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LICENCIATURA EM RELAÇÕES INTERNACIONAIS

Ciência Política
2023/2024
1º semestre

Controlo de fronteiras: a metamorfose da imagem colonialista

11/01/2024

Andreia Pinto Martins


Nº2023211893
Número de palavras: 1449
Docente: Fernanda Alves
LICENCIATURA EM RELAÇÕES INTERNACIONAIS

Visa este ensaio compreender a natureza, contexto, e implicações do controlo de


fronteiras imposto em vários países da União Europeia, como ação anti-terrorista e medida
de contenção de crises migratórias, mediante a notícia publicada pela Agência Lusa a 17 de
Novembro de 2023 e com base nas contribuições de Benedict Anderson em Comunidades
Imaginárias, Aimé Cesaire em Discurso Sobre o Colonialismo, e Daniela Postorello, em
Comunidade, nação e nacionalismo numa perspetiva cultural, procurando avaliar a sua
legitimidade e validez, dado um enquadramento teórico adequado.

A notícia da Agência Lusa relata como pelo menos 11 países europeus


negligenciam o princípio da livre circulação na União Europeia, regressando ao controlo de
fronteiras que, embora seja ocasionalmente reinstaurado, só é permitido em situações de
emergência e requer autorização prévia da Comissão Europeia, sob a crença de que a
medida é fundamental para impedir a infiltração terrorista provinda do Médio Oriente, e
para combater as crescentes tensões nos centros de acolhimento de refugiados e
requerentes de asilo.

A associação de comunidades de refugiados de guerra a uma força terrorista


emergente transporta em si uma conotação fortemente nacionalista e xenófoba,
alimentada pela narrativa parcial ilustrada pelos media ocidentais – convertendo as vítimas
das políticas externas ocidentais agressivas, fortemente fomentadas pelo militarismo
americano, em forças de agressão, aos olhos da opinião pública, sem que se dê um contacto
real entre membros das comunidades residentes europeias e as comunidades migrantes.
Tome-se, por exemplo, a abordagem de Benedict Anderson em Comunidades Imaginárias,
que Daniella Postorello estuda em Comunidade, nação e nacionalismo numa perspetiva
cultural, quanto à natureza fictícia das nações e nações-estado: para Anderson, uma
comunidade imaginada distingue-se de uma real ao não se basear no contacto direto entre
membros (em parte por, pragmaticamente, não poder fazê-lo, dada a mais elevada
densidade populacional ou extensão territorial). Sob este pressuposto, infere-se ainda que
qualquer comunidade superior em dimensão a uma vila ou aldeia é forçosamente
imaginada, já que é impossível que exista familiaridade entre todos os seus membros.

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Assim, para Anderson, uma Nação é apenas a construção social da essência de uma
comunidade e do que ela representa, imaginada por pessoas que se percebem como parte
dessa mesma construção:

Essencialmente, eu argumentei que a possibilidade em si de imaginar a nação só surgiu


historicamente quando, e onde, três conceitos culturais fundamentais, todos eles de grande antiguidade,
perdessem o seu poder axiomático na mente dos homens. O primeiro foi a ideia de que uma particular
linguagem de escrita oferecia acesso privilegiado à verdade ontologicamente situada, precisamente por que
tal linguagem era uma parcela inseparável desta verdade.
O segundo foi a crença que a sociedade seria naturalmente organizada ao redor e sob potestades
- i.e. monarcas que eram pessoas à parte de outros seres humanos e que governavam por alguma forma de
deliberação cosmológica. (…)
O terceiro foi uma conceção de temporalidade em que a cosmologia e a história eram
indistinguíveis, e a origem tanto do mundo quanto dos homens era essencialmente idêntica. Combinadas,
essas ideias enraizaram firmemente as vidas dos homens na natureza das coisas, dando certo significado
para as fatalidades cotidianas da existência (sobretudo, para a morte, a perda e a servidão) e oferecendo,
de diversas formas, redenção delas. (Anderson, 2008)

Assim, as comunidades que integram tanto residentes nativos como requerentes


de asilo e refugiados de guerra são também elas comunidades imaginárias – e, por
associação, também a nacionalidade e o nacionalismo são produtos culturais específicos,
transportáveis para uma abrangente variedade de outros terrenos sociais “para se
incorporarem e serem incorporados a uma variedade igualmente grande de constelações
políticas e ideológicas” - ou seja, o contacto abrupto e abrasivo de culturas entre si
diferenciadas é a força motriz suprema do nacionalismo popular, que é posteriormente
adotado pelos representantes e grupos de poder que o veiculam politicamente. Como
postulado por Benedict Anderson, os “nacionalismos oficiais” formalizaram-se apenas
depois do surgimento de nacionalismos populares, dada a sua natureza reativa – sendo
predominantemente demonstrados pelas elites de cada época dada a possibilidade de
marginalização nas comunidades populares. (Postorello, 2011)

Assim, e de uma forma quási-simbiótica, o caráter xenófobo do nacionalismo é-


lhe inerente. O cariz não-familiar das culturas exteriores, enfatizando-se particularmente

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o papel da língua, subtrai validez e legitimidade às comunidades não-nativas aos olhos das
comunidades locais, e nele se dá a génese da responsabilização errónea das comunidades
migrantes pelas desventuras do sistema político-económico em que se inserem.

