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Introdução ao Estudo do Direito II 1

Daniel Vieira Lourenço – Turma B

Sebenta de Introdução ao Estudo


do Direito II
Daniel Vieira Lourenço – Turma B
Regência: Prof.ª Doutor Luís Lima Pinheiro

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Daniel Vieira Lourenço – Turma B

Sistemática Jurídica Capítulo I


Ramos de Direito Ramos do Direito
O Direito Estadual pode ser entendido como uma árvore, ▪ Direito Internacional
que tem um tronco e diversos ramos: a árvore diz respeito à Público
ordem jurídica em geral; o tronco é composto pelos valores
▪ Direito da União Europeia
superiores e princípios gerais que são comuns a todos os
ramos de Direito; e os ramos são as varias partes ou frações ▪ Direito Internacional
do Direito, que se separam de acordo com as matérias que Privado;
visam regular (Direito Constitucional, Direito Penal, …).
▪ Ramos do Direito Público.
Cada ramo do Direito dedica-se a uma matéria especifica, Direito Constitucional,
que pode dizer respeito, por exemplo, à vida privada das Direito Administrativo e
pessoas, à sua relação com a Administração ou à Direito Penal;
criminalização de condutas, por isso cada um deles assume
▪ Direito Privado e Direito
um conjunto de caraterísticas próprias que justificam a sua
Civil;
autonomização.
▪ A classificação germânica
Um ramo do Direito é um subsistema normativo, formado dos ramos do Direito
por normas, princípios e nexos intrassistemáticos. É uma Civil. Remissão.
parte de um sistema normativo.
▪ Direito das Obrigações
Todo o subsistema carece de uma delimitação e ordenação.
▪ Direitos Reais ou Direito
A delimitação de um subsistema normativo resulta da das Coisas
determinação do seu objeto (que corresponde a um setor da
realidade social) e do conteúdo das proposições jurídicas ▪ Direito da Família
que o integram.
▪ Direito das Sucessões
O subsistema normativo é ordenado na medida em que as
normas que o integram são reconduzíveis a princípios
jurídicos gerais e estão articuladas entre si por nexos
intrassistemáticos.

Direito Privado e Direito Público

Esta distinção é fundamental na família romanogermânica.


Desempenha um papel menos importante na família da
Common Law (não é possível traçar distinção de forma tão
clara).

Por exemplo, o Direito Constitucional, Direito


Administrativo e o Direito Penal são ramos de Direito
Publico. O Direito das Obrigações, os Direitos Reais, o
Direito da Família e o Direito das Sucessões são ramos de
Direito Privado.

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Há diversos critérios de distinção, por vezes é difícil traçar a fronteira entre Direito Publico e
Direito Privado, como por exemplo, quanto ao Direito do Trabalho.

São avançados pela Doutrina 3 Critérios distintivos:

• Critério do Interesse

Atende ao caráter privado ou publico dos interesses prosseguidos. De acordo com este critério,
as normas de direito publico visam proteger os interesses públicos do Estado ou da comunidade,
e as normas de direito privado visam proteger os interesses próprios dos indivíduos.

Marcelo Caetano formula este critério de modo qualificado: “Para nós uma norma é de direito
publico quando diretamente protege o interesse publico (considerando-se interesses públicos os
que respeitam à existência, conservação e desenvolvimento da sociedade politica) e só
indiretamente beneficia interesses privados”.

A qualificação feita por Marcelo Caetano, alem das dificuldades que suscita quanto à aferição
do caráter direto da proteção de um interesse publico (dificuldade em perceber quando é que é
ou não protegido diretamente um interesse publico), não resolve todos os problemas.

▪ Há normas de Direito Público que têm por missão concretizar os interesses


dos particulares, por exemplo, as normas de processo civil visam regular os
processos que decorrem nos tribunais judiciais para a efetivação de direitos
civis comerciais ou laborais dos particulares;
▪ Há normas de Direito privado que têm por missão proteger certos interesses
públicos que fazem parte do âmbito da vida privada dos particulares, por
exemplo, a norma que dispõe que na falta de herdeiros os bens são entregues
ao Estado, tais normas são entendidas pelos civilistas como normas de direito
privado que prosseguem interesses públicos.
• Critério da Qualidade dos Sujeitos

De acordo com este critério, é Direito Público aquele que regula as relações em que ambos os
sujeitos, ou pelo menos um deles, são sujeitos públicos, isto é, o Estado ou outras pessoas
coletivas de Direito Público (como as autarquias locais ou os institutos públicos). Por outro
lado, é Direito Privado aquele em que ambos os sujeitos da relação são particulares, isto é,
indivíduos ou pessoas coletivas privadas (como as associações, fundações ou sociedades
privadas).

Crítica – Muitas vezes o Estado e os restantes entes públicos intervém na vida jurídica
exatamente nas mesmas condições em que intervêm os particulares, estando sujeitos à
aplicação de regras idênticas. Por exemplo, o Estado pode arrendar, vender ou comprar
bens tal como se de um particular se tratasse (por exemplo, a aquisição de veículos ou
de material de escritório).

Este critério exprime uma conceção estatutária do Direito Público: este Direito é formado pelas
normas privativas do Estado e de demais entes públicos.

A principal dificuldade suscitada por este critério tem que ver com a qualificação das relações
concretamente estabelecidas entre sujeitos públicos e particulares. Como determinar se o sujeito
público intervém na sua qualidade própria ou enquanto particular?

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• Critério da Posição dos Sujeitos ou da Subordinação (Oliveira Ascenção,


Castro Mendes, Teixeira de Sousa)

De acordo com este critério, não é a qualidade dos sujeitos da relação jurídica que serve de base
à distinção, mas é antes a posição que nela assumem que permite a separação entre Direito
Público e Privado. Assim, o direito publico é aquele em que o Estado e as pessoa coletivas de
direito publico intervêm na sua posição de supremacia, enquanto titulares de “jus imperii” ou
poderes de autoridade. Estes poderes de autoridade podem ser materiais (possibilidade de
utilizar a coerção material) e jurídicos (possibilidade de construir, modificar ou extinguir
unilateralmente a relação).

Por outro lado, já são de Direito Privado as relações em que intervêm os particulares, ou mesmo
o Estado e as outras pessoas coletivas de Direito Público, quando atuem em posição de
igualdade ou paridade com outros sujeitos.

Nestes termos, quando o Estado expropria um terreno ou cobra um imposto age munido de
poderes de autoridade, o que justifica a natureza publica das situações jurídicas em causa, mas
já quando compra um automóvel ou arrenda um prédio age em condições de igualdade/paridade
para com a outra parte, por isso, a natureza das relações envolvidas não pode deixar de ser
privada.

Crítica – Invoca-se, por um lado, que o Direito privado também disciplina algumas
relações em que os sujeitos se encontram numa situação de desigualdade jurídica (por
exemplo, no caso da filiação e das relações no trabalho, em que os filhos e os
trabalhadores se encontram subordinados, respetivamente aos pais e patrões), e, por
outro lado, que existem relações de direito público cuja concretização ocorre em
completa paridade (por exemplo, as convenções jurídicas entre municípios para a
prossecução de interesses comuns pertencem ao direito público, mas não se pode dizer
que haja nelas “jus imperii”).

• Combinação de Critérios

Alguns autores, como Freitas do Amaral, defendem um critério que resulta da combinação dos
anteriormente referidos, segundo o qual:

▪ É Direito Público o “sistema de norma que, tendo em vista a prossecução de um


interesse coletivo, confere para esse efeito a um dos sujeitos da relação jurídica poderes
de autoridade sobre o outro”.
▪ É Direito Privado “o sistema de normas que, visando regular a vida privada das pessoas,
não conferem a nenhuma delas poderes de autoridade sobre as outras, mesmo quando
pretendam proteger um interesse publico considerado relevante”.

Posição Adotada Pelo Professor Lima Pinheiro

Segundo o Professor Lima Pinheiro é necessário separar dois planos:

➢ Por um lado, a distinção entre estes dois ramos do Direito (distinção do Direito Publico
e do Direito Privado enquanto dois ramos do Direito), que é feita em função dos traços
dominantes que os caracterizam. Neste momento, cabe perguntar quais são as

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características que individualizam os subsistemas publico e privado no seio do sistema


jurídico. Pode-se atender a características formais e materiais:
▪ Formalmente atender-se-á às notas jurídico-positivas alheias ao conteúdo e
função, designadamente as definições legais e a delimitação da jurisdição
administrativa. Saliente-se a complementaridade entre Direito substantivo e o
Direito processual. A jurisdição administrativa é competente para apreciar
relações que são primariamente submetidas ao Direito administrativo.
▪ Materialmente há que salientar fundamentalmente duas notas:
• Uma nota estatutária, segundo a qual é o Direito público que regula a
organização do Estado e entes públicos autónomos e aquelas atividades
do Estado e entes públicos autónomos que, em virtude de valorações
específicas, estão submetidas a um regime específico;
• Uma nota ligada à subordinação ou à vinculação e contraposta à
autonomia. No Direito público prevalece a subordinação e no Direito
privado a paridade. Por isso a subordinação ou a paridade têm o valor
de um indício para a caracterização. Mas além da subordinação importa
também atender à vinculação à lei. A vinculação é uma característica
mais geral que a subordinação. O Direito privado é dominado por
decisões livres que se baseiam na autonomia negocial e nos poderes
conferidos aos titulares de direitos subjetivos. Estas decisões não estão
sujeitas obrigatoriamente a uma fundamentação. Em regra está excluído
o controlo judicial da justiça da motivação, exceto, por exemplo, com
respeito ao abuso de direito. Ao passo que o Direito público é
dominado pela decisão vinculada, fundamentada na lei (principio da
competência).
Assim, em geral, podemos dizer que o Direito privado é pautado pela
tendencial igualdade e pela liberdade e o Direito público pela
tendencial subordinação e pela vinculação à lei.

➢ Por outro, a inclusão de institutos ou relações em cada um destes ramos do Direito que,
sendo em parte uma questão de Direito positivo, é influenciada por fatores históricos.
“Direito público e Direito privado não se deixam separar tão precisamente como as
duas metades de uma maçã cortada” (Larenz). Estão engrenados um no outro e há
áreas de transição.
Por exemplo, o Direito do Trabalho embora tenda a ser encarado predominantemente
como um ramo do Direito privado também contém normas que devem ser consideradas
públicas (por exemplo, sobre a segurança e a higiene no trabalho).
A inserção deste ou daquele instituto ou relação no Direito público ou no Direito
privado é influenciada por razões históricas, de contiguidade e de mera oportunidade.
Por isso há também que distinguir a perspetiva de iure condendo/constituendo (direito
a constituir, nos moldes do direito que deve ser constituído) e de iure
condito/constituto (direito constituído, direito que vigora).
▪ De iure condendo, devem ser inseridos no Direito público os institutos ou
relações que dizem respeito à constituição, organização e atividade vinculada
do Estado e entes públicos autónomos.
▪ De iure condito, importa, em primeiro lugar atender à qualificação legal. Na
falta de qualificação legal, haverá que atender à existência de subordinação a

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um ente público e, na sua falta, de uma atuação de um ente público vinculada a


um regime específico privativo da sua atuação.

Relação Entre Direito Publico e Direito Privado

Muitos autores entendem que o Direito público é especial relativamente ao Direito privado. O
Direito privado seria Direito comum, aplicável à gestão privada da Administração e às questões
suscitadas por relações de Direito público que não sejam objeto de normas de Direito público.

Isto é em vasta medida exato. No entanto tem sido posto em causa que a relação entre Direito
público e Direito privado seja exatamente de especialidade.

Segundo a mais reputada doutrina administrativista, o Direito público é um Direito original cuja
especificidade decorre da razão de ser das entidades que organiza e cuja atividade dirige.

Este Direito seria original e não especial, por constituir um subsistema autónomo com os seus
próprios conceitos e princípios, razão por que em caso de lacuna não se pode recorrer
diretamente ao Direito privado.

Segundo a maioria dos administrativistas, será necessário averiguar primeiro da possibilidade de


integrar a lacuna por analogia e com recurso aos princípios gerais do ramo de Direito público
em causa.

Na doutrina mais recente também é defendido que o Direito privado só será subsidiariamente
aplicável à atividade administrativa de gestão pública na medida em que tal seja expressamente
determinado por normas de Direito Administrativo ou, quando muito, quando não se trate
apenas de princípios de Direito privado mas antes aplicáveis a todos os setores da ordem
jurídica.

Ramos do Direito

Direito Internacional Público

O adjetivo “público” é enganador. O Direito Internacional Público, além de regular as


relações entre Estados soberanos, entre organizações internacionais e entre aqueles e estas,
também contém normas que regulam relações claramente privadas, como é evidente no
caso das Convenções internacionais que unificam o Direito privado, por exemplo, o regime da
compra e venda internacional e de certos contratos de transporte internacional. Não se aplica,
por isso, a tradicional distinção entre Direito Publico e Privado.

Apesar da maioria dos sujeitos das relações Internacionais serem sujeitos públicos nem todos os
são. Sujeitos privados também podem ser sujeitos das relações internacionais.

Há vários critérios caracterizadores do Direito Internacional Público.

Mencione-se quatro:

▪ sujeitos (principalmente Estados e organizações internacionais),


▪ interesses (da comunidade internacional e dos Estados enquanto entes soberanos),
▪ fontes (processos específicos de criação de normas) – Tratados Internacionais;
Convenções; Costume Internacional
▪ comunidade internacional (de que será expressão jurídica).

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Posição do Regente:

De acordo com o professor Jorge Miranda, pode-se dizer que nenhum destes critérios é
suficiente, mas que cada um deles, e principalmente os critérios das fontes e da comunidade
internacional fornecem contributos que devem ser retidos.

O Direito Internacional Público caracteriza-se, em parte, pelas suas fontes específicas (elemento
formal), mas estas fontes exprimem a realidade da comunidade internacional (elemento
material).

A comunidade internacional começou por ser formada pelas relações recíprocas dos Estados e
de outras entidades para certos efeitos deles aproximadas, mas tende hoje a abranger certas
relações em que participam outras pessoas coletivas e indivíduos que por extravasarem das
fronteiras dos Estados ou dizerem respeito a direitos fundamentais tendem a ter relevância
internacional.

Direito da União Europeia

O Direito da União Europeia é a ordem jurídica da União Europeia.

Esta ordem jurídica é formada:

• Pelo Direito originário, constituído em primeira linha pelos Tratados instituintes,


inicialmente (ato que instituíram a União Europeia – tratado de Roma e tratados que o
alteraram), das Comunidades Europeias e, atualmente, da União Europeia
(designadamente o Tratado da União Europeia e o Tratado sobre o Funcionamento da
União Europeia), bem como todos aqueles que os modificaram, completaram ou
adaptaram);
• Pelo Direito derivado emanado dos órgãos da União Europeia (poder de aprovar normas
jurídicas que se destinam a todos os cidadãos da EU – regulamentos (caráter geral,
obrigatório em todos os seus elementos e aplicável diretamente na ordem jurídica)
diretivas (vincula apenas os Estados membros, fixa objetivos, deixando aos Estados a
liberdade para determinar a forma e os meios necessários para os aplicar, podem ter
efeito direto em determinados casos – Estado deve transpor a diretiva, em Portugal isso
só pode acontecer por lei ou decreto-lei – artigo 8/2 e 3 CRP), decisões, recomendações
e pareceres não vinculativos);
• Por outras fontes reconhecidas pela comunidade jurídica da União Europeia.

Direito Internacional Privado

O Direito Internacional Privado é o ramo do Direito que regula situações transnacionais por
meio de um processo conflitual.

Situações transnacionais são casos da vida prática que tem elementos relevantes de contacto
com mais de um elemento da vida internacional – DIP resolve conflito, diz quais são as normas
que vão ser aplicadas para resolver o caso concreto – contacto com mais de uma lei estadual.

Processo conflitual – não regula diretamente as situações – DIP só diz qual das lei se vai
aplicar, não é uma relação material, não diz como as pessoas se vão divorciar mas diz qual a
regra jurídica que vai ser aplicada, desempata, resolve o conflito.

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O DIP é composto maioritariamente por normas remissivas, não regulam diretamente o


problema, remetem para normas que vão resolver o caso.

A maior parte das normas de DIP são normas remissivas e de conexão (ligação a ordens
jurídicas estaduais é feita através de critérios que são elementos de conexão – a maneira pela
qual o DIP resolve o caso é através da conexão) e formais (resolvem conflito abstraindo das
consequências que resultam da aplicação de qualquer uma destas leis, não se preocupam com
as consequências práticas das leis).

Podemos dizer que o DIP compreende dois grandes blocos de normas

• Direito dos conflitos;


• Direito do Reconhecimento – Regula em que circunstâncias a decisão judicial do
tribunal estrangeiro pode produzir efeitos no nosso país, como sentenças emanadas por
tribunais estrangeiros podem produzir efeitos no nosso país;

Por exemplo, qual o regime ou regimes aplicáveis às relações conjugais entre um português e
uma espanhola que casaram e residem habitualmente em Roma. Será este regime ou regimes
definidos pela lei portuguesa, pela lei espanhola ou pela lei italiana?

Por situações transnacionais entendemos a situações que tendo um contacto relevante com mais
de um Estado soberano colocam um problema de determinação do Direito aplicável que deve
ser resolvido por este ramo do Direito.

O Direito Internacional Privado não regula diretamente estas situações, mas através de normas
de conflitos que remetem para o Direito aplicável. Por isso se diz que regula as situações
transnacionais por meio de um processo conflitual.

Por exemplo, do art. 25.º conjugado com o art. 31.º/1 CC resulta que o estado, a capacidade, as
relações de família e as sucessões por morte (que ainda não estejam sujeitas a Regulamentos
europeus) são, em princípio, regulados pela lei da nacionalidade dos interessados.

O Direito Internacional Privado, enquanto ramo do Direito, abrange não só este Direito de
Conflitos, mas também o Direito de Reconhecimento, que regula os efeitos que decisões
estrangeiras sobre situações “privadas” podem produzir na ordem jurídica portuguesa.

Perante a conceção dominante de Direito Internacional, o Direito Internacional Privado não


constitui, no seu conjunto, uma parte do Direito Internacional.

O Direito Internacional Privado também não é, no seu conjunto, Direito de fonte interna. O
Direito Internacional Público não se distingue do Direito Internacional Privado por um critério
de fontes.

O Direito Internacional Privado tanto tem fontes internas, como fontes internacionais, europeias
e transnacionais.

A diferença encontra-se antes no objeto destes ramos do Direito. O Direito Internacional


Privado distingue-se do Direito Internacional Público principalmente porque a grande
maioria das situações que regula (situações transnacionais) não tem relevância na ordem
jurídica internacional. Por outras palavras, o Direito Internacional Público não regula
imediatamente a grande maioria das situações transnacionais.

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É controversa a natureza pública ou privada do Direito Internacional Privado.

A posição mais ajustada às características atuais e às tendências de desenvolvimento deste ramo


do Direito é a de o considerar, fundamentalmente, como Direito privado.

Segundo a conceção dominante, é um Direito privado especial.

Ramos do Direito Público. Direito Constitucional, Direito Administrativo e Direito Penal

O Direito Constitucional é o ramo do Direito que rege o próprio Estado enquanto comunidade e
enquanto poder. Além das regras fundamentais da organização política, o Direito Constitucional
compreende hoje as normas sobre direitos fundamentais e a organização económica.

Ocupa um lugar central, pois é ele que carateriza o Estado como detentor do poder soberano.
Em Direito Constitucional estudam-se os princípios fundamentais de todos os ramos do Direito,
particularmente enquanto estes estão assumidos com quadros de estruturação interna (Oliveira
Ascensão).
Numa primeira aproximação, o Direito Administrativo é tradicionalmente encarado como o
ramo do Direito que regula a organização da Administração pública (em sentido orgânico) e
a atividade por ela realizada na sua qualidade própria.

Numa orientação mais recente (Marcelo Rebelo de Sousa/Salgado de Matos) o Direito


Administrativo é encarado de modo mais amplo como Direito da função administrativa. A
função administrativa é uma função do Estado em que se prosseguem os interesses
públicos correspondentes às necessidades coletivas prescritas pela lei (direito
administrativo integra interesses públicos mas que estão tipificados na lei – lei concreta –
lei diz o que a administração tem de fazer em cada caso).

Perante esta orientação mais ampla, o Direito administrativo não regula apenas a atuação da
Administração pública em sentido orgânico (orientação mais restrita – órgãos em sentido
próprio). Regula também:

- a atuação de todos os sujeitos jurídicos que exerçam a função administrativa;

- a atuação de qualquer sujeito jurídico quando e na medida em que se intersecione com


o exercício da função administrativa.

Assim entendido o Direito Administrativo abrange complexos normativos incidentes sobre três
realidades diferentes:

- a organização administrativa (quem são e como estão organizados);

- o funcionamento da Administração pública (processo de tomada de decisão – como


decidem);

- o relacionamento da Administração pública com os particulares (por exemplo,


através da figura dos contratos administrativos – uma das partes pertence
necessariamente à organização administrativa em sentido orgânico).

A tendência vai no sentido do desenvolvimento, a par do Direito Administrativo Geral, de


Direitos Administrativos especiais (Por exemplo, o Direito da Economia ou o Direito do
Ambiente, Direito do Urbanismo – são áreas especiais do Direito Administrativo).

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O Direito Penal é o ramo do Direito que define aquelas condutas que, por representarem uma
grave violação de bens jurídicos fundamentais, são consideradas crimes e desencadeiam a
aplicação de sanções punitivas.

Bens jurídicos fundamentais são, por exemplo, a vida, a integridade física, a honra, a segurança
pública, o património

A aplicação de um regra penal tem por pressuposto um crime. Nas um crime é uma ação: uma
ação ilícita e culposa, mas sempre uma ação.

A conduta penalmente relevante pode consistir numa ação ou numa omissão. A omissão é
criminalmente punível quando o sujeito tinha o dever de evitar o resultado previsto num tipo
legal de crime e não o fez (art. 10.º/2 C Penal).

A conduta pode ser intencional ou dolosa ou meramente negligente. No primeiro caso o agente
age com a intenção de realizar um facto que preenche um tipo de crime ou aceita a produção do
resultado como consequência necessária ou possível da sua conduta (art. 14.º C. Penal). No
segundo caso não há aceitação do resultado, mas este era evitável se o sujeito agisse com a
diligência devida (art. 15.º C. Penal).

A conduta negligente só é punível nos casos especialmente previstos pela lei (art. 13.º C. Penal).

Por força do princípio da legalidade ou da tipicidade, que domina o Direito Penal nos regimes
democráticos, ninguém pode ser sentenciado criminalmente senão em virtude de lei
anterior que declare punível a ação ou omissão, nem sofrer medida de segurança cujos
pressupostos não estejam fixados em lei anterior (art. 29.º/1 CRP e art. 1.º/1 e 2 C. Penal).

No entanto, o art. 29.º/2 CRP ressalva a punição, nos limites da lei interna, da conduta que no
momento da sua prática seja considerada criminosa segundo os princípios gerais de Direito
Internacional comummente reconhecidos.

Segundo a opinião dominante, o Direito Penal é Direito público. Em sentido contrário se


pronuncia Oliveira Ascensão, defendendo que os deveres penais são deveres dos indivíduos, o
facto de as penas serem aplicadas judicialmente não implica que o Direito penal regule a
atividade do Estado. A consideração das regras penais é essencialmente para permitir demarcar
a situação dos particulares. O professor Lima Pinheiro está de acordo com a opinião dominante
uma vez que o Direito Penal estabelece sanções punitivas para a violação de obrigações de
conduta sem lugar para a igualdade e a liberdade que caracterizam o Direito privado.

As sanções criminais são as penas e as medidas de segurança.

A pena criminal tem necessariamente um caráter de reprovação do agente e traz-lhe uma


privação de bens. Esses bens têm sido historicamente das mais variadas espécies:

▪ A vida;
▪ A integridade física;
▪ A liberdade;
▪ A honorabilidade;
▪ A integração social;
▪ O Património

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A privação da vida traduz-se na pena de morte, constitucionalmente banida. A limitação da


integridade física choca, hoje, os dados fundamentais da nossa civilização.

A privação da liberdade representa hoje a forma normal da pena criminal, procurando-se


embora ultrapassar os maus resultados que a prática tem acarretado. Não há prisão perpétua.

A privação ou limitação da honorabilidade verifica-se em casos como a repreensão.

A privação ou limitação da integração social dá-se em casos como o do exilio ou banimento,


hoje em geral proibidos e, noutro grau, a demissão do funcionário publico.

A privação do património ocorre, principalmente com a multa.

Outro tipo de reação penal é constituído pelas medidas de segurança

Dos crimes distinguem-se as contraordenações.

As contraordenações são factos ilícitos sancionados com uma coima ( art. 1.º/1 do DL nº
433/82). A coima é uma sanção pecuniária aplicada por órgãos administrativos e que não é
convertível em prisão no caso de não pagamento. Distingue-se assim da multa que é aplicada
por um tribunal e que é convertível em prisão no caso de não pagamento.

Os factos ilícitos punidos com coima – ilícitos de mera ordenação social – são aqueles que
embora violem injunções normativas não são suficientemente graves para terem relevância
penal.

Na doutrina é defendido, designadamente, que o Direito da Mera Ordenação social é um Direito


Penal especial ou um Direito Administrativo especial.

Direito Privado e Direito Civil

O Direito privado divide-se em Direito privado comum ou Direito civil e Direitos privados
especiais. O Direito Civil seria o tronco comum do direito civil especial aos quais os vários
ramos recorrem quando não têm uma solução. Direitos especiais são concretizações do direito
privado comum. Quando não tem resposta recorre-se ao Direito Privado Comum, ou seja, ao
Direito Civil.

Direito civil é direito privado comum. Este tronco comum é o núcleo, encontramos aqui uma
noção de vários conceitos (contrato, negócios jurídicos, direitos de personalidade) estes
conceitos vão ser utilizados em todos os outros ramos, só se vai buscar o direito privado comum
quando o direito especial não regule.

São conceitos fundamentais operativos que são uteis em muitas outras áreas do direito. Se
existirem lacunas recorre-se a estes princípios base que podem ser aplicados no âmbito dos
direitos especiais

DIREITO COMUM - possibilidade de influenciar subsidiariamente o direito publico, por


exemplo, relações contratuais com a administração publica. Direito privado é direito comum
porque ele próprio pode regular matérias de direito publico

A par do Direito civil surgem Direitos privados especiais: por exemplo, o Direito Comercial e o
Direito do Trabalho.

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Perante situações carecidas de regulação jurídica que não relevem do Direito público e não
sejam reguladas por Direitos privados especiais há que recorrer ao Direito Civil.

Tende a incluir-se no Direito civil regras gerais comuns a todos os ramos de Direito, privados e
públicos. É o que se verifica com parte do Livro I do CC, que compreende dois títulos, com as
epígrafes “Das leis, sua interpretação e aplicação” e “Das relações jurídicas”. São aplicáveis
transversalmente às grandes áreas, não é apenas teoria geral do direito civil, é uma teoria Geral
do direito.

No título I encontramos normas sobre normas, i.e., normas sobre fontes e normas sobre a
interpretação, integração e aplicação da lei, que são objeto da Teoria Geral do Direito e não só
da Teoria Geral do Direito Civil. Estas normas são estudadas na nossa disciplina.

No título I encontramos ainda normas de conflitos de Direito Internacional Privado, que são
estudadas na disciplina de Direito Internacional Privado.

O título II contém normas sobre as pessoas e as situações jurídicas em geral que, embora
pudessem corresponder a uma Teoria Geral do Direito, são reguladas na ótica do Direito Civil,
razão por que a sua aplicação ao Direito público pode exigir as necessárias adaptações. Esta
matéria é estudada na disciplina de Teoria Geral do Direito Civil.

A Classificação Germânica Dos Ramos do Direito Civil

Existem dois grandes sistemas jurídicos, a Common Law (baseada no precedente) e o sistema
romano-germânico (o direito romano foi recuperado pelos autores alemães e foi lhe dada uma
perspetiva de sistema). No sistema romano germânico existe uma sistematização do direito
próprio.

Por serem muito numerosos, os preceitos do Direito Civil devem ainda dividir-se por vários
sub-ramos.

Seguindo a classificação germânica das relações jurídicas, o Código Civil divide as situações
jurídicas em quatro categorias, que correspondem a outros tantos livros:

▪ Direito das Obrigações;


▪ Direitos Reais;
▪ Direito da Família;
▪ Direito das Sucessões.

Direito Das Obrigações

Consta principalmente do Livro II do CC. Mas também há muita legislação avulsa,


designadamente sobre certas modalidades contratuais. O Código civil não esgota a matéria civil,
há vários diplomas extravagantes, nomeadamente, ao nível das modalidades contratuais.

Numa primeira aproximação, o Direito das Obrigações regula as relações em que uma pessoa
está vinculada a realizar em benefício de outra uma prestação, fazer ou não fazer uma ação;
entregar uma coisa (art. 397.º CC). O sujeito ativo, o credor, tem um direito de crédito. O
sujeito passivo, o devedor, tem a correspondente obrigação. Direito de crédito situação jurídica
ativa, obrigação é uma situação juridica passiva.

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As obrigações podem ser voluntárias, tendo por fonte um negócio jurídico, designadamente
um contrato.

As obrigações podem ser involuntárias, não têm de ser queridas pelas partes designadamente
quando são geradas pela violação de um direito ou interesse juridicamente protegido.

Por isso o Direito das Obrigações também compreende a responsabilidade civil extracontratual,
instituto que regula a obrigação de reparar os danos resultantes da violação de um direito ou
interesse juridicamente protegido doutrem.

A responsabilidade civil contratual 798 CC e extracontratual 483 CC. Art

Se A partir o vidro do carro de B, deve indemnizar, obrigação involuntária, art 562, art566. A
obrigação de indemnização nestes casos não é voluntária, não é porque lhe apetece, advém da
responsabilidade civil. Não advém de um negócio jurídico, de uma declaração de vontade.

Porem, também podem ser voluntárias quando advém de um contrato, partem da vontade dos
sujeitos (liberdade de celebração e de estipulação).

Direitos Reais Ou Direitos Das Coisas

Direitos de crédito são relativos, direitos reais são absolutos, direitos de crédito apenas vinculam
credor e devedor, os direitos reais sendo absolutos são oponíveis erga omnes, só por si exige o
respeito de todos.

O direito real não precisa de uma prestação de terceiro.

É objeto do Livro III do CC.

O Direito das Coisas regula a afetação de coisas corpóreas aos fins de pessoas individualmente
consideradas, de tal modo que a pessoa fica com um Direito oponível a terceiros. O Direito das
coisas regula essencialmente as coisas corpóreas, artigo 1302- Livro II está assente numa ideia
de direitos reais maiores e menores- Visão tradicional de olhar para o direito de propriedade
como o direito onde estão todos os poderes e faculdades admissíveis, todos os outros direitos
seriam direitos reais menores (ex: usufruto – não pode alienar a coisa).

Todo o livro II está estruturado sobre o direito real maior por excelência – direito de
propriedade. Visam regular a disposição, afetação das coisas corpóreas.

Art- 1302 – Só coisas corpóreas

Art 1303 – direitos de autor e propriedade industrial incidem sobre coisas incorpóreas, direito
enquanto conjunto de coisas agregadas é coisa corpórea, pode ser objeto de direito de
propriedade, a coisa corpórea da obra é incorpórea.

Teoria da fragmentação – parte da ideia que o direito real de propriedade é o direito real maior –
qualquer outro direito real terá poderes e faculdades a menos

Há 3 tipos principais de direitos reais – gozo, garantia e aquisição. Direitos de crédito vs.
Direitos reais. Direitos de crédito relativo e não são oponíveis a terceiros. Direitos reais
absolutos, oponíveis a todos.

13
Introdução ao Estudo do Direito II 14
Daniel Vieira Lourenço – Turma B

O Direito real paradigmático é a propriedade, que é o direito real de gozo pleno. Há direitos
reais de gozo limitados, como o usufruto, que consiste num direito temporário ao gozo de coisa
alheia.

Também há direitos reais de garantia e de aquisição.

Os direitos reais de garantia estão subordinados à realização de um direito de crédito. Por


exemplo, a hipoteca que se institua sobre um prédio para garantir a satisfação do crédito gerado
por um contrato de mútuo.

Os direitos reais de aquisição conferem um poder de aquisição de uma coisa. O exemplo típico é
a posição do promitente comprador com eficácia real – art413

Direito da Família

O Direito da Família regula a constituição da família e as relações que se estabelecem no seu


seio.

Tradicionalmente as relações familiares derivam do casamento, procriação e adoção. Temos


assim as relações entre os cônjuges, as relações entre pais e filhos, etc.

O Direito da família só regula as situações patrimoniais que estiverem diretamente relacionadas


com as situações pessoais

Família é o conjunto de pessoas ligadas entre si pelo vínculo conjugal, pelo parentesco, pela
afinidade e pela adoção.

As relações familiares podem ser pessoais ou patrimoniais, embora o Direito da Família só


regule as relações patrimoniais que estão subordinadas às relações pessoais.

Artigo 1681 e seguintes.

Direito das Sucessões

O Direito das Sucessões regula a transmissão do património por morte do seu titular.

Tudo o que resulta da morte de alguém.

Herdeiro sucede numa cota, logatário sucede num bem. (art. 2030)

Há várias espécies de sucessão, atendendo ao título por que os sucessores são chamados:

a) sucessão voluntária, em que o título é um negócio jurídico, fundamentalmente


um testamento ou pactos sucessórios;
b) sucessão legal, em que o título é a lei, por exemplo artigo 2024CC.

A sucessão legal subdivide-se em sucessão legitimária e sucessão legítima.

a) A sucessão legitimária opera a favor dos herdeiros legitimários, mesmo contra a


vontade do autor da sucessão. No Direito português, são herdeiros legitimários o
cônjuge, os descendentes e os ascendentes. Os herdeiros com mais força jurídica são os
legitimários (2157º – 2133º), os herdeiros legitimários têm direito à legitima
(percentagem que não lhes pode ser retirada).

14
Introdução ao Estudo do Direito II 15
Daniel Vieira Lourenço – Turma B

b) A sucessão legítima opera a favor dos familiares e do Estado segundo o esquema


supletivo fixado pela lei, para o caso do autor da sucessão não ter manifestado nenhuma
vontade, em relação aos bens não abrangidos pela sucessão legitimária.

Herdeiros primários são os legitimários, depois contratual, testamentária e legitima – Esta a


hierarquia das modalidades de sucessão.

Os herdeiros legitimários estão previstos no artigo 2157ºCC; Art 2133 -Prevalecem sobre todos
os outros

Direito da Personalidade

Direito da Personalidade – ramo do direito que estuda os direitos de personalidade -direito


objetivo – cuida da aquisição da personalidade jurídica pelas pessoas singulares e coletivas
e cuida dos direitos de personalidade, qualquer pessoa pode requerer as providências
necessárias para a garantia desses direitos. Pessoas podem desvincular-se das obrigações
unilateralmente.

Direito de personalidade são categoria de direitos (direitos de personalidade) -direito


subjetivo

Chama-se hoje a atenção para a necessidade de autonomizar uma matéria muito importante do
Direito Civil que é o Direito da Personalidade. Tem vindo a ganhar autonomia ao longo dos
anos. Direito da personalidade (direito privado especial) vs Direito de personalidade (direitos
subjetivos)

Segundo o professor Oliveira Ascensão há aqui uma matéria suficientemente específica e


unitária para dar origem a um novo ramo. Os códigos, porém, não o autonomizam, é apenas no
âmbito da parte geral, a propósito das pessoas singulares, que pode surgir um ou outro preceito
sobre esta matéria.

No Código Civil encontramos os direitos de personalidade no âmbito da parte geral, a propósito


das pessoas singulares, na Secção II do Cap. I do Subtítulo I do Título II do Livro I, que formula
uma regra legal sobre a tutela da personalidade física ou moral e contém preceitos especiais
sobre determinados direitos de personalidade (direito ao nome, direito à imagem, direito à
reserva sobre a intimidade da vida privada, etc.) (arts. 70.º e segs.)

Direitos de personalidade visam tutelar bens jurídicos de personalidade, bens juridicos ligados
essencialmente à pessoa humana. Direitos subjetivos que têm como particular relevância serem
bens jurídicos pessoais.

São dotados de um regime especial – artigo 70.

Dizem só respeito às pessoas singulares ou também às coletivas?

Surgiram originariamente ligados à tutela de bens jurídicos de personalidade humana. Essa é a


origem

A maior parte dos direitos de personalidade consta da própria Constituição, porque constituem
direitos fundamentais, ver arts. 24.º e segs. CRP, designadamente sobre o direito à vida, direito
à integridade moral e física, direito ao bom nome e à reputação, direito à liberdade, etc.

15
Introdução ao Estudo do Direito II 16
Daniel Vieira Lourenço – Turma B

Os direitos de personalidade são tutelados pelo instituto da responsabilidade civil e, em certos


casos, a sua violação também gera responsabilidade penal. Além disso a pessoa ameaçada ou
ofendida pode requerer as providências adequadas às circunstâncias do caso, com o fim de
evitar a consumação da ameaça ou atenuar os efeitos da ofensa já cometida (art. 70.º/2 CC).

Esta matéria é estudada em parte na disciplina de Direitos Fundamentais, e, noutra parte, na


Teoria Geral do Direito Civil.

Não é um direito privado especial, é uma autonomização do direito civil, segundo o professor
Lima Pinheiro.

Direito de Autor

O professor Oliveira Ascensão, o direito de autor, um ramo do direito civil, que disciplina a
criação intelectual.

Regula os direitos sobre as obras literárias e artísticas. Esta designação abrange obras das mais
várias espécies, como escritos literários e científicos, as obras cinematográficas ou
arquitetónicas, as pinturas,…

Direitos Privados Especiais

Ao Direito Privado Comum, ou civil, se contrapõem os Direitos privados especiais. Como todo
o direito especial, representam a adaptação deste direito comum (ou geral) a circunstâncias
especiais.

Direito Comercial

Em certos setores da vida social verificam-se circunstâncias especiais que justificam valorações
específicas e, com elas, a criação de um Direito especial. É assim que surgem Direitos privados
especiais que se contrapõem ao Direito privado comum ou Direito Civil.

Na atividade económica surgiu um Direito especial, o Direito Comercial que, se em parte é


justificado pelas características da atividade económica realizada por empresas, noutra parte
resulta mais de fatores histórico-culturais do que de razões objetivas.

Atividade económica que exigia a criação de algo que se afaste do direito privado comum

Entre as características da atividade económica que justificariam este Direito especial são
referidas:

▪ A celeridade e a confiança, que levam ao sacrifício de certas formalidades ou cautelas


exigidas no tráfico civil, muitas formalidades do CC deixam de existir no âmbito do
direito especial;
▪ O reforço do crédito, do qual resulta uma proteção mais acentuada do credor comercial;
▪ O fim lucrativo que caracteriza toda a atividade comercial, podem não chegar ao lucro,
pode não existir, mas ela visa o lucro.

O Direito Comercial surgiu como um Direito dos comerciantes mas tende a ser hoje um Direito
dos atos de comércio, aplicável igualmente aos não comerciantes que praticam atos de comércio

16
Introdução ao Estudo do Direito II 17
Daniel Vieira Lourenço – Turma B

A toda a pessoa que praticar algum dos atos objetivamente regulados pela lei comercial aplica-
se diretamente esta lei.

Mas todos os atos dos comerciantes que de sua natureza não forem exclusivamente civis ficam
em princípio sujeitos à lei comercial, por se presumirem resultantes da atividade comercial.

A delimitação entre as relações económicas regidas por este Direito especial e as que são
disciplinadas pelo Direito comum não obedece a um critério uniforme.

Em todo o caso pode dizer-se que esta delimitação é influenciada pela ideia de empresa, que
leva alguns a defender a evolução do Direito Comercial para um Direito da Empresa.

O núcleo do Direito Comercial seria então constituído pelo regime aplicável aos entes que
normalmente exploram empresas, como é o caso das sociedades comerciais (veja-se,
designadamente, o Código das Sociedades Comerciais), e às atividades que normalmente são
desenvolvidas por empresas.

Verifica-se a tendência para se autonomizarem novos ramos do Direito, a partir do Direito


Comercial, em função da especialidade do seu objeto, designadamente o Direito Marítimo, o
Direito dos Seguros, o Direito Bancário, o Direito da Propriedade Industrial e o Direito dos
Valores Mobiliários.

O Direito Comercial regula também os títulos de crédito, designadamente as letras, livranças e


cheques. O Direito Comercial não é hoje, propriamente, um ramo do Direito, mas um conjunto
de matérias agrupado segundo diversos critérios mais marcados por condicionamentos
histórico-culturais que por considerações funcionais e sistemáticas. A própria autonomia do
Direito Comercial relativamente ao Direito Civil é contestada por uma parte da doutrina. Para
MENEZES CORDEIRO, o Direito Comercial é Direito de todos e do dia-a-dia e o Direito Civil
mantém-se como instância científica inovadora onde os conceitos e as soluções mais avançadas
devem ser procuradas. O que o leva a concluir que o Direito Comercial se separa do Civil por
puras razões de natureza histórica e que não há justificações de fundo que alicercem a sua
autonomia.

O Direito do Trabalho

Como já foi assinalado, o Direito do Trabalho tende a ser encarado predominantemente como
um ramo do Direito privado, embora também contenha normas que devem ser consideradas
públicas (por exemplo, sobre a segurança e a higiene no trabalho).

Visa regular as relações entre empregador e trabalhador desde que surge um contrato de
trabalho, não regula apenas esta relação mas a matéria dos sujeitos coletivos (sindicatos,
associações de empregadores) – regula a sua atuação, modificação, as condições do trabalho,
segurança e saúde.

Foi autonomizado do Código Civil Art 1153 – lei especial que é o Codigo do Trabalho
aprovado em 2009

Nesta medida, o Direito Trabalho é predominantemente Direito privado especial. Tem


principalmente por objeto o contrato de trabalho e, por conseguinte, a sua especialidade recorta-
se principalmente em relação ao Direito das Obrigações.

17
Introdução ao Estudo do Direito II 18
Daniel Vieira Lourenço – Turma B

O Código do Trabalho de 2009 define contrato de trabalho como “aquele pelo qual uma pessoa
singular se obriga, mediante retribuição, a prestar a sua actividade a outra ou outras pessoas, no
âmbito de organização e sob a autoridade destas” (art. 11.º).

O Direito do Trabalho regula hoje também a constituição, competência e funcionamento dos


entes laborais coletivos (as comissões de trabalhadores, as associações sindicais e as associações
de empregadores); os instrumentos de regulamentação coletiva de trabalho e, em especial, a
negociação coletiva; e os conflitos coletivos de trabalho, designadamente a greve.

Tem duas grandes áreas: direito individual do trabalho – relação essencialmente individual do
trabalho – contrato – relação entre o trabalhador e o empregador; no direito coletivo do trabalho
encontramos a noção de sujeitos coletivos de trabalho (associação sindical, associações de
empregadores).

Contrato coletivo pressupõe vinculação para pessoas que não o acordaram (filiados nas
associações de empregadores e sindicais; nos contratos singulares só vincula o empregador e o
trabalhador.

Direito Processual

É direito adjetivo, ao contrário dos outros não é substantivo. O Direito processual permite a um
órgão terceiro dirimir um litigio, regula o processo, o conjunto de atos realizados pelos tribunais
no exercício da função jurisdicional e dos particulares que perante eles atuam

O Direito Processual regula o processo, o conjunto de atos realizados pelos tribunais, no


exercício da função jurisdicional, e pelos particulares que perante eles atuam.

Contrapõe-se o Direito Processual, como Direito adjetivo, ao restante Direito, que é Direito
substantivo. Com esta qualificação quer-se significar que o Direito Processual é instrumental
relativamente ao restante Direito.

O Direito substantivo define a relação material controvertida, designadamente através da


definição dos poderes e deveres dos sujeitos da relação/ das partes. Por exemplo, A deve 10.000
euros a B; A é proprietário do prédio rústico X.

O Direito adjetivo, além de regular a organização, competência e funcionamento dos tribunais,


também atribui direitos e impõe deveres às partes, mas trata-se então de definir a relação
processual que se estabelece entre cada uma delas e o tribunal.

Tradicionalmente considera-se o Direito Processual como público porque regula a atividade de


órgãos públicos, os tribunais.

Diferentemente, há autores que entendem que a divisão entre privado e público só diz respeito
ao Direito substantivo, e não ao Direito adjetivo (LARENZ). Segundo a opinião do professor
Lima Pinheiro é de preferir porque o Direito Processual nem sempre regula a atividade de
órgãos públicos. Os tribunais da arbitragem voluntária não são órgãos públicos, mas também
podem ser sujeitos a regras processuais, como se verifica na Lei de Arbitragem Voluntária.

O Direito Processual não é um ramo do Direito. A cada ramo do Direito substantivo


corresponde em princípio um ramo do Direito adjetivo.

18
Introdução ao Estudo do Direito II 19
Daniel Vieira Lourenço – Turma B

Temos assim, designadamente:

a) para o Direito Internacional Público, o Direito Processual Internacional,


designadamente sobre o processo a seguir quando se atua perante o Tribunal
Internacional de Justiça;
b) para o Direito da União Europeia, o Direito do Contencioso da União Europeia quando
se atua perante órgãos jurisdicionais da União Europeia;
c) para o Direito Constitucional, o Direito Processual Constitucional quando se atua
perante o Tribunal Constitucional;
d) para o Direito Civil e alguns Direitos privados especiais, o Direito Processual Civil;
e) para o Direito do Trabalho, o Direito Processual do Trabalho;
f) para o Direito Penal, o Direito Processual Penal;
g) para o Direito Administrativo, o Direito Processual Administrativo ou Direito do
Contencioso Administrativo;
h) para o Direito Fiscal, o Direito Processual Fiscal ou Direito do Contencioso Tributário.

A grande divisão no processo civil traça-se entre processo declarativo e processo executivo.

O processo declarativo destina-se a obter a fixação da situação jurídica. A sentença pode


consistir na condenação do réu a realizar determinada conduta, na declaração de existência ou
inexistência de um direito ou na constituição, modificação ou extinção de uma situação jurídica.

Se a sentença condenatória não for cumprida pela parte vencida há o processo executivo que se
destina à sua realização coativa. Por exemplo, se o réu não paga a indemnização a que foi
condenado, o processo executivo permite a apreensão e venda de bens da sua propriedade por
forma a satisfazer o crédito indemnizatório.

A decisão proferida por um tribunal pode em certos casos ser objeto de recurso para um tribunal
superior. Pode mesmo haver um segundo grau de recurso. O tribunal superior fixa a solução
definitiva do caso. Quando a decisão já não admite recurso ordinário nem reclamação diz-se que
transitou em julgado (cf., designadamente, art. 628.º CPC e sobre o valor das sentenças
transitadas em julgado arts. 619.º e segs. CPC).

O Processo Civil, o Processo Penal, o Contencioso Administrativo e Tributário e o Contencioso


da União Europeia são objeto de disciplinas autónomas no curso de Direito.

19
Introdução ao Estudo do Direito II 20
Daniel Vieira Lourenço – Turma B

Codificação e Técnicas Legislativas


Capítulo II
Noção de Código e Lei Avulsa Codificação e Técnica
O código é uma lei. Legislativa

O código tem necessariamente uma pluralidade de regras. ▪ Noção de Código e Lei


Mas isto, só por si, não representa um elemento Avulsa;
diferenciador. Uma lei, por exemplo, não tem de se limitar
a uma só regra. ▪ Código e Compilação;
O código distingue-se por conter o núcleo, e
tendencialmente até a generalidade, das regras relativas a ▪ Significado e valor da
determinada matéria. Representa, pois, sempre, a forma de Codificação;
concentração do regime jurídico de certos setores da vida
social.
▪ Partes gerais;
Entre as leis, o código distingue-se por:
▪ Remissões;
• Ser global, contém as principais regras, se não a
generalidade das regras que regulam um ramo do
Direito; ▪ Ficções Legais;
• Ser sistemático, porque dispõe de um complexo
de normas organizado e unificado em torno de um ▪ Definições e
núcleo de princípios fundamentais, por forma Classificações Legais;
coerente.
• Ser científico, as matérias estão repartidas e
ordenadas segundo um plano elaborado pela ▪ Presunções;
Ciência do Direito. O plano cientifico permite
repartição criteriosa das matérias e a sua ▪ Conceitos
ordenação, e permite que o conjunto forme um Indeterminados;
sistema

Os códigos podem ou não estar divididos em partes. A ▪ Cláusulas Gerais;


divisão fundamental é em geral o livro, e dentro deste o
titulo. Através de várias subdivisões chega-se à unidade,
ao artigo.

O código moderno é um instrumento da codificação.

Formalmente o código pode vir de duas formas (separação


meramente formal, materialmente tem o mesmo valor e
integra o documento que o aprova):

Pode vir formalmente separado do diploma que o põe em


vigor, ou pode com ele confundir-se. Na maioria dos casos
publica-se um diploma, em que se aprova o código, e que
é seguido do texto do código.

Por exemplo, o Código Civil foi aprovado pelo DL n.º


47344. Esta distinção entre o código e o diploma que o

20
Introdução ao Estudo do Direito II 21
Daniel Vieira Lourenço – Turma B

aprova é meramente formal. Materialmente o código faz parte da lei que o aprova e tem o
mesmo valor como fonte do Direito. O Código é fonte do Direito, mas dentro das fontes não
ocupa lugar próprio, antes se integra na modalidade lei.

Os códigos podem ou não estar divididos em partes. A divisão fundamental é, em geral, o livro
e, dentro deste, o título. Segue-se por vezes o subtítulo, o capítulo, a secção e a subsecção. A
unidade básica é o artigo, que geralmente contém uma ou várias proposições jurídicas.

Embora os códigos existentes tendam a cobrir todo o Direito privado, as leis que alteram os
códigos, ou que vão além da regulação neles contida, sem neles serem integradas, designam-se
por leis avulsas ou legislação extravagante (ex: cláusulas contratuais gerais).

Por exemplo, as disposições do Código Civil sobre arrendamento rural foram revogadas pelo
DL n.º 201/75, de 15/4, e constam hoje do DL n.º 294/2009, de 13/10.

Entre as leis avulsas contam-se os estatutos e as leis orgânicas.

A designação de estatuto, também traz as suas dificuldades, pois não é clara a fronteira com a
noção de código.

Os estatutos são diplomas que regulam certa matéria de modo unitário, sem que esta matéria
tenha a dignidade ou amplitude suficiente para justificar a designação de código. O principal
exemplo são as leis que regulam por foram sistemática e unitária uma determinada atividade,
carreira ou profissão. Temos assim, por exemplo o Estatuto do Artesão, o Estatuto dos
Solicitadores e o Estatuto dos Magistrados Judiciais.

Designa-se por lei orgânica aquela que organiza e regula o funcionamento de um serviço
público, por exemplo, a Lei Orgânica do Ministério das Finanças e a Lei de Organização do
Sistema Judiciário que organiza os tribunais judiciais.

Reconhece-se que dizer que cada código deve regular um setor importante da vida social é
vago: não se diz o que é suficientemente importante ou não. Mais técnico é dizer-se que deve
reger um ramo da ordem jurídica. Persiste em todo o caso a dificuldade da demarcação precisa
dos ramos de direito uns perante os outros.

O problema ainda é agravado pelo facto de certas leis trazerem a denominação de “código”
apesar de não revestirem as características assinaladas, ou, pelo contrário, não serem designadas
código e obedecerem a essa característica.

Por isso se fala por vezes em códigos em sentido formal em contraposição a códigos em
sentido material, sendo códigos em sentido formal aqueles que o legislador assim
denomina e códigos em sentido material os diplomas que revestem as características
fundamentais que a doutrina assinala.

Por exemplo, o Código das Custas Judiciais não abrange um ramo do Direito.

Há ainda casos duvidosos como o Código da estrada.

Em contrapartida uma constituição como a portuguesa é um verdadeiro Código de Direito


Constitucional, embora não se use esta designação.

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Introdução ao Estudo do Direito II 22
Daniel Vieira Lourenço – Turma B

Código e Compilação

Muitos dos códigos antigos eram na realidade compilações de leis, a que faltava a
sistematicidade e a cientificidade, enquanto que o código moderno é sempre uma lei unitária,
mesmo quando se baseia em leis que estavam anteriormente em vigor, portanto, mesmo quando
não é inovador.

Uma compilação de leis pode incluir disposições revogadas, o que é impensável num código.

As compilações, nalguns casos, obedeciam a critérios meramente cronológicos: as leis eram


seriadas segundo a sua antiguidade. O essencial está em que em todos os casos se reconduziam
fontes preexistentes a um diploma único. A compilação tinha pois caráter meramente
reprodutivo.

O objeto da compilação não são necessariamente leis. Também pode haver compilação de
costumes, que são assim reduzidos a escrito. Pode haver compilações de jurisprudência. E pode
haver compilações mistas, que abranjam a totalidade das fontes existentes.

Causas da Codificação (Oliveira Ascenção)

A Codificação é um dos últimos processos de um estado avançado da ciência do direito que


estuda esse determinado ramo.

Pode-se falar de diferentes causas que justificam o movimento da codificação a partir do século
XVIII:

• Ideológica;

Movimento racionalista – o jusracionalismo considerava necessária a substituição da ordem


que se encontrava na sociedade por uma ordem racional, por vezes, em aberto contraste com a
ordem existente.

A razão humana podia descobrir a generalidade dos princípios que deviam regular a vida social
(Direito Natural). O Direito codificado prestava-se a refletir fielmente esse Direito Natural.

• Politica;
▪ Plano Interno
a) Permite impor uma legislação geral – código imposto como lei a todas as
pessoas, permite abolir privilégios ou leis particulares ao tempo
existentes;
b) Permite favorecer uma unificação politica por meio de uma unificação
jurídica – assistiu-se, nos últimos séculos à formação de países através da
unificação, a submissão dos direitos locais a um código nacional ajudou a
concretizar essa unificação nacional. Toda a sociedade se caracteriza pelo
seu Direito, a imposição de um Direito Comum é um passo considerável
para a formação de uma única sociedade.
▪ Plano Externo
Quando em certo país se consegue moldar em lei o conjunto de princípios, que se
afirmam impostos pela razão humana, esses princípios, cuja praticabilidade se
pressupõe, podem exercer grande atração sobre países vizinhos.

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Introdução ao Estudo do Direito II 23
Daniel Vieira Lourenço – Turma B

• Técnicojurídica;
Como o código é um instrumento cientifico e sistemático, tem na sua base um plano ou
ordenação técnica das matérias, em que se apoia. Isso significa que a codificação supõe
um estado cientifico em análise do material jurídico, que prepara essa sistematização.
• Prática;
Para além de tudo isto, a codificação era também uma instante necessidade prática.
Uma evolução social profunda, e nalguns casos precipitada, reclamava tradução no
plano jurídico, exigindo grandes reestruturações. A essa evolução não eram já estranhos
a revolução industrial e o predomínio alcançado pelas classes burguesas.

Significado e Valor da Codificação

O movimento codificador surgiu no séc. XVIII como resultado de três fatores principais: a
difusão do iluminismo, a unificação política dos Estados europeus e o labor de sistematização
realizado pela ciência jurídica.

O movimento iluminista encontrou expressão, ao nível da Ciência do Direito e da Filosofia do


Direito, no jusracionalismo, que foi atrás caracterizado.

O Direito tradicional é criticado pela sua casualidade histórica, pelas suas particularidades
irracionais e por sujeitar os cidadãos à arbitrariedade do juiz. Bentham qualificou o Common
Law do seu tempo como “Dog-Law”, Direito dos Cães, porque à semelhança do adestramento
de um cão, uma pessoa só poderia saber que uma conduta era proibida e punida quando lhe
fosse aplicada a pena.

Contra isto o jusracionalismo exigia leis que excluíssem toda a arbitrariedade dos juízes e que,
por isso, tudo deveriam prever.

Acresce que os cidadãos deveriam poder conhecer as regras jurídicas, razão por que elas
deveriam ser formuladas por forma clara e sistemática e ser escritas em linguagem
compreensível e transparente.

A sistematicidade do Direito também decorre da exigência de racionalidade que é apanágio do


jusracionalismo. Deveria renunciar-se à casuística, e fazer assentar as regras jurídicas em
princípios retores

Mas não se trata apenas de dar uma nova forma ao Direito preexistente. O jusracionalismo
postula também a sua reforma.

Por um lado, o iluminismo opõe-se aos privilégios e estatutos especiais de certos grupos sociais.
Por isso o jusracionalismo defendeu que as leis deveriam estabelecer a igualdade e liberdade dos
cidadãos.

Por outro lado, a ideia de que todas as regras jurídicas devem decorrer da razão. Isto pode
traduzir a crença utópica na possibilidade de formular de uma vez por todas um sistema ideal de
Direito fundado na razão. Mas também exprime o desígnio de racionalizar o Direito em função
das necessidades criadas pela evolução económica e social. Esta evolução e, em especial, a
revolução industrial, não era compatível com o estado caótico em que se encontravam as fontes
do Direito.

23
Introdução ao Estudo do Direito II 24
Daniel Vieira Lourenço – Turma B

Estas ideias presidiram às primeiras grandes codificações, como o code civil, Código Civil
francês de 1804. Napoleão interveio pessoalmente na sua feitura. Este código influenciou as
primeiras codificações em Portugal, Espanha e Itália.

Como outro fator que impulsionou a codificação refira-se a unificação política dos Estados
europeus. A codificação, com a eliminação ou subalternização das leis ou costumes locais,
constituiu em Estados como a França, a Espanha, a Itália e a Alemanha um instrumento para a
preparação ou consolidação da unidade política.

Enfim, estas codificações só foram possíveis porque a ciência jurídica desde há dois séculos se
esforçava por uma apresentação sistemática do Direito, em torno a princípios.

A codificação pressupõe um determinado estádio de desenvolvimento científico na análise e


organização do material jurídico que só se alcançou no final do séc. XVIII. A visão de conjunto
de cada ramo do Direito proporcionada pelos avanços doutrinários esta na base dos códigos que
foram surgindo.

Hoje a codificação é típica dos países da família romanogermânica. Além do code civil são de
mencionar o Código Civil alemão de 1896, o Código Civil suíço de 1907, e o Código das
Obrigações suíço de 1911, o Código Civil italiano de 1942, e o Código Civil português de 1966,
que foi influenciado, designadamente, pelos códigos alemão e italiano.

Tem havido grandes disputas quanto ao mérito da codificação. As vantagens resultam do


anteriormente dito: fundamentalmente o conhecimento fácil e o caráter sistemático que evita
incoerências, ajuda a interpretação e integração de lacunas e facilita a construção científica do
Direito.

A sistematização científica facilita a busca das soluções. No dizer de Oliveira Ascensão, dá ao


intérprete um mapa onde situar facilmente cada novo caso. Perante casos omissos, este mapa
também pode constituir um ponto de partida para a integração de lacunas.

A grande desvantagem é a rigidez. O código representa um grande esforço, que deve ser
respeitado. Não é de ânimo leve que se deve alterar um código. Pode ser um obstáculo à
evolução futura da legislação. Pode também influir negativamente na evolução da ciência
jurídica. Mas o código também não pode ser considerado uma tábua sagrada. A adaptação tem
de ser feita frequentemente, porque a vida muda constantemente, embora deva ser cuidadosa e
bem refletida.

Em suma, as vantagens superam as desvantagens.

Em todo o caso, constitui um bom princípio de técnica legislativa que os Códigos se


circunscrevam às matérias mais estáveis e se deixe para a legislação avulsa as matérias que
estão mais sujeitas a alteração.

O Professor Oliveira Ascensão enumera um conjunto se vantagens muito semelhante ao já


tratado:

▪ O Código permite um conhecimento fácil do direito, o que é um dom precioso. Se


o direito é regra da vida, deve ser conhecido; e quanto possível conhecido
diretamente por aqueles cuja vida rege, e não só pelos juristas

24
Introdução ao Estudo do Direito II 25
Daniel Vieira Lourenço – Turma B

▪ Trazendo uma disciplina unitária, evita incongruências entre as várias fontes, e faz
avultar os grandes princípios que disciplinam aquele sector da vida social;
▪ Pela sistematização cientifica que traz, dá ao intérprete um mapa onde situar
facilmente o novo caso.

O facto do código ser um diploma cientifico e sistemático tem muita importância, já não
está em questão uma mera concentração, mas uma concentração sistematizada

O professor Oliveira Ascenção apresenta, também, algumas desvantagens:

• O código tem inerente uma enorme rigidez, o código representa um grande esforço para
quem o elabora, e quanto maior é esse esforço mais respeito ele impõe depois de
realizado.
• Os códigos são alterados com muito pouca frequência, por isso, um código é um
obstáculo à evolução e à adaptação da ordem jurídica.

Apesar de num momento inicial prever o código como uma base sujeita a alteração posterior, os
códigos, na sua esmagadora maioria, permanecem inalterados.

Na opinião do professor Oliveira Ascensão o problema é essencialmente psicológico, será


preciso não considerar os códigos uma espécie de tábuas sagradas.

O jurista, porque se habilitou a trabalhar certos textos, torna-se inconscientemente conservador.


Mas essa mentalidade reforça os inconvenientes das leis. As leis só são uteis se se adaptarem,
essa adaptação tem de se fazer frequentemente, porque a mudança da vida é constante.

Principais Códigos em Vigor

Em primeiro lugar, como já foi assinalado, a própria Constituição é um Código de Direito


Constitucional, embora não seja usual designá-la como tal.

Em seguida, temos o Código Civil, aprovado pelo DL n.º 47 344, de 25/11/66, e que foi
reformado pelo DL n.º 496/77, de 25/11, tendo em vista designadamente a sua conformação
com a Constituição de 1976.

No Direito privado temos ainda o Código Comercial, que foi aprovado em 1888. Parte da
matéria abrangida por este código é hoje objeto do Código das Sociedades Comerciais,
aprovado em 1986.

De referir ainda o Código do Trabalho, de 2009, o Código do Direito de Autor e dos Direitos
Conexos, de 1985, o Código da Propriedade Industrial, de 2003, e, em matéria de registo, o
Código de Registo Civil, de 1995, o Código de Registo Predial, de 1984, e o Código do Registo
Comercial, de 1986.

No Direito público, é de salientar o Código Penal, de 1982.

Enfim, no Direito Processual, há a referir o recente Código de Processo Civil, aprovado em


2013, e o Código de Processo Penal, de 1987.

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Introdução ao Estudo do Direito II 26
Daniel Vieira Lourenço – Turma B

Partes Gerais

Se examinarmos a sistemática do Código Civil, verificamos que o Livro I é designado parte


geral e que nos restantes livros há divisões do código subordinadas à epígrafe “Disposições
gerais”.

Tanto num caso como noutro se trata de partes gerais. Estas partes gerais constituem um
imperativo de técnica legislativa: para evitar repetições parte-se do geral para o particular,
começando pelas disposições comuns.

Por exemplo, o contrato de compra e venda é regulado no Livro II do Código Civil, nos arts.
874.º e segs. Mas a maior parte dos requisitos de validade do contrato de compra e venda são
comuns aos outros contratos e, até, à generalidade dos negócios jurídicos.

É o que se verifica com a capacidade negocial das partes e com os requisitos de validade do
objeto e do fim. Por isso são regulados na parte geral do Código Civil, no título II do Livro I
(arts. 67.º, 122.º e segs., 280.º e 281.º).

Quanto à forma do contrato de compra e venda, no Livro II só encontramos uma regra que
estabelece forma legal para a compra e venda de imóveis (art. 875.º). No que toca à compra e
venda de móveis, às consequências da inobservância da forma legal e ao âmbito da forma legal
temos também de recorrer à parte geral, mais precisamente aos arts. 219.º e segs.

Como é observado pelo professor Menezes Cordeiro, a articulação entre a parte geral do Código
Civil e as partes especiais não obedece a um critério inteiramente lógico, sendo também
influenciada por fatores histórico-culturais.

Já noutros Códigos a divisão entre parte geral e parte especial é traçada em função de um
critério científico claro. É o que se verifica com o Código Penal de 1982.

Linguagem e Direito

O direito é constituído por fontes que se exprime de enunciados linguísticos, pelo que não há
direito sem linguagem e fora da linguagem: dado que um sujeito só pode realizar os atos cuja
intenção ele possa descrever, as fonteiras da ação são definidas pelas fronteiras da língua.

A extensão de um conceito é o seu sentido, ou seja, é o que ele exprime ou o seu valor
informativo, compreender um conceito é sempre compreender a sua intenção.

Remissões

A remissão é outra técnica legislativa de que o legislador se serve para evitar repetições.

Por exemplo, quanto aos efeitos da resolução do contrato entre as partes o art. 433.º CC
estabelece que “na falta de disposição especial, a resolução é equiparada, quanto aos seus
efeitos, à nulidade ou anulabilidade do negócio jurídico, com ressalva do disposto nos artigos
seguintes”. Portanto, para se saber quais são os efeitos da resolução do contrato entre as
partes é necessário recorrer às normas que estabelecem os efeitos da nulidade ou
anulabilidade do negócio jurídico. Estas normas constam do art. 289.º CC. No n.º 3 deste
artigo encontramos uma nova remissão para o disposto nos arts. 1269.º e segs. em matéria de
efeitos da posse.

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Introdução ao Estudo do Direito II 27
Daniel Vieira Lourenço – Turma B

O legislador não repete o que já consta de outras normas, apenas remete para determinados
regimes jurídicos que já o regulam.

A remissão resulta de uma proposição remissiva, uma proposição que em lugar de


estabelecer o regime aplicável à situação descrita na sua previsão manda aplicar outras
normas ou complexos normativos.

Supondo que todas as proposições remissivas são verdadeiras normas, o que é discutível, pode-
se contrapor as normas remissivas às normas materiais que são aquelas que regulam
diretamente as situações nelas previstas.

Proposições Remissivas ≠ Normas materiais

Noutros casos, em vez de uma remissão para as normas de outro diploma, temos uma
disposição legal que estende o regime de certo instituto a outro ou outros.

Artigo 939º CC

“As normas de compra e venda são aplicáveis a outros contratos onerosos pelos quais
se alienem bens ou se estabeleçam encargos sobre eles, na medida em que sejam
conformes com a sua natureza e não estejam em contradição com as disposições
legais respetivas.”

O art. 939.º CC manda aplicar as normas da compra e venda aos outros contratos onerosos de
alienação, na medida em que sejam conformes com a sua natureza e não estejam em contradição
com as disposições legais respetivas. O artigo 939 transforma o contrato de compra e venda no
negocio modelo dos contratos onerosos.

Nestes casos é frequente que a proposição remissiva utilize a expressão “com as necessárias
adaptações” ou expressão semelhante. Tem o mesmo sentido a expressão latina “mutatis
mutandis”.

Por exemplo, o art. 1156.º CC manda aplicar as disposições sobre o contrato de mandato “com
as necessárias adaptações, às modalidades do contrato de prestação de serviço que a lei não
regule especialmente”. Quer isto dizer que o intérprete pode e deve ajustar as normas que
regulam o contrato de mandato às particularidades do contrato de prestação de serviço em
causa.

Com efeito, quando se estende o regime de um instituto a outro instituto é preciso ter em conta
que os institutos não são iguais mas simplesmente análogos. As diferenças existentes podem
justificar que a extensão não abranja todas as normas contidas nesse regime ou que as
consequências jurídicas desencadeadas por algumas dessas normas devam ser modificadas.

Ao contrário do que acontece quando existe apenas uma proposição remissiva e em que o
regime para o qual se remete é aplicado na integra e conforme consta da lei, aqui é necessário
fazer os ajustes à modalidade e à matéria em causa e não existe uma aplicação imediata e
absoluta do regime na sua totalidade, é necessário atender a um conjunto variado de pontos de
maneira a que seja respeitada a instrução da disposição legal que estende o regime a certo
instituto mas não na sua totalidade.

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Introdução ao Estudo do Direito II 28
Daniel Vieira Lourenço – Turma B

Entre os casos expostos pode-se distinguir aqueles em que há uma remissão integradora, que
se destina a suprir as lacunas na regulação de um instituto que dispõe, em princípio, de um
regime próprio, e uma remissão total, quando o regime do instituto é primariamente definido
por via remissiva.

As normas de conflitos de Direito Internacional Privado são normas de remissão, porque


regulam as situações transnacionais através do chamamento de normas materiais. Também são
normas de remissão as normas sobre a aplicação da lei no tempo, ou normas de Direito
Intertemporal. Perante uma sucessão de leis, estas normas chamam a lei nova ou a lei antiga a
regular uma situação ou um aspeto de uma situação.

As normas de conflitos de leis no espaço e no tempo, têm um significado muito diferente das
proposições remissivas inicialmente referidas.

As proposições remissivas inicialmente referidas vêm geralmente a traduzir-se numa extensão


da previsão das normas para que remetem, sendo discutível que se trate de verdadeiras normas.

Há quem entenda que são apenas um complemento das normas para que remetem.

Ao passo que as normas de conflitos de Direito Internacional Privado e Direito Intertemporal


são verdadeiras normas de regulação indireta, porque exprimem valorações autónomas,
prosseguindo finalidades próprias do Direito Internacional Privado e do Direito Intertemporal.
Nas normas de DIP falamos de normas sobre normas, não são normas materiais.

Ficções legais

A ficção legal é uma técnica legislativa pela qual se estabelece que um facto ou situação a
regular se considera juridicamente como igual a outro facto ou situação que se encontra
legalmente regulado.

Por exemplo, na al. c) do n.º 2 do art. 805.º CC estabelece-se que se o próprio devedor impedir
a interpelação, se considera interpelado na data em que normalmente o teria sido:

“Há, porem, mora do devedor, independentemente da interpelação se o próprio


devedor impedir a interpelação, considerando-se interpelado, neste caso, na dta que
normalmente o teria sido.”

Nas obrigações sem prazo certo, e que não tenham a sua fonte num facto ilícito, o devedor só
fica constituído em mora, e, portanto, obrigado a reparar os danos causados ao credor, depois de
interpelado, depois de o credor comunicar ao devedor a sua vontade de receber a prestação.

A lei prevê um facto – a interpelação do devedor – e estabelece uma consequência em caso de


incumprimento da obrigação: a constituição em mora.

Mas se o devedor se furtar à interpelação, ou por outra forma a impedir, considera-se a


interpelação verificada. Equipara-se juridicamente a tentativa de interpelação frustrada pelo
devedor à interpelação.

Há aqui uma assimilação fictícia de realidades factuais diferentes para as submeter ao


mesmo regime jurídico. Sabe-se que na verdade não aconteceu mas trata-se à partida
como se tivesse acontecido.

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Introdução ao Estudo do Direito II 29
Daniel Vieira Lourenço – Turma B

Ao mesmo resultado se chegaria mediante uma proposição remissiva que mandasse regular o
facto ou situação pelas normas aplicáveis a outro facto ou situação.

No século XIX, as ficções legais foram muito utilizadas na legislação e, sobretudo, na doutrina.
Hoje a ciência jurídica dispõe de instrumentos que dispensam este artificialismo.

O legislador pode recorrer a proposições remissivas. Mas em certos casos, como nos exemplos
referidos, a utilização da ficção jurídica pelo legislador é perfeitamente aceitável, porque é
claro que se trata de situações que do ponto de vista dos efeitos jurídicos devem ser equiparadas
e porque a introdução de uma proposição remissiva só viria complicar a redação do preceito.

O regime jurídico a aplicar seria o mesmo, a consequência seria a mesma, valorativamente as


duas situações têm o mesmo valor para o Direito, são tratadas de maneira idêntica e, desta
forma, facilita-se todo o processo

Já o intérprete nunca tem de recorrer a ficções: a aplicação de uma norma a uma situação
que não se encontra prevista deve fundamentar-se na analogia.

Definições e classificações legais

As definições e classificações são técnicas frequentemente utilizadas na legislação.

O Código Civil está recheado de definições e classificações. Por exemplo, temos no art. 202.º a
noção de coisa, nos arts. 203.º e segs. as classificações das coisas, no art. 397.º a noção de
obrigação, no art. 874.º a noção de compra e venda, no art. 1439.º a noção de usufruto e no art.
1577.º a noção de casamento.

As proposições que estabelecem definições e classificações são proposições jurídicas


incompletas e, portanto, não são normas. Geralmente as definições e classificações são
proposições que servem para determinar o sentido e alcance da previsão de normas
jurídicas.

Assim, por exemplo, a norma contida no art. 875.º CC sujeita o contrato de compra e venda de
imóveis a escritura pública ou a documento particular autenticado. A previsão desta norma é o
contrato de compra e venda de imóveis. A determinação do conteúdo dos conceitos de
“contrato de compra e venda” e de “imóvel” é coadjuvada pelo art. 874.º que contém a noção de
compra e venda e pelo art. 204.º que nos indica quais são as coisas imóveis.

A definição ajuda a perceber a verdadeira natureza do regime e os casos em que se aplicam,


facilitam o trabalho do intérprete, ao definir o que é uma coisa imóvel o intérprete já sabe que se
tratam das coisas enumeradas no artigo 204º.

Por vezes a definição legal contida num artigo serve para determinar o sentido e alcance
da previsão das normas contidas nos artigos seguintes. É o que se verifica, por exemplo, com
a noção de compra e venda e com a noção de outros contratos regulados no Código Civil.

Ponto algo controverso é o do caráter prescritivo da definição. Por exemplo, se o legislador


dá uma noção de contrato de sociedade no art. 980.º CC ficará o intérprete vinculado a aplicar o
regime contido nos arts. 981.º e segs. a todos os contratos que correspondem a essa noção e a
não aplicar diretamente esse regime a quaisquer outros contratos?

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Introdução ao Estudo do Direito II 30
Daniel Vieira Lourenço – Turma B

Para Dias Marques e Oliveira Ascensão a definição é um elemento de orientação mas não é
decisiva. O regime é que é vinculativo e, por isso, prevalece sobre a definição. Oliveira
Ascensão acrescenta que a definição é uma operação extremamente delicada que deve ser
evitada.

Isto significa que para delimitar a realidade que está sujeita a um determinado regime tem de se
atender principalmente ao próprio regime estabelecido.

Por exemplo, para saber se um contrato deve estar submetido ao regime do contrato de
sociedade não bastaria verificar se apresenta as notas típicas contidas na noção legal, seria
preciso também atender às notas típicas que se inferem do regime legal.

A definição serve para facilitar e para dar uma noção do próprio regime, não tem de ter
necessariamente um caracter prescritivo, não tem de excluir todas as realidades que não constam
na definição, só caso a caso se vai conseguir perceber se o regime vais ser aplicável ou não.

Oliveira Ascensão admite, porém, que os próprios termos da definição impliquem um regime
jurídico, caso em que virá revestida de “indirecta injuntividade”. Mas então, dir-se-á que já não
se trata de uma mera definição, mas de uma verdadeira norma jurídica, que dispõe de uma
estatuição.

As definições podem ser muito perigosas, definir implica impor limites, barreiras e fronteiras,
implica diferenciar e distinguir realidades, realidades estas que à semelhança do direito estão em
constante evolução.

Baptista Machado admite que a técnica legislativa da definição é perigosa, mas entende que as
definições legais têm caráter prescritivo. Através das definições legais o legislador constrói, por
uma forma indireta, previsões a que se ligam as consequências jurídicas de determinadas
normas. A definição dada pelo legislador, ainda que incompleta ou imperfeita, compreende
sempre uma vontade ou intenção normativa.

Na opinião do professor Lima Pinheiro, o legislador tem a opção de fixar taxativamente


(expressamente, especificamente ou claramente) os pressupostos de aplicação de um
determinado regime, ou de fornecer uma mera orientação, deixando ao intérprete a missão de a
concretizar. É um problema de interpretação da lei. Em princípio, a intenção legislativa ao
formular uma definição ou noção legal é a de fixar taxativamente os pressupostos de
aplicação de um determinado regime.

Por isso, as definições legais têm um certo valor prescritivo.

Mas mesmo quando a definição legal exprima a intenção legislativa de fixar taxativamente os
pressupostos de aplicação de um determinado regime, será de excluir que deste regime se
possam inferir notas típicas adicionais, que não constam da definição legal? Assim, por
exemplo, para Oliveira Ascensão, as disposições do Código Civil sobre sociedade pressupõem
que a sociedade dá origem à estruturação de uma empresa, razão por que o mero contrato de
sociedade para objetivo ocasional, que não origine uma empresa, pode ser chamado sociedade,
“mas não cabe nos dispositivos do art. 980.º e segs. do Código Civil”.

Este ponto diz sobretudo respeito ao Direito das Obrigações. Na opinião do professor Lima
Pinheiro quando o legislador define uma modalidade contratual se deve partir do princípio que
só as notas típicas indicadas pelo legislador são relevantes para a qualificação. Outros traços

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Introdução ao Estudo do Direito II 31
Daniel Vieira Lourenço – Turma B

típicos que se infiram do regime só relevam para a aplicação de algumas normas contidas no
regime.

Por exemplo, certas normas relativas à organização e ao património social da sociedade não
serão aplicáveis, por falta de objeto, a uma sociedade ocasional. A exclusão de um contrato de
sociedade que preencha a noção legal do regime contido nos arts. 980.º e segs. só poderá
justificar-se através de uma redução teleológica.

Inversamente, a aplicação do regime estabelecido para uma modalidade contratual definida pelo
legislador a um contrato que não apresenta uma das notas típicas contidas na definição deverá,
em princípio, basear-se na analogia.

Em suma, apesar de haver divergência doutrinária é necessário perceber que as soluções


encontradas não têm de ser estanques e imoveis, é necessário interpretar a lei caso a caso,
situação a situação.

A doutrina diverge:

• Não tem relevância pratica, não vinculam o interprete aplicador, auxiliam mas não têm
um caracter vinculativo.
• Reduzem a incerteza na aplicação da lei, são importantes para interpretar e aplicar
outras normas;

Presunções

Segundo a noção do art. 349.º CC, as presunções “são as ilações que a lei ou o julgador tira de
um facto conhecido para firmar um facto desconhecido”.

O Código Civil acolhe assim a distinção entre presunções legais ou iuris e presunções judiciais
ou hominis.

Nas presunções legais, o legislador supõe que um facto desconhecido – o facto presumido –
acompanha um facto conhecido.

De um facto conhecido extraio um facto desconhecido.

Por outras palavras, as presunções legais são as ilações que, no plano dos factos, a lei retira de
certo evento já demonstrado.

Assim, por exemplo, o art. 441.º CC determina que no contrato-promessa de compra e venda se
presume que tem caráter de sinal toda a quantia entregue pelo promitente-comprador ao
promitente-vendedor.

Artigo 441º CC

“No contrato promessa de compra e venda presume-se que tem carácter de sinal toda
a quantia entregue pelo promitente-comprador ao promitente-vendedor, ainda que a
titulo de antecipação ou principio de pagamento do preço.”

Quer isto dizer, que se o promitente-comprador entrega uma quantia ao promitente-vendedor,


ainda que a título de princípio de pagamento do preço, se supõe que esta quantia tem caráter de
sinal, de garantia de cumprimento, por forma que se o promitente-comprador não cumprir o

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Introdução ao Estudo do Direito II 32
Daniel Vieira Lourenço – Turma B

promitente-vendedor pode fazer seu o sinal; se for o promitente-vendedor a incumprir o


promitente-comprador tem a faculdade exigir a restituição do sinal em dobro (art. 442.º/2, que
estabelece um regime especial quando houve tradição da coisa a que se refere o contrato
prometido).

O facto conhecido, neste caso, será a quantia entregue pelo promitente-comprador ao promitente
vendedor, o facto desconhecido e que vai ser presumido será o reconhecimento dessa quantia
como o sinal.

As presunções legais relacionam-se com o regime do ónus da prova, que está regulado nos arts.
342.º CC e segs. Conforme dispõe o art. 350.º/1 quem tem a seu favor a presunção legal escusa
de provar o facto a que ela conduz. Dadas as dificuldades de prova de certos factos em
determinadas situações a lei vem em socorro de uma das partes estabelecendo a seu favor uma
presunção legal.

As presunções legais admitem, em regra, prova em contrário, são ilidíveis, prova de que o facto
presumido não acompanhou o facto que serve de base à presunção. É o que resulta do art.
350.º/2 CC. Estas presunções, que admitem prova em contrário, dizem-se relativas ou iuris
tantum.

É o caso da presunção contida no art. 441.º. Pode provar-se que a quantia entregue pelo
promitente-comprador não tem caráter de sinal.

As presunções que não admitem prova em contrário dizem-se absolutas ou iuris et de iure.
Encontra-se um exemplo deste tipo de presunção no art. 243.º/3 CC. O art. 243.º/1 determina
que a nulidade proveniente da simulação não pode ser arguida pelo simulador contra terceiro de
boa fé. O n.º 3 estabelece que se considera sempre de má fé o terceiro que adquiriu o direito
posteriormente ao registo da ação de simulação, quando a este haja lugar.

Esta solução funda-se por seu turno na própria presunção de conhecimento que resulta da
inscrição da ação no registo.

O resultado da presunção absoluta é semelhante ao da ficção e da proposição remissiva.


Será aplicável ao facto ou situação real o regime estabelecido para o facto ou situação
presumida.

As presunções judiciais são as ilações que, com base num facto já apurado, o julgador faça,
considerando outros factos como demonstrados. Estas presunções traduzem um afloramento da
regra da livre apreciação da prova. A estas presunções se refere o art. 351.º CC quando dispõe
que as presunções judiciais só são admitidas nos casos em que seja admissível a prova
testemunhal. O juiz retira as presunções judiciais através das regras da experiencia, ou de
máximas de experiência.

A presunção pode ser ilidível ou inilidível, consoante seja ou não suscetível de prova em
contrário.

Conceitos Determinados (Professor Miguel Teixeira de Sousa)

Os conceitos determinados (ou descritivos) são conceitos que possuem uma extensão
determinada. Por exemplo: os conceitos de pessoas ou de livro são conceitos determinados,
porque não há nada que possa ser qualificado como “mais ou menos pessoa” ou como “mais ou

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Introdução ao Estudo do Direito II 33
Daniel Vieira Lourenço – Turma B

menos livro”. Quanto aos conceitos determinados é sempre possível distinguir ao quê que se
referem e ao quê que não se referem.

Os conceitos determinados podem ser empíricos ou normativos.

▪ Os conceitos normativos são próprios de uma ordem normativa (e, nomeadamente,


de uma ordem jurídica), englobam conceitos que só significam algo no âmbito de uma
ordem normativa: divórcio, facto jurídico, invalidade, ineficácia,… Nos conceitos
determinados normativos cabem ainda aqueles que têm uma aceção extrajurídica, mas,
que para o direito, só podem ser considerados no seu sentido jurídico: documento, lei,
obrigação, tribunal, sinal, …
▪ Os conceitos determinados empíricos são conceitos próprios de uma realidade não
normativa. Por exemplo: águas, barrotes, dano, nascimento, tesouro,…

Conceitos indeterminados

O conteúdo dos conceitos utilizados pela grande maioria das normas materiais pode ser
determinado em abstrato, independentemente de uma situação concreta, com razoável precisão.
Neste sentido pode dizer-se que são conceitos determinados.

Por exemplo, “crédito”, “credor”, “devedor”, “contrato”, “propriedade”, “casamento”,


“sucessão”.

A maior parte destes conceitos é suscetível de uma definição, de uma delimitação abstrata do
seu conteúdo, por meio da indicação de notas definidoras ou características.

Por exemplo, “crédito” é o direito de exigir de outrem uma prestação. O conteúdo do conceito é
delimitado por duas notas: um direito e o objeto desse direito que é uma prestação.

A certeza do Direito objetivo e a previsibilidade das decisões jurisdicionais postulam que


na construção das proposições jurídicas seja dada primazia a conceitos determinados.

Mas o Direito vigente também não prescinde, em certos casos, de conceitos indeterminados,
cujo conteúdo se reveste de um elevado grau de indeterminabilidade.

Vejamos alguns exemplos:

Segundo o art. 762.º/2 CC, no cumprimento da obrigação, assim como no exercício do direito
correspondente, devem as partes proceder de boa fé. “Boa fé” é um conceito indeterminado.

O art. 280.º/2 CC estabelece que é nulo o negócio contrário à ordem pública, ou ofensivo dos
bons costumes. “Ordem pública” e “bons costumes” são conceitos indeterminados.

O conteúdo destes conceitos não pode ser delimitado por forma razoavelmente precisa e de
uma vez por todas. Esta delimitação tem de ser feita face às circunstâncias de cada caso,
através de sucessivas operações de concretização. A definição destes conceitos ou não é
possível ou não é suficiente para apreender o seu conteúdo. Tem antes de se recorrer a
exemplos geralmente reconhecidos.

São diversas as razões que podem levar à utilização de conceitos indeterminados. Podem ser
assinaladas quatro razoes principais:

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Introdução ao Estudo do Direito II 34
Daniel Vieira Lourenço – Turma B

▪ Primeiro, a multiplicidade das situações da vida pode tornar impossível a tipificação das
situações que geram determinada consequência jurídica ou a concretização da própria
consequência jurídica. Por isso o legislador deixa ao intérprete a missão de concretizar a
previsão ou a estatuição em função das circunstâncias do caso concreto.
Nestes casos os conceitos indeterminados ligam-se à individualização da solução, como
atrás foi assinalado. Em lugar de prescindir completamente da aplicação de uma regra
jurídica, o legislador flexibiliza a regra, permitindo que através da concretização do
conceito indeterminado o intérprete disponha de uma certa margem de liberdade
na apreciação do caso.
▪ Em segundo lugar, noutros casos, os conceitos indeterminados representam uma
abertura a valorações extrajurídicas, designadamente à moral. Segundo o
entendimento tradicional é o que se passa com o conceito de bons costumes. Ao
considerar nulo o negócio contrário aos bons costumes a norma legal estará a conferir
eficácia jurídica a valores e normas morais.
▪ Terceiro, o conceito indeterminado pode exprimir uma remissão para “regras gerais de
experiência”, fazendo apelo à experiência que o intérprete tem da realidade social. É
o que se passa quando o conceito manda atender ao que é normal ou usual.
▪ Enfim, no que toca ao Direito Internacional Privado, a indeterminabilidade dos
conceitos utilizados na previsão das normas de conflitos decorre da necessária
abertura a realidades jurídicas diferentes e até desconhecidas do Direito material
português.

Do exposto resulta que os conceitos indeterminados são muito diversos entre si. Esta
diversidade significa também que não há uniformidade nos problemas metodológicos suscitados
pelos conceitos indeterminados.

As atenções têm-se centrado nos conceitos indeterminados “carecidos de preenchimento


valorativo”, que são conceitos indeterminados que veiculam certos valores e/ou princípios
jurídicos, e que carecem de ser concretizados à sua luz, mediante uma valoração. É o caso dos
conceitos de “boa fé”, “justa causa”, “interesse público”, etc.

Para preencher o conteúdo destes conceitos tem de se atender ao conjunto do sistema


jurídico e à consciência jurídica geral, por forma a esclarecer quais os valores e (ou)
princípios veiculados.

A concretização dá-se através da sucessiva aplicação ou não aplicação da proposição que


contém o conceito indeterminado a casos concretos. A partir da aplicação prática do regime
onde consta o conceito vai conseguir-se chegar perto do conteúdo do conceito indeterminado
mas nunca do seu significado verdadeiro e absoluto porque nesse caso deixaria de ser
indeterminado. Estes conceitos são uma forma de garantir a justiça material porque são
aberturas do regime a realidades jurídicas ou extrajurídicas.

A solução adotada relativamente a um certo caso é generalizável a todos os casos comparáveis.


Através da formação de grupos de casos e da indagação dos traços típicos que os
caracterizam pode avançar-se muito na concretização do conceito indeterminado. Este
processo de concretização é interminável.

Quando o conceito “carecido de preenchimento valorativo” é utilizado na previsão da norma, a


sua concretização tem de atender à adequação da consequência jurídica estabelecida.

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Introdução ao Estudo do Direito II 35
Daniel Vieira Lourenço – Turma B

Dada a sua indeterminação o conceito permite que a previsão da norma abranja todas as
situações que, à luz da valoração subjacente, devem desencadear a consequência jurídica
nela estatuída. Por outras palavras, a previsão terá o alcance que convém à estatuição.

Por exemplo, para determinar se uma pessoa é ou não responsável por danos causados não
intencionalmente pela sua conduta, se empregou ou não a diligência de um bom pai de
família (conceito carecido de preenchimento valorativo), tem em última análise de se
averiguar se, à luz da valoração legal e do instituto da responsabilidade civil no seu conjunto,
se justifica fundamentar a responsabilidade, impor a obrigação de indemnizar naquele caso.

Conceitos Indeterminados (Professor Miguel Teixeira de Sousa)

Os conceitos indeterminados são conceitos de extensão variável, ou seja, são conceitos vagos.
Os conceitos indeterminados comportam, quanto ao seu significado, um núcleo e um halo ou
uma zona iluminada e uma zona de penumbra: “um núcleo de significado certo é rodeado por
um halo de significado que se dissipa gradualmente. Os conceitos indeterminados são
próprios de uma linguagem na qual, em certos casos, na qual, em certos casos, é claro a
quê que ela se refere e, noutros, não é claro a quê que ela se refere.

Preenchimento

O conceito indeterminado está preenchido não só quando a situação concreta se inclua no seu
núcleo, mas também quando essa situação ainda possa ser incluída no halo ou penumbra desse
conceito. Sendo assim, o juízo sobre um conceito indeterminado pode conduzir a um de três
resultados:

▪ O conceito indeterminado é indiscutivelmente aplicável, porque a situação concreta


se integra no núcleo do conceito: por exemplo, a conduta respeita ou viola claramente a
boa fé;
▪ O conceito indeterminado é manifestamente não aplicável, porque a situação
concreta está para alem do que pode ser abrangido pelo seu halo: por exemplo, o
comportamento do trabalhador foi irrepreensível, não lhe pode ser imputada nenhuma
violação grave e culposa dos seus deveres profissionais;
▪ O conceito indeterminado não é manifestamente aplicável, nem claramente não
aplicável, porque, sendo certo que a situação concreta não cabe no núcleo do conceito,
não é no entanto certo que ela não possa ser abrangida pelo seu halo; por exemplo, a
alteração das circunstancias que ocorreu depois da conclusão do contrato não é
claramente inesperada mas também não é totalmente previsível.

O problema que surge em relação aos conceitos indeterminados é a circunstancia de eles


poderem ser concretizados em diferentes medidas e de, portanto, ser fluída a fronteira entre o
seu preenchimento e não preenchimento.

Concretização

Os conceitos indeterminados podem ser compreendidos e aplicados através de uma


concretização pela qual se ajuíza o que neles é integrável e o que deles está excluído.

Considere-se, a titulo de exemplo, o conceito indeterminado de violação dos bons costumes é


um conceito com uma extensão indeterminada daí decorre que a ele são subsumíveis condutas

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Introdução ao Estudo do Direito II 36
Daniel Vieira Lourenço – Turma B

distintas merecedoras de diferentes valorações. Por exemplo: podem ser violados os bons
costume por corrupção, prostituição e por contratação de alguém para matar outrem. Todos
estes exemplos são violações dos bons costumes mas devem ter valorações diferentes porque se
tratam de diferentes situações onde a intensidade da violação é diferente.

O conceito indeterminado varia em função do tempo, em função da própria sociedade.

Cláusulas Gerais

Em regra, a previsão das normas reporta-se a uma categoria de situações ou a um aspeto


típico de situações da vida. Por exemplo, as normas que se reportam ao contrato de compra e
venda, à propriedade, ao casamento, à sucessão por morte. Estas situações são delimitadas com
recurso a notas típicas, ou características, e, por isso, pode dizer-se que a previsão é tipificadora.

Diferentemente, algumas proposições jurídicas dispõem de uma previsão muito ampla, que
não é tipificadora, porque não se reporta a uma categoria de situações ou a um aspeto
típico de situações da vida. Fala-se, a este respeito, de cláusulas gerais.

As clausulas gerais não se destinam a ser aplicadas exclusivamente a uma ou a um conjunto de


situações jurídicas, é feito no seu regime uma previsão muito ampla.

Pode considerar-se alguns exemplos:

▪ O art. 334.º CC estabelece que é “ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular


exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo
fim social ou económico desse direito”. Trata-se do instituto do abuso do direito. Esta
proposição reporta-se ao exercício de quaisquer direitos, ou até ao exercício de
quaisquer posições jurídicas e é, por isso, considerada uma cláusula geral.
▪ O art. 483.º CC determina que “Aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente
o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesse alheios
fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação”. Esta
proposição geral de responsabilidade civil reporta-se à violação de qualquer direito ou
interesse legalmente protegido (sem prejuízo da especialidade da responsabilidade
contratual) e é, por isso, uma cláusula geral.

Mas a expressão cláusula geral também tem sido utilizada, designadamente na Alemanha e entre
nós, para designar proposições jurídicas que embora disponham de uma previsão muito
ampla, se reportam a uma categoria de situações ou a um aspeto típico de situações da
vida.

▪ Por exemplo, o n.º 2 do art. 762.º CC determina que “No cumprimento da obrigação,
assim como no exercício do direito correspondente, devem as partes proceder de boa
fé”. À semelhança do que se verifica com o art. 242.º CC alemão, tem-se entendido que
há aqui uma cláusula geral. No entanto, esta proposição reporta-se a um aspeto típico –
o cumprimento – de uma categoria de situações – as obrigações. Fica assim a ideia de
que as cláusulas gerais são uma categoria de proposições jurídicas de contornos vagos,
marcada por uma certa relatividade: previsão mais ampla do que é normal.

O professor Lima Pinheiro tem dúvidas sobre a utilidade do conceito de cláusula geral com o
alcance que lhe vem sendo atribuído. Também aqui se verifica que as ditas cláusulas gerais são

36
Introdução ao Estudo do Direito II 37
Daniel Vieira Lourenço – Turma B

muito diversas entre si e que não há uniformidade nos problemas metodológicos por elas
suscitados.

Uma cláusula geral que utilize exclusivamente conceitos determinados não coloca os mesmos
problemas que uma cláusula geral que empregue conceitos “carecidos de preenchimento
valorativo”.

Por vezes a própria estatuição também utiliza conceitos indeterminados, não é impossível criar
uma clausula só com conceitos determinados, há normas que utilizam conceitos indeterminados
que não são clausulas gerais

Segundo o professor Lima Pinheiro, o que justifica maior atenção da Teoria Geral do Direito
não são os conceitos indeterminados ou as cláusulas gerais na sua globalidade, mas os conceitos
“carecidos de preenchimento valorativo”. As cláusulas gerais que utilizam estes conceitos
suscitam os mesmos problemas metodológicos que foram atrás examinados. A sua
concretização é feita a partir das circunstancias do caso, o interprete tem de respeitar os
princípios e os valores que estão subjacentes, tem que se fazer o raciocínio de caso para caso e
de situação para situação. Através de uma comparação pode se concluir que existe abuso de
direito em casos comparáveis, pode ser tipificado. Se dissermos que um determinado caso não é
abuso de direito também se pode dizer que casos comparáveis não constituem abuso de direito.

Algumas clausulas gerais contem remissões para conceitos extrajurídicos (abuso de direito)

Tem contornos vagos, marcada por uma certa relatividade: previsão mais ampla do que é
normal.

Assim, por exemplo, como já referido, a partir do momento em que se aceite que determinado
ato de exercício de um direito representa um abuso de direito, por exceder os limites impostos
pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito, torna-se
possível indagar quais os atos que, por serem comparáveis com o primeiro, constituem
igualmente um abuso do direito.

Com a sucessiva aplicação da cláusula, tornar-se-á possível conformar tipos de atos que
constituem abuso do direito.

É a experiencia e aplicação sucessiva do direito em casos reais da vida que vai permitir
concretizar a própria normas e delimitar o âmbito de aplicação do regime.

Além disso, seria preferível, na opinião do professor Lima Pinheiro, adotar um conceito restrito
de cláusula geral, que apenas abrangesse proposições jurídicas com uma previsão não e que não
devem ser consideradas princípios jurídicos. Este conceito delimitaria uma categoria de
proposições jurídicas.

37
Introdução ao Estudo do Direito II 38
Daniel Vieira Lourenço – Turma B

O Sistema
Capítulo III
Na visão mais comum, o sistema jurídico é encarado como O Sistema
um conjunto de proposições jurídicas, e, principalmente,
como um conjunto de normas. ▪ Sistema jurídico –
considerações
Esta ideia não é de todo pacifica, existem várias posições preliminares
sobre o que se deve entender por sistema jurídico e a sua
relevância para a interpretação e aplicação do Direito. ▪ Conceitos jurídicos.
Sistema científico de
Com efeito, uma parte destas divergências deve-se aos
conceitos. Construção
diferentes conceitos de sistema e às diferentes funções,
atribuídas ao sistema, que lhe estão ligadas
▪ Sistema normativo – razão
A sistematização parece ser uma tendência natural do de ordem
pensamento humano. Kant falou de um natureza
“arquitetónica” da razão, que aspira a considerar todos os ▪ Principais conceções
conhecimentos “como pertencendo a um sistema possível”. sobre o sistema normativo
Isto levou-o a conceber o sistema como unidade, sob uma
ideia, de conhecimentos diversos ou, por outras palavras, a ▪ Posição adotada
ordenação de várias realidades em função de pontos de vista
unitários. ▪ Princípios jurídicos

Este conceito corresponde a um sistema de conhecimentos ▪ Relevância prática do


ou ideias. Enquanto o sistema de conhecimentos é estático, sistema normativo
exprimindo-se em nexos entre ideias, o sistema de ação
refere-se a estruturas de conduta, a interações da conduta e
sociedade.

Assim, a sociedade, enquanto sistema social, é vista como


um sistema de interações, uma conexão entre seres humanos
que se estabelece por as suas condutas estarem em
correlação segundo determinados padrões de conduta e,
assim, configurarem uma estrutura de conduta complexa.

Se quisermos abranger estes conceitos de sistema numa


fórmula mais abrangente poderemos dizer que um sistema é
um conjunto articulado, estruturado de elementos e
nexos, ou por outras palavras, um conjunto delimitado e
ordenado. Um conjunto em que os seus elementos estão
ordenados.

Se partirmos desta fórmula abrangente o Direito pode ser


concebido como sistema segundo diversas perspetivas.
Podem destacar-se quatro grandes perspetivas:

▪ Parte da ordem social (ou subsistema social);

O Direito pode ser encarado como uma parte da ordem


social, que desempenha, antes do mais, uma função

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Introdução ao Estudo do Direito II 39
Daniel Vieira Lourenço – Turma B

estabilizadora, através do estabelecimento de normas e princípios de conduta vinculativos. Claro


que o Direito só pode desempenhar esta função se houver uma certa articulação interna
entre as normas e princípios de conduta que o integram. Enfim, este processo de
institucionalização também pressupõe a existência de certos valores fundamentais comuns,
que devem estar subjacentes às normas e aos princípios de conduta e que devem ser a base
da própria sociedade. Desta forma, o Direito apresenta-se como um conjunto suficientemente
ordenado para ser considerado como um sistema. É neste sentido, que o Direito é
encarado como um subsistema social.

Esta forma destaca que o Direito não pode ser visto apenas como sistema normativo, do ponto
de vista da sua estrutura tem de incluir outros elementos: valores, meios de tutela jurídica,
estruturas sociais juridicamente relevantes e situações jurídicas concretas.

Uma tendência importante da moderna Sociologia do Direito faz aplicação das teorias
sistémicas. Segundo estas teorias os sistemas são abertos ou fechados conforme há ou não
interação entre o sistema e o ambiente através de “entradas” e “saídas” [inputs e outputs].

Na conceção dominante, que corresponde ao modelo sistémico de Easton, todos os sistemas


sociais são em maior ou menor grau abertos. A análise incide sobre as transações com o meio
ambiente em que as “entradas” surgem como solicitações e apoios e as “saídas” como decisões
e ações. O esquema inclui ainda o processo de retroação ou efeito de retorno [feedback] das
“saídas” em “entradas” com a mediação do meio ambiente.

Nesta ótica, o Direito estadual, enquanto subsistema social, está em interação com o sistema
global, a sociedade, e com cada um dos outros subsistemas sociais, em especial o sistema
político e o sistema económico.

O sistema político produz decisões que constituem “entradas” no sistema jurídico, mas estas
decisões são tomadas segundo processos regulados pelo sistema jurídico e, portanto, há
programas de conduta emitidos pelo sistema jurídico que constituem “entradas” no sistema
político.

O sistema político também apoia o sistema jurídico, por exemplo, através da disponibilidade de
meios de coerção, e o sistema jurídico apoia o sistema político, através da legitimação das
decisões produzidas pelo sistema político, a promoção da paz social, através de meios jurídicos
de resolução de conflitos, entre outros.

A ordem jurídica estadual também estabelece interações com outros sistemas jurídicos,
designadamente o sistema jurídico internacional, o sistema jurídico da União Europeia e
sistemas jurídicos estrangeiros.

Nas teorias sistémicas mais recentes o problema das transações do sistema com o meio é visto
como um problema de comunicação, de circulação de informação sintetizada, o que leva os
autores a defenderem uma teoria autopoiética do sistema jurídico, o que vai ter certa influência
no surgimento das teorias, a que adiante se fará uma alusão, que vêm os sistemas sociais como
sistemas autopoiéticos.

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Introdução ao Estudo do Direito II 40
Daniel Vieira Lourenço – Turma B

▪ Sistema científico de conceitos;

Numa segunda perspetiva, os conhecimentos jurídicos podem ser estruturados como um


sistema. Isto é uma tarefa científica, que incumbe à ciência jurídica. A ciência jurídica realiza
esta tarefa, desde logo, quando, nas suas obras, sistematiza o material jurídico.

O sistema científico de conceitos, constitui um sistema de conhecimentos. A unidade e


coerência deste sistema resulta principalmente de um método lógico-conceptual. Mas nada obsta
a que o sistema comporte também nexos funcionais e valorativos.

É claro que na construção deste sistema a ciência jurídica não deve alhear-se da realidade da
ordem jurídica e, que, portanto, há uma relação entre esta perspetiva e as outras perspetivas
sobre o sistema jurídico.

▪ Sistema legal;

Em terceiro lugar, temos o sistema legal. O sistema legal resulta da arrumação de matérias feita
pelo legislador. Assim, todos os códigos modernos se nos apresentam sistematizados, com as
matérias ordenadas segundo um ou mais critérios tendencialmente racionais.

O sistema legal não é alheio ao sistema científico de conceitos. O legislador baseia-se, pelo
menos em parte, no sistema de conceitos elaborado pela ciência jurídica. Por seu turno, a ciência
jurídica não pode ignorar os conceitos legais, e, sem prejuízo da autonomia que adiante será
sublinhada, tende frequentemente a basear-se na sistemática legal.

▪ Direito objetivo (ou sistema normativo);

Numa última perspetiva, o Direito pode ser visto como uma ordem objetiva de conduta, como
Direito objetivo.

É esta perspetiva que corresponde melhor à visão mais comum de sistema jurídico. Para quem
pense que a norma, ainda que não seja o único elemento desta ordenação, será um elemento
essencial, será natural designar esta dimensão do Direito como normativa, e o sistema que lhe
corresponde como “normativo”.

O sistema normativo apresenta-se-nos, numa primeira aproximação, como um conjunto de


proposições jurídicas que regulam a vida em sociedade. Na doutrina alemã, este sistema é
frequentemente designado como “sistema interno”.

A relevância de cada uma destas perspetivas depende do contexto em que a questão se coloque
e das funções que, nesse contexto, se pretenda atribuir ao sistema.

▪ Para uma introdução ao Direito, que procura definir o seu papel na sociedade e abranger
todas as suas dimensões, impõe-se a perspetiva mais abrangente (ordem jurídica).
▪ Para a “dogmática”, a segunda perspetiva (sistema científico de conceitos).
▪ Para a ciência jurídica prática, que se ocupa da interpretação e aplicação do Direito, da
integração de lacunas, da resolução dos problemas suscitados pelo concurso de normas,
a perspetiva fundamental é a última (sistema normativo). Daí que no desenvolvimento
que se segue dedique mais atenção ao sistema normativo.

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Introdução ao Estudo do Direito II 41
Daniel Vieira Lourenço – Turma B

Regras e Sistema Jurídico (Professor Miguel Teixeira de Sousa)

Um sistema é um conjunto de elementos que constituem um todo organizado e consistente, que


se mantém idêntico num meio ambiente extremamente complexo, mutável, não totalmente
dominável e que realiza, em relação ao meio ambiente uma redução da complexidade. Da noção
de sistema podem retirar-se um conjunto de ilações:

▪ Todo o Sistema comporta um conjunto de elementos;


▪ Todo o sistema diferencia-se de um meio ambiente e de outros sistemas através de
critérios próprios de pertença dos seus elementos;
▪ Todo o sistema exige consistência;

O sistema jurídico é formado por um conjunto de regras e princípios jurídicos, distingue-se dos
outros sistemas normativos por um critério próprio de validade aplicável a esses princípios e a
essas regras e, por fim, constitui um conjunto consistente de princípios e regras.

O direito só pode ser compreendido e aplicado considerando o próprio sistema jurídico. É por
isso que, na interpretação da lei, há que contar com a unidade do sistema jurídico e que, na
integração de lacunas, há que considerar o “espirito do sistema”.

Formação do Sistema

Os sistemas jurídicos não existem desde sempre e para sempre: eles têm de ser criados e podem
deixar de existir. Para que se forme um sistema jurídico tem de haver uma regra de produção
desse sistema; é esta regra que cria o sistema ao qual vão pertencer todos os princípios e regras
que forem aceites pelo próprio sistema. A função da regra de produção de um sistema jurídico é
habitualmente desempenhada por uma Constituição.

Conceitos Jurídicos

Sistema Cientifico de Conceitos

As regras jurídicas utilizam conceitos para delimitar a sua previsão e para formular a sua
estatuição.

▪ Por exemplo, o art. 502.º CC determina que “Quem no seu próprio interesse utilizar
quaisquer animais responde pelos danos que eles causarem, desde que os danos
resultem do perigo especial que envolve a sua utilização”. Encontramos aqui vários
conceitos. Na previsão temos “interesse próprio”, “animal”, “utilização”, “perigo
especial”. Na estatuição temos “danos” e “responder pelos danos”.

Tem de se atender à própria experiencia de vida. Alguns destes conceitos são essencialmente
fácticos ou descritivos: “animal”, “utilização” e “perigo especial”. A determinação do seu
conteúdo baseia-se na experiência social do intérprete e nos usos linguísticos gerais, não
necessitam de qualquer definição legal para se concretizarem.

Outros conceitos já são técnico-jurídicos ou normativos, porque a determinação do seu conteúdo


exige o recurso a outras normas ou à elaboração realizada pela ciência jurídica.

41
Introdução ao Estudo do Direito II 42
Daniel Vieira Lourenço – Turma B

Assim, o significado de “responder por danos” só se obtém mediante a inserção da regra no


contexto do regime da responsabilidade pelo risco e, mais em geral, no contexto das normas
sobre responsabilidade civil.

Esta distinção entre conceitos fácticos e conceitos normativos carece no entanto de ser
relativizada. Esta distinção não deve servir para traçar fronteiras rígidas, mesmo um
conceito fáctico pode suscitar problemas de interpretação.

A determinação do alcance dos conceitos fácticos utilizados numa norma pode suscitar
problemas de interpretação a resolver, entre outros critérios, à luz da intenção do legislador
histórico. Daí decorre que não raramente surjam divergências entre os usos linguísticos gerais e
o alcance de um conceito fáctico utilizado numa norma.

▪ Por exemplo, segundo os usos linguísticos gerais dificilmente se pode dizer que a
eletricidade é uma coisa. Mas o conceito jurídico de coisa abrange a eletricidade.
Há também divergências entre o significado atribuído a uma palavra por outras
ciências, e aquele que releva para o Direito. Por exemplo, as bactérias foram
inicialmente classificadas pelas ciências da natureza como animais, mas desde sempre
se entendeu que não cabiam no conceito de animal utilizado por normas como o art.
502.º CC.

Tradicionalmente assume grande importância na formação dos conceitos normativos o processo


de abstração.

Quanto aos conceitos utilizados para delimitar a previsão da norma este processo consiste na
seleção, de entre os vários elementos das situações da vida carecidas de regulação jurídica, das
notas que são juridicamente relevantes. Deste modo obtêm-se conceitos que delimitam
categorias de situações da vida que apresentam as características relevantes, por exemplo,
“contrato”, “negócio jurídico unilateral”, “propriedade”, “usufruto”, etc.

Através da eliminação de parte destas notas é possível obter conceitos com diferentes níveis de
abstração e generalidade.

Assim, por exemplo, abstraindo de certas notas das obrigações contratuais, das obrigações
geradas por negócios jurídicos unilaterais e das obrigações involuntárias obtém-se o conceito
geral de obrigação. À obrigação, como posição passiva, corresponde o direito de crédito, como
posição ativa. Abstraindo de certas notas da propriedade, do usufruto e de outros direitos reais
chega-se ao conceito de direito real.

Por seu turno, abstraindo de certas notas dos direitos de crédito e dos direitos reais será possível
chegar ao conceito, mais abstrato e mais geral de direito subjetivo. Estes conceitos, que
poderemos designar por conceitos abstratos, são representações das notas comuns a vários
objetos.

O “sistema de conceitos” que assim se obtém baseia-se em regras de lógica formal. O processo
de abstração permite que a interpretação e a aplicação da lei se baseiem na definição dos
conceitos utilizados na previsão das normas e no silogismo de subsunção. Estes pontos serão
adiante examinados a propósito da interpretação e aplicação. Numa primeira aproximação pode
dizer-se que a norma se aplica quando as notas contidas no conceito que delimita a sua previsão
estão presentes na situação em causa.

42
Introdução ao Estudo do Direito II 43
Daniel Vieira Lourenço – Turma B

Garante-se assim, aparentemente, a certeza do Direito objetivo e a previsibilidade das soluções.

Mas o processo de obtenção da solução só poderia ser realizado com puros meios lógico-
conceptuais se o sistema normativo tivesse certas características, designadamente a de utilizar
só conceitos abstratos determinados e de ser caracterizado pela plenitude, não ter lacunas, ou
poder ser integrado através de operações de lógica formal.

Isto foi defendido pela jurisprudência dos conceitos. Ao longo do século XX diversas correntes
do pensamento jurídico, começando pela jurisprudência dos interesses e pela Escola do Direito
Livre, vieram demonstrar que a interpretação e a aplicação do Direito colocam questões que não
se deixam resolver através de operações de lógica formal.

▪ Primeiro, muitas das palavras utilizadas nas normas têm vários sentidos possíveis,
dando origem a problemas de interpretação. Para a resolução destes problemas é
frequentemente importante, e até decisivo, averiguar qual o sentido que melhor
corresponde às finalidades prosseguidas com a norma. Portanto a interpretação pode
envolver uma valoração. Isto é particularmente evidente no caso dos conceitos
carecidos de preenchimento valorativo. De onde decorre também que a mesma palavra
pode ter um significado diferente conforme seja utilizada numa ou noutra norma. Por
exemplo, a palavra “empresa” é umas vezes empregue no sentido de empresário, outras
vezes no sentido de “empresário coletivo” de uma pessoa coletiva que explora uma
empresa, outras vezes ainda no sentido de unidade de ação económica organizada.
▪ Segundo, o Direito positivo é lacunar. A integração de lacunas não pode ser feita
através de uma dedução, mas envolve uma valoração, quer para estabelecer a analogia,
concretizar um princípio ou criar uma solução compatível com o sistema. Se esses
métodos não funcionarem a criação de uma solução dentro do espirito do sistema
▪ Enfim, e mais em geral, o pensamento lógico-conceptual tem sido criticado por dar
primazia à lógica formal, designadamente aos mecanismos dedutivos e à subsunção,
em prejuízo da teleologia (da lógica dos fins) e da ética jurídica.

Chama-se a atenção para a importância que têm assumido outras formas de pensamento
jurídico, tais como o pensamento baseado em princípios jurídicos e em tipos, para técnicas
legislativas como os conceitos indeterminados e as cláusulas gerais, para a necessidade de
formular conceitos jurídicos que não são “abstratos” mas “funcionalmente determinados”.

Mas com isto não se renunciará à precisão e clareza conceptuais, que são necessárias à
certeza e a previsibilidade jurídicas, e não se dará demasiada liberdade ao órgão de
aplicação?

Este é um dos pontos em que se mostra necessário um equilíbrio entre as exigências dos valores
materiais e dos valores formais do Direito.

Este equilíbrio deve ter presente duas ordens de considerações:

▪ Por um lado, deve observar-se que a limitação do método lógico-conceptual representa


um sacrifício da certeza e previsibilidade jurídicas menor do que pareceria à
primeira vista, porque a jurisprudência dos conceitos se mostrou particularmente
atreita a artifícios conceptuais e habilidades retóricas para justificar o resultado desejado
pelo intérprete. Nesta medida o conceptualismo contribui para algum descrédito da

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Introdução ao Estudo do Direito II 44
Daniel Vieira Lourenço – Turma B

ciência jurídica, para a ideia de que o jurista encontra sempre uma boa argumentação
para qualquer tese.
▪ Por outro lado, não se justifica hoje a desconfiança com que o primeiro liberalismo e o
primeiro constitucionalismo encaravam os juízes, que ainda eram lembrados como
servidores do rei. Nas modernas sociedades democráticas os tribunais gozam de
independência e estão em vasta medida fora da esfera de influência dos partidos
políticos e dos grupos de interesses, o que lhes tem permitido obter uma
considerável confiança social. Por isso, parece não só metodologicamente inevitável,
mas também justificado materialmente deixar ao poder judicial uma certa quota na
solução dos problemas da justiça.

Do exposto não decorre que o método lógico-conceptual seja posto de parte, mas antes a
necessidade de o conjugar com outros modos de pensamento na resolução de questões jurídicas.
O método lógico-conceptual continua a ser necessário quer na atividade legislativa quer na
sistematização científica.

Na atividade legislativa justifica-se a utilização de conceitos abstratos suscetíveis de definição.


Os conceitos abstratos têm um papel fundamental a desempenhar na elaboração das leis. Este
papel será tanto mais importante quanto maiores forem as exigências da segurança, certeza e
previsibilidade na matéria em causa. Também as partes gerais se têm de basear principalmente
em conceitos abstratos. Estes conceitos também têm um papel a desempenhar na sistematização
científica e no ensino do Direito. Por exemplo, a apreensão de matérias como a personalidade,
a capacidade jurídica e o direito subjetivo tem de ser feita com base em conceitos abstratos.

Na formação destes conceitos o legislador e a ciência jurídica não se limitam a proceder a


sucessivas operações de abstração. Em conceitos como “personalidade” e “direito subjetivo”
também se projetam valorações e conceções jurídicas gerais. Não são conceitos neutros.

Mas a lei também utiliza conceitos de outro tipo, como já resulta do exame feito aos conceitos
indeterminados e às cláusulas gerais. Os conceitos “carecidos de preenchimento valorativo”
não são conceitos abstratos. Não são conceitos a que se chegue através de processos de
abstração.

A lei pode utilizar conceitos que incluam notas funcionais, atendendo à função económico-
social ou aos nexos funcionais entre normas ou institutos jurídicos.

Por exemplo, os conceitos de “relações de família” e “sucessões por morte” não se baseiam nas
características estruturais das situações jurídicas em causa, mas na sua relação com a instituição
familiar e com uma vicissitude jurídica (a transmissão do património por morte do seu titular).

O conceito de direito real de garantia inclui uma nota funcional: a subordinação do direito à
garantia de um crédito.

Em determinados domínios, como é o caso de certos contratos, justifica-se um pensamento


tipológico, que se baseia na imagem global que decorre dos traços típicos que se inferem do
conjunto do regime legal aplicável. Na falta de uma definição legal vinculativa saber se um
contrato se remete a um regime não resulta na verificação de um conjunto de traços particulares
mas se a imagem geral, típica se enquadra no tipo contratual. Neste caso a recondução de um
contrato concreto ao tipo contratual não depende da verificação de todos os traços particulares,
mas da sua correspondência à imagem global do tipo.

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Introdução ao Estudo do Direito II 45
Daniel Vieira Lourenço – Turma B

No caso de se tratar de um tipo contratual que se desenvolveu no tráfico negocial, e que ainda
não é legalmente regulado, a caracterização do tipo tem de assentar na função económica e nos
modelos contratuais e cláusulas usuais. Daí retiram-se traços caracterizadores que através de
uma comparação com outros tipos contratuais podem fornecer indicações relevantes para a
determinação do regime aplicável.

Enfim, há uma considerável independência entre os conceitos utilizados pela ciência jurídica e
os conceitos empregues na lei. O legislador deve empregar os conceitos funcionalmente mais
adequados à resolução dos problemas de regulação. Embora também se apoie no esforço de
sistematização realizado pela ciência jurídica, o legislador não está vinculado ao sistema
científico de conceitos. Se chegar à conclusão que o conceito mais adequado é divergente do
utilizado pela ciência jurídica ele utilizará um conceito diferente do cientifico, não está
vinculado. A extensão do conceito utilizado para delimitar a previsão da norma é um problema
de adequação aos fins e não um problema de sistematização científica.

Por seu turno, a ciência jurídica tem a liberdade de construir conceitos diferentes dos que são
utilizados na lei, por entender serem outros os conceitos que melhor servem para apreender e
ordenar o Direito.

O sistema científico de conceitos releva ainda, para a ciência jurídica, com respeito a uma
operação metodológica que se pode designar por construção jurídica. Tradicionalmente fala-se a
este respeito de determinação da natureza jurídica, por exemplo, da natureza de um contrato, da
natureza de um instituto jurídico, etc.

Muitas vezes por natureza jurídica quer-se dizer construção jurídica, a construção jurídica é a
recondução de uma realidade jurídica a um conceito utilizado pela ciência jurídica.

A construção consiste na recondução de uma realidade jurídica a um conceito científico


que faz parte do sistema de conceitos da ciência jurídica.

Tome-se como exemplo o instituto da posse. A posse é definida pelo art. 1251.º CC como o
poder que se manifesta quando alguém atua por forma correspondente ao exercício do direito de
propriedade ou de outro direito real.

• Por exemplo, uma pessoa exerce relativamente a uma coisa os poderes que assistem ao
proprietário, porventura convencida que é o seu proprietário, sem que o seja.

Isto não obsta a que se discuta se a posse é ou não um direito subjetivo e se é ou não um direito
real.

Não é raro que se confunda a construção com a qualificação, o que representa uma inversão
metodológica, característica da jurisprudência dos conceitos.

▪ Construção é reconduzir uma realidade jurídica a um conceito cientifico.


▪ A qualificação é uma operação diferente e que consiste na recondução de uma
situação da vida, ou de um seu aspeto, à previsão de uma norma. Da qualificação
depende a aplicação da norma e, por isso, a qualificação é uma operação relevante
para a determinação do regime aplicável.

Por exemplo, se um contrato pelo qual uma pessoa se obriga a realizar determinados serviços
para outra pessoa for qualificado como contrato de trabalho, será aplicável o regime do contrato

45
Introdução ao Estudo do Direito II 46
Daniel Vieira Lourenço – Turma B

de trabalho, que contém muitas normas protetoras do trabalhador. Se for qualificado como
contrato de prestação de serviço já se aplica outro regime que não contém tais normas
protetoras.

A qualificação é determinante para determinar o regime aplicável.

Só podemos fazer a construção depois de conhecer o regime, em primeiro lugar vem a


qualificação.

A construção nada tem que ver, pelo menos diretamente, com a determinação do regime
aplicável.

• Por exemplo, a posse é regulada nos arts. 1252.º e segs. CC. A construção da posse
como direito real ou como direito subjetivo de outra natureza é, em princípio,
irrelevante para a determinação do regime aplicável.

Não se pode basear a determinação do regime na construção; é antes a construção que


pressupõe a determinação do regime aplicável. Com efeito, só após a determinação do
regime aplicável se conhecem os traços caracterizadores do instituto e se pode averiguar se o
instituto se integra neste ou naquele conceito científico.

Para a construção pode ser importante não só o conteúdo jurídico do instituto, mas também a
sua função económico-social e a sua função jurídica, o papel que o instituto desempenha no
sistema normativo.

Os elementos funcionais serão relevantes quando se trate de integrar o instituto num conceito
científico que inclua notas funcionais.

Também não se exclui que a construção possa envolver uma valoração, quando o conceito não
seja puramente abstrato e envolva, na determinação do seu conteúdo, uma valoração.

▪ Por exemplo, para a construção da cláusula de reserva da propriedade, que é


normalmente uma cláusula acessória do contrato de venda, pode ser relevante a função
económico-social de garantia do crédito do preço da venda e a função jurídica que é a
de reservar o direito de resolução do vendedor e de acautelar a eficácia da resolução
perante terceiros e o direito à restituição da coisa. A esta luz seria concebível incluir a
reserva da propriedade num conceito de “propriedade-garantia”, que englobaria as
diferentes modalidades de utilização da propriedade em garantia.

A construção não tem que ver diretamente com a determinação do regime aplicável. Mas parece
que indiretamente, ao contribuir para uma melhor compreensão do instituto, a construção pode
ter alguma relevância para resolver problemas de regime que não encontram uma resposta
inequívoca na lei

Significa que a construção se faz depois de determinar o regime mas quando há aspetos difíceis
na qualificação do regime a construção pode auxiliar

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Introdução ao Estudo do Direito II 47
Daniel Vieira Lourenço – Turma B

Sistema Normativo – Razão de Ordem

O sistema normativo apresenta-se, numa primeira aproximação, como um conjunto de


proposições jurídicas que regulam a vida em sociedade. A doutrina diverge sobre os elementos
deste sistema e sobre a sua caracterização.

Principais conceções sobre o sistema

➢ Pensamento Sistemático De Raiz Positivista

▪ Positivismo Normativo (Kelsen)


▪ Neopositivismo (Hart)
▪ Teoria Autopoiética (Luhmann, Teubner)

➢ Pensamento Sistemático De Pendor Neojusnaturalista

▪ Esser
▪ Dworkin
▪ Larenz, Canaris
▪ Oliveira Ascensão
▪ Menezes Cordeiro

➢ Críticos Do Pensamento Sistemático

▪ Peine
▪ Zippelius

O moderno pensamento jurídico tende a encarar o Direito objetivo como um sistema. O


pensamento dominante é, por conseguinte, um pensamento sistemático.

De acordo com o que foi referido uma norma jurídica é aquela que pertence ao sistema jurídico,
logo, para o moderno pensamento jurídico, o sistema revela-se importante, desde logo, para a
determinação e identificação das normas jurídicas. O critério de identificação de uma regra
jurídica é a pertença ao sistema. Nesta aceção encontram-se as diversas correntes de Kelsen
(positivo normativo) e Santi Romano (institucionalismo).

Mas o sistema normativo pode ter outros planos de relevância, designadamente o controlo da
validade das normas, a interpretação e a integração de lacunas, a resolução de problemas de
concurso de normas e até a eventual correção de soluções individualizadas porque o sistema, já
analisado, é muito mais do que uma norma isolado, tem de ser considerado na sua globalidade.

Segundo uma conceção muito divulgada, e que é adotada pelo positivismo normativo, o sistema
jurídico, ou normativo, é formado por normas. Kelsen distingue dois tipos de sistema:

• No sistema que designa por estático as normas que constituem o sistema podem ser
deduzidas a partir de uma norma fundamental que contém um postulado ético. As
normas encontram-se associadas umas às outras pelo seu conteúdo, pois cada uma delas
é uma concretização do postulado ético ou moral contido na norma fundamental. O
critério de pertença ao sistema é “material”, diz respeito ao conteúdo da norma. Este
tipo de sistema abrange o sistema axiomático, que é aquele em que as soluções

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Introdução ao Estudo do Direito II 48
Daniel Vieira Lourenço – Turma B

particulares podem ser obtidas por dedução a partir de certas proposições gerais cuja
verdade é evidente.
• O sistema dinâmico é exposto por Bobbio da seguinte forma: as normas que
constituem o sistema derivam umas das outras através de sucessivas delegações de
poder, de tal modo que, partindo da norma emanada pela autoridade inferior para a
norma emanada pela autoridade imediatamente superior se chega à norma fundamental
que constitui a base de validade de todas as normas do sistema. Esta norma fundamental
não tem outro conteúdo senão a atribuição de poder à autoridade legisladora máxima. O
critério de integração destas normas no sistema não diz respeito ao seu conteúdo, mas
ao facto de serem emanadas através de sucessivas delegações de poder a partir de uma
autoridade máxima. Pode-se dizer que é um critério genético.

O professor Dias Marques parece refletir um conceção de sistema algo semelhante, quando
encontra o fator que liga e ordena as normas, por forma a constituírem um sistema, na hierarquia
que resulta de todo o ato criador de Direito ter o seu fundamento num comando jurídico que
tenha autorizado a sua prática. Observe-se, contudo, que este autor não restringe as fontes do
Direito aos atos normativos, preferindo a expressão mais ampla “facto normativo”, que inclui o
costume.

Da crítica anteriormente dirigida ao sistema lógico-conceptual da “jurisprudência dos conceitos”


decorre já que o sistema normativo não pode ser encarado como um sistema axiomático e, mais
em geral, como um sistema de tipo dito “estático”. Assim como não é possível que as soluções
para todos os problemas de regulação jurídica sejam deduzíveis de um conceito supremo,
também não é possível deduzi-las de uma norma fundamental.

Mas há outras razões por que o sistema normativo não pode ser concebido como um sistema
dito “estático”. É que um sistema deste tipo não admite contradições e é caracterizado pela
plenitude porque, em ultima instância, todas as normas derivam de uma lei fundamental, todas
são inspiradas por ela, logo, teria de existir coerência.. Ora no sistema jurídico há contradições e
lacunas.

Por acréscimo, o conteúdo da norma nunca pode ser o único critério de pertença ao sistema,
uma vez que há uma pluralidade de sistemas jurídicos, em que vigoram muitas normas de
conteúdo semelhante ou idêntico. O sistema dito “estático” nada nos diz, por exemplo, sobre a
questão de saber se uma norma pertence ao sistema nacional A ou ao sistema nacional B.

Já o sistema dito dinâmico permite, pelo menos à primeira vista, resolver a questão que acabo de
colocar. A norma pertence ao sistema A se foi criada em conformidade com a sua norma
fundamental. Porém, este tipo de sistema também se depara com algumas objeções, algumas
delas levantadas por neopositivistas:

▪ Assim HART considera que o sistema dinâmico não pode explicar a relevância do
costume como fonte do Direito, uma vez que as regras consuetudinárias não são
criadas mediante o exercício de uma competência normativa.
▪ Parece no entanto duvidoso que KELSEN entenda o sistema de tipo dinâmico nos
termos expostos. Com efeito, segundo o autor, a norma fundamental tanto pode
instituir como facto produtor de normas o facto legislativo como um facto
consuetudinário.

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Introdução ao Estudo do Direito II 49
Daniel Vieira Lourenço – Turma B

➢ Em primeiro lugar, para Kelsen esta norma fundamental seria uma norma pressuposta,
segundo a qual as normas devem ser criadas em conformidade com a primeira
Constituição histórica e com as normas constitucionais estabelecidas em conformidade
com ela. Ao procurar justificar a norma fundamental, Kelsen argumenta que para
interpretar uma ordem coerciva globalmente eficaz como um sistema de normas
jurídicas válidas temos de pressupor a norma fundamental. O que aparentemente
significa que só depois de conhecidas as normas que pertencem a uma ordem jurídica se
está em posição de conhecer o conteúdo da norma fundamental. Mas, se é assim, então
a norma fundamental não constitui um critério de identificação das normas do sistema.
➢ Em segundo lugar, pode suceder que, gradualmente, venha a afirmar-se uma nova fonte
do Direito num sistema jurídico, por exemplo, o gradual estabelecimento de um sistema
de precedente vinculativo. Neste caso não pode dizer-se que a jurisprudência é fonte do
Direito em conformidade com a primeira Constituição histórica. Mas este argumento
suscita questões complexas, pois é legítimo perguntar se as normas constitucionais
sobre a produção do Direito não podem ser modificadas em conformidade com a
primeira Constituição histórica.

Para Hart o critério de identificação da norma jurídica é fornecido por uma “regra de
reconhecimento”. Esta regra especificará certo traço ou traços que a regra primária deve
possuir.

➢ Assim, a regra de reconhecimento pode assumir uma grande variedade de formas. Os


traços a que atende podem ser o facto de as regras primárias serem emanadas de um
órgão específico, de um prática costumeira longa ou a sua relação com decisões
judiciais. Ao providenciar uma “marca de autoridade”, a regra de reconhecimento
introduz, ainda que em forma embrionária, a ideia de sistema: as regras primárias são
unificadas pela presença da marca que as caracteriza.

Segundo Hart, para a existência de um sistema jurídico são necessárias e suficientes duas
condições mínimas:

▪ Por um lado, que aquelas regras de conduta que são válidas segundo os critérios de
validade últimos do sistema sejam geralmente observadas;
▪ Por outro lado, que as regras de reconhecimento especificando os critérios de
validade jurídica sejam efetivamente aceites como padrões públicos comuns de
conduta oficial pelos órgãos de aplicação.

O que permite concluir não ser estritamente necessário que os particulares aceitem a
regra de reconhecimento como válida; basta que os particulares observem as regras que os
órgãos de aplicação identificam como válidas.

Quanto à regra de reconhecimento, Hart defende:

▪ Por um lado, que a “regra de reconhecimento” é uma regra “última”, porque a sua
vigência não depende de qualquer outra regra. A regra de reconhecimento existe como
uma prática dos tribunais, autoridades e particulares na identificação do Direito por
referência a determinados critérios. A sua existência é uma questão de facto: afirmar
que a regra existe é fazer uma declaração sobre o modo como as regras de um sistema
“eficaz” são identificadas. Segundo o professor Lima Pinheiro, a “regra de
reconhecimento”, assim entendida. não é uma verdadeira regra, não é uma proposição

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Introdução ao Estudo do Direito II 50
Daniel Vieira Lourenço – Turma B

normativa, que estabeleça como é que as regras jurídicas devem ser identificadas, mas
uma proposição descritiva, que descreve o modo como se formam as regras numa
determinada sociedade.
▪ O autor afirma, ainda, que a regra de reconhecimento é uma regra de costume
jurisprudencial [judicial customary rule] que só existe se é aceite e praticada nas
operações de identificação e aplicação do Direito pelos tribunais. Então a regra não se
fundamenta só num facto, há uma prática e uma convicção de vinculatividade por parte
dos órgãos de aplicação.

Agora não se trata, ou não se trata apenas, de atribuir às normas sobre a produção jurídica um
papel fundamental na conformação do sistema, mas de sustentar que os elementos do sistema
são produzidos pelo próprio sistema, nisto consistindo a unidade do sistema. Designa-se isto por
clausura “recursiva” (Luhmann) ou “operacional” do sistema (Teubner).

Para compreender corretamente este postulado é necessário distinguir entre comunicação e ação.

O Direito existiria só como comunicação. O próprio sistema jurídico determina quais os factos
que têm um significado juridicamente relevante e que, assim, entram na auto-reprodução do
sistema. Logo, é impossível identificar estes factos sem o conhecimento do sistema jurídico. A
constituição destes elementos é um resultado autónomo do sistema que ocorre no processo de
auto-observação e de auto-descrição.

Mas ao mesmo tempo o sistema jurídico é “cognitivamente aberto”, i.e., a sua constante
reprodução é dependente da possibilidade de verificação de certas condições. Estas condições
referem-se a algo externo ao sistema, a factos. Por conseguinte, mediante uma programação
interna o sistema torna-se dependente de factos. Por este meio realiza-se uma coordenação do
processamento jurídico de informação com o ambiente.

Esta teoria rompe com a conceção de Kelsen porquanto opõe a ideia de circularidade das teorias
sistémicas ao esquema piramidal de um sistema jurídico fundado na norma fundamental.

Também relativamente à construção de Hart se verifica que o papel por este autor atribuído à
“regra de reconhecimento” é aparentemente substituído pela ideia de “autorreferência”, se a
entendo corretamente, uma referência ao sistema considerado no seu conjunto.

Como nas construções anteriormente examinadas, manifesta-se aqui o desígnio de conceber o


sistema por forma a que os seus elementos possam ser identificados com razoável grau de
certeza e que a sua validade possa ser controlada. Mas a teoria autopoiética exprime, além disso,
uma determinada conceção sobre a função do Direito e a interrelação dos subsistemas
societários.

Ao Direito é atribuída uma função essencialmente estabilizadora. O papel do Direito não é o de


constituir um instrumento de intervenção direta, mas o de conformar as interrelações dos
subsistemas societários, por forma descentralizada, sem que nenhum subsistema possa
generalizar a sua própria racionalidade, ou visão do mundo, para a impor aos outros.

Sem prejuízo das críticas genéricas que possam ser dirigidas às conceções de sistema de raiz
positivista, a que adiante me referirei, deixo apenas algumas interrogações, e desde logo, a de se
não nos encontraremos perante uma transposição apressada de modelos sistémicos
desenvolvidos nas ciências da natureza e, designadamente, na biologia.

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Introdução ao Estudo do Direito II 51
Daniel Vieira Lourenço – Turma B

Em segundo lugar, perguntaria se não se estabelecerá aqui uma confusão entre regulação pelo
sistema dos processos de produção dos seus elementos e “auto-determinação” do sistema. Pela
circunstância de o sistema jurídico regular as fontes do Direito e, designadamente, o processo
legislativo não deixa, a meu ver, de haver “saídas” do sistema político que representam
“entradas” no sistema jurídico, uma vez que a iniciativa do ato normativo e o seu conteúdo não
são, em princípio, determinadas pelo sistema jurídico.

Acresce que em sistemas jurídicos como o português também se opera a receção de fontes de
outros sistemas jurídicos – a ordem jurídica internacional e a ordem jurídica da União Europeia
– o que ainda parece mais afastado de uma ideia de “auto-determinação”.

Em terceiro lugar, perguntaria se com a palavra “auto-reprodução” não se quer dizer


simplesmente que cada elemento é portador da validade normativa do sistema porque foi
produzido segundo as regras estabelecidas no sistema e satisfaz as exigências de validade por
ele postas. Em caso afirmativo, será que a teoria autopoiética supera as conceções de sistema
atrás examinadas?

Enfim, não haverá aqui uma passagem insensível do plano do ser, da explicação do
funcionamento do sistema e do esclarecimento dos seus pressupostos e condicionamentos
funcionais, para o plano do dever ser, daquilo que o sistema e cada um dos seus componentes
deve ser, segundo um modelo ideal de “condução” descentralizada da sociedade?

A esta conceção de um sistema formado exclusivamente por normas segundo um critério de


identificação que é, em princípio, formal, vieram as correntes modernas neojusnaturalistas opor
não só a necessidade de atender à dimensão valorativa, ou axiológica, do Direito, aspeto que já
foi anteriormente sublinhado, mas também, e em ligação com isso, ao importante papel
desempenhado pelos princípios jurídicos.

Para a compreensão dos princípios jurídicos, e do papel que se propõe atribuir-lhes, convém
recuar até ao movimento codificador do séc. XIX. Em algumas destas codificações manda-se
integrar as lacunas mediante a aplicação dos “princípios gerais de Direito” ou, como sucedia no
art. 16.º do Código de Seabra, na falta de analogia, pelos “princípios de direito natural”.

Segundo o positivismo legalista os “princípios gerais de Direito” eram normas dotadas de


elevado grau de generalidade, implícitas, que se obtinham mediante sucessivas generalizações
das normas particulares do sistema. Já a expressão “princípios de direito natural” representa
uma óbvia manifestação do jusnaturalismo, embora a influência do positivismo tenha levado a
que por vezes esta expressão tenha sido tomada como sinonímia de “princípios gerais de
Direito”.

Toda a evolução posterior do conceito de "princípio jurídico" é marcada pela atração exercida
por cada um destes entendimentos: o de proposição geral de Direito positivo ou de princípio
suprapositivo.

O trabalho decisivo sobre a formação dos princípios e a sua função no processo judicial deve-se
a ESSER (1956). Este autor verificou que, quando não é possível encontrar a solução do caso
dentro dos quadros fixados pelo texto da lei, a jurisprudência faz frequentemente apelo a
“conceções jurídicas gerais” ou “princípios” que infere da lei ou alega inferir da lei.

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Introdução ao Estudo do Direito II 52
Daniel Vieira Lourenço – Turma B

Este apelo a “conceções jurídicas gerais” que se inferem de certos trechos legais é considerado
uma fundamentação aparente. Na verdade estes princípios vigorariam independentemente da lei.
Eles justificar-se-iam pela “natureza das coisas ou do instituto em causa”.

Este autor também procurou superar a oposição entre conceito “positivo” e “suprapositivo” de
princípio. Para Esser os princípios não são inferidos indutivamente a partir da legislação, nem
obtidos por dedução a partir de um sistema de Direito Natural ou de uma ordem objetiva de
valores.

Já assinalei que o autor faz apelo à “natureza das coisas” ou de um determinado instituto, o que
podemos interpretar como uma referência ao sentido ordenador imanente a certas relações ou
estruturas sociais.

Esser faz ainda apelo aos “domínios pré-positivos de princípios ético-jurídicos e convicções
gerais”, o que não pode deixar de significar que o Direito se fundamenta, pelo menos até certo
ponto, na moral.

A jurisprudência atua como “transformador” dos “princípios pré-positivos em proposições


jurídicas positivas e institutos”.

O princípio começa por ser “revelado” num caso concreto e só depois se generaliza como
critério de solução de uma série de casos. Uma vez descoberto, o seu posterior desenvolvimento
na jurisprudência não é uma simples “aplicação”, mas um processo duradouro e criativo de
“conformação”. O princípio necessita ainda, para vigorar na prática, de ser reconhecido
judicialmente ou legalmente como uma diretiva vinculativa.

Em todas as culturas jurídicas se verifica uma circulação entre revelação do problema, formação
de princípios e consolidação do sistema. Enquanto soluções generalizadas de problemas os
princípios são os verdadeiros elementos formadores do sistema.

A investigação realizada alguns anos mais tarde, por DWORKIN, só no âmbito dos sistemas do
Common Law, apresenta um claro paralelo com a investigação feita por ESSER, embora
aparentemente a desconheça.

DWORKIN faz valer que na determinação da solução do caso, em especial nos “casos difíceis”
[hard cases] os juristas utilizam padrões [standards] que não funcionam como regras, mas
como princípios, políticas [policies] e outros tipos de padrões.

Em sentido estrito, “princípio” é um padrão que deve ser observado porque é uma exigência da
justiça [justice or fairness] ou de outra dimensão da moral. Ao passo que a “política” é um
padrão que estabelece um objetivo a ser atingido, geralmente uma melhoria num aspeto
económico, político ou social da comunidade.

Esta conceção de princípio exprime com toda a clareza uma fundamentação moral do Direito.

DWORKIN dá um contributo fundamental para a distinção entre regra e princípio. A diferença


entre regra e princípio é lógica ou, talvez com mais rigor, relativa à sua estrutura lógica.
Contrariamente à regra no princípio as consequências jurídicas não decorrem automaticamente
da verificação dos pressupostos de facto. O princípio é apenas um “ponto de partida” para
encontrar a solução; aponta a direção em que a solução deve ser encontrada.

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Introdução ao Estudo do Direito II 53
Daniel Vieira Lourenço – Turma B

Esta distinção segundo a estrutura não se confunde com a distinção segundo o grau de
generalidade, que identifica princípio com regra geral e se relaciona com o conceito positivista
de “princípio geral de Direito”.

Dworkin assinala que os positivistas (designadamente Hart numa primeira fase) entendem que
se um caso não é controlado por uma regra estabelecida o juiz deve decidi-lo no exercício da
discricionariedade judicial. O juiz pode tomar em conta outros padrões que não sejam regras,
mas não estaria obrigado a fazê-lo. O autor defende, pelo contrário, que os princípios vinculam
o juiz.

Segundo o autor, a vigência dos princípios inviabiliza a tentativa de basear o sistema numa
“regra de reconhecimento”. Não seria possível formular como uma regra única, ainda que
complexa, o conjunto de padrões móveis, em desenvolvimento e interação em que se baseia a
argumentação a favor de um princípio. Mesmo que se conseguisse formular tal regra seria
demasiado incerta para identificar claramente o Direito válido, que é uma preocupação
fundamental para o positivismo normativo.

As proposições jurídicas são “verdadeiras” se decorrem dos princípios da justiça substantiva


[justice, fairness] e da justiça processual [procedural due process] que fornecem a melhor
interpretação construtiva da prática legal da comunidade. Os fundamentos do Direito [grounds
of law] assentam na integridade, i.e., na melhor interpretação construtiva das decisões jurídicas
passadas. A interpretação construtiva é aquela que propõe a melhor justificação moral para a
prática.

Poderia então dizer-se que os princípios são o critério de identificação (e também de validade)
dos elementos do sistema jurídico.

Mas encontram-se em Dworkin indicações no sentido de os elementos do sistema serem


exclusivamente os princípios, e as regras apenas o resultado da sua concretização.

A “reconstrução” do sistema jurídico com base nos princípios ético-jurídicos que derivam da
melhor teoria moral que justifica o sistema, feita por Dworkin, aproxima-se da conceção do
sistema como “ordem axiológico-teleológica de princípios gerais” sustentada por Canaris e em
vasta medida seguida por Larenz.

Segundo Canaris e Larenz, a unidade inerente ao sistema jurídico reclama certos pontos centrais
de referência aos quais se possa reconduzir a diversidade do particular. Estes pontos centrais de
referência são, na linha do defendido por Esser, os princípios ético-jurídicos.

Os princípios são pré-dados ao ordenamento jurídico positivo e plasmam-se nele enquanto


expressão do Direito justo. Por isso são vistos por estes autores como uma “mediação” entre a
ideia de Direito, como fundamento último da normatividade do Direito, e as regulações
concretas do Direito positivo.

Afirma Larenz que os princípios não se obtêm mediante um procedimento generalizador a partir
de regras jurídicas. A sua revelação exige antes uma viagem de retorno desde as regras às ideias
que as enformam e a partir das quais elas surgem como um conjunto dotado de sentido.

A relação entre a ideia de Direito e os princípios jurídicos gerais, bem como entre os princípios
jurídicos gerais e as normas jurídicas que podem ser vistas como sua concretização, não é
dedutiva, nem indutiva, mas uma relação de “esclarecimento recíproco”. Os princípios fornecem

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Introdução ao Estudo do Direito II 54
Daniel Vieira Lourenço – Turma B

pontos de vista orientadores para a obtenção da solução de casos concretos e veem o seu
conteúdo enriquecido e o seu sentido explicitado por estas soluções concretizadoras.

Para Canaris o sistema jurídico é composto exclusivamente de princípios. Os traços deste


sistema resultam em primeiro lugar das características dos princípios, que em grande parte
coincidem com a doutrina de Dworkin:

▪ Os princípios jurídicos não vigoram sem exceções e podem entrar em oposição ou


contradição;

▪ Não reclamam exclusividade, i.e., não podem ser formulados segundo um esquema “só
quando... então”;

▪ Só revelam o seu conteúdo próprio num conjunto de recíprocos complementos e


limitações;

▪ Carecem para a sua concretização de subprincípios e de valorações particulares com


conteúdo material próprio.

Para Canaris o sistema deve entender-se como um sistema aberto, o que, para o “sistema
interno”, significa a mutabilidade histórica das valorações jurídicas fundamentais

Esta conceção de sistema é em vasta medida acolhida por Menezes Cordeiro, que fala de um
sistema aberto, móvel, heterogéneo e cibernético.

Na expressão de Menezes Cordeiro o sistema é aberto, em termos extensivos, pela sua não
plenitude; e, em termos intensivos, porque se compatibiliza, mesmo nas áreas cuja cobertura
assegure, com inclusão de elementos materiais que lhe são estranhos.

É móvel por, no seu seio, as proposições não se encontrarem hierarquizadas, surgindo antes
como permutáveis.

É heterogéneo por apresentar, no seu corpo, áreas de densidade diversa: desde coberturas
integrais por proposições rígidas até quebras intrassistemáticas e lacunas rebeldes à analogia.

É, enfim, cibernético, por atentar nas consequências de decisões que legitime, modificando-se e
adaptando-se em função desses elementos periféricos.

Por seu turno, OLIVEIRA ASCENSÃO considera a conceção de sistema adotada por
MENEZES CORDEIRO como conforme à doutrina moderna, embora discorde do papel central
atribuído por este autor à ciência jurídica, tornando-a constitutiva do próprio Direito, uma vez
que onde não há consciência do método nem ciência jurídica não deixa de haver Direito.

Também para estes autores as normas não são elementos do sistema jurídico.

Para OLIVEIRA ASCENSÃO a norma é um modo individual de expressão da ordem jurídica,


entre outros modos de expressão. Chega-se à norma mediante a interpretação da fonte. Mas a
norma não é sequer um modelo prefixado e individualizado que o intérprete reconstitui. Só a
ordem e as fontes seriam uma realidade objetiva preexistente, ao passo que as normas seriam
“criação do intérprete”, seriam “um veículo ou instrumento, como expressão da ordem e
mediador da solução do caso”.

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Introdução ao Estudo do Direito II 55
Daniel Vieira Lourenço – Turma B

A mobilidade do sistema é um ponto especialmente controverso. Perante esta conceção de


sistema, trata-se de saber se, na resolução de cada problema, um determinado critério de decisão
pode reclamar preferência, ou se, entre os diferentes princípios e valores não existe uma
hierarquia rígida

Caso se entenda, como parece ser o caso de CANARIS, que o sistema só é móvel quando, em
regra, há uma liberdade de apreciação do peso relativo de cada um dos argumentos que podem
constituir critério de decisão, inclino-me a pensar que a imobilidade fundamental do sistema
também é válida para o Direito português.

Isto porque na maior parte dos casos o fator decisivo no modelo de decisão jurídica é
constituído por normas, e porque a necessidade de conjugar diferentes normas que estão ao
mesmo nível hierárquico e de as interpretar à luz de valores e princípios não significa, em regra,
que o intérprete possa ou deva optar entre uma norma e outra norma ou princípio.

Mas para isto ser assim, também se terá de considerar as normas como elementos do sistema,
ponto a que adiante se retornará.

Esta conceção de sistema atribui-lhe múltiplos planos de relevância no processo de obtenção da


solução do caso, que vão além da já referida relevância para a interpretação e a integração.
Oferece especial interesse o tratamento dado por CANARIS às normas contrárias ao sistema e
às “normas estranhas ao sistema”.

No caso das normas contrárias ao sistema, o autor centra as suas atenções nas “lacunas de
colisão”.

Estas lacunas podem desde logo surgir em virtude de contradições de normas, em que a mesma
situação da vida é objeto de duas normas vigentes que estabelecem consequências jurídicas
incompatíveis entre si. Não sendo possível aplicar simultaneamente ambas as normas, e se
também não se justificar a primazia de uma delas sobre a outra, verifica-se que as normas se
anulam mutuamente dando origem a uma “lacuna de colisão”.

Já é mais controverso se no caso de uma contradição valorativa as normas que exprimem cada
uma das valorações se anulam mutuamente dando origem a uma lacuna de colisão. Neste caso
as consequências jurídicas das normas em presença não são incompatíveis entre si; trata-se antes
de uma contradição na forma porque são valoradas situações semelhantes ou análogas.

A posição do intérprete é distinta no caso de contradições normativas e de contradições


valorativas. No caso de contradições normativas, para empregar uma expressão que surgiu na
doutrina internacionalprivatística, temos uma situação em que “não pode ser assim”; ao passo
que nas contradições valorativas trata-se de um situação em que pode, mas “não deve ser
assim”. Pergunta-se se neste último caso, a decisão do legislador não terá, apesar de tudo, de ser
respeitada.

CANARIS resolve este problema com recurso ao princípio constitucional da igualdade: as


normas “contrárias ao sistema”, por exprimirem valorações contraditórias entre si, podem
atentar contra o princípio da igualdade e, por isso, serem consideradas inválidas. Com efeito,
pode tratar-se de uma diferença de tratamento que viole a proibição de arbítrio legislativo.

Mas isto não quer dizer que todas as normas que exprimam contradições valorativas sejam
inválidas, visto que, como assinalei a propósito dos valores do Direito, o princípio da igualdade,

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Introdução ao Estudo do Direito II 56
Daniel Vieira Lourenço – Turma B

ao proibir o arbítrio legislativo, satisfaz-se com um fundamento material bastante ou suficiente


para a diferença de tratamento. Portanto, nem toda a contradição constitui uma violação da
proibição de arbítrio. De onde resulta que pode haver normas “contrárias ao sistema” válidas,
que vigoram na ordem jurídica.

No caso das “normas estranhas ao sistema”, não há uma contradição normativa ou valorativa
mas um isolamento valorativo da norma relativamente ao sistema porque não é reconduzível a
um princípio geral ou ideia retora; a sua ratio não possui suficiente força persuasiva para poder
valer como um enriquecimento consequente dos valores fundamentais do domínio jurídico em
causa.

Esta “estranheza” ao sistema não prejudica a vigência da norma, a menos que constitua uma
violação do princípio constitucional da igualdade. Salvaguardada esta última hipótese, a “norma
estranha ao sistema” é uma norma válida, mas que, no entender de CANARIS, deverá ser
interpretada restritivamente ou, pelo menos, não ser interpretada extensivamente.

Repare-se, portanto, que esta conceção de sistema não implica necessariamente que os
princípios jurídicos sejam um critério de validade das normas do sistema, embora também não
exclua a possibilidade de decorrerem de certos princípios ou valores fundamentais exigências
materiais quanto ao conteúdo das normas.

Mas a ideia que hoje prevalece é a que em constituições como a alemã ou a portuguesa os
princípios ou valores fundamentais têm a sua sede na Constituição e que, portanto, o problema
da compatibilidade das normas com estes princípios ou valores se reconduz, em princípio, à
questão da sua constitucionalidade.

Mas há autores, como BAPTISTA MACHADO, que manifestando maior pendor jusnaturalista,
e aproximando-se mais do pensamento de um DWORKIN, encontram o critério de validade das
normas nos princípios jurídicos.

Mais, o próprio legislador seria limitado por princípios fundamentais de Direito, decorrentes da
“ideia de Direito” e que se sedimentaram na cultura humana ao longo da história.

Isto apresenta alguma proximidade com a posição que anteriormente adotei, mas eu salientei
que o património adquirido de valores e princípios fundamentais deve ser entendido à luz do
sentido da evolução verificada.

Resta assinalar que o sistema concebido deste modo não desempenha a função identificadora
dos elementos do sistema normativo nem a função de individualização do sistema.

A não realização da função identificadora verifica-se desde logo com as normas, porquanto as
normas são excluídas do sistema.

A circunstância de uma norma poder ser vista como concretização de um princípio do sistema
não significa que ela faça parte do ordenamento em causa, uma vez que, como atrás assinalei
com respeito ao sistema dito estático (na terminologia de KELSEN), a norma pode fazer parte
de outro ordenamento.

Inversamente, uma norma pode não se reconduzir a nenhum princípio (caso da dita “norma
estranha ao sistema”) sem que por isso deixe de vigorar no ordenamento em causa.

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Introdução ao Estudo do Direito II 57
Daniel Vieira Lourenço – Turma B

Por sua vez, a identificação dos princípios fica dependente da referência à “ideia de Direito” e
às normas jurídico-positivas. Mas como a “ideia de Direito” é um conceito vago, se não
obscuro, e não se fornece qualquer critério de identificação das normas jurídico-positivas, esta
conceção de sistema também não fornece, por si, um critério capaz de identificar os princípios
que formam o sistema.

Enfim, é perfeitamente possível que sistemas aparentados sejam dominados pelos mesmos
princípios jurídicos. Como se individualiza o sistema relativamente a outros sistemas? Não
encontro resposta nesta conceção de sistema.

Em contrapartida, as conceções de sistema que fazem apelo aos valores e princípios jurídicos
têm o mérito de pôr em relevo o sentido do Direito, a orientação a valores que é uma das suas
notas caracterizadoras, e que se liga, nos termos que atrás ficaram expostos, à própria
fundamentação do Direito.

Ao abstraírem desta nota, as conceções de sistema de pendor positivista normativista não


permitem captar o sentido do Direito e dificilmente podem encontrar outro fundamento para o
Direito que não seja o da sua imposição pelo poder político.

Por último, faça-se uma breve referência à crítica do pensamento sistemático feita em algumas
obras recentes.

Segundo PEINE, a ordem jurídica só poderia ser um sistema se os fins prosseguidos pelas
normas pudessem ser ordenados por forma a que os fins das normas infraordenadas pudessem
ser vistos como um meio em relação aos fins das normas supraordenadas, formando, assim, um
esquema piramidal. Ora, isto só se verifica dentro de certos domínios jurídicos e, por isso, o
Direito como conjunto de todas as normas vigentes não seria um sistema; só seriam pensáveis
sistemas parciais.

Pode dizer-se que este modo de ver as coisas é predeterminado por um certo conceito de
sistema, que é semelhante ao sistema dito “estático”, embora não adote um critério identificador
lógico-formal mas teleológico. Mas também pode perguntar-se se, na verdade, o esforço por
encontrar pontos de vista unitários mediante o apelo a valores e princípios jurídicos não tende a
escamotear a existência, a este nível, de grandes diferenças entre os diversos domínios jurídicos.

Em sentido parcialmente convergente, outra corrente, de que se nomeará ZIPPELIUS, opõe o


pensamento problemático ou a “primazia da perspetiva concreta” àquilo que designa por
“dogmatismo sistemático”, com apelo às contribuições metodológicas de HARTMANN e
POPPER .

O “dogmatismo sistemático” parte de uma conceção global – designadamente uma determinada


conceção de Direito Natural, um materialismo histórico ou um formalismo ético – para a
solução de problemas concretos. O “dogmatismo sistemático” subordina os problemas concretos
à coerência do sistema, através da escolha e recorte dos problemas e, em caso de necessidade,
através da supressão e deformação dos problemas não conformes e da dedução forçada da
solução do problema da conceção global.

Ao passo que a dar-se primazia à perspetiva concreta, os princípios gerais, a que se reconduzem
as soluções particulares, não podem valer como axiomas, mas apenas como assunções a título
experimental, que estão sob reserva de correção a todo o tempo, caso os resultados das

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Introdução ao Estudo do Direito II 58
Daniel Vieira Lourenço – Turma B

pesquisas singulares o exijam. As soluções particulares não têm forçosamente de se ajustar aos
princípios gerais.

Não se nega que a sistematização do Direito sirva para tornar compreensível o conjunto das
normas e para evitar as contradições. Mas da “primazia da perspetiva concreta” decorre também
que o fim dos esforços sistematizadores não deverá ser um sistema rígido, mas um sistema
(parcial) variável de proposições jurídicas, predisposto a ser correntemente complementado e
modificado.

Isto torna claro que os princípios jurídicos não podem constituir um critério de identificação e
de validade das normas jurídicas. Mas não resulta daí uma clara divergência prática, quanto ao
processo de obtenção da solução, relativamente às conceções sistemáticas moderadas.

A flexibilidade do sistema é limitada pela fixação da previsão legal por forma inequívoca. Esta
flexibilidade parece então traduzir-se, no essencial, numa relativização dos princípios e dos
valores do sistema e no apelo que, na falta de um critério “exato” para a escolha entre as várias
soluções se faz ao “sentimento jurídico”, ligado à ideia de consenso social proporcionado pela
solução.

Posição Adotada

Em minha opinião há toda a vantagem em procurar conceber como um sistema o conjunto de


proposições jurídicas que constituem o Direito objetivo, sejam elas regras ou princípios. Neste
sentido têm convergido autores de diferentes tendências, como entre nós, MARCELO REBELO
DE SOUSA e TEIXEIRA DE SOUSA, na doutrina germânica, ALEXY e PAWLOWSKI e, na
doutrina de língua inglesa, mais recentemente, HART.

Isto corresponde não só à exigência de coerência interna postulada pela supremacia do Direito e
pelo princípio da igualdade, mas também às exigências de certeza, de previsibilidade e de
aptidão para a realização das tarefas que o Direito é chamado a realizar nas modernas
sociedades industriais.

Quer isto dizer que o modo por que hoje e aqui concebo o sistema normativo não constitui um
modelo válido para todos os tempos e para todas as sociedades, ou, por outras palavras, não é
um modelo inerente ao conceito de Direito.

Quer isto dizer também que este sistema dificilmente pode ser concebido como um conjunto de
elementos que pelo seu conteúdo e fim sejam reconduzíveis a um postulado fundamental, a um
principio geralmente conhecido.

O que também não implica que se abstraia do sentido do Direito, quando tomado no seu
conjunto, do conteúdo das normas e dos valores que procuram realizar. É antes de reconhecer
que o Direito pode servir para a realização de valores de diferente natureza e que diversos
domínios jurídicos podem ser dominados por diferentes valores e princípios jurídicos.

Alguns domínios jurídicos fundamentais são dominados por valores e princípios que têm uma
base moral, como o Direito Privado ou o Direito Penal, outros apresentam a par destes outros
valores e princípios de caráter político, económico, etc., como é caso do Direito Constitucional,
outros, como o Direito da Economia, têm mais que ver opções de política social e económica.

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Introdução ao Estudo do Direito II 59
Daniel Vieira Lourenço – Turma B

A isto soma-se a receção, por parte de uma ordem jurídica estadual como a portuguesa, do
Direito Internacional Público geral ou comum, do Direito Internacional convencional e derivado
que vincule o Estado português e do Direito da União Europeia, i.e., das fontes de sistemas
jurídicos diferentes.

Este modo de ver as coisas tem como corolário que, segundo creio, o sistema normativo não
deve ser concebido em função de uma particular teoria moral.

Isto não só porque a base moral dos diferentes domínios jurídicos é muito variável, mas também
porque as diferentes teorias morais são objeto de vasta controvérsia, e a questão do sistema, com
toda a relevância que tem para a ciência jurídica prática, não deve ficar refém da posição que se
tome nesta controvérsia.

A caracterização do sistema e as funções que ele tem de desempenhar não pode depender
exclusivamente de uma base moral.

O que não implica, como atrás foi exposto, que se negue a objetividade ou racionalidade do
discurso sobre questões de moral e de justiça, nem que se negue que a moral coloca
determinadas exigências ao Direito.

Deve ainda sublinhar-se que o sistema normativo, concebido como um conjunto de normas e
princípios que até certo ponto estão ligados por nexos intrassistemáticos, está inserido naquele
sistema mais amplo que corresponde à ordem jurídica no seu conjunto, e que é através desta
inserção que se estabelece uma relação com os valores, estruturas sociais juridicamente
relevantes e situações jurídicas individualizadas.

O sistema normativo é um elemento da ordem jurídica que estabelece relações com outros
elemento da ordem juridica (valores, instituições, moral, religião)

À indistinção entre estes dois planos, e dos diferentes sistemas que lhe correspondem, deve-se
uma boa parte das divergências entre as principais conceções de sistema.

Seria reducionista encontrar a ordem juridica como um conjunto de proposições normativas mas
dificilmente se pode definir o sistem jurídico objetivo com a exclusão das normas do sistema

Tenho por evidente que é reducionista uma conceção que reduza o fenómeno jurídico a um
conjunto de proposições jurídicas, mas nada impede que no seio da ordem jurídica se, conforme,
entre outros componentes, um sistema normativo.

O que se me afigura dificilmente defensável é que se pretenda conceber o sistema jurídico,


enquanto ordem objetiva de conduta, com exclusão das normas.

CANARIS argumenta que um sistema de normas seria pouco consequente, porque o que está
em causa é encontrar os nexos que ligam as normas e que os princípios jurídicos unificadores só
em parte diminuta constituem proposições jurídicas suficientemente determinadas para
constituírem normas. Ora esta consideração apenas justifica que os princípios sejam vistos como
elementos unificadores do sistema, já não obriga a excluir as normas do sistema.

A razão profunda porque CANARIS se esforça por excluir as normas residirá porventura na
manifesta impossibilidade de reconduzir todas as normas jurídicas a princípios ético-jurídicos.

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Introdução ao Estudo do Direito II 60
Daniel Vieira Lourenço – Turma B

So que se assumirmos que nem todos os princípios tem base geral podemos cometer a afirmação
que a maioria das normas são remetidos a princípios orientadores

Mas esta razão desaparece se admitirmos que nem todos os princípios jurídicos têm um
fundamento moral e que o sistema não se tem de caracterizar por um grau tão elevado de
“unidade” como o autor defende.

Podemos ter de facto um sistema com diferentes áreas de densidade sistemática.

Outra objeção que pode ser oposta à conceção de um sistema formado por normas e princípios é
a de que a norma é um produto da interpretação, e que a interpretação é enquadrada pelo
sistema. Se o sistema é anterior à norma, não faria sentido entender o sistema em função da
norma. É esta a objeção que me parece decorrer da posição de OLIVEIRA ASCENSÃO, se a
entendo corretamente.

A interpretaça é enquadrada no sistema, se o sistema é anterior à norma não devemos entender o


sistema de acordo com as normas que o com~~oem

Mas a circunstância de a norma ser um produto da interpreta-ção – visto que é a interpretação


que faculta o conhecimento da norma através da compreensão do significado das proposi-ções
jurídicas por que a norma se exprime – não obsta a que ela seja uma realidade (cultural) de
algum modo “objetiva”.

Todo o sentido simbólico da conduta humana e das suas interações, incluindo os valores, só
pode ser acedido mediante uma interpretação, mas isto, nos termos que foram expostos
anteriormente, não impede a objetivação dos padrões de conduta e dos valores. Que jhaja uma
onbjetivaçao a partir do momento em que constituem um conteúdo de concsiencia comum a
uma pluralidade de pessoas

A dificuldade suscitada pela necessária intervenção do sistema na obtenção da norma é a meu


ver ultrapassada pela hermenêutica: a relação entre a norma e o sistema deve ser vista como um
relação circular entre a parte e o todo, em que o todo entra na constituição da parte e a parte
entra na constituição do todo.

Por outras palavras, o sistema só pode ser entendido à luz do conjunto das normas e princípios
que o formam, assim como cada uma das normas e princípios tem de ser entendida à luz do
sistema.

Claro que é concebível uma ordem jurídica formada principal ou exclusivamente por
proposições jurídicas pouco determinadas, por princípios e máximas. Será este porventura o
caso dos Direitos tradicionais. A verdade é que a regra representa um recurso de formalização e
racionalix«zaçao que tem relevância para a atuação legislativa, facilidade na aplicação sdo
direito,…

Certeza e previsibilidade são essenciais para que o direito possa realizar a sua missão de orientar
e conduzir o correto funcionamento das instituições e da socidade

Mas a norma representa um importante recurso de racionalização e formalização da ordem


jurídica, com relevância ao nível da adequação legislativa, da certeza e previsibilidade jurídicas
e da facilidade na aplicação do Direito, de que as sociedades modernas não podem prescindir.

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Introdução ao Estudo do Direito II 61
Daniel Vieira Lourenço – Turma B

A certeza e a previsibilidade das soluções jurídicas são essenciais para que o Direito possa
realizar a sua função de orientação de condutas e para que os sujeitos jurídicos possam fazer o
planeamento das suas vidas.

No que se refere à vida económica, uma ordem jurídica que não se baseie em normas
razoavelmente claras e precisas cria riscos económicos adicionais para as empresas que lhe
estão submetidas e aumenta, por isso, os seus custos, tornando a economia do respetivo país
menos competitiva.

Decorre do anteriormente exposto que o sistema, para realizar as funções de individualização


relativamente a outros sistemas e de identificação dos seus elementos, não pode ser concebido
segundo um critério primário que atenda ao conteúdo e ao fim dos elementos que o compõem.

Quando se pergunta por aquilo que individualiza um sistema jurídico relativamente a outros
sistemas jurídicos, nós pensamos não propriamente no seu conteúdo e valores mas na
pertinência desse sistema a uma determinada sociedade, que, no caso de um sistema jurídico
nacional é uma determinada sociedade estadual.

O que sugere que a individualização de um sistema normativo se tem de entender à luz da sua
inserção na ordem jurídica global, como ordem institucionalizadora de uma determinada
sociedade.

Quanto à identificação dos elementos do sistema, trata-se, antes do mais, de uma questão de
fontes do Direito. Quer isto dizer que, à primeira vista, o critério de identificação é um critério
genético: pertence ao sistema o elemento que foi produzido segundo um processo idóneo para o
efeito.

Segundo o entendimento atrás adotado, o problema das fontes tem em última análise de ser
resolvido segundo a conceção normativa sobre os processos idóneos para gerarem regras
jurídicas que integra a consciência jurídica geral e, em especial, a consciência da comunidade
jurídica.

Também assinalei que a teoria das fontes está pensada para a formação das normas, e que o
reconhecimento dos princípios jurídicos como elementos do sistema, com caráter vinculativo,
vem colocar novos problemas.

A vigência do princípio jurídico pressupõe a sua consagração num determinado conjunto de


regras jurídicas (legais ou consuetudinárias) ou, faltando esta consagração, a formação de um
costume jurisprudencial, pelo qual o princípio seja reconhecido como vinculante perante a
consciência jurídica geral.

Quanto às exigências materiais que devam ser colocadas às normas para que possam constituir
elementos válidos do sistema, creio, em primeiro lugar, que se deve seguir aquele entendimento,
acolhido tanto pelas conceções sistemáticas moderadas como pelos defensores da “primazia da
perspetiva concreta”, segundo a qual a validade de uma norma jurídica não depende
necessariamente de ser reconduzível a um princípio jurídico nem é necessariamente prejudicada
pela sua contrariedade a um princípio jurídico.

Decorre daqui que a pertença ao sistema não depende, em princípio, de um critério material.

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Introdução ao Estudo do Direito II 62
Daniel Vieira Lourenço – Turma B

As considerações relativas ao conteúdo das normas, aos princípios e aos valores da ordem
jurídica já assumem grande importância para a realização de outras funções tais como:

- a de permitir a construção do sistema como um conjunto coerente e ordenado, por forma a


evitar contradições normativas e valorativas;

- a de orientar a resolução dos problemas suscitados pelas contradições que apesar de tudo
ocorram;

- a de fornecer critérios orientadores para a interpretação e integração;

- a de facilitar a apreensão do conjunto, mediante a referência a ideias rectoras, aos grandes


vetores que dominam as soluções particulares.

Quais são as características do sistema assim entendido?

Em primeiro lugar este sistema não pode apresentar aquela unidade que caracteriza um sistema
de tipo “estático”. Há princípios e outras ideias rectoras que dominam áreas jurídicas mais ou
menos vastas, mas não se exige que estas ideias rectoras possam ser vistas como concretização
de um postulado fundamental.

A afirmação da heterogeneidade do sistema vai por isso além da simples existência de quebras
intrassistemáticas e lacunas rebeldes à analogia, significa também a existência de subsistemas
relativamente autónomos no seu seio e de zonas de baixa densidade sistemática que não
formam, por si, um subsistema.

Em segundo lugar, a coerência do sistema é relativa, uma vez que comporta contradições
normativas e valorativas, embora vise evitá-las e eliminá-las. A coerência do sistema, e o
próprio sistema, nunca são algo de acabado, mas algo permanentemente em construção.

Em terceiro lugar, de acordo com o anteriormente exposto, que dou aqui por reproduzido, o
sistema é fundamentalmente imóvel.

Em quarto lugar, o sistema é aberto, porque não contém soluções para todos os problemas de
regulação jurídica, podendo incorporar soluções que decorrem de valorações feitas pelo
intérprete e princípios descobertos através destas soluções.

Enfim, é também certo que há um “processo de retroação” ou efeito de retorno mediante o qual
o sistema atende às consequências sociais das normas e decisões que produz, modificando-se e
adaptando-se em função dessas consequências. É no entanto controverso se se pode designar
esta característica do sistema como cibernética.

A importância dos princípios como polos centralizadores de soluções singulares e, que nessa
medida, vêm esclarecer os nexos axiológicos que ligam conjuntos de normas, não deve fazer
esquecer a existência de outros nexos intrassistemáticos que se estabelecem entre as normas.

Vou limitar-me a referir alguns destes nexos, a título exemplificativo.

Alguns destes nexos já resultam de desenvolvimentos anteriores.

É o caso do nexo de especialidade, que como sabem se estabelece entre uma norma geral e uma
norma especial.

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Introdução ao Estudo do Direito II 63
Daniel Vieira Lourenço – Turma B

É também o caso do nexo de subsidiariedade, que se estabelece geralmente entre conjuntos de


normas. Nos termos deste nexo as normas subsidiárias são aplicáveis a uma categoria de
situações da vida ou a um aspeto destas situações quando surgir uma lacuna no conjunto de
normas que lhe é primariamente aplicável.

Por exemplo, as normas reguladoras da compra e venda são aplicáveis a outros contratos
onerosos de alienação na medida em que sejam conformes com a sua natureza e não estejam em
contradição com as disposições legais estabelecidas para estes contratos (art. 939.º CC).

Mas há outros nexos a considerar.

Um destes nexos é aquele que podemos designar por nexo de pressuposição, em que o conceito
utilizado na previsão de uma norma se reporta a um situação jurídica definida por outra norma
ou normas.

Por exemplo, o art. 1316.º CC determina que o direito de propriedade se adquire por contrato,
sucessão por morte, ocupação, acessão e demais modos previstos na lei. Se admitirmos que a
consequência jurídica é a aquisição da propriedade, os conceitos utilizados na previsão
“contrato”, “sucessão por morte”, “ocupação” e “acessão” reportam-se a situações jurídicas que
são definidas por outras normas, as que regulam os contratos de alienação, a sucessão por morte,
a ocupação e a acessão.

Outro dos nexos que têm sido referidos pelos autores é o nexo operativo. Este nexo estabelece-
se entre duas normas quando a observância ou inobservância de uma delas desencadeia a
atuação da outra.

Por exemplo, a observância da norma que confere o poder para a celebração do contrato
obrigacional desencadeia a aplicação da norma que impõe a obrigação dele decorrente, isto a
admitir que a liberdade contratual e o efeito obrigacional do contrato são produto de normas.

Por seu turno, a inobservância da norma que impõe a obrigação desencadeia a aplicação da
norma que estabelece a sanção (para quem entenda que a proposição que estabelece a sanção
exprime uma norma independente).

Forma-se assim um determinado tipo de conjunto funcional.

Um terceiro nexo é o genético. Este nexo estabelece-se entre uma norma e as normas cuja
validade depende dessa norma. Por exemplo, entre as normas de uma lei e a norma constitu-
cional que confere competência à Assembleia da República; entre um regulamento e a lei com
base na qual é editado.

Também se pode falar de um nexo hierárquico, embora segundo um entendimento (OLIVEIRA


ASCENSÃO) a hierarquia entre as fontes seja mais importante do que a hierarquia entre as
normas. Adiante tomarei posição sobre este ponto.

Certo é que da superioridade da lei constitucional sobre a lei ordinária, e da lei ordinária formal
sobre os regulamentos, por exemplo, também resulta que as normas regulamentares se têm de
conformar com as normas legais e as normas da lei ordinária com as normas constitucionais.

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Introdução ao Estudo do Direito II 64
Daniel Vieira Lourenço – Turma B

Especialmente importantes são, a meu ver, os nexos que se estabelecem entre as normas que
regulam uma determinada situação típica. Por exemplo, as normas que regulam o contrato de
compra e venda, as normas que regulam o direito de propriedade.

Estas normas complementam-se e limitam-se reciprocamente (o que não constitui portanto uma
característica distintiva dos princípios) por forma a proporcionar uma disciplina da situação que,
ao mesmo tempo, seja coerente e exprima adequadamente a ideia ou ideias rectoras que lhe
estão subjacentes.

Encontramos aqui um outro tipo de conjunto funcional, que é especialmente importante para a
interpretação de cada uma das regras que o integra.

Enfim, observe-se que também se estabelecem nexos entre complexos normativos, por exemplo,
entre o instituto da responsabilidade civil e as normas que atribuem e regulam direitos (que é
um nexo operativo).

A Regra Jurídica

Estruturalmente a regra jurídica é uma proposição que enlaça pelo menos dois elementos: a
previsão e a estatuição.

A previsão é constituída pelo conjunto de elementos que têm de estar presentes para que a
norma se aplique. Podemos designar elementos por pressupostos.

A estatuição consiste numa consequência jurídica.

Por exemplo, o artigo 66/1 do Código Civil “A personalidade adquire-se no momento do


nascimento completo e com vida”.

➢ Previsão: “nascimento completo e com vida”


➢ Pressupostos:
▪ Nascimento;
▪ Completo;
▪ Com vida;
➢ Estatuição: “A personalidade adquire-se…”

Princípios Jurídicos

Os princípios jurídicos são, a par das regras jurídicas e de outros nexos intrassistemáticos,
elementos do sistema normativo.

O princípio é uma proposição jurídica com elevado grau de indeterminação que, exprimindo
diretamente um fim ou valor da ordem jurídica, constitui uma diretriz de solução.

A diferença entre regra e princípio reside então na sua estrutura lógica: contrariamente à regra
no princípio as consequências jurídicas não decorrem automaticamente da verificação dos
pressupostos de facto.

O princípio é apenas um “ponto de partida” para encontrar a solução; aponta a direção em que a
solução deve ser encontrada.

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Introdução ao Estudo do Direito II 65
Daniel Vieira Lourenço – Turma B

A indeterminação verifica-se quer quanto à previsão quer quanto à estatuição. Não se encontra
delimitada por forma rígida a categoria de situações a que se aplica o princípio; e a
consequência jurídica também não é determinada com precisão.

Embora sejam caracterizados, na sua generalidade, pela indeterminação, os princípios


apresentam diferentes graus de concretização:

▪ Nos menos concretizados não há uma separação entre previsão e consequência jurídica,
mas apenas uma ideia jurídica retora, que orienta a concretização. É o que se passa, por
exemplo, com o princípio da dignidade da pessoa humana, mesmo sendo a base de todo o
ordenamento jurídico português (“Portugal é uma republica soberana, baseada na
dignidade da pessoa humana…”, artigo 1º CRP), não tem uma concretização
delimitada, como já referido, funciona como uma ideia retora.
▪ Outros princípios apresentam o esboço de uma separação entre previsão e estatuição,
como é o caso do princípio da igualdade (art. 13.º CRP) e o princípio da confiança, por
exemplo enquanto se exprime no subprincípio da não retroatividade da lei nova e no dever
de atuar segundo a “boa fé”. Estes princípios já não se apresentam muito longe de
constituírem regras de que pode resultar diretamente a decisão de casos concretos.

Graças à sua indeterminação o princípio serve para realizar na máxima medida possível um fim
ou valor da ordem jurídica. Neste sentido pode-se dizer que se trata de um “comando de
otimização”, por contraposição às regras, que são “comandos definitivos”.

Os princípios jurídicos desempenham uma dupla função:

➢ A função positiva consiste na orientação do processo de obtenção da solução. Esta


função é desempenhada:
▪ Na resolução de problemas de interpretação, em especial quando se trate de
conceitos carecidos de preenchimento valorativo;
▪ Na integração de lacunas, pelo menos quando não seja possível supri-las mediante
o recurso à norma aplicável a casos análogos;

A função negativa pode consistir:

▪ Na não aplicação de uma norma a situações que, em princípio, caberiam na sua


previsão, ou redução teleológica;
▪ Na invalidade da norma incompatível com o princípio, o que, de acordo com
anteriormente exposto, só se verifica, normalmente, com os princípios constitucionais.
Tendo as regras uma concretização delimitada quando não estão em causa princípios
constitucionais, tendencialmente as regras vão prevalecer.

Quanto à revelação dos princípios, os princípios não se obtêm mediante um procedimento


generalizador a partir de regras jurídicas.

No que toca aos princípios subjacentes a um conjunto de regras jurídicas, a sua revelação exige
uma viagem de retorno desde as regras às ideias que as enformam e a partir das quais elas
surgem como um conjunto dotado de sentido.

➢ A maior parte dos princípios encontra-se hoje consagrada na lei. Alguns destes
princípios são expressamente referidos na constituição e noutras leis:

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Introdução ao Estudo do Direito II 66
Daniel Vieira Lourenço – Turma B

▪ Por exemplo, o princípio do Estado de Direito e o princípio da dignidade da


pessoa humana decorrem desde logo dos arts. 1.º e 2.º CRP.
▪ O princípio da igualdade tem assento constitucional. O princípio da autonomia
privada encontra expressão em normas constitucionais e na lei ordinária.
➢ Outros princípios são obtidos a partir de uma exame das razões que justificam
várias normas ou complexos normativos:
▪ Por exemplo, o princípio da confiança, segundo o qual, sob certas condições,
deve ser tutelada a posição da pessoa que, com razões objetivas, atua com base
numa situação aparente que não corresponde à realidade.
➢ Mas além disso, certos princípios são revelados de outro modo: são “descobertos” e
formulados pela jurisprudência ou pela ciência jurídica com relação a
determinados casos, que não são resolúveis de outro modo, designadamente casos
omissos na lei, como decorrência de um valor do sistema jurídico, vindo depois a impor-
se na “consciência jurídica geral” graças à sua aptidão para a realização deste valor.

Em qualquer dos casos, o princípio vem a obter um modo de vigência no sistema jurídico.

Na opinião do Professor Lima Pinheiro, a vigência dos princípios jurídicos deve ser
fundamentada:

➢ Na sua consagração em regras jurídicas;


➢ Ou na formação de uma proposição jurídico-consuetudinária, designadamente um
costume jurisprudencial.

Para autores como Esser os princípios têm sempre um caráter pré-positivo e ético-jurídico. Por
outras palavras, alguns autores consideram que todos os princípios são ético-jurídicos e pré-
positivos, ou seja, são os princípios que vão inspirar e dar corpo às regras, logo, os princípios
têm prioridade na resolução de casos concretos, porque foram os próprios princípios que deram
origem às regras. Sendo pré-positivos eles vão estar associados a determinadas situações
jurídicas e só vão ser descobertos num momento posterior.

Se se aceitar que nem todos os ramos do Direito são dominados por princípios ético-jurídicos e
que, mesmo nos ramos em que isto se verifica, podem desempenhar algum papel outras
diretrizes de solução que, na sua estrutura, são idênticas aos princípios ético-jurídicos, parece de
preferir um conceito mais amplo de princípio jurídico, que corresponde à noção atrás
apresentada.

▪ Nesta ordem de ideias um princípio também pode exprimir um fim ou valor de índole
económica, política, cultural, ambiental, entre outros

Quando se verifica que essas ideias e valores vetores determinam, influenciam e delimitam
áreas como o direito da economia, mesmo não tendo uma base moral, vão ter, também, uma
estrutura de princípio, por isso pode ser adotada uma conceção mais ampla de princípios que
abranja todas estas posições.

O regente, não toma posição em relação primazia dos princípios.

Deve ainda acrescentar-se que nem todas as considerações de política legislativa se reconduzem
a princípios.

Quanto às características dos princípios pode assinalar-se:

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Introdução ao Estudo do Direito II 67
Daniel Vieira Lourenço – Turma B

▪ Os princípios jurídicos não vigoram sem exceções e podem entrar em oposição ou


contradição e quando entram contradição a situação pode ser regulada pelo artigo335º
CC;
▪ Os princípios não reclamam exclusividade, ou seja, não podem ser formulados segundo
um esquema “só quando... então”;
▪ Os princípios só revelam o seu conteúdo próprio num conjunto de recíprocos
complementos e limitações, complementam-se e delimitam-se reciprocamente;

▪ Os princípios carecem para a sua concretização de subprincípios e valorações


particulares com conteúdo material próprio.

Dizer que por não terem uma concretização delimitada e mais especifica do que as regras só os
princípios entram em contradição nunca é absoluto, é sempre tendencial, porque, as regras
também podem entrar em contradição, ainda que esta contradição seja resolvida no próprio
plano da interretação. Estas características apenas permitem traçar uma distinção tendencial
entre regras e princípios.

Certos princípios reclamam “exclusividade” – por exemplo o princípio da não discriminação – e


não comportam restrições.

As regras, quando integradas num conjunto funcional, como aquele que formam as regras que
regulam uma determinada situação típica, também se complementam e limitam reciprocamente.

Enfim, certas regras, maxime as que utilizam conceitos indeterminados, também requerem
valorações particulares para a sua concretização.

Em caso de contradição entre princípios, não sendo possível estabelecer a superioridade de um


princípio relativamente ao outro, cada um deles deve ceder perante o outro na medida que for
exigida pela melhor realização possível de ambos. É a mesma ideia que preside à solução da
colisão de direitos nos termos do art. 335.º CC.

Artigo 335

1. “Havendo colisão de direitos iguais ou da mesma espécie, devem os titulares, na medida


do possível ceder na medida do necessário para que todos produzam igualmente o seu
efeito, sem maior detrimento para qualquer das partes.
2. Se os direitos forem desiguais ou de espécie diferente, prevalece o que deva considerar-
se superior.”

▪ Se podermos estabelecer uma hierarquia do principio em causa prevalece o


superior, se não for possível, cada um dos princípios deve ceder perante o outro.
▪ A determinação da medida em que cada princípio deve ceder exige uma
ponderação dos valores que os princípios em presença veiculam. Não se trata
apenas de uma avaliação quantitativa, é o resultado de valorações que se tem de
orientar não só por critérios gerais mas também pelas circunstâncias da situação
concreta.

Também aqui mediante sucessivas operações de aplicação, da comparação de casos e da


tipificação de grupos de casos será possível obter uma certa concretização destes critérios de
ponderação.

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Introdução ao Estudo do Direito II 68
Daniel Vieira Lourenço – Turma B

Os princípios vão-se concretizando e delimitando a sua esfera da atuação com a sua própria
aplicação em casos e situações concretas, à medida que vão sendo aplicados, tornar-se á
identificar um conjunto de casos em que poderão ser aplicados e formar grupos de tipos de
casos e, por outro lado, tornar-se-á, também, possível identificar um conjunto de casos que à
partida não ver a aplicação desse determinado principio.

Esta ponderação de valores não deve ser só quantitativa, deve se orientar pelas
circunstancias da situação concreta

Esta ponderação de valores tem de obedecer a um metro controlado, a necessidade de aprender à


medida em que está em causa, e o sofrimento por cada valor tem que ceder, mínimo sacrifício,
proporcional ao que está em causa

Princípios Jurídicos (Professor Miguel Teixeira de Sousa)

O professor Miguel Teixeira de Sousa faz uma classificação tripartida dos princípios jurídicos:

▪ Princípios Programáticos

Os princípios programáticos definem objetivos a alcançar e fins a atingir; estes princípios têm
uma função orientadora, procurando a levar a que sejam alocados os meios necessários para
atingir determinados objetivos e fins. Os princípios programáticos impõem a obtenção de certos
objetivos e fins, mas indicam apenas que eles devem ser realizados, em cada momento, na maior
medida possível. Assim os princípios programáticos tornam obrigatórias todas as medidas que
favoreçam a obtenção desses objetivos e fins e proíbem todas aquelas que impeçam vir alcança-
los. Por exemplo, a construção de uma sociedade livre, justa e solidária (art. 1 CRP). Todas as
regras que violarem o princípio são proibidas.

▪ Princípios Formais

Os princípios formais destinam-se a optimizar a efetividade do direito na sociedade, construindo


uma ordem jurídica orientada pela justiça, confiança e eficiência:

• O principio da segurança exige que o sistema jurídico seja justo e equitativo;


• O principio da confiança jurídica requer que o sistema jurídico transmita
previsibilidade;
• O principio da eficiência exige que o sistema jurídico procure obter os melhores
resultados com o menor dispêndio de recursos.

A produção do direito não é possível sem atender aos princípios formais da justiça, confiança e
eficiência que se concretizam em princípios materiais. Por isso, os princípios formais são
simultaneamente constitutivos e regulativos: o direito não pode ser construído sem esses
princípios e, ao mesmo tempo, eles regulam situações jurídicas e fornecem critérios de
solução de casos concretos.

▪ Princípios Materiais

O sistema jurídico orienta-se pelos princípios formais da justiça, confiança e eficiência que se
concretizam em princípios materiais.ao contrário dos princípios formais, os princípios materiais
só realizam uma função regulativa.

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Introdução ao Estudo do Direito II 69
Daniel Vieira Lourenço – Turma B

Assim cada um dos princípios formais é concretizado em vários princípios materiais:

➢ Principio Formal de Justiça


▪ Principio Material da Igualdade;
▪ Principio Material da Proporcionalidade (meios utilizados devem ser
adequados);
➢ Principio Formal da Confiança
▪ Principio de que a alteração da lei deve ser justificado em razoes objetivas;
▪ O principio de que a ignorância da lei não justifica a sua violação;
▪ O principio da não retroavidade da lei nova;
➢ Principio Formal da Eficiência
▪ Principio da alocação necessária para atingir os meios necessários;

Critério de Otimização

Os princípios devem ser aplicados o máximo que for compatível com os demais princípios.

Assim, relativamente aos princípios formais, não há uma medida mínima ou média de justiça,
de confiança ou de eficiência que seja aceitável; a única medida aceitável de justiça, de
confiança e de eficiência é a medida máxima que for compatível com outros princípios formais.
Compreende-se, por isso, que os princípios são comandos de otimização.

Também os princípios materiais devem ser considerados na medida máxima que for
compatível com os outros princípios materiais. De acordo com este critério é possível
distinguir:

▪ Princípios Materiais Relativos;

Os princípios formais relativos são aqueles que admitem uma concretização segundo um
principio formal e uma exceção segundo um outro principio formal. Por exemplo, o principio da
autonomia privada (art.405/1 CC) prossegue o principio formal da eficiência mas admite
limitações pelo princípio formal da confiança (por exemplo, as exigências de forma imposta
para a celebração de alguns negócios) ou pelo principio formal da justiça (por exemplo, a
proteção dos trabalhadores ou dos consumidores).

▪ Princípios Materiais Absolutos:

Os princípios formais são aqueles que sendo concretizações de princípios formais não admitem
nenhuma exceção. Por exemplo o artigo 29º/1 CRP concretiza o principio formal da confiança e
não admite nenhuma exceção.

Princípios e Regras

Para o professor Miguel Teixeira os princípios distinguem-se das regras porque:

▪ Os princípios têm “peso” e “importância”, pelo que podem ser aplicados pelo juiz
em diferentes medidas, em contrapartida, as regras jurídicas são totalmente
aplicadas pelo juiz (“tudo ou nada”);
▪ Os princípios podem conflituar com outros princípios, nesta situação, prevalece o
principio com mais peso ou mais importante, sem que nenhum dos princípios

69
Introdução ao Estudo do Direito II 70
Daniel Vieira Lourenço – Turma B

conflituantes tenha de ser considerado inválido, em contrapartida, as regras que


entram em conflito não podem ser, todas elas, regras válidas;

Aplicação dos Princípios

Os princípios, ao contrário das regras, não fornecem uma razão conclusiva ou definitiva
a favor de uma certa solução ou decisão, mas apenas uma razão prima facie.

O critério de “tudo ou nada” não é suscetível de ser utilizado para alicerçar uma
distinção entre regras e princípios, pois quer os princípios quer as regras só podem ser
aplicadas na medida do tudo, por muito que haja uma valoração um principio só pode
ser aplicado na medida do tudo.

Axiologia dos Princípios

O professor Miguel Teixeira de Sousa refere que os princípios se referem a valores


estruturantes do ordenamento jurídico destinados a otimizar a efetividade do direito na
sociedade segundo critérios de justiça, de confiança e de eficiência, as regras jurídicas
são concretizações daqueles mesmos valores ou são, em certos casos, valorativamente
neutras.

Os princípios são sempre estruturantes e valorativos, nomeadamente porque eles


permitem a produção de regras válidas ou determinam a invalidade de regras com eles
conflituantes, em contrapartida, as regras são sempre instrumentais e podem não ser
valorativas.

Na resolução de conflitos entre princípios e princípios e regras é necessário ter em conta


o cas concreto, depende da posição hierárquica.

Alguns autores defendem que o principio deve prevalecer sempre.

Relevância prática do sistema normativo

O sistema normativo é particularmente importante para a ciência jurídica prática. Revela,


neste sentido, em quatro planos:

▪ Ao permitir a identificação das regras e princípios jurídicos, são regras e princípios


jurídicos as regras e os princípios que pertencerem ao sistema juridico;
▪ Ao enquadrar a atividade legislativa, por forma a evitar contradições normativas e
valorativas, incoerências;
▪ Ao orientar a resolução dos problemas suscitados pelas contradições que apesar de tudo
ocorram;
▪ Ao fornecer critérios orientadores para a interpretação e integração.

Por enquadramento sistemático da atividade legislativa pode entender-se a preservação e


promoção da coerência do sistema.

➢ O legislador deverá, em primeiro lugar, zelar pela consonância e articulação interna


das normas em vigor. Por conseguinte, as disposições das leis que edite devem ser
consonantes e articuladas entre si e com as normas de outras fontes.

70
Introdução ao Estudo do Direito II 71
Daniel Vieira Lourenço – Turma B

➢ Em segundo lugar, o legislador deverá atender às soluções desenvolvidas pela


jurisprudência e pela doutrina, embora, obviamente, não esteja vinculado a estas
soluções. O legislador pode levantar soluções que se afastam das decisões da
jurisprudência ou daqueles que são defendidas pela doutrina
➢ Por último, o legislador não deve preocupar-se apenas com evitar contradições
normativas, mas também esforçar-se pela coerência valorativa. Quer isto dizer que
situações análogas não devem ser objeto de valorações jurídicas contraditórias. Não
se trata apenas de evitar que tenhamos em relação a uma mesma situação duas normas
que se apliquem com consequências diferentes, trata-se também de tratar de forma
coerente situações análogas

Por exemplo, se a lei X regula uma categoria de situações de um modo, e o legislador entende
que uma categoria de situações análoga deve ser regulada de modo diferente, então não deve
estabelecer uma lei Y só para esta categoria de situações, mas antes revogar a lei X e estabelecer
um regime para todas as situações que devem ser igualmente valoradas. Desta forma evitam-se
incoerências valorativas.

No caso do nexo hierárquico uma das normas prevalece sobre as outras, prevalece a norma
diretamente superior, se não for possível pode surgir uma lacuna de colisão, anulam-se
mutuamente e o sistema revela para integrar a lacuna

No caso das contradições valorativas temos de aplicar normas que conduzem a valor
diferentemente situações análogas, só não é assim quando for violado o principio da igualdade,
por não haver um fundamento material bastante para justificar esse tratamento diferente

É na realização das tarefas de interpretação e integração que o sistema é mais


frequentemente chamado como instrumento da ciência jurídica prática.

A este respeito podemos distinguir entre um modelo de decisão intrassistemático ou normativo e


um modelo de decisão extrassistemático. É o que está em relação não julgamento atendendo à
equidade, abordado no primeiro semestre.

➢ No modelo intrassistematico os elementos relevantes estão previamente delimitados,


ordenados, hierarquizados e o método para chegar à solução é o da ciência do direito, têm o
peso que advém da sua fonte de direito. Isto não quer dizer que não possam ser utilizados
outros elementos, por exemplo conceitos indeterminados que remetem para valorações
extrajurídicas. O modelo intrassistemático apresenta-se, na maior parte dos casos, como
relativamente rígido, em consequência da imobilidade fundamental do sistema. Isto
significa que o intérprete tem de basear a solução do caso em regras jurídicas que na
resolução de problemas de integração e interpretação tem de respeitar os procedimentos
metodológicos e que está vinculado aos princípios jurídicos e aos valores do sistema.
Na maior parte dos casos:
▪ O intérprete-aplicador tem de basear a sua decisão em regras, respeitando a hierarquia
das fontes;
▪ Na resolução dos problemas de interpretação e integração o intérprete tem de
respeitar os procedimentos metodológicos consagrados pela ciência jurídica perante o
sistema;
▪ O intérprete está vinculado aos princípios jurídicos vigentes e aos valores da ordem
jurídica.

71
Introdução ao Estudo do Direito II 72
Daniel Vieira Lourenço – Turma B

O art. 4.º/2 do Estatuto dos Magistrados Judiciais estabelece expressamente que o “dever de
obediência à lei compreende o de respeitar os juízos de valor legais, mesmo quando se trate de
resolver hipóteses não especialmente previstas”.

No modelo intrassistematico, as regras, os princípios e os valores do sistema prevalecem sobre


todos os outros elementos (decisão tem de se basear em primeira linha em regras, valores e
princípios do sistema).

É tradicionalmente reconhecido que o sistema desempenha um papel na interpretação da lei.


Desde logo é geralmente referido, como um dos “elementos de interpretação”, o “elemento
sistemático”. Quer-se geralmente significar com isto que se deve atender à posição da
proposição jurídica na sistemática legal. Tem que ser entendida no contexto em que está
entendida na lei. O sistema é mais relevante que isto, mais importante é inserir a proposição no
conjunto do sistema normativo

Na verdade, esta posição não é irrelevante, mas também não é conclusiva. Para efeitos de
interpretação, é mais importante a integração no sistema normativo, que exige uma indagação
dos nexos de sentido que se estabelecem entre as regras e entre elas e os princípios jurídicos.
Estes nexos são, não só, de caráter lógico mas, também, axiológico. Por isso, a integração no
sistema normativo também se processa no plano axiológico e teleológico e relaciona-se com os
critérios teleológico-objectivos de interpretação.

Numa primeira aproximação, para integrar a regra no sistema é necessário examinar a sua razão
de ser e relacionar com princípios jurídicos e outras ideias rectoras do sistema (interpretação).

Na integração de lacunas, o sistema releva quer quando contém uma regra aplicável a um caso
análogo, quer, na falta de caso análogo, quando é possível encontrar a solução mediante a
concretização de um princípio jurídico, quer ainda, em último recurso, quando o intérprete tenha
de formular uma solução como “se houvesse de legislar dentro do espírito do sistema” (art. 10.º
CC). Se o caso está omisso na lei, tem de se verificar se não há uma regra que regule caso
análogo, depois, caso não se encontre uma regra, procura-se um principio que regule caso
análogo, se não existir principio atende-se ao espirito do sistema.

O sistema pode ainda relevar na própria descoberta da lacuna, quando esta resulte de uma
interpretação restritiva ou redução teleológica de uma norma, que seja justificada por princípios
ou valores do sistema (integração de lacunas).

➢ No caso da criação de uma solução pelo interprete como se fosse o legislador, não se pode
falar de uma solução intrassistematica, visto que a solução não decorre desses princípios ou
valores. Nestes modelos extrassistematicos, o interprete fica colocado numa situação
semelhante à do legislador, pode experimentar diferentes pontos de vista por si escolhidos.

Deve assinalar-se que há uma diferença entre estes dois modelos (integração da lacuna dentro
do espirito do sistema; criação por equidade). Quando é dentro do espirito do sistema deve ser
formulado por uma proposição geral e abstrata, há uma preocupação de a formular de forma a
que ela possa ser utilizada no futuro. Se for com a equidade fala-se numa solução para o caso
concreto, não tem que ser geral e abstrata, não vai ser, em principio, aplicada em casos
análogos, visa, em ultima instância criar uma solução para um determinado caso concreto.

72
Introdução ao Estudo do Direito II 73
Daniel Vieira Lourenço – Turma B

Regras e Proposições Capítulo IV


As regras jurídicas expressam se uma conduta, um poder ou Caracterização da Regra
um efeito é obrigatório, permitido ou proibido. Deste caráter Jurídica
prescritivo das regras jurídicas decorre que elas não podem
ser verdadeiras ou falsas, nem as contradições entre elas se ▪ A regra como critério;
podem resolver em termos de verdade ou de falsidade.
▪ Estrutura;
Diferente das regras jurídicas são as descrições dessas
regras, isto é, as proposições jurídicas, por exemplo, o artigo ▪ Regra e imperativo;
875º CC.
▪ Proposições jurídicas
A diferença entre as regras e as proposições radica em que
incompletas;
as regras são significados normativos e as proposições são
descrições desses significados.
▪ Generalidade;
O caracter normativo da linguagem é próprio do Direito e o
carácter descritivo da linguagem é próprio da Ciência do ▪ Abstração;
Direito. Portanto, o direito contem fontes e regras, mas a
Ciência do Direito opera com proposições. ▪ A regra como elemento
de um conjunto
Regra Como Critério regulativo. As “regras
autónomas”;
A regra jurídica é um critério, uma bitola que orienta os
nossos juízos sobre a realidade.

➢ A regra jurídica é um critério de decisão – a regra


orienta o julgamento ou a solução de casos, dá ao
intérprete o critério para ele poder julgar ou
resolver um caso concreto. Quando o tribunal aplica
uma regra jurídica para resolver o litígio que lhe é
submetido, a regra funciona como um critério de
decisão.
➢ Em princípio a regra também se destina a ser um
critério de conduta, ou seja, a orientar a conduta dos
sujeitos jurídicos. Mas nem sempre a regra jurídica
desempenha esta função. Não se destina apenas a
permitir que o órgão de aplicação resolva o litigio,
destina-se também a orientar …

Nem todas as regras são jurídicas, por exemplo a aquisição


do nascimento completo e com vida.

Assim, atuam apenas como critérios de decisão as


seguintes regras jurídicas:

▪ As regras retroativas, as que se aplicam a factos que


ocorreram antes da sua entrada em vigor, visto que
ninguém poderá orientar por elas a sua conduta;

73
Introdução ao Estudo do Direito II 74
Daniel Vieira Lourenço – Turma B

▪ As “regras que produzem automaticamente efeitos jurídicos”, que ligam efeitos a factos
involuntários – por exemplo, a aquisição da personalidade jurídica e da capacidade de
gozo com o nascimento completo e com vida (arts. 66.º/1 e 67.º CC), não existe
qualquer critério de decisão, porque a vontade humana nada pode influenciar na
conduta da pessoa, o nascimento é independente da vontade;
▪ As regras que orientam a determinação da sanção pelo órgão de aplicação, por exemplo,
as normas sobre graduação da pena ou sobre o cálculo da indemnização segundo
considerações de equidade;
▪ As regras sobre a culpa (quando esta é considerada como um pressuposto de
responsabilidade criminal ou civil distinto da ilicitude);
▪ As regras que estabelecem a responsabilidade por factos lícitos, na medida em que
estabelecem uma sanção, independentemente de o agente ter ou não atuado em
conformidade com o Direito; se age em conformidade, não há se quer uma regra de
conduta, a pessoa não sabe como se há de comportar para não incorrer em
responsabilidade, independentemente da maneira como a pessoa se comportou vai ter de
indemnizar, mesmo que o facto seja licito, por exemplo, o estado de necessidade exclui
a culpa mas não o exclui o dever de indemnizar os danos causados
▪ As regras sobre regras, por exemplo, as regras sobre as fontes do Direito ou sobre a
interpretação e a integração;

É frequente que se identifique a regra com uma determinada forma linguística, por exemplo,
com o texto do artigo de um código. Em rigor, porém, a proposição normativa, que na lei está
expressa em linguagem escrita, é apenas a forma de expressão linguística da regra.

A regra, como já se sublinhou, obtém-se mediante a interpretação, que tem o seu ponto de
partida no sentido literal da proposição normativa.

Noção de Norma Jurídica (Sandra Lopes Luís)

A norma é geralmente definida como um critério de conduta, ou seja, a regra pela qual se
pautam as condutas humanas, embora a maioria das normas tenha esta função de orientar a
conduta das pessoas, como já analisados, outras não têm essa função.

Deste modo, verifica-se que nem todas as normas regulam comportamentos humanos, por isso,
segundo Oliveira Ascensão, para o Direito a regra é inevitavelmente um critério de decisão de
casos concretos. Dá ao intérprete o critério pelo qual ele pode julgar ou resolver. Todavia, para
este autor, não são todos os critérios jurídicos de decisão que são regras jurídicas, pois este
podem ser:

▪ Materiais – São os critérios normativos, em que se procede a uma valorização


generalizadora das situações;
▪ Formais – São os critérios equitativos, em que se fixa uma orientação que permite,
através de valorações próprias de cada caso, alcançar a sua resolução;

A norma jurídica apenas se reconduz aos primeiros. Neste sentido, para Oliveira Ascensão, a
regra jurídica um critério material de decisão de casos concretos.

74
Introdução ao Estudo do Direito II 75
Daniel Vieira Lourenço – Turma B

Estrutura

A norma jurídica prevê uma situação de facto a que se fazem corresponder certos efeitos
jurídicos: “Quem matar outrem, será punido com pena de prisão 8 a 16 anos”.

Estruturalmente a regra jurídica é uma proposição que enlaça dois elementos: a previsão e a
estatuição.

A previsão é constituída pelo conjunto dos elementos que têm de estar presentes para que a
regra se aplique. Podem-se designar por pressupostos.

A previsão define os pressupostos de cuja verificação depende a aplicabilidade da regra.

Para Miguel Teixeira de Sousa a previsão corresponde a uma certa situação de facto que
se deve verificar para que a norma seja aplicada.

A previsão da norma é sempre uma previsão normativa, pois embora se refira a uma realidade
empírica, a verdade é que a determinação do seu sentido deve ser feito de modo jurídico, isto é,
os factos da vida são jurisdicionalizados, transformando-se os seus conceitos naturalistas em
conceitos jurídicos, razão pela qual o seu significado deve ser aquele que o Direito lhe atribui.

Para concretizar esta ideia Marcelo Rebelo de Sousa/Sofia Galvão dão um exemplo elucidativo:

1. Após uma discussão, alguém dá um tiro a outrem de que resulta a sua morte;
2. Um médico desliga o aparelho a que se encontra ligado um doente com diagnóstico de
morte cerebral;
3. Um pai não vigia adequadamente um filho de quatro anos que brincava à beira mar,
resultando desse facto o seu afogamento mortal.

A determinação do sentido da expressão tem de ser aferida juridicamente, e não faticamente, ou


seja, nestas três situações apenas se poderá dizer que um sujeito matou o outro, caso o Direito o
entenda desse modo.

A estatuição consiste numa consequência jurídica.

Na grande maioria dos casos, a previsão da regra reporta-se a uma situação típica da vida ou a
um aspeto de uma situação típica da vida.

Nestes casos a previsão da norma recorta na factualidade social o conjunto de elementos que são
juridicamente relevantes, formando um modelo abstrato de situações da vida. Ao conformar os
factos relevantes para o Direito, a regra “situa” o acontecimento, sendo assim constitutiva da
própria situação que regula. Embora a regra se reporte à situação ela também, de algum modo
constitutiva da própria situação.

Mas isto já não se verifica nas regras sobre regras, em que a previsão da norma se reporta a
outras regras.

Também é possível que a norma se reporte simplesmente a um facto, abstraindo de qualquer


conduta humana, e em que, por conseguinte, não fará sentido dizer que a previsão da norma se
reporta a uma situação da vida (a uma situação social). Por exemplo, a personalidade adquire-se
no momento do nascimento completo e com vida.

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Introdução ao Estudo do Direito II 76
Daniel Vieira Lourenço – Turma B

Ressalvados estes casos, pode-se dizer que a proposição jurídica associa a uma situação ou a
um aspeto de uma situação, delimitada pela previsão, a consequência jurídica determinada pela
estatuição.

A previsão desempenha uma função representativa: representa o estado de coisas de cuja


verificação depende a aplicação da regra (Teixeira de Sousa). A previsão da norma não
descreve uma situação, não se pode dizer que ela é verdadeira ou falsa, ela representa a situação
que tem de existir para a norma se verificar, é um prossuposto para aplicação da estatuição.

A norma conforma situações da vida com vista à constituição de dado ordenamento das relações
humanas. Neste sentido, pode dizer-se que a previsão da norma também desempenha uma
função constitutiva da situação. Constitutiva por prescreve um dever de conduta que deve guiar
a atuação das pessoas

A norma pode utilizar diferentes tipos de conceitos jurídicos para delimitar a sua previsão:

▪ Conceitos técnico-jurídicos ou normativos;


▪ Conceitos descritivos ou fácticos;
▪ Conceitos determinados e conceitos indeterminados.

Decorre daqui que quando se diz que a regra se reporta a uma situação ou a um facto tal não
significa que a qualificação da situação ou do facto se possa fazer sem o recurso a outras regras.
E a propósito do método de pressuposição, a previsão de uma norma é conformada por outras
normas – nexo de pressuposição

Frequentemente a norma reporta-se a uma situação juridicamente conformada por outra regra,
com a qual estabelece o nexo de pressuposição anteriormente referido.

Uma norma nem sempre corresponde a um certo preceito de um diploma, pois não raro a
determinação do seu sentido implica a conjugação de duas ou mais disposições, isto é, a
previsão pode estar num artigo, de uma determinada lei, e a estatuição noutro artigo, da mesma
ou de outra lei.

▪ Por exemplo o artigo 122º CC dispõe que “quem não tiver completado 18 anos de idade
é menor”, e o artigo 123º CC dispõe que “os menores carecem de capacidade para o
exercício dos direitos”: a regra que se retira destes dois preceitos conjugados, vai
no sentido de que quem não tiver completado 18 anos, não tem capacidade para o
exercício de direitos.

A estatuição pode consistir em várias consequências jurídicas:

▪ Atribuição de um direito;
▪ Imposição de um dever;
▪ Constituição de um situação jurídica complexa;
▪ Estabelecimento de um requisito de validade ou eficácia de um negócio jurídico;
▪ Remissão para outras normas do mesmo ou de outro sistema jurídico;

Em qualquer caso, a estatuição da regra jurídica é sempre uma modificação no mundo do


juridicamente vigente, uma modificação na ordem jurídica.

76
Introdução ao Estudo do Direito II 77
Daniel Vieira Lourenço – Turma B

A estatuição tem, em todos estes casos, uma função prescritiva (TEIXEIRA DE SOUSA). A
estatuição é formada por um operador deôntico e por um objeto. O operador deôntico pode ser
uma prescrição, uma proibição ou uma permissão. O objeto é aquilo que é prescrito, proibido ou
permitido. Este objeto pode ser uma conduta, um poder ou um efeito jurídico.

Tal como a previsão, a estatuição da norma também apresenta um caráter normativo, pois o seu
sentido é normalmente aferido de modo jurídico.

As regras jurídicas são hipotéticas ou condicionais no sentido em que só se aplicam quando se


preenchem os pressupostos definidos na sua previsão. Verificada a condição C produz-se o
efeito E, e só verificada a condição C se produz o efeito E.

É um dos aspetos em que se distinguem dos princípios, que não se caracterizam


geralmente pela exclusividade.

Distinguem-se também das ordens que são normalmente categóricas. Por exemplo, enquanto a
regra proíbe manifestações não autorizadas, referindo-se a situações hipotéticas, a ordem
policial de desmobilização dos manifestantes, referindo-se a situação concreta, é categórica.

Regra e Imperativo

Muito frequentemente a estatuição da norma é um dever de conduta ou comando, mas nem


sempre isto se verifica.

A ordem normativa transcende o domínio do “ser”, é também do domínio do “dever ser”.


A norma não se limita a descrever um comportamento. A norma valora e pretende orientar o
comportamento.

Toda a norma jurídica, moral ou outra tem a pretensão de vincular a conduta dos seus
destinatários (ex: “não se deve matar”). Muito frequentemente, a estatuição da norma é um
dever de conduta ou de comando (por exemplo “não se deve matar”; “deve-se dar prioridade ao
veículo que se apresenta pela direita”). Daí identificar-se normatividade com imperatividade.

Mas tem de reconhecer-se que nem toda a norma é um imperativo ou injunção (obrigação).
Alguns exemplos:

• O artigo 130 do código civil estabelece que a maioridade se atinge aos 18 anos;
• O artigo 1317 do código civil admite a transmissão da propriedade por negócio jurídico.

Não são injuntivas as regras que não constituem critérios de conduta, por exemplo as regras
legais retroactivas, que se aplicam a condutas que ocorreram antes da sua entrada em vigor.

Todas estas normas, embora não estatuam imperativos, desencadeiam uma modificação no
mundo do juridicamente vigente (uma ordenação de vigência).

Toda a norma encerra um critério de valoração, e desencadeia uma consequência jurídica. Esta
consequência jurídica tanto pode ser uma obrigação de conduta como qualquer outra
consequência que deva valer como Direito. Em qualquer caso, a consequência jurídica
vincula juridicamente os destinatários da norma.

Enquanto critério de conduta a norma é vinculante para todas as pessoas. Enquanto critério
de decisão é vinculante para os tribunais e outros órgãos de aplicação do Direito.

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Introdução ao Estudo do Direito II 78
Daniel Vieira Lourenço – Turma B

A ordem jurídica caracteriza-se, portanto, pela Vinculatividade.

Por tudo isto o professor Lima Pinheiro defende que a caracterização da regra jurídica não
pode assentar na imperatividade

Generalidade

A generalidade contrapõe-se à individualidade. É geral o preceito que se reporta a todos os


estudantes universitários, é obviamente individual o preceito estabelecido para o estudante
universitário António. Contudo, não se pode dizer que em todos os casos em que haja apenas
um sujeito na situação normativamente prevista o preceito seja individual

Segundo os arts. 1.º CC e 674.º/2 CPC as leis caracterizam-se pela generalidade. Nos termos do
n.º 2 do art. 1.º CC: “Consideram-se leis todas as disposições genéricas provindas dos órgãos
estaduais competentes”.

Esta generalidade da lei consiste, na formulação de Marcelo Rebelo de Sousa, na


indeterminabilidade dos seus destinatários no momento da criação da lei.

A norma não deixa de ser geral por, num dado momento, dizer respeito a um pequeno grupo de
pessoas ou até a uma só pessoa.

Assim, as regras constitucionais sobre o Presidente da República não deixam ser caracterizadas
pela generalidade pela circunstância de só haver, por definição, um presidente. São
caracterizadas pela generalidade porque se aplicam a qualquer pessoa que seja investida no
cargo de PR e não só ao Presidente X ou ao Presidente Y.

Assim, verifica-se que o relevante para caracterizar a generalidade é que a lei fixe uma categoria
de pessoas, e não uma entidade individualizada.

A generalidade é uma característica essencial da regra.

O ato criador de preceitos individuais que se revista de forma legislativa é uma lei em sentido
formal mas não em sentido material. Devido à sua individualidade esta lei pode ser
inconstitucional, por violar a proibição de discriminação que decorre do princípio da igualdade.

Isto não significa que todos os atos individuais em forma legislativa sejam inconstitucionais.
Jorge Miranda distingue a lei individual com intenção de generalidade e o ato administrativo
sob forma de lei, que é a simples decisão de um caso concreto e individual.

As leis individuais têm de fundamentar-se numa legitimação constitucional específica ou no


mínimo não colidir com o princípio da igualdade.

Quanto aos atos administrativos sob forma de lei, o autor distingue conforme são praticados
pelo Governo, que está habilitado pela Constituição a praticar atos administrativos, ou pela
Assembleia da República, que não tem competência administrativa, razão por que o ato será
pelo menos organicamente inconstitucional. Mas há acórdãos do TC que rejeitarem esta
inconstitucionalidade.

Quando o ato individual, sob forma legislativa, for um ato administrativo, está sujeito ao regime
de impugnação dos atos administrativos (art. 268.º/4 CRP e art. 52.º Código do Processo dos
Tribunais Administrativos).

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Introdução ao Estudo do Direito II 79
Daniel Vieira Lourenço – Turma B

A generalidade deve verificar-se não só nas regras legais, mas também nas regras
consuetudinárias e jurisprudenciais.

O conceito de preceito jurídico é mais amplo que o de regra.

O preceito jurídico será uma regra, se for geral, mas também pode ser individual. Preceito
jurídico é todo o critério jurídico de decisão e de conduta.

Os contratos são normalmente fonte de preceitos individuais, visto que as cláusulas estipuladas
pelas partes só a elas vinculam, pelo menos em princípio (preceitos contratuais ou negociais).

Para certos efeitos pode surgir um conceito de norma que não seja caracterizado pela
generalidade ou que a entenda de modo diverso.

Assim, a distinção entre ato administrativo e regulamento tem suscitado divergências, que
deixaremos para a disciplina de Direito Administrativo.

Assim também, para efeitos de fiscalização da constitucionalidade das normas, regulada nos
arts. 277.º e segs. CRP, o Tribunal Constitucional adotou um “conceito funcional de norma”,
que abrange todos os atos com forma legal, ainda que não contenham regras gerais. Este
entendimento é, no entanto, criticado por autores como Jorge Miranda, relativamente aos atos
administrativos sob forma de lei, e Oliveira Ascensão.

A doutora Sandra Lopes Luís alerta, ainda que é necessário distinguir Generalidade de
Pluralidade. Pode existir pluralidade sem existir generalidade quando a norma se dirige a várias
pessoas individualmente determinadas, Por exemplo:

▪ Se um diretor geral avisa os diretores de serviços para se deslocarem ao seu gabinete


em certo dia e hora, existe uma ordem plural e não geral, porque se dirige a pessoas
individualmente consideradas.
▪ Se o diretor geral determinar para o futuro que todos os diretores de serviços em certo
dia hora se devem reunir no seu gabinete, está-se perante uma ordem geral, porque se
dirige não só aos atuais diretores, mas também a todos aqueles que em cada momento
estiverem a desempenhar o cargo. Os destinatários ao determináveis mas não são
determinados.

Abstração

O abstrato contrapõe-se ao concreto. Mas esta contraposição é relativa, porque pode haver
diferentes níveis de abstração, e porque o conceito de concreto é ambíguo: pode designadamente
significar o real, o específico e o individual.

Para a caracterização da regra jurídica e, antes de mais da regra legal, a abstração significa a
indeterminabilidade das situações ou factos a que a lei é aplicável no momento da criação da lei
(Marcelo Rebelo De Sousa).

Neste contexto, diz-se que um preceito é concreto quando dispõe para factos ou situações
suscetíveis de serem determinadas no momento da sua criação.

Por exemplo, um preceito que ordene que todos apresentem as armas que possuírem nos postos
policiais, é caracterizado pela generalidade, mas não pela abstração. Já haverá abstração se o

79
Introdução ao Estudo do Direito II 80
Daniel Vieira Lourenço – Turma B

preceito ordenar que todos os que possuam ou venham a possuir armas as apresentem nos
postos policiais.

Fala-se de leis-medida com respeito às leis que são editadas para resolver em tempo útil um
problema levantado por uma situação concreta ou por um conjunto de situações concretas.
Também são leis concretas as leis orçamentais, as leis de amnistia e as de declaração de estado
de sítio e de outros estados de exceção.

Mas serão as leis-medida verdadeiras leis? Será a abstração uma característica da regra jurídica?

As respostas a esta questão divergem entre si.

Assinalou-se atrás que a falta de generalidade pode, em certos casos, gerar inconstitucionalidade
e facultar a impugnação do ato.

Jorge Miranda assinala que as leis-medida também não podem colidir com o princípio da
igualdade. Mas a determinabilidade das situações a que se aplica a lei não implica por si uma
desigualdade injustificada de tratamento. O legislador pode ter razões objetivas para estabelecer
regras para situações concretas. Mesmo que isto constitua uma diferença de tratamento
relativamente a outras situações existentes no momento da criação da lei ou futuras, esta
diferença de tratamento é constitucional se tiver um fundamento material bastante ou suficiente.

A abstração é relevante com respeito a certas categorias de leis, como é o caso das leis
restritivas de direitos, liberdades e garantias, que têm de revestir caráter geral e abstrato (18.º/3
CRP). Ressalvadas estas categorias de leis, parece que da lei pode, em princípio, ser concreta.

Do artigo 18º/3 CRP, também, se pode retirar um argumento a contrario, ou seja se impõe que
as leis que limitem direitos, liberdades e garantias tenham, necessariamente, de ser gerais e
abstratas, está a possibilitar que todas as outras não o sejam.

Também o artigo 161/3CRP assume que a lei pode regular todas as matérias, não impondo
restrições.

O que leva a negar que a abstração seja uma característica da regra legal e, mais em geral,
da regra jurídica.

A aplicação de uma norma que se caracterize pela generalidade e pela abstração exige um
processo de determinação duplo mas interligado: determinação dos seus destinatários e da
situação de facto.

A generalidade coloca-se no plano subjetivo dos destinatários, isto é, dos titulares das situações
jurídicas por elas configuradas. A abstração situa-se no plano objetivo da situação jurídica
prevista na norma.

A regra como elemento de um conjunto regulativo. As “regras autónomas”

As regras não se nos apresentam geralmente como elementos normativos isolados, mas antes
como elementos interrelacionados.

Num plano muito geral, o interrelacionamento das regras decorre dos mais variados nexos
intrassistemáticos.

80
Introdução ao Estudo do Direito II 81
Daniel Vieira Lourenço – Turma B

Mas para a caracterização da regra o que é fundamental é a inserção das regras singulares em
conjuntos regulativos que constituem uma unidade funcional.

Exemplo, já dado, destes conjuntos regulativos, é o formado pelas regras que regulam uma
determinada situação típica, por exemplo, as normas que regulam o contrato de compra e venda.

Geralmente, devido à sua inserção num conjunto regulativo, a regra não pode ser compreendida
como um elemento normativo independente, como contendo em si um sentido normativo
completo.

Por conseguinte, a norma singular só pode ser corretamente entendida e aplicada no contexto da
unidade de regulação em que está inserida.

Segundo uma das classificações de normas jurídicas referidas pela literatura jurídica, seria de
distinguir entre normas autónomas e normas não autónomas. Só seriam autónomas as normas
que têm em si um sentido completo. Seriam não autónomas, mormente, as normas
interpretativas, as definições legais, as normas que limitam o campo de aplicação de outras
normas e as normas remissivas.

Na opinião do professor Lima Pinheiro, estão em causa realidades bastante diversas, que, de
acordo com o anteriormente exposto, abrangem proposições jurídicas incompletas e normas
sobre normas.

Esta enumeração poderia sugerir, por exclusão de partes, que as verdadeiras normas
“primárias”, as proposições jurídicas completas que regulam situações da vida, ou seus aspetos,
são, em regra, autónomas.

Mas não é isto que se verifica. Geralmente as normas singulares estão inseridas em conjuntos
regulativos e não podem, por isso, ser classificadas como regras autónomas. Isto é reconhecido
por Inocêncio Galvão Telles.

Sendo assim, porém, parece-me que não se justifica manter esta classificação de regras
jurídicas.

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Introdução ao Estudo do Direito II 82
Daniel Vieira Lourenço – Turma B

Regras primárias e regras secundárias Capítulo V


Para Hart as normas primárias são as que Classificação das Regras
contêm um comando, prescrevendo ou Jurídicas
proibindo uma conduta, e as normas
secundárias as que conferem poderes, ▪ Regras primárias e regras
públicos ou privados. Por exemplo, conferem secundárias
poderes privados as normas que permitem a
celebração de um contrato ou a transferência de ▪ Regras de conduta e regras de
um direito real. Conferem poderes públicos, por decisão
exemplo, as normas que atribuem competência
a um determinado órgão público para legislar. ▪ Regras injuntivas e dispositivas

Esta classificação merece diversos reparos, dos ▪ Modalidades de regra injuntiva.


quais se salientará que há muitas normas que Regras precetivas e proibitivas
nem impõem obrigações nem conferem
poderes. ▪ Modalidades de regra dispositiva.
Regras permissivas
As regras de reconhecimento não podem ser
incluídas, genericamente, na categoria das ▪ Modalidades de regra dispositiva.
normas que conferem poderes. Regras que definem estados e
qualidades jurídicas
A norma que reconheça o costume como fonte
do Direito não confere qualquer poder para
▪ Modalidades de regra dispositiva.
criar regras jurídicas. O costume é reconhecido
Regras interpretativas
porque o órgão de aplicação aplica tal regra de
reconhecimento e não porque a regra confira ao
▪ Modalidades de regra dispositiva.
órgão de aplicação qualquer poder para
Regras supletivas
reconhecer ou não reconhecer o costume.

Muitas outras normas, como as normas que ▪ Regras materiais e regras


regulam a atribuição da personalidade jurídica, remissivas. Regras de conexão
que estabelecem requisitos de validade dos ▪
negócios jurídicos, ou que limitam a liberdade ▪ Regras gerais, especiais e
de contratar, nem contêm comandos nem excecionais
conferem poderes.
▪ “Regras comuns” e “regras
Com esta verificação, a classificação perde particulares”
muito do seu interesse, sendo mais exato
designar as regras ditas “primárias” por ▪ “Regras gerais” e “regras locais”
regras injuntivas e contrapô-las às regras
dispositivas que, como veremos, assumem as ▪ Da recondução das regras
mais diversas modalidades. “particulares” e “locais” à
categoria das regras especiais
A classificação das regras em primárias e
secundárias poderá manter algum interesse
quando por regras secundárias se entendam
apenas as regras sobre regras, ou metanormas,

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Introdução ao Estudo do Direito II 83
Daniel Vieira Lourenço – Turma B

que são aquelas cuja previsão se reporta a regras jurídicas.

A seguir-se este entendimento, as regras primárias seriam todas as restantes regras, cuja
previsão se reporta a uma situação típica, a um aspeto de uma situação típica, ou a outro facto.

Para o professor Miguel Teixeira de Sousa, as regras jurídicas podem ser primárias ou
secundárias:

▪ As regras primárias orientam a realização de condutas, o exercício de poderes ou a


produção de efeitos. Dentro das regras primárias podem ser distinguidas as regras
regulatórias e as regras constitutivas.
• As regras regulatórias são as respeitantes a condutas ou ao exercício de um
poder. Estas regras podem ser violadas se alguém realizar uma conduta
proibida ou omitir uma conduta devida ou se alguém exercer um poder que não
possui ou deixar de desempenhar um poder que exerce.
• As regras constitutivas ao as relativas aos efeitos jurídicos. Estas regras não
podem ser violadas. Por exemplo, o efeito de aquisição da personalidade que
decorre do disposto do artigo 122º CC produz-se sempre que alguém perfaz
dezoito anos, a produção deste efeito é insuscetível de ser violada.
▪ As regras secundárias são regras que incidem sobre regras, ou seja, regras sobre regras.
Podem referir-se várias modalidades:
• Regras de Produção, que são regras sobre a produção de outras regras ou sobre
a modificação de regras vigentes (por exemplo, regras que constam dos artigos:
112º, 16º1 e 164º CRP);
• Regras Revogatórias (art.7º CC);
• Regras Interpretativas (art. 9º CC);

Regras de conduta e regras de decisão

Esta classificação atende aos destinatários das normas. Enquanto as regras de conduta se
dirigem tanto aos órgãos de aplicação do Direito como aos sujeitos jurídicos, as regras de
decisão dirigem-se exclusivamente aos órgãos de aplicação. Por outras palavras, enquanto as
regras de conduta são critérios de decisão e de conduta, as regras de decisão atuam somente
como critérios de decisão.

Esta classificação é por vezes reconduzida à anterior, por se entender que todas as normas
secundárias, enquanto normas sobre normas, não são regras de conduta, por não terem por
destinatários os sujeitos jurídicos, mas somente os órgãos de aplicação do Direito.

Esta assimilação é errónea, em especial quando se parte de um conceito amplo de regras


secundárias, como é o de Hart.

Parece evidente que as normas que conferem poderes privados também são normas de conduta,
porque os particulares têm de atender a estas normas para saber se têm um determinado poder e
qual a conduta que devem adotar para produzir certos efeitos jurídicos.

Mas também as normas que atribuem poderes públicos são relevantes para a atuação dos
particulares. O particular precisa de saber se uma determinada regra provém do órgão
competente, para saber se lhe deve ou não obediência; precisa de saber qual o tribunal
competente caso pretenda propor uma ação, e por aí adiante.

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Introdução ao Estudo do Direito II 84
Daniel Vieira Lourenço – Turma B

Por outro lado, há regras de decisão que não conferem quaisquer poderes, antes impõem
vinculações: por exemplo, certas regras retroativas, as regras sobre responsabilidade por factos
lícitos.

Regras Injuntivas e Regras Imperativas (Professor Lima Pinheiro)

Para o professor Lima Pinheiro há uma grande diferença entre regras imperativas e regras
injuntivas, em primeiro lugar, são duas classificações que não se devem contrapor, são
classificações com um âmbito e uma finalidade diferente.

As regras injuntivas estabelecem uma obrigação de conduta, pela violação de uma regra
injuntiva, por regra, nem sempre, está associada uma sanção jurídica.

As regras imperativas são regras que têm de ser aplicas para a produção de determinados
efeitos, não podem ser afastadas pelas partes.

Por exemplo, a regra que fixe uma forma legal que seja exida para a consubstanciação do
Negócio Jurídico é uma regra imperativa mas não é injuntiva, ninguém fica obrigado a realizar o
negócio, porém, caso o faça tem de respeitar o exigido para que o negócio seja válido e eficaz.
Na opinião do Professor Lima Pinheiro, a eficácia e a invalidade não são verdadeiras sanções,
não houve a violação de nenhum preceito injuntivo, o NJ, apenas não se tornou eficaz e válido
porque não foram cumpridos certos requisitos de forma.

Regras injuntivas e regras dispositivas

As regras de conduta podem classificar-se em regras injuntivas e regras dispositivas conforme


impõem ou não uma conduta. Dentro de cada uma destas categorias é possível proceder a
subdivisões, que serão referidas nos números seguintes.

Para designar as regras injuntivas o legislador e a maior parte dos autores utiliza a expressão
“regras imperativas”. Oliveira Ascensão prefere a expressão “regras injuntivas” por entender
que toda a regra jurídica é imperativa por definição.

O professor Lima Pinheiro não segue o entendimento mas, por razões adiante explicitadas,
considera que também se deve falar em “regras injuntivas”.

As regras injuntivas são as regras que vão ser aplicadas ainda que haja uma manifestação de
vontade contrária dos seus destinatários (as normas impõem-se sem ou contra essa vontade, e,
por isso, não estão na disponibilidade dos destinatários) Trata-se de comandos que prosseguem
interesses gerais ou individuais muito fortes, pelo que têm de ser acatadas a todo o custo, por
exemplo, as normas que regulam o trânsito.

Modalidades de regra injuntiva. Regras precetivas e regras proibitivas

São geralmente referidas como modalidades de regra injuntiva a regra precetiva e a regra
proibitiva.

• A regra precetiva ordena uma conduta. Por exemplo, as normas que obrigam ao
pagamento de impostos e a circular pela direita no tráfico rodoviário.

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Introdução ao Estudo do Direito II 85
Daniel Vieira Lourenço – Turma B

• A regra proibitiva veda uma conduta. É o que aparentemente se passa com a maior
parte das normas penais, como, por exemplo, as normas que proíbem o homicídio, as
ofensas corporais, a ofensa à honra, etc.

Mas não se tratará apenas de diferentes modos de formular um tipo unitário de regras? Por
exemplo, dizer que se deve pagar um imposto sobre o rendimento não equivale a dizer que é
proibida a evasão fiscal e, mais concretamente, o não declarar os rendimentos e não pagar o
imposto que tenha sido liquidado? Dizer que é obrigatório circular pela direita não é o mesmo
que dizer que é proibido circular pela esquerda? Dizer que é proibido matar não é o mesmo
que dizer que cada um deve atuar por forma a não causar a morte doutrem?

Poderia pensar-se que a distinção está em impor uma ação ou uma omissão. A formulação
prescritiva ou proibitiva do comando pode ter que ver com a circunstância de a conduta imposta
ser uma ação (como é caso de entregar uma declaração de rendimentos ou pagar o imposto) ou
uma omissão.

Mas há muitos casos em que a conduta imposta tanto pode consistir numa ação como numa
omissão. Por exemplo, o homicídio tanto pode ser cometido por ação como por omissão.

O professor Lima Pinheiro conclui que nem sempre se pode distinguir entre regra precetiva e
regra proibitiva. Esta distinção só se pode traçar claramente quando uma norma prescreve
necessariamente uma ação ou se limita a proibir uma ação ou a prescrever uma omissão.

A norma que prescreve necessariamente uma ação é prescritiva. A norma que proíbe uma ação é
proibitiva, porque tanto a omissão como outras ações são permitidas. A norma que se limite a
prescrever uma omissão será rara; parece-me que também é proibitiva, por ser reconduzível à
norma que proíbe uma ação.

Modalidades de Regra Dispositiva. Regras Permissivas

As regras dispositivas são regras que não impõem uma obrigação de conduta, ou seja, não
prescrevem um comportamento, são as que se aplicam atendendo à vontade dos seus
destinatários, logo, pode concluir-se que, por não imporem obrigações de conduta, as diferentes
modalidades de regras dispositivas são:

▪ Regras permissivas;
▪ Regras que definem estados e qualidades jurídicas;
▪ Regras interpretativas;
▪ Regras supletivas;

Não se trata aqui apenas da atitude negativa de não ordenar nem proibir. Afirma-se
frequentemente que o que não é proibido é permitido. Esta afirmação é até certo ponto
verdadeira: nas relações de Direito privado e noutras relações quanto a sujeitos cuja ação não
seja vinculada à lei, ou seja, não esteja sujeita ao princípio da legalidade, os sujeitos têm a
liberdade de observar a generalidade das condutas que não são proibidas nem prescritas. Estas
condutas são facultativas sem que haja necessidade de qualquer norma permissiva que o
estabeleça.

Só em certos casos se justifica uma valoração jurídica que leva à formulação de uma norma
dispositiva.

85
Introdução ao Estudo do Direito II 86
Daniel Vieira Lourenço – Turma B

➢ As regras permissivas são as que facultam uma determinada conduta ou comportamento.


São muito variadas, podem considerar-se algumas modalidades:
▪ Primeiro, as autorizações de uma conduta em princípio proibida. É o que se
verifica, por exemplo, com as normas que estabelecem causas de justificação, como a
legítima defesa e o estado de necessidade.
▪ Segundo, as liberações de uma conduta em princípio prescrita. Com esta liberação a
conduta prescrita torna-se facultativa. É o que se verifica, por exemplo, com a
prescrição de uma obrigação. A obrigação vincula juridicamente, porém, decorrido o
prazo prescricional, o devedor pode cumprir a obrigação prescrita, mas não está
juridicamente vinculado a fazê-lo.
▪ Terceiro, as normas atributivas de direitos subjetivos propriamente ditos. Estas
normas conferem posições de vantagem que resultam da afetação de um bem à
realização dos fins da pessoa. Por exemplo, um direito de crédito, um direito real.
Estas posições exprimem-se em poderes jurídicos e materiais.
▪ Quarto, as normas facultativas de poderes jurídicos (ou normas de competência),
que conferem o poder de produzir efeitos jurídicos. Por exemplo, nos termos do art.
801.º/2 CC, se num contrato bilateral a prestação de uma das partes se torna
impossível por causa que lhe é imputável, a outra parte tem a faculdade de rescindir o
negócio.
▪ As normas que conferem poderes potestativos e as normas que conferem a faculdade
de celebrar negócios jurídicos. Os ditos direitos potestativos são poderes jurídicos
cujo exercício pelo seu titular, por si, ou integrado por uma decisão judicial, produz
efeitos jurídicos na esfera jurídica de outra pessoa, independentemente da sua
vontade. As normas que conferem o poder de celebração de negócios jurídicos podem
apresentar-se como permissões genéricas ou específicas de produção de efeitos
jurídicos pela autonomia negocial. Há, porém, quem entenda que a vinculação
operada pelo negócio jurídico tem um fundamento pré-positivo.
Estas normas devem distinguir-se das normas atributivas de direitos subjetivos
propriamente ditos, não só porque pode haver atribuição de uma competência jurídica
sem ser conferido um direito deste tipo, mas também porque a competência jurídica
do titular do direito subjetivo não resulta diretamente da norma que o atribui mas das
normas que (explícita ou implicitamente) definem o seu conteúdo.
▪ Parte das normas que regulam o exercício de poderes jurídicos (ou normas sobre o
exercício de competência). São exemplo, as normas processuais que regem a atuação
dos tribunais e as normas que estabelecem procedimentos com respeito à prática de
atos administrativos; as normas que estabelecem requisitos de validade e eficácia de
negócios jurídicos permitidos, designadamente as exigências de forma e de registo
não obrigatório.
O Professor Lima Pinheiro entende que é permissiva a norma sobre o exercício de
competência cuja inobservância não desencadeie uma sanção, porque o sentido desta
norma é o de estabelecer que a produção de um efeito jurídico depende da
observância de uma conduta facultativa. Esta conduta não é imposta ao sujeito, o
sujeito não é censurado pela ordem jurídica se não praticar determinada conduta e é,
por esta razão, que, por exemplo, a invalidade ou ineficácia de um negócio jurídico
não são uma sanção.

Modalidades De Regra Dispositiva. Regras Que Definem Estados E Qualidades Jurídicos

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Introdução ao Estudo do Direito II 87
Daniel Vieira Lourenço – Turma B

▪ Normas que definem estados e qualidades jurídicas das pessoas, independentemente


da sua conduta. São exemplo, as normas que atribuem ou reconhecem a
personalidade jurídica e a capacidade de gozo, ou que estabelecem limites à
capacidade de gozo ou de exercício. Com efeito, estas normas não impõem uma
conduta, mas também não facultam uma conduta. O seu sentido é antes o de
reconhecer a suscetibilidade de os seres humanos serem sujeitos de Direito; de definir
os pressupostos de que depende a atribuição a um ente de uma personalidade
coletiva; a de definir a medida em que os sujeitos podem praticar validamente atos
jurídicos.

Modalidades De Regra Dispositiva. Regras Interpretativas

Regra interpretativa é a que se limita a fixar o sentido juridicamente relevante de uma fonte do
Direito. Contrapõe-se à regra inovadora. A regra inovadora é a que altera de algum modo a
ordem jurídica, introduzindo um novo conteúdo normativo.

Por exemplo, suponha-se que um DL sobre atividade bancária estabelece restrições quanto ao
tráfico de divisas estrangeiras. Surge uma divergência interpretativa quanto à aplicabilidade
deste regime às casas de câmbio, que leva mesmo a decisões judiciais contraditórias. Para
obviar à incerteza e a desigualdade no tratamento de casos semelhantes daí resultante o Governo
vem, por via de outro DL, esclarecer a questão.

O art. 13.º CC estabelece um regime especial para a aplicação no tempo das leis interpretativas e
que só faz sentido para as leis que vêm interpretar leis anteriores. Numa primeira aproximação
pode-se dizer que a razão pela qual a lei interpretativa se aplica a factos e situações anteriores
reside fundamentalmente em que ela, vindo consagrar uma das interpretações possíveis da lei
anterior com que os interessados podiam e deviam contar, não é suscetível de frustrar
expectativas objetivamente fundadas.

A esta luz, parece suficiente para que a lei nova seja considerada interpretativa que a solução da
lei anterior seja controvertida ou pelo menos incerta e que a solução definida pela nova lei seja
uma das interpretações possíveis da lei anterior.

Por outro lado, nada obsta a que se formule um conceito mais amplo de regra interpretativa,
como modalidade de regra dispositiva que se limita a fixar o sentido juridicamente relevante de
uma proposição jurídica. Este conceito não tem relevância para efeitos do art. 13.º CC e pode
abranger, além das regras anteriormente referidas, a regra, contida numa lei, que se destina a
esclarecer o sentido das suas próprias disposições.

As regras interpretativas relacionam-se com a interpretação autêntica. A lei que realiza a


interpretação autêntica é sempre uma lei interpretativa. A interpretação autêntica não pode
provir de fonte hierarquicamente inferior à fonte interpretada. Logo, a regra interpretativa de
fonte hierarquicamente inferior à fonte interpretada não realiza uma interpretação autêntica.

Excluída, pelo art. 112.º/5 CRP a possibilidade de uma lei formal conferir a atos de outra
natureza o poder de a interpretar com eficácia externa, resta a possibilidade de uma vinculação
interna dos serviços subordinados e de a regra interpretativa valer como uma regulamentação da
lei interpretada, dentro dos limites que os regulamentos têm de respeitar. Em todo o caso, nem
todas as leis interpretativas realizam uma interpretação autêntica.

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Introdução ao Estudo do Direito II 88
Daniel Vieira Lourenço – Turma B

Oliveira Ascensão também inclui na categoria das regras interpretativas as regras sobre a
interpretação de negócios jurídicos, como o art. 2225.º CC, que determina que a disposição
testamentária feita a favor de uma generalidade de pessoas, sem qualquer outra indicação,
considera-se feita a favor das existentes no lugar em que o testador tinha o seu domicílio à data
da morte.

Modalidades De Regra Dispositiva. Regras Supletivas

Regras supletivas são as que só se aplicam na falta de estipulação das partes em contrário. Por
exemplo, o regime jurídico dos contratos obrigacionais é composto principalmente por normas
supletivas, ou seja, atendendo ao principio vetor da autonomia privada, estes regimes são
aplicados com um carácter supletivo, com o objetivo de suprir uma lacuna na regulação pelos
próprios interessados. Contrapõem-se às normas imperativas, que não podem ser afastadas pelas
partes. Uma norma imperativa é, por exemplo, o artigo 875º CC, que exige “escritura pulica ou
documento particular autenticado” para a consubstanciação do NJ.

Quer isto dizer que os direitos e obrigações das partes são primariamente definidos pelas
cláusulas do contrato; a maior parte das normas que fixam os efeitos dos contratos obrigacionais
só se aplica quando as partes nada convencionaram em contrário.

Nos negócios jurídicos mais correntes, como aqueles que celebramos no nosso dia-a-dia para a
aquisição de bens e serviços, é dificilmente concebível que as partes contemplem e disponham
sobre todos os aspetos do regime do negócio. Mesmo que isto fosse possível não seria prático
repetir em cada transação os mesmos preceitos. Por isso o legislador estabelece para as
categorias de negócios mais importantes um modelo de regulação que, na falta de convenção em
contrário, constitui o regime jurídico aplicável. Decorre do exposto que as regras supletivas
desempenham, principalmente, a função de suprir a incompletude das estipulações negociais.

Mas há também regras supletivas que são aplicáveis na falta de um negócio jurídico. É o que se
verifica com o regime supletivo de bens do casamento, que se aplica na falta de convenção
antenupcial (art. 1717.º CC). Também se poderá porventura dizer que as normas sobre a
sucessão legítima são supletivas, porque elas podem ser afastadas por testamento.

Ou seja:

▪ Se as partes não tiverem celebrado uma convenção antenupcial (art. 1698º CC), o
casamento considera-se celebrado sob o regime de comunhão de adquiridos (art.
1717º CC);
▪ Se o falecido não tiver disposto válida e eficazmente, no todo ou em parte, dos seus
bens, são chamados à sucessão os seus herdeiros legítimos (art. 2131º CC);

Para a doutrina clássica, fiel ao subjetivismo que pontuou no séc. XIX, a aplicação das regras
supletivas fundamenta-se na vontade presumida das partes. Por outras palavras, parte-se do
pressuposto que as partes conheciam a regulação contida no regime jurídico sobre a matéria em
questão e não o quiseram afastar, não precisando, por isso, de recorrer a um alternativo (isto só é
possível quando as disposições não tiverem um carácter imperativo, se o tiverem, esse regime
não pode ser afastado, podendo o NG ser mesmo inválido ou ineficaz).

Hoje prefere-se uma posição objetivista: as regras supletivas são um modelo de regulação em
que o legislador exprime a sua conceção sobre o justo equilíbrio dos interesses das partes.

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Introdução ao Estudo do Direito II 89
Daniel Vieira Lourenço – Turma B

Este modo de ver as coisas permite entrever uma outra função das regras supletivas: a de
constituírem um ponto de referência das partes quando negoceiam o contrato.

A determinação do caráter supletivo ou imperativo de uma norma é decisiva quando a


estipulação das partes dela divergir. Se a norma é imperativa, o negócio, ou pelo menos a
cláusula que a viola, são inválidos ou ineficazes. Se a norma é supletiva a convenção das
partes em contrário afasta-a, e, portanto, o negócio é plenamente válido e eficaz.

➢ Como se procede a esta determinação?

Em primeiro lugar tem de se atender ao que o legislador declara. Com frequência encontra-se na
lei expressões como “salvo convenção em contrário”, “na falta de convenção em contrário”,
“na falta de estipulação”, “no silêncio do contrato”, “exceto de for outro o regime
convencionado”, “salvo declaração em contrário”, que significam inequivocamente que se
trata de uma regra supletiva.

Da formulação de outras normas resulta inequivocamente a sua imperatividade,


designadamente quando se determina expressamente que a inobservância da norma
desencadeia a invalidade ou ineficácia do negócio ou de uma das suas cláusulas ou que se
não admite convenção em contrário.

Na falta de uma declaração do legislador, ou não sendo esta inequívoca, o caráter


imperativo ou supletivo constitui um problema de interpretação.

O intérprete tem de atender, em primeiro lugar, ao contexto significativo.

Normalmente, o legislador indica expressamente o caráter supletivo da norma que está integrada
num complexo predominantemente imperativo e o caráter imperativo da norma que está
integrada num complexo predominantemente supletivo.

Inversamente, o legislador dispensa-se normalmente de indicar o caráter supletivo das normas


que estão inseridas num complexo predominantemente supletivo ou o caráter imperativo das
normas que estão inseridas num complexo predominantemente imperativo.

Embora seja um indício importante, o contexto significativo não é de per si conclusivo. Há que
atender aos outros critérios de interpretação. Do ponto de vista teleológico é especialmente
importante se a norma exprime apenas um equilíbrio dos interesses das partes ou também
prossegue outros fins de política legislativa.

Em princípio, as normas que também tutelam a segurança do comércio jurídico, ou protegem


certas categorias de terceiros, ou prosseguem fins de política económica, social, etc., são
imperativas.

Em princípio as normas que só exprimem um equilíbrio dos interesses das partes são
supletivas, mas, em certos casos, em que há a preocupação de proteger uma das partes em
relação à outra, são imperativas.

É importante ter sempre presente que os grandes valores, princípios e regras do sistema
visam o equilíbrio (por exemplo, art. 237º CC, art. 239º CC e art.437º CC), porém, a
liberdade de celebração e de estipulação (autonomia privada) permitem o desequilíbrio. É

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Introdução ao Estudo do Direito II 90
Daniel Vieira Lourenço – Turma B

sempre uma ponderação feita caso a caso, regime a regime, consoante a natureza das
regras aplicáveis e os interesses a ser ponderados.

A distinção entre regras supletivas e regras imperativas relaciona-se com o conceito de ordem
pública.

O Código Civil refere-se à ordem pública designadamente para determinar a nulidade do


negócio jurídico subordinado a uma condição contrária à lei ou à ordem pública, ou ofensiva
dos bons costumes (art. 271.º/1); a nulidade do negócio cujo objeto seja contrário à lei, à ordem
pública ou aos bons costumes (art. 280.º); e, a nulidade do negócio jurídico cujo fim, comum a
ambas as partes, seja contrário à lei ou à ordem pública, ou ofensivo dos bons costumes (art.
281.º).

Nestes preceitos distingue-se a contrariedade à ordem pública da contrariedade à lei e, por


conseguinte, a ordem pública não pode significar o conjunto das normas imperativas.

Poderá assentar-se em que a ordem pública, enquanto conceito científico, incluirá as regras e os
princípios gerais imperativos, ao passo que referidos preceitos do Código Civil o conceito de
ordem pública se reportará apenas a estes princípios.

Critérios da Qualificação (Professor Miguel Teixeira de Sousa)

Para a qualificação de uma regra como injuntiva ou dispositiva pode atender-se a vários
critérios:

➢ Critério da Qualificação Pelo Legislador

De acordo com este critério são injuntivas as regras que o legislador não admite que sejam
afastadas pela vontade das partes (por exemplo o artigo 1170º/1 CC :”O mandato é livremente
revogável por qualquer das partes, não obstante convecção em contrário ou renuncia do direito
de revogação”).

Em contrapartida, são dispositivas as regras cuja aplicação seja expressamente ressalvada por
falta de disposição ou de estipulação das partes em contrário (por exemplo, o artigo 878º CC:
“Na falta de convenção em contrário as despesas do contrato e outras acessórias ficam a cargo
do comprador.”).

➢ Critério da Valoração da Regra

Este critério atende à matéria regulada pela regra e aos interesses que ela procura salvaguardar.
Pode concluir-se que são injuntivas as regras que são essenciais a um determinado regime, por
exemplo, a regra que exige o pagamento da renda da renda ou aluguer pelo locatário (art.
1038º/a CC) é injuntiva, porque esse pagamento é essencial ao contrato de locação.
Também são injuntivas as regras que protegem interesses que as partes não podem afetar. Por
exemplo, a regra que determina que, enquanto se verificar a mora do credor, a divida deixa de
vencer juros (art.814º/2 CC) é injuntiva, porque, de outro modo, permitir-se-ia que o credor
lucrasse, a expensas do devedor, com a sua recusa em receber a prestação.

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Introdução ao Estudo do Direito II 91
Daniel Vieira Lourenço – Turma B

Regras materiais e regras remissivas. Regras de conexão

As regras de conduta podem classificar-se em:

➢ Regras de regulação direta, ou materiais;

As normas materiais estabelecem o regime aplicável à situação descrita na sua previsão.


Modelam situações jurídicas, designadamente por via da atribuição de direitos e da imposição
de deveres.

➢ Regras de regulação indireta, ou remissivas;

As normas remissivas mandam aplicar à situação descrita na sua previsão outras normas ou
complexos normativos. As regras remissivas equiparam duas ou mais situações análogas,
remetem para outras normas e complexos normativos.

Enquanto que as remissões legais que remetem para outras normas do mesmo diploma ou para
uma lei diferente não constituem verdadeiras normas, mas proposições jurídicas incompletas, há
proposições remissivas que exprimem verdadeiras normas de regulação indireta. É que se passa,
pelo menos, com as normas de conflitos de leis no espaço e no tempo.

Resta acrescentar que a grande maioria das normas de conflitos no espaço e no tempo são, além
de normas remissivas, normas de conexão. São normas de conexão, porque conectam uma
situação da vida, ou seu aspeto, com o Direito aplicável, mediante um elemento de conexão.

Nas normas de conflitos de leis no espaço o elemento de conexão pode consistir:

▪ Em vínculos jurídicos que se estabelecem diretamente entre um elemento da situação e


um Direito (por exemplo, a nacionalidade);
▪ Em laços fácticos entre a situação e a esfera social de um Estado que, apontando para
um determinado lugar no território deste Estado, permitem à norma de conflitos chamar
o Direito que vigora neste Estado (por exemplo, o lugar da residência habitual);
▪ Em consequências jurídicas que se projetam num determinado lugar situado no
território de um Estado, possibilitando a individualização do Direito que aí vigora (por
exemplo, o lugar do efeito lesivo);
▪ Em factos jurídicos (por exemplo, a designação pelos interessados do Direito
aplicável).

É o que se verifica, nomeadamente, quando perante uma questão relativa ao estado ou


capacidade de uma pessoa nacional de um Estado e residente noutro Estado se manda aplicar a
lei da sua nacionalidade.

São normas de conflitos de leis no espaço não só as de Direito Internacional Privado mas
também as de Direito Interlocal (que resolvem problemas de determinação do Direito aplicável
no seio de ordens jurídicas complexas de base territorial).

Nas normas de conflitos de leis no tempo o elemento de conexão consiste num laço temporal
entre uma situação da vida, ou um seu aspeto, e a lei antiga ou a lei nova. Por exemplo, o
momento da celebração de um contrato e o momento da aquisição de um direito. Estas normas
de conflitos integram o Direito Intertemporal.

91
Introdução ao Estudo do Direito II 92
Daniel Vieira Lourenço – Turma B

Está-se perante uma norma deste tipo, por exemplo, quando, perante uma sucessão de leis
reguladora de um determinado tipo contratual, se limita o âmbito de aplicação da nova lei aos
contratos celebrados depois da sua entrada em vigor.

Uma terceira categoria de normas de conflitos é a que integra o Direito Interpessoal (que resolve
problemas de determinação do Direito aplicável no seio de ordens jurídicas complexas de base
pessoal). Também aqui surgem elementos de conexão, que se reportam, por exemplo, nos
sistemas jurídicos que o admitem, à religião ou à etnia.

Regras de Remissão (Professor Miguel Teixeira de Sousa)

As regras de remissão equiparam duas situações distintas, aplicando a uma delas o regime que
está previsto para a outra. Por exemplo, o artigo 499º CC manda aplicar à responsabilidade pelo
risco, na parte aplicável e na falta de preceitos legais em contrário, as disposições que regulas a
responsabilidade por factos ilícitos (art. 483ºCC)

A remissão assenta numa analogia entre duas ou mais situações: em vez de se definir um regime
legal, remete-se para outro já existente, porque as situações são análogas e merecem um mesmo
tratamento jurídico. Por exemplo, o artigo 17º CRP manda aplicar o regime dos direitos,
liberdades e garantias nele estabelecido aos direitos fundamentais de natureza análoga.

É este aspeto que permite distinguir as regras e remissão das ficções legais: nas regras de
remissão equiparam-se realidades análogas (o facto F1, que é análogo ao facto F2, é equiparado
a este último); nas ficções legais equiparam-se realidades distintas (o facto F3, apesar de ser
diferente do facto F4, é equiparado a este último).

É de destacar que, no domínio das regras de remissão, se trata apenas de uma analogia (e não de
uma igualdade) entre as situações: é por isso que, por vezes, a lei, em vez de proceder a uma
remissão, equipara duas situações jurídicas. Por exemplo, o artigo 433 CC equipara a resolução
do contrato, quanto aos seus efeitos, à anulabilidade ou à nulidade do negócio jurídico (art.289º
CC).

É também a relação de analogia entre as situações que justifica que muitas remissões sejam
acompanhadas de indicação de que, na aplicação do regime ad quam, há que proceder às
necessárias adaptações ou ainda que há que respeitar a analogia entre as situações em análise.

Lei Geral não Revoga Lei Especial (Primeiro Semestre)

Um dos casos em que a revogação global ou tácita pode suscitar dificuldades ao intérprete tem
que ver com a relação que intercede entre lei geral e lei especial.

Determina o n.º 3 do art. 7.º CC:

▪ “A lei geral não revoga a lei especial, exceto se outra for a intenção inequívoca do
legislador.”

Seguindo um critério estrutural ou formal, a relação de especialidade é definida pelo alcance da


previsão de cada uma das regras em concurso: o domínio de aplicação da norma especial
corresponde a um setor do domínio de aplicação da norma geral.

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Introdução ao Estudo do Direito II 93
Daniel Vieira Lourenço – Turma B

Norma geral
Norma
especial

Todas as situações que caem no âmbito da previsão da norma especial também estão, prima
facie, dentro do domínio de aplicação da norma geral. Mas nem todas as situações abrangidas
pela previsão da norma geral estão dentro do domínio de aplicação da norma especial.

Não é só entre regras jurídicas singulares que surge uma relação de especialidade. A mesma
relação pode interceder entre complexos normativos, e, designadamente, entre ramos do Direito,
por exemplo, entre o Direito Privado e o Direito Comercial.

Por diversas razões é discutível se este critério é suficiente para a classificação das normas
especiais, sobretudo quando esteja em vista uma classificação tripartida
geral/especial/excecional. No presente contexto interessam somente as considerações que
relevarem para o tema da revogação.

Quando há incompatibilidade entre as regras jurídicas em vigor que estão nesta relação de
especialidade, entende-se que a norma especial prevalece sobre a norma geral.

A lei atende a circunstâncias particulares que qualificam certas situações como “especiais”, e
estabelece um regime diferente em função desta “especialidade”.

Na mesma ordem de ideias, a lei geral não revoga a lei especial, porque, em princípio, a nova lei
geral não atende à “especialidade” de que se revestem certas situações, não existindo uma
intenção de abolir o regime especial para elas estabelecido.

De pé fica, no entanto, a possibilidade de estar subjacente à nova lei geral a intenção de eliminar
os regimes especiais.

São diversas as considerações que podem levar à revogação de regimes especiais por uma lei
geral.

Pode haver uma reapreciação das circunstâncias particulares que justificavam a “especialidade”
e que, segundo a nova valoração, não justificam a manutenção de regimes especiais.

A especialidade de uma lei pode ser meramente formal, por não ser justificada pelas
circunstâncias particulares do setor a que se aplica. É o que sucede quando o legislador

93
Introdução ao Estudo do Direito II 94
Daniel Vieira Lourenço – Turma B

aproveita uma lei especial para introduzir soluções que se justificam em todo o domínio de
aplicação da lei geral.

Neste caso, se o legislador vem alterar a lei geral, consagrando soluções contrárias à lei
formalmente especial, não há razão para manter em vigor esta lei.

Enfim, o novo regime geral pode mostrar-se mais adequado a todas as situações, incluindo as
reguladas pela lei especial.

Em suma, o que justifica a não revogação da lei especial por lei geral é a especialidade
substancial, que decorre do estabelecimento de um regime específico mais adequado a
circunstâncias particulares e não uma especialidade meramente formal.

A fórmula utilizada na lei não é a mais feliz, na parte em que se refere à “intenção inequívoca
do legislador”. Admite-se que, por razões de certeza jurídica, quem invoque a revogação de lei
especial por lei geral tenha de demonstrar que este é, seguramente, o sentido da lei.

Em caso de dúvida, entender-se-á que não há um sentido revogatório.

Regras gerais, especiais e excecionais

A distinção entre regras gerais e regras especiais corresponde a uma relação que se estabelece
entre duas normas ou entre dois complexos normativos: uma norma ou um complexo normativo
é especial quando estabelece uma relação de especialidade com uma norma ou um complexo
normativo geral. Esta relação é um dos nexos intrassistemáticos.

Para o professor Oliveira Ascensão, a especialidade é uma classificação relativa, pode ser geral
ou especial consoante a regra em comparação. Uma regra é especial quando sem contrariar os
princípios da regra geral a adapta a um domínio mais especial

Segundo um critério estrutural, ou formal, esta relação de especialidade é definida pelo alcance
da previsão de cada uma das regras em concurso: o domínio de aplicação da norma especial
corresponde a um setor do domínio de aplicação da norma geral.

Por exemplo o direito comercial justifica a sua existência por atender a particularidades do
comércio, para as quais o direito civil não está preparado, o direito comercial aparece para
adaptar o direito civil para que este responda às características exigidas, o direito comercial é
especial em relação ao civil, porque desenvolve os seus grandes princípios e valores para a uma
área especial e determinada dentro da esfera do direito civil.

A distinção entre regras gerais e especiais tem relevância quer para a resolução de concursos
aparentes de normas quer em matéria de revogação.

▪ Por um lado, em caso de incompatibilidade entre regras jurídicas que estão numa relação
estrutural de especialidade entende-se que a norma especial prevalece sobre a norma geral.
▪ Por outro lado, em princípio, a lei geral não revoga a lei especial; só a revogará se estiver
subjacente à nova lei a intenção de eliminar o regime especial.

As coisas complicam-se quando se pretenda proceder a uma classificação tripartida das regras
em gerais, especiais e excecionais.

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Introdução ao Estudo do Direito II 95
Daniel Vieira Lourenço – Turma B

Na opinião do professor Lima Pinheiro, não há um critério unitário que permita classificar as
regras em gerais, especiais e excecionais. Trata-se de duas classificações distintas com
relevância igualmente distinta.

▪ Por um lado, trata-se da relação de especialidade que releva para a resolução de concursos
de normas e para a matéria da revogação da lei.
▪ Por outro, trata-se da relação de excecionalidade que releva para os limites à analogia e
para o argumento a contrario. Nesta ordem de ideias que, esclareça-se, nada obsta a que
uma norma seja simultaneamente classificável como especial e como excecional. Uma
coisa não contende com a outra. É em todo o caso claro que só uma pequena parte das
normas especiais pode ser qualificada como excecional.

Uma primeira verificação, é a de que a classificação das normas em excecionais e “gerais”


também corresponde a uma relação. É a relação que se estabelece entre regra e exceção.

Em segundo lugar, a relação de excecionalidade assume uma feição específica perante a


“simples” relação de especialidade. Só há uma exceção quando uma regra, que é estabelecida
para um determinado conjunto de situações, é afastada, relativamente um círculo restrito destas
situações, por uma solução de sentido contrário.

Não basta que o regime seja diferente. Tem de ser um regime de sinal oposto ao regime-regra.

▪ Por exemplo, em matéria de responsabilidade civil vigora o dito “princípio da culpa”,


segundo o qual, em princípio, só há obrigação de indemnizar quando o dano resultou
de um ato ilícito e culposo (art. 483.º CC). No entanto, em certos casos especificados
na lei, admite-se excecionalmente a responsabilidade independentemente de culpa e,
até, da ilicitude do facto lesivo (arts. 499.º e segs. CC, designadamente).
▪ O art. 219.º CC estabelece a regra geral da consensualidade, segundo a qual a
validade da declaração negocial não depende da observância de forma especial, salvo
quando a lei o exigir. O art. 875.º CC submete a escritura pública ou documento
particular autenticado o contrato de compra e venda de bens imóveis. Esta exigência de
forma está em direta oposição ao regime-regra do art. 219.º, representando, pois, uma
norma excecional.

Segundo o art. 11.º CC, as normas excecionais não comportam aplicação analógica, mas
admitem interpretação extensiva.

Não se aplica por analogia a excecionalidade da norma porque ela foi pensada para casos
específicos e determinados, não faz sentido aplicar algo que foi pensado para determinada
situação por analogia a outras situações.

Com efeito, se o regime excecional se justifica por uma valoração diferente de casos
específicos, mal se compreenderia que se fosse por analogia aplicar a regra a outros casos, que
não justificam tal valoração.

▪ Assim, por exemplo, a sujeição a forma legal do contrato de compra e venda de imóveis
justifica-se pelo elevado valor destes bens, que coloca especiais exigências quanto à
tutela da formação da vontade e à certeza sobre as situações jurídicas existentes. Não
pode aplicar-se por analogia esta regra à venda de bens móveis.

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Introdução ao Estudo do Direito II 96
Daniel Vieira Lourenço – Turma B

Mas não poderá o mesmo raciocínio ser feito em relação às restantes normas especiais?
Aparentemente a resposta é afirmativa.

Claro é que este raciocínio não obsta sempre à aplicação analógica das regras especiais. Se o
caso omisso justificar a valoração diferente que está subjacente ao regime especial a regra
especial deve ser-lhe aplicada por analogia. Será que esta possibilidade se encontra arredada no
que toca às normas excecionais, por força do art. 11.º CC? Na opinião do professor Lima
Pinheiro, não se pode excluir em absoluto a possibilidade da norma excecional ser aplicada por
analogia.

Para Oliveira Ascensão, não basta, para qualificar uma regra como excecional, que
contrarie uma regra de âmbito mais vasto. Só será excecional a regra que vá contra um
princípio geral informador de um setor do sistema jurídico. Obter-se-ia assim uma
excecionalidade substancial.

É certo que a formulação legal não é um critério seguro para determinar a excecionalidade de
uma regra.

▪ O legislador pode formular como exceção – utilizando a palavra “exceto” ou “salvo” –


aquilo que constitui um mero elemento de delimitação da previsão da norma.
▪ Noutros casos, o legislador pode formular como exceção aquilo que corresponde a uma
mera especialidade, um regime que, embora diferente, não é oposto ao regime-regra.

Mas embora seja aliciante o apelo a uma excecionalidade substancial, levantam-se duvidas que,
por forma geral, se deva fazer depender a excecionalidade da regra da contrariedade a um
princípio geral.

Em muitos casos a regra que se opõe a uma regra de alcance mais amplo fundamenta-se num
princípio geral ou numa conjugação de princípios jurídicos gerais que leva a limitar o princípio
geral em que se baseia a “regra geral”. É o que se verifica, por exemplo, com as regras que
estabelecem exigências de forma para determinados negócios jurídicos. Ora, nestes casos,
tanto a “regra geral” como a regra que se lhe opõe constituem ao mesmo tempo a
expressão de princípios jurídicos gerais e a sua limitação.

Noutros casos pode acontecer que nem a “regra geral” nem a regra que se lhe opõe
possam ser vistas como expressões de princípios jurídicos gerais.

O legislador do CC também não acolheu a ideia de contrariedade a princípios fundamentais que


constava do art. 11.º do projeto.

Isto leva a concluir que para a qualificação de uma regra como excecional basta que ela
estabeleça um regime de sentido oposto a uma regra de alcance mais amplo.

Para caracterizar a relação de excecionalidade pode ainda invocar-se a incompatibilidade dos


efeitos jurídicos desencadeados por cada uma das normas em presença.

Esta incompatibilidade não é característica necessária da relação de especialidade. Os efeitos de


uma norma especial tanto podem ser compatíveis como incompatíveis com os da regra geral.

96
Introdução ao Estudo do Direito II 97
Daniel Vieira Lourenço – Turma B

Os efeitos das normas excecionais são necessariamente incompatíveis com os da “norma geral”.
Mas, de novo, nem todas as normas em que esta incompatibilidade se verifica estão em relação
de excecionalidade.

A classificação de um regra como excecional também releva tradicionalmente para a


utilização do argumento a contrario. Se a regra excecional consagra um regime oposto ao
regime-regra, então poderia extrair-se da regra excecional a “regra geral”.

Assim, se a sujeição a forma legal é uma regra excecional, o contrário, que é a consensualidade,
constitui a regra geral.

Claro que este argumento só tem sentido útil quando a regra geral, por não se encontrar
expressamente formulada, carece de ser revelada pela interpretação. Ao mesmo tempo, porém, a
utilização do argumento pressupõe a demonstração do caráter excecional da regra que se
encontra expressamente formulada.

▪ Ratio legis, raciocínio teleológico – Pergunta-se ao preceito quais sãos os valores


protegidos, qual o objetivo da norma. Por exemplo art. 785 – qual o objetivo? Quando o cc
foi criado o património/riqueza era maioritariamente imobiliário, a intenção do legislador
foi que numa transação de elevado valor as pessoas devam ter um momento de reflexão.
Impor a reflexão é um principio do sistema, é também a manifestação do principio geral.
Quando se fala na interpretação da razão de ser (ratio) é isto, mas é no sentido oposto à
regra geral. Há princípios do ordenamento que entram em conflito e acabam por criar uma
regra excecional.

Isto suscita uma dificuldade fundamental: a excecionalidade da regra expressa tem de resultar
da contrariedade à regra geral implícita, logo pressupõe a demonstrada a vigência de uma regra
geral implícita em sentido contrário.

Portanto, aparentemente, o argumento a contrario constitui uma petição de princípio,


porque faz entrar a conclusão (a vigência da regra geral) nas premissas (excecionalidade
da regra).

Com efeito, a verdadeira questão que aqui se coloca não é a de se deduzir, segundo um
raciocínio de lógica formal, uma regra geral implícita de uma regra expressa, mas de saber se a
regra expressa constitui uma manifestação de um “princípio geral”, de uma regra geral
implícita, ou um desvio relativamente à regra geral implícita.

Se a regra expressa constitui uma manifestação de uma regra geral implícita, esta infere-se,
mediante interpretação, do texto legal, ou se não tiver um mínimo apoio no texto legal,
mediante a aplicação analógica da regra expressa.

Se os relevantes critérios de interpretação ou integração de lacunas levam a concluir que a regra


geral implícita estabelece um regime oposto ao da regra expressa, o argumento a contrario é
inútil.

Trata-se, de novo, de um problema de interpretação ou de integração de lacunas, que tem de ser


resolvido com base nos relevantes critérios metodológicos e, em especial, à luz da intenção do
legislador histórico e de outros critérios teleológicos. Portanto, o que releva não é um
argumento lógico-formal mas, principalmente, um raciocínio teleológico

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Introdução ao Estudo do Direito II 98
Daniel Vieira Lourenço – Turma B

Como já referido, é importante reter, que o problema do elemento a contrario é que nem sempre
é possível chegar à regra geral através dele, por exemplo, da legitima defesa não consigo
perceber que a regra geral é a proibição de matar.

“Regras comuns” e “regras particulares”

Segundo esta classificação dizem-se comuns as regras que se aplicam à generalidade das
pessoas e particulares as que se aplicam a certas categorias de pessoas.

No passado, em particular antes do advento do jusracionalismo, as regras de Direito particular


desempenharam um papel de grande importância. Assim, designadamente, em Portugal houve
diferentes regras aplicáveis às diversas ordens do reino (clero, nobreza e povo), privilégios de
algumas destas ordens, normas privativas de certas profissões, etc.

Hoje, no Direito português, as leis são geralmente comuns, embora possam atender a certas
qualidades dos seus destinatários para delimitar as situações reguladas. Por exemplo,
certas regras só se aplicam quando o sujeito é comerciante, ou empresário, ou consumidor,
etc.

Resta acrescentar que esta classificação de regras suscita algumas dificuldades relativamente ao
fenómeno das ordens jurídicas complexas de base pessoal. Há uma diferença, sem dúvida difícil
de traçar, entre complexos normativos materiais que, por força de normas de conflitos de Direito
Interpessoal só são aplicáveis a certas categorias de pessoas, e normas ou complexos normativos
materiais cuja previsão se reporta a relações entre pessoas de uma determinada categoria, sem
que haja necessidade de qualquer norma de conflitos para delimitar o seu âmbito pessoal de
aplicação.

▪ No primeiro caso, temos uma norma de conflitos que exprime uma valoração conflitual
autónoma; no segundo, um mero elemento delimitador da previsão da norma material. Por
exemplo:
▪ As normas de uma lei que são privativas dos negócios celebrados entre empresários são
regras particulares. A qualidade de empresário dos seus destinatários é um pressuposto
de aplicação destas normas materiais, um elemento da sua previsão. Não é necessária
qualquer regra de conflitos.

Quando num país as relações do estatuto pessoal são reguladas por diferentes complexos
normativos conforme a confissão religiosa dos respetivos sujeitos, a delimitação do âmbito
de aplicação pessoal destas normas materiais resulta de normas de conflitos de Direito
Interpessoal. Porquanto a delimitação do âmbito pessoal de aplicação destas normas
materiais não resulta da sua previsão, mas de outra norma, elas não se distinguem, pela
sua estrutura, das normas comuns. Será menos equívoco designar estes complexos
normativos por Direito pessoal que por Direito particular.

Pelas razões expostas, o professor Lima Pinheiro defende que não se deve juntar, numa mesma
categoria, as normas materiais que contêm uma pressuposto pessoal de aplicação e as normas
materiais que são objeto de normas de conflitos de Direito Interpessoal

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Introdução ao Estudo do Direito II 99
Daniel Vieira Lourenço – Turma B

“Regras gerais” e “regras locais”

Esta classificação atende à delimitação das situações reguladas pelas normas em razão do
território. São regras gerais as que regulam quaisquer situações e locais as que regulam
apenas as situações que estejam em contacto com uma determinada área do território.

Na ordem jurídica portuguesa a grande maioria das regras são gerais.

São necessariamente locais as normas que resultam da atividade de órgãos locais, por exemplo
as posturas municipais. Com efeito a competência regulamentar dos órgãos locais limita-se a
situações que estão em contacto com uma circunscrição territorial, que, no caso da Câmara
Municipal é o concelho.

Esta classificação atende à delimitação das situações reguladas pelas normas em razão do
território. São regras gerais as que regulam quaisquer situações e locais as que regulam apenas
as situações que estejam em contacto com uma determinada área do território.

Os órgãos centrais também podem produzir normas locais – por exemplo, a legislação que se
destine a apoiar os agricultores atingidos pela seca numa região do país.nDe acordo com o
anteriormente exposto, o costume também pode ser local.

O professor Oliveira Ascensão recorre a uma classificação tripartida, em que as normas que se
“aplicam” em todo o território são designadas universais, e se acrescenta, como terceira
categoria, as normas gerais, que se “aplicam” só no território continental.

A razão pela qual o professor Lima Pinheiro não segue esta classificação tripartida relaciona-se
com a distinção que traço entre normas que integram um pressuposto espacial de aplicação e
complexos normativos que têm um âmbito de aplicação no espaço delimitado por normas de
conflitos de Direito Interlocal.

Esta distinção é paralela a traçada anteriormente com respeito às regras particulares.

A matéria da competência legislativa das Assembleias Legislativas dos Açores e da Madeira


suscita questões complexas.

Esta competência pode ser primária (arts. 227.º/1/a e 228.º/1 CRP), delegada (art. 227.º/1/b
CRP), complementar (art. 227.º/1/c CRP) ou dizer respeito à transposição de diretivas da União
Europeia (art. 112.º/8 CRP). A competência primária tem por objeto as matérias enunciadas no
Estatuto Político-Administrativo da respetiva Região, que sejam do âmbito regional e não
estejam reservadas aos órgãos de soberania. Daí resulta que a ordem jurídica portuguesa é,
embora embrionariamente, uma ordem jurídica complexa de base territorial.

Entre outros limites, os decretos legislativos regionais têm um “âmbito regional” (art.
112.º/4 CRP), critério que tem pelo menos uma dimensão territorial.

Por outro lado, mesmo nas matérias de competência das assembleias regionais, são
subsidiariamente aplicáveis as normas da legislação estadual (art. 228.º/2 CRP).

Estas normas constitucionais implicam ou balizam certas soluções de Direito Interlocal, que
podem estar meramente implícitas. As normas emanadas das assembleias legislativas regionais
têm um âmbito de aplicação no espaço limitado, independentemente do modo como a sua

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Introdução ao Estudo do Direito II 100
Daniel Vieira Lourenço – Turma B

previsão é delimitada, por força destas soluções de Direito Interlocal. Elas não se distinguem
necessariamente, pela sua estrutura, das “regras gerais”.

O mesmo se diga das leis dos órgãos estaduais que, por força de uma norma de Direito
Interlocal nelas contida, regulem exclusivamente situações conectadas com as Regiões. Estas
leis são constitucionalmente admissíveis, pelo menos em matérias reservadas aos órgãos de
soberania.

Já a mera competência regulamentar das autarquias locais não é um fator significativo da


complexidade da ordem jurídica, não suscitando, na prática, conflitos de leis interlocais.
Também neste caso, porém, se verifica que a delimitação do âmbito de aplicação no espaço da
norma é independente da sua previsão e que, por conseguinte, estas normas não se distinguem
das normas gerais pela sua estrutura.

Diferente é o caso das normas criadas pelos órgãos centrais que delimitem a sua previsão
em função do território. No exemplo dado, quando o Governo cria um sistema de apoios
aos agricultores de uma determinada região, a delimitação das situações reguladas integra
a previsão das normas em causa, sem necessidade de qualquer norma de Direito
Interlocal.

Não se deve juntar, numa mesma categoria, as normas materiais que contêm um
pressuposto espacial de aplicação e as normas materiais cujo âmbito de aplicação no
espaço é delimitado por normas de conflitos de Direito Interlocal.

No seu sentido mais comum a expressão “Direito local” designa o Direito cujo âmbito de
aplicação no espaço é delimitado por normas de Direito Interlocal. Não é recomendável que se
utilize esta expressão com respeito a normas que contêm pressupostos espaciais de aplicação.

Pelas razões expostas, em lugar de classificar as regras em comuns/particulares e gerais/locais,


será preferível classificá-las, em função da integração de um pressuposto pessoal ou espacial na
sua previsão, como regras de alcance geral, regras de alcance personalizado e regras de alcance
localizado.

Quanto à distinção entre Direito comum, Direito pessoal e Direito local, já não se tratará de uma
classificação de regras jurídicas, mas de uma classificação de complexos normativos vigentes
dentro de uma ordem jurídica complexa.

No art. 348.º CC o conceito de “Direito local” não corresponde inteiramente ao sentido mais
comum da expressão.

▪ O sentido do art. 348.º é essencialmente o de esclarecer que o Direito consuetudinário,


local ou estrangeiro tem um estatuto idêntico ao do restante Direito: é de conhecimento
oficioso, não carecendo, para a sua aplicação, de ser alegado e provado pelas partes (cf.
art. 348.º/1 e 2). A única especialidade reside no estabelecimento de um dever de
colaboração com o tribunal daquele que invocar o Direito consuetudinário, local ou
estrangeiro.

O que se deve entender, no art. 348.º, por Direito local?

100
Introdução ao Estudo do Direito II 101
Daniel Vieira Lourenço – Turma B

Primeiro, o Direito local visado pelo art. 348.º exclui o costume local e o Direito local
estrangeiro, que se encontram abrangidos nas menções feitas ao Direito consuetudinário e ao
Direito estrangeiro.

Segundo, o dever de colaboração das partes só se justifica quanto às normas criadas por órgãos
locais, uma vez que as regras locais criadas pelos órgãos centrais e regionais estão sujeitas
publicação no jornal oficial.

Pode então concluir-se que a expressão Direito local significa, neste contexto, as normas
regulamentares emanadas de órgãos locais.

Da Recondução das Regras “Particulares” e “Locais” à Categoria das Regras Especiais

Dias Marques, Oliveira Ascensão e Teixeira de Sousa formulam um conceito amplo de


especialidade, que inclui, além das regras especiais em razão da matéria, não só as regras que
atrás classificámos como regras de alcance personalizado e localizado mas, também,
aparentemente, o Direito pessoal e o Direito local.

Nesta ordem de ideias, Oliveira Ascensão defende que o art. 7.º/3 CC, estabelece que, em
princípio, a lei geral não revoga lei especial, se aplica relativamente à revogação de todas estas
regras.

Parece-me que não se deve, para efeitos de aplicação do art. 7.º/3, reconduzir o Direito pessoal
ou local ao conceito de “lei especial”. As relações entre estes complexos normativos e as
normas de Direito comum constituem um problema completamente diferente do das relações
entre lei especial e lei geral.

Pelo que toca à ordem jurídica portuguesa, o tema das relações entre as leis regionais e as leis
do Estado pertence ao Direito Constitucional. A questão tem sido controvertida.

O problema da revogação em matérias em que haja competências concorrentes dos órgãos de


soberania e das assembleias regionais é controverso na doutrina.

▪ Parece de admitir que a lei do Estado, salvo demonstração inequívoca da intenção do


legislador em contrário, não revoga a lei regional (a lei estadual que revogue lei regional em
matéria que o estatuto político-administrativo da região reserve à competência legislativa
regional, estará mesmo ferida de ilegalidade, uma vez que o estatuto tem valor
supralegislativo). Mas isto, na opinião do professor Lima Pinheiro, decorre do sentido da
repartição de competências operada pela Constituição e não do art. 7.º/3 CC.
▪ Por seu turno, os decretos legislativos regionais não revogam as leis do Estado, apenas
prevalecem sobre estas em caso de conflito.
▪ Quanto à revogação de uma lei de alcance personalizado ou localizado por uma lei de
alcance geral, encontra aplicação a ratio do art. 7.º/3 CC. Deve partir-se do princípio que
uma lei de alcance geral não tem a intenção de revogar a lei que exprima uma valoração
específica das situações em que estão envolvidas determinadas categorias de pessoas ou que
se localizam numa determinada zona do território. É pois de aceitar que o conceito de lei
especial utilizado neste preceito abranja a lei de alcance personalizado e a lei de alcance
localizado.

101
Introdução ao Estudo do Direito II 102
Daniel Vieira Lourenço – Turma B

▪ Também em caso de incompatibilidade entre as consequências jurídicas desencadeadas por


uma norma de alcance geral e por uma norma de alcance personalizado ou localizado que
não seja hierarquicamente inferior parece que deve prevalecer esta segunda norma.

102
Introdução ao Estudo do Direito II 103
Daniel Vieira Lourenço – Turma B

Identificação do problema Capítulo VI


Um dos nexos que se estabelecem entre as regras Hierarquia das Fontes
de um sistema é o nexo hierárquico. As regras não
▪ Identificação do problema;
têm todas o mesmo valor e a determinação deste
valor é importante para diversas operações:
▪ Hierarquia das fontes.
▪ A revogação de uma regra;
▪ A interpretação autêntica de uma proposição ▪ Hierarquia das Fontes Para
jurídica; Marcelo Rebelo de Sousa e Sofia
▪ A determinação da regra aplicável no caso de Galvão;
vigoraram regras que em relação ao mesmo
caso concreto geram consequências ▪ Hierarquia das Fontes Para Freitas
incompatíveis. do Amaral;

Uma norma tem, no sistema normativo, o valor da ▪ Conflito de Normas;


fonte que a criou e, por conseguinte, a hierarquia
das regras não pode deixar de ser a expressão da
hierarquia das fontes.

No entanto, na opinião do Professor Lima


Pinheiro, parece de admitir que a hierarquia das
normas pode ser influenciada pelo seu conteúdo,
ganhando assim alguma autonomia relativamente
à hierarquia das fontes. Assim, normas que teriam
o mesmo grau hierárquico do ponto de vista da
hierarquia das fontes poderão ver essa hierarquia
modificada em função do seu conteúdo.

Por exemplo, poderá dizer-se que uma Lei da


Assembleia da República sobre matéria da sua
reserva absoluta de competência é
hierarquicamente superior a um Decreto-Lei do
Governo (cf. art. 198.º/1/a CRP).

Sendo a lei a principal fonte estadual do Direito é


até certo ponto natural que o problema da
hierarquia se coloque geralmente com respeito às
leis. Mas, em rigor, o problema também se pode
colocar relativamente às outras fontes.

Expressão de Hierarquia das Fontes

Segundo o professor Oliveira Ascensão, não há


hierarquia entre regras, mas sim hierarquia entre
fontes de Direito, isto porque as regras derivam
das fontes e todas as regras têm uma natureza
vinculativa.

103
Introdução ao Estudo do Direito II 104
Daniel Vieira Lourenço – Turma B

Por sua vez, Marcelo Rebelo de Sousa e Sofia Galvão sustentam que a expressão hierarquia das
fontes de Direito não parece a melhor, porque não existe verdadeiramente uma hierarquia “no
sentido de ordenação de relevância jurídica decrescente quanto aos diversos modos de revelação
de Direito”, mas o que existe é apenas uma hierarquia quanto ao seu modo de criação. Por isso,
é preferível falar de hierarquia de formas de criação de Direito – trata-se de uma matriz de
concretização do Direito, e só consequentemente de regras.

Hierarquia das fontes (Professor Lima Pinheiro)

As fontes podem ser supraestaduais, estaduais, infraestaduais e paraestaduais.

▪ Primeiro, segundo a posição dominante, o Direito Internacional convencional e derivado,


tem um valor superior à lei ordinária, mas infraconstitucional (ver arts. 8.º, 277.º/2,
278.º/1, 279.º/1 e 4 e 280.º/3 CRP e art. 70.º/1/i da Lei Orgânica sobre a organização,
funcionamento e processo do tribunal constitucional).
▪ Segundo, embora a jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia e um setor
importante da doutrina defenda a primazia do Direito da União Europeia sobre todo o
Direito de fonte interna, o melhor entendimento, que prevalece entre nós, é o de que na
ordem interna a Constituição nacional tem supremacia sobre o Direito da União
Europeia. Este entendimento pode ser mantido mesmo perante disposições constitucionais
como a que, após a revisão constitucional de 2004, consta do art. 8.º/4 CRP, e não é
substancialmente prejudicado pela entrada em vigor do Tratado de Lisboa (ver também
arts. 204.º e 277.º CRP). A referência ao primado do Direito da União não consta do texto
dos Tratados, mas apenas de uma declaração anexa ao Tratado de Lisboa (Declaração n.º
17), cujo valor jurídico é controverso.
▪ Terceiro, é igualmente controversa a posição do Direito Internacional comum
relativamente à Constituição. O professor Lima Pinheiro acredita que a razão está com
aqueles que entendem que certas normas e princípios fundamentais de Direito
Internacional comum, designadamente em matéria de direitos fundamentais e Direito
Penal Internacional, se impõem às ordens jurídicas estaduais e, que, portanto,
independentemente de serem recebidos ou não na ordem interna têm valor
supraconstitucional.

Hierarquia:

1. No que se refere à hierarquia das leis internas, é óbvio que a lei constitucional
ocupa o escalão mais elevado.
2. Segue-se-lhe a lei de revisão constitucional, que é limitada pela constituição formal.
3. Um terceiro escalão é ocupado pelas leis de valor reforçado, definidas no art. 112.º/3
CRP e que segundo Jorge Miranda são de cinco espécies: leis de enquadramento, leis
orçamentais, leis de autorização legislativa, leis de bases e estatutos político-
administrativos das regiões autónomas.
4. Até a revisão constitucional de 2004 os decretos legislativos regionais ocupavam o
quarto escalão, porque estavam sujeitos às leis gerais da República, as Leis e os
Decretos-Leis que vigorem em todo o território nacional (art. 112.º/4 e /5).
Presentemente, resulta do art. 228.º/2 CRP que nas matérias de competência das
assembleias regionais as normas da legislação estadual só são aplicáveis
subsidiariamente, na falta de legislação regional.

104
Introdução ao Estudo do Direito II 105
Daniel Vieira Lourenço – Turma B

Por conseguinte, os decretos legislativos regionais prevalecem, em regra, sobre as


leis do Estado (sem prejuízo de estarem subordinados a certas leis do Estado,
designadamente as leis de valor reforçado: leis de enquadramento, leis de autorização
legislativa (arts. 165.º/2 e 227.º/2 CRP) e leis de bases (art. 112.º/2 CRP) (Jorge
Miranda e Blanco de Morais)).
5. Em quarto lugar surgem, desde logo, as restantes leis da Assembleia da República
e os decretos-leis do Governo que têm igual valor (art. 112.º/2 CRP).
6. Por último, os regulamentos, que também se encontram hierarquizados entre si. Os
critérios da hierarquia regulamentar são três: a posição do órgão emissor, o âmbito
territorial das atribuições prosseguidas pela pessoa coletiva a que pertence o órgão
emissor e a forma regulamentar.
▪ Segundo o critério da posição do órgão emissor, os regulamentos emitidos pelo
Governo enquanto órgão superior da administração pública são
hierarquicamente superiores em relação a todos os restantes regulamentos
administrativos, e os regulamentos emitidos por órgãos supraordenados são
hierarquicamente superiores àqueles emitidos pelos órgãos que se lhes
encontram infraordenados.
▪ Segundo o critério do âmbito geográfico das atribuições prosseguidas, os
regulamentos emitidos por órgãos inseridos em pessoas coletivas cujas
atribuições sejam de âmbito territorial mais amplo são hierarquicamente
superiores àqueles emitidos por órgãos inseridos em pessoas coletivas cujas
atribuições sejam de âmbito territorial mais restrito.
▪ Segundo o critério da forma, os regulamentos de forma mais solene são
hierarquicamente superiores àqueles que sejam revestidos de forma menos
solene. Por exemplo, um decreto regulamentar prevalece sobre as portarias e os
despachos normativos.

Estes critérios não são absolutos e, em especial, sofrem desvios no que toca aos
regulamentos dos órgãos das Regiões Autónomas.

A relação entre lei e costume foi estudada no primeiro semestre.

No que se refere às decisões com força obrigatória geral do Tribunal Constitucional


parece que têm o mesmo valor que a lei constitucional que interpretam e aplicam.

Quanto aos atos normativos autónomos, têm de se distinguir conforme se trata de normas
emanadas de organizações sociais e de regras geradas pela autonomia coletiva no Direito do
Trabalho. Deve-se entender que as normas emanadas de organizações sociais infraestaduais são
inferiores à lei, se outra coisa não resultar da Constituição ou da lei ordinária. Isto pode ser
fundamentado de várias maneiras.

▪ Para quem admita que a competência para a produção jurídica no âmbito de


organizações sociais infraestaduais é delegada pela ordem jurídica estadual poderá
encontrar aí o fundamento mais geral para esta subordinação.
▪ Quem entenda que o disposto nos números 2 e 3 do art. 1.º CC, relativamente às normas
corporativas, continuará a ser aplicável às normas criadas no âmbito de organizações
sociais, poderá invocar o disposto neste n.º 3: “As normas corporativas não podem
contrariar as disposições legais de carácter imperativo”.

105
Introdução ao Estudo do Direito II 106
Daniel Vieira Lourenço – Turma B

▪ Outros argumentos no mesmo sentido podem-se retirar das normas legais que
estabelecem a invalidade do ato constitutivo de pessoas coletivas e das deliberações dos
seus órgãos que sejam contrárias à lei (cf., desde logo, os arts. 158.º-A e 177.º CC).

Quanto aos instrumentos de regulamentação coletiva do trabalho a lei ordinária também contém
normas imperativas que não podem ser afastadas por estes instrumentos (art. 478.º/1/a do
Código do Trabalho).

Hierarquia das Fontes na Doutrina

Hierarquia Para Marcelo Rebelo de Sousa e Sofia Galvão

1. CRP e costume constitucional;


2. Leis de revisão constitucional;
3. Factos criadores de Direito Internacional: atos e costume;
4. Atos políticos stricto sensu: atos que condicionam o exercício da função legislativa, o
programa do Governo, a moção de censura ao Governo, o decreto do PR que dissolva a
AR ou declare estado de sitio ou de emergência;
5. Leis em sentido formal – em primeiro lugar as leis reforçadas e, em segundo lugar, as
leis comuns (leis e decretos-leis);
6. Decretos Legislativos Regionais;
7. Acórdãos do TC com força obrigatória geral;
8. Regulamentos administrativos e costumes administrativos;
9. Contratos administrativos;
10. Atos jurisdicionais e atos administrativos.

Hierarquia Para Freitas do Amaral

1. Fontes Internacionais: costume, tratados e jurisprudência. Abarcam o Direito


Internacional ou Comum (art. 8/1 CRP), Direito Internacional Convencional ou
Particular (art.8/2º CRP, art.278CRP) e o Direito da EU (art. 8º/3 e 4 CRP);
2. CRP;
3. Direito ordinário ou infraconstitucional:
a) Lei e costume em paridade;
b) Regulamentos e praxes administrativas em paridade.

Conflito de Fontes

Existem critérios gerais para resolver os conflitos de normas:

▪ Critério da Posteridade – quando existe um conflito entre fontes da mesma hierarquia,


prefere a lei mais recente: a lei posterior derroga a lei anterior (art. 7ºCC);
▪ Critério da Especialidade – quando existe um conflito de fontes da mesma hierarquia,
a lei especial prevalece sobre a lei geral, ainda que esta seja posterior, salvo se outra for
a intenção inequívoca do legislador (art.7ºCC);
▪ Critério da Superioridade – quando existe um conflito entre fontes de hierarquia
diferente, a lei superior derroga a lei inferior, isto é, as normas de hierarquia superior
prevalecem sobre as normas de hierarquia inferior.

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Introdução ao Estudo do Direito II 107
Daniel Vieira Lourenço – Turma B

Podem, ainda, considerar-se algumas ideias:

▪ Entre lei e decreto-lei não há hierarquia, mas aquando da regulação de matéria de


reserva absoluta da AR por um decreto-lei, ocorre inconstitucionalidade orgânica;
▪ Os decretos regulamentares que violem leis são ilegais;
▪ Um decreto-lei pode revogar uma lei e vice-versa;

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Introdução ao Estudo do Direito II 108
Daniel Vieira Lourenço – Turma B

Identificação do Problema Capítulo VII


As regras jurídicas exprimem-se normalmente sob A Determinação e Aplicação
a forma linguística de proposições jurídicas. Das Regras
Generalidades
Geralmente a proposição jurídica associa a uma
situação ou a um aspeto de uma situação, ▪ Identificação do problema;
delimitada pela previsão, a consequência
jurídica determinada pela estatuição. ▪ O esquema lógico da interpretação
e aplicação da regra;
Para realizarem esta função as regras têm de ser
aplicadas. Por aplicação entende-se aqui a
▪ A “estrutura” circular do
valoração de uma situação concreta, ou de um
compreender e a importância da
seu aspeto, à luz de uma regra jurídica, e a
“pré-compreensão”;
determinação das consequências jurídicas que
daí advêm.
▪ A interpretação e aplicação das
É uma operação intelectual, que tem de ser normas como processo dialético
realizada pelos órgãos de aplicação do Direito na
decisão do caso concreto que lhes é submetido. ▪ A conformação e apreciação
jurídica da situação de facto. A
Contudo, a aplicação do Direito não é só a qualificação
aplicação pelos órgãos competentes. Ou seja, esta
operação também é realizada por todos os que
queriam determinar qual a disciplina jurídica da
situação, o que se verifica na generalidade das
profissões jurídicas e também pela generalidade
dos sujeitos jurídicos.

A este respeito, no entanto, é preciso distinguir


conforme a produção da consequência jurídica
depende ou não de um ato prévio e heterónomo
de aplicação ao caso concreto.

Por exemplo, se uma pessoa pratica um ato que


preenche um tipo de crime, pode dizer-se que a
sua conduta é reprovada e desencadeia uma
sanção punitiva. Mas só uma decisão judicial
pode determinar que o agente está sujeito a uma
determinada pena. Neste caso, a concretização da
consequência jurídica depende de uma decisão
judicial.

Também a atribuição de um direito de exploração


de bens do domínio público pode depender, entre
outras hipóteses, de um ato administrativo de
concessão. Neste caso, a produção do efeito
atributivo depende de um ato administrativo.

108
Introdução ao Estudo do Direito II 109
Daniel Vieira Lourenço – Turma B

Nas relações entre particulares a consequência jurídica produz-se normalmente por forma
automática. Por exemplo, se o devedor falta culposamente ao cumprimento da obrigação fica
obrigado a indemnizar, independentemente de qualquer sentença judicial.

A aplicação da norma envolve uma interpretação. A função básica da interpretação é a de


facultar o conhecimento da norma através da compreensão do significado das proposições
jurídicas por que a norma se exprime linguisticamente.

Poderíamos ser tentados a afirmar que a aplicação pressupõe a interpretação. Contudo, o


professor Lima Pinheiro entende que na resolução de um caso concreto a interpretação surge
indissociavelmente ligada à aplicação – Deve ser encarado como um processo dialético. É
uma interpretação-aplicação. A interpretação e a aplicação estão indissociavelmente ligadas.

 Quererá isto dizer que a interpretação nunca pode ser dissociada da aplicação?

Não, pode haver interpretação sem haver aplicação. As regras são objeto de estudo por parte da
ciência jurídica independentemente da necessidade de resolver um particular caso concreto. Este
estudo também se faz no curso de Direito, com frequente recurso a hipóteses que tanto podem
reproduzir como simular casos reais. Ora, para conhecer a norma é preciso interpretá-la.

Sem se ignorar a dualidade que a interpretação pode assumir, como momento do processo de
interpretação-aplicação e como processo dissociado da aplicação, seguindo a perspetiva
dominante, justifica-se centrar a atenção na interpretação-aplicação. Com efeito, enquanto
operação metodológica, a interpretação feita “em abstrato” constitui um minus relativamente à
interpretação-aplicação, de que tanto quanto possível se procurará aproximar.

A ciência jurídica pode também fazer um levantamento dos problemas que são levantados pela
interpretação jurídica. Os casos que os órgãos de aplicação tem que resolver vão para alem de
tudo o que se pode antecipar, a aplicação pelos órgãos do direito terá mais valor que a
interpretação doutrinária. A interpretação está indissociada da aplicação, só atendendo às
características do caso concreto e de uma análise valorativa se pode garantir a justiça do caso
concreto, só a partir dessas circunstâncias se pode chegar à interpretação.

O Esquema Lógico De Interpretação E Aplicação Da Regra

Tem-se procurado formular um esquema lógico de aplicação da regra, sob a forma de um


silogismo. O silogismo é um raciocínio argumentativo composto de três proposições, em
que uma delas, a conclusão, se deduz das outras duas, que se designam por premissas. Como
todos os esquemas é uma simplificação com alcance explicativo limitado.

Neste esquema temos uma situação S, uma previsão normativa P e uma consequência
jurídica C.

P é uma condição ou pressuposto que se realiza quando S é um caso particular de P.

Se S realiza P, C vigora para S.

Este silogismo também pode ser expresso da seguinte forma:

 P → C (para todo o caso de P, vale C) – Premissa Maior


 S < P (S é um caso de P) – Premissa Menor

109
Introdução ao Estudo do Direito II 110
Daniel Vieira Lourenço – Turma B

 S → C (Para S vigora C) – Conclusão

Este esquema pode ser designado como silogismo judiciário.

✓ Por exemplo, a proposição contida no art. 798.º CC : “O devedor que


falta culposamente ao cumprimento da obrigação torna-se responsável
pelo prejuízo que causa ao credor”.

Perante a situação concreta, em que uma pessoa não cumpre, culposamente, a obrigação a que
está adstrita, o silogismo assume a seguinte forma:

 A premissa maior diz-nos que quando ocorre um incumprimento culposo da


obrigação o devedor é obrigado a indemnizar o credor pelo prejuízo daí resultante
(para um determinado caso vale uma consequência jurídica).
 A premissa menor diz-nos que a situação concreta é um caso particular de
incumprimento culposo da obrigação (aquela situação especifica é um dos casos da
previsão normativa).
 A conclusão consiste em verificar que nesta situação concreta o devedor está
obrigado a indemnizar (Para aquele caso vai ser aplicada uma consequência
jurídica).

O problema colocado por este silogismo reside principalmente no estabelecimento das


premissas.

▪ Para estabelecer a premissa maior é preciso interpretar a proposição jurídica, para


esclarecer o sentido e alcance dos conceitos que delimitam a previsão da norma. Assim,
no exemplo dado, é preciso saber o que se entende por obrigação, por incumprimento e
por culpa.
▪ Também é preciso esclarecer o sentido dos conceitos utilizados para descrever a
estatuição. No exemplo dado é preciso saber em que consiste a obrigação de indemnizar.
▪ Para estabelecer a premissa menor é necessário determinar os factos que definem a
situação concreta e reconduzi-la à previsão normativa.

Esta operação é tradicionalmente encarada como um processo de subsunção, que tem por
núcleo um silogismo lógico. Daí que o pensamento conceptual tenha encarado a aplicação do
Direito como uma operação de lógica formal. Na visão mais extrema, o juiz seria um
autómato, que se limitaria a subsumir os factos provados a uma previsão e a aplicar as
consequências contidas na estatuição da norma.

Hoje tende a admitir-se que a obtenção da premissa menor também pode assentar num
raciocínio de coordenação valorativa, embora seja controverso até que ponto certas operações
envolvidas na aplicação da regra, apesar de envolverem uma valoração, podem ser feitas
segundo um esquema subsuntivo.

O Silogismo de Subsunção.

O silogismo destina-se a reconduzir uma situação concreta à previsão de uma norma. O


silogismo de subsunção serve para estabelecer a premissa menor do silogismo judiciário. A
conclusão do silogismo de subsunção (S < P) constitui a premissa menor do silogismo
judiciário.

110
Introdução ao Estudo do Direito II 111
Daniel Vieira Lourenço – Turma B

As normas delimitam a sua previsão com recurso a conceitos que, na maioria dos casos, podem
ser definidos mediante a indicação de determinadas notas (conceitos abstratos).

Assim, pode dizer-se que a previsão P está caracterizada pelas notas N1, N2, N3. Isto constitui a
premissa maior do silogismo de subsunção (notas que caracterizam a previsão normativa).

A premissa menor exige o estabelecimento dos factos. Admitamos que a situação S apresenta
as notas N1, N2, N3.

Destas duas premissas decorre a conclusão: S é um caso particular de P.

Na lógica entende-se por silogismo de subsunção a subordinação dos conceitos de menor


extensão aos conceitos de maior extensão. Isto só pode ocorrer definindo ambos os conceitos
e estabelecendo, de seguida, que o conceito inferior apresenta todas as notas do conceito
superior e, pelo menos, uma nota adicional, em consequência da qual a sua extensão é
menor.

Assim, por exemplo, o conceito de “cavalo” pode ser subsumido ao conceito de “mamífero”.

A entender-se as coisas deste modo, uma subsunção de factos a um conceito não pode constituir
um silogismo de subsunção. A premissa menor do silogismo de subsunção tem de ser vista
como o enunciado de que as notas mencionadas na previsão normativa se encontram
preenchidas numa determinada situação da vida (por exemplo, “S apresenta as notas N1,
N2,N3”).

Para se formular este enunciado tem de se fazer um juízo sobre a presença das notas
características da previsão legal. Neste juízo reside um dos problemas fundamentais da
aplicação da lei.

Frequentemente esta avaliação extravasa do silogismo de subsunção, fazendo apelo a


juízos de perceção ou a determinadas experiências. O intérprete tem de ajuizar se uma
certa conduta ocorreu ou não, tem de ajuizar da atitude interior que animou essa conduta,
tem de averiguar se um dado prejuízo pode ter sido causado por essa conduta.

Em certos casos a recondução da situação da vida, ou de um seu aspeto, à previsão da norma,


não pode ser vista como um silogismo de subsunção. Trata-se antes de uma coordenação
valorativa da situação com a previsão normativa. Irrompe aqui um pensamento
valorativo, que faz apelo à teleologia e à axiologia.

Por vezes o conceito utilizado na previsão da norma não pode ser definido com a indicação de
todos os elementos que o caracterizam, por forma a permitir o silogismo de subsunção. Isto é
evidente no caso dos conceitos carecidos de preenchimento valorativo (conceitos
indeterminados e cláusulas gerais).

Por exemplo, para saber se uma dada conduta constitui um abuso do direito, por exceder os
limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito,
eu não posso proceder segundo o esquema subsuntivo, desde logo porque o conteúdo dos
conceitos de boa fé e bons costumes não pode ser descrito mediante uma definição.

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Introdução ao Estudo do Direito II 112
Daniel Vieira Lourenço – Turma B

Para o professor Oliveira Ascensão o esquema subsuntivo é insuficiente sempre que seja
necessário proceder a valorações. Também o professor Marcelo Rebelo De Sousa afirma que só
excecionalmente a aplicação se reconduz a uma mera subsunção.

Pode afirmar-se que há casos em que o raciocínio que permite reconduzir S a P não
assenta na subsunção, mas na coordenação valorativa. Quer isto dizer que não podemos
dizer que em S estão presentes as notas indicadas na previsão legal.

Temos de proceder a uma avaliação menos enquadrada pela lógica formal, apreciar se à
luz do fim prosseguido pela regra em causa a situação deve ou não ser por ela regulada.

Esta avaliação também pode passar por uma comparação entre a situação em presença e outras
situações às quais a regra foi aplicada. Portanto, num sistema como o nosso, há um certo espaço
para o “raciocínio de caso para caso”.

Quanto ao terceiro momento do silogismo judiciário, a conclusão. Também aqui se encontra


uma dificuldade. Esta diz respeito à determinação da consequência jurídica.

Na visão tradicional a consequência jurídica resulta automaticamente da subsunção como


conclusão do silogismo judiciário. A consequência jurídica foi enunciada na premissa maior.
Uma vez estabelecido, na premissa menor, que a situação se reconduz à previsão da norma,
conclui-se que a consequência jurídica se produz no caso concreto.

Também aqui o silogismo é uma simplificação.

Na premissa maior a consequência jurídica C significa a consequência jurídica abstracta, ao


passo que, na conclusão, C significa a consequência jurídica concreta.

Isto não constitui problema quando a consequência jurídica é inteiramente determinada. Por
exemplo, em matéria de usucapião, determina-se nos arts. 1287.º e segs. CC que a posse de um
direito real determina, uma vez decorrido um determinado prazo, a aquisição do direito. Neste
caso a consequência jurídica concreta decorre sem dificuldades do enunciado legal.

Mas nem sempre é assim tão simples. Em muitos casos a consequência jurídica abstrata
apresenta um certo grau de indeterminação, razão por que carece de uma concretização.

▪ Por exemplo, pense-se no dever do locador/senhorio realizar as obras de conservação da


casa arrendada, hoje estabelecido pelo art. 1074.º CC em matéria de arrendamento
urbano. A regra determina que o locador realize as obras de conservação. Mas o locatário
não reclama genericamente que o locador cumpra este dever, reclama que o locador tome
as medidas que em seu entender são requeridas pela conservação da coisa. O tribunal não
pode limitar-se a decidir se o locador está obrigado ou não a realizar obras de
conservação. Tem de decidir também se as medidas pedidas pelo locatário correspondem
ao dever de conservação do locador. Este juízo, para além de uma valoração jurídica,
também faz apelo a conhecimentos técnicos e a experiências sociais.

Também é necessária uma concretização da consequência jurídica que consista numa obrigação
de indemnizar, porquanto se tem de fixar o quantum da indemnização; o mesmo se diga, em
Direito Penal, relativamente à necessidade de fixar a pena dentro dos limites legalmente
estabelecidos.

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Introdução ao Estudo do Direito II 113
Daniel Vieira Lourenço – Turma B

Portanto, a solução do caso não decorre simplesmente da recondução dos factos à previsão
normativa. A determinação da consequência jurídica também envolve uma concretização da
solução, guiada por critérios valorativos. Esta concretização é uma operação pela qual se
passa da consequência jurídica abstracta à consequência jurídica concreta, mediante uma
determinação dos efeitos que, no caso concreto, correspondem à consequência jurídica
abstrata.

Pode ainda suceder que os factos sejam reconduzíveis à previsão de mais de uma norma
vigente, e que as consequências jurídicas por elas desencadeadas sejam incompatíveis
entre si, ou seja, que ocorra uma contradição normativa. Neste caso, tem de se resolver o
conflito de normas para saber se deve ou não ser aplicada alguma delas.

Portanto, há problemas de aplicação da norma que são independentes da fixação do sentido


e alcance da sua previsão.

 Mas quer isto dizer que a aplicação vai além da interpretação?

Na opinião do professor Lima Pinheiro, a concretização da consequência jurídica e a resolução


de problemas de conflitos de normas não são estranhos à interpretação. A interpretação da
norma fornece indicações para o efeito, ainda que possa ser necessário recorrer a outros
instrumentos da ciência jurídica.

Por isso, do ponto de vista lógico, é possível autonomizar os três momentos do silogismo
judiciário e atribuir-lhes significado autónomo, mas que o raciocínio de obtenção da solução
se deixa apreender melhor como um processo dialético em que todos os momentos estão
interligados.

O esquema subsuntivo de aplicação da lei é ainda demasiado simplificado por duas razões
adicionais:

 Uma razão é o desfasamento entre a realidade pensada pelo legislador como objeto de
regulação e a realidade existente no momento da aplicação da regra. Isto suscita o
problema do actualismo da interpretação que requer uma consideração da evolução
da sociedade e do novo contexto social em que lei tem de ser aplicada.
 A outra razão reside nos nexos intrassistemáticos que se estabelecem entre as normas e,
em particular, na sua normal inserção em complexos regulativos.

É necessário um equilíbrio justo entre as exigências da igualdade perante a lei, a certeza e a


previsibilidade jurídicas, que apontam para a vigência de regras gerais e abstractas claras e
determinadas, e a necessidade de atender à multiplicidade das situações da vida e às
circunstâncias do caso concreto e de permitir uma certa adaptabilidade à evolução social.

A importância dada, na formulação das normas legais, aos conceitos abstractos, que são idóneos
à subsunção, será tanto maior quanto maiores forem as exigências da segurança, certeza e
previsibilidade da matéria em causa.

A inclusão de notas funcionais nos conceitos utilizados para delimitar a previsão normativa não
parece obstar, por si, à definição destes conceitos e, portanto, apresenta-se como compatível
com o esquema subsuntivo.

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Introdução ao Estudo do Direito II 114
Daniel Vieira Lourenço – Turma B

Na maioria dos casos a interpretação-aplicação não poderá ser reconduzida


exclusivamente a operações lógico-formais. Frequentemente será necessária uma
valoração.

Todavia, embora a fundamentação da decisão deve respeitar as regras da lógica, os conceitos


carecidos de preenchimento valorativo são insusceptíveis de uma definição. Daí que se afigure
duvidoso que ainda se possa falar, a respeito da aplicação das regras que utilizam estes
conceitos, de subsunção.

É certo que isto diz respeito ao estabelecimento da premissa menor do silogismo judiciário – a
recondução dos factos à previsão normativa – e não impede que a aplicação destas regras seja
silogisticamente fundamentada. Por outras palavras, o silogismo judiciário parece possível
sem o silogismo de subsunção. Mas também é certo que este silogismo judiciário não
permite fundamentar a solução segundo processos lógico-formais, mas tão-somente
assegurar a racionalidade da sua fundamentação.

A “Estrutura” Circular do Compreender e a Importância da “Pré-Compreensão”

A interpretação de um texto não tem que ver só com o sentido de cada uma das palavras, mas
também com o sentido da frase em que estão inseridas, bem como do conjunto de frases que
expressam um nexo de ideias.

O significado da maior parte das palavras revela uma certa amplitude de variação e
muitas delas são polissémicas (têm vários significados). O significado revelante depende da
frase em que está inserida e dos nexos de sentido que estabelece com o texto no seu
conjunto.

Daí resulta uma característica do processo de compreender que é conhecida por “círculo
hermenêutico”. O significado das palavras em cada caso só pode inferir-se do sentido global
do texto e este, por sua vez, tem de estabelecer-se com base no significado relevante das
palavras que o formam.

▪ Por exemplo, quando o art. 1.º/1 CC dispõe que “São fontes imediatas do direito as
leis e as normas corporativas”. Para apreender o significado de uma palavra, o
intérprete tem sempre de, em primeiro lugar, fazer uma conjectura sobre o sentido da
frase e do texto no seu conjunto. Depois de ensaiada esta compreensão global, se lhe
surgirem dúvidas, terá de reexaminar o significado de cada palavra e, porventura, terá
de corrigir o significado inicialmente atribuído à palavra ou o significado atribuído ao
conjunto do texto.

Para progredir neste processo de compreensão o intérprete tem de recorrer a certos


critérios hermenêuticos. O processo de olhar para a frente e para trás, pode ter de repetir-se
inúmeras vezes. O conjunto esclarece o sentido das partes e cada um das partes esclarece o
sentido do conjunto. Há um esclarecimento recíproco.

Tem lugar, na Ciência do Direito, não só para a interpretação do texto da regra, mas também
para o processo de aplicação da norma a uma determinada situação (vaivém entre a previsão da
norma e a situação de facto). Ocorre um “contínuo efeito recíproco, um ir e vir de perspectiva
entre a premissa maior e a situação da vida”.

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Introdução ao Estudo do Direito II 115
Daniel Vieira Lourenço – Turma B

O processo de compreensão consiste aqui, mais do que num círculo, numa espiral. Trata-se de
uma dialética hermenêutica.

O intérprete parte de uma conjetura de sentido, de uma hipótese, que depois confirma ou retifica
através dos passos seguintes.

Esta conjetura de sentido forma-se, geralmente, sobre uma pré-compreensão do texto. O


jurista que interpreta uma lei dispõe de todo um saber adquirido sobre os problemas jurídicos,
sobre o contexto social em estes problemas surgem, sobre as formas de pensamento jurídico,
sobre os valores que orientam as soluções jurídicas e sobre a linguagem normalmente utilizada
pelo legislador. A sua pré-compreensão é o resultado de um longo processo de aprendizagem
profissional e extraprofissional, que se inicia em criança, prossegue com todas as suas
experiências de vida, com o curso de Direito e com a sua atividade prática.

É este fundo existencial e cultural que constitui a base comum que estabelece a ligação
entre o texto e o intérprete. Um texto nada diz a quem não entenda nada do assunto de que
ele trata.

Quanto mais vasto for o fundo existencial e cultural, mais rica será a pré-compreensão e
mais bem sucedida a interpretação.

A pré-compreensão deve ser encarada como uma conjectura de sentido, como uma hipótese,
que se vai modificando e reformulando à medida que se avança no processo de
interpretação e aplicação da regra e não como um resultado que se visa, tanto quanto
possível, alcançar.

À medida que se eleva o conhecimento sobre o conteúdo normativo e valorativo das normas
aplicáveis a conjetura sobre a solução “justa” tem de ser reexaminada.

Na solução do caso por via normativa a solução que o intérprete deve procurar não é, em
princípio, a que corresponde melhor às suas convicções de justiça mas a que corresponde
melhor ao sentido do Direito aplicável.

As circunstâncias do caso concreto e as convicções pessoais só poderão relevar dentro das


margens de apreciação consentidas pelas normas aplicáveis e em conformidade com a
metodologia geralmente reconhecida.

Interpretação e Aplicação Das Normas Como Processo Dialético

A aplicação se não reduz a um processo automático, não-problemático, de subsunção de


um enunciado sobre os factos a uma previsão normativa.

 Não é assim, em primeiro lugar, porque frequentemente o significado do enunciado


linguístico da norma, da proposição jurídica, é problemático. O conhecimento do
conteúdo da norma exige interpretação.
 Não é assim, em segundo lugar, porque a situação não se apresenta sempre com todos os
seus elementos determinados e por forma a ajustar-se precisamente ao modelo dado na
norma. A situação não se apresenta como “pronta para a subsunção”.

A maior parte das situações são complexas.

115
Introdução ao Estudo do Direito II 116
Daniel Vieira Lourenço – Turma B

A previsão normativa descreve as notas que as situações devem preencher, descurando todas
as outras notas que se verificam nas situações. Não raramente coloca-se a questão de saber
se certas particularidades do caso concreto, que são descuradas pela norma, não terão de
ser consideradas relevantes, se não se quiser tratar igualmente o que é desigual.

Caberá perguntar se a norma, correctamente entendida, não deve permitir uma restrição
ou uma diferenciação, que torne possível uma decisão justa. Esta restrição ou diferenciação
pode levar à aplicação de outra norma que, em princípio, não parecia ser aplicável, ou à
descoberta de uma lacuna

A dita “aplicação das normas” consiste, na verdade, num trabalho criativo de determinação do
conteúdo e complementação das regras.

O processo de aplicação tem de respeitar a norma como critério que permite valorar segundo
uma “medida igual” uma pluralidade de casos, e ao mesmo tempo, tem de concretizar a norma,
de determinar melhor o seu conteúdo face às diferentes particularidades de cada caso.

Do confronto entre as particularidades susceptíveis de relevância jurídica com a


proposição jurídica, resultam a maior parte dos problemas de interpretação.

Uma das principais tarefas da ciência jurídica prática é a de compreender expressões linguísticas
e de apurar o seu sentido jurídico: leis, atos administrativos, decisões dos tribunais, negócios
jurídicos. A compreensão de expressões linguísticas ocorre, ou de modo irreflexivo, mediante o
acesso imediato ao sentido da expressão, ou então de modo reflexivo, mediante o interpretar.

“Interpretar” é uma actividade de mediação por que o intérprete compreende um objecto


simbólico, que se lhe tinha deparado como problemático.

O caráter problemático do significado da proposição jurídica pode resultar de quatro fatores:

 Ambiguidade sintática;
 Ambiguidade semântica;
 Utilização de conceitos indeterminados;
 Mutabilidade do significado.

A norma dá o critério para valorar o caso, mas a resolução dos problemas de interpretação pelo
caso suscitados pode representar um enriquecimento do conteúdo da norma.

Ao averiguar se uma dada situação preenche ou não a previsão normativa o intérprete pode
contribuir para a determinação do conceito utilizado na previsão normativa. O mesmo se pode
verificar com a concretização da consequência jurídica.

Por outro lado, a interpretação e concretização da norma feita em cada aplicação tende a
influenciar a aplicação da norma a casos futuros.

Por estas razões é correto afirmar que o processo de aplicação do Direito é dialético, e que,
face a um caso concreto, a interpretação e aplicação são elementos indissoluvelmente
ligados do mesmo processo.

Aplicação da Regra Jurídica (Professor Oliveira Ascensão)

A regra jurídica destina-se, em ultima análise a tornar possível a solução de casos reais.

116
Introdução ao Estudo do Direito II 117
Daniel Vieira Lourenço – Turma B

O critério de solução do caso pode ser:

 Normativo;

A solução do caso particular surge relacionada com a aplicação da regra. A ordem jurídica pode
exprimir-se por regras. A regra deve ser relacionada com os fins e com a situação em causa,
para saber como o direito os regula, ou seja, para apurar o que se designam de situações
jurídicas.

Abstratamente, a distinção das operações é clara. A interpretação é logicamente prévia à


aplicação: só depois de conhecer a regra se poderá valorar juridicamente o caso particular. Dá-
se então a incidência do sistema, caracterizado pela sua generalidade, sobre o caso que é
singular. Para esta visão clássica, o que pertence à aplicação é a verificação de que o facto
corresponde à previsão abstracta da regra e a determinação das consequências jurídicas que
ficam ligadas ao facto

 Não Normativo;

Insuficiência da Mera Subsunção

Não se pode cair no outro extremo e supor que a aplicação se reduz a uma mera operação
lógica, pela qual o intérprete se limita a verificar a correspondência daquela situação à descrição
abstracta que consta da lei.

A posição típica desta corrente exprime-se através do silogismo judiciário. Têm-se em vista as
formas judiciais de aplicação da lei, e raciocina-se como se a lei representasse a premissa maior
de um silogismo. O juiz conheceria a lei, as partes dão os factos, o juiz subsume os factos à
lei e tira a conclusão.

O juiz seria como uma máquina automática em que metendo as moedas sai mecanicamente o
desejado, ali, provados os factos, produz-se inelutavelmente certa decisão.

Em certas hipóteses a resolução do caso pode realizar-se em termos de autêntica subsunção.

▪ Por exemplo, suponhamos a regra que determina que a maioridade se atinge aos 21
anos. Perante ela, nada mais há a fazer do que um mero silogismo. Se A tem 21 anos,
A é maior, a conexão lógica é suficiente.

Porquê que neste caso é suficiente e em alguns não?

Aqui tudo se esgota numa mera descrição, sem ser necessário o recurso a elementos valorativos.
A circunstância de A ter ou não 21 anos é uma realidade naturalística, que nada acrescenta à
interpretação da lei.

O esquema subsuntivo revela-se insuficiente sempre que seja necessário recorrer a valorações.

A Conformação e Apreciação Jurídica Da Situação De Facto, a Qualificação

Em regra, a previsão da norma enuncia uma situação ou um aspeto de uma situação. Este
enunciado recorta um segmento do constante fluir da vida, “situando-o”, delimitando uma
“situação”.

117
Introdução ao Estudo do Direito II 118
Daniel Vieira Lourenço – Turma B

Para estabelecer a premissa menor do silogismo judiciário (S < P), o intérprete-aplicador tem de
conformar a situação de facto.

O intérprete-aplicador tem de olhar para os factos com uma dupla intencionalidade.

1) Por um lado, tem de apreciar até que ponto os factos podem ser configurados por
forma a corresponderem à previsão de uma norma, ou de mais de uma norma.
Tem de ver se as notas estão presentes na situação de facto.

2) Por outro lado, o intérprete-aplicador deve ter em conta todas as outras


particularidades do caso que possam ser relevantes para a determinação da
consequência jurídica.

Face a relatos, por vezes contraditórios, dos factos, o jurista tem de selecionar os elementos
relevantes.

Em seguida tem de verificar se estes factos efetivamente ocorreram, tem de apreciar as provas.

Quando a norma é aplicada por um órgão jurisdicional a determinação dos factos requer uma
produção de prova, que obedece às regras do processo, mas tendo em conta as regras sobre ónus
da prova e sobre presunções simples. A prova visa demonstrar a realidade dos factos (art. 341.º
CC). A produção da prova faz-se segundo a regra do processo mas atendendo também a certas
regras sobre presunções.

A prova tem por objeto os factos juridicamente relevantes, que constituem a matéria de facto.
Contrapõe-se à matéria de direito que é constituída pela regra ou regras aplicáveis. A produção
da prova utiliza determinados meios – os meios de prova –, e habilita o tribunal à valoração da
prova.

O intérprete aplicador é portador de uma carga existencial, experiencial, e é confrontado com os


casos. Vai fazer, também, da sua experiencia pessoal para determinar os elementos que são
relevantes.

Normalmente há uma ou mais normas que surgem como potencialmente aplicáveis a uma
situação carecida de regulação jurídica.

Tendo presente estas normas o intérprete-aplicador procura conformar a situação,


eliminando os elementos supérfluos contidos no relato ou indagando de outros elementos
relevantes que o relato omitira. Há um conjunto de matérias que são irrelevantes para
aplicação das regras, o interprete-aplicador vai fazer uso da sua experiencia para avaliar
isso.

Só tendo presentes todas as regras potencialmente aplicáveis se pode conformar a situação, só


depois de avaliar as normas potencialmente aplicáveis se pode avaliar quais são os elementos
relevantes.

A conformação definitiva da situação de facto depende, assim, da seleção das normas que são
potencialmente aplicáveis.

118
Introdução ao Estudo do Direito II 119
Daniel Vieira Lourenço – Turma B

Para o estabelecimento da premissa menor do silogismo judiciário é necessário um processo


intelectual pelo qual o acontecimento é situado, a situação é conformada (como enunciado) e o
texto da norma concretizado na medida exigida para a apreciação da situação.

Não basta que se conforme ou delimite a situação de facto. É ainda necessário reconduzir
a situação da vida, assim delimitada, à previsão da norma. Esta operação designa-se por
qualificação.

Se quisermos abranger os casos em que a previsão da norma não se reporta a uma situação, mas
antes a um facto que abstrai de toda a conduta humana, podemos dizer que a qualificação é a
operação pela qual se reconduz um facto à previsão de uma norma. Qualificação será a
recondução de um facto à previsão de uma regra (nem tudo são situaçãoes)

A qualificação pode suscitar problemas mais ou menos difíceis de interpretação.

▪ Por exemplo, pode suscitar-se a questão de saber se um determinado contrato, celebrado


entre um particular e a Administração pública, releva do Direito público ou do Direito
privado. Se o contrato for qualificado como jurídico-público será aplicável o regime do
contrato administrativo em causa; se for qualificado como jurídico-privado estará
submetido, pelo menos em certa medida, ao Direito privado dos contratos.

Para resolver estes problemas há a necessidade de um vaivém entre a norma e o caso, um


esclarecimento recíproco.

Para a apreciação da situação de facto, com vista à sua qualificação, o intérprete-aplicador tem
de realizar juízos de índole muito distinta.

Assim, temos designadamente:

▪ Juízos de perceção, que se referem à ocorrência de processos ou estados de facto;

Um juízo de perceção permite verificar se uma conduta ocorreu ou não, mas não permite avaliar
o significado da conduta. Para fazer isso tem de se atender aos fins visados com essa conduta e
isso implica juízos relacionados com o significado da conduta humana, temos que atender à
nossa experiencia e à experiencia dos outros, só assim vamos perceber a conduta interna que
motivou a conduta externa. Juízo sobre o significado da conduta humana que se baseia na nossa
experiencia.

▪ Juízos de interpretação da conduta humana, destinados a apurar o seu significado;

A interpretação de condutas humanas é especialmente importante no caso de declarações


negociais, para saber qual era o sentido de uma declaração negocial, para perceber qual era o
seu sentido.

▪ Juízos sobre outras experiências sociais;

Mesmo quando não se trata da conduta humana é necessário ir além de uma mera perceção
empírica. Por exemplo, os artigos 903 CC e seguintes – coisa defeituosa 913CC- quando o
vicio desvaloriza a coisa ou impede a realização do fim? Para isto temos de saber qual é o valor
da coisa, o fim normal da coisa? Nos sabemos isto através da nossa experiencia, fala-se aqui de
juízos baseados na experiencia social

119
Introdução ao Estudo do Direito II 120
Daniel Vieira Lourenço – Turma B

▪ Juízos de valor, que são necessários sempre que há uma valoração.

Temos por fim juízos de valores – necessários sempre que há uma valoração – conceitos
carecidos de preenchimento valorativo. Mesmo nas regras que não utilizam estes conceitos pode
existir uma certa margem, o ato de valorar exige a tomada de uma certa posição, o objeto
valorado é considerado preferível ou não, valioso ou não, e através da objectivação dos juízos
de valor chegamos ao valor, o juízo de valor é jurídico quando se orienta por critérios jurídicos.

O juízo de valor feito pelo aplicador será valido quando se baseia nos critérios de valoração do
sistema jurídico (princípios jurídicos), esta valoração não é uma conduta discricionária, não é
uma conduta com forte carga emocional, é uma conduta em que o intérprete está vinculado aos
critério de valoração do sistema, não são escolhido pelo interprete. E também deve atender à
jurisprudência uniforme e constante e à interpretação que ela faz das regras, atenderá aos casos
que foram tipificados de forma a obter uma coerência de valoração.

Em muitos casos, tem uma margem de aplicação porque muitas vezes os critério apontam
apenas a direção que deve ser seguida, é isto que se passa, desde logo, com os princípios
jurídicos

Por exemplo, 337 – legitima defesa – excesso de legitima de defesa – exige uma apreciação
quantitativa, também tem margem.

Por outro lado, os critérios de valoração podem entrar em contradição entre si. Nesta margem de
apreciação o intérprete pode atuar segundo a sua intuição de justiça mas tem de ter sempre em
conta a aceitação social da solução a que chega, o consenso que a solução é apta a criar

O juízo de valor jurídico feito pelo intérprete-aplicador é válido na medida em que se orienta
pelos critérios de valoração do sistema, designadamente os princípios jurídicos e as opções
político-legislativas feitas pelo legislador, e pela consciência jurídica geral.

Estes juízos têm algo de interpretativo que se baseiam numa experiencia das pessoas.

As previsões normativas também se referem a condutas humanas significativas que exigem uma
valoração do ocorrido.

Se podermos determinar qual foi a intenção reguladora do legislador histórico, devemos


respeitar essa interpretação porque é a vontade colectiva da comunidade politica.

120
Introdução ao Estudo do Direito II 121
Daniel Vieira Lourenço – Turma B

A função da interpretação no processo de Capítulo VIII


aplicação da lei Interpretação
A compreensão do texto da norma é ▪ A função da interpretação no
frequentemente problemática e assim, torna processo de aplicação da lei
necessária a interpretação, atendendo a uma dada
situação. Esta situação pode ser hipotética, ou ▪ Interpretação doutrinal e
pode ser real. interpretação autêntica

▪ No processo de aplicação da lei a situação é


real.
▪ Na interpretação dissociada da aplicação
trabalha-se com situações hipotéticas, ou
hipóteses.

A função básica da interpretação é a de


facultar o conhecimento da norma através da
compreensão do significado das proposições
jurídicas por que a norma se exprime
linguisticamente.

Complementarmente, a interpretação, também,


serve:

▪ Para evitar a contradição entre normas;


▪ Para delimitar o domínio recíproco de
aplicação das normas;
▪ Para conjugar os seus efeitos;
▪ Para resolver questões que sejam
suscitadas pelo concurso de normas e pelo
concurso de complexos normativos.

Objeto da interpretação da lei é o texto legal como


portador do sentido normativo nele vertido
(portanto o texto, fonte instrumental, não é só
objeto da interpretação, é também instrumento
do conhecimento do sentido normativo).

A interpretação só é possível quando haja


algum conhecimento, só assim se pode
determinar o sentido juridicamente relevante.

Qual o fim da interpretação: determinar o


sentido que corresponde à vontade do
legislador histórico (teoria subjetivista), ou o
sentido normativo, inerente à lei, que se torna
independente da intenção do legislador
histórico (teoria objetivista)?

121
Introdução ao Estudo do Direito II 122
Daniel Vieira Lourenço – Turma B

Cada uma destas teorias encerra uma certa dose de verdade.

 A verdade da teoria subjetivista está em que a lei é resultado de um ato de vontade


praticado por um órgão competente para a produção jurídica. Representa uma forma de
expressão da vontade coletiva dos cidadãos, cuja intenção reguladora tem de ser
respeitada (intenção reguladora designa a unidade de valorações, aspirações e outras
representações motivadoras da ação legislativa). Isto decorre do princípio da divisão de
poderes.

O Código Civil dedica o art. 9.º à interpretação da lei.

 Nos termos do seu n.º 1 “A interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas
reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a
unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições
específicas do tempo em que é aplicada”.

O Código Civil manda respeitar o “pensamento legislativo”, não só o texto da lei, mas também
as valorações feitas pelo legislador (histórico), tendo em conta as condições específicas do
tempo em que a lei é aplicada e logo aqui se indicia que não é só de natureza histórica.

Contra a teoria subjetivista invocam-se, porém, diversos argumentos.

 De entre os argumentos de natureza prática é de salientar a dificuldade em estabelecer a


intenção real de certos atos legislativos.
 Mais importante que as dificuldades de natureza prática com que depara a tese
subjetivista, é de reconhecer a quota de verdade da teoria objectivista: a lei, através do
processo de aplicação anteriormente caracterizado, vem a transcender a real intenção
reguladora do legislador histórico.
a) Primeiro, porque na lei se podem exprimir, a par dos fins de política legislativa
representados pelo legislador, outros fins e valores de que o próprio legislador não
teve consciência.
b) Segundo, porque a lei vem a ser aplicada a uma multiplicidade de situações que
nunca poderiam ser previstas, na sua infinita variedade, pelo legislador histórico
no momento da sua criação, é impossível para o legislador prever todas as
situações a que a lei vem a ser aplicada.
c) Terceiro, em consequência da evolução da sociedade que vai gerar novos
problemas e criar um contexto social diferente para a atuação da lei.
d) Quarto, pelo sedimentar do trabalho criativo de interpretação, concretização,
aplicação analógica que no decurso do tempo converte a lei num elemento da
ordem jurídica cada vez mais independente do legislador histórico.

A teoria objetivista pode assumir duas variantes.

 Para um objetivismo historicista, procura-se apreender o sentido que a lei


objetivamente encerrava no momento da sua criação, independentemente da intenção
real do legislador histórico. Esta variante atende à consideração formulada em primeiro
lugar (fins de que o legislador não teve consciência) e, até certo ponto, à referida em
segundo lugar (multiplicidade das situações). Já não permite atender à evolução social e
ao trabalho criativo da jurisprudência e da ciência jurídica. Além disso, a tese
historicista tem como corolário o surgimento de uma lacuna sempre que seja necessário

122
Introdução ao Estudo do Direito II 123
Daniel Vieira Lourenço – Turma B

regular uma situação que não previsível no momento da elaboração da lei. Por exemplo,
não poderíamos o regime de contrato de transporte do seculo XIX ao transporte aéreo,
surgem novas situações com novas particularidades
 Para um objetivismo atualista, o que releva é o sentido que a lei objetivamente
encerra no momento da sua interpretação. Esta posição permite uma certa evolução
do Direito vigente, que é independente da inovação legislativa. O intérprete pode ter em
conta a evolução do contexto social.

O art. 9.º/1 CC aponta para um certo objetivismo e para um certo atualismo. Aponta para
um certo objetivismo quando manda reconstituir o pensamento legislativo a partir dos
textos. Aponta para um certo atualismo da interpretação, quando manda atender às
“condições específicas do tempo” em que a lei é aplicada.

No entanto, na opinião do professor Lima Pinheiro, o art. 9.º não deve ser entendido como
consagrando a tese objetivista actualista, o artigo não exclui o subjetivismo. O preceito não
consagra uma particular corrente doutrinária.

Com efeito, o art. 9.º também não exclui que se atribua um papel importante à perspectiva
subjectivista.

 O n.º 1 manda atender às circunstâncias em que a lei foi elaborada.


 O n.º 2, quando estabelece que não pode ser considerado pelo intérprete o
pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de
correspondência, torna claro que o pensamento legislativo não se reconstitui só
com base no texto da lei, pode basear-se noutros elementos.

Nada impede que, por “pensamento legislativo”, se entenda, em primeira linha, a intenção real
do legislador histórico, quando esta seja clara e inequivocamente demonstrada através do
texto legal ou de outros elementos, como o relatório do diploma ou os trabalhos preparatórios.

Mesmo no caso de uma lei ter sido objeto de debate e de alterações, refletindo um compromisso
entre posições divergentes, é normalmente possível determinar quais foram as representações de
valores e fins que prevaleceram e em que medida. Ainda aqui é possível determinar a intenção
legislativa.

Uma pura posição objetivista levaria a que na reconstituição do sentido normativo se


utilizassem, em primeira linha, critérios teleológico-objectivos, que dentro da pluralidade
de sentidos permitida pelo texto legal se escolhesse aquele que melhor correspondesse às
necessidades práticas, a ideias rectoras do sistema ou a uma determinada conceção ética,
independentemente da real intenção do legislador.

 Isto não parece corresponder adequadamente ao sentido do princípio da divisão de


poderes.
 E prejudica a supremacia do Direito e a certeza e previsibilidade jurídicas, porque
os critérios teleológico-objectivos fornecem uma orientação muito menos clara e
determinada sobre o sentido normativo que a intenção real do legislador histórico
inequivocamente demonstrada.

Em suma, o fim da interpretação é o de estabelecer o sentido normativo da lei, com base


em momentos subjetivos e objetivos. Por vezes fala-se em “vontade da lei” como imagem

123
Introdução ao Estudo do Direito II 124
Daniel Vieira Lourenço – Turma B

para exprimir este sentido normativo, mas esta expressão tem o defeito de “personificar” a
lei.

A interpretação não é arbitrária, deve ser fundamentada por forma clara, logicamente
coerente, enfim comprovável.

A correção da interpretação depende do modo como procede o intérprete para alcançar o fim em
vista, dos elementos que tem em conta e dos critérios que o orientam na apreciação destes
elementos.

Interpretação Doutrinal e Interpretação Autêntica

Em razão da sua força vinculativa a interpretação pode classificar-se em doutrinal e autêntica.

 A interpretação autêntica é vinculativa para todos. Tem a mesma vinculatividade


que a lei interpretada.
▪ Por exemplo, se o Governo emite um Decreto-Lei interpretativo de um Decreto-
Lei anterior, todo o intérprete-aplicador tem de respeitar a lei interpretativa.

A interpretação doutrinal não é vinculativa. Não é só a doutrina que faz interpretação


doutrinal. A interpretação feita pelos tribunais é, normalmente, interpretação doutrinal. Toda a
interpretação que não ´feita por uma fonte de valor igual ou superior à interpretada é doutrinal.
Qualquer pessoa pode fazer interpretação doutrinal. Quando se fala de interpretação tem-se
normalmente em vista a interpretação doutrinal.

 Assim, a interpretação autêntica tanto pode ser realizada pela mesma fonte da lei
interpretada como por outra fonte superior ou de igual valor.
▪ Por exemplo, um Decreto-Lei do Governo pode interpretar uma Lei da
Assembleia da República e uma Lei da Assembleia da República pode
interpretar uma Decreto-Lei do Governo. Uma Lei da Assembleia da República
ou um Decreto-Lei do Governo pode interpretar um Decreto Regulamentar do
Governo.

As decisões jurisdicionais com força obrigatória geral que tenham caráter interpretativo são um
caso de interpretação autêntica.

Qual o significado da interpretação realizada por fonte hierarquicamente inferior?

Uma lei interpretativa não pode fazer interpretação autêntica, o que ela pode é ter uma eficácia
interna, subordinar os órgãos que lhe estão ligados.

Muitas vezes uma lei autorizava uma interpretação por lei inferior, porém o artigo 112/5 vem
impedir que haja Vinculatividade com eficácia externa, só pode ter eficácia interna. Se for
anterior a 1982 tem eficácia externa, na opinião do professor Lima Pinheiro, é necessário separa
porque a revisão foi feita em 1982 e anteriormente era possível.

124
Introdução ao Estudo do Direito II 125
Daniel Vieira Lourenço – Turma B

Elementos e Critérios de Interpretação


Capítulo VIII
Artigo 9º CC Interpretação
1) “A interpretação não deve cingir-se a ▪ Elementos e Critérios de
letra da lei, mas reconstituir a partir Interpretação:
dos textos o pensamento legislativo, ✓ Elemento Literal;
tendo sobretudo em conta a unidade ✓ Elemento Sistemático;
do sistema jurídico, as circunstâncias ✓ Elemento Teleológico;
em que a lei foi elaborada e as ✓ Elemento Histórico.
condições específicas do tempo em
que é aplicada. ▪ Hierarquia dos Elementos de
Interpretação;
2) Não pode, porém, ser considerado
pelo intérprete o pensamento
▪ Posição Adotada pela Regência;
legislativo que não tenha na letra da
lei um mínimo de correspondência
▪ O sentido literal e o contexto
verbal, ainda que imperfeitamente
significativo.
expresso.

3) Na fixação do sentido e alcance da ▪ Interpretação


lei, o intérprete presumirá que o
legislador consagrou as soluções
mais acertadas e soube exprimir o
seu pensamento em termos
adequados.”

Portanto, interpretar uma fonte do direito é


inferir, através da aplicação da fonte a certos
casos, a regra que nela se contém. A
interpretação assume, necessariamente, um
perfil complexo e procedimental, nunca
simples e instantâneo. E, consequentemente,
como toda aplicação, o exercício
interpretativo jurídico deve observar certas
regras, denominadas comumente como
elementos da interpretação.

A doutrina tradicional, fundada por


Savigny, introduz esta temática dividida em 4
grandes elementos de interpretação:

• Elemento gramatical ou literal;


(texto da lei)

• Elemento Lógico: mens legislatoris


(significado profundo, o seu “espírito,
a vontade do legislador)

125
Introdução ao Estudo do Direito II 126
Daniel Vieira Lourenço – Turma B

A) Elemento Sistemático;

B) Elemento Histórico;

C) Elemento Teleológico

Atualmente, esta ideia, ainda que trabalhada e desenvolvida, está presente nos grandes nomes da
doutrina, desde o professor Miguel Teixeira de Sousa, o professor Diogo Freitas do Amaral, o
professor Oliveira Ascenção ou mesmo o professor Pedro Trovão do Rosário. É também esta a
posição adotada pela Regência da cadeira, ainda que com considerações especiais que serão
discutidas na parte final da presente apresentação.

Do artigo 9/1 CC, podemos retirar a necessidade de interpretar recorrendo a estes, já


abordados, critérios.

Por outras palavras, o artigo diz-nos que a interpretação da lei é realizada a partir da
“letra da lei”, com base nas “circunstâncias em que a lei foi elaborada”, na “unidade do
sistema jurídico” e nas “condicoes especificas do tempo em que a lei é aplicada”.

Também é fácil concluir a partir do artigo que se podem encontrar elementos literais e
elementos não literais de Interpretação.

Elemento Gramatical/Literal

A análise do elemento gramatical, ou seja, do corpo da lei, constitui o ponto de partida da


interpretação jurídica, a base textual da interpretação (Professor Miguel Teixeira de Sousa).

As leis são textos e, como tal devem começar por ser analisadas, tendo sempre em conta dois
pontos cruciais:

▪ Função Negativa: nos termos da qual o texto delimita a interpretação, isto é, só são
admitidos os sentidos da lei que forem possíveis segundo o respetivo texto;

▪ Função Positiva ou Seletiva: nos termos da qual seleciona, de entre os vários sentidos
possíveis, aquele que mais adequadamente corresponder ao texto.

O professor Lima Pinheiro refere que o elemento literal ou gramatical da interpretação


comporta uma dimensão sintática e uma dimensão semântica:

▪ Dimensão Sintática: respeita à estrutura gramatical da lei e considera-a na totalidade


do seu enunciado.

▪ Dimensão Semântica: refere-se ao significado das palavras utilizadas na lei no


contexto da sua estrutura. Dentro desta dimensão semântica o interprete não deve deixar
de atribuir significado a todas as expressões da lei, ou seja, não pode considerar
nenhuma delas como inútil ou redundante. Por outro lado também são irrelevantes o
gênero (masculino ou feminino) e o número (singular ou plural) das palavras que
constituem a letra da lei.

Ex: A irrelevância do género implica que palavras masculinas também incluam um género
feminino, por exemplo, a palavra “filho” utilizada no artigo 1798º também abrange a palavra
filha. A irrelevância do número determina que palavras empregues no singular também se

126
Introdução ao Estudo do Direito II 127
Daniel Vieira Lourenço – Turma B

apliquem no plural e vice-versa. Por exemplo, a palavra “pessoa” no artigo 397º CC também
abrange a pluralidade de devedores.

Embora nada se encontre no artigo 9º CC, é indiscutível que a letra da lei deve ser interpretada
de acordo com o seu significado atual. Além do mais só essa solução pode garantir que as leis
permaneçam adequadas ao tempo em que são aplicadas. A necessidade de seguir uma
interpretação atualista é especialmente saliente no caso da interpretação de conceitos
indeterminados ligados a valorações sociais ou culturais , por exemplo, a referência aos bons
costumes (art. 280/2 ou 282) deve ser interpretada com o significado que tem no momento da
interpretação.

Ainda acerca do elemento gramatical, importa distinguir as palavras de acordo com a


linguagem. O professor Lima Pinheiro, assim como o professor Miguel Teixeira de Sousa,
divide a linguagem em:

A) Linguagem Jurídica: (ex crédito, cumprimento, declaraçao de vontade, ilicitude,…) as


palavras devem ser interpretadas com o significado que possuem no direito em geral ou
no respetivo ramo de direito em que se insere a lei interpretada, aqui, se houver, deve
ter-se em conta as definições legais.

Contudo, existem casos em que a mesma palavra tem diferentes aceções em diferentes ramos do
direito. Por exemplo, segundo o artigo 487/e CC, para o direito civil, a negligência consiste na
omissão da deligência devida e, no âmbito penal, é entendida como a omissão do dever de
cuidado de que o agente seja capaz (art. 15 CP). Em hipóteses como estas, deve considerar-se
apenas o significado que for específico do ramo de direito a que pertence a lei interpretada.

B) Linguagem Técnica: ser interpretada de acordo com o significado que tem no


respetivo ramo do conhecimento.

Ex: Supondo que uma lei considere justificadas as faltas ao trabalho por motivos exclusivos de
“doença” e que um trabalhador falte porque tem uma consulta marcada para o tratamento de
lesões causadas num acidente automóvel. Ainda que um tratamento de alguma doença causada
por um acidente não se qualifique como uma patologia, ou doença per si, pode-se interpretar
para efeitos de aplicação da lei mencionada a condição do trabalhador como “doença”.

C) Linguagem Corrente: Palavras devem ser interpretadas com o significado que


possuem no seu uso quotidiano, ou seja, segundo os usos que lhe definem o significado
na comunidade, só assim não acontece se o legislador tiver deixado claro que o
significado juridico é diferente do sentido com que é utilizado quotidianamente.

Ex: O termo “aluguer” é utilizado, na linguagem quatidiana como sinónimo de arrendamento;


na linguagem jurídica, aluguer, designa a locação de coisas móveis e, o arrendamento, a
locação de coisas imóveis (1023 CC); Na linguagem quotidiana, o documento é um papel
escrito, enquanto na linguagem jurídica, documento, é qualquer objeto elaborado com o fim de
reproduzir ou representar uma pessoa, uma coisa ou um facto (art. 362º CC)

127
Introdução ao Estudo do Direito II 128
Daniel Vieira Lourenço – Turma B

Como nota final acerca do elemento gramatical, é importante salientar que este tem um
significado provisório ou significado de limite mínimo. O artigo 9º/1 CC estabelece que o
intérprete, depois de determinar o significado da letra da lei, deve reconstituir o pensamento
legislativo, servindo-se para isso de vários elementos não literais de interpretação.

Portanto, sob essa perspetiva, o significado literal é apenas o primeiro degrau na


interpretaçao da lei, pelo que ele é sempre algo provisório ou inacabado, dado que, depois de
obtido o significado literal, o intérprete deve procurar a sua corroboraçao ou confirmação
através de elementos não literais.

Interpretação: Sentido Literal  Elementos não literais  regresso a letra para verificação de
correspondência

Elemento Sistemático

Na opiniao do professor Lima Pinheiro, mais do que um elemento temos aqui um critério de
interpretação da lei, noemadamente, o contexto sistemático.

O elemento sistemático decorre da orientação já deixada por Savigny, de que os institutos


jurídicos constituem, antes de tudo, um sistema normativo e apenas em conexão com este
sistema podem ser completamente compreendidos. Assim, este elemento, visa assegurar que
nenhuma fonte seja interpretada em divergência com esse sistema.

O professor Lima Pinheiro sublinha que este elemento exprime a unidade do sistema jurídico,
que o artigo 9º/1 CC manda ter em conta “ a unidade do sistema jurídico”, é designado pelo
professor como o “contexto significativo da lei”.

O professor Inocêncio Galvão Teles destaca que para garantir a coerência e unidade do sistema
deve ter-se sempre em mente que “o preceito não é uma ilha isolada”. Por essa lógica, o
preceito deve ser interpretado em conjunto com as restantes normas: com a epigrafe que o
precede, com os textos que estão imediatamente antes e depois, e ainda com outros textos
relevantes que podem estar mais afastados.

.
A professora Sandra Lopes Luís dá o exemplo da “indemnização por benfeitorias” (art. 1273
CC): este preceito não pode deixar de ser interpretado em conjugação com o artigo 216º CC,
que está na parte inicial do código, onde se definem as várias modalidades de benfeitorias.

O professor Oliveira Ascensão refere que as relações que se estabelecem entre as várias
disposições podem ser de:

 Subordinação

Relaciona o preceito isolado com os princípios gerais do sistema jurídico, permitindo apurar a
incidência que esses princípios têm para o esclarecimento daquela fonte.

 Conexão

Nenhum preceito pode ser isolado fora de um contexto, por exemplo, cada número de um artigo
só pode ser compreendido se o colocarmos perante o texto do artigo. Atender ao texto, acima de
tudo, é situar uma disposição.

128
Introdução ao Estudo do Direito II 129
Daniel Vieira Lourenço – Turma B

 Analogia

Por via da analogia buscam-se semelhanças entre preceitos, independentemente do sistema


próprio da fonte em causa. De analogia fala-se, principalmente, como um método de integração
de lacunas.

Consequentemente, o elemento sistemático da interpretação, é tanto uma consequência como


um postulado da unidade do sistema jurídico, pois visa assegurar que nenhuma fonte seja
interpretada em divergência com o sistema.

O professor Miguel Teixeira de Sousa esclarece que o preceito se concretiza em duas vertentes:

A) Relação de Contexto: um preceito legal deve ser interpretado no contexto da lei em


que se integra, e este contexto pode ser:

 Contexto Vertical – que implica que, na interpretação da lei, deve ser


considerada a sua coordenação com a respetiva fonte de produção.

Ex: A interpretação de uma lei ordinária que regula o exercício de um direito fundamental deve
ser aquela que mais se aproximar da fonte constitucional que atribui esse mesmo direito. Há
ainda a considerar, dentro deste âmbito, a conformidade à Constituição, ao direito europeu e ao
direito ordinário).

 Contexto Horizontal – que implica que a interpretação da lei deve considerar


outras leis da mesma hierarquia, ou, se for o caso, outros preceitos da mesma
lei. Assim, a interpretação da lei, deve atender a todas as leis que, em conjunto,
contribuem para a resolução do caso. O contexto horizontal assume particular
importância quando se trata de interpretar uma lei especial ou excecional. Tanto
num caso como noutro deve ter-se em atenção a interpretação da lei geral.

Ex: Se se estiver a considerar a nulidade de um determinado negócio jurídico que estabelece a


nulidade por falta de forma, deve ter-se em atenção o regime jurídico desse desvalor jurídico.

B) Princípio da Consistência: que decorre da unidade do sistema jurídico. Para este


efeito releva o chamado “sistema interno”, ou seja, o sistema que corresponde às
“conexões materiais” e a uma “ordem imanente”. O princípio da consistência vale num
duplo sentido, dado que é indispensável tanto para encontrar o significado da lei na
unidade do sistema jurídico, como para afastar significados incompatíveis com
essa unidade.

O elemento sistemático impõe uma interpretação sistemática, mas não garante que o
resultado seja uma interpretação conforme ao sistema, dado que é possível que o intérprete
conclua que nenhuma interpretação da lei é suscetível de assegurar a conformidade com o
sistema. Nestas hipóteses, torna-se necessário resolver o conflito normativo através da
revogação ou da invalidade de uma das regras, da qualificação de uma das regras como
especial ou excecional perante a outra ou, em última análise, da escolha de uma das regras
conflitantes através da ponderação dos respetivos interesses.

129
Introdução ao Estudo do Direito II 130
Daniel Vieira Lourenço – Turma B

O elemento sistemático impõe que a lei seja interpretada no respetivo ambiente sistemático, ou
seja, impõe que se passe do preceito para o texto legal que o contém, deste para o respetivo
subsistema e, finalmente, deste para o sistema jurídico. Nenhuma lei deve ser interpretada
isolada de outras leis com as quais apresenta uma conexão sistemática e que, de entre os vários
significados literais possíveis se deve preferir aquele que for compatível com o significado de
outras leis. Só desta maneira se dá expressão à unidade do sistema jurídico. Assim, como
destacado pelo professor Lima Pinheiro, entre as várias interpretações possíveis, há que preferir:

 A que evita contradições normativas;

 A que melhor corresponde ao sentido das normas de escalão superior;

 A que melhor corresponde às ideais fundadoras do sistema;

 A que atribua um sentido útil à posição jurídica;

Em suma, a respeito deste elemento, é importante reter que, no que toca à interpretação, é
necessário ter em conta que a construção da unidade do sistema implica que deve ser dada
preferência a uma interpretação que seja compatível com o maior número possível de regras
do mesmo sistema jurídico. A lei interpretada vai ser considerada consistente com as demais leis
do sistema jurídico quando se conjugarem de forma harmoniosa entre si.

(Professor Lima Pinheiro)

O elemento sistemático é a inserção da proposição jurídica singular no todo que é a ordem


jurídica. Diz-se que este elemento exprime a unidade do sistema jurídico, que o art. 9.º/1 CC
manda ter em conta na reconstituição do pensamento legislativo.

Tem-se aqui um cânone hermenêutico: o sentido da parte é esclarecido pelo todo. Mais do
que um elemento é um critério que podemos designar por contexto significativo da lei.

Para atender ao contexto significativo da proposição jurídica importa ter em conta o conjunto
funcional em que se insere a regra por ela expressa. Dentro destes conjuntos as normas
complementam-se e limitam-se reciprocamente, por forma a que o sentido de cada uma
delas não pode ser estabelecido isoladamente, mas só mediante a sua inserção no conjunto.

Deve-se ter em conta a inserção destes conjuntos regulativos nos ramos do Direito e os nexos
que se estabelecem entre conjuntos regulativos e entre ramos do Direito, bem como a inserção
dos ramos do Direito, que são subsistemas normativos, no conjunto do sistema jurídico.

Esta inserção no sistema normativo permite, ademais, a revelação de lugares paralelos, de


proposições relativas a situações similares, que devem obter um tratamento equivalente.

É também necessário ter em conta a sistemática legal. A sistemática legal constitui um


indício sobre o conjunto funcional em que a proposição jurídica se insere e sobre o ramo do
Direito a que pertence. Tenha-se presente, designadamente, a relação que em diplomas como o
Código Civil se estabelece em entre partes gerais e partes especiais.

Da inserção na sistemática legal pode resultar a aceção relevante de uma palavra


polissémica ou o sentido global de uma proposição jurídica.

130
Introdução ao Estudo do Direito II 131
Daniel Vieira Lourenço – Turma B

▪ Por exemplo, o termo “obrigação” significa no Livro II do Código Civil o vínculo


jurídico por virtude do qual uma pessoa fica adstrita para com outra à realização de
uma prestação (art. 397.º CC). Já nos artigos. 348.º e seguintes. do Código das
Sociedades Comerciais o mesmo termo designa um título de crédito.

Mas a sistemática legal tem um significado limitado. Por exemplo, encontramos no Livro II,
relativo ao Direito das Obrigações, normas como as dos arts. 408.º e 409.º que são relativas
aos efeitos reais dos contratos, e que devem ser relacionadas principalmente com as normas
sobre os direitos reais.

Há que atender ainda a outros nexos intrassistemáticos lógicos e funcionais. Uma regra
legal também pode ter de ser relacionada com regras de outros conjuntos regulativos e
ramos do Direito, com as quais estabeleça nexos lógicos e funcionais.

Ao proceder deste modo não só se atua em conformidade com um cânone hermenêutico mas
também se contribui para a promoção da coerência do sistema jurídico.

Entre várias interpretações possíveis (perante o sentido literal e a intenção real do legislador
histórico) há que preferir:

 A que evita as contradições normativas e valorativas;


 A que melhor corresponde ao sentido das normas de escalão superior;
 A que melhor corresponde às ideias rectoras do sistema;
 A que atribua um sentido útil à proposição jurídica.

Com o critério do contexto se relacionam, por isso, os critérios da interpretação conforme com a
Constituição e o critério da interpretação conforme com a diretiva europeia, no caso de leis de
transposição de diretivas europeias.

Mas, com isto, passamos insensivelmente do critério do contexto significativo para o critério
teleológico. A fluidez das fronteiras entre estes dois critérios leva mesmo alguns autores a
negarem a autonomia do elemento sistemático.

Com efeito, os nexos intrassistemáticos não são só lógicos e funcionais. Na conformação do


sistema assumem grande importância os nexos teleológicos e axiológicos. Para inserir a regra
no sistema também é necessário um retorno ao fim ou valor que visa realizar. Mas esta
consideração do fim ou valor releva já de um critério teleológico.

Elemento Histórico ou Genético

O elemento histórico encontra-se consagrado na referência realizada no artigo 9º/1 CC às


“circunstâncias em que a lei foi elaborada”.

O elemento genético diz respeito à justificação da fonte. Mais especificamente, trata-se de


saber o que é que motivou a produção da lei, preceito ou texto: os factos que levaram o
legislador a produzir uma lei sobre uma determinada matéria e que necessidades já estavm
satisfeitas no momento da sua produção.

131
Introdução ao Estudo do Direito II 132
Daniel Vieira Lourenço – Turma B

Dentro do elemento histórico, o professor Miguel Teixeira de Sousa destaca que devemos
atender a aspectos objetivos e aspectos subjetivos.

1) Aspectos Objetivos: O professor Oliveira Ascensão destaca que dentro dos aspetos
objetivos podem-se distinguir 3 grandes áreas:

 Precedentes Normativos

Os precedentes normativos são os antecedentes da lei, e podem ser históricos ou


comparativos, consoante incidam sobre as regras que vigoraram no passado, e que são objeto
da História do Direito, ou as regras estrangeiras que vigoram na época de formaçao da lei e
tiveram influência sobre ela.

Muitas destas fontes de direito permitem explicar os resultados atuais.

Ex: A influência da Declaração Universal dos Direitos do Homem na formulação dos direitos
fundamentais e aplicação da defesa dos Direitos Humanos no âmbito nacional.

 Trabalhos Preparatórios

Representam elementos auxiliares da interpretação, muitas vezes, quando um texto parece


incompreensivel, é o exame do elemento historico que permite outorgar-lhe um sentido.

Ex: Precedentes doutrinários – a discussão doutrinária que existia no momento da sua


elaboração.

 Occasio Legis

Assim se designa todo o circunstancialismo social que rodeou o aparecimento da lei. O


condicionalismo histórico.

Ex: Imagine-se que, durante uma vaga de terrorismo, é promulgada legislação extremamente
severa sobre deslocações de pessoas e veículos. Passada essa vaga, a legislaçao fica em vigor,
mas aplicada a circunstâncias normais, enquanto não for revogada. Isto cria um desfazamento.
O intérprete não pode deixar de ponderar o circunstancialismo muito especial que forçou o
apareciemento dessa legislação e interpreta-a à luz desse condicionalismo. Pode assim concluir
que se excluem hipóteses que, embora formalmente abrangidas, estariam fora do seu espírito.

2) Aspectos Subjetivos: O aspecto subjetivo resume-se, segundo o professor Miguel


Teixeira de Sousa, à intenção do legislador. No entanto, ao referir a intenção o
legislador, o professor não considera a vontade real, mas antes o que pode ser inferido
dos mencionados meios auxiliares como sendo a hipotética vontade do legislador, o que
a enquadraria mais como uma construção do intérprete do que com a verificação de um
facto.

Ex: Trabalhos preparatórios, projetos que antecederam a sua versão final, discussão nos órgãos
legislativos, entre outros.

132
Introdução ao Estudo do Direito II 133
Daniel Vieira Lourenço – Turma B

3) O professor Miguel Teixeira de Sousa fala-nos ainda de um Aspeto Evolutivo:

Trata-se de saber qual a interpretação que tem sido dada, pela jurisprudência e pela doutrina, a
uma determinada lei após o inicio da sua vigência. Por outras palavras, averiguar que novas
necessidades têm sido entendidas como podendo ser satisfeitas pela lei. Para isto é
indispensavel conhecer a sua aplicação, dado que apenas a aplicação desta a novos casos pode
constituir um ponto de partida para novas interpretações dessa fonte.

Elemento Teleológico

O elemento Teleológico relaciona-se com a justificação social da lei: a finalidade para a qual a
norma foi concebida. A importância do elemento está consagrada no artigo 9º nº1 do CC, na
referência às “condições específicas do tempo em que a lei é aplicada”.

Chegados aqui, é importante fazer uma distinção do Elemento Teleológico do Elemento


Histórico: enquanto o elemento histórico procura a justificação para a produção da lei (rule-
generating justification), o elemento teleológico procura encontrar a finalidade que justifica a
vigência da lei (substantive justification).

Segundo destaca o professor Miguel Teixeira de Sousa, o elemento Teleológico respeita à


finalidade da lei, procura determinar quais os elementos que a lei pode prosseguir. Este
elemento impõe que o intérprete procure descobrir a ratio legis, compreender para que situações
a lei foi criada.

Por Exemplo

a) O professor Miguel Teixeira de Sousa ilustra a situação da seguinte forma: uma lei
que dispõe que quem dormir nas estações de comboio deve pagar uma coima; um
passageiro que esperava num dos bancos da sala de espera, um comboio que só partia
de madrugada foi vencido pelo sono e adormeceu; pergunta-se se ele infringiu a lei e
deve pagar uma coima; a resposta não deve deixar de ser negativa, dado que a
teleologia da lei é evitar que alguém possa utilizar as estações de comboios para passar
a noite e não que os passageiros possam adormecer enquanto aguardam o inicio da sua
viagem.

b) O professor Oliveira Ascensão dá outro exemplo: há um preceito em matéria de


seguros, segundo o qual o segurado não pode, sob pena de nulidade, fazer segurar
segunda vez pelo mesmo tempo e risco objeto já seguro pelo seu inteiro valor (art.434
Código Comercial). Para resolver as dificuldades de interpretação deste preceito não
pode deixar de se perguntar para que se impôs semelhante proibição. Foi porque se
quis impedir que o seguro se torne para o segurado um negócio lucrativo. Verificado o
risco que justificaria o seguro, o segurado teria direito a receber duas indemnizações,
que lhe atribuiriam, portanto, o dobro do que efetivamente perdeu.

A teleologia da lei não pode ser determinada em si mesma: a finalidade que a lei realiza é aquela
que ela pode prosseguir em função de fatores que lhe são estranhos. Para determinar a teleologia
da lei é necessário atender a um conjunto variado de elementos:

133
Introdução ao Estudo do Direito II 134
Daniel Vieira Lourenço – Turma B

1) Fatores Sistémicos: A interpretação da lei deve considerar os princípios do sistema


jurídico e do respetivo subsistema em que se insere. A relevância do elemento
teleológico manifesta-se principalmente na interpretação conforme os princípios: esta
interpretação determina que a lei deva ser interpretada em consonância com os
princípios formais e materiais que ela concretiza.

Por exemplo: A interpretação de uma disposição relativa a um dos tipos contratuais deve ter em
conta o princípio da liberdade contratual (art.405ºCC).

2) Avaliação das Consequências: Para a determinação da teleologia da fonte não se


pode deixar de atender às respetivas consequências. Quer isto dizer que, havendo duas
ou mais teleologias possíveis, há que evitar as que sejam incompatíveis com o sistema
e há que escolher a que melhor se coadunar com esse sistema. Muitas vezes, a melhor
interpretação, é aquela que acrescenta algo ao próprio sistema onde se insere, é aquela
que permite proteger interesses que, antes da lei interpretada, nele não se encontravam
acautelados.

3) Regras de Experiência: O elemento teleológico da interpretação exige


frequentemente o recurso a regras da experiência. Isto é, ao acervo de experiência de
vida quotidiana e ainda atribui importância ao background de vivência que lhe
permite realizar a interpretação da lei de acordo com parâmetros que melhor
correspondam à normalidade da vida em sociedade. O que a maioria dos membros da
sociedade não espera do legislador não deve ser escolhido como resultado da
interpretação, sempre que se mostrem possíveis outros resultados interpretativos.

Conclui-se, assim, que, como defendido pelo professor Luís Lima Pinheiro, o elemento
teleológico possui uma grande importância quanto à interpretação da lei, pois permite controlar
a correção dessa interpretação. É também o elemento da interpretação que provém em menos
dimensão do sistema e que mais apela ao intérprete, pois permite utilizar valores éticos,
políticos ou económicos na procura da otimização do princípio que subjaz à lei que interpreta.

Hierarquia dos Elementos de Interpretação

Depois de se analisar os elementos de interpretação de forma mais exaustiva, é importante


perguntar se existe uma hierarquia entre os elementos de interpretação ou se todos se
encontram no mesmo plano durante o processo interpretativo.

No âmbito do sistema móvel, isto é, de um sistema cujos elementos têm uma importância
distinta em situações diferentes, é possível entender que não há nenhuma hierarquia rígida
entre os elementos de interpretação.

Contudo, no ordenamento jurídico português, é indispensável distinguir entre uma hierarquia


relativa ao método de interpretação e uma hierarquia respeitante ao resultado de
interpretação.

1) Hierarquia Relativa ao método de interpretação: o artigo 9º/1 CC é claro nesse


sentido  a interpretação deve reconstituir o pensamento legislativo a partir dos textos,
o que permite concluir que o elemento gramatical tem primazia em relação aos vários
elementos não literais. Não podia deixar de ser assim, só depois de determinado o

134
Introdução ao Estudo do Direito II 135
Daniel Vieira Lourenço – Turma B

significado literal da lei é possível reconstituir o pensamento legislativo, através de


elementos não literais e procurar a dimensão programática da lei.

2) Hierarquia relativa ao resultado: a letra do artigo 9º/1 do CC também é clara, mas


inversa à anterior: porque o interprete deve reconstituir o pensamento legislativo a partir
do texto da lei com base nos elementos não literais e porque qualquer divergência entra
a letra da lei e o seu espirito é resolvido através da prevalência deste último, os
elementos não literais prevalecem sobre o elemento gramatical.

Ou seja, quando se trata do início do processo interpretativo, o elemento gramatical possuí um


valor hierárquico superior aos demais. Entretanto, quando nos deparamos com o resultado do
processo interpretativo, os elementos não literais têm primazia.

Posição do Regente

Ainda que esta divisão tradicional dos elementos de interpretação seja aceite pela grande
maioria da doutrina, o nosso professor Luís Lima Pinheiro (muito próximo ao entendimento
seguido por Larenz) destacou dois problemas:

1) Critérios de Interpretação: ao interpretar a lei, é necessário ir além do mero


entendimento dos elementos de interpretação. O intérprete deve usufruir de critérios que
melhor o orientem na apreciação desses elementos.

2) Aplicação Exaustiva dos Elementos: Em princípio, todos os elementos interpretativos


são relevantes para a compreensão do sentido normativo do texto legal. Assim como o
professor Oliveira Ascensão, o regente destaca que a divisão única em quatro elementos
tende a resultar numa aplicação exaustiva dos elementos de interpretação, quando, na
verdade, as quatro categorias tradicionais não deveriam esgotar-se mutuamente e sim
complementar-se.

Conclusão

Em suma, nunca se deve esquecer que a interpretação é realizada de forma integrada, com o
objetivo de permitir a formação de uma ideia coesa com o contributo que é dado por cada um
dos elementos de interpretação.

Os elementos de interpretação são de utilização obrigatória.

Os primeiros elementos assumem uma natureza linguística, face a factos e atos escritos, o que
vai estar em causa e ser necessário, antes de mais, é proceder à respetiva leitura, à compreensão
do seu sentido literal, à apreensão da mensagem patente na própria letra. Tais elementos são,
como dito pelo professor Luis Lima Pinheiro, o “ponto de partida da interpretação, mas
também o seu limite”.

Os subsequentes operadores revestem natureza extra-linguistica, extrínseca à referida letra,


permitindo um contra-exame jurídico. O que se vai pretender neste momento já não é apurar o
significado literal do preceito, visto de maneira isolada, mas sim, a inserção desse preceito ou
norma, no todo que é o sistema ou o ordenamento jurídico, e procurar criar a melhor solução

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Introdução ao Estudo do Direito II 136
Daniel Vieira Lourenço – Turma B

interpretativa olhando para o seu sentido literal mas enquadrado no todo do sistema. Neste
momento, deixa de contar apenas o sentido literal.

Apenas com a consideração destes elementos se pode verdadeiramente interpretar uma lei,
por isso, tal como entendem Marcelo Rebelo de Sousa e Sofia Galvão, não é qualquer
pessoa que lendo o Diário da República consegue encontrar a soluçao para a resoluçao de
um litigio que tenha: a determinação do sentido real da lei é uma tarefa que ultrapassa a
sua mera leitura e que só obtém pela consideraçao dos elementos literal e lógico. Da
relação entre a letra e o espirito da lei resultam diferentes modalidades de interpretação
quanto ao resultado:

 Interpretação Declarativa;
 Interpretação Extensiva e Restritiva;
 Interpretação Abrogante;
 Nterpretação Enunciativa;
 Interpretação Corretiva;

Critérios de Interpretação

Os elementos são as regras que o intérprete aplicador deve seguir, enquanto os critérios visam
determinar essas mesmas regras que o intérprete aplicador deve seguir na sua aplicação prática.
Os critérios são mais operativos.

Na opinião do professor Lima Pinheiro, aproximando-se do entendimento seguido por Larenz,


esta sistematização tradicional dos elementos de interpretação é deficiente, por duas razões.

 Primeiro, porque o intérprete não precisa só de saber quais os elementos que deve ter
em conta, precisa de critérios que o orientem na apreciação destes elementos. Por isso,
importa estudar, além dos elementos, os critérios que orientam a interpretação.
 Segundo, todos os elementos que sirvam para compreender o sentido normativo do
texto legal são, em princípio, relevantes. Não podemos supor que as quatro categorias
tradicionais esgotam todos os elementos a ter em conta.

É o caso dos textos incluídos formalmente na lei, mas que não têm caráter normativo direto.
Surgem-nos aqui os preâmbulos das leis, os títulos das secções dos diplomas e as epígrafes dos
artigos. Algo de paralelo se verifica, quanto às regras jurisprudenciais criadas por decisões com
força obrigatória geral, com a fundamentação destas decisões.

São elementos interpretativos das regras legais com especial autoridade, visto que fornecem
indicações seguras sobre a intenção reguladora do legislador histórico. Por esta razão estes
elementos têm mais valor que os incluídos no elemento histórico. Mas não têm o mesmo valor
que o texto normativo, porque não visam exprimir uma regra, mas tão-somente esclarecer
o sentido das proposições normativas. Por isso, por exemplo, não é relevante a intenção
proclamada no preâmbulo de uma lei que não tenha um mínimo de correspondência no texto
normativo.

Outro elemento a ter em conta, que não consta da sistematização tradicional, são as
circunstâncias atuais, as existentes no momento da aplicação da lei. Para a