

As regras, quando integradas num conjunto funcional, como aquele que formam as
regras que regulam uma determinada situação típica, também se complementam e
limitam reciprocamente.
Enfim, certas regras, maxime as que utilizam conceitos indeterminados, também
requerem valorações particulares para a sua concretização.

Em caso de contradição entre princípios, não sendo possível estabelecer a


superioridade de um princípio relativamente ao outro, cada um deles deve ceder perante
o outro na medida que for exigida pela melhor realização possível de ambos. É a mesma
ideia que preside à solução da colisão de direitos nos termos do art. 335.º CC.
A determinação da medida em que cada princípio deve ceder exige uma ponderação
dos valores que os princípios em presença veiculam. Não se trata apenas de uma
avaliação quantitativa, é o resultado de valorações que se tem de orientar não só por
critérios gerais, mas também pelas circunstâncias da situação concreta.

Também aqui mediante sucessivas operações de aplicação, da comparação de


casos e da tipificação de grupos de casos será possível obter uma certa concretização
destes critérios de ponderação.

76
MAFALDA BOAVIDA
1º ANO TB12

Relevância prática do sistema normativo

Esquematizando, podemos dizer que o sistema releva para a prática jurídica em


quatro planos:
à ao permitir a identificação das regras e princípios jurídicos;
à ao enquadrar a atividade legislativa, por forma a evitar contradições normativas e
valorativas;
à ao orientar a resolução dos problemas suscitados pelas contradições que apesar
de tudo ocorram;
à ao fornecer critérios orientadores para a interpretação e integração.
Por enquadramento sistemático da atividade legislativa tenho fundamentalmente em
mente a preservação e promoção da coerência do sistema.

O legislador deverá, em primeiro lugar, zelar pela consonância e articulação interna


das normas em vigor. Por conseguinte, as disposições das leis que edite devem ser
consonantes e articuladas entre si e com as normas de outras fontes.
Em segundo lugar, o legislador deverá atender às soluções desenvolvidas pela
jurisprudência e pela doutrina, embora, obviamente, não esteja vinculado a estas
soluções.
Por último, o legislador não deve preocupar-se apenas com evitar contradições
normativas, mas também esforçar-se pela coerência valorativa. Quer isto dizer que
situações análogas não devem ser objeto de valorações jurídicas contraditórias.
Se a lei X regula uma categoria de situações de um modo, e o legislador entende que
uma categoria de situações análoga deve ser regulada de modo diferente, então não
deve estabelecer uma lei Y só para esta categoria de situações, mas antes revogar a lei
X e estabelecer um regime para todas as situações que devem ser igualmente valoradas.

É na realização das tarefas de interpretação e integração que o sistema é mais


frequentemente chamado como instrumento da ciência jurídica prática.

A este respeito podemos distinguir entre um modelo de decisão intrassistemático ou


normativo e um modelo de decisão extrassistemático, distinção que já aflorámos a
respeito da equidade.

77
MAFALDA BOAVIDA
1º ANO TB12

De harmonia com o anteriormente exposto, o modelo intrassistemático apresenta-se,


na maior parte dos casos, como relativamente rígido, em consequência da imobilidade
fundamental do sistema.

Isto significa que, na maior parte dos casos:


à o intérprete-aplicador tem de basear a sua decisão em regras, respeitando a
hierarquia das fontes;
à na resolução dos problemas de interpretação e integração o intérprete tem de
respeitar os procedimentos metodológicos consagrados pela ciência jurídica perante o
sistema;
à e que o intérprete está vinculado aos princípios jurídicos vigentes e aos valores
da ordem jurídica.

O art. 4.º/2 do Estatuto dos Magistrados Judiciais estabelece expressamente que o


“dever de obediência à lei compreende o de respeitar os juízos de valor legais, mesmo
quando se trate de resolver hipóteses não especialmente previstas”.

É tradicionalmente reconhecido que o sistema desempenha um papel na


interpretação da lei. Desde logo é geralmente referido, como um dos “elementos de
interpretação”, o “elemento sistemático”. Quer-se geralmente significar com isto que se
deve atender à posição da proposição jurídica na sistemática legal.
Na verdade, esta posição não é irrelevante, mas também não é conclusiva. Para
efeitos de interpretação, é mais importante a integração no sistema normativo, que exige
uma indagação dos nexos de sentido que se estabelecem entre as regras e entre elas e
os princípios jurídicos. Como vimos, estes nexos são não só de caráter lógico, mas
também axiológico. Por isso a integração no sistema normativo também se processa no
plano axiológico e teleológico e se relaciona com os critérios teleológico-objectivos de
interpretação.

78
MAFALDA BOAVIDA
1º ANO TB12

Quer isto dizer, numa primeira aproximação, que para integrar a regra no sistema
temos de examinar a sua razão de ser e que a relacionar, se possível, com princípios
jurídicos e outras ideias retoras do sistema.

Interpretação

Na integração de lacunas, o sistema releva quer quando contém uma regra aplicável
a um caso análogo, quer, na falta de caso análogo, quando é possível encontrar a
solução mediante a concretização de um princípio jurídico, quer ainda, em último
recurso, quando o intérprete tenha de formular uma solução como “se houvesse de
legislar dentro do espírito do sistema” (art. 10.º CC).
O sistema pode ainda relevar na própria descoberta da lacuna, quando esta resulte
de uma interpretação restritiva ou redução teleológica de uma norma, que seja justificada
por princípios ou valores do sistema.

Integração de Lacunas

A Regra Jurídica
Caracterização

A regra como critério

A regra jurídica é um critério, uma bitola que orienta os nossos juízos sobre a
realidade.
A regra jurídica é um critério de decisão – dá ao intérprete o critério para ele poder
julgar ou resolver um caso concreto. Quando o tribunal aplica uma regra jurídica para
resolver o litígio que lhe é submetido, a regra funciona como um critério de decisão.
Em princípio a regra também se destina a ser um critério de conduta, isto é, a orientar
a conduta dos sujeitos jurídicos. Mas nem sempre a regra jurídica desempenha esta
função.

79
MAFALDA BOAVIDA
1º ANO TB12

Assim, atuam apenas como critérios de decisão as seguintes regras jurídicas:


à as regras retroativas, isto é, as que se aplicam a factos que ocorreram antes da
sua entrada em vigor, visto que ninguém poderá orientar por elas a sua conduta;
à as “regras que produzem automaticamente efeitos jurídicos”, isto é, que ligam
efeitos a factos involuntários – por exemplo, a aquisição da personalidade jurídica e da
capacidade de gozo com o nascimento completo e com vida (arts. 66.º/1 e 67.º CC);
à as regras que orientam a determinação da sanção pelo órgão de aplicação, por
exemplo, as normas sobre graduação da pena ou sobre o cálculo da indemnização
segundo considerações de equidade;
à as regras sobre a culpa (quando esta é considerada como um pressuposto de
responsabilidade criminal ou civil distinto da ilicitude);
à as regras que estabelecem a responsabilidade por factos lícitos, na medida em
que estabelecem uma sanção, independentemente de o agente ter ou não atuado em
conformidade com o Direito;
à as regras sobre regras, por exemplo, as regras sobre as fontes do Direito ou sobre
a interpretação e a integração, embora a sua inclusão nesta categoria ofereça dúvidas
que serão adiante examinadas.

É frequente que se identifique a regra com uma determinada forma linguística, por
exemplo, com o texto do artigo de um código. Em rigor, porém, a proposição normativa,
que na lei está expressa em linguagem escrita, é apenas a forma de expressão
linguística da regra.
A regra, como já se sublinhou, obtém-se mediante a interpretação, que tem o seu
ponto de partida no sentido literal da proposição normativa.

Estrutura

Estruturalmente a regra jurídica é uma proposição que enlaça dois elementos: a


previsão e a estatuição.

A previsão é constituída pelo conjunto dos elementos que têm de estar presentes
para que a regra se aplique. Podemos designar estes elementos por pressupostos.

80
MAFALDA BOAVIDA
1º ANO TB12

A previsão define os pressupostos de cuja verificação depende a aplicabilidade da


regra.

A estatuição consiste numa consequência jurídica.


No princípio do nosso curso vimos diversos exemplos de regras, e procedemos à
distinção entre a sua previsão e a sua estatuição. Dou aqui por reproduzido o que então
foi expresso.

Na grande maioria dos casos, a previsão da regra reporta-se a uma situação típica
da vida ou a um aspeto de uma situação típica da vida.
Nestes casos a previsão da norma recorta na factualidade social o conjunto de
elementos que são juridicamente relevantes, formando um modelo abstrato de situações
da vida. Ao conformar os factos relevantes para o Direito, a regra “situa” o acontecimento,
sendo assim constitutiva da própria situação que regula.
Mas isto já não se verifica nas regras sobre regras, em que a previsão da norma se
reporta a outras regras.

Também é possível que a norma se reporte simplesmente a um facto, abstraindo de


qualquer conduta humana, e em que, por conseguinte, não fará sentido dizer que a
previsão da norma se reporta a uma situação da vida (isto é, a um situação social). Por
exemplo, a personalidade adquire-se no momento do nascimento completo e com vida.
Ressalvados estes casos, podemos dizer que a proposição jurídica associa a uma
situação ou a um aspeto de uma situação, delimitada pela previsão, a consequência
jurídica determinada pela estatuição.

A previsão desempenha uma função representativa: representa o estado de coisas


de cuja verificação depende a aplicação da regra (TEIXEIRA DE SOUSA).
Isto distingue-se de uma função descritiva: a previsão da norma não descreve
nenhuma situação ou facto, razão por que não se pode dizer que a previsão seja
verdadeira ou falsa. Ela pode é verificar-se ou não se verificar.

A norma conforma situações da vida com vista à constituição de dado ordenamento


das relações humanas. Como escreve ISABEL DE MAGALHÃES COLLAÇO “... face ao
tecido contínuo de factos e situações que formam a realidade, o tipo legal corresponde

81
MAFALDA BOAVIDA
1º ANO TB12

necessariamente a uma valoração emitida pelo Direito sobre essa realidade, com vista
à formulação de uma conduta devida”.

Neste sentido, como já assinalei, pode dizer-se que a previsão da norma também
desempenha uma função constitutiva da situação.
A propósito dos conceitos jurídicos examinámos os diferentes tipos de conceitos que
a norma pode utilizar para delimitar a sua previsão, e, designadamente, sobre a distinção
(relativa) entre conceitos técnico-jurídicos ou normativos e conceitos descritivos ou
fácticos, e entre conceitos determinados e conceitos indeterminados.

Decorre daqui que quando dizemos que a regra se reporta a uma situação ou a um
facto tal não significa que a qualificação da situação ou do facto se possa fazer sem o
recurso a outras regras.
Frequentemente a norma reporta-se a uma situação juridicamente conformada por
outra regra, com a qual estabelece o nexo de pressuposição anteriormente referido.

Também já sabemos que a estatuição pode consistir nas mais diversas


consequências jurídicas.
Pode ser a atribuição de um direito, a imposição de um dever, a constituição de uma
situação jurídica complexa, o estabelecimento de um requisito de validade ou eficácia de
um negócio jurídico, a remissão para outras normas do mesmo ou de outro sistema
jurídico, etc.

Em qualquer caso, a estatuição da regra jurídica é sempre uma modificação no


mundo do juridicamente vigente, uma modificação na ordem jurídica.
A estatuição das regras materiais de conduta tem uma função prescritiva (em sentido
convergente, TEIXEIRA DE SOUSA e LAMEGO). A estatuição é, neste caso, formada
por um operador deôntico e por um objeto. O operador deôntico pode ser uma prescrição,
uma proibição ou uma permissão. O objeto é aquilo que é prescrito, proibido ou
permitido. Este objeto pode ser uma conduta, um poder ou um efeito jurídico.
As regras jurídicas são hipotéticas ou condicionais no sentido em que só se aplicam
quando se preenchem os pressupostos definidos na sua previsão. Verificada a condição
C produz-se o efeito E, e só verificada a condição C se produz o efeito E.

82
MAFALDA BOAVIDA
1º ANO TB12

É um dos aspetos em que se distinguem dos princípios, que, na linguagem atrás


utilizada, não se caracterizam geralmente pela exclusividade.
Distinguem-se também das ordens que são normalmente categóricas. Por exemplo,
enquanto a regra proíbe manifestações não autorizadas, referindo-se a situações
hipotéticas, a ordem policial de desmobilização dos manifestantes, referindo-se a
situação concreta, é categórica.

Regra e imperativo

Ao tratar da ordem jurídica como ordem normativa – noções introdutórias, tive


ocasião de sublinhar que muito frequentemente a estatuição da norma é um dever de
conduta ou comando, mas que nem sempre isto se verifica.
Vimos então diversos exemplos de normas que não contêm imperativos.
Pelas razões então expostas, que dou aqui por reproduzidas, não posso concordar
com a caracterização da regra jurídica como imperativo.

Proposições jurídicas incompletas

Já deparámos ao longo do nosso curso, mormente quando tratámos das remissões


e das definições e classificações legais, com proposições jurídicas incompletas, isto é,
proposições jurídicas que não exprimem, por si só, uma norma. Estas proposições só
obtêm sentido normativo através da sua combinação com outras proposições jurídicas.
Um artigo ou um número de um artigo de uma lei pode conter uma proposição jurídica
incompleta. Neste caso, só mediante a conjugação com outros artigos ou números se
obtém uma proposição jurídica completa, com previsão e estatuição.

Generalidade

A generalidade contrapõe-se à individualidade. É geral o preceito que se reporta a


todos os estudantes universitários, é obviamente individual o preceito estabelecido para
o estudante universitário António.
Segundo os arts. 1.º CC e 674.º/2 CPC as leis caracterizam-se pela generalidade.
Nos termos do n.º 2 do art. 1.º CC: “Consideram-se leis todas as disposições genéricas
provindas dos órgãos estaduais competentes”.

83
MAFALDA BOAVIDA
1º ANO TB12

Esta generalidade da lei consiste, na formulação de MARCELO REBELO DE


SOUSA, na indeterminabilidade dos seus destinatários no momento da criação da lei.
A norma não deixa de ser geral por, num dado momento, dizer respeito a um pequeno
grupo de pessoas ou até a uma só pessoa.
Assim, as regras constitucionais sobre o Presidente da República não deixam ser
caracterizadas pela generalidade pela circunstância de só haver, por definição, um
presidente. São caracterizadas pela generalidade porque se aplicam a qualquer pessoa
que seja investida no cargo de PR.

A generalidade é uma característica essencial da regra.


O ato criador de preceitos individuais que se revista de forma legislativa é uma lei em
sentido formal, mas não em sentido material. Devido à sua individualidade esta lei pode
ser inconstitucional, por violar a proibição de discriminação que decorre do princípio da
igualdade.
Isto não significa que todos os atos individuais em forma legislativa sejam
inconstitucionais. JORGE MIRANDA distingue a lei individual com intenção de
generalidade e o ato administrativo sob forma de lei, que é a simples decisão de um caso
concreto e individual.

As leis individuais têm de fundamentar-se numa legitimação constitucional específica


ou no mínimo não colidir com o princípio da igualdade.

Quanto aos atos administrativos sob forma de lei, o autor distingue conforme são
praticados pelo Governo, que está habilitado pela Constituição a praticar atos
administrativos, ou pela Assembleia da República, que não tem competência
administrativa, razão por que o ato será pelo menos organicamente inconstitucional. Mas
há acórdãos do TC que rejeitarem esta inconstitucionalidade.
Quando o ato individual, sob forma legislativa, for um ato administrativo, está sujeito
ao regime de impugnação dos atos administrativos (art. 268.º/4 CRP e art. 52.º Código
do Processo dos Tribunais Administrativos).
A generalidade deve verificar-se não só nas regras legais, mas também nas regras
consuetudinárias e jurisprudenciais.

84
MAFALDA BOAVIDA
1º ANO TB12

O conceito de preceito jurídico é mais amplo que o de regra.


O preceito jurídico será uma regra, se for geral, mas também pode ser individual.
Preceito jurídico é todo o critério jurídico de decisão e de conduta.
Os contratos são normalmente fonte de preceitos individuais, visto que as cláusulas
estipuladas pelas partes só a elas vinculam, pelo menos em princípio (preceitos
contratuais ou negociais).
Para certos efeitos pode surgir um conceito de norma que não seja caracterizado
pela generalidade ou que a entenda de modo diverso.
Assim, a distinção entre ato administrativo e regulamento tem suscitado divergências,
que deixaremos para a disciplina de Direito Administrativo.
Assim também, para efeitos de fiscalização da constitucionalidade das normas,
regulada nos arts. 277.º e segs. CRP, o Tribunal Constitucional adotou um “conceito
funcional de norma”, que abrange todos os atos com forma legal, ainda que não
contenham regras gerais. Este entendimento é, no entanto, criticado por autores como
JORGE MIRANDA, relativamente aos atos administrativos sob forma de lei, e OLIVEIRA
ASCENSÃO.

Abstração

O abstrato contrapõe-se ao concreto. Mas esta contraposição é relativa, porque pode


haver diferentes níveis de abstração, e porque o conceito de concreto é ambíguo: pode
designadamente significar o real, o específico e o individual.
Para a caracterização da regra jurídica e, antes de mais da regra legal, a abstração
significa a indeterminabilidade das situações ou factos a que a lei é aplicável no momento
da criação da lei (MARCELO REBELO DE SOUSA).
Neste contexto, diz-se que um preceito é concreto quando dispõe para factos ou
situações suscetíveis de serem determinadas no momento da sua criação.
Por exemplo, um preceito que ordene que todos apresentem as armas que possuírem
nos postos policiais, é caracterizado pela generalidade, mas não pela abstração. Já
haverá abstração se o preceito ordenar que todos os que possuam ou venham a possuir
armas as apresentem nos postos policiais.
Fala-se de leis-medida com respeito às leis que são editadas para resolver em tempo
útil um problema levantado por uma situação concreta ou por um conjunto de situações

85
MAFALDA BOAVIDA
1º ANO TB12

concretas. Também são leis concretas as leis orçamentais, as leis de amnistia e as de


declaração de estado de sítio e de outros estados de exceção.

Mas serão as leis-medida verdadeiras leis? Será a abstração uma característica da


regra jurídica?
As respostas a esta questão divergem entre si.

Creio que uma tomada de posição sobre esta questão deve ter em conta a sua
relevância prática.
Assinalou-se atrás que a falta de generalidade pode, em certos casos, gerar
inconstitucionalidade e facultar a impugnação do ato.
JORGE MIRANDA assinala que as leis-medida também não podem colidir com o
princípio da igualdade. Mas a determinabilidade das situações a que se aplica a lei não
implica por si uma desigualdade injustificada de tratamento. O legislador pode ter razões
objetivas para estabelecer regras para situações concretas. Mesmo que isto constitua
uma diferença de tratamento relativamente a outras situações existentes no momento
da criação da lei ou futuras, esta diferença de tratamento é constitucional se tiver um
fundamento material bastante ou suficiente.
A abstração é relevante com respeito a certas categorias de leis, como é o caso das
leis restritivas de direitos, liberdades e garantias, que têm de revestir caráter geral e
abstrato (18.º/3 CRP). Ressalvadas estas categorias de leis, parece que da lei pode, em
princípio, ser concreta.
O que leva a negar que a abstração seja uma característica da regra legal e, mais
em geral, da regra jurídica.
A aplicação de uma norma que se caracterize pela generalidade e pela abstração
exige um processo de determinação duplo, mas interligado: determinação dos seus
destinatários e da situação de facto.

A regra como elemento de um conjunto regulativo. As “regras autónomas”

Para a caracterização da regra jurídica é ainda fundamental assinalar que as regras


não se nos apresentam geralmente como elementos normativos isolados, mas antes
como elementos interrelacionados.

86
MAFALDA BOAVIDA
1º ANO TB12

Num plano muito geral, o inter-relacionamento das regras decorre dos mais variados
nexos intrassistemáticos, como foi assinalado a propósito do sistema normativo.
Mas para a caracterização da regra o que é fundamental é a inserção das regras
singulares em conjuntos regulativos que constituem uma unidade funcional.
Exemplo, já dado, destes conjuntos regulativos, é o formado pelas regras que
regulam uma determinada situação típica, por exemplo, as normas que regulam o
contrato de compra e venda.
Geralmente, devido à sua inserção num conjunto regulativo, a regra não pode ser
compreendida como um elemento normativo independente, isto é, como contendo em si
um sentido normativo completo.
Por conseguinte, a norma singular só pode ser corretamente entendida e aplicada no
contexto da unidade de regulação em que está inserida.

Segundo uma das classificações de normas jurídicas referidas pela literatura jurídica
– designadamente por INOCÊNCIO GALVÃO TELLES e BAPTISTA MACHADO – seria
de distinguir entre normas autónomas e normas não autónomas. Só seriam autónomas
as normas que têm em si um sentido completo. Seriam não autónomas, mormente, as
normas interpretativas, as definições legais, as normas que limitam o campo de
aplicação de outras normas e as normas remissivas.

A meu ver temos aqui realidades bastante diversas, que, de acordo com o
anteriormente exposto, abrangem proposições jurídicas incompletas e normas sobre
normas.
Esta enumeração poderia sugerir, por exclusão de partes, que as verdadeiras normas
“primárias”, isto é, as proposições jurídicas completas que regulam situações da vida, ou
seus aspetos, são, em regra, autónomas.
Mas não é isto que se verifica. Como assinalei, geralmente as normas singulares
estão inseridas em conjuntos regulativos e não podem, por isso, ser classificadas como
regras autónomas. Isto é reconhecido por INOCÊNCIO GALVÃO TELLES.
Sendo assim, porém, parece-me que não se justifica manter esta classificação de
regras jurídicas.

87
MAFALDA BOAVIDA
1º ANO TB12

Classificação das Regras Jurídicas

Regras primárias e regras secundárias

Para HART as normas primárias são as que contêm um comando, prescrevendo ou


proibindo uma conduta, e as normas secundárias as que conferem poderes, públicos ou
privados. Por exemplo, conferem poderes privados as normas que permitem a
celebração de um contrato ou a transferência de um direito real. Conferem poderes
públicos, por exemplo, as normas que atribuem competência a um determinado órgão
público para legislar.

Esta classificação merece diversos reparos, dos quais se salientará que há muitas
normas que nem impõem obrigações nem conferem poderes.
As regras de reconhecimento não podem ser incluídas, genericamente, na categoria
das normas que conferem poderes.
A norma que reconheça o costume como fonte do Direito não confere qualquer poder
para criar regras jurídicas. O costume é reconhecido porque o órgão de aplicação aplica
tal regra de reconhecimento e não porque a regra confira ao órgão de aplicação qualquer
poder para reconhecer ou não reconhecer o costume.
Muitas outras normas, como as normas que regulam a atribuição da personalidade
jurídica, que estabelecem requisitos de validade dos negócios jurídicos, ou que limitam
a liberdade de contratar, nem contêm comandos nem conferem poderes.

Com esta verificação, a classificação perde muito do seu interesse, sendo mais exato
designar as regras ditas “primárias” por regras injuntivas e contrapô-las às regras
dispositivas que, como veremos, assumem as mais diversas modalidades.
A classificação das regras em primárias e secundárias poderá manter algum
interesse quando por regras secundárias se entendam apenas as regras sobre regras,
ou metanormas, que são aquelas cuja previsão se reporta a regras jurídicas.
A seguir-se este entendimento, as regras primárias seriam todas as restantes regras,
cuja previsão se reporta a uma situação típica, a um aspeto de uma situação típica, ou
a outro facto.

88
MAFALDA BOAVIDA
1º ANO TB12

Regras de conduta e regras de decisão

Esta classificação atende aos destinatários das normas. Enquanto as regras de


conduta se dirigem tanto aos órgãos de aplicação do Direito como aos sujeitos jurídicos,
as regras de decisão dirigem-se exclusivamente aos órgãos de aplicação. Por outras
palavras, enquanto as regras de conduta são critérios de decisão e de conduta, as regras
de decisão atuam somente como critérios de decisão.
Esta classificação é por vezes reconduzida à anterior, por se entender que todas as
normas secundárias, enquanto normas sobre normas, não são regras de conduta, por
não terem por destinatários os sujeitos jurídicos, mas somente os órgãos de aplicação
do Direito.

Esta assimilação é errónea, em especial quando se parte de um conceito amplo de


regras secundárias, como é o de HART.
Parece evidente que as normas que conferem poderes privados também são normas
de conduta, porque os particulares têm de atender a estas normas para saber se têm um
determinado poder e qual a conduta que devem adotar para produzir certos efeitos
jurídicos.
Mas também as normas que atribuem poderes públicos são relevantes para a
atuação dos particulares. O particular precisa de saber se uma determinada regra
provém do órgão competente, para saber se lhe deve ou não obediência; precisa de
saber qual o tribunal competente caso pretenda propor uma ação, e por aí adiante.
Por outro lado, há regras de decisão que não conferem quaisquer poderes, antes
impõem vinculações: por exemplo, certas regras retroativas, as regras sobre
responsabilidade por factos lícitos.

Regras injuntivas e regras dispositivas

As regras de conduta podem classificar-se em regras injuntivas e regras dispositivas


conforme impõem ou não uma conduta. Dentro de cada uma destas categorias é
possível proceder a subdivisões, que serão referidas nos números seguintes.
Para designar as regras injuntivas o legislador e a maior parte dos autores utiliza a
expressão “regras imperativas”. BAPTISTA MACHADO utiliza ambas as expressões
como sinonímia. OLIVEIRA ASCENSÃO prefere a expressão “regras injuntivas” por

89
MAFALDA BOAVIDA
1º ANO TB12

entender que toda a regra jurídica é imperativa por definição. Não sigo este
entendimento, mas também creio que se deve falar, neste contexto, de “regra injuntiva",
porque atribuo à expressão “regra imperativa” um outro significado, como se verá a
propósito da distinção entre regras supletivas e regras imperativas.

Modalidades de regra injuntiva


Regras precetivas e regras proibitivas

São geralmente referidas como modalidades de regra injuntiva a regra precetiva e a


regra proibitiva.

A regra precetiva ordena uma conduta. Por exemplo, as normas que obrigam ao
pagamento de impostos e a circular pela direita no tráfico rodoviário.

A regra proibitiva veda uma conduta. É o que aparentemente se passa com a maior
parte das normas penais, como, por exemplo, as normas que proíbem o homicídio, as
ofensas corporais, a ofensa à honra, etc.

Mas não se tratará apenas de diferentes modos de formular um tipo unitário de


regras? Por exemplo, dizer que se deve pagar um imposto sobre o rendimento não
equivale a dizer que é proibida a evasão fiscal e, mais concretamente, o não declarar os
rendimentos e não pagar o imposto que tenha sido liquidado? Dizer que é obrigatório
circular pela direita não é o mesmo que dizer que é proibido circular pela esquerda? Dizer
que é proibido matar não é o mesmo que dizer que cada um deve atuar por forma a não
causar a morte doutrem?
Poderia pensar-se que a distinção está em impor uma ação ou uma omissão. A
formulação prescritiva ou proibitiva do comando pode ter que ver com a circunstância de
a conduta imposta ser uma ação (como é caso de entregar uma declaração de
rendimentos ou pagar o imposto) ou uma omissão.

Mas há muitos casos em que a conduta imposta tanto pode consistir numa ação como
numa omissão. Por exemplo, o homicídio tanto pode ser cometido por ação como por
omissão.

90
MAFALDA BOAVIDA
1º ANO TB12

A conclusão a que chego é que nem sempre se pode distinguir entre regra precetiva
e regra proibitiva. Esta distinção só se pode traçar claramente quando uma norma
prescreve necessariamente uma ação ou se limita a proibir uma ação ou a prescrever
uma omissão.
A norma que prescreve necessariamente uma ação é prescritiva. A norma que proíbe
uma ação é proibitiva, porque tanto a omissão como outras ações são permitidas. A
norma que se limite a prescrever uma omissão será rara; parece-me que também é
proibitiva, por ser reconduzível à norma que proíbe uma ação.

Modalidades de regra dispositiva


Regras permissivas

As regras permissivas, as regras que definem estados e qualidades jurídicas, as


regras interpretativas e as regras supletivas são modalidades da regra dispositiva, pois
nenhuma delas impõe uma obrigação de conduta.

Não se trata aqui apenas da atitude negativa de não ordenar nem proibir. Afirma-se
frequentemente que o que não é proibido é permitido. Esta afirmação é até certo ponto
verdadeira: nas relações de Direito privado e noutras relações quanto a sujeitos cuja
ação não seja vinculada à lei, isto é, não esteja sujeita ao princípio da legalidade, os
sujeitos têm a liberdade de observar a generalidade das condutas que não são proibidas
nem prescritas. Estas condutas são facultativas sem que haja necessidade de qualquer
norma permissiva que o estabeleça.
Só em certos casos se justifica uma valoração jurídica que leva à formulação de uma
norma dispositiva. Veremos melhor este ponto a respeito de cada uma das categorias
de normas dispositivas.

As regras permissivas são as que facultam uma determinada conduta. São muito
variadas. Vou salientar as modalidades mais importantes.
Primeiro, temos as autorizações de uma conduta em princípio proibida. É o que se
verifica, por exemplo, com as normas que estabelecem causas de justificação, como a
legítima defesa e o estado de necessidade.
Segundo, as liberações de uma conduta em princípio prescrita. Com esta liberação a
conduta prescrita torna-se facultativa. É o que se verifica, por exemplo, com a prescrição

91
MAFALDA BOAVIDA
1º ANO TB12

de uma obrigação. Decorrido o prazo prescricional, o devedor pode cumprir a obrigação


prescrita, mas não está juridicamente vinculado a fazê-lo.
Terceiro, as normas atributivas de direitos subjetivos propriamente ditos. Estas
normas conferem posições de vantagem que resultam da afetação de um bem à
realização dos fins da pessoa. Por exemplo, um direito de crédito, um direito real. Estas
posições exprimem-se em poderes jurídicos e materiais.
Quarto, as normas facultativas de poderes jurídicos (ou normas de competência), que
conferem o poder de produzir efeitos jurídicos. Por exemplo, nos termos do art. 801.º/2
CC, se num contrato bilateral a prestação de uma das partes se torna impossível por
causa que lhe é imputável, a outra parte tem a faculdade de rescindir o negócio.
Mais em geral, podemos incluir aqui as normas que conferem poderes potestativos e
as normas que conferem a faculdade de celebrar negócios jurídicos.
Os ditos direitos potestativos são poderes jurídicos cujo exercício pelo seu titular, por
si, ou integrado por uma decisão judicial, produz efeitos jurídicos na esfera jurídica de
outra pessoa, independentemente da sua vontade. A faculdade de rescisão, que acabei
de mencionar, é um poder deste tipo.

As normas que conferem o poder de celebração de negócios jurídicos podem


apresentar-se como permissões genéricas ou específicas de produção de efeitos
jurídicos pela autonomia negocial. Há, porém, quem entenda que a vinculação operada
pelo negócio jurídico tem um fundamento pré-positivo.
Estas normas devem distinguir-se das normas atributivas de direitos subjetivos
propriamente ditos, não só porque pode haver atribuição de uma competência jurídica
sem ser conferido um direito deste tipo, mas também porque a competência jurídica do
titular do direito subjetivo não resulta diretamente da norma que o atribui mas das normas
que (explícita ou implicitamente) definem o seu conteúdo.
Enfim, embora reconhecendo que o ponto será controverso, incluiria ainda parte das
normas que regulam o exercício de poderes jurídicos (ou normas sobre o exercício de
competência).

São exemplo, as normas processuais que regem a atuação dos tribunais e as normas
que estabelecem procedimentos com respeito à prática de atos administrativos; as
normas que estabelecem requisitos de validade e eficácia de negócios jurídicos
permitidos, designadamente as exigências de forma e de registo não obrigatório.

92
MAFALDA BOAVIDA
1º ANO TB12

Entendo que é permissiva a norma sobre o exercício de competência cuja


inobservância não desencadeie uma sanção, porque o sentido desta norma é o de
estabelecer que a produção de um efeito jurídico depende da observância de uma
conduta facultativa.
Esta conduta não é imposta ao sujeito, o sujeito não é censurado pela ordem jurídica
se não observa esta conduta e é, por esta razão, que atrás se entendeu que, por
exemplo, a invalidade ou ineficácia de um negócio jurídico não é uma sanção.

Regras que definem estados e qualidades jurídicos

Uma outra categoria de normas dispositivas, menos referida, é a das normas que
definem estados e qualidades jurídicas das pessoas, independentemente da sua
conduta. São exemplo, as normas que atribuem ou reconhecem a personalidade jurídica
e a capacidade de gozo, ou que estabelecem limites à capacidade de gozo ou de
exercício.
Com efeito, estas normas não impõem uma conduta, mas também não facultam uma
conduta. O seu sentido é antes o de reconhecer a suscetibilidade de os seres humanos
serem sujeitos de Direito; de definir os pressupostos de que depende a atribuição a um
ente de uma personalidade coletiva; a de definir a medida em que os sujeitos podem
praticar validamente atos jurídicos.

Regras interpretativas

Regra interpretativa é a que se limita a fixar o sentido juridicamente relevante de uma


fonte do Direito. Contrapõe-se à regra inovadora. A regra inovadora é a que altera de
algum modo a ordem jurídica, introduzindo um novo conteúdo normativo.
Por exemplo, suponha-se que um DL sobre atividade bancária estabelece restrições
quanto ao tráfico de divisas estrangeiras. Surge uma divergência interpretativa quanto à
aplicabilidade deste regime às casas de câmbio, que leva mesmo a decisões judiciais
contraditórias. Para obviar à incerteza e a desigualdade no tratamento de casos
semelhantes daí resultante o Governo vem, por via de outro DL, esclarecer a questão.
O art. 13.º CC estabelece um regime especial para a aplicação no tempo das leis
interpretativas, que será estudado a propósito da aplicação da lei no tempo e que só faz

93
MAFALDA BOAVIDA
1º ANO TB12

sentido para as leis que vêm interpretar leis anteriores. Numa primeira aproximação
podemos dizer que a razão pela qual a lei interpretativa se aplica a factos e situações
anteriores reside fundamentalmente em que ela, vindo consagrar uma das interpretações
possíveis da lei anterior com que os interessados podiam e deviam contar, não é
suscetível de frustrar expectativas objetivamente fundadas.
A esta luz, parece suficiente para que a lei nova seja considerada interpretativa que
a solução da lei anterior seja controvertida ou pelo menos incerta e que a solução
definida pela nova lei seja uma das interpretações possíveis da lei anterior (BAPTISTA
MACHADO).
Por outro lado, nada obsta a que se formule um conceito mais amplo de regra
interpretativa, como modalidade de regra dispositiva que se limita a fixar o sentido
juridicamente relevante de uma proposição jurídica. Este conceito não tem relevância
para efeitos do art. 13.º CC e pode abranger, além das regras anteriormente referidas, a
regra, contida numa lei, que se destina a esclarecer o sentido das suas próprias
disposições.
As regras interpretativas relacionam-se com a interpretação autêntica, a que já aludi,
e que estudaremos mais adiante. A lei que realiza a interpretação autêntica é sempre
uma lei interpretativa.

Mas todas as leis interpretativas realizam interpretação autêntica? A interpretação


autêntica não pode provir de fonte hierarquicamente inferior à fonte interpretada. Logo,
a regra interpretativa de fonte hierarquicamente inferior à fonte interpretada não realiza
uma interpretação autêntica.
Mas terá esta regra algum valor? Excluída, pelo art. 112.º/5 CRP a possibilidade de
uma lei formal conferir a atos de outra natureza o poder de a interpretar com eficácia
externa, resta a possibilidade de uma vinculação interna dos serviços subordinados e de
a regra interpretativa valer como uma regulamentação da lei interpretada, dentro dos
limites que os regulamentos têm de respeitar. Adiante veremos melhor estes pontos.
Aqui interessa sublinhar que, em todo o caso, nem todas as leis interpretativas realizam
uma interpretação autêntica.

OLIVEIRA ASCENSÃO também inclui na categoria das regras interpretativas as


regras sobre a interpretação de negócios jurídicos, como o art. 2225.º CC, que determina
que a disposição testamentária feita a favor de uma generalidade de pessoas, sem

94
MAFALDA BOAVIDA
1º ANO TB12

qualquer outra indicação, considera-se feita a favor das existentes no lugar em que o
testador tinha o seu domicílio à data da morte.

Regras supletivas

Regras supletivas são as que só se aplicam na falta de estipulação das partes em


contrário. Por exemplo, o regime jurídico dos contratos obrigacionais é composto
principalmente por normas supletivas. Contrapõem-se às normas imperativas, que não
podem ser afastadas pelas partes.
Quer isto dizer que os direitos e obrigações das partes são primariamente definidos
pelas cláusulas do contrato; a maior parte das normas que fixam os efeitos dos contratos
obrigacionais só se aplica quando as partes nada convencionaram em contrário.
Nos negócios jurídicos mais correntes, como aqueles que celebramos no nosso dia-
a-dia para a aquisição de bens e serviços, é dificilmente concebível que as partes
contemplem e disponham sobre todos os aspetos do regime do negócio. Mesmo que isto
fosse possível não seria prático repetir em cada transação os mesmos preceitos. Por
isso o legislador estabelece para as categorias de negócios mais importantes um modelo
de regulação que, na falta de convenção em contrário, constitui o regime jurídico
aplicável.
Decorre do exposto que as regras supletivas desempenham, principalmente, a
função de suprir a incompletude das estipulações negociais.
Mas há também regras supletivas que são aplicáveis na falta de um negócio jurídico.
É o que se verifica com o regime supletivo de bens do casamento, que se aplica na falta
de convenção antenupcial (art. 1717.º CC). Também se poderá porventura dizer que as
normas sobre a sucessão legítima são supletivas, porque elas podem ser afastadas por
testamento.

Para a doutrina clássica, fiel ao subjetivismo que pontuou no séc. XIX, a aplicação
das regras supletivas fundamenta-se na vontade presumida das partes. Hoje prefere-se
uma posição objetivista: as regras supletivas são um modelo de regulação em que o
legislador exprime a sua conceção sobre o justo equilíbrio dos interesses das partes.
Este modo de ver as coisas permite entrever uma outra função das regras supletivas:
a de constituírem um ponto de referência das partes quando negoceiam o contrato.

95
MAFALDA BOAVIDA
1º ANO TB12

A determinação do caráter supletivo ou imperativo de uma norma é decisiva quando


a estipulação das partes dela divergir. Se a norma é imperativa, o negócio, ou pelo
menos a cláusula que a viola, são inválidos ou ineficazes. Se a norma é supletiva a
convenção das partes em contrário afasta-a, e, portanto, o negócio é plenamente válido
e eficaz.

Como se procede a esta determinação?


Em primeiro lugar tem de se atender ao que o legislador declara.
Com frequência encontramos na lei expressões como “salvo convenção em
contrário”, “na falta de convenção em contrário”, “na falta de estipulação”, “no silêncio do
contrato”, “exceto de for outro o regime convencionado”, “salvo declaração em contrário”,
que significam inequivocamente que se trata de uma regra supletiva.
Da formulação de outras normas resulta inequivocamente a sua imperatividade,
designadamente quando se determina expressamente que a inobservância da norma
desencadeia a invalidade ou ineficácia do negócio ou de uma das suas cláusulas ou que
se não admite convenção em contrário.
Na falta de uma declaração do legislador, ou não sendo esta inequívoca, o caráter
imperativo ou supletivo constitui um problema de interpretação.

O intérprete tem de atender, em primeiro lugar, ao contexto significativo.


Normalmente, o legislador indica expressamente o caráter supletivo da norma que
está integrada num complexo predominantemente imperativo e o caráter imperativo da
norma que está integrada num complexo predominantemente supletivo.
Inversamente, o legislador dispensa-se normalmente de indicar o caráter supletivo
das normas que estão inseridas num complexo predominantemente supletivo ou o
caráter imperativo das normas que estão inseridas num complexo predominantemente
imperativo.
Embora seja um indício importante, o contexto significativo não é de per si conclusivo.
Há que atender aos outros critérios de interpretação. Do ponto de vista teleológico é
especialmente importante se a norma exprime apenas um equilíbrio dos interesses das
partes ou também prossegue outros fins de política legislativa.
Em princípio, as normas que também tutelam a segurança do comércio jurídico, ou
protegem certas categorias de terceiros, ou prosseguem fins de política económica,
social, etc., são imperativas.

96
MAFALDA BOAVIDA
1º ANO TB12

Em princípio as normas que só exprimem um equilíbrio dos interesses das partes são
supletivas, mas, em certos casos, em que há a preocupação de proteger uma das partes
em relação à outra, são imperativas.
A distinção entre regras supletivas e regras imperativas relaciona-se com o conceito
de ordem pública.

O Código Civil refere-se à ordem pública designadamente para determinar a nulidade


do negócio jurídico subordinado a uma condição contrária à lei ou à ordem pública, ou
ofensiva dos bons costumes (art. 271.º/1); a nulidade do negócio cujo objeto seja
contrário à lei, à ordem pública ou aos bons costumes (art. 280.º); e, a nulidade do
negócio jurídico cujo fim, comum a ambas as partes, seja contrário à lei ou à ordem
pública, ou ofensivo dos bons costumes (art. 281.º).
Nestes preceitos distingue-se a contrariedade à ordem pública da contrariedade à lei
e, por conseguinte, a ordem pública não pode significar o conjunto das normas
imperativas.
Poderá assentar-se em que a ordem pública, enquanto conceito científico, incluirá as
regras e os princípios gerais imperativos, ao passo que referidos preceitos do Código
Civil o conceito de ordem pública se reportará apenas a estes princípios.

Regras materiais e regras remissivas


Regras de conexão

As regras de conduta podem classificar-se em regras de regulação direta, ou


materiais, e regras de regulação indireta, ou remissivas.
Já toquei esta distinção a propósito das remissões. As normas materiais estabelecem
o regime aplicável à situação descrita na sua previsão. Modelam situações jurídicas,
designadamente por via da atribuição de direitos e da imposição de deveres. As normas
remissivas mandam aplicar à situação descrita na sua previsão outras normas ou
complexos normativos.

Ficou então assinalado que enquanto as remissões legais para outras normas do
mesmo diploma ou para uma lei diferente não constituem verdadeiras normas, mas
proposições jurídicas incompletas, há proposições remissivas que exprimem verdadeiras

97
MAFALDA BOAVIDA
1º ANO TB12

normas de regulação indireta. É que se passa, pelo menos, com as normas de conflitos
de leis no espaço e no tempo.
Resta acrescentar que a grande maioria das normas de conflitos no espaço e no
tempo são, além de normas remissivas, normas de conexão. São normas de conexão,
porque conectam uma situação da vida, ou seu aspeto, com o Direito aplicável, mediante
um elemento de conexão.

Nas normas de conflitos de leis no espaço o elemento de conexão pode consistir:


à em vínculos jurídicos que se estabelecem diretamente entre um elemento da
situação e um Direito (por exemplo, a nacionalidade);
à em laços fácticos entre a situação e a esfera social de um Estado que, apontando
para um determinado lugar no território deste Estado, permitem à norma de conflitos
chamar o Direito que vigora neste Estado (por exemplo, o lugar da residência habitual);
à em consequências jurídicas que se projetam num determinado lugar situado no
território de um Estado, possibilitando a individualização do Direito que aí vigora (por
exemplo, o lugar do efeito lesivo);
à em factos jurídicos (por exemplo, a designação pelos interessados do Direito
aplicável).

É o que se verifica, nomeadamente, quando perante uma questão relativa ao estado


ou capacidade de uma pessoa nacional de um Estado e residente noutro Estado se
manda aplicar a lei da sua nacionalidade.

São normas de conflitos de leis no espaço não só as de Direito Internacional Privado


mas também as de Direito Interlocal (que resolvem problemas de determinação do
Direito aplicável no seio de ordens jurídicas complexas de base territorial).
Nas normas de conflitos de leis no tempo o elemento de conexão consiste num laço
temporal entre uma situação da vida, ou um seu aspeto, e a lei antiga ou a lei nova. Por
exemplo, o momento da celebração de um contrato e o momento da aquisição de um
direito. Estas normas de conflitos integram o Direito Inter-temporal.
Temos uma norma deste tipo, por exemplo, quando, perante uma sucessão de leis
reguladora de um determinado tipo contratual, se limita o âmbito de aplicação da nova
lei aos contratos celebrados depois da sua entrada em vigor.

98
MAFALDA BOAVIDA
1º ANO TB12

Uma terceira categoria de normas de conflitos é a que integra o Direito Interpessoal


(que resolve problemas de determinação do Direito aplicável no seio de ordens jurídicas
complexas de base pessoal). Também aqui surgem elementos de conexão, que se
reportam, por exemplo, nos sistemas jurídicos que o admitem, à religião ou à etnia.

Regras gerais, especiais e excecionais

Examinei a distinção entre regras gerais e regras especiais a propósito da revogação


da lei. Disse-vos então que esta distinção corresponde a uma relação que se estabelece
entre duas normas ou entre dois complexos normativos: uma norma ou um complexo
normativo é especial quando estabelece uma relação de especialidade com uma norma
ou um complexo normativo geral. Esta relação é, como também vimos atrás, um dos
nexos intrassistemáticos.
Segundo um critério estrutural, ou formal, esta relação de especialidade é definida
pelo alcance da previsão de cada uma das regras em concurso: o domínio de aplicação
da norma especial corresponde a um setor do domínio de aplicação da norma geral.

Como sabem, a distinção entre regras gerais e especiais tem relevância quer para a
resolução de concursos aparentes de normas quer em matéria de revogação.
Por um lado, em caso de incompatibilidade entre regras jurídicas que estão numa
relação estrutural de especialidade entende-se que a norma especial prevalece sobre a
norma geral.
Por outro lado, em princípio, a lei geral não revoga a lei especial; só a revogará se
estiver subjacente à nova lei a intenção de eliminar o regime especial.

Conforme foi atrás advertido, as coisas complicam-se quando se pretenda proceder


a uma classificação tripartida das regras em gerais, especiais e excecionais.

Em minha opinião, não há um critério unitário que permita classificar as regras em


gerais, especiais e excecionais. Trata-se de duas classificações distintas com relevância
igualmente distinta.
Por um lado, trata-se da relação de especialidade que releva para a resolução de
concursos de normas e para a matéria da revogação da lei.

99
MAFALDA BOAVIDA
1º ANO TB12

Por outro, trata-se da relação de excecionalidade que releva para os limites à


analogia e para o argumento a contrario. Nesta ordem de ideias que, esclareça-se, não
é a que tem sido geralmente seguida entre nós, nada obsta a que uma norma seja
simultaneamente classificável como especial e como excecional. Uma coisa não
contende com a outra. É em todo o caso claro que só uma pequena parte das normas
especiais pode ser qualificada como excecional.
Vejamos em que consiste a relação de excecionalidade.
Uma primeira verificação, é a de que a classificação das normas em excecionais e
“gerais” também corresponde a uma relação. É a relação que se estabelece entre regra
e exceção.
Em segundo lugar, a relação de excecionalidade assume uma feição específica
perante a “simples” relação de especialidade. Só há uma exceção quando uma regra,
que é estabelecida para um determinado conjunto de situações, é afastada,
relativamente um círculo restrito destas situações, por uma solução de sentido contrário.
Não basta que o regime seja diferente. Tem de ser um regime de sinal oposto ao
regime-regra.
Por exemplo, em matéria de responsabilidade civil vigora o dito “princípio da culpa”,
segundo o qual, em princípio, só há obrigação de indemnizar quando o dano resultou de
um ato ilícito e culposo (art. 483.º CC). No entanto, em certos casos especificados na lei,
admite-se excecionalmente a responsabilidade independentemente de culpa e, até, da
ilicitude do facto lesivo (arts. 499.º e segs. CC, designadamente).
O art. 219.º CC estabelece a regra geral da consensualidade, segundo a qual a
validade da declaração negocial não depende da observância de forma especial, salvo
quando a lei o exigir. O art. 875.º CC submete a escritura pública ou documento particular
autenticado o contrato de compra e venda de bens imóveis. Esta exigência de forma está
em direta oposição ao regime-regra do art. 219.º, representando, pois, uma norma
excecional.
Segundo o art. 11.º CC, as normas excecionais não comportam aplicação analógica,
mas admitem interpretação extensiva.

Com efeito, se o regime excecional se justifica por uma valoração diferente de casos
específicos, mal se compreenderia que se fosse por analogia aplicar a regra a outros
casos, que não justificam tal valoração.

100
MAFALDA BOAVIDA
1º ANO TB12

Assim, por exemplo, a sujeição a forma legal do contrato de compra e venda de


imóveis justifica-se pelo elevado valor destes bens, que coloca especiais exigências
quanto à tutela da formação da vontade e à certeza sobre as situações jurídicas
existentes. Não pode aplicar-se por analogia esta regra à venda de bens móveis.

Mas não poderá o mesmo raciocínio ser feito em relação às restantes normas
especiais? Aparentemente a resposta é afirmativa.
Claro é que este raciocínio não obsta sempre à aplicação analógica das regras
especiais. Se o caso omisso justificar a valoração diferente que está subjacente ao
regime especial a regra especial deve ser-lhe aplicada por analogia. Será que esta
possibilidade se encontra arredada no que toca às normas excecionais, por força do art.
11.º CC? Como adiante veremos, creio que também não se pode excluir em absoluto a
possibilidade de a norma excecional ser aplicada por analogia.

Para OLIVEIRA ASCENSÃO, referindo um texto de PAULO, bem para como


SAVIGNY e RAÚL VENTURA, não basta, para qualificar uma regra como excecional,
que contrarie uma regra de âmbito mais vasto. Só será excecional a regra que vá contra
um princípio geral informador de um setor do sistema jurídico. Obter-se-ia assim uma
excecionalidade substancial.
É certo que a formulação legal não é um critério seguro para determinar a
excecionalidade de uma regra.
O legislador pode formular como exceção – utilizando a palavra “exceto” ou “salvo” –
aquilo que constitui um mero elemento de delimitação da previsão da norma.
Noutros casos, o legislador pode formular como exceção aquilo que corresponde a
uma mera especialidade, isto é, um regime que, embora diferente, não é oposto ao
regime-regra.
Mas embora seja aliciante o apelo a uma excecionalidade substancial, oferece-me
dúvida que, por forma geral, se deva fazer depender a excecionalidade da regra da
contrariedade a um princípio geral.

Em muitos casos a regra que se opõe a uma regra de alcance mais amplo
fundamenta-se num princípio geral ou numa conjugação de princípios jurídicos gerais
que leva a limitar o princípio geral em que se baseia a “regra geral”. É o que se verifica,
por exemplo, com as regras que estabelecem exigências de forma para determinados

101
MAFALDA BOAVIDA
1º ANO TB12

negócios jurídicos. Ora, nestes casos, tanto a “regra geral” como a regra que se lhe opõe
constituem ao mesmo tempo a expressão de princípios jurídicos gerais e a sua limitação.
Noutros casos pode acontecer que nem a “regra geral” nem a regra que se lhe opõe
possam ser vistas como expressões de princípios jurídicos gerais.
O legislador do CC também não acolheu a ideia de contrariedade a princípios
fundamentais que constava do art. 11.º do projeto.
Isto leva-me a concluir que para a qualificação de uma regra como excecional basta
que ela estabeleça um regime de sentido oposto a uma regra de alcance mais amplo.
Para caracterizar a relação de excecionalidade pode ainda invocar-se a
incompatibilidade dos efeitos jurídicos desencadeados por cada uma das normas em
presença.
Esta incompatibilidade não é característica necessária da relação de especialidade.
Os efeitos de uma norma especial tanto podem ser compatíveis como incompatíveis com
os da regra geral.
Os efeitos das normas excecionais são necessariamente incompatíveis com os da
“norma geral”. Mas, de novo, nem todas as normas em que esta incompatibilidade se
verifica estão em relação de excecionalidade.
A classificação de uma regra como excecional também releva tradicionalmente para
a utilização do argumento a contrario. Se a regra excecional consagra um regime oposto
ao regime-regra, então poderia extrair-se da regra excecional a “regra geral”.

Assim, se a sujeição a forma legal é uma regra excecional, o contrário, que é a


consensualidade, constitui a regra geral.
Claro que este argumento só tem sentido útil quando a regra geral, por não se
encontrar expressamente formulada, carece de ser revelada pela interpretação. Ao
mesmo tempo, porém, a utilização do argumento pressupõe a demonstração do caráter
excecional da regra que se encontra expressamente formulada.

Isto suscita uma dificuldade fundamental: a excecionalidade da regra expressa tem


de resultar da contrariedade à regra geral implícita, logo pressupõe a demonstrada a
vigência de uma regra geral implícita em sentido contrário.
Portanto, aparentemente, o argumento a contrario constitui uma petição de princípio,
porque faz entrar a conclusão (a vigência da regra geral) nas premissas (excecionalidade
da regra).

102
MAFALDA BOAVIDA
1º ANO TB12

Com efeito, a verdadeira questão que aqui se coloca não é a de se deduzir, segundo
um raciocínio de lógica formal, uma regra geral implícita de uma regra expressa, mas de
saber se a regra expressa constitui uma manifestação de um “princípio geral”, isto é, de
uma regra geral implícita, ou um desvio relativamente à regra geral implícita.
Se a regra expressa constitui uma manifestação de uma regra geral implícita, esta
infere-se, mediante interpretação, do texto legal, ou se não tiver um mínimo apoio no
texto legal, mediante a aplicação analógica da regra expressa.

Se os relevantes critérios de interpretação ou integração de lacunas levam a concluir


que a regra geral implícita estabelece um regime oposto ao da regra expressa, o
argumento a contrário é inútil.

Trata-se, de novo, de um problema de interpretação ou de integração de lacunas,


que tem de ser resolvido com base nos relevantes critérios metodológicos e, em
especial, à luz da intenção do legislador histórico e de outros critérios teleológicos.
Portanto, o que releva não é um argumento lógico-formal, mas, principalmente, um
raciocínio teleológico.

“Regras comuns” e “regras particulares”

Segundo esta classificação dizem-se comuns as regras que se aplicam à


generalidade das pessoas e particulares as que se aplicam a certas categorias de
pessoas.

No passado, em particular antes do advento do jusracionalismo, as regras de Direito


particular desempenharam um papel de grande importância. Assim, designadamente,
em Portugal houve diferentes regras aplicáveis às diversas ordens do reino (clero,
nobreza e povo), privilégios de algumas destas ordens, normas privativas de certas
profissões, etc.
Hoje, no Direito português, as leis são geralmente comuns, embora possam atender
a certas qualidades dos seus destinatários para delimitar as situações reguladas. Por
exemplo, certas regras só se aplicam quando o sujeito é comerciante, ou empresário, ou
consumidor, etc.

103
MAFALDA BOAVIDA
1º ANO TB12

Resta acrescentar que esta classificação de regras suscita algumas dificuldades


relativamente ao fenómeno, a que atrás aludi, das ordens jurídicas complexas de base
pessoal. Há uma diferença, sem dúvida difícil de traçar, entre complexos normativos
materiais que, por força de normas de conflitos de Direito Interpessoal só são aplicáveis
a certas categorias de pessoas, e normas ou complexos normativos materiais cuja
previsão se reporta a relações entre pessoas de uma determinada categoria, sem que
haja necessidade de qualquer norma de conflitos para delimitar o seu âmbito pessoal de
aplicação.
No primeiro caso, temos uma norma de conflitos que exprime uma valoração
conflitual autónoma; no segundo, um mero elemento delimitador da previsão da norma
material.

Procure-se explicar esta diferença por meio de dois exemplos.


As normas de uma lei que são privativas dos negócios celebrados entre empresários
são regras particulares. A qualidade de empresário dos seus destinatários é um
pressuposto de aplicação destas normas materiais, um elemento da sua previsão. Não
é necessária qualquer regra de conflitos.
Quando num país as relações do estatuto pessoal são reguladas por diferentes
complexos normativos conforme a confissão religiosa dos respetivos sujeitos, a
delimitação do âmbito de aplicação pessoal destas normas materiais resulta de normas
de conflitos de Direito Interpessoal. Porquanto a delimitação do âmbito pessoal de
aplicação destas normas materiais não resulta da sua previsão, mas de outra norma,
elas não se distinguem, pela sua estrutura, das normas comuns. Será menos equívoco
designar estes complexos normativos por Direito pessoal que por Direito particular.

Pelas razões expostas, entendo que não se deve amalgamar, numa mesma
categoria, as normas materiais que contêm um pressuposto pessoal de aplicação e as
normas materiais que são objeto de normas de conflitos de Direito Interpessoal.

104
MAFALDA BOAVIDA
1º ANO TB12

“Regras gerais” e “regras locais”

Esta classificação atende à delimitação das situações reguladas pelas normas em


razão do território. São regras gerais as que regulam quaisquer situações e locais as que
regulam apenas as situações que estejam em contacto com uma determinada área do
território.

Na ordem jurídica portuguesa a grande maioria das regras são gerais.


São necessariamente locais as normas que resultam da atividade de órgãos locais,
por exemplo as posturas municipais. Com efeito a competência regulamentar dos órgãos
locais limita-se a situações que estão em contacto com uma circunscrição territorial, que,
no caso da Câmara Municipal é o concelho.

Os órgãos centrais também podem produzir normas locais – por exemplo, a


legislação que se destine a apoiar os agricultores atingidos pela seca numa região do
país.

De acordo com o anteriormente exposto, o costume também pode ser local.


OLIVEIRA ASCENSÃO prefere uma classificação tripartida, em que as normas que
se “aplicam” em todo o território são designadas universais, e se acrescenta, como
terceira categoria, as normas gerais, que se “aplicam” só no território continental.
A razão por que não sigo esta classificação tripartida relaciona-se com a distinção
que traço entre normas que integram um pressuposto espacial de aplicação e complexos
normativos que têm um âmbito de aplicação no espaço delimitado por normas de
conflitos de Direito Interlocal.
Esta distinção é paralela a traçada anteriormente com respeito às regras particulares.
A matéria da competência legislativa das Assembleias Legisla-tivas dos Açores e da
Madeira suscita questões complexas que são estudadas na disciplina de Direito
Constitucional.

Aqui direi apenas que esta competência pode ser primária (arts. 227.º/1/a e 228.º/1
CRP), delegada (art. 227.º/1/b CRP), complementar (art. 227.º/1/c CRP) ou dizer respeito
à transposição de diretivas da União Europeia (art. 112.º/8 CRP). A competência primária
tem por objeto as matérias enunciadas no Estatuto Político-Administrativo da respetiva

105
MAFALDA BOAVIDA
1º ANO TB12

Região, que sejam do âmbito regional e não estejam reservadas aos órgãos de
soberania. Daí resulta que a ordem jurídica portuguesa é, embora embrionariamente,
uma ordem jurídica complexa de base territorial.

Entre outros limites, os decretos legislativos regionais têm um “âmbito regional” (art.
112.º/4 CRP), critério que tem pelo menos uma dimensão territorial.
Por outro lado, mesmo nas matérias de competência das assembleias regionais, são
subsidiariamente aplicáveis as normas da legislação estadual (art. 228.º/2 CRP).

Estas normas constitucionais implicam ou balizam certas soluções de Direito


Interlocal, que podem estar meramente implícitas. As normas emanadas das
assembleias legislativas regionais têm um âmbito de aplicação no espaço limitado,
independentemente do modo como a sua previsão é delimitada, por força destas
soluções de Direito Interlocal. Elas não se distinguem necessariamente, pela sua
estrutura, das “regras gerais”.

O mesmo se diga das leis dos órgãos estaduais que, por força de uma norma de
Direito Interlocal nelas contida, regulem exclusivamente situações conectadas com as
Regiões. Estas leis são constitucionalmente admissíveis, pelo menos em matérias
reservadas aos órgãos de soberania.

Já a mera competência regulamentar das autarquias locais não é um fator


significativo da complexidade da ordem jurídica, não suscitando, na prática, conflitos de
leis interlocais. Também neste caso, porém, se verifica que a delimitação do âmbito de
aplicação no espaço da norma é independente da sua previsão e que, por conseguinte,
estas normas não se distinguem das normas gerais pela sua estrutura.

Diferente é o caso das normas criadas pelos órgãos centrais que delimitem a sua
previsão em função do território. No exemplo dado, quando o Governo cria um sistema
de apoios aos agricultores de uma determinada região, a delimitação das situações
reguladas integra a previsão das normas em causa, sem necessidade de qualquer norma
de Direito Interlocal.

106
MAFALDA BOAVIDA
1º ANO TB12

Também aqui creio que não se deve amalgamar, numa mesma categoria, as normas
materiais que contêm um pressuposto espacial de aplicação e as normas materiais cujo
âmbito de aplicação no espaço é delimitado por normas de conflitos de Direito Interlocal.
No seu sentido mais comum a expressão “Direito local” designa o Direito cujo âmbito
de aplicação no espaço é delimitado por normas de Direito Interlocal. Não me parece
recomendável que se utiliza esta expressão com respeito a normas que contêm
pressupostos espaciais de aplicação.
Pelas razões expostas, penso que em lugar de classificar as regras em
comuns/particulares e gerais/locais, será preferível classificá-las, em função da
integração de um pressuposto pessoal ou espacial na sua previsão, como regras de
alcance geral, regras de alcance personalizado e regras de alcance localizado.

Quanto à distinção entre Direito comum, Direito pessoal e Direito local, já não se
tratará de uma classificação de regras jurídicas, mas de uma classificação de complexos
normativos vigentes dentro de uma ordem jurídica complexa.
No art. 348.º CC o conceito de “Direito local” não corresponde inteiramente ao sentido
mais comum da expressão.
O sentido do art. 348.º é essencialmente o de esclarecer que o Direito
consuetudinário, local ou estrangeiro tem um estatuto idêntico ao do restante Direito: é
de conhecimento oficioso, não carecendo, para a sua aplicação, de ser alegado e
provado pelas partes (cf. art. 348.º/1 e 2). A única especialidade reside no
estabelecimento de um dever de colaboração com o tribunal daquele que invocar o
Direito consuetudinário, local ou estrangeiro.

O que se deve entender, no art. 348.º, por Direito local?


Primeiro, o Direito local visado pelo art. 348.º exclui o costume local e o Direito local
estrangeiro, que se encontram abrangidos nas menções feitas ao Direito consuetudinário
e ao Direito estrangeiro.
Segundo, o dever de colaboração das partes só se justifica quanto às normas criadas
por órgãos locais, uma vez que as regras locais criadas pelos órgãos centrais e regionais
estão sujeitas publicação no jornal oficial.
Pode então concluir-se que a expressão Direito local significa, neste contexto, as
normas regulamentares emanadas de órgãos locais.

107
MAFALDA BOAVIDA
1º ANO TB12

Da recondução das regras “particulares” e “locais” à categoria das regras especiais

DIAS MARQUES, OLIVEIRA ASCENSÃO e TEXEIRA DE SOUSA formulam um


conceito amplo de especialidade, que inclui, além das regras especiais em razão da
matéria, não só as regras que atrás classificámos como regras de alcance personalizado
e localizado, mas também, aparentemente, o Direito pessoal e o Direito local.
Nesta ordem de ideias, OLIVEIRA ASCENSÃO defende que o art. 7.º/3 CC, que
como sabem estabelece que, em princípio, a lei geral não revoga lei especial, se aplica
relativamente à revogação de todas estas regras.

Parece-me que não se deve, para efeitos de aplicação do art. 7.º/3, reconduzir o
Direito pessoal ou local ao conceito de “lei especial”. As relações entre estes complexos
normativos e as normas de Direito comum constituem um problema completamente
diferente do das relações entre lei especial e lei geral.
Pelo que toca à ordem jurídica portuguesa, o tema das relações entre as leis regionais
e as leis do Estado pertence ao Direito Constitucional. A questão tem sido controvertida.

Quanto à hierarquia destas leis farei uma breve referência quando tratar da hierarquia
das fontes e das regras.
O problema da revogação em matérias em que haja competências concorrentes dos
órgãos de soberania e das assembleias regionais é controverso na doutrina.

Parece de admitir que a lei do Estado, salvo demonstração inequívoca da intenção


do legislador em contrário, não revoga a lei regional (a lei estadual que revogue lei
regional em matéria que o estatuto político-administrativo da região reserve à
competência legislativa regional, estará mesmo ferida de ilegalidade, uma vez que o
estatuto tem valor supralegislativo). Mas isto, a meu ver, decorre do sentido da repartição
de competências operada pela Constituição e não do art. 7.º/3 CC.
Por seu turno, os decretos legislativos regionais não revogam as leis do Estado,
apenas prevalecem sobre estas em caso de conflito.

Quanto à revogação de uma lei de alcance personalizado ou localizado por uma lei
de alcance geral, creio que encontra aplicação a ratio do art. 7.º/3 CC. Deve partir-se do
princípio que uma lei de alcance geral não tem a intenção de revogar a lei que exprima

108
MAFALDA BOAVIDA
1º ANO TB12

uma valoração específica das situações em que estão envolvidas determinadas


categorias de pessoas ou que se localizam numa determinada zona do território.

É, pois, de aceitar que o conceito de lei especial utilizado neste preceito abranja a lei
de alcance personalizado e a lei de alcance localizado.
Também em caso de incompatibilidade entre as consequências jurídicas
desencadeadas por uma norma de alcance geral e por uma norma de alcance
personalizado ou localizado que não seja hierarquicamente inferior parece que deve
prevalecer esta segunda norma.

Hierarquia das Fontes e das Regras

Identificação do problema

Assinalei atrás que um dos nexos que se estabelecem entre as regras de um sistema
é o nexo hierárquico. As regras não têm todas o mesmo valor e a determinação deste
valor é importante para diversas operações:
à A revogação de uma regra;
à A interpretação autêntica de uma proposição jurídica;
à A determinação da regra aplicável no caso de vigoraram regras que em relação
ao mesmo caso concreto geram consequências incompatíveis.

Uma norma tem, no sistema normativo, o valor da fonte que a criou e, por
conseguinte, creio que a hierarquia das regras não pode deixar de ser a expressão da
hierarquia das fontes. Também creio que isto corresponde ao sentido mais comummente
atribuído à hierarquia das normas.
No entanto, parece de admitir que a hierarquia das normas pode ser influenciada pelo
seu conteúdo, ganhando assim alguma autonomia relativamente à hierarquia das fontes.
Assim, normas que teriam o mesmo grau hierárquico do ponto de vista da hierarquia das
fontes poderão ver essa hierarquia modificada em função do seu conteúdo.
Por exemplo, poderá dizer-se que uma Lei da Assembleia da República sobre matéria
da sua reserva absoluta de competência é hierarquicamente superior a um Decreto-Lei
do Governo (cf. art. 198.º/1/a CRP).

109
MAFALDA BOAVIDA
1º ANO TB12

Sendo a lei a principal fonte estadual do Direito é até certo ponto natural que o
problema da hierarquia se coloque geralmente com respeito às leis. Mas, em rigor, o
problema também se pode colocar relativamente às outras fontes.

Hierarquia das fontes

Assinalei, ao tratar das fontes do Direito, que as fontes podem ser supraestaduais,
estaduais, infraestaduais e paraestaduais.
A matéria relativa às relações entre fontes supraestaduais – internacionais e
europeias –, e fontes estaduais será estudada nas disciplinas de Direito Internacional
Público, de Direito da União Europeia e de Direito Constitucional.

Razão por que farei apenas três breves observações.


Primeiro, segundo a posição dominante, o Direito Internacional convencional e
derivado, tem um valor superior à lei ordinária, mas infraconstitucional (ver arts. 8.º,
277.º/2, 278.º/1, 279.º/1 e 4 e 280.º/3 CRP e art. 70.º/1/i da Lei Orgânica sobre a
organização, funcionamento e processo do tribunal constitucional).

Segundo, embora a jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia e um


setor importante da doutrina defenda a primazia do Direito da União Europeia sobre todo
o Direito de fonte interna, o melhor entendimento, que prevalece entre nós, é o de que
na ordem interna a Constituição nacional tem supremacia sobre o Direito da União
Europeia.
Creio que este entendimento pode ser mantido mesmo perante disposições
constitucionais como a que, após a revisão constitucional de 2004, consta do art. 8.º/4
CRP, e não é substancialmente prejudicado pela entrada em vigor do Tratado de Lisboa
(ver também arts. 204.º e 277.º CRP).
Com efeito, por exigência de alguns Estados, a referência ao primado do Direito da
União não consta do texto dos Tratados, mas apenas de uma declaração anexa ao
Tratado de Lisboa (Declaração n.º 17), cujo valor jurídico é controverso.

Terceiro, é igualmente controversa a posição do Direito Internacional comum


relativamente à Constituição. Creio que a razão está com aqueles que entendem que
certas normas e princípios fundamentais de Direito Internacional comum,

110
MAFALDA BOAVIDA
1º ANO TB12

designadamente em matéria de direitos fundamentais e Direito Penal Internacional, se


impõem às ordens jurídicas estaduais e, que, portanto, independentemente de serem
recebidos ou não na ordem interna têm valor supraconstitucional.
No que se refere à hierarquia das leis internas, é óbvio que a lei constitucional ocupa
o escalão mais elevado.
Segue-se-lhe a lei de revisão constitucional, que é limitada pela constituição formal.
Um terceiro escalão é ocupado pelas leis de valor reforçado, definidas no art. 112.º/3
CRP e que segundo JORGE MIRANDA são de cinco espécies: leis de enquadramento,
leis orçamentais, leis de autorização legislativa, leis de bases e estatutos político-
administrativos das regiões autónomas.

Em quarto lugar surgem, desde logo, as restantes leis da Assembleia da República e


os decretos-leis do Governo que têm igual valor (art. 112.º/2 CRP).
Até a revisão constitucional de 2004 os decretos legislativos regionais ocupavam o
escalão seguinte, porque estavam, sujeitos às leis gerais da República, isto é, as Leis e
os Decretos-Leis que vigorem em todo o território nacional (art. 112.º/4 e /5).

Presentemente, resulta do art. 228.º/2 CRP que nas matérias de competência das
assembleias regionais as normas da legislação estadual só são aplicáveis
subsidiariamente, isto é, na falta de legislação regional.
Por conseguinte, os decretos legislativos regionais prevalecem, em regra, sobre as
leis do Estado (sem prejuízo de estarem subordinados a certas leis do Estado,
designadamente as leis de valor reforçado: leis de enquadramento, leis de autorização
legislativa (arts. 165.º/2 e 227.º/2 CRP) e leis de bases (art. 112.º/2 CRP) (JORGE
MIRANDA e BLANCO DE MORAIS)).

Por último, temos os regulamentos, que também se encontram hierarquizados entre


si. Os critérios da hierarquia regulamentar são três: a posição do órgão emissor, o âmbito
territorial das atribuições prosseguidas pela pessoa coletiva a que pertence o órgão
emissor e a forma regulamentar.

Segundo o critério da posição do órgão emissor, os regulamentos emitidos pelo


Governo enquanto órgão superior da administração pública são hierarquicamente
superiores em relação a todos os restantes regulamentos administrativos, e os

111
MAFALDA BOAVIDA
1º ANO TB12

regulamentos emitidos por órgãos supraordenados são hierarquicamente superiores


àqueles emitidos pelos órgãos que se lhes encontram infraordenados.

Segundo o critério do âmbito geográfico das atribuições prosseguidas, os


regulamentos emitidos por órgãos inseridos em pessoas coletivas cujas atribuições
sejam de âmbito territorial mais amplo são hierarquicamente superiores àqueles emitidos
por órgãos inseridos em pessoas coletivas cujas atribuições sejam de âmbito territorial
mais restrito.

Segundo o critério da forma, os regulamentos de forma mais solene são


hierarquicamente superiores àqueles que sejam revestidos de forma menos solene. Por
exemplo, um decreto regulamentar prevalece sobre as portarias e os despachos
normativos.

Estes critérios não são absolutos e, em especial, sofrem desvios no que toca aos
regulamentos dos órgãos das Regiões Autónomas.

Quanto à relação entre lei e costume, já tomei posição anteriormente.

No que se refere às decisões com força obrigatória geral do Tribunal Constitucional


parece que têm o mesmo valor que a lei constitucional que interpretam e aplicam.
Quanto aos atos normativos autónomos, temos de distinguir conforme se trata de
normas emanadas de organizações sociais e de regras geradas pela autonomia coletiva
no Direito do Trabalho.

Creio que se deve entender que as normas emanadas de organizações sociais


infraestaduais são inferiores à lei, se outra coisa não resultar da Constituição ou da lei
ordinária. Isto pode ser fundamentado de várias maneiras.
Para quem admita que a competência para a produção jurídica no âmbito de
organizações sociais infraestaduais é delegada pela ordem jurídica estadual poderá
encontrar aí o fundamento mais geral para esta subordinação.
Quem entenda que o disposto nos números 2 e 3 do art. 1.º CC, relativamente às
normas corporativas, continuará a ser aplicável às normas criadas no âmbito de

112
MAFALDA BOAVIDA
1º ANO TB12

organizações sociais, poderá invocar o disposto neste n.º 3: “As normas corporativas
não podem contrariar as disposições legais de carácter imperativo”.

Enfim, outros argumentos no mesmo sentido se podem retirar das normas legais que
estabelecem a invalidade do ato constitutivo de pessoas coletivas e das deliberações
dos seus órgãos que sejam contrárias à lei (cf., desde logo, os arts. 158.º-A e 177.º CC).

Quanto aos instrumentos de regulamentação coletiva do trabalho, o ponto será


examinado na disciplina de Direito do Trabalho. Direi apenas que a lei ordinária também
contém normas imperativas que não podem ser afastadas por estes instrumentos (art.
478.º/1/a do Código do Trabalho).

A Determinação e Aplicação das Regras


Generalidades

Identificação do problema

Já sabemos que as regras jurídicas se exprimem normalmente sob a forma linguística


de proposições jurídicas. Geralmente, a proposição jurídica associa a uma situação ou
a um aspeto de uma situação, delimitada pela previsão, a consequência jurídica
determinada pela estatuição.

Para realizarem esta função as regras têm de ser aplicadas. Por aplicação entende-
se aqui a valoração de uma situação concreta, ou de um seu aspeto, à luz de uma regra
jurídica, e a determinação das consequências jurídicas que daí advêm.
É uma operação intelectual, que tem de ser realizada pelos órgãos de aplicação do
Direito na decisão do caso concreto que lhes é submetido.

Mas esta operação também é realizada por todos aqueles que queiram determinar
qual a disciplina jurídica de uma situação, o que se verifica, desde logo com a
generalidade das profissões jurídicas, mas também, ainda que por forma imperfeita,
porque carecendo de rigor científico, por outras profissões e pela generalidade dos
sujeitos jurídicos.

113
MAFALDA BOAVIDA
1º ANO TB12

Quer isto dizer que a aplicação do Direito não é só a aplicação pelos órgãos
competentes.
A este respeito, no entanto, é preciso distinguir conforme a produção da
consequência jurídica depende ou não de um ato prévio e heterónomo de aplicação ao
caso concreto.
Por exemplo, se uma pessoa pratica um ato que preenche um tipo de crime, pode
dizer-se que a sua conduta é reprovada e desencadeia uma sanção punitiva. Mas só
uma decisão judicial pode determinar que o agente está sujeito a uma determinada pena.
Neste caso, a concretização da consequência jurídica depende de uma decisão judicial.

Também a atribuição de um direito de exploração de bens do domínio público pode


depender, entre outras hipóteses, de um ato administrativo de concessão. Neste caso,
a produção do efeito atributivo depende de um ato administrativo.
Nas relações entre particulares a consequência jurídica produz-se normalmente por
forma automática. Por exemplo, se o devedor falta culposamente ao cumprimento da
obrigação fica obrigado a indemnizar, independentemente de qualquer sentença judicial.

A aplicação da norma envolve uma interpretação. A função básica da interpretação é


a de facultar o conhecimento da norma através da compreensão do significado das
proposições jurídicas por que a norma se exprime linguisticamente.
Poderíamos ser tentados a afirmar que a aplicação pressupõe a interpretação. Mas
porque na solução de um caso concreto a interpretação surge indissociavelmente ligada
à aplicação, prefiro encará-las como momentos de um processo dialético.

Quererá isto dizer que a interpretação nunca pode ser dissociada da aplicação?
Não sou desta opinião. Pode haver interpretação sem haver aplicação. As regras são
objeto de estudo por parte da ciência jurídica independentemente da necessidade de
resolver um particular caso concreto.
Este estudo também se faz no curso de Direito, com frequente recurso a hipóteses
que tanto podem reproduzir como simular casos reais. Ora, para conhecer a norma é
preciso interpretá-la.
Sem se ignorar a dualidade que a interpretação pode assumir, como momento do
processo de interpretação-aplicação e como processo dissociado da aplicação, creio
que, seguindo a perspetiva dominante, se justifica centrar a atenção na interpretação-

114
MAFALDA BOAVIDA
1º ANO TB12

aplicação. Com efeito, enquanto operação metodológica, a interpretação feita “em


abstrato” constitui um minus relativamente à interpretação-aplicação, de que tanto
quanto possível se procurará aproximar.

O esquema lógico de interpretação e aplicação da regra

Tem-se procurado formular um esquema lógico de aplicação da regra, sob a forma


de um silogismo. O silogismo é um raciocínio argumentativo composto de três
proposições, em que uma delas, a conclusão, se deduz das outras duas, que se
designam por premissas. Como todos os esquemas é uma simplificação com alcance
explicativo limitado. Neste esquema temos uma situação S, uma previsão normativa P e
uma consequência jurídica C.P é uma condição ou pressuposto que se realiza quando
S é um caso particular de P.S e S realiza P, C vigora para S.

Este silogismo também pode ser expresso da seguinte forma:


P → C (para todo o caso de P, vale C) – premissa maior
S < P (S é um caso de P) – premissa menor
S → C (Para S vigora C) – conclusão

Este esquema pode ser designado como silogismo judiciário.

Tomemos, por exemplo, a proposição contida no art. 798.º CC: “O devedor que falta
culposamente ao cumprimento da obrigação torna-se responsável pelo prejuízo que
causa ao credor”.
Perante a situação concreta, em que uma pessoa não cumpre, culposamente, a
obrigação a que está adstrita, o silogismo assume a seguinte forma.
A premissa maior diz-nos que quando ocorre um incumprimento culposo da
obrigação o devedor é obrigado a indemnizar o credor pelo prejuízo daí resultante.
A premissa menor diz-nos que a situação concreta é um caso particular de
incumprimento culposo da obrigação.

A conclusão consiste em verificar que nesta situação concreta o devedor está


obrigado a indemnizar.

115
MAFALDA BOAVIDA
1º ANO TB12

O problema colocado por este silogismo reside principalmente no estabelecimento


das premissas.
Para estabelecer a premissa maior é preciso interpretar a proposição jurídica, para
esclarecer o sentido e alcance dos conceitos que delimitam a previsão da norma. Assim,
no exemplo dado, é preciso saber o que se entende por obrigação, por incumprimento e
por culpa.
Também é preciso esclarecer o sentido dos conceitos utilizados para descrever a
estatuição. No exemplo dado é preciso saber em que consiste a obrigação de
indemnizar.
Para estabelecer a premissa menor é necessário determinar os factos que definem a
situação concreta e reconduzi-la à previsão normativa.
Esta operação é tradicionalmente encarada como um processo de subsunção, que
tem por núcleo um silogismo lógico. Daí que, como atrás assinalei, o pensamento
conceptual tenha encarado a aplicação do Direito como uma operação de lógica formal.
Na visão mais extrema, o juiz seria um autómato, que se limitaria a subsumir os factos
provados a uma previsão e a aplicar as consequências contidas na estatuição da norma.

Hoje tende a admitir-se que a obtenção da premissa menor também pode assentar
num raciocínio de coordenação valorativa, embora seja controverso até que ponto certas
operações envolvidas na aplicação da regra, apesar de envolverem uma valoração,
podem ser feitas segundo um esquema subsuntivo.

Comecemos por examinar em que consiste o silogismo de subsunção.


Como acabámos de ver este silogismo destina-se a reconduzir uma situação
concreta à previsão de uma norma. O silogismo de subsunção serve para estabelecer a
premissa menor do silogismo judiciário. A conclusão do silogismo de subsunção (S < P)
constitui a premissa menor do silogismo judiciário.
Pelo exame que fizemos dos conceitos jurídicos, quando tratámos do sistema, já
sabemos que as normas delimitam a sua previsão com recurso a conceitos que, na
maioria dos casos, podem ser definidos mediante a indicação de determinadas notas
(conceitos abstratos).
Assim, pode dizer-se que a previsão P está caracterizada pelas notas N1, N2, N3.
Isto constitui a premissa maior do silogismo de subsunção.

116
MAFALDA BOAVIDA
1º ANO TB12

A premissa menor exige o estabelecimento dos factos. Admitamos que a situação S


apresenta as notas N1, N2, N3. Destas duas premissas decorre a conclusão: S é um
caso particular de P.

Na lógica entende-se por silogismo de subsunção a subordinação dos conceitos de


menor extensão aos conceitos de maior extensão. Isto só pode ocorrer definindo ambos
os conceitos e estabelecendo, de seguida, que o conceito inferior apresenta todas as
notas do conceito superior e, pelo menos, uma nota adicional, em consequência da qual
a sua extensão é menor.
Assim, por exemplo, o conceito de “cavalo” pode ser subsumido ao conceito de
“mamífero”.

A entender-se as coisas deste modo, uma subsunção de factos a um conceito não


pode constituir um silogismo de subsunção. A premissa menor do silogismo de
subsunção tem de ser vista como o enunciado de que as notas mencionadas na previsão
normativa se encontram preenchidas numa determinada situação da vida (por ex., “S
apresenta as notas N1, N2,N3”).
Para se formular este enunciado tem de se fazer um juízo sobre a presença das notas
características da previsão legal. Neste juízo reside um dos problemas fundamentais da
aplicação da lei.
Frequentemente esta avaliação extravasa do silogismo de subsunção, fazendo apelo
a juízos de perceção ou a determinadas experiências.
O intérprete tem de ajuizar se uma certa conduta ocorreu ou não, tem de ajuizar da
atitude interior que animou essa conduta, tem de averiguar se um dado prejuízo pode ter
sido causado por essa conduta.

Em certos casos a recondução da situação da vida, ou de um seu aspeto, à previsão


da norma, não pode ser vista como um silogismo de subsunção. Trata-se antes de uma
coordenação valorativa da situação com a previsão normativa. Irrompe aqui um
pensamento valorativo, que faz apelo à teleologia e à axiologia.

Por vezes o conceito utilizado na previsão da norma não pode ser definido com a
indicação de todos os elementos que o caracterizam, por forma a permitir o silogismo de
subsunção.

117
MAFALDA BOAVIDA
1º ANO TB12

Isto é evidente no caso dos conceitos carecidos de preenchimento valorativo, de que


falei a respeito dos conceitos indeterminados e das cláusulas gerais.
Por exemplo, para saber se uma dada conduta constitui um abuso do direito, por
exceder os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou
económico desse direito, eu não posso proceder segundo o esquema subsuntivo, desde
logo porque o conteúdo dos conceitos de boa fé e bons costumes não pode ser descrito
mediante uma definição.

Para OLIVEIRA ASCENSÃO o esquema subsuntivo é insuficiente sempre que seja


necessário proceder a valorações.
Também MARCELO REBELO DE SOUSA afirma que só excecionalmente a
aplicação se reconduz a uma mera subsunção.
Pode afirmar-se que há casos em que o raciocínio que permite reconduzir S a P não
assenta na subsunção, mas na coordenação valorativa.
Quer isto dizer que não podemos dizer que em S estão presentes as notas indicadas
na previsão legal.
Temos de proceder a uma avaliação menos enquadrada pela lógica formal, apreciar
se à luz do fim prosseguido pela regra em causa a situação deve ou não ser por ela
regulada.
Esta avaliação também pode passar por uma comparação entre a situação em
presença e outras situações às quais a regra foi aplicada. Portanto, como já assinalei
anteriormente também num sistema como o nosso há um certo espaço para o “raciocínio
de caso para caso”.

Passemos agora ao terceiro momento do silogismo judiciário, à conclusão. Também


aqui encontramos uma dificuldade. Esta diz respeito à determinação da consequência
jurídica.
Na visão tradicional a consequência jurídica resulta automaticamente da subsunção
como conclusão do silogismo judiciário. A consequência jurídica foi enunciada na
premissa maior. Uma vez estabelecido, na premissa menor, que a situação se reconduz
à previsão da norma, conclui-se que a consequência jurídica se produz no caso concreto.
Também aqui o silogismo é uma simplificação.

118
MAFALDA BOAVIDA
1º ANO TB12

Na premissa maior a consequência jurídica C significa a consequência jurídica


abstrata, ao passo que, na conclusão, C significa a consequência jurídica concreta.
Isto não constitui problema quando a consequência jurídica é inteiramente
determinada. Por exemplo, em matéria de usucapião, determina-se nos arts. 1287.º e
segs. CC que a posse de um direito real determina, uma vez decorrido um determinado
prazo, a aquisição do direito. Neste caso a consequência jurídica concreta decorre sem
dificuldades do enunciado legal.

Mas nem sempre é assim tão simples. Em muitos casos a consequência jurídica
abstrata apresenta um certo grau de indeterminação, razão por que carece de uma
concretização. Por exemplo, pense-se no dever do locador/senhorio realizar as obras de
conservação da casa arrendada, hoje estabelecido pelo art. 1074.º CC em matéria de
arrendamento urbano.
A regra determina que o locador realize as obras de conservação.
Mas o locatário não reclama genericamente que o locador cumpra este dever,
reclama que o locador tome as medidas que em seu entender são requeridas pela
conservação da coisa. O tribunal não pode limitar-se a decidir se o locador está obrigado
ou não a realizar obras de conservação. Tem de decidir também se as medidas pedidas
pelo locatário correspondem ao dever de conservação do locador. Este juízo, para além
de uma valoração jurídica, também faz apelo a conhecimentos técnicos e a experiências
sociais.

Também é necessária uma concretização da consequência jurídica que consista


numa obrigação de indemnizar, porquanto se tem de fixar o quantum da indemnização;
o mesmo se diga, em Direito Penal, relativamente à necessidade de fixar a pena dentro
dos limites legalmente estabelecidos.
Portanto, a solução do caso não decorre simplesmente da recondução dos factos à
previsão normativa. A determinação da consequência jurídica também envolve uma
concretização da solução, guiada por critérios valorativos. Esta concretização é uma
operação pela qual se passa da consequência jurídica abstrata à consequência jurídica
concreta, mediante uma determinação dos efeitos que, no caso concreto, correspondem
à consequência jurídica abstrata.

119
MAFALDA BOAVIDA
1º ANO TB12

Pode ainda suceder que os factos sejam reconduzíveis à previsão de mais de uma
norma vigente, e que as consequências jurídicas por elas desencadeadas sejam
incompatíveis entre si, ou seja, que ocorra uma contradição normativa.
Neste caso, tem de se resolver o conflito de normas para saber se deve ou não ser
aplicada alguma delas.

Portanto, há problemas de aplicação da norma que são independentes da fixação do


sentido e alcance da sua previsão.

Mas quer isto dizer que a aplicação vai além da interpretação?


Em minha opinião a concretização da consequência jurídica e a resolução de
problemas de conflitos de normas não são estranhos à interpretação. A interpretação da
norma fornece indicações para o efeito, ainda que possa ser necessário recorrer a outros
instrumentos da ciência jurídica.
Por isso, prefiro dizer que, do ponto de vista lógico, é possível autonomizar os três
momentos do silogismo judiciário e atribuir-lhes significado autónomo, mas que o
raciocínio de obtenção da solução se deixa apreender melhor como um processo
dialético em que todos os momentos estão interligados.

O esquema subsuntivo de aplicação da lei é ainda demasiado simplificado por duas


razões adicionais.
Uma razão é o desfasamento entre a realidade pensada pelo legislador como objeto
de regulação e a realidade existente no momento da aplicação da regra. Isto suscita o
problema do atualismo da interpretação que, como adiante veremos, requer uma
consideração da evolução da sociedade e do novo contexto social em que lei tem de ser
aplicada.
A outra razão reside nos nexos intrassistemáticos que se estabelecem entre as
normas e, em particular, na sua normal inserção em complexos regulativos.
Está em curso a discussão sobre a importância relativa da subsunção e da
coordenação valorativa na aplicação da lei.
Já se sublinhou que é necessário um justo equilíbrio entre as exigências da igualdade
perante a lei, a certeza e a previsibilidade jurídicas, que apontam para a vigência de
regras gerais e abstratas claras e determinadas, e a necessidade de atender à

120
MAFALDA BOAVIDA
1º ANO TB12

multiplicidade das situações da vida e às circunstâncias do caso concreto e de permitir


uma certa adaptabilidade à evolução social.

Observou-se igualmente que a importância dada, na formulação das normas legais,


aos conceitos abstratos, que são idóneos à subsunção, será tanto maior quanto maiores
forem as exigências da segurança, certeza e previsibilidade da matéria em causa.

A inclusão de notas funcionais nos conceitos utilizados para delimitar a previsão


normativa não parece obstar, por si, à definição destes conceitos e, portanto, apresenta-
se como compatível com o esquema subjuntivo.
Na maioria dos casos a interpretação-aplicação não poderá ser reconduzida
exclusivamente a operações lógico-formais. Frequentemente será necessária uma
valoração.

Será que a simples circunstância de o preenchimento de uma nota conceptual


envolver uma valoração exclui a idoneidade do conceito para a subsunção? Tenho
dúvidas sobre este ponto.
Parece-me de elogiar a preocupação com o rigor científico do procedimento de
obtenção da solução do caso. Como adiante veremos, creio que um correto
entendimento da missão do intérprete deve levar a que na interpretação seja dada
primazia, quanto às leis relativamente recentes, ao sentido literal e à intenção do
legislador histórico.

Todavia, embora a fundamentação da decisão deve respeitar as regras da lógica,


creio que os conceitos carecidos de preenchimento valorativo são insuscetíveis de uma
definição, mesmo perante as modernas teorias de definição. Daí que se me afigure
duvidoso que ainda se possa falar, a respeito da aplicação das regras que utilizam estes
conceitos, de subsunção.
É certo que isto diz respeito ao estabelecimento da premissa menor do silogismo
judiciário – a recondução dos factos à previsão normativa – e não impede que a aplicação
destas regras seja silogisticamente fundamentada.
Por outras palavras, o silogismo judiciário parece possível sem o silogismo de
subsunção. Mas também é certo que este silogismo judiciário não permite fundamentar

121
MAFALDA BOAVIDA
1º ANO TB12

a solução segundo processos lógico-formais, mas tão-somente assegurar a


racionalidade da sua fundamentação.

A “estrutura” circular do compreender e a importância da “pré-compreensão”

A interpretação de um texto não tem que ver só com o sentido de cada uma das
palavras, mas também com o sentido da frase em que estão inseridas, bem como do
conjunto de frases que expressam um nexo de ideias.

O significado da maior parte das palavras revela uma certa amplitude de variação e
muitas delas são polissémicas (têm vários significados).

Qual o significado revelante depende da frase em que está inserida e dos nexos de
sentido que estabelece com o texto no seu conjunto.
Daí resulta uma característica do processo de compreender que é conhecida por
“círculo hermenêutico”. O significado das palavras em cada caso só pode inferir-se do
sentido global do texto e este, por sua vez, tem de estabelecer-se com base no
significado relevante das palavras que o formam.
Por exemplo, quando o art. 1.º/1 CC dispõe que “São fontes imediatas do direito as
leis e as normas corporativas”. Para apreender o significado de uma palavra, o intérprete
tem sempre de, em primeiro lugar, fazer uma conjetura sobre o sentido da frase e do
texto no seu conjunto. Depois de ensaiada esta compreensão global, se lhe surgirem
dúvidas, terá de reexaminar o significado de cada palavra e, porventura, terá de corrigir
o significado inicialmente atribuído à palavra ou o significado atribuído ao conjunto do
texto.
Foi aquilo que fizemos para precisar o significado da expressão “fontes do Direito”.

Para progredir neste processo de compreensão o intérprete tem de recorrer a certos


critérios hermenêuticos.

O processo de olhar para a frente e para trás, pode ter de repetir-se inúmeras vezes.
O conjunto esclarece o sentido das partes e cada uma das partes esclarece o sentido do
conjunto. Há um esclarecimento recíproco.

122
MAFALDA BOAVIDA
1º ANO TB12

Este modo de pensamento é diferente do processo de demonstração seguido nas


ciências da natureza. Tem lugar, na Ciência do Direito, não só para a interpretação do
texto da regra, mas também para o processo de aplicação da norma a uma determinada
situação (vaivém entre a previsão da norma e a situação de facto).

No dizer de ENGISCH, ocorre um “contínuo efeito recíproco, um ir e vir de perspetiva


entre a premissa maior e a situação da vida”.
O processo de compreensão consiste aqui, mais do que num círculo, numa espiral.
Trata-se de uma dialética hermenêutica. O intérprete parte de uma conjetura de sentido,
de uma hipótese, que depois confirma ou retifica através dos passos seguintes.

Esta conjetura de sentido forma-se, geralmente, sobre uma pré-compreensão do


texto. O jurista que interpreta uma lei dispõe de todo um saber adquirido sobre os
problemas jurídicos, sobre o contexto social em estes problemas surgem, sobre as
formas de pensamento jurídico, sobre os valores que orientam as soluções jurídicas e
sobre a linguagem normalmente utilizada pelo legislador. A sua pré-compreensão é o
resultado de um longo processo de aprendizagem profissional e extraprofissional, que
se inicia em criança, prossegue com todas as suas experiências de vida, com o curso de
Direito e com a sua atividade prática.

É este fundo existencial e cultural que constitui a base comum que estabelece a
ligação entre o texto e o intérprete. Um texto nada diz a quem não entenda nada do
assunto de que ele trata. É isso que permite ao jurista compreender o art. 1.º/1 CC.
Conhecer é reconhecer.
Quanto mais vasto for o fundo existencial e cultural, mais rica será a pré-
compreensão e mais bem-sucedida a interpretação.
A pré-compreensão deve ser encarada como uma conjetura de sentido, como uma
hipótese, que se vai modificando e reformulando à medida que se avança no processo
de interpretação e aplicação da regra e não como um resultado que se visa, tanto quanto
possível, alcançar.
Com efeito, à medida que se eleva o conhecimento sobre o conteúdo normativo e
valorativo das normas aplicáveis a conjetura sobre a solução “justa” tem de ser
reexaminada.

123
MAFALDA BOAVIDA
1º ANO TB12

Na solução do caso por via normativa a solução que o intérprete deve procurar não
é, em princípio, a que corresponde melhor às suas convicções de justiça, mas a que
corresponde melhor ao sentido do Direito aplicável.
As circunstâncias do caso concreto e as convicções pessoais só poderão relevar
dentro das margens de apreciação consentidas pelas normas aplicáveis e em
conformidade com a metodologia geralmente reconhecida.

Interpretação e aplicação das normas como processo dialético

Já vimos que a aplicação se não reduz a um processo automático, não-problemático,


de subsunção de um enunciado sobre os factos a uma previsão normativa.

Não é assim, em primeiro lugar, porque frequentemente o significado do enunciado


linguístico da norma, da proposição jurídica, é problemático. O conhecimento do
conteúdo da norma exige interpretação.

Não é assim, em segundo lugar, porque a situação não se apresenta sempre com
todos os seus elementos determinados e por forma a ajustar-se precisamente ao modelo
dado na norma. A situação não se apresenta como “pronta para a subsunção”.

A maior parte das situações são complexas.


A previsão normativa, como já sabem, descreve as notas que as situações devem
preencher, descurando todas as outras notas que se verificam nas situações. Não
raramente coloca-se a questão de saber se certas particularidades do caso concreto,
que são descuradas pela norma, não terão de ser consideradas relevantes, se não se
quiser tratar igualmente o que é desigual.
Caso seja de responder afirmativamente, caberá perguntar se a norma, corretamente
entendida, não deve permitir uma restrição ou uma diferenciação, que torne possível
uma decisão justa.
Esta restrição ou diferenciação pode levar à aplicação de outra norma que, em
princípio, não parecia ser aplicável, ou à descoberta de uma lacuna.

A dita “aplicação das normas” consiste, na verdade, num trabalho criativo de


determinação do conteúdo e complementação das regras.

124
MAFALDA BOAVIDA
1º ANO TB12

O processo de aplicação tem de respeitar a norma como critério que permite valorar
segundo uma “medida igual” uma pluralidade de casos, e ao mesmo tempo, tem de
concretizar a norma, de determinar melhor o seu conteúdo face às diferentes
particularidades de cada caso.
É do confronto da situação concreta, com todas as suas particularidades suscetíveis
de relevância jurídica, com a proposição jurídica, que resulta a maior parte dos
problemas de interpretação.

Uma das principais tarefas da ciência jurídica prática é a de compreender expressões


linguísticas e de apurar o seu sentido jurídico: leis, atos administrativos, decisões dos
tribunais, negócios jurídicos.
A compreensão de expressões linguísticas ocorre, ou de modo irreflexivo, mediante
o acesso imediato ao sentido da expressão, ou então de modo reflexivo, mediante o
interpretar.
“Interpretar” é uma atividade de mediação por que o intérprete compreende um objeto
simbólico, que se lhe tinha deparado como problemático.

O caráter problemático do significado da proposição jurídica pode resultar de quatro


fatores:
à Ambiguidade sintática;
à Ambiguidade semântica;
à Utilização de conceitos indeterminados;
à Mutabilidade do significado.

A norma dá o critério para valorar o caso, mas a resolução dos problemas de


interpretação pelo caso suscitados pode representar um enriquecimento do conteúdo da
norma.
Ao averiguar se uma dada situação preenche ou não a previsão normativa o
intérprete pode contribuir para a determinação do conceito utilizado na previsão
normativa.
O mesmo se pode verificar com a concretização da consequência jurídica. Por outro
lado, a interpretação e concretização, da norma feita em cada aplicação, como o ilustra
em especial a jurisprudência dos tribunais superiores, tende a influenciar a aplicação da
norma a casos futuros.

125
MAFALDA BOAVIDA
1º ANO TB12

Por estas razões é correto afirmar que o processo de aplicação do Direito é dialético,
e que, face a um caso concreto, a interpretação e aplicação são elementos
indissoluvelmente ligados do mesmo processo.
Entre nós esta indissociabilidade entre a interpretação e a aplicação no processo de
aplicação do Direito foi sublinhada por CASTANHEIRA NEVES e MENEZES
CORDEIRO.

A conformação e apreciação jurídica da situação de facto.


A qualificação

Assinalei que, em regra, a previsão da norma enuncia uma situação ou um aspeto de


uma situação. Este enunciado recorta um segmento do constante fluir da vida, “situando-
o”, delimitando uma “situação”.
Para estabelecer a premissa menor do silogismo judiciário (S < P), o intérprete-
aplicador tem de conformar a situação.

O intérprete-aplicador tem de olhar para os factos com uma dupla intencionalidade.


Por um lado, tem de apreciar até que ponto os factos podem ser configurados por
forma a corresponderem à previsão de uma norma, ou de mais de uma norma.
Por outro lado, o intérprete-aplicador deve ter em conta todas as outras
particularidades do caso que possam ser relevantes para a determinação da
consequência jurídica.

Face a relatos, por vezes contraditórios, dos factos, o jurista tem de selecionar os
elementos relevantes.
Em seguida tem de verificar se estes factos efetivamente ocorreram, tem de apreciar
as provas.

Quando a norma é aplicada por um órgão jurisdicional a determinação dos factos


requer uma produção de prova, que obedece às regras do processo, mas tendo em conta
as regras sobre ónus da prova e sobre presunções simples a que atrás fiz referência.
A prova visa demonstrar a realidade dos factos (art. 341.º CC). A prova tem por objeto
os factos juridicamente relevantes, que constituem a matéria de facto. Contrapõe-se à
matéria de direito que é constituída pela regra ou regras aplicáveis. A produção da prova

126
MAFALDA BOAVIDA
1º ANO TB12

utiliza determinados meios – os meios de prova –, e habilita o tribunal à valoração da


prova.
Normalmente há uma ou mais normas que surgem como potencialmente aplicáveis
a uma situação carecida de regulação jurídica.

Tendo presente estas normas o intérprete-aplicador procura conformar a situação,


eliminando os elementos supérfluos contidos no relato ou indagando de outros
elementos relevantes que o relato omitira.
A conformação definitiva da situação de facto depende, assim, da seleção das
normas que são potencialmente aplicáveis.

Para o estabelecimento da premissa menor do silogismo judiciário é necessário um


processo intelectual pelo qual o acontecimento é situado, a situação é conformada (como
enunciado) e o texto da norma concretizado na medida exigida para a apreciação da
situação.
Não basta que se conforme ou delimite a situação de facto. É ainda necessário
reconduzir a situação da vida, assim delimitada, à previsão da norma. Esta operação
designa-se por qualificação.

Se quisermos abranger os casos em que a previsão da norma não se reporta a uma


situação, mas antes a um facto que abstrai de toda a conduta humana, podemos dizer
que a qualificação é a operação pela qual se reconduz um facto à previsão de uma
norma.

A qualificação pode suscitar problemas mais ou menos difíceis de interpretação.


Por exemplo, pode suscitar-se a questão de saber se um determinado contrato,
celebrado entre um particular e a Administração pública, releva do Direito público ou do
Direito privado. Se o contrato for qualificado como jurídico-público será aplicável o regime
do contrato administrativo em causa; se for qualificado como jurídico-privado estará
submetido, pelo menos em certa medida, ao Direito privado dos contratos. Para resolver
estes problemas há a necessidade de um vaivém entre a norma e o caso, um
esclarecimento recíproco a que anteriormente fiz referência.

127
MAFALDA BOAVIDA
1º ANO TB12

Para a apreciação da situação de facto, com vista à sua qualificação, o intérprete-


aplicador tem de realizar juízos de índole muito distinta.

Assim, temos designadamente:


® Juízos de perceção, que se referem à ocorrência de processos ou estados de
facto;
® Juízos de interpretação da conduta humana, destinados a apurar o seu
significado;
® Juízos sobre outras experiências sociais;
® Juízos de valor, que são necessários sempre que há uma valoração.

O juízo de valor jurídico feito pelo intérprete-aplicador é válido na medida em que se


orienta pelos critérios de valoração do sistema, designadamente os princípios jurídicos
e as opções político-legislativas feitas pelo legislador, e pela consciência jurídica geral.

Interpretação

A função da interpretação no processo de aplicação da lei

Já sabemos que a compreensão do texto da norma é frequentemente problemática


e assim, torna necessária a interpretação, atendendo a uma dada situação.
Esta situação pode ser hipotética, ou pode ser real. No processo de aplicação da lei
a situação é real. Já na interpretação dissociada da aplicação se trabalha com situações
hipotéticas, ou hipóteses.

Como já foi anteriormente assinalado, a função básica da interpretação é a de facultar


o conhecimento da norma através da compreensão do significado das proposições
jurídicas por que a norma se exprime linguisticamente.

Complementarmente a interpretação também serve para evitar a contradição entre


normas, para delimitar o domínio recíproco de aplicação das normas, para conjugar os
seus efeitos e para resolver questões que sejam suscitadas pelo concurso de normas e
pelo concurso de complexos normativos.

128
MAFALDA BOAVIDA
1º ANO TB12

Objeto da interpretação da lei é o texto legal como portador do sentido normativo nele
vertido (portanto o texto, fonte instrumental, não é só objeto da interpretação, é também
instrumento do conhecimento do sentido normativo).

Qual o fim da interpretação: determinar o sentido que corresponde à vontade do


legislador histórico (teoria subjetivista) ou o sentido normativo, inerente à lei, que se torna
independente da intenção do legislador histórico (teoria objetivista)?

Cada uma destas teorias encerra uma certa dose de verdade.

A verdade da teoria subjetivista está em que a lei é resultado de um ato de vontade


praticado por um órgão competente para a produção jurídica. Representa uma forma de
expressão da vontade coletiva dos cidadãos, cuja intenção reguladora tem de ser
respeitada (intenção reguladora designa a unidade de valorações, aspirações e outras
representações motivadoras da ação legislativa). Isto decorre do princípio da divisão de
poderes.
O nosso Código Civil dedica o art. 9.º à interpretação da lei. Nos termos do seu n.º 1
“A interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o
pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as
circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que
é aplicada”.
O Código Civil manda respeitar o “pensamento legislativo”, isto é, não só o texto da
lei, mas também as valorações feitas pelo legislador (histórico), tendo em conta as
condições específicas do tempo em que a lei é aplicada.
Contra a teoria subjetivista invocam-se, porém, diversos argumentos.

De entre os argumentos de natureza prática é de salientar a dificuldade em


estabelecer a intenção real de certos atos legislativos.
Mais importante que as dificuldades de natureza prática com que depara a tese
subjetivista, é de reconhecer a quota de verdade da teoria objetivista: a lei, através do
processo de aplicação anteriormente caracterizado, vem a transcender a real intenção
reguladora do legislador histórico.

129
MAFALDA BOAVIDA
1º ANO TB12

Primeiro, porque na lei se podem exprimir, a par dos fins de política legislativa
representados pelo legislador, outros fins e valores de que o próprio legislador não teve
consciência.
Segundo, porque a lei vem a ser aplicada a uma multiplicidade de situações que
nunca poderiam ser previstas, na sua infinita variedade, pelo legislador histórico.
Terceiro, em consequência da evolução da sociedade que vai gerar novos problemas
e criar um contexto social diferente para a atuação da lei.
Quarto, pelo sedimentar do trabalho criativo de interpretação, concretização,
aplicação analógica, etc., que no decurso do tempo converte a lei num elemento da
ordem jurídica cada vez mais independente do legislador histórico.

A teoria objetivista pode assumir duas variantes.


Para um objetivismo historicista, procura-se apreender o sentido que a lei
objetivamente encerrava no momento da sua criação, independentemente da intenção
real do legislador histórico. Esta variante atende à consideração formulada em primeiro
lugar (fins de que o legislador não teve consciência) e, até certo ponto, à referida em
segundo lugar (multiplicidade das situações). Já não permite atender à evolução social
e ao trabalho criativo da jurisprudência e da ciência jurídica.

Além disso, a tese historicista tem como corolário o surgimento de uma lacuna
sempre que seja necessário regular uma situação que não previsível no momento da
elaboração da lei.

Para um objetivismo atualista, o que releva é o sentido que a lei objetivamente


encerra no momento da sua interpretação. Esta posição permite uma certa evolução do
Direito vigente, que é independente da inovação legislativa.

Entre nós, desde o estudo de MANUEL DE ANDRADE sobre a interpretação das leis
que o objetivismo atualista tem merecido o favor da doutrina dominante.
O art. 9.º/1 CC aponta para um certo objetivismo e para um certo atualismo. Aponta
para um certo objetivismo quando manda reconstituir o pensamento legislativo a partir
dos textos. Aponta para um certo atualismo da interpretação, quando manda atender às
“condições específicas do tempo” em que a lei é aplicada.

130
MAFALDA BOAVIDA
1º ANO TB12

No entanto, não me parece que o art. 9.º deva ser entendido como consagrando a
tese objetivista atualista. Como assinalam INOCÊNCIO GALVÃO TELLES, PIRES DE
LIMA/ANTUNES VARELA e OLIVEIRA ASCENSÃO, o preceito não consagra uma
particular corrente doutrinária. Com efeito, o art. 9.º também não exclui que se atribua
um papel importante à perspetiva subjetivista.
O n.º 1 manda atender às circunstâncias em que a lei foi elaborada.
O n.º 2, quando estabelece que não pode ser considerado pelo intérprete o
pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência,
torna claro que o pensamento legislativo não se reconstitui só com base no texto da lei.

Nada impede que, por “pensamento legislativo”, se entenda, em primeira linha, a


intenção real do legislador histórico, quando esta seja clara e inequivocamente
demonstrada através do texto legal ou de outros elementos.

No mesmo sentido se pronunciam INOCÊNCIO GALVÃO TELLES e PIRES DE


LIMA/ANTUNES VARELA. Mesmo no caso de uma lei ter sido objeto de debate e de
alterações, refletindo um compromisso entre posições divergentes, é normalmente
possível determinar quais foram as representações de valores e fins que prevaleceram
e em que medida. Ainda aqui é possível determinar a intenção legislativa.

Uma pura posição objetivista levaria a que na reconstituição do sentido normativo se


utilizassem, em primeira linha, critérios teleológico-objetivos, isto é, que dentro da
pluralidade de sentidos permitida pelo texto legal se escolhesse aquele que melhor
correspondesse às necessidades práticas, a ideias retoras do sistema ou a uma
determinada conceção ética, independentemente da real intenção do legislador.

Isto não parece corresponder adequadamente ao sentido do princípio da divisão de


poderes.
E prejudica a supremacia do Direito e a certeza e previsibilidade jurídicas, porque os
critérios teleológico-objetivos fornecem uma orientação muito menos clara e
determinada sobre o sentido normativo que a intenção real do legislador histórico
inequivocamente demonstrada.

131
MAFALDA BOAVIDA
1º ANO TB12

Em suma, o fim da interpretação é o de estabelecer o sentido normativo da lei, com


base em momentos subjetivos e objetivos. Por vezes fala-se em “vontade da lei” como
imagem para exprimir este sentido normativo, mas esta expressão tem o defeito de
“personificar” a lei.
A interpretação não é arbitrária, deve ser fundamentada por forma clara, logicamente
coerente, enfim comprovável.
A correção da interpretação depende do modo como procede o intérprete para
alcançar o fim em vista, dos elementos que tem em conta e dos critérios que o orientam
na apreciação destes elementos.

Interpretação doutrinal e interpretação autêntica

Em razão da sua força vinculativa a interpretação pode classificar-se em doutrinal e


autêntica.
A interpretação autêntica é vinculativa para todos. Tem a mesma vinculatividade que
a lei interpretada. Assim, por exemplo, se o Governo emite um Decreto-Lei interpretativo
de um Decreto-Lei anterior, todo o intérprete-aplicador tem de respeitar a lei
interpretativa.

A interpretação doutrinal não é vinculativa. Não é só a doutrina que faz interpretação


doutrinal. A interpretação feita pelos tribunais é, normalmente, interpretação doutrinal.
Qualquer pessoa pode fazer interpretação doutrinal. Quando se fala de interpretação
tem-se normalmente em vista a interpretação doutrinal.

Assim, a interpretação autêntica tanto pode ser realizada pela mesma fonte da lei
interpretada como por outra fonte superior ou de igual valor.
Por exemplo, um Decreto-Lei do Governo pode interpretar uma Lei da Assembleia da
República e uma Lei da Assembleia da República pode interpretar uma Decreto-Lei do
Governo. Uma Lei da Assembleia da República ou um Decreto-Lei do Governo pode
interpretar um Decreto Regulamentar do Governo.

132
MAFALDA BOAVIDA
1º ANO TB12

As decisões jurisdicionais com força obrigatória geral que tenham caráter


interpretativo são um caso de interpretação autêntica. Qual o significado da interpretação
realizada por fonte hierarquicamente inferior?

Regras interpretativas

Elementos e critérios de interpretação

Tradicionalmente fala-se em elemento gramatical ou literal e em elementos lógicos:


sistemático, histórico e teleológico.
O elemento literal é o enunciado linguístico, normalmente um enunciado escrito.
O elemento literal tem uma dimensão sintática e uma dimensão semântica.
Do ponto de vista sintático, importa ter em conta a estrutura gramatical da lei e
considerá-la na totalidade do seu enunciado.
Do ponto de vista semântico, há que atender ao significado das palavras utilizadas
na lei no contexto da sua estrutura.

Nesta determinação, o intérprete deve fazer todo o possível para atribuir um sentido
útil a todas as palavras e expressões da lei, só em último caso considerando que são
inúteis ou redundantes.
O intérprete também deve considerar irrelevantes, em princípio, quer o género
(masculino ou feminino) quer o número (singular ou plural) das palavras empregues na
lei. De resto, importa distinguir as palavras da linguagem jurídica, da linguagem técnica
e da linguagem corrente.
As palavras da linguagem jurídica devem ser entendidas no sentido específico que
resulta do conjunto funcional em que são utilizadas, na sua falta no sentido específico
que resulta do ramo do Direito em que está inserida a lei e ainda, na fala deste, no sentido
que lhes é atribuído em geral no contexto do sistema jurídico.

Critério do contexto significativo da lei

133
MAFALDA BOAVIDA
1º ANO TB12

Às palavras da linguagem técnica deve, em princípio, ser atribuído o significado que


lhes corresponde no respetivo ramo do conhecimento.
Enfim, as palavras da linguagem corrente devem, em princípio, ser entendidas no
sentido que resulta dos usos linguísticos gerais, isto é, segundo os usos observados na
comunidade.
Claro é que do contexto significativo da lei ou de outros critérios de interpretação
pode resultar, que a palavras de uma determinada linguagem técnica ou da linguagem
corrente deve ser atribuído um significado legal específico, diferente daquele que resulta
do ramo de conhecimento de origem ou dos usos linguísticos gerais, como conceitos
jurídicos (supra n.º 134).

O elemento sistemático é a inserção da proposição jurídica singular no todo que é a


ordem jurídica. Diz-se que este elemento exprime a unidade do sistema jurídico, que o
art. 9.º/1 CC manda ter em conta na reconstituição do pensamento legislativo.

Creio que temos aqui um cânone hermenêutico, que já foi atrás referido: o sentido da
parte é esclarecido pelo todo. Mais do que um elemento é um critério que podemos
designar por contexto significativo da lei.

Para atender ao contexto significativo da proposição jurídica importa ter em conta o


conjunto funcional em que se insere a regra por ela expressa. Dentro destes conjuntos
as normas complementam-se e limitam-se reciprocamente, por forma a que o sentido de
cada uma delas não pode ser estabelecido isoladamente, mas só mediante a sua
inserção no conjunto.

Deve-se ter em conta a inserção destes conjuntos regulativos nos ramos do Direito e
os nexos que se estabelecem entre conjuntos regulativos e entre ramos do Direito, bem
como a inserção dos ramos do Direito, que são subsistemas normativos, no conjunto do
sistema jurídico.
Esta inserção no sistema normativo permite, ademais, a revelação de lugares
paralelos, isto é, de proposições relativas a situações similares, que devem obter um
tratamento equivalente.
É também necessário ter em conta a sistemática legal. A sistemática legal constitui
um indício sobre o conjunto funcional em que a proposição jurídica se insere e sobre o

134
MAFALDA BOAVIDA
1º ANO TB12

ramo do Direito a que pertence. Tenha-se presente, designadamente, a relação que em


diplomas como o Código Civil se estabelece em entre partes gerais e partes especiais.

Da inserção na sistemática legal pode resultar a aceção relevante de uma palavra


polissémica ou o sentido global de uma proposição jurídica.
Por exemplo, como já vimos anteriormente, o termo “obrigação” significa no Livro II
do Código Civil o vínculo jurídico por virtude do qual uma pessoa fica adstrita para com
outra à realização de uma prestação (art. 397.º CC). Já nos arts. 348.º e segs. do Código
das Sociedades Comerciais o mesmo termo designa um título de crédito.

Mas a sistemática legal tem um significado limitado. Por exemplo, encontramos no


Livro II, relativo ao Direito das Obrigações, normas como as dos arts. 408.º e 409.º que
são relativas aos efeitos reais dos contratos, e que devem ser relacionadas
principalmente com as normas sobre os direitos reais.

Há que atender ainda a outros nexos intrassistemáticos lógicos e funcionais. Uma


regra legal também pode ter de ser relacionada com regras de outros conjuntos
regulativos e ramos do Direito, com as quais estabeleça nexos lógicos e funcionais.
Ao proceder deste modo não só se atua em conformidade com um cânone
hermenêutico, mas também se contribui para a promoção da coerência do sistema
jurídico.

Entre várias interpretações possíveis (perante o sentido literal e a intenção real do


legislador histórico) há que preferir:
® A que evita as contradições normativas e valorativas;
® A que melhor corresponde ao sentido das normas de escalão superior;
® A que melhor corresponde às ideias rectoras do sistema; e
® A que atribua um sentido útil à proposição jurídica.

Com o critério do contexto se relacionam, por isso, os critérios da interpretação


conforme com a Constituição, adiante examinado, e o critério da interpretação conforme
com a diretiva europeia, no caso de leis de transposição de diretivas europeias.

135
MAFALDA BOAVIDA
1º ANO TB12

Mas, com isto, passamos insensivelmente do critério do contexto significativo para o


critério teleológico. A fluidez das fronteiras entre estes dois critérios leva mesmo alguns
autores a negarem a autonomia do elemento sistemático.
Com efeito, os nexos intrassistemáticos não são só lógicos e funcionais. Na
conformação do sistema assumem grande importância os nexos teleológicos e
axiológicos. Para inserir a regra no sistema também é necessário um retorno ao fim ou
valor que visa realizar. Mas esta consideração do fim ou valor releva já de um critério
teleológico.

O elemento histórico reporta-se aos antecedentes históricos que podem esclarecer o


sentido da proposição jurídica. Estes antecedentes históricos podem ser as fontes da lei
em sentido histórico, os trabalhos preparatórios e a occasio legis.

São fontes do Direito em sentido histórico, como estarão recordados, todos os


elementos que ao longo dos tempos contribuíram para a formação do Direito vigente.
Podemos distinguir precedentes normativos e contribuições doutrinais.

Os precedentes normativos podem ser históricos ou comparativos.

São precedentes históricos as regras nacionais que, tendo vigorado no passado,


influenciaram o conteúdo da regra em vigor.
São precedentes comparativos as regras de outras ordens jurídicas que tenham
influenciado a criação ou conteúdo da regra em vigor na nossa ordem jurídica.

Também é frequente que o legislador acolha as soluções defendidas em obras


doutrinárias, nacionais ou estrangeiras, que, nesta medida, se convertem em valiosos
instrumentos de interpretação.
Por exemplo, para esclarecer o sentido de muitos preceitos do Código Civil de 1966
é da maior utilidade consultar os preceitos do Código Civil italiano ou do Código Civil
alemão em que se basearam, bem como os comentários e aplicações jurisprudenciais
desses preceitos na Itália e na Alemanha.

Os trabalhos preparatórios são todos os contributos feitos para a elaboração da lei.


É o caso dos estudos prévios, dos anteprojetos que normalmente os acompanham, dos

136
MAFALDA BOAVIDA
1º ANO TB12

projetos, das exposições de motivos que por vezes acompanham os projetos, das
respostas a críticas feitas aos projetos, das propostas de alteração dos projetos, das atas
das comissões encarregadas da elaboração do projeto e das atas de discussão dos
projetos na generalidade e na especialidade na assembleia legislativa, designadamente.

A occasio legis é, como já sabem, todo o circunstancialismo social que rodeou o


aparecimento da lei. O art. 9.º/1 CC manda ter em conta “as circunstâncias em que a lei
foi elaborada”. Já sabemos que, embora impropriamente, se fala a este respeito de
fontes do Direito em sentido sociológico.

O elemento teleológico reporta-se ao fim ou valor que a norma visa realizar. Faz parte
do património adquirido pela ciência jurídica a necessidade de entender a regra à luz da
intencionalidade subjacente, da sua justificação ou fundamento.
O fim ou valor que a norma visa realizar é a sua razão de ser, e por isso, este
elemento de interpretação é tradicionalmente designado por ratio legis.

Mas importa distinguir entre um elemento teleológico subjetivo e um elemento


teleológico objetivo. Quanto à expressão “pensamento legislativo” parece-me que tem,
no art. 9.º, o significado de sentido normativo que resulta destes elementos teleológicos.

O elemento teleológico subjetivo é a intenção real do legislador histórico.

A intenção reguladora do legislador histórico não se confunde com as intenções


concretas das pessoas que trabalharam no projeto. Só interessam os fins e as decisões
valorativas que possam ser atribuídos à vontade coletiva do órgão. As ideias normativas
das pessoas que trabalharam, por exemplo, nos trabalhos preparatórios, têm um valor
limitado. Só servem, na falta de elementos mais seguros, para esclarecer a intenção que
pode ser atribuída ao órgão legislativo.

Os elementos teleológico-objetivos reportam-se a fins ou valores que são


independentes da intenção do legislador histórico. São fins objetivos do Direito.

137
MAFALDA BOAVIDA
1º ANO TB12

São elementos teleológico-objetivos, desde logo, os valores da ordem jurídica e os


fins de política legislativa de vasto alcance. Também o são os princípios jurídicos,
porquanto exprimem diretamente um fim ou valor.

Quando a solução do problema interpretativo não resulte inequivocamente dos


elementos anteriormente referidos, deve preferir-se a interpretação que otimize a
realização do fim, valor ou princípio subjacente à lei.

Invoca-se ainda a este respeito as necessidades do comércio jurídico e a natureza


das coisas.
Creio que poderemos falar, por um lado, em adequação regulativa, que é uma
concretização do valor justiça e, por outro, em consideração das estruturas sociais
juridicamente relevantes.

A regulação jurídica deve ser materialmente adequada à estrutura da realidade. Para


o intérprete, isto significa ter em conta, na escolha entre as interpretações possíveis,
àquela que se mostra mais adequada ao objeto da norma.
Quanto às estruturas sociais juridicamente relevantes referi, no início do curso, que
as organizações sociais e certas relações sociais típicas são portadoras de um sentido
ordenador, de uma juridicidade própria. Por exemplo, a família, a empresa, certas
modalidades contratuais que apresentam como conteúdo característico cláusulas
usuais.
Quando legisla sobre estas realidades o legislador tem normalmente em conta o seu
sentido ordenador, seja para consolidar e desenvolver este sentido, seja para o
modificar. É, por conseguinte, natural que o intérprete atenda ao sentido ordenador
destas estruturas, não só para esclarecer a intenção real do legislador histórico, mas
também para apreender os fins ou valores institucionais que o legislador possa não ter
consciencializado ou que resultem de uma evolução posterior à criação da lei.

Em minha opinião, e aproximando-me do entendimento seguido por LARENZ, esta


sistematização tradicional dos elementos de interpretação é deficiente, por duas razões.
Primeiro, porque o intérprete não precisa só de saber quais os elementos que deve
ter em conta, precisa de critérios que o orientem na apreciação destes elementos. Por
isso, importa estudar, além dos elementos, os critérios que orientam a interpretação.

138
MAFALDA BOAVIDA
1º ANO TB12

A sistematização tradicional leva a tratar estes critérios como se de elementos se


tratasse, o que em nada contribui para a clareza conceptual.
Segundo, todos os elementos que sirvam para compreender o sentido normativo do
texto legal são, em princípio, relevantes.

Como assinala OLIVEIRA ASCENSÃO, não podemos supor que as quatro categorias
tradicionais esgotam todos os elementos a ter em conta.
É o caso dos textos incluídos formalmente na lei, mas que não têm caráter normativo
direto. Surgem-nos aqui os preâmbulos das leis, os títulos das secções dos diplomas e
as epígrafes dos artigos. Algo de paralelo se verifica, quanto às regras jurisprudenciais
criadas por decisões com força obrigatória geral, com a fundamentação destas decisões.

São elementos interpretativos das regras legais com especial autoridade, visto que
fornecem indicações seguras sobre a intenção reguladora do legislador histórico. Por
esta razão estes elementos têm mais valor que os incluídos no elemento histórico. Mas
não têm o mesmo valor que o texto normativo, porque não visam exprimir uma regra,
mas tão-somente esclarecer o sentido das proposições normativas. Por isso, por
exemplo, não é relevante a intenção proclamada no preâmbulo de uma lei que não tenha
um mínimo de correspondência no texto normativo.

Outro elemento a ter em conta, que não consta da sistematização tradicional, são as
circunstâncias atuais, isto é, as existentes no momento da aplicação da lei. Para a sua
averiguação é importante ter em conta a evolução do circunstancialismo social que
rodeia a aplicação da lei e os desenvolvimentos realizados pela jurisprudência e pela
doutrina como modo de ajustamento da lei a esta evolução. E quais são os critérios da
interpretação?

Podemos falar:
® Do sentido literal;
® Do contexto significativo da lei;
® Da intenção reguladora do legislador histórico; e
® Dos critérios teleológico-objetivos.

139
MAFALDA BOAVIDA
1º ANO TB12

O sentido literal e o contexto significativo

Trata-se de definir a relevância que o elemento lileral tem para o intérprete.

O art. 9.º CC é inequívoco a este respeito: a interpretação deve partir dos textos (n.º
1); não pode ser considerado o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um
mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso (n.º 2); e, o
intérprete presumirá que o legislador “soube exprimir o seu pensamento em termos
adequados” (nº 3).

O texto tem, por conseguinte, um duplo significado: o de ponto de partida para a


determinação do sentido normativo e o de limite nesta determinação.

O sentido literal é o significado da proposição jurídica apurado com base no elemento


literal.

O critério do sentido literal nunca é, por si, suficiente, porque não pode ser isolado do
contexto significativo. Resulta do anteriormente exposto que por força de um cânone
hermenêutico e da coerência do sistema se tem de inserir a proposição jurídica no
sistema jurídico.
Importa acrescentar que, em alguns casos, o sentido da proposição jurídica,
determinado com recurso aos critérios do sentido literal e do contexto significativo, pode
ser inequívoco, por forma a dispensar o recurso a outros critérios.
Assim, poderíamos dizer que só quando houver uma pluralidade de sentidos literais
possíveis é que é necessário recorrer a critérios teleológicos.
Mas é preciso ter em conta que os critérios teleológicos podem ser relevantes para a
determinação desta pluralidade de sentidos literais possíveis.

A intenção reguladora do legislador histórico e os critérios teleológico-objetivos

Perante uma pluralidade de sentidos literais possíveis decorre da posição


anteriormente adotada que, quanto às leis relativamente recentes, se deve dar
preferência ao sentido que corresponde à intenção real do legislador histórico.

140
MAFALDA BOAVIDA
1º ANO TB12

Relativamente a estas leis o recurso aos elementos teleológico-objetivos é assim, de


algum modo, subsidiário. Só haverá que recorrer aos valores da ordem jurídica, aos
princípios jurídicos e a outros elementos teleológico-objectivos quando não for possível
estabelecer conclusivamente qual é o sentido normativo que corresponde à intenção
reguladora do legislador histórico.
Creio que é neste sentido que deve ser entendido o art. 9.º/3 CC quando estabelece
que o “intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas”.

Já as leis mais antigas têm de ser aplicadas num contexto social diferente daquele
que existia no momento da criação da lei e a situações que não podiam ser previstas
pelo legislador histórico.
Neste caso há que ter em conta o novo contexto social e examinar até que ponto à
luz da valoração feita pelo legislador se justifica a aplicação da lei a situações que não
podiam ser previstas pelo legislador.
Além disso, porém, o intérprete deverá examinar se a aplicação da lei a estas
situações não poderá ser justificada à luz dos valores e princípios da ordem jurídica atual,
atendendo igualmente ao trabalho criativo desenvolvido na aplicação da lei em causa
pela jurisprudência e pela ciência jurídica. Este exame poderá levar a uma extensão ou
a uma restrição do sentido anteriormente atribuído à proposição jurídica.

Também é possível que a evolução da ordem jurídica possa influenciar a


interpretação da lei, levando a modificar o sentido até aí atribuído a uma proposição
jurídica.
Isto pode suceder, em primeiro lugar, pela alteração do contexto significativo em que
a proposição jurídica tem de ser inserida.
Em segundo lugar, dentro dos limites em que atuam os critérios teleológico-objectivos
de interpretação, isto pode resultar do surgimento de novos valores e princípios jurídicos,
ou do desenvolvimento dos existentes.

Claro que esta distinção entre leis recentes e leis antigas não é meramente
cronológica, pois a atualidade da lei depende também do ritmo de evolução que se tenha
verificado no domínio social por ela regulado.

141
MAFALDA BOAVIDA
1º ANO TB12

Mas os critérios teleológico-objetivos podem desempenhar um papel mesmo em


relação a leis recentes e quando o sentido literal ou a intenção reguladora do legislador
histórico forem inequívocos. Tenho em mente a deteção de contradições valorativas e
as normas “estranhas ao sistema”.
A descoberta de uma contradição valorativa poderá em certos casos, nos termos
anteriormente expostos, colocar um problema de violação do princípio constitucional da
igualdade.
Por “norma estranha ao sistema” entende-se, em conformidade com o anteriormente
exposto, a que não é reconduzível a um princípio jurídico ou ideia retora do sistema.
Parece defensável que a estas normas deva ser atribuído, de entre os vários sentidos
literais possíveis, aquele que conduzir a um âmbito de aplicação mais restrito.

Conformidade com a Constituição

As regras da lei ordinária que forem contrárias à Constituição são inválidas. Pode, no
entanto, suceder que, de entre as várias interpretações possíveis da lei, exista uma
interpretação que não contrarie a Constituição. Neste caso o intérprete deve preferir a
interpretação que, por ser conforme à Constituição, permite considerar a lei válida.
Verifica-se, assim, que a conformidade com a Constituição também é um critério de
interpretação.

O que devemos entender aqui por “interpretação possível”? Ou, por outras palavras,
qual a relação que se deve estabelecer entre o critério da conformidade com a
Constituição e os outros critérios de interpretação?
Em primeiro lugar, a conformidade com a Constituição só pode funcionar, enquanto
critério de interpretação, dentro dos limites traçados pelo sentido literal e pelo contexto
significativo.
Em segundo lugar, não parece que este critério se possa sobrepor à intenção
inequívoca do legislador histórico. Se esta intenção aponta conclusivamente para um
sentido normativo que contraria a Constituição, não será possível, pelo menos no quadro
da interpretação, salvar a validade da lei.

142
MAFALDA BOAVIDA
1º ANO TB12

Há, no entanto, que salvaguardar a possibilidade de uma redução teleológica quando,


segundo a intenção do legislador, a lei reclama um campo de aplicação para além do
que é permitido pela Constituição.
Neste caso, mediante uma restrição do campo de aplicação da lei torna-se possível
conformá-la com a Constituição. A interpretação conforme à Constituição ganha um
sentido específico no que toca às leis restritivas de direitos, liberdades e garantias. O n.º
3 do art. 18.º CRP determina que estas leis não podem “diminuir a extensão e o alcance
do conteúdo essencial dos preceitos constitucionais”.

Para além de outras consequências que daí advêm, interessa diretamente ao tema
que nos ocupa assinalar que, segundo JORGE MIRANDA, as leis restritivas devem ser
interpretadas, senão restritivamente, pelo menos sem recurso à interpretação extensiva
e à analogia.

Inter-relação dos critérios de interpretação

Resumindo o anteriormente exposto, podemos dizer que o critério literal define o


ponto de partida da interpretação, mas também o seu limite.
A inserção no contexto significativo é indispensável e está indissociavelmente ligada
ao estabelecimento do sentido literal.

Os critérios teleológicos intervêm quando, perante os critérios anteriores, existe uma


pluralidade de interpretações possíveis. Mas a consideração dos critérios teleológicos
também pode contribuir para descobrir interpretações, que embora compatíveis com os
critérios literal e do contexto significativo, não são por eles desvendadas.

De entre os critérios teleológicos deve, em princípio, ser dada primazia à intenção


reguladora do legislador histórico, quando esta possa ser demonstrada. Só na
insuficiência deste critério são chamados a atuar os critérios teleológico-objetivos.

Mas o papel dos critérios teleológico-objetivos não é meramente subsidiário, dada a


necessidade de atender à alteração de circunstâncias entre o momento em que a lei foi
criada e o momento em que é aplicada e a deteção de contradições valorativas e de
“normas estranhas ao sistema”.

143
MAFALDA BOAVIDA
1º ANO TB12

Resultados da interpretação:
Interpretação declarativa, restritiva e extensiva

Atendendo à relação entre o sentido literal e o sentido normativo atribuído à


proposição jurídica, os resultados da interpretação são tradicionalmente classificados
como interpretação declarativa, extensiva e restritiva.

Segundo esta classificação, a interpretação é declarativa quando “o sentido da lei


cabe dentro da sua letra” ou quando “o sentido literal se identifica com o sentido real”.
Havendo mais de um sentido literal possível a interpretação será lata, restrita e média,
conforme se acolha o sentido mais lato, mais restrito ou um sentido médio. É também
claro que pode haver diferentes sentidos médios.

Temos uma interpretação extensiva quando o sentido normativo está


imperfeitamente expresso na letra da lei e é possível estabelecer que a intenção
reguladora do legislador corresponde linguisticamente a uma proposição jurídica
diferente que abrange casos que não estão abrangidos na letra da lei.
O sentido normativo é mais amplo que o sentido literal.
Por exemplo, no art. 2181º CC, sobre o testamento em mão comum, estabelece-se
que “Não podem estar no mesmo acto duas ou mais pessoas, quer em proveito
recíproco, quer em favor de terceiro”. O legislador quis excluir todas as modalidades de
testamento de mão comum, mas escapou-lhe uma das possibilidades: aquele
testamento em que os intervenientes disponham simultaneamente a favor de pessoas
diferentes. Assim, A e B testam simultaneamente, mas A em favor de C e B em favor de
D. Ora, esta caso é claramente abrangido pelo ratio legis.

Inversamente se passam as coisas com a interpretação restritiva. O sentido


normativo também está imperfeitamente expresso na letra da lei mas o sentido literal é
mais amplo que o sentido normativo.
A letra da lei abrange casos que o legislador não quis regular. O sentido atribuído à
proposição jurídica deve por isso ficar aquém do seu sentido literal.
Por exemplo, o art. 50.º/1/c C. Estrada proíbe o estacionamento nos lugares onde se
faça o acesso de pessoas ou veículos a propriedades, a parques ou a lugares de
estacionamento. Perante o sentido literal, a proibição abrange o proprietário de uma

144
MAFALDA BOAVIDA
1º ANO TB12

garagem que estaciona o seu veículo em frente da mesma. À luz de um critério


teleológico, porém, parece claro que a proibição não deve abranger este caso.

Esta classificação dos resultados da interpretação é compatível, com o afirmado


anteriormente, quando disse que a interpretação é limitada pelo sentido literal possível?

LARENZ assinala que nem sempre é claro o que se entende por interpretação
extensiva e restritiva. Que o fim último da interpretação não é a averiguação da “vontade
real” do legislador histórico, mas o significado jurídico atual da lei. Que este significado
se deve encontrar sempre dentro do sentido possível do enunciado linguístico.
Interpretação extensiva ou restritiva não poderia por isso significar mais que a opção,
entre os sentidos literais possíveis, por um sentido lato ou restrito.

A diferença real entre estas duas posições não é tão clara quanto poderia parecer à
primeira vista.
Com efeito, embora a classificação tradicional seja geralmente aceite entre nós,
também não é contestado que, de acordo com o art. 9.º/2 CC não pode ser acolhida uma
interpretação “que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal”. Se
identificarmos este mínimo de correspondência verbal com o sentido literal possível,
poderemos ainda afirmar que a interpretação se tem de conter nos limites definidos pelo
sentido possível do enunciado linguístico.
Em todo o caso, a interpretação extensiva e restritiva pode distinguir-se da
interpretação declarativa lata ou restrita na medida em que pressupõe que o sentido
normativo, ainda que dentro do sentido literal possível, está imperfeitamente expresso
no enunciado da lei.
Há toda a vantagem em estabelecer uma distinção clara entre interpretação e
aplicação analógica ou redução teleológica da lei. Só o critério do sentido literal possível
parece fornecer um critério seguro para esta distinção. A aplicação de uma regra a
situações que não cabem no sentido literal possível da proposição jurídica terá de ser
fundamentada em analogia. A exclusão do âmbito de aplicação de uma regra de
situações sem fundamento no sentido literal possível terá de ser justificada por redução
teleológica.

145
MAFALDA BOAVIDA
1º ANO TB12

A dita “interpretação enunciativa”


O argumento “à contrário”

DIAS MARQUES refere-se ao procedimento denominado “interpretação enunciativa”


que prefere designar por “descoberta de normas implícitas”. Esta descoberta faz-se
mediante argumentos lógicos entre os quais se conta o argumento a contrário. Mas
também o argumento a minori ad maius – a lei que proíbe o menos proíbe o mais – e a
maiori ad minus - a regra que permite o mais permite o menos, designadamente.

Também OLIVEIRA ASCENSÃO se refere à interpretação enunciativa como terceiro


processo de determinação das regras jurídicas, a par da interpretação propriamente dita
e da integração de lacunas.
Esta interpretação enunciativa pressupõe “a prévia determinação de uma regra” ao
passo que a interpretação em sentido técnico consiste na obtenção da regra a partir da
fonte. E consiste na obtenção, a partir da regra previamente determinada, de outra regra,
mediante processos exclusivamente lógicos.
OLIVEIRA ASCENSÃO assinala, todavia, que a admissibilidade desta interpretação
enunciativa é fortemente contestável, principalmente porque se pode dizer que em todos
estes casos está implícita uma valoração, não sendo, portanto, exato que a nova regra
se obtém por processos exclusivamente lógicos.
Na visão das coisas que se me afigura preferível, o que está em causa, nestes casos,
ou é ainda interpretação em sentido técnico ou é integração de lacunas.

Esta interpretação enunciativa pressupõe “a prévia determinação de uma regra” ao


passo que a interpretação em sentido técnico consiste na obtenção da regra a partir da
fonte. E consiste na obtenção, a partir da regra previamente determinada, de outra regra,
mediante processos exclusivamente lógicos.

OLIVEIRA ASCENSÃO assinala, todavia, que a admissibilidade desta interpretação


enunciativa é fortemente contestável, principalmente porque se pode dizer que em todos
estes casos está implícita uma valoração, não sendo, portanto, exato que a nova regra
se obtém por processos exclusivamente lógicos. Na visão das coisas que se me afigura
preferível, o que está em causa, nestes casos, ou é ainda interpretação em sentido

146
MAFALDA BOAVIDA
1º ANO TB12

técnico ou é integração de lacunas. Vai neste sentido o atrás exposto relativamente ao


argumento a contrario (supra n.º 156) – Regras gerais, especiais e excecionais.

“Interpretação corretiva” e interpretação ab-rogante

A dita interpretação corretiva é o procedimento pelo qual o resultado da interpretação


é afastado, modificado ou corrigido pelo intérprete com fundamento em injustiça,
inoportunidade ou inconveniência.
A defesa da interpretação corretiva encontra um precursor em Aristóteles. Na
atualidade, alguns autores jusnaturalistas entendem que a interpretação corretiva é
excecionalmente admissível quando o sentido normativo apurado seja contrário ao
Direito Natural.
Em rigor, porém, não se trata então de interpretação, mas de uma correção fundada
em limites que se entendem ser suprapositivos. É neste sentido que OLIVEIRA
ASCENSÃO defende que a “ordem natural” deve prevalecer sobre o sentido da fonte
que se lhe revele contrário.
Também os defensores de uma grande liberdade dos juízes na aplicação da lei,
designadamente a Escola do Direito Livre, tendem a encarar as regras jurídicas como
critérios instrumentais ou orientadores de que o intérprete pode, pelo menos em casos
extremos, desvincular-se, quando tal seja exigido pela justiça do caso concreto.

A opção do legislador do Código Civil foi claramente contra a admissibilidade da dita


interpretação corretiva.
Do art. 9.º do Anteprojeto de MANUEL DE ANDRADE constava que “É consentido
restringir o preceito da lei quando, para casos especiais, ele levaria a consequências
graves e imprevistas que certamente o legislador não teria querido sancionar”. Este texto
não passou para o Código Civil. Antes pelo contrário, o legislador estabeleceu, no art.
8.º/2, que o “dever de obediência à lei não pode ser afastado sob pretexto de ser injusto
ou imoral o conteúdo do preceito legislativo”.
Também do art. 203.º CRP, atrás examinado, decorre que os tribunais estão
vinculados à lei, e esta vinculação à lei – como observa TEIXEIRA DE SOUSA –, é uma
importante garantia do Estado de Direito e um corolário da divisão de poderes, porque
ela não só assegura a prevalência da lei sobre as convicções pessoais ou o sentimento
do juiz, mas também obsta a que o juiz sobreponha a sua vontade à do legislador.

147
MAFALDA BOAVIDA
1º ANO TB12

O mesmo resulta, mais amplamente, do sentido e estrutura geral do sistema jurídico


português, de acordo com o anteriormente exposto.
Claro é que, com esta tomada de posição do legislador, não se elimina a questão das
exigências suprapositivas que se coloquem ao Direito vigente. Esta questão já foi
anteriormente examinada, não havendo qualquer razão para a recolocar a propósito da
interpretação.

É ainda de observar que algumas das preocupações a que a dita interpretação


corretiva procurou responder podem ser atendidas, ainda que limitadamente, mediante
institutos jurídico-positivos como o abuso do direito (art. 334.º CC), bem como mediante
o procedimento de redução teleológica.

A interpretação ab-rogante é aquela em que da interpretação não resulta qualquer


sentido útil. A interpretação ab-rogante significa, portanto, que de uma determinada
proposição jurídica não se pode retirar qualquer critério de orientação ou decisão num
caso concreto.

Isto pode verificar-se, desde logo, em três casos.


Primeiro, quando a proposição jurídica não é inteligível.
Segundo, quando uma proposição jurídica remeta para um regime que não existe no
sistema jurídico.
Terceiro, quando ocorre uma contradição entre normas.

Há uma contradição entre normas quando duas normas vigentes geram


consequências jurídicas incompatíveis. Já sabemos que, perante uma contradição
normativa, se não se encontrar justificação para dar prevalência a uma das normas sobre
a outra, é inevitável concluir que nenhuma delas pode ser aplicada na resolução do caso.
Questiona-se também se as contradições valorativas não poderão levar à conclusão
que há uma “falta de sentido”.
Resulta do anteriormente exposto que, salvaguardada a hipótese de
inconstitucionalidade, a contradição valorativa não prejudica a aplicação das normas em
causa.

148
MAFALDA BOAVIDA
1º ANO TB12

Resta saber se será adequado falar de interpretação ab-rogante a respeito das


contradições normativas, uma vez que se trata, afinal, da descoberta de uma lacuna no
quadro do normal processo de interpretação da lei.

Interpretação do Direito consuetudinário e dos precedentes

No que toca ao costume não basta demonstrar a existência de uma prática social
reiterada. É preciso demonstrar também que esta prática corresponde a uma convicção
de vinculatividade jurídica. Para este efeito torna-se necessário determinar o sentido da
prática social reiterada, isto é, interpretá-la.
De onde resulta que não se pode isolar a questão da interpretação da questão da
existência da regra consuetudinária. Por outras palavras, saber se uma prática social
reiterada corresponde a um costume é já um problema de interpretação.
Claro é que o problema de interpretação do Direito consuetudinário não termina aí. É
ainda necessário determinar o conteúdo da regra consuetudinária.
Podemos, por isso, dizer que na interpretação do Direito consuetudinário se trata
fundamentalmente de formular linguisticamente a norma indicada pela conduta
(LARENZ).

Assinalei anteriormente que, se excluirmos o costume constitucional, o costume


tradicional não é uma fonte do Direito muito importante nos sistemas jurídicos modernos.
Mas já assume maior importância aquela modalidade de costume que designei por
costume jurisprudencial. Ora, a interpretação do costume jurisprudencial exige uma
interpretação das decisões judiciais em que se baseia.
As regras criadas ou desenvolvidas pelas decisões judiciais são até certo ponto
expressas linguisticamente na fundamentação das mesmas.
Mas a determinação do sentido da regra é frequentemente dificultado porque,
tratando-se de decisões de casos concretos, não há uma delimitação clara, por forma
geral e abstrata, da previsão da norma. Por isso, é muitas vezes problemático se a
solução retida num caso deve ou não ser aplicada noutro caso.
Estes problemas são importantes, não só perante o costume jurisprudencial, mas
também pelo papel que a comparação de casos e o “raciocínio de caso para caso” pode
e deve desempenhar na interpretação e integração da lei.

149
MAFALDA BOAVIDA
1º ANO TB12

Em todos estes casos, o intérprete tem de distinguir, na sentença, além da decisão


propriamente dita, isto é, a fixação da situação jurídica, os enunciados sobre os factos,
o critério de decisão e outras considerações que não constituem, em rigor, fundamento
da decisão.

O fim da interpretação dos precedentes é apurar qual a ideia normativa em que o


tribunal se baseou para chegar à solução do caso. O que conta é o critério ou critérios
jurídicos em que o tribunal baseou a sua decisão (aquilo que nos sistemas do Common
Law se designa por ratio decidendi). Se relacionarmos isto com o esquema, atrás
estudado, do silogismo judiciário, diremos que o critério de decisão, ou ratio decidendi,
constitui a premissa maior.

Por vezes as decisões referem regras ou princípios que não constituem, em rigor,
fundamento da solução do caso. Estas considerações que não constituem fundamento
da solução são nos sistemas do Common Law designadas por obiter dicta. Pode tratar-
se de regras ou princípios que vão além do que é necessário para a decisão do caso
concreto ou que são relativos a situações hipotéticas diferentes.

O intérprete deve distinguir claramente o que é ratio decidendi e o que é obiter dicta.
O que conta para extrair de um conjunto de decisões judiciais uma solução uniforme
e constante, que constitua a base de um costume jurisprudencial, é igualmente o critério
de decisão que nelas foi seguido.
Na resolução dos problemas de interpretação e integração, para que se promova a
uniformidade da jurisprudência e se atue em conformidade com o princípio da igualdade,
os diferentes casos têm de ser comparados entre si à luz do critério de decisão que foi
adotado pelas decisões anteriores.
As considerações feitas em obiter dicta têm um valor inferior, que pode ser
equiparado ao das opiniões jurídicas formuladas pela doutrina.

O intérprete tem ainda de procurar delimitar o âmbito de aplicação da ratio decidendi,


separando os elementos da situação de facto que são relevantes para a sua atuação
dos que são irrelevantes. Na interpretação-aplicação isto tem normalmente lugar quando
se questiona se a solução que foi anteriormente dada a um determinado caso deve ou
não ser aplicada a um novo caso.

150
MAFALDA BOAVIDA
1º ANO TB12

Há aqui um raciocínio por analogia, porque se trata de saber se os casos são


análogos, ou, por outras palavras, se as razões que justificaram a solução dada no caso
anterior também procedem no caso vertente.
O intérprete tem de examinar se o caso vertente apresenta os mesmos elementos
que foram relevantes na decisão do caso anterior e se, além disso, não apresenta
elementos, que estando ausentes no caso anterior, poderão justificar uma solução
diferente.
Por vezes a indagação sobre o critério de decisão levará o intérprete apenas a um
princípio jurídico, porque não será possível determinar suficientemente uma previsão e
uma estatuição.
Para a determinação do sentido normativo da decisão judicial o intérprete tem de
partir do sentido literal dos enunciados linguísticos que constam do texto da decisão e
do respetivo contexto significativo.
Quanto à determinação do sentido literal, são especialmente importantes os usos
linguísticos dos juristas e, em particular, aqueles que são mais seguidos pelos juízes.
Quanto ao contexto significativo, a relação material controvertida é um dos elementos
que devem ser tidos em conta.

Quando perante o sentido literal e o contexto significativo houver mais de uma


interpretação possível, parece legítimo que o intérprete atenda a critérios teleológico-
objetivos. Com efeito, o tribunal está vinculado aos valores e princípios da ordem jurídica
e, por conseguinte, eles devem ser tidos em conta na determinação do sentido normativo
da decisão, mesmo que a fundamentação da decisão não o evidencie.
Também vale para a interpretação do Direito consuetudinário e dos precedentes o
critério da interpretação conforme à Constituição.

Integração de Lacunas

Interpretação e integração

Numa primeira aproximação podemos dizer que temos uma lacuna quando não
encontramos, através da interpretação das proposições jurídicas vigentes, mormente a
lei e o costume, uma regra diretamente aplicável a um caso carecido de regulação
jurídica.

151
MAFALDA BOAVIDA
1º ANO TB12

Há desde logo uma lacuna quando uma situação da vida carecida de regulação
jurídica não cabe no sentido literal possível de qualquer proposição jurídica completa.
Por outro lado, pode suceder que uma situação seja abrangida pelo sentido literal
possível de uma proposição jurídica, mas que os critérios teleológicos de interpretação
nos levem a concluir que, afinal, a situação não é reconduzível à previsão da regra.

Por tudo isto a interpretação é prévia à integração de lacunas. Só depois de


interpretadas as proposições jurídicas vigentes se pode saber se há ou não uma norma
aplicável à situação carecida de regulação jurídica.

A delimitação entre interpretação e integração não se traça, porém, sem dificuldades.


Já contactámos com estas dificuldades a respeito da chamada interpretação extensiva
e restritiva.
Segundo o entendimento corrente entre nós uma proposição jurídica ainda é
diretamente aplicável a uma situação quando esta não cabe na letra da lei mas está
compreendida no seu espírito. Seria uma caso de interpretação extensiva. Só haveria
lacuna quando a situação não fosse compreendida nem pela letra nem pelo espírito da
lei.

Pelas razões atrás expostas considero preferível o entendimento seguido por autores
como BETTI e LARENZ, segundo o qual há lacuna a partir do momento em que a
situação carecida de regulação jurídica não cabe no sentido literal possível da
proposição jurídica. Esta posição parece-me defensável face ao art. 9.º CC, porquanto o
seu n.º 2 estabelece que não pode ser considerado pelo intérprete o pensamento
legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal.

O dever de integrar a lacuna

O órgão de aplicação do Direito tem o dever de integrar a lacuna. Perante uma


situação, que embora carecida de regulação jurídica, não seja objeto de qualquer norma
jurídica, o tribunal não pode denegar justiça.
Desde logo o proíbe o art. 8.º/1 CC, segundo o qual “O tribunal não pode abster-se
de julgar, invocando a falta ou obscuridade da lei ou alegando dúvida insanável acerca

152
MAFALDA BOAVIDA
1º ANO TB12

dos factos em litígio”. No mesmo sentido dispõe o art. 3.º/2 do Estatuto dos Magistrados
Judiciais (Lei n.º 21/85, de 30/7).
A denegação de justiça constitui mesmo um crime, tipificado no art. 369.º/1 CP. Creio
que este dever de integrar a lacuna também tem um fundamento constitucional.

Lacuna e situação extrajurídica

Não há lacuna sempre que falta uma proposição normativa aplicável. Só há lacuna
se a situação não prevista carece de regulação jurídica.
Ora, a maior parte das situações da vida não é prevista nem regulada pelo Direito.
Por exemplo, se alguém se queixa de que o vizinho não o cumprimenta quando se
cruza com ele na rua, parece claro que esta situação não tem relevância jurídica.

Trata-se de situações que são extramuros da ordem jurídica.

Só há uma lacuna quando a situação deve ser juridicamente regulada. Neste sentido
dispõe expressamente o art. 3.º/2 do Estatuto dos Magistrados Judiciais.

A fronteira entre as situações carecidas de regulação jurídica e situações que o não


são nem sempre é fácil de traçar.
Isto sucede designadamente naqueles casos em que a moral impõe uma conduta ou
confere um direito. A este respeito há também que ter em conta os traços distintivos que
foram expostos relativamente à delimitação entre ordem jurídica e moral. Mas a mera
descrição destes traços não resolve todos os problemas, porque como sublinhei, há uma
importante área de sobreposição da moral e do Direito.

Noutros casos ainda, a situação não é abrangida quer por regras jurídicas quer por
regras extrajurídicas, sem que seja evidente que se trata de uma situação extramuros
da ordem jurídica.
Nestes casos difíceis saber se uma situação carece de regulação jurídica é uma
questão de valoração. Os critérios para esta valoração têm de se encontrar no Direito
vigente. Importa averiguar se os valores da ordem jurídica justificam uma regulação
vinculativa no caso.

153
MAFALDA BOAVIDA
1º ANO TB12

A resposta deve ser afirmativa quando se verifica que a situação é abrangida pela
ideia orientadora que está subjacente a determinado complexo normativo. A este
respeito fala-se, por vezes, de uma “falha no plano do legislador”.
Claro é que não há lacuna quando o legislador, conscientemente, não regulou uma
determinada situação, ou não consagrou um determinado instituto jurídico, por entender
que a situação não carece de regulação jurídica ou por não querer dar acolhimento a
determinado instituto.
Se a falha é “conforme ao plano” não há uma lacuna.

Diferente é a situação em que o legislador não regulou uma determinada situação


por entender que, apesar de carecida de regulação jurídica, ainda não encontrou uma
solução legal adequada, devendo a mesma ser desenvolvida pela jurisprudência e pela
doutrina. Também se fala a este respeito de “lacunas intencionais”. Neste caso existe
uma lacuna, apesar de não existir uma “falha no plano do legislador”.

Também se suscitam dificuldades, em ligação com a teoria geral do negócio jurídico,


quando as partes chegam a um acordo que poderia constituir um contrato válido e eficaz,
mas manifestam a intenção de não se vincularem juridicamente.
Se entendermos por negócio jurídico um ato intencional dirigido à produção de efeitos
jurídicos (efeitos que a ordem jurídica lhe imputa em razão desta intencionalidade),
parece que podemos admitir estes “acordos de cavalheiros”.

Estas diretrizes ajudam a resolver muitas das dificuldades na delimitação das


situações carecidas de regulação jurídica, mas não todas.
Subsiste uma controvérsia relativamente às situações que, embora não sendo
abrangidas pela intencionalidade normativa da lei, seriam dignas de tutela jurídica
perante a ordem jurídica considerada no seu conjunto, os seus princípios gerais e
valores. É questionado se, aqui, ainda há uma lacuna que o órgão de aplicação pode (e
deve) integrar ou se apenas será possível tutelar juridicamente esta situação através de
um processo de “aperfeiçoamento do Direito para além da lei”.
A doutrina portuguesa parece favorecer o primeiro entendimento, permitindo afirmar
que a lacuna não é só uma “falha no plano do legislador”, mas também qualquer falha
que contraria o plano do sistema jurídico.

154
MAFALDA BOAVIDA
1º ANO TB12

Espécies de lacunas e sua determinação


A redução teleológica

A literatura jurídica dá conta de diversas classificações de lacunas.


OLIVEIRA ASCENSÃO distingue lacuna de previsão e lacuna de estatuição. Na
primeira modalidade falha a previsão de um caso que deve ser juridicamente regulado.
Na segunda, há previsão, mas não se estatuíram os efeitos jurídicos correspondentes.
O autor também se refere às lacunas ocultas que, naturalmente, se contrapõem às
lacunas patentes. Esta é a classificação mais importante e que em seguida será
examinada mais detidamente.

BAPTISTA MACHADO distingue entre lacunas da lei e lacunas do Direito, distinção


que corresponde grosso modo à que LARENZ traça entre aperfeiçoamento do Direito
imanente à lei e aperfeiçoamento do Direito para além da lei. Este autor também
distingue entre lacunas patentes e ocultas.
Enfim, BAPTISTA MACHADO refere as “lacunas de colisão” lógicas e teleológicas
que são as que resultariam das contradições normativas e valorativas que já foram
anteriormente caracterizadas.

Decorre do então exposto que, em minha opinião, só as contradições normativas, em


que duas normas aplicáveis à mesma situação desencadeiam consequências jurídicas
entre si incompatíveis, podem gerar “lacunas de colisão”.

A lacuna patente é frequentemente identificada com os casos de “silêncio da lei”.


Pelas razões que atrás foram expostas é mais rigoroso dizer que há uma lacuna patente
quando a situação não é abrangida pelo sentido literal possível de qualquer proposição
jurídico-normativa.
Por seu turno, há uma lacuna oculta quando uma situação é abrangida pelo sentido
literal possível de uma proposição jurídico-normativa, mas por força de uma
interpretação restritiva, de uma interpretação ab-rogante ou de uma redução teleológica
vem a concluir-se que, em última análise, tal proposição jurídica lhe não é aplicável.

Naturalmente que nem toda a interpretação restritiva ou ab-rogante ou redução


teleológica conduz à revelação de uma lacuna oculta.

155
MAFALDA BOAVIDA
1º ANO TB12

Isto não se verifica, designadamente, quando destes procedimentos resulta que a


situação deve ser considerada extrajurídica ou fica abrangida pela aplicabilidade de outra
norma (designadamente uma norma que é geral relativamente à norma que foi objeto de
uma interpretação restritiva ou ab-rogante ou que foi sujeita a redução teleológica).
As interpretações restritiva e ab-rogante já foram atrás examinadas. Cabe agora
caracterizar o procedimento de redução teleológica.

À semelhança do que se verifica com a interpretação restritiva, também no caso da


redução teleológica é por força de critérios teleológicos que a situação é subtraída ao
campo de aplicação da regra que, à primeira vista, a regula.
Só que na interpretação restritiva, segundo o entendimento que perfilho, esta
limitação da hipótese normativa ainda corresponde a um dos sentidos literais possíveis,
ao passo que a redução teleológica fica aquém do sentido literal possível.

Observe-se que a quem siga o entendimento dominante entre nós sobre os limites
da interpretação, poderá parecer defensável que os casos de redução teleológica sejam
reconduzidos à interpretação restritiva, com a consequente negação de autonomia ao
procedimento da redução teleológica.

A redução teleológica é um importante instrumento de diferenciação do Direito. Com


efeito ela permite estabelecer um regime jurídico diferente para situações que, em
primeira análise, se encontravam submetidas à mesma disciplina jurídica.
Esta diferenciação é um corolário do princípio da igualdade, segundo o qual aquilo
que é desigual deve ser tratado desigualmente. Os traços específicos da situação em
presença vêm a justificar uma valoração diferente desta situação, esta diferença de
valoração exige uma diferenciação, isto é, um tratamento diferente para esta situação.

A redução teleológica pode, em primeiro lugar, ser prescrita pelo fim da própria norma
a limitar. É o que se verifica quando se puder apurar que, segundo a intenção do
legislador histórico, a norma não deve abranger uma situação que cabe na sua letra.
Quando não puder ser demonstrada a intenção do legislador histórico, ou esta não
for inequívoca, a redução pode também resultar da atuação de critérios teleológico-
objetivos.

156
MAFALDA BOAVIDA
1º ANO TB12

Mas não estará isto em contradição com o art. 9.º/2 CC quando dispõe que não pode
ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei
um mínimo de correspondência verbal?
Creio que não há contradição. O art. 9.º rege a interpretação e aqui já não se trata de
interpretação. Se é permitida a aplicação analógica da regra, por se entender que a
intenção normativa abrange o caso omisso, também deve ser permitida a redução
teleológica, que é o procedimento inverso: a intenção normativa não abrange o caso
previsto na regra. Ambos os procedimentos encontram o seu fundamento no princípio
da igualdade.
A redução teleológica também pode resultar de contradições normativas e,
porventura, da consideração de outros princípios e valores da ordem jurídica.

Já se deve encarar com muita reserva a redução teleológica fundada em valores e


princípios da ordem jurídica, que se contraponham à intencionalidade da norma em
causa e que não suscitem um problema de constitucionalidade. E isto porque, como
atrás assinalei, as decisões tomadas pelo legislador devem em princípio ser respeitadas
e a “estranheza” da norma “relativamente ao sistema” não coloca, por si, em causa a sua
vigência.
Quando muito, parece de admitir que o desenvolvimento da ordem jurídica, posterior
à criação da lei, ou a evolução social entretanto verificada, podem vir a justificar uma
diferenciação.
Mas então já não se trata de algo estranho à determinação da intencionalidade da
norma em causa, mas da intervenção de critérios teleológico-objectivos justificada pela
evolução da ordem jurídica ou do contexto social.

Integração de lacunas – em geral

Já sabemos que o órgão de aplicação tem o dever de integrar a lacuna. Também se


fala, por vezes, em “suprir” ou em “colmatar” a lacuna. Integrar a lacuna é obter a solução
jurídica do caso. Para o órgão de aplicação, designadamente para o tribunal, isto
significa achar o critério de decisão do caso que lhe é submetido. Claro que o problema
da disciplina jurídica de uma situação que não se encontra diretamente regulada também
se pode colocar independentemente de qualquer processo jurisdicional, e, mesmo,
independentemente de qualquer litígio.

157
MAFALDA BOAVIDA
1º ANO TB12

A missão de integrar a lacuna é confiada aos órgãos de aplicação do Direito e, à


semelhança do que se verifica com a interpretação, a todos aqueles que tenham de
determinar a disciplina jurídica aplicável a uma situação.

OLIVEIRA ASCENSÃO distingue processos extrassistemáticos e intrassistemáticos


de integração de lacunas.
Seriam processos extrassistemáticos a atribuição a um órgão legislativo da
competência para integrar lacunas, os processos discricionários e os processos
equitativos. Estes processos seriam caracterizados por não assegurarem a
conformidade da solução com o sistema.
Contrapor-se-iam aos processos intrassistemáticos, que seriam os que se encontram
consagrados no art. 10.º CC.
Haveria um processo discricionário de integração de lacunas quando fosse confiado
a uma entidade administrativa o poder de resolver, com base em razões de
conveniência, as situações em que não existisse regra.

No entanto, oferece dúvida que se possa falar aqui de lacuna. Não se trata de uma
“falha no plano do legislador”, mas da atribuição, pela lei, de um poder de determinação
de consequências jurídicas cujo exercício não está submetido a regras. Por outras
palavras, parece tratar-se de um processo de solução de casos por via não normativa, e
não de um processo de integração de lacunas.

O terceiro processo extrassistemático seria o equitativo. Atrás examinámos a


equidade como uma solução por via não normativa. O acordo num julgamento de
equidade é possível quer haja ou não regras diretamente aplicáveis ao caso e, portanto,
é claro que a equidade transcende o problema da integração de lacunas.

O que se coloca agora é a questão de saber se a equidade pode constituir um


processo de integração de lacunas.
O legislador do Código Civil de 1966 determinou que, “Na falta de caso análogo, a
situação é resolvida segundo a norma que o próprio intérprete criaria, se houvesse de
legislar dentro do espírito do sistema” (art. 10.º/3).
Assim, na falta de analogia, o intérprete não fica colocado na posição do tribunal que
deve julgar segundo a equidade, mas numa posição diferente, que lhe exige a

158
MAFALDA BOAVIDA
1º ANO TB12

formulação de uma proposição jurídica geral e abstrata que seja suscetível de aplicação
em casos futuros. Ao passo que a equidade, como já sabem, não é orientada à obtenção
de uma solução suscetível de generalização, mas uma solução puramente
individualizadora.

Portanto, a equidade não é atualmente um processo de integração de lacunas no


sistema jurídico português.
Não quer isto dizer, porém, que os processos de integração de lacunas
correspondam a modelos inteiramente intrassistemáticos de decisão e que as soluções
a que cheguem constituam normas jurídico-positivas, que possam desempenhar
plenamente uma função orientadora de condutas.

A integração da lacuna vem a traduzir-se numa apreciação do caso segundo um


critério jurídico. Mas será um critério normativo?

Quando a lacuna é integrada mediante a aplicação da norma que regula um caso


análogo, o critério é normativo. Mas há uma diferença fundamental entre a aplicação
direta da norma e a sua aplicação analógica. É que o juízo feito pelo tribunal sobre a
aplicação analógica da regra não vincula o mesmo tribunal ou outros tribunais na decisão
futura de casos semelhantes.

Quando a lacuna é integrada mediante a concretização de um princípio geral, o


critério não é normativo, porque não se baseia em qualquer norma jurídico-positiva.
Enfim, quando a situação tiver de ser resolvida “segundo a norma que o próprio
intérprete criaria”, o tribunal tem de formular um critério de decisão sob a forma de uma
proposição jurídica geral e abstrata, mas parece claro que não se trata de uma
proposição jurídico-positiva, que o mesmo tribunal ou outros tribunais estejam vinculados
a aplicar na decisão de casos futuros. Portanto, neste caso a decisão também não se
baseia num critério normativo.

A conclusão a que chego é que, havendo uma lacuna, o critério de decisão nem
sempre é normativo.
E a integração da lacuna também não altera, por si, a situação normativa existente.
Após a integração continua a haver lacuna. Se surgir futuramente um caso idêntico ou

159
MAFALDA BOAVIDA
1º ANO TB12

semelhante o problema volta a colocar-se e têm de ser atuados os processos de


integração de lacunas.
Claro que a solução pode vir a ser positivada, pela lei ou pelo costume. Só então os
sujeitos dispõem de um critério de conduta seguro por onde se podem orientar. Mas
nesse momento deixará de haver lacuna, porque se terá criado uma norma diretamente
aplicável ao caso.
Por outro lado, na linha das considerações tecidas a propósito da relevância prática
do sistema, não me parece que todos os processos de integração previstos no art. 10.º
CC possam ser considerados intrassistemáticos.

Já quando o intérprete procede a um raciocínio por analogia ou à concretização de


princípios jurídicos não há uma delimitação e hierarquização tão clara dos argumentos
relevantes como na decisão fundada na aplicação direta de regras jurídicas. Como se
assinalou, nem sempre se pode estabelecer uma hierarquia entre os princípios jurídicos.
O modelo de decisão caracteriza-se pela mobilidade, mas ainda é predominantemente
intrassistemático.

No caso da criação da solução pelo intérprete “como se fosse o legislador”, o modelo


de decisão é, a meu ver, predominantemente extrassistemático: o intérprete tem de
atender aos princípios gerais e aos valores do sistema, mas, porquanto não é possível
obter a solução a partir destes princípios e valores, o intérprete tem uma larga margem
de liberdade e tem de lançar mão de argumentos que não se baseiam no sistema.

Integração de lacunas: a analogia

Já se sublinhou que a integração de lacunas através da aplicação da regra que regula


um caso análogo é uma decorrência do princípio da igualdade: tratar do mesmo modo
os casos semelhantes.
É o que determina o art. 10.º/1 CC: “Os casos que a lei não preveja são regulados
segundo a norma aplicável aos casos análogos”.

160
MAFALDA BOAVIDA
1º ANO TB12

E quando é que dois casos são análogos?


O n.º 2 do mesmo artigo procura dar uma resposta a esta questão: “Há analogia
sempre que no caso omisso procedam as razões justificativas da regulamentação do
caso previsto na lei”.
Por outras palavras, os casos são análogos quando devem ser valorados da mesma
forma, quando a valoração jurídica do caso regulado por uma norma também se justifica
em relação ao caso omisso.
Por exemplo, quando surgiu o transporte aéreo, e enquanto este não foi objeto de
regulação legal, colocou-se a questão de saber se seriam aplicáveis analogicamente as
normas reguladoras do transporte marítimo.

O juízo de analogia não se baseia num raciocínio lógico-concetual, mas numa


valoração, num pensamento valorativo. Para se saber quais os elementos utilizados para
delimitar a previsão da norma que são relevantes para a valoração jurídica é necessário
examinar os fins prosseguidos pela norma, é preciso esclarecer a ratio legis. Aplica-se
aqui o que foi exposto sobre os critérios teleológicos de interpretação.

Foi atrás assinalado que certos argumentos lógicos podem ser relevantes para a
integração de lacunas. Referi-me ao argumento a minori ad maius e a maiori ad minus.
Cabe agora acrescentar que estes argumentos comportam duas formulações, conforme
atendem à previsão da regra ou à estatuição da regra (TEIXEIRA DE SOUSA).

Assim, o argumento a minori ad maius significa, do ponto de vista da previsão, que


se o menos é suficiente para produzir certo efeito jurídico, o mais produz
necessariamente esse efeito; do ponto de vista da estatuição, que a lei que proíbe o
menos proíbe o mais.

O argumento a maiori ad minus significa, do ponto de vista da previsão, que se o


mais não produz certo efeito jurídico, o menos também não o pode produzir; do ponto de
vista da estatuição, que a regra que permite o mais permite o menos.

Não me refiro ao argumento a contrario, porquanto, pelas razões atrás expostas, não
lhe encontro sentido útil.

161
MAFALDA BOAVIDA
1º ANO TB12

Já sabemos que estes argumentos lógicos tanto podem ser utilizados na


interpretação como na integração de lacunas.

Os argumentos a minori ad maius e a maiori ad minus não devem ser entendidos


como argumentos de pura lógica formal, mas antes relacionados com a analogia.
Podemos reconduzir estes argumentos ao argumento da maioria de razão, ou a fortiori,
segundo o qual a consequência jurídica estabelecida por uma regra para um
determinado caso deve valer por “maioria de razão” para um caso omisso quando a ratio
legis se apresenta ainda mais justificada para o caso omisso do que para o caso previsto.

O argumento por maioria de razão encontra, à semelhança da analogia, a sua


justificação no princípio da igualdade. Só que agora a diferença entre os casos em
presença não justifica um tratamento diferente: torna ainda mais premente um
tratamento igual.
Uma vez que a valoração subjacente à regra se justifica para o caso omisso, pode
dizer-se que o caso regulado pela regra é um caso análogo, e, assim, reconduzir os
argumentos a minori ad maius e a maiori ad minus à analogia.

Proibições do uso da analogia

É o que verifica, em primeiro lugar, com as normas restritivas de direitos, liberdades


e garantias.
Segundo o art. 18.º/2 CRP “A lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias
nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao
necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente
protegidos”.
Como assinala JORGE MIRANDA, as leis restritivas devem ser interpretadas, senão
restritivamente, pelo menos sem recurso à interpretação extensiva e à analogia. Isto
explica-se pelo caráter restritivo das restrições aos direitos fundamentais.

Em segundo lugar, decorre do art. 29.º CRP e do art. 1.º/3 CP, que não são aplicáveis
por analogia as normas que qualificam um facto como crime, definem um estado de
perigosidade ou determinam a pena ou medida de segurança que lhes corresponde.

162
MAFALDA BOAVIDA
1º ANO TB12

Também neste caso, segundo o entendimento dominante, (designadamente


FIGUEIREDO DIAS e SOUSA BRITO), a dita interpretação extensiva, nos termos em
que é tradicional-mente entendida entre nós, se encontra excluída. Neste sentido pode
aliás invocar-se o art. 29.º/3 CRP, segundo o qual “Não podem ser aplicadas penas ou
medidas de segurança que não estejam expressamente cominadas em lei anterior”.

Isto é justificado pelo princípio da legalidade, que exprime as especiais exigências de


segurança jurídica e certeza do Direito objetivo, que aqui estão colocadas, e pela
proteção dos direitos fundamentais que estão em jogo.

No caso das normas excecionais, como já sabem, proíbe-se a aplicação analógica,


mas admite-se a interpretação extensiva (art. 11.º CC).
Esta admissibilidade da dita interpretação extensiva pode ser entendida como um
limite à proibição de aplicação analógica.
Como assinala OLIVEIRA ASCENSÃO, surgem casos que apresentam mais
semelhanças com os regulados de modo excecional que com os constantes de regra
geral. Importa então examinar se a valoração feita pelo legislador relativamente aos
casos regulados pela regra excecional se justifica também para outros casos.

A intenção do legislador histórico pode ser claramente contrária a qualquer aplicação


analógica da regra excecional, que implica uma redução teleológica da “regra geral”.
Assim, por exemplo, mesmo que a venda de certos bens móveis, pelo seu elevadíssimo
preço, justificasse a aplicação das exigências de forma estabelecidas para a venda de
imóveis, parece claramente contrário à intenção do legislador que se viesse subtrair o
caso à norma geral do art. 219.º CC para lhe aplicar analogicamente a regra do art. 875.º
CC.
Noutros casos, porém, a intencionalidade normativa não se contrapõe à aplicação
analógica da regra excecional a casos que são abrangidos pela sua ratio.

Creio que este modo de ver as coisas é compatível com o disposto no art. 11.º CC.
Com efeito, a aplicação da regra excecional a casos que estão abrangidos pela intenção
regulativa que lhe está subjacente, mas não pelo seu sentido literal possível cabe naquilo
que segundo a doutrina corrente entre nós constitui uma “interpretação extensiva”.

163
MAFALDA BOAVIDA
1º ANO TB12

Refira-se ainda que por força do art. 11.º/4 da Lei Geral Tributária, as “lacunas
resultantes de normas tributárias abrangidas na reserva de lei da Assembleia da
República não são suscetíveis de integração analógica”.
Os casos anteriormente examinados dizem respeito à proibição da analogia com
respeito a categorias de normas ou ramos do Direito. Esta proibição tem, em princípio, o
sentido de excluir a existência de uma lacuna que o intérprete possa integrar, seja com
recurso com a analogia, seja com recurso a princípios jurídicos ou a uma regra hipotética.

Mais limitadamente, a aplicação analógica pode ser excluída pelo legislador


relativamente a uma determinada norma ou regime jurídico.
Tipologias:
® exemplificativa;
® taxativa;
® delimitativa.

Da exclusão da aplicação analógica de uma norma ou regime jurídico não parece


resultar necessariamente a inexistência de uma lacuna que deva ser integrada mediante
qualquer dos métodos admitidos para o efeito, designadamente a aplicabilidade
analógica de outra norma ou regime jurídico, o recurso a princípios jurídicos ou a um
critério de decisão criado pelo intérprete.

Integração de lacunas: o recurso a princípios jurídicos.


A dita analogia iuris, de Direito ou global

Perante uma lacuna, quando não se encontre uma norma aplicável a um caso
análogo, o art. 10.º CC manda resolver a situação “segundo a norma que o próprio
intérprete criaria, se houvesse de legislar dentro do espírito do sistema”.

Alguns autores, porém, distinguem, da integração segundo a norma que o intérprete


criaria, a integração mediante a analogia iuris, de Direito ou global.
Segundo este entendimento, há lugar à analogia iuris quando a solução para o caso
pode ser encontrada mediante a concretização de um princípio jurídico. Esta dita
analogia iuris distingue-se, portanto, da analogia anteriormente estudada, que é por
estes autores designada analogia legis, ou analogia de lei.
164
MAFALDA BOAVIDA
1º ANO TB12

A integração da lacuna mediante a concretização de um princípio jurídico é um


processo bastante diferente daquela integração que, embora “dentro do espírito do
sistema”, não possa fundamentar-se num princípio jurídico. Justifica-se, portanto, a
autonomização do recurso a princípios jurídicos como processo de integração de
lacunas.

Já oferece dúvida que este processo possa ser visto como uma modalidade de
analogia. Estas dúvidas relacionam-se com a distinção entre a analogia legis e analogia
iuris.

Esta distinção é correntemente traçada nos seguintes termos: na analogia legis o


intérprete conclui que a ratio de uma determinada norma abrange o caso omisso; na
analogia iuris o caso omisso não é abrangido pela ratio de uma norma singular, mas é
abrangido por um princípio geral que se obtém a partir de várias normas singulares.

Para precisar melhor a distinção entre a analogia dita legis e o recurso a princípios
jurídicos creio que terá utilidade recordar a caracterização dos princípios jurídicos
anteriormente feita. Disse-se que um princípio é uma proposição jurídica com elevado
grau de indeterminação que, exprimindo diretamente um fim ou valor da ordem jurídica,
constitui uma diretriz de solução.
Os princípios assim definidos, são princípios diretivos, que atuam como “comandos
de otimização”, isto é, orientam a obtenção da solução por forma que se promova a
máxima realização possível de um valor ou fim da ordem jurídica.
Destes princípios distinguimos os princípios meramente descritivos, que constituem
“regras gerais”. Estas “regras gerais” obtêm-se mediante um processo de abstração e
generalização a partir das normas singulares. Elas são proposições determinadas e, por
isso, não podem funcionar como “comandos de otimização”.
Se a “regra geral” que se obtém a partir das normas singulares, é uma regra vigente,
então ela regula os casos que caiam no âmbito da sua previsão, mesmo que não sejam
abrangidos pelas normas singulares. O problema está em que o intérprete procede neste
caso a uma generalização que não está contida no sentido literal possível das
proposições jurídicas singulares.
O que permite encarar este processo de abstração e generalização como um
processo de integração de lacunas.

165
MAFALDA BOAVIDA
1º ANO TB12

Haverá aqui um raciocínio de analogia?


É certo que para se formular a “regra geral” não basta um processo lógico-formal. Há
que partir da ratio legis de cada uma das normas singulares para chegar à ratio, mais
ampla, da “regra geral”.
Poderá então verificar-se que esta ratio abrange situações que não são abrangidas
por qualquer das normas singulares.
Não choca, por conseguinte, que se fale a este respeito de uma analogia de Direito
ou global.
Mas não é menos certo que o momento decisivo, neste processo, reside na
passagem das regras singulares à “regra geral”. É mais uma generalização que uma
comparação entre casos de um ponto de vista valorativo.

Algo diferente é a hipótese de integração da lacuna por recurso a princípios jurídicos


stricto sensu, isto é, princípios jurídicos diretivos.
Já sabemos que os princípios não se obtêm mediante um procedimento
generalizador a partir de regras jurídicas. Também aqui é necessária uma viagem de
retorno desde as regras às ideias que as enformam, mas agora não se trata de
esclarecer a ratio de uma regra mais ampla, mas de encontrar uma diretriz de solução
que não se encontra suficientemente determinada para constituir uma regra.
Perante um caso omisso eles constituem uma diretriz que aponta o sentido em que
a solução deve ser encontrada. Por conseguinte, o recurso aos princípios jurídicos é
também um processo de integração de lacunas.

Trata-se, também aqui, de um raciocínio de analogia?


Aplicam-se aqui as considerações anteriormente formuladas com respeito às “regras
gerais”, mas creio que este processo ainda se afasta mais de uma comparação de casos
de um ponto de vista valorativo.
O princípio jurídico não apresenta uma previsão determinada e, portanto, a sua
aplicação não depende de um exame da semelhança entre os casos que são abrangidos
pelas regras vigentes em que o princípio se manifesta e o caso omisso de um ponto de
vista valorativo.
O que conta é antes que o caso omisso diga respeito a um domínio jurídico em que
vigore o princípio jurídico em causa

166
MAFALDA BOAVIDA
1º ANO TB12

É também evidente que nas hipóteses em que os princípios são formulados e


desenvolvidos pela jurisprudência e pela ciência jurídica na resolução de lacunas da lei
não existe, à partida, qualquer comparação entre o caso omisso e os casos que se
encontram previstos no Direito vigente.

O que se trata aqui, fundamentalmente, é de comparar os casos omissos em que o


princípio foi anteriormente aplicado com o caso em apreço. O art. 10.º CC não refere o
recurso aos princípios jurídicos como processo de integração de lacunas. Mas não se
deve retirar daí a inadmissibilidade deste processo de integração. Na verdade, a
formulação do n.º 3 do art. 10.º é suficientemente ampla para abarcar a integração da
lacuna mediante a concretização de um princípio jurídico.

Reafirme-se, porém, que embora ambas as soluções caibam na letra do n.º 3 do art.
10.º, não é a mesma coisa integrar a lacuna com recurso a um princípio jurídico vigente,
que é um critério de decisão que vincula o intérprete, e segundo um critério de decisão
criado pelo intérprete, sem que o sistema forneça uma diretriz de solução.
De todo o modo, observe-se que a formulação adotada pelo legislador no art. 10.º
tem por consequência que o intérprete, quando recorra a um princípio jurídico, não pode
limitar-se a fundamentar a solução do caso concreto no princípio. O intérprete tem de
enunciar sob a forma de uma proposição jurídica determinada – que constituirá então
uma concretização do princípio jurídico –, o critério de decisão do caso.

Integração de lacunas
A criação de um critério de decisão pelo intérprete

Se não for possível encontrar uma norma aplicável a um caso análogo, nem obter,
por generalização de soluções particulares, uma “regra geral” que abranja o caso, nem
sequer dispor de um princípio jurídico vigente que constitua uma diretriz para a solução
do caso, resta ao intérprete criar, ele próprio, o critério de decisão do caso.
A decisão não é arbitrária. Desde logo porque tem de obedecer a um critério racional.
E ainda porque o intérprete não é inteiramente livre na formulação do critério: ele tem de
proceder “dentro do espírito do sistema”.
Na formulação do critério de decisão o intérprete tem de respeitar os valores e os
princípios da ordem jurídica, mas não existe qualquer valoração jurídica, subjacente a

167
MAFALDA BOAVIDA
1º ANO TB12

uma norma vigente, ou a um conjunto de normas vigentes, que abranja o caso, nem um
princípio jurídico que constitua uma diretriz de solução.
Portanto, a solução não é justificada pelo sistema. Daí também que me pareça mais
próximo da realidade afirmar que a solução é compatível com o sistema do que conforme
ao sistema.
Também já foi por várias vezes sublinhado que o intérprete tem de formular o critério
de decisão sob a forma de uma proposição geral e abstrata determinada, de uma regra,
que seja suscetível de ser seguida em casos semelhantes E, para o efeito, deve levar
em conta as considerações de política legislativa e de técnica legislativa que são
relevantes para o legislador.

Limites à integração de lacunas

Em princípio, todas as lacunas podem e devem ser integradas.


Nos casos de proibição do uso de analogia, porém, não é permitido ao intérprete
aplicar uma lei a uma situação que estaria abrangida pela sua intenção regulativa, mas
não pelo seu sentido literal possível.
Isto significa, à primeira vista, que o intérprete não tem a liberdade de integrar a
lacuna: é claro que se o intérprete não pode aplicar analogicamente uma regra também
não pode criar, ele próprio, um critério de decisão para o caso.

Mas, em última análise, o que está em causa não é a integração da lacuna, mas a
sua própria determinação. Só há lacuna se não houver uma regra diretamente aplicável
e tal representar uma “falha contrária ao plano” .

Quando, na verdade, exista uma lacuna que careça de integração, poderá suceder
que esta integração seja impossível? A resposta é afirmativa.
Em certas situações muito raras a integração da lacuna pode ser impedida por aquilo
que se designa por obstáculo técnico insuperável. Não há uniformidade na doutrina na
apreciação deste ponto.
Por minha parte, creio que só há um obstáculo técnico verdadeiramente insuperável
quando a solução do caso depende de recursos materiais ou institucionais que não estão
disponíveis.

168
MAFALDA BOAVIDA
1º ANO TB12

Assim, por exemplo, se uma lei permite a constituição de um determinado direito,


mediante a inscrição num registo, mas o registo não se encontra organizado, existe uma
lacuna que não é suscetível de integração.

Aplicação da Lei no Tempo

Identificação do problema

Com a determinação dos momentos em que se inicia e cessa a vigência de uma


norma ou complexo normativo não se esgotam todos os problemas suscitados pela sua
sucessão no tempo.
Com efeito a sucessão das normas no tempo coloca ainda a questão de saber se
determinado facto ou situação é regido pela norma antiga ou pela norma nova. O
problema coloca-se fundamentalmente com a sucessão de leis e, por isso, é geralmente
tratado como aplicação da lei no tempo.
É de certa forma intuitivo que, em princípio, os factos são valorados juridicamente
pela norma que está em vigor no momento da sua ocorrência.

No entanto, pode colocar-se a questão de saber se uma lei nova é aplicável a factos
ocorridos na vigência da lei anterior, ou, por outras palavras, se é de aplicação retroativa.
Por exemplo, A pratica um ato que constituiu um crime no momento da sua prática.
Antes do julgamento, entra em vigor uma nova lei que descriminaliza o ato. A deverá ser
condenado à pena prevista na lei antiga? Ou beneficiará da aplicação da lei nova?

Mas o problema coloca-se também com respeito a duas hipóteses diferentes.

A primeira, que diz respeito às “situações não conclusas”, é a de factos que apenas
preencheram parcialmente uma previsão normativa de realização continuada ou
formação sucessiva da lei antiga, quando tal espécie de factos desencadeie um efeito
jurídico idêntico ou semelhante perante a lei nova.
Por exemplo, há uma sucessão de leis em matéria de usucapião, isto é, de aquisição
de um direito real por efeito da posse correspondente durante certo período de tempo.
Suponha-se que a lei nova estabelece um prazo de usucapião mais longo que o
fixado pela lei anterior.

169
MAFALDA BOAVIDA
1º ANO TB12

No momento da entrada em vigor da lei nova ainda não decorreu o prazo fixado pela
lei antiga. Será que o possuidor adquire o direito quando decorrer o prazo fixado pela lei
antiga? Ou só quando expirar o prazo fixado pela lei nova?

A segunda hipótese, que é ainda mais importante, diz respeito às situações em curso:
situações que se tendo constituído durante a vigência da norma antiga (e que por isso
são situações conclusas) ainda não esgotaram a produção dos seus efeitos no momento
da entrada em vigor da lei nova.
Por exemplo, A e B casaram na vigência de um determinado Código Civil, sem
celebrarem convenção antenupcial, isto é, sem estipularem o regime de bens do
casamento. Mais tarde entra em vigor num novo Código Civil que altera o regime dos
deveres pessoais dos cônjuges e estabelece um regime de bens supletivo diferente.
Pergunta-se: com a entrada em vigor do novo Código Civil os deveres pessoais dos
cônjuges passam a ser por ele regidos ou continuam submetidos ao CC anterior? E o
regime de bens mantém-se ou é alterado?

Para responder a estas questões é necessário determinar se um facto, uma situação


ou um aspeto de uma situação são regulados pela lei nova ou pela lei antiga.

Direito Inter-temporal ou Transitório


Regras de conflitos gerais e especiais

Designa-se por Direito Inter-temporal ou Transitório o conjunto das normas e


princípios que regulam a aplicação da lei no tempo, isto é, que determinam se um facto,
uma situação ou um aspeto de uma situação são regulados pela lei nova ou pela lei
antiga.
Estas normas e princípios são, em primeira linha, de natureza conflitual. Também se
fala, no mesmo sentido, de Direito Transitório formal. Neste contexto, “formal” significa,
pois, o mesmo que conflitual.
Estas normas não regulam diretamente o facto ou situação, não estabelecem a
disciplina material da situação. Elas são normas de regulação indireta, porque remetem
a disciplina da situação para a lei nova ou para a lei antiga.

170
MAFALDA BOAVIDA
1º ANO TB12

As regras de conflitos de leis no tempo podem ser gerais ou especiais.


São gerais quando são aplicáveis à generalidade dos ramos do Direito ou a um ramo
do Direito no seu conjunto. São especiais quando regem a aplicação no tempo de uma
determinada lei ou regra legal.

São, em princípio, aplicáveis à generalidade dos ramos do Direito as regras


constantes dos arts. 12.º e 13.º CC. Mas há regras gerais aplicáveis a certos ramos do
Direito.
É o que se verifica, como veremos, com o Direito processual e com o Direito Penal.
Claro que estas regras são especiais relativamente às que constam do art. 12.º CC,
limitando a aplicação destas regras. Mas continuam a ser gerais relativamente às normas
sobre a aplicação no tempo de uma determina lei ou regra legal.
Temos um importante exemplo de regras de conflitos especiais no DL n.º 47344, que
aprovou o Código Civil. A maioria dos seus preceitos é constituída por regras de conflitos
especiais.

Por exemplo, o art. 14.º determina, quanto aos efeitos do casamento, que “o disposto
nos arts. 1671.º a 1697.º do novo código é aplicável aos casamentos celebrados até 31
de Maio de 1967, mas em caso algum serão anulados os actos praticados pelos cônjuges
na vigência da lei antiga, se em face desta não estiverem viciados”.

Na maior parte dos casos as regras de conflitos especiais representam aplicações


das regras gerais a situações em que a sua atuação poderia suscitar algumas dúvidas.
O legislador tratou então de concretizar a regra geral, por forma a obviar a tais dúvidas.

Regras materiais especiais

Disse que as normas e princípios de Direito Inter-temporal são, em primeira linha, de


natureza conflitual.
Nada impede o legislador, porém, de estabelecer um regime material especial para
as situações que apresentam laços temporais significativos com a lei nova e com a lei
antiga.
Por exemplo, o art. 20.º do DL n.º 47344, sobre os filhos adulterinos, determina que
os “assentos secretos de perfilhação de filhos adulterinos, validamente lavrados ao

171
MAFALDA BOAVIDA
1º ANO TB12

abrigo da legislação vigente, tornar-se-ão públicos mediante averbamento oficioso


sempre que sejam passadas certidões do respetivo registo de nascimento”.
Esta norma não aplica a lei nova, que estabelece que estes assentos são públicos,
nem a lei antiga, que estabelece que são secretos. Estabelece uma solução especial.

As regras materiais especiais de Direito Inter-temporal são pouco frequentes. Mas já


são mais frequentes as regras de conflitos de leis no tempo que favorecem determinados
resultados materiais, designadamente mediante a aplicação da lei mais favorável ou
menos favorável à produção de um efeito jurídico.
Assim, o art. 2.º do CP, após estabelecer que as “penas e medidas de segurança são
determinadas pela lei vigente no momento da prática do facto ou do preenchimento dos
pressupostos de que dependem” (n.º 1), determina que “o facto punível segundo a lei
vigente no momento da sua prática deixa de o ser se uma lei nova o eliminar do número
das infracções” (n.º 2). O que aliás está em conformidade com o comando constitucional
contido no art. 29.º/4 CRP, segundo o qual se aplicam retroativamente as leis penais de
conteúdo mais favorável ao arguido.
Exprime-se aqui uma regra de conflitos segundo a qual deve ser aplicada a lei mais
favorável ao agente. Vista noutra perspetiva, esta regra significa que se aplica a lei
menos favorável à incriminação.

Princípio da irretroatividade
Determinações constitucionais

No Direito Inter-temporal vigoram dois princípios, que convém examinar antes de


estudarmos as regras de conflitos gerais. Trata-se do princípio da irretroatividade e do
princípio da continuidade das situações jurídicas.
Estes princípios são atualmente complementados por um terceiro princípio,
examinado mais adiante: o da aplicação imediata da lei nova às situações em curso.
O primeiro princípio, que tem natureza puramente conflitual, é o princípio da
irretroatividade. Este princípio está enunciado no n.º 1 do art. 12.º CC: a “lei só dispõe
para o futuro; ainda que lhe seja atribuída eficácia retroativa, presume-se que ficam
ressalvados os efeitos já produzidos pelos factos que a lei se destina a regular”.
Este princípio fundamenta-se, em primeiro lugar, na ideia de supremacia do Direito,
associada como está à atuação da norma como critério de conduta. A norma só pode

172
MAFALDA BOAVIDA
1º ANO TB12

orientar as condutas que ocorram depois da sua entrada em vigor. A norma, quando se
aplique a factos que ocorreram antes da sua entrada em vigor, pode constituir um critério
de decisão, mas não um critério de conduta.

Daqui decorre que, em princípio, os factos são valorados juridicamente segundo a lei
em vigor no momento da sua ocorrência e que a nova lei não atinge os efeitos jurídicos
já produzidos segundo a lei antiga. Esta ideia constitui o núcleo de sentido do princípio
da irretroatividade.
Mesmo neste domínio, porém, o princípio da irretroatividade é suscetível de
limitações, que são aliás admitidas pelo n.º 1 do art. 12.º.
Estas limitações podem ser justificadas quer por valores jurídicos materiais que se
coloquem como particular premência em certos domínios quer pela necessidade
imperiosa de fazer face a situações determinadas, como sucede por vezes com as atrás
referidas leis-medida.

Na sistematização de OLIVEIRA ASCENSÃO, seguida por MARCELO REBELO DE


SOUSA e TEIXEIRA DE SOUSA, são quatro os graus de retroatividade: retroatividade
extrema, retroatividade quase extrema, retroatividade agravada e retroatividade
ordinária.

Na retroatividade extrema a lei nova é aplicada aos factos ocorridos antes da sua
entrada em vigor, sem quaisquer limites, e, portanto, também sem respeitar o caso
julgado, isto é, os efeitos de uma decisão jurisdicional que não é suscetível de um recurso
ordinário.

Na retroatividade quase extrema o único limite à aplicação da lei nova aos factos
ocorridos antes da sua entrada em vigor é o caso julgado. Por conseguinte, a lei nova
também se aplica às situações que se constituíram e extinguiram ao abrigo de uma lei
antiga. Por exemplo, uma lei que viesse reduzir a taxa legal de juro máximo e
estabelecesse a sua aplicação a contratos, não só celebrados antes da sua entrada em
vigor, mas também executados anteriormente, desencadeando por isso a obrigação de
restituir os juros vencidos e pagos sob a lei antiga.

173
MAFALDA BOAVIDA
1º ANO TB12

Na retroatividade agravada a lei nova só respeita, de entre os efeitos produzidos


antes da sua entrada em vigor, os que tiverem um título que lhes dê especial
reconhecimento. Será esta, como adiante veremos, a retroatividade das leis
interpretativas nos termos do art. 13.º CC. Enfim, na retroatividade ordinária são
respeitados os efeitos já produzidos pelos factos que se destina a regular. A esta
retroatividade se reporta a segunda parte do n.º 1 do art. 12.º CC.

O princípio da irretroatividade suscita especiais dificuldades com respeito às


situações duradouras constituídas ao abrigo da lei antiga.

A situação jurídica constituída ao abrigo da lei antiga é um efeito produzido por um


facto que ocorreu durante a vigência da lei antiga. Mas o princípio da irretroatividade
nada nos diz sobre a aplicação da lei nova aos efeitos que sejam doravante ligados à
situação. E, com efeito, há situações que se prolongam no tempo, e que não podem ficar
imunes à evolução da ordem jurídica (por exemplo, a propriedade de imóveis).
Parece óbvio que, em certos domínios, as leis novas, embora respeitem, em princípio,
as situações validamente constituídas segundo a lei antiga, tendem a ser aplicáveis ao
seu conteúdo. Sem prejuízo de uma diferenciação conforme o domínio jurídico em
causa, tende-se assim a distinguir entre a constituição da situação e o seu conteúdo.

Quando a lei nova extingue diretamente a situação criada ao abrigo da lei antiga, não
estamos, em minha opinião, perante um caso de aplicação retroativa da lei nova, mas
de regulação direta (ou material) de um efeito jurídico produzido por um facto ocorrido
na vigência da lei antiga e perante esta lei.

Esta aplicação direta da lei nova contende a meu ver com o princípio da continuidade
das situações jurídicas, adiante examinado, e não com o princípio da irretroatividade.
Disse-se que o princípio da irretroatividade admite limitações. Mas estas limitações
não são permitidas em certos domínios em que a Constituição proíbe a retroatividade.
Além destas proibições específicas é possível inferir das normas e princípios
constitucionais certos limites gerais à retroatividade das leis.

174
MAFALDA BOAVIDA
1º ANO TB12

Comecemos por examinar as proibições específicas.


Em primeiro lugar, o art. 18.º/3 CRP proíbe a retroatividade das leis restritivas de
direitos, liberdades e garantias.
Encontramos outras proibições no domínio penal.
Segundo o n.º 1 do art. 29.º CRP “Ninguém pode ser sentenciado criminalmente
senão em virtude de lei anterior que declare punível a acção ou a omissão, nem sofrer
medida de segurança cujos pressupostos não estejam fixados em lei anterior”.
Esta proibição é, no entanto, limitada pelo disposto no número seguinte: “O disposto
no número anterior não impede a punição, nos limites da lei interna, por acção ou
omissão que no momento da sua prática seja considerada criminosa segundo os
princípios gerais de direito internacional commumente reconhecidos”.
A lei sobre a competência dos tribunais em matéria criminal também não pode ser
retroativa, visto que nenhuma “causa pode ser subtraída ao tribunal cuja competência
esteja fixada em lei anterior” (art. 32.º/9 CRP).

Enfim, há uma proibição de retroatividade no domínio fiscal. Segundo o disposto no


n.º 3 do art. 103.º CRP, ninguém “pode ser obrigado a pagar impostos que não hajam
sido criados nos termos da Constituição, que tenham natureza retroativa ou cuja
liquidação e cobrança se não façam nos termos da lei”. Vejamos agora que limites de
alcance geral se podem inferir da Constituição.

Como já sabem o art. 282.º CRP prevê a declaração de inconstitucionalidade ou de


ilegalidade das normas com força obrigatória geral. Esta declaração tem eficácia
retroativa, pois produz efeitos desde a entrada em vigor da norma declarada
inconstitucional ou ilegal (n.º 1). No entanto, o n.º 3 deste artigo ressalva “os casos
julgados, salvo decisão em contrário do Tribunal Constitucional quando a norma
respeitar a matéria penal, disciplinar ou de ilícito de mera ordenação social e for de
conteúdo menos favorável ao arguido”.

A doutrina e a jurisprudência têm encontrado aqui a manifestação de um princípio


geral de respeito pelo caso julgado, que é incompatível com a retroatividade extrema.
A jurisprudência constitucional tem ido mais longe, entendendo que certas leis, que
apresentam um grau inferior de retroatividade, são inconstitucionais.

175
MAFALDA BOAVIDA
1º ANO TB12

Mas este entendimento coloca pressupostos bastante restritivos a esta


inconstitucionalidade. Segundo o Tribunal Constitucional, “apenas uma retroactividade
intolerável, que afecte de forma inadmissível e arbitrária os direitos e expectativas
legitimamente fundados dos cidadãos viola o princípio da confiança, ínsito na ideia de
Estado de Direito democrático”.
A jurisprudência deste Tribunal tem-se ocupado principalmente dos casos da
chamada “retroatividade inautêntica” em que a lei nova estabelece consequências
jurídicas para situações em curso, ou se aplica a fatos novos que ocorrem na sequência
de um contexto anterior que criou, eventualmente, expectativas jurídicas.

No caso de normas que estabelecem consequências jurídicas para situações que se


constituíram antes da sua entrada em vigor, o Tribunal Constitucional já entendeu que
só serão inconstitucionais se violarem, “de forma excessivamente onerosa, intolerável,
opressiva ou injustificada, a confiança do cidadão na manutenção da situação jurídica
com base na qual atuou.
E como índice para tal conclusão, pode considerar-se relevante o facto de a mutação
da ordem jurídica afetar em sentido desfavorável uma expectativa consolidada ao abrigo
da lei antiga, e de, razoavelmente, os destinatários das normas dela constantes não
poderem contar com ela, bem como a circunstância de ela não ser ditada pela
necessidade de salvaguardar direitos ou interesses constitucionalmente protegidos que
devam considerar-se prevalentes (podendo recorrer-se, aqui, ao princípio da
proporcionalidade, explicitamente consagrado, a propósito dos direitos, liberdades e
garantias, no n.º 2 do artigo 18.º da Constituição)”.

Numa formulação mais recente, o Tribunal Constitucional definiu a ideia de


arbitrariedade ou excessiva onerosidade, para efeito da tutela do princípio da segurança
jurídica na vertente material da confiança, por referência a dois pressupostos essenciais:
à A afetação de expectativas, em sentido desfavorável, será inadmissível,
quando constitua uma mutação da ordem jurídica com que, razoavelmente, os
destinatários das normas dela constantes não possam contar; e ainda
à Quando não for ditada pela necessidade de salvaguardar direitos ou interesses
constitucionalmente protegidos que devam considerar-se prevalecentes (deve recorrer-
se, aqui, ao princípio da proporcionalidade, explicitamente consagrado, a propósito dos
direitos, liberdades e garantias, no n.º 2 do artigo 18.º da Constituição).

176
MAFALDA BOAVIDA
1º ANO TB12

E considerou que “os dois critérios enunciados (…) são, no fundo, reconduzíveis a
quatro diferentes requisitos ou ‘testes’. Para que haja lugar à tutela jurídico-constitucional
da ‘confiança’ é necessário que:
® O legislador tenha encetado comportamentos capazes de gerar nos privados
‘expectativas’ de continuidade;
® Tais expectativas devem ser legítimas, justificadas e fundadas em boas razões;
® Os privados devem ter feito planos de vida tendo em conta a perspetiva de
continuidade do ‘comportamento’ estadual;
® Não ocorram razões de interesse público que justifiquem, em ponderação, a não
continuidade do comportamento que gerou a situação de expectativa.

“Mesmo que se conclua pela premência do interesse público na mudança e


adaptação do quadro legislativo vigente, ainda assim é necessário aferir, à luz de
parâmetros materiais e axiológicos, se a medida do sacrifício é ‘inadmissível,
arbitrária e demasiado onerosa’”.

Não se trata, aqui, em rigor de um limite à retroatividade da lei, mas de uma tutela
da confiança na estabilidade do regime jurídico aplicável, que, em parte, constitui um
limite à aplicação imediata da lei nova às situações em curso e se relaciona com o
princípio da continuidade das situações jurídicas, examinado em seguida. Para além
disto, não se encontram ainda claramente definidos os contornos de um limite
constitucional genérico à retroatividade de certas leis, e o ponto suscita certa
controvérsia na doutrina.

Princípio da continuidade das situações jurídicas


Teoria dos direitos adquiridos

Um segundo princípio geral que, em minha opinião, vigora no Direito Inter-temporal,


é o princípio da continuidade das situações jurídicas.
Este princípio evoca, naturalmente, a teoria dos direitos adquiridos, que é uma das
teorias clássicas em matéria de aplicação da lei no tempo.
Esta teoria, já formulada na Idade Média, foi desenvolvida por autores como
SAVIGNY e GABBA. Segundo esta teoria, a lei nova tem de respeitar os direitos

177
MAFALDA BOAVIDA
1º ANO TB12

validamente adquiridos à sombra da lei antiga. Já não se impõe o respeito das simples
expectativas. Segundo esta teoria, a lei nova tem de respeitar os direitos validamente
adquiridos à sombra da lei antiga. Já não se impõe o respeito das simples expectativas.

Esta teoria foi, entretanto, objeto de larga crítica, que incidiu designadamente, na
dificuldade em delimitar o conceito de “direito adquirido” e na insuficiência da teoria
quanto aos efeitos dos direitos adquiridos.

Além disso, a conveniência deste critério também é discutível. Decorre do


anteriormente exposto que, relativamente a situações duradouras, não se pode partir do
princípio de que, quaisquer efeitos que se devam produzir durante a vigência da lei nova
estão subtraídos à sua aplicação.

Por princípio da continuidade das situações jurídicas entendo a proposição jurídica


segundo a qual a destruição ou modificação essencial das situações constituídas ao
abrigo da lei antiga tem de firmar-se em valores e princípios supraordenados às
exigências gerais de segurança jurídica e à confiança dos sujeitos jurídicos – quando
objetivamente justificada – na permanência da situação existente.

Não se trata agora, como na teoria dos direitos adquiridos, de formular uma
proposição geral da qual se pretendem deduzir todas as soluções sobre a aplicação na
lei do tempo. É apenas um aspeto do problema – o do efeito da sucessão de leis sobre
a continuidade das situações em curso – que é contemplado pelo princípio.

Este princípio da continuidade das situações jurídicas fundamenta-se no valor da


segurança jurídica e no princípio da confiança na relação dos cidadãos com a legislação
que, conforme ilustra a jurisprudência constitucional, pode ser visto como uma
concretização do princípio do Estado de Direito.
Este princípio não se opõe, em absoluto, à destruição ou modificação essencial das
situações preexistentes. Mas só as admite quando não haja uma confiança
objetivamente justificada e merecedora de proteção na permanência das situações, por
parte dos seus titulares, ou quando tal seja exigido por valores e princípios gerais
supraordenados relativamente às exigências da segurança jurídica e da proteção da
confiança.

178
MAFALDA BOAVIDA
1º ANO TB12

Neste sentido parece apontar a jurisprudência constitucional portuguesa nos termos


atrás referidos.

O princípio da continuidade das situações jurídicas tem, a meu ver, natureza material.
Por certo ele estabelece um nexo íntimo com o princípio da irretroatividade, que, como
vimos, tem natureza conflitual.
O princípio da continuidade das situações jurídicas pressupõe, em primeiro lugar, a
exclusiva aplicação, à constituição de situações jurídicas, da lei em vigor no momento
da ocorrência dos factos constitutivos.
Mas o conteúdo do princípio da continuidade das situações jurídicas, não se refere à
determinação do âmbito de aplicação no tempo das leis em sucessão, mas à
permanência das situações jurídicas.
É um princípio que diz respeito à regulação direta, pela lei nova, das situações
constituídas ao abrigo da lei antiga.

A teoria do facto passado

A teoria que na atualidade é mais amplamente aceite em matéria de aplicação da lei


no tempo é a do facto passado.
Segundo esta teoria retroagir é agir sobre o passado; e como o passado se
consubstancia em factos é agir sobre factos passados.
A retroatividade da lei não pode significar uma alteração do passado. Por
conseguinte, quando se fala em agir sobre o passado, trata-se de aplicar a lei nova a
factos passados. A irretroatividade significa, pois que aos factos passados se aplica a lei
antiga e aos factos novos a lei nova.
Claro que a teoria do facto passado, quando formulada com esta singeleza, não
resolve todos os problemas. Os factos de que aqui se trata são factos jurídicos, isto é,
factos a que a lei associa efeitos jurídicos. O problema do âmbito de aplicação da lei no
tempo subsiste relativamente aos efeitos jurídicos.

Mas a teoria do facto passado traz consigo um avanço importante relativamente à


teoria dos direitos adquiridos. O problema da aplicação da lei no tempo não é colocado,
em primeira linha, com referência a direitos, mas a factos. Torna-se um processo mais
analítico.

179
MAFALDA BOAVIDA
1º ANO TB12

E esta perspetiva é também metodologicamente mais correta porque o tempo é uma


dimensão da realidade fáctica.
Os elementos de conexão com que operam as normas de conflitos de Direito Inter-
temporal estabelecem-se diretamente com os factos, e não com realidades jurídicas,
como os direitos ou outras situações jurídicas.
Em todo o caso, na moderna ciência jurídica, a teoria do facto passado é
complementada pelo princípio da aplicação imediata da lei nova às situações em curso.
O art. 12.º CC consagra esta combinação da teoria do facto passado com o princípio
da aplicação imediata da lei nova às situações em curso, na formulação que lhe foi dada
por ENNECCERUS/NIPPERDEY.

Segundo esta doutrina, há que distinguir duas questões diferentes: aquilo que uma
lei prescreve sobre a sua aplicação no tempo e, em caso de dúvida, qual o âmbito de
aplicação no tempo que lhe deve ser atribuído. Isto significa que, na falta de declaração
expressa do legislador, a delimitação do âmbito recíproco de aplicação no tempo da lei
antiga e da lei nova é vista como um problema de interpretação da lei nova.
O texto do art. 12.º exprime claramente este enfoque interpretativo, ao formular as
regras que constam da 2.ª parte do n.º 1 e do n.º 2 como regras interpretativas, mediante
a referência a uma “presunção”, no n.º 1, e mediante a utilização da expressão “em caso
de dúvida”, no n.º 2.

Em minha opinião este enfoque interpretativo merece algumas reservas.


A interpretação das normas materiais da lei pode fornecer elementos importantes,
designadamente pelo esclarecimento da occasio legis e da intenção reguladora do
legislador histórico.
Mas tenho as maiores dúvidas que, da interpretação de normas materiais, se possa
retirar dirctamente uma norma de conflitos de leis. O estabelecimento de uma norma de
conflitos de leis requer um raciocínio conflitual, em que intervêm os fins e as técnicas
próprias do Direito Intertemporal. Isto transcende necessariamente a interpretação das
normas materiais.

180
MAFALDA BOAVIDA
1º ANO TB12

Regras de conflitos gerais do art. 12.º CC

Para resolver os conflitos de leis no tempo deve, em primeiro lugar, atender-se às


normas de conflitos especiais contidas na lei nova.
A lei nova pode atribuir a si própria força retroativa. Isto é expressamente previsto
pelo art. 12.º/1/2.ª parte CC.
Por exemplo, uma lei que proíbe certas cláusulas pode declarar-se aplicável aos
contratos celebrados antes da sua entrada em vigor.

Claro é que a lei ordinária tem de respeitar os limites gerais e específicos à


retroatividade que decorrem da Constituição. Esta retroatividade tem de resultar
inequivocamente seja de declaração expressa do legislador seja de norma implícita
estabelecida com recurso aos relevantes critérios de interpretação.

Na falta de regra de conflitos especial, há que recorrer às regras de conflitos gerais.


Em primeiro lugar deverá atender-se às regras gerais que são privativas do ramo do
Direito em causa. Só na falta ou perante a insuficiência destas cabe recorrer às regras
de conflitos gerais que decorrem do art. 12.º CC.

Segundo este Direito de Conflitos geral, em caso de dúvida deve entender-se que a
lei não é retroativa. É o que decorre da intervenção do princípio da irretroatividade no
quadro dos critérios teleológico-objectivos de interpretação.

No que toca aos atos jurídicos isto encontra-se estabelecido expressamente no art.
12.º/2/1.ª parte. Com efeito, este preceito determina que “Quando a lei dispõe sobre as
condições de validade substancial ou formal de quaisquer factos ou sobre os seus
efeitos, entende-se, em caso de dúvida, que só visa os factos novos”.

Presume-se que a retroatividade é meramente ordinária, isto é, que são ressalvados


os efeitos já produzidos pelos factos que a lei retroativa se destina a regular. Neste
sentido dispõe o art. 12.º/1/2.ª parte CC. Por conseguinte, a retroatividade agravada ou
quase extrema tem de resultar de declaração expressa ou de uma norma implícita
estabelecida com base nos relevantes critérios de interpretação.

181
MAFALDA BOAVIDA
1º ANO TB12

Por exemplo, a lei nova que venha fixar uma taxa de juro máxima inferior à até aí
praticada e se declara aplicável aos contratos anteriores, não atinge, salvo
demonstração em contrário, os juros já vencidos no passado.

Quando a lei não se atribui a si mesma força retroativa é ainda necessário determinar
o seu âmbito de aplicação com respeito às situações em curso.

A este respeito distingue-se conforme a lei dispõe sobre factos ou dispõe diretamente
sobre o conteúdo de situações jurídicas abstraindo dos factos que lhes deram origem.

Comecemos por examinar os casos em que a lei dispõe sobre factos.


Segundo o princípio da irretroatividade, entende-se que a lei que dispõe sobre factos
ou sobre os seus efeitos só é aplicável aos factos novos, isto é, que ocorram depois da
sua entrada em vigor. Já vimos que isto se encontra expressamente consagrado, com
respeito aos atos jurídicos, no art. 12.º/2/1.ª parte.
Assim, por exemplo, a lei que venha estabelecer o regime aplicável a um determinado
tipo de contrato, quando não atribua a si própria força retroativa, só é aplicável à validade
e aos efeitos dos contratos celebrados após a sua entrada em vigor.
Observe-se que a lei que dispõe sobre um ato jurídico pode regular só os seus
pressupostos e os seus requisitos de validade e eficácia, ou só os seus efeitos, ou
ambos. Vejamos quais as consequências disto para as situações em curso.

A constituição destas situações continua a ser apreciada segundo a lei antiga, porque
é um efeito desencadeado por um facto que se produziu na vigência desta lei.

Mas como a lei nova é aplicável aos factos novos, se ocorrer um facto que seja,
segundo esta lei, transmissivo, modificativo ou extintivo, a situação jurídica transmite-se,
modifica-se ou extingue-se.
Assim, por exemplo, as normas que sejam aplicáveis aos requisitos de validade do
casamento, só se aplicarão, se outra coisa não resultar inequivocamente da própria lei,
aos casamentos celebrados depois da sua entrada em vigor.
Mas as normas sobre divórcio e separação aplicar-se-ão, sob a mesma condição,
aos casamentos celebrados antes da sua entrada em vigor (pelo menos quando os

182
MAFALDA BOAVIDA
1º ANO TB12

factos em que se fundamenta o divórcio ou a separação ocorrerem depois da sua entrada


em vigor).

Voltemo-nos agora para os casos em que a lei dispõe diretamente sobre o conteúdo
de uma situação jurídica, abstraindo do facto que lhe deu origem.
O princípio da irretroatividade já nada nos diz sobre o âmbito de aplicação destas
normas no tempo, isto é, sobre a questão de saber se elas se aplicam só às situações
que se venham a constituir no futuro ou também às situações preexistentes.

Deve entender-se, em caso de dúvida, que a nova lei é aplicável ao conteúdo de


todas as situações da categoria referida que devam produzir efeitos na vigência da nova
lei.
Abrange, portanto, tanto o conteúdo das situações que se venham a constituir como
o das situações em curso.

É o que resulta do princípio da aplicação imediata da lei nova às situações em curso.


Neste sentido dispõe o art. 12.º/2/2.ª parte: “quando dispuser diretamente sobre o
conteúdo de certas relações jurídicas, abstraindo dos factos que lhes deram origem,
entender-se-á que a lei abrange as próprias relações já constituídas, que subsistam à
data da sua entrada em vigor”. Relações jurídicas é aqui empregue em sentido amplo,
por forma a abranger quaisquer situações jurídicas.
Por exemplo, se uma lei vem estabelecer certas normas sobre o conteúdo da
propriedade horizontal, é de entender, se outra coisa não resultar inequivocamente da
própria lei, que se aplica quer aos direitos de propriedade horizontal que se venham a
constituir no futuro, quer aos que já existam à data da entrada em vigor da lei.

A distinção entre as normas que dispõem sobre factos e normas que dispõem
diretamente sobre o conteúdo de situações jurídicas abstraindo dos factos que lhes
deram origem nem sempre se deixará traçar sem dificuldades. Esta distinção não se
deve traçar apenas em função do teor literal das proposições jurídicas em causa. Haverá
também que atender à matéria em causa.

O conteúdo de certas situações jurídicas é modelado, principalmente, pelos factos


constitutivos (também designados títulos constitutivos). É o que se verifica,

183
MAFALDA BOAVIDA
1º ANO TB12

designadamente, com as obrigações contratuais. Assim, as normas sobre esta matéria


são geralmente de entender como normas que dispõem sobre factos.

Quando estas normas dispõem sobre o conteúdo da relação obrigacional é de partir


do princípio que não abstraem do facto constitutivo, que é o contrato.
De onde decorre que, se outra coisa não resultar inequivocamente da lei em causa,
ela só é aplicável aos direitos e obrigações gerados por contratos celebrados depois da
sua entrada em vigor.

Já o conteúdo de outras situações jurídicas é fixado exclusiva ou principalmente pela


lei. É o que se verifica com as situações jurídico-familiares, como o casamento e as
relações entre pais e filhos, com os estados jurídicos gerais, como a maioridade ou a
interdição, e com os direitos reais. As normas que dispõem sobre o conteúdo destas
situações ou qualidades jurídicas abstraem, normalmente, dos factos que lhes dão
origem.
De onde decorre que, se outra coisa não resultar inequivocamente da lei em causa,
estas normas são aplicáveis quer às situações que se constituam no futuro quer às
situações preexistentes (situações em curso).

Para traçar esta distinção pode ainda ser necessário atender a outras considerações,
caso a dúvida subsista.
A ratio legis pode fornecer indicações relevantes a este respeito: a prossecução pela
nova lei de valores fundamentais de caráter ético, económico, etc., constitui um
argumento a favor da sua aplicação às situações preexistentes.
Outra consideração a ter em conta, e que se pode relacionar com anterior, é a
duração das situações em causa: é de partir do princípio que o conteúdo das situações
de longa duração fica submetido à lei nova.

Em contrapartida, a circunstância de a nova lei vir introduzir modificações essenciais


no conteúdo de determinada categoria de situações, pode pesar no sentido de excluir a
sua aplicação às situações em curso, mesmo quando tal aplicação decorra do critério
geral exposto. Isto pode fundamentar-se no princípio da continuidade das situações
jurídicas.

184
MAFALDA BOAVIDA
1º ANO TB12

A distinção conforme a lei dispõe sobre factos ou dispõe diretamente sobre o


conteúdo de situações jurídicas abstraindo dos factos que lhes dão origem deve ser
referida a normas e complexos normativos e não a leis. A mesma lei pode conter normas
e complexos normativos de ambos os tipos. É o que se verifica com o Código Civil.
É ainda de observar que esta distinção tem por consequência, relativamente às
situações em curso, um fracionamento entre constituição e conteúdo. As normas sobre
constituição da situação, contidas na lei nova, só são em princípio aplicáveis às situações
futuras. Por isso a constituição das situações em curso continua a ser apreciada segundo
a lei antiga.

As normas que disponham diretamente sobre o conteúdo são aplicáveis às situações


em curso. Por isso o conteúdo da situação passa a ser definido pela nova lei.
Poderão surgir algumas dificuldades no caso dos efeitos que pressupõem uma
pluralidade de factos distanciados no tempo.

Vejamos alguns princípios de solução.


Quando um dos factos constitui o fundamento real do efeito jurídico e o outro facto
surge como mera condição ou termo, cuja verificação desencadeia o efeito jurídico, será
decisivo o momento da produção do primeiro.
Assim, por exemplo, um negócio jurídico condicional está, em princípio, submetido à
lei em vigor no momento da sua celebração, e não à lei em vigor no momento da
verificação da condição.

Noutros casos, que são a regra, será em princípio aplicável a lei em vigor no momento
em que se completar o preenchimento da previsão normativa, isto é, em que se tiver
verificado o último dos factos pressupostos pela norma.
Assim, por exemplo, a sucessão hereditária será em princípio regida pela lei em vigor
no momento da morte e não pela lei em vigor no momento da constituição do vínculo de
parentesco.

185
MAFALDA BOAVIDA
1º ANO TB12

Leis sobre prazos


Previsões de realização continuada e de formação sucessiva

Nos n.ºs 1 e 2 do art. 297.º CC encontramos regras sobre a aplicação no tempo das
leis que estabelecem prazos.
“1. A lei que estabelecer, para qualquer efeito, um prazo mais curto do que o fixado
na lei anterior é também aplicável aos prazos que já estiverem em curso, mas o prazo
só se conta a partir da entrada em vigor da nova lei, a não ser que, segundo a lei antiga,
falte menos tempo para o prazo se completar.
“2. A lei que fixar um prazo mais longo é igualmente aplicável aos prazos que já
estejam em curso, mas computar-se-á neles todo o tempo decorrido desde o seu
momento inicial.”

O n.º 1 refere-se à hipótese de a lei nova encurtar o prazo. Nesta hipótese a lei nova
aplica-se aos prazos em curso, mas o novo prazo só se conta a partir do início da
vigência da nova lei.
Assim, por exemplo, se o prazo era de cinco anos, e depois de decorrido um ano
entra em vigor uma nova lei que estabelece um prazo de dois anos, contam-se dois anos
a partir da entrada em vigor da nova lei.

No entanto, quando o tempo que falta para se completar o prazo fixado pela lei antiga
for menos que o prazo fixado pela nova lei, aplica-se a lei antiga.
Assim, por exemplo, se o prazo era de cinco anos, e depois de decorridos quatro
anos entra em vigor uma nova lei que estabelece um prazo de dois anos, o prazo
continua a contar-se segundo a lei antiga.

A hipótese de a nova lei alongar o prazo é contemplada pelo n.º 2. Nesta hipótese
determina-se a aplicação da lei nova, mas computando-se todo o tempo decorrido
durante a vigência da lei antiga.
Por exemplo, se o prazo fixado pela lei antiga era de dois anos, e quando havia
decorrido um ano entrou em vigor uma lei nova, que fixa o prazo em cinco anos, é este
o prazo que se aplica, mas, para o efeito, conta o ano já decorrido durante a vigência da
lei antiga.

186
MAFALDA BOAVIDA
1º ANO TB12

A previsão das normas sobre prazos é de realização continuada. O problema da sua


aplicação no tempo é um aspeto particular da problemática da aplicação no tempo das
normas dotadas de previsões de realização continuada ou de formação sucessiva.

As previsões de realização continuada são aquelas que se reportam a factos cuja


verificação se prolonga no tempo. Também se fala, neste contexto, de factos
continuados.
As previsões de formação sucessiva são aquelas que se reportam a uma pluralidade
de factos que devem ocorrer em momentos sucessivos. Estes factos também podem ser
vistos como elementos de um facto complexo, que se designará então por facto de
produção sucessiva.
Já decorre do exposto no número anterior que a teoria do facto passado tem sido
entendida no sentido de o momento relevante, para a aplicação da lei no tempo, ser
aquele em que se completa o preenchimento da previsão de realização continuada ou
de formação sucessiva.

Só não é assim quando o facto posterior constitui uma mera condição ou termo.

Segundo este entendimento mais corrente, se o preenchimento se completou na


vigência da lei anterior temos uma situação conclusa; se esta situação não esgotou todos
os seus efeitos na vigência da lei anterior, temos uma situação em curso.
Em princípio, será aplicável a lei nova enquanto disponha diretamente sobre o
conteúdo da situação, abstraindo do facto constitutivo, mas a sua constituição continuará
a ser apreciada segundo a lei antiga. Há ainda que atender ao princípio da continuidade
das situações jurídicas.

Se o preenchimento da previsão não se completou na vigência da lei anterior, temos


uma situação inconclusa. Neste caso, decorre do referido entendimento que é
exclusivamente aplicável a lei nova.

Pode suceder que a lei nova não atribua relevância jurídica ao facto continuado ou
de produção sucessiva que em parte se verificou na vigência da lei antiga. Por exemplo,
a lei antiga previa a prescrição aquisitiva de um determinado direito, que a lei nova não

187
MAFALDA BOAVIDA
1º ANO TB12

prevê. Se o direito não chegou a ser adquirido segundo a lei antiga também não pode
ser adquirido face à lei nova. O problema morre aí.
É mais frequente, porém, que a lei antiga e a lei nova atribuam relevância a factos da
mesma espécie. É o que se passa com uma sucessão de leis sobre prazos: o facto
decurso do tempo tanto releva perante a lei antiga como perante a lei nova.

Coloca-se então a questão de saber qual a relevância, perante a lei nova, da


verificação parcial do facto na vigência da lei antiga.
Nem a teoria do facto passado nem o princípio da continuidade das situações
jurídicas fornecem orientação para a resolução deste problema. Para a sua resolução
afigura-se antes decisiva a seguinte consideração: se tanto a lei antiga como a lei nova
valoram juridicamente o facto, e no mesmo sentido, negar relevância jurídica à
verificação parcial do facto durante a vigência da lei antiga constituiria uma contradição
valorativa.

Em suma, as situações inconclusas também são relevantes, quando a lei nova liga
um efeito jurídico a factos continuados ou de produção sucessiva da mesma espécie dos
previstos pela lei anterior. Neste caso, os factos ou a parte do facto ocorridos na vigência
da lei anterior terão o valor que lhes for atribuído pela lei nova. Por outras palavras, tudo
se passará como se esses factos tivessem ocorrido na vigência da lei nova.

O entendimento que acabo de sufragar encontra-se consagrado com respeito à


sucessão no tempo das leis sobre prazos.
No entanto, no caso de o prazo fixado pela lei nova ser mais curto há um desvio aos
princípios de solução expostos, porque o encurtamento do prazo poderia ter efeitos de
surpresa que são contrários à segurança jurídica. Por exemplo, mediante o
encurtamento de um prazo de prescrição (extintiva) um direito poderia ficar
automaticamente prescrito com a entrada em vigor da lei nova.
A ratio do art. 297.º/1 CC também abrange os casos em que a lei antiga não
estabelecia qualquer prazo e ele veio a ser estabelecido pela lei nova. Assim, por
exemplo, no caso de a lei nova vir estabelecer um prazo para o exercício do direito, que
a lei antiga não continha, o prazo só se deve contar a partir do início da vigência da lei
nova

188
MAFALDA BOAVIDA
1º ANO TB12

As mesmas soluções são aplicáveis quando a lei nova altera o momento a partir do
qual um prazo se começa a contar. Se o momento inicial é antecipado aplica-se o art.
297.º/1 CC. Se é retardado aplica-se o art. 297.º/2 CC.
Por exemplo, tendo o novo art. 122.º CC antecipado a maioridade para os 18 anos
completos, os prazos que deveriam contar-se a partir do momento da maioridade só se
computam a partir da entrada em vigor da nova lei.
Segundo BAPTISTA MACHADO, o art. 297.º não será aplicável aos prazos cujo
decurso não desencadeia, de per si, a produção de qualquer efeito jurídico, como será
o caso dos prazos pressupostos por presunção legais ou de que depende o exercício de
faculdades legais. Assim, por exemplo, a lei que encurta o tempo necessário para a
conversão da separação em divórcio, será aplicável imediatamente e sem mais.

O tempo decorrido ao abrigo da lei antiga releva segundo o autor como “facto
pressuposto” e não como facto constitutivo.
Para BAPTISTA MACHADO e TEIXEIRA DE SOUSA serão casos de retro conexão
da lei nova e não de retroatividade. Numa primeira aproximação parece-me que a
diferença relativamente à retroatividade está em que a lei nova toma em conta o facto
ocorrido na vigência da lei antiga, mas não lhe associa, por si, efeitos jurídicos.
Na linha do sugerido por BAPTISTA MACHADO e TEIXEIRA DE SOUSA, parece que
o art. 297.º também não será aplicável aos prazos supletivos estabelecidos em matéria
de negócios jurídicos, designadamente prazos de caducidade que podem ser alterados
por vontade das partes. A aplicação no tempo das leis que alteram estes prazos fica em
princípio sujeita às regras de conflitos gerais fixadas para os negócios jurídicos.

Leis interpretativas

A propósito da classificação das regras jurídicas já procedemos à caracterização das


regras interpretativas. Como então se disse a regra interpretativa é a que se limita a fixar
o sentido juridicamente relevante de uma proposição jurídica.
As regras interpretativas relacionam-se com a interpretação autêntica, que já
estudámos. A lei que realiza a interpretação autêntica é sempre uma lei interpretativa,
mas poderá haver regras interpretativas que, por provirem de fonte hierarquicamente
inferior à fonte interpretada, não realizam uma interpretação autêntica.

189
MAFALDA BOAVIDA
1º ANO TB12

Quando se coloca o problema da aplicação no tempo das leis interpretativas têm-se


em vista aquelas que realizam a interpretação autêntica.

O art. 13.º CC/1 estabelece que “A lei interpretativa integra-se na lei interpretada,
ficando salvos, porém, os efeitos já produzidos pelo cumprimento da obrigação, por
sentença passada em julgado, por transação, ainda que não homologada, ou por actos
de análoga natureza”.

Que se quer significar por integração da lei interpretativa na lei interpretada?


Por integração da lei interpretativa na lei interpretada quer-se significar que a lei
interpretativa se aplica aos mesmos factos e situações que a lei interpretada. Tudo se
passa como se a lei interpretativa tivesse sido publicada na data em que o foi a lei
interpretada. Ao aplicar-se a factos que ocorreram antes da sua entrada em vigor ela vai
valorar condutas que se podem ter baseado noutra das interpretações possíveis.

Parece, por isso, preferível o entendimento segundo o qual a lei interpretativa é


retroativa (OLIVEIRA ASCENSÃO).
É uma retroatividade agravada, por que só respeita, dos efeitos já produzidos pelos
factos passados, aqueles que tiverem um título que lhes dê especial reconhecimento.
Estes títulos são o caso julgado, o cumprimento da obrigação, a transação, isto é, o
contrato pelo qual as partes previnem ou terminam um litígio mediante recíprocas
concessões (art. 1248º/1 CC), e atos de análoga natureza.

Por que razão são ressalvados estes efeitos?


No caso do cumprimento da obrigação podemos dizer que, em princípio, a situação
esgotou os seus efeitos antes da entrada em vigor da lei interpretativa.
Nos restantes casos temos situações que se tornaram certas e pacíficas antes da
entrada em vigor da nova lei, já através de decisão judicial, já através de um acordo das
partes destinado a prevenir ou resolver um litígio.

É a esta luz que teremos de interpretar a expressão “atos de análoga natureza”.


Serão então de natureza análoga – como assinalam PIRES DE LIMA/ANTUNES
VARELA e BAPTISTA MACHADO – todos os atos que importem a definição ou
reconhecimento expresso do Direito, como é o caso da desistência – que é o abandono

190
MAFALDA BOAVIDA
1º ANO TB12

da pretensão, pelo autor de uma ação – e da confissão do pedido – que é o


reconhecimento, pelo réu, da pretensão formulada pelo autor.
No entanto, se a lei interpretativa for favorável ao desistente ou confitente este pode
revogar a desistência ou confissão não homologadas pelo tribunal. É o que decorre do
n.º 2 do art. 13.º.
Para os referidos autores serão ainda de natureza análoga “de uma maneira geral,
os factos extintivos, tais como a compensação e a novação”. Aqui haverá que atender a
uma analogia com a extinção da obrigação pelo cumprimento. Esta analogia é de afirmar
relativamente a outros atos que constituem causas de extinção das obrigações, como a
compensação e a novação.

A compensação é o meio de o devedor se liberar da obrigação por extinção


simultânea do crédito equivalente de que disponha sobre o credor (arts. 847.º e segs.
CC). A novação é a extinção duma obrigação mediante a constituição de uma nova
obrigação em substituição da antiga (arts. 857.º e segs. CC). Mas já não é líquido que
se possa afirmar a analogia relativamente a quaisquer factos extintivos de situações
jurídicas.

Sucede por vezes que o legislador qualifica como interpretativa uma lei que é
substancialmente inovadora. O sentido desta qualificação é, normalmente, o de atribuir
retroatividade agravada à lei em questão.
Embora esta prática seja criticável do ponto de vista de técnica legislativa, o intérprete
deve acatar a retroatividade da lei, contanto que esta seja constitucionalmente permitida
e não contrarie lei ordinária hierarquicamente superior.

As determinações constitucionais de irretroatividade não podem ser contornadas


mediante a qualificação de uma lei como interpretativa. O intérprete tem de controlar o
caráter interpretativo da lei. Assim, por exemplo, uma lei ordinária não pode, sob pretexto
de interpretação, vir alargar retroativamente o âmbito de aplicação de um tipo de crime
e muito menos criar retroativamente novos tipos de crime.

Enquanto as regras do art. 12.º CC estão formuladas como regras interpretativas, a


regra do art. 13.º/1 CC está formulada de modo precetivo, que poderia sugerir a
vinculação do próprio legislador. Mas isto não é inteiramente exato. Parece-me que o

191
MAFALDA BOAVIDA
1º ANO TB12

legislador tanto pode estabelecer que a lei interpretativa não é retroativa ou só é


ordinariamente retroativa como, dentro dos limites constitucionais, que a lei interpretativa
tem retroatividade quase extrema. A regra do art. 13.º, enquanto regra de conflitos geral,
só será aplicável na falta de regra de conflitos especial.
De resto, uma vez que o art. 13.º é uma disposição ordinária, só se sobreporá às
normas sobre aplicação no tempo de fonte hierarquicamente inferior à lei formal.

Concretização das regras gerais


Negócios jurídicos e obrigações

É frequentemente defendido que à formação, validade e eficácia dos negócios se


aplica a lei em vigor ao tempo da sua celebração.
Mas talvez se justifique uma posição mais cautelosa, que tenha em conta a grande
diversidade dos negócios jurídicos e, designadamente, o grau muito variável em que o
seu conteúdo é legalmente conformado.
Será, por conseguinte, aconselhável distinguir os negócios jurídicos obrigacionais,
reais, jurídico-familiares, sucessórios, etc., e atender à amplitude da liberdade de
estipulação permitida.
Por outro lado, são frequentes as disposições de Direito Inter-temporal segundo as
quais um ato inválido à face da lei antiga só poderá ser anulado ou declarado nulo se
não satisfizer os requisitos estabelecidos pela lei nova. Veja-se os arts. 13.º, 14.º e 22.º
do DL n.º 47344, que aprovou o Código Civil, relativos ao casamento, aos atos praticados
pelos cônjuges e aos testamentos, respetivamente.

BAPTISTA MACHADO fala a este respeito de leis confirmativas.


BAPTISTA MACHADO e OLIVEIRA ASCENSÃO vêm aqui a expressão de um
princípio mais geral.

Para BAPTISTA MACHADO, poderá ser possível salvar a validade do ato celebrado
durante a vigência da lei antiga, por aplicação da lei nova, mesmo que esta lei não
disponha expressamente nesse sentido. Seria, no entanto, de exigir que a interpretação
da lei nova como confirmativa tenha um mínimo de apoio no texto legal e que a sua
aplicação não prejudique o interesse de uma contraparte ou de terceiros.

192
MAFALDA BOAVIDA
1º ANO TB12

OLIVEIRA ASCENSÃO refere-se a um princípio “no sentido do aproveitamento dos


atos praticados quando perante a lei nova esses atos seriam válidos”.

TEIXEIRA DE SOUSA distingue conforme o negócio jurídico estiver ou não a produzir


efeitos no momento da entrada em vigor da lei nova. Só no primeiro caso é que se
justificaria aplicar retroativamente a lei nova mais favorável à validade do negócio.

Como já observei, é seguro que as normas sobre contratos obrigacionais são, em


princípio, de entender como normas que dispõem sobre factos. Mesmo que se trate de
normas que regulam o conteúdo de relações contratuais, este conteúdo determina-se,
principalmente, pelos factos constitutivos.
É, todavia, possível que uma lei venha dispor diretamente sobre o conteúdo de
relações contratuais, abstraindo dos factos dos factos constitutivos. Por exemplo, uma
lei que proíba certas cláusulas contratuais; uma lei que venha alterar o regime do
arrendamento urbano.
Mas creio que, para chegar a esta conclusão, na falta de disposição de Direito
Transitório especial, o intérprete terá sempre de demonstrar que é intenção legislativa
atingir os contratos celebrados antes da entrada em vigor da lei.

Esta demonstração está naturalmente facilitada nos casos em que a lei incide sobre
relações contratuais, como o arrendamento urbano, que são de longa duração; ou em
que a lei prossiga em primeira linha fins de política económica, social, etc.
Nalguns casos esta aplicação da lei nova aos contratos em curso decorre
inequivocamente da ratio legis. Assim quando a lei nova tenha por objetivo reequilibrar
as relações contratuais que, em razão de perturbações políticas e sociais ou de
circunstâncias económicas imprevisíveis, viram a sua economia interna perturbada.

As normas sobre obrigações involuntárias são geralmente de entender como normas


que dispõem sobre factos. Por conseguinte, a responsabilidade extracontratual será
regulada pela lei vigente ao tempo da ocorrência do facto gerador de responsabilidade.

193
MAFALDA BOAVIDA
1º ANO TB12

Direitos Reais

Por aplicação das regras gerais, atrás expostas, a lei nova que disponha sobre o
conteúdo do direito real é aplicável aos direitos reais adquiridos na vigência da lei antiga,
mas a aquisição continua a ser apreciada segundo a lei antiga.
Assim, por exemplo, para determinar o conteúdo de um direito de propriedade,
adquirido antes da entrada em vigor do Código Civil vigente, é aplicável este Código
Civil.
Mas a lei reguladora da aquisição é a lei vigente ao tempo da ocorrência do facto
aquisitivo. Se a propriedade foi adquirida por contrato, será aplicável a lei em vigor ao
tempo celebração do contrato.

Embora, em princípio, as normas que regulam o conteúdo de um direito real


abstraiam do facto constitutivo, é de admitir a possibilidade de certas normas disporem
sobre o conteúdo do direito real enquanto efeito do facto constitutivo. Isto é concebível,
designadamente, com aqueles elementos do conteúdo dos direitos reais que podem ser
modelados contratualmente.

A verificar-se esta hipótese, os elementos do conteúdo do direito real que são


dominados pelo facto constitutivo continuarão submetidos à lei em vigor no momento da
constituição.
Relações de Família

As regras gerais sobre situações em curso aplicam-se também aos estados de


família. O estado de casado, adotado, etc., é um efeito produzido ao abrigo da lei em
vigor no momento da celebração do casamento ou da sentença de adoção. Portanto, a
lei posterior não atinge, salvo retroatividade, a constituição do estado. Mas a lei nova é
aplicável ao conteúdo do estado.
Assim, por exemplo, a lei que vem estabelecer requisitos de forma do casamento
diferentes dos formulados pela lei anterior só é aplicável aos casamentos doravante
celebrados. Mas as normas da lei nova relativas aos direitos e deveres dos cônjuges são
aplicáveis aos casamentos celebrados durante a vigência da lei antiga.

194
MAFALDA BOAVIDA
1º ANO TB12

A fixação do regime de bens do casamento é um efeito produzido segundo a lei em


vigor ao tempo da celebração da convenção antenupcial e, na sua falta, ao tempo da
celebração do casamento. Por isso, a nova lei não pode, sem retroatividade, vir alterar
o regime de bens convencional ou supletivo.
Como a definição do regime de bens depende, em regra, da vontade dos nubentes,
as regras da lei nova relativas ao conteúdo do regime de bens só são, em princípio,
aplicáveis aos regimes de bens fixados depois da sua entrada em vigor. Esta solução foi
seguida pelo Direito Transitório especial contido no diploma que aprovou o Código Civil
(art. 15.º).
Sucessões por morte

A sucessão por morte é um conjunto de efeitos jurídicos desencadeados pela morte


do autor da sucessão. Isto quer se trate de sucessão legal ou de sucessão voluntária,
isto é, da sucessão regulada por um negócio jurídico, maxime um testamento. As regras
gerais levam, por conseguinte, à aplicação da lei em vigor no momento da abertura da
sucessão, que é o momento da morte do autor da sucessão.
Assim, se depois da abertura da sucessão, mas antes da partilha, surge uma lei que
altera as regras da sucessão legal, esta sucessão continua a reger-se pela lei em vigor
ao tempo da abertura da sucessão.

Do exposto não decorre que a formação e validade formal do testamento estejam


submetidas à mesma lei que regula a sucessão. As normas sobre a formação e validade
do testamento são normas que dispõem sobre factos e, por conseguinte, salvo
retroatividade, só seriam aplicáveis aos testamentos feitos durante a sua vigência.

Sucede, porém, que o conteúdo do testamento diz respeito a efeitos que só se


produzem com a abertura da sucessão e, por isso, o testamento tem de ser
substancialmente válido perante a lei reguladora da sucessão.
Já a formação e a validade formal são apreciadas segundo a lei em vigor ao tempo
da feitura do testamento. Por isso, se houver uma sucessão de leis entre a feitura do
testamento e a abertura da sucessão, a formação e a validade formal do testamento
continuam a ser apreciadas segundo a lei antiga.

195
MAFALDA BOAVIDA
1º ANO TB12

Direito Penal

Já assinalei que nesta matéria há que ter em conta a proibição constitucional de


retroatividade da incriminação e das medidas de segurança.
Mas do art. 29.º/4 CRP também decorre a aplicação retroativa das leis penais de
conteúdo mais favorável ao arguido. Esta determinação é concretizada pelos n.ºs 2 e
segs. do art. 2.º CP.
N.º 2: “O facto punível segundo a lei vigente no momento da sua prática deixa de o
ser se uma lei nova o eliminar do número de infracções; neste caso, e se tiver havido
condenação, ainda que transitada em julgado, cessam a execução e os seus efeitos
penais”.
N.º 3: “Quando a lei valer para um determinado período de tempo, continua a ser
punível o facto praticado durante esse período”.
N.º 4: “Quando as disposições penais vigentes no momento da prática do facto
punível forem diferentes das estabelecidas em leis posteriores, é sempre aplicado o
regime que concretamente se mostrar mais favorável ao agente; se tiver havido
condenação, ainda que transitada em julgado, cessam a execução e os efeitos penais
logo que a parte da pena que se encontrar cumprida atinja o limite máximo da pena
prevista na lei posterior”.

Neste caso a nova lei não descriminaliza, mas altera o regime legal aplicável. Aplica-
se também retroativamente a lei nova mais favorável.

Direito Processual

Neste domínio vigora, segundo o entendimento tradicional, a regra geral da aplicação


imediata da lei nova. Quer isto dizer que a lei processual nova é aplicável aos processos
relativos a factos ocorridos antes da sua entrada em vigor e, mesmo, aos processos já
em curso.

No entanto, há autores, como BAPTISTA MACHADO e CASTRO MENDES, que


entendem que não vigora, no domínio processual, um princípio específico, e que se
aplicam as regras gerais contidas nos arts. 12.º e 13.º CC.

196
MAFALDA BOAVIDA
1º ANO TB12

Se olharmos aos factos processuais – e não aos factos relativos à relação material
controvertida –, podemos dizer que aquilo que se designa por aplicação imediata da lei
processual nova se reconduz, em princípio, à regra geral segundo a qual a lei dispõe
sobre os factos ocorridos durante a sua vigência.

Assim, quanto à forma dos atos processuais e do processo, dispõe o art. 136.º CPC:
“1 – A forma dos diversos atos processuais é regulada pela lei que vigore no momento
em que foram praticados.
“2 – A forma do processo aplicável determina-se pela lei vigente à data em que a
ação é proposta”.

A fixação da forma do processo pode ser vista como um efeito que é ligado ao facto
propositura da ação, pela lei vigente ao tempo da sua ocorrência.

Também relativamente à competência, o art. 38.º da Lei de Organização do Sistema


Judiciário (L n.º 62/2013, de 28/8) determina que a competência se fixa no momento em
que a ação se propõe (n.º 1) e que são irrelevantes as modificações de Direito, exceto
se for suprimido o órgão a que a causa estava afeta ou lhe for atribuída competência de
que inicialmente carecia para o conhecimento da causa (n.º 2). Isto deve ser conjugado
com o art. 61.º CPC, que ao admitir que a lei nova seja aplicável, em matéria de
competência, aos processos pendentes, parece supor o efeito retroativo da lei nova.

Claro que nada disto prejudica as regras de conflitos especiais contidas na lei nova.
É o caso das regras contidas nos arts. 5.º a 7.º da L n.º 41/2013, de 26/6, que aprovou o
novo CPC.

Aplicação da Lei no Espaço

Aspetos gerais

Importa começar por duas advertências.


Em primeiro lugar, o problema da aplicação do Direito no espaço transcende
claramente o problema da aplicação da lei no espaço. Os problemas de aplicação no

197
MAFALDA BOAVIDA
1º ANO TB12

espaço tanto dizem respeito às normas legais como às normas consuetudinárias ou


jurisprudenciais.
Em segundo lugar, não há uma disciplina jurídica que tenha por objeto todos os
problemas de aplicação do Direito no espaço, que constitua o correlativo do Direito
Intertemporal.
Os problemas de aplicação no espaço colocam-se por forma muito diversa no Direito
privado e no Direito público e também se registam diferenças pronunciadas entre os
diferentes ramos do Direito público.
No que toca ao Direito privado, há muito que se consagrou o Direito Internacional
Privado como disciplina específica.

Alguns autores falam de um Direito Público Internacional, que se ocuparia,


designadamente, dos problemas de aplicação do Direito público a situações
transnacionais. Mas este Direito Público Internacional ainda não se desenvolveu como
disciplina jurídica autónoma e unitária e, dada a diversidade dos problemas colocados
pelos diferentes ramos do Direito público, é duvidoso que se venha a registar uma
evolução nesse sentido.

Limitando agora as nossas considerações ao Direito privado, trata-se de determinar,


perante uma situação que está em contacto com a esfera social de mais de um Estado
(uma situação transnacional), qual o Direito aplicável. Esta tem sido a principal missão
desempenhada pelo Direito Internacional Privado, através das normas de conflitos de
leis no espaço.

Claro que, se nos colocarmos na perspetiva do âmbito de aplicação no espaço de


uma lei portuguesa, o problema que nos surge é o da delimitação das situações que, em
função dos laços existentes com o Estado português, são abrangidas pela lei. É isto que
se deve entender por âmbito de aplicação no espaço da lei.

Podemos dizer, em primeiro lugar, que uma lei da Assembleia da República ou do


Governo regula, pelo menos na falta de legislação das Regiões Autónomas, todas as
situações, previstas na hipótese das suas normas, que são meramente internas, isto é,
que se inserem exclusivamente na esfera social do Estado português.

198
MAFALDA BOAVIDA
1º ANO TB12

Em segundo lugar, esta lei regula uma parte das situações transnacionais que, pelo
menos em princípio, apresentam um laço relevante com o Estado português.

Mas quais são estas situações?


É possível uma resposta aproximada através de uma interpretação, em abstrato, da
norma de conflitos.
Por exemplo, o art. 25.º CC manda aplicar a lei pessoal à capacidade das pessoas.
A lei pessoal dos indivíduos é, em princípio, a lei da sua nacionalidade (art. 31.º/1 CC).
Daqui pode retirar-se que, em princípio, as normas portuguesas sobre capacidade
genérica de gozo e de exercício são aplicáveis aos portugueses.

Mas quando se trata de resolver o problema da regulação de uma situação da vida,


é mais apropriado partir desta situação, para encontrar o Direito que a deve regular, que
partir da lei, para determinar qual o seu âmbito de aplicação no espaço. E isto por razões
que serão melhor compreendidas quando estudarem a disciplina de Direito Internacional
Privado.

A par do Direito Internacional Privado e de um eventual Direito Público Internacional


já sabemos que existe o Direito Interlocal, que tem por objeto situações que estão em
contacto com diferentes circunscrições territoriais, que embora integradas no território
do mesmo Estado, dispõem de complexos normativos privativos.
Em todos estes casos, as normas que servem para a determinação do Direito
aplicável são, como já sabem, remissivas ou de regulação indireta. São normas de
conflitos de leis no espaço.
A grande maioria das normas de conflitos de leis no espaço são, como vimos
anteriormente, normas de conexão. Mas também pode haver normas de conflitos de leis
no espaço que não sejam normas de conexão (por exemplo, art. 33.º/2 da Lei de
Arbitragem Voluntária de 1986, já revogado).

Direito Interlocal

Como decorre do anteriormente exposto, Direito Interlocal é aquele que regula


situações que estão em contacto com diferentes circunscrições territoriais de um mesmo
Estado em que vigoram complexos normativos privativos.

199
MAFALDA BOAVIDA
1º ANO TB12

No Direito português ainda não existe um Direito Interlocal propriamente dito. Mas,
como foi anteriormente assinalado, o exercício das competências legislativas das
Regiões Autónomas pode conduzir à formação de uma ordem jurídica complexa, em que
os conflitos de leis interlocais surgirão inevitavelmente, e terão de ser resolvidos por
regras de conflitos interlocais.
A construção destas regras de conflitos poderá encontrar pontos de apoio
importantes nas normas constitucionais que regulam essas competências legislativas.

Direito Internacional Privado

Ao estudarmos os ramos do Direito caracterizámos o Direito Internacional Privado


como o ramo do Direito que regula situações transnacionais mediante um processo
conflitual.

Concurso de Regras e de Complexos Normativos

Modalidades de concurso

Quando uma situação, ou um aspeto de uma situação, preenche a previsão de duas


ou mais normas vigentes, temos um concurso de normas. O concurso também se pode
verificar entre complexos normativos, por exemplo, quando o mesmo facto seja
suscetível de gerar responsabilidade civil e responsabilidade criminal.
A matéria do concurso de normas foi desenvolvida principalmente no Direito Penal.
Também há estudos importantes sobre o concurso de normas em Direito Internacional
Privado, designadamente, entre nós, o estudo Da Qualificação em Direito Internacional
Privado, de ISABEL DE MAGALHÃES COLLAÇO.

A sistematização seguida no Direito Penal, e também no estudo que acabei de


mencionar, distingue concurso aparente, concurso ideal e concurso real.
O concurso pode ser aparente: dos nexos que intercedem entre as normas ou
complexos normativos em presença resulta, no plano da interpretação, que só uma das
normas ou um dos complexos normativos é efetivamente aplicável.
São assim referidos os nexos de especialidade, subsidiariedade e consumpção.

200
MAFALDA BOAVIDA
1º ANO TB12

Os nexos de especialidade e de subsidiariedade já foram atrás estudados a propósito


do sistema jurídico (posição adotada, n.º 137).

O nexo é de consumpção quando a tutela do valor por uma norma absorve a tutela
do valor por outra norma.
Por exemplo, no caso de furto qualificado pela introdução ilegítima numa habitação
aplica-se a norma que pune o furto qualificado (art. 204.º/1/f C. Penal) mas já não a
norma que pune a violação do domicílio (art. 190.º C. Penal). O concurso ideal e o
concurso real são modalidades de concurso efetivo. A distinção entre eles é controversa.
Perante o nosso Direito Penal positivo são punidos do mesmo modo (art. 30.º C. Penal).

Doutrinalmente a diferença está em que no concurso ideal há só uma ação que atua
uma pluralidade de normas ao passo que no concurso real há uma pluralidade de ações
que atuam uma pluralidade de normas. Assim, se um tiro mata uma pessoa, fere outra
e destrói uma coisa, há um concurso ideal.
Em determinados Direitos Penais estrangeiros certos concursos ideais dão origem a
uma combinação das penas.
Algo de semelhante se verifica entre nós perante o art. 20.º do DL n.º 433/82, de
27/10, no caso de o mesmo facto constituir simultaneamente ilícito de mera ordenação
social e crime. Este preceito determina que o agente será punido a título de crime, sem
prejuízo da aplicação das sanções acessórias previstas para a contraordenação. Parece,
pois, haver uma combinação das sanções penal e contraordenacional.
Fora do Direito Penal já se distinguiu de outro modo o concurso ideal do concurso
real.
No Direito Privado, perante a diversidade das situações e dos institutos jurídicos que
podem estar em causa, dificilmente se concebe uma solução unitária para todas as
hipóteses de concurso ideal. No concurso real as normas ou complexos normativos em
presença são, em princípio, simultaneamente aplicáveis.

201
MAFALDA BOAVIDA
1º ANO TB12

Critérios de solução

Parece-me que as controvérsias sobre as modalidades de concurso e o seu regime


oriundas do Direito Penal têm um interesse muito relativo para a Teoria Geral do Direito.
Há algumas considerações de caráter mais geral, que também encontram aplicação
no Direito Privado, e que parecem ser mais importantes ao nível da Teoria Geral do
Direito.
A este respeito podemos distinguir conforme as consequências jurídicas das normas
ou complexos normativos em presença são ou não incompatíveis entre si.
Quando as consequências jurídicas das normas ou complexos normativos em
presença sejam incompatíveis entre si temos aqui um caso de contradição normativa, a
que já fiz anteriormente referência.

Se uma das normas em presença for hierarquicamente superior à outra a contradição


resolve-se dando prevalência à primeira.

Se forem do mesmo nível hierárquico pode ainda ser possível dar prevalência a uma
delas.
É o que se verifica quando entre elas existe uma relação de especialidade ou de
subsidiariedade: nestes casos aplica-se, respetivamente, a norma especial ou a norma
principal.
Pelo menos no Direito Privado pode também surgir um nexo de alternatividade entre
normas. Nesta hipótese fica na dependência do interessado a atuação de uma ou outra
das normas em concurso. Por exemplo, perante o incumprimento definitivo de um
contrato por uma das partes, a outra parte pode optar entre a rescisão do contrato (art.
801.º/2 CC) e a pretensão de cumprimento (art. 817.º CC).

Na falta de uma das relações anteriormente referidas, verifica-se um dos seguintes


casos:
® Identidade das previsões normativas;
® Especialidade recíproca: há uma área de sobreposição das previsões das normas
ou complexos normativos em presença, mas há casos regulados por cada uma
das normas ou complexos normativos em presença que a outra não regula.

202
MAFALDA BOAVIDA
1º ANO TB12

Se há identidade de previsões normativas e uma das normas é anterior à outra não


há concurso, porque a norma mais recente revoga a anterior.
Já há concurso caso se trate de normas da mesma lei ou de leis que foram
simultaneamente publicadas.
Neste caso, bem como no de especialidade recíproca, a prevalência de uma das
normas em concurso pode ainda fundar-se numa hierarquia entre os valores ou
princípios que as normas em presença visam realizar.

Neste sentido podemos invocar o disposto no art. 335.º/2 CC, relativo à colisão de
direitos “Se os direitos forem desiguais ou de espécie diferente, prevalece o que deve
considerar-se superior”. Como assinalei anteriormente, podemos ver aqui a
manifestação de uma diretriz mais geral, que é também aplicável à ponderação de
valores e princípios.

Mas frequentemente não é possível estabelecer esta hierarquização e, por


conseguinte, resta concluir pelo surgimento de uma lacuna de colisão, porque as normas
se anulam mutuamente.

Num segundo grupo de casos não há incompatibilidade entre as consequências


jurídicas das regras em presença. Nesta hipótese, não deve sem mais supor-se que as
regras são simultaneamente aplicáveis. Isto depende da intenção regulativa das normas
em presença e dos nexos que entre si estabelecem.

O nexo de especialidade não exclui necessariamente a aplicação simultânea das


normas em presença, quando as consequências jurídicas por elas desencadeadas forem
compatíveis entre si. É necessário averiguar se a intenção regulativa subjacente à norma
especial é a de complementar, modificar ou substituir-se à norma geral. Só se a intenção
for a de modificar ou substituir a norma geral é que a especialidade afasta a aplicação
da norma geral.

Passemos agora às normas em relação de subsidiariedade. Por definição a norma


ou complexo normativo principal e a norma ou complexo normativo subsidiário nunca
são simultaneamente aplicáveis.

203
MAFALDA BOAVIDA
1º ANO TB12

Quanto à determinação da relação de subsidiariedade aplicam-se as considerações


anteriormente formuladas. No caso de especialidade recíproca, quando se verifica uma
situação a que são aplicáveis ambas as normas ou complexos normativos, torna-se de
novo necessário averiguar se devem ser aplicados simultaneamente ou se só um deles
deve ser aplicado.
E esta indagação também tem de se fazer à luz da intenção regulativa das normas
ou complexos normativos em presença.
Enfim, no que se refere ao nexo de consumpção, há exemplos claros no Direito Penal,
dos quais já foi referido um. No Direito Privado também há nexos de consumpção, mas
o tema é mais controverso.
Pode ver-se, designadamente, sobre a relação de consumpção entre títulos de
aquisição da prestação, a dissertação de TEIXEIRA DE SOUSA – O Concurso de Títulos
de Aquisição da Prestação.

Ignorância da Regra e Erro

A ignorância e a má interpretação da regra

Suponha-se que uma pessoa que vive no campo vem à cidade e atravessa uma rua,
em que existem passadeiras, fora delas, na suposição de que isso é permitido. Ficará
sujeita à sanção que se encontra estabelecida para essa conduta?
Estabelece-se aqui uma regra geral de irrelevância da ignorância ou má interpretação
do Direito vigente. Esta regra pode exprimir-se, sinteticamente, pela seguinte fórmula: “a
ignorância da lei não aproveita a ninguém” (INOCÊNCIO GALVÃO TELLES).

A palavra “lei” deve aqui ser entendida na mais ampla aceção de Direito. Com efeito,
também se deve considerar, em princípio, irrelevante a ignorância ou má interpretação
de uma regra consuetudinária ou jurisprudencial.

Daqui decorre que o erro sobre a ilicitude de uma conduta, não exclui, em princípio,
a sanção estabelecida para essa violação da ordem jurídica. Se uma pessoa realiza uma
conduta que supõe ser lícita, por desconhecer a norma que proíbe essa conduta ou
impõe uma conduta diferente, fica, em princípio, sujeita às mesmas consequências
jurídicas que a pessoa que atuou com a consciência de violar a ordem jurídica.

204
MAFALDA BOAVIDA
1º ANO TB12

Esta regra fundamenta-se, a meu ver, na própria vinculatividade que caracteriza o


Direito e na cognoscibilidade das regras jurídicas que é assegurada aos sujeitos jurídicos
pela publicação, no que toca à lei e às decisões judiciais com força obrigatória geral, e
pela normal observância, no que toca ao costume.
Claro que isto não prejudica as regras sobre erro na formação da vontade, que são
estudadas na disciplina de Teoria Geral do Direito Civil.
Este erro tanto pode ser de facto como de Direito. Por exemplo, quando alguém
compra uma máquina para exercer uma indústria que é proibida por lei, desconhecendo
esta proibição. O erro, tanto de facto como de Direito pode conduzir, quando se
verifiquem certos pressupostos previstos na lei, à anulação do contrato.

Aqui o erro pode relevar porque vicia a vontade. Não está em causa o cumprimento
de um dever de conduta e, consequentemente, a aplicação de uma sanção por uma
conduta ilícita, mas a validade do negócio jurídico. Não se trata, por conseguinte, de um
desvio à regra geral consagrada no art. 6.º CC.
A regra geral da irrelevância da ignorância e má interpretação do Direito conhece,
todavia, desvios, a que se fará alusão no número seguinte.

Casos de relevância do erro sobre a ilicitude

O erro sobre a ilicitude pode, pelo menos, ser relevante em Direito Penal.

Com efeito, o n.º 1 do art. 17.º C. Penal determina que “Age sem culpa quem atuar
sem consciência da ilicitude do facto, se o erro lhe não for censurável”.
Por conseguinte, o erro sobre a ilicitude não censurável é uma causa de desculpa.
Como a sanção penal pressupõe sempre a culpa, a verificação desta causa de desculpa
afasta a aplicação da pena.
O n.º 2 do mesmo artigo determina que “Se o erro for censurável, o agente é punido
com a pena aplicável ao crime doloso respetivo, a qual pode ser especialmente
atenuada”.
Por conseguinte, o erro censurável sobre a ilicitude não afasta o dolo, mas constitui
uma circunstância suscetível de atenuar a culpa que permite uma atenuação

205
MAFALDA BOAVIDA
1º ANO TB12

extraordinária facultativa da pena. A relevância do erro sobre a ilicitude na


responsabilidade civil é discutida.

Para uma parte da doutrina (designadamente ANTUNES VARELA), o erro sobre a


ilicitude da conduta afasta o dolo, isto é, o comportamento primariamente dirigido à
violação de uma norma jurídica. Todavia, se o erro for culposo, isto é, resultar da omissão
da devida diligência, verifica-se negligência, que é normalmente suficiente para
fundamentar a responsabilidade civil. O erro não censurável afastará a responsabilidade
civil.

Para outra parte da doutrina (designadamente MENEZES CORDEIRO) para que haja
dolo não é necessária a consciência da ilicitude. Basta que a conduta seja dirigida à
lesão do bem tutelado pela norma jurídica.
O erro sobre a ilicitude tem uma relevância marginal. Afora os casos de
inimputabilidade, o erro sobre a ilicitude só releva para afastar o dolo quando o agente
atua na convicção da existência de um dever ou como causa de exclusão da culpa
quando da sua irrelevância “derivem resultados perfeitamente chocantes” que
configurem um caso de desculpabilidade.

Noutros autores (designadamente OLIVEIRA ASCENSÃO) encontram-se indicações


que poderiam sugerir a irrelevância do erro sobre a ilicitude neste domínio.
Não aprofundarei este ponto que constitui matéria de Direito das Obrigações.

Parece que também se deve admitir um desvio à regra do art. 6.º CC com respeito
às leis que determinem a sua entrada em vigor no dia da publicação. Vimos
anteriormente que isto é possível, apesar do disposto no art. 2.º/1 da Lei n.º 74/98, com
respeito a leis da Assembleia da República, decretos-leis do Governo e decretos
legislativos regionais.
Se nesse dia alguém pratica um ato que só passou a ser ilícito com a entrada em
vigor dessa lei parece que, em princípio, não lhe pode ser aplicada a respetiva sanção
quando esta pressuponha a culpa do agente.

206

Você também pode gostar