É no sentido deste atrito cultural que se dá a adoção e transformação do discurso


nacionalista popular em discurso nacionalista “oficial”. O posicionamento governamental
hostil perante as comunidades migrantes é um reflexo, não só da resposta ao choque
intercultural intrínseco à comunidade em que os integrantes dos próprios órgãos oficiais
se inserem, e que, portanto, o experienciam, mas também da transmutação dos produtos
culturais específicos da comunidade para as constelações políticas e ideológicas referidas
por Benedict Anderson.

Importa também denotar, para além do seu caráter xenófobo e patriotista, o forte
hábito europeu quase culturalmente racista. A prática colonialista parece ter-se
transformado de uma agressão direta e com propósito extrativo até uma rejeição
diplomática da igualdade entre nações pré e pós-coloniais. Diz Aimé Cesaire em Discurso
sobre o Colonialismo:

Seria preciso estudar, primeiro, como a colonização se esmera em descivilizar o colonizador, em


embrutecê-lo, na verdadeira aceção da palavra, em degradá-lo, em despertá-lo para os instintos ocultos, para
a cobiça, para a violência, para o ódio racial, para o relativismo moral e mostrar que, sempre que há uma
cabeça degolada no Vietname e que em França se aceita, uma rapariguinha violada e que em França se aceita,
um Malgaxe supliciado e que em França se aceita, há uma aquisição da civilização que pesa com o seu peso
morto, uma regressão universal que se opera, uma gangrena que se instala, um foco de infeção que alastra
e que no fim de todos estes tratados violados, de todas estas mentiras propaladas, de todos estes prisioneiros
manietados e “interrogados”, de todos estes patriotas torturados, no fim desta arrogância racial encorajada,
desta jactância ostensiva, há o veneno instilado nas veias da Europa e o progresso lento, mas seguro, do
asselvajamento do continente. (…)

E aí está a grande censura que dirijo ao pseudo-humanismo: o ter, por tempo excessivo, apoucado
os direitos do homem, o ter tido e ainda ter deles uma conceção estreita e parcelar, parcial e facciosa e, bem
feitas as contas, sordidamente racista. (Cesaire, 1978)

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Embora Aimé se dirija diretamente à prática colonialista em Discurso sobre o


Colonialismo, afere-se o impacto da tradição colonialista sobre as políticas humanitárias
concedidas aos habitantes de estados pós-coloniais, dos quais provêm uma maioria
significativa dos indivíduos em situação de migração forçada: a relação
colonização=coisificação que Cesaire enfatiza dificilmente se terá esbatido, manifestando-
se a sua agressividade de uma forma diplomática ou, pelo menos, diplomaticamente aceite.
O que sucede, simbolicamente, em cargos de poder, a cada tomada de decisão racista, é a
metamorfose da tradição colonialista para a sua nova forma – a dominância de guerra.

Releve-se para análise a justificação do restabelecimento de controlos de


fronteira: a ameaça terrorista e a tensão Israel-Hamas posam, incontestavelmente,
“ameaças à ordem pública e à segurança interna”, e não é na veracidade destas alegações
que reside o cariz controverso da decisão: é, primeiramente, na ilegalidade da imposição
de controlo de fronteiras dentro do espaço Schengen, não se tratando de uma situação de
emergência e não havendo permissão explícita da Comissão Europeia e, em segundo lugar,
na motivação que a conduz – enfatizando, mais uma vez, a sua natureza racista, xenófoba,
pseudo-humanista e nacionalista, que voluntariamente ignora e repudia situações de crise
humanitária sob pretextos generalistas e vinculados a estereótipos ocidentalistas e
alimentados pelo ódio racial. Se o objetivo do controlo de fronteiras seria a redução da
ameaça terrorista, a restrição seria omnidirecional, e não exclusiva de todos as nações que
a Europa pós colonialista etiquetou como barbáricas, findado o período de vigência das
políticas extrativas colonialistas – e aqui se afere a pressão diplomática discriminatória que
seria, teoricamente, inexistente.

Assim, e estudada a natureza social e política expressa nas tomadas de decisão


dos países da União Europeia, o tom racista latente é apreciável. O passado histórico da
europa lança as bases anti-humanistas e degradantes de ódio racial sobre as quais
assentam presentemente as políticas protecionistas anti-migração. A passividade das
autoridades competentes por assegurar a manutenção das práticas que sustentam o bom
funcionamento da União Europeia, entre as quais o princípio de livre circulação dentro dos

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países integrantes do espaço Schengen, argumenta a favor da desumanização passiva dos


habitantes de, predominantemente, estados pós coloniais – a redução de um plural
extenso de comunidades a um estereótipo infundamentado e xenófobo, com o intuito a
desumanizar, de colocar abaixo da condição humana de outrem, é a demonstração máxima
da atual relação dominante/dominado num contexto político internacional.

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Bibliografia

ANDERSON, Benedict. Comunidades imaginadas: reflexões sobre a origem e a


difusão do nacionalismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

CÉSAIRE, Aimé. Discurso sobre o colonialismo. Lisboa: Sá da Costa,


1978.10/01/2013

PISTORELLO, Daniela. Comunidade, nação e nacionalismo numa perspectiva


cultural. Resenhas Online, São Paulo, ano 10, n. 111.03, Vitruvius, mar. 2011
<https://vitruvius.com.br/revistas/read/resenhasonline/10.111/3899. Acesso em mar.
2018>.

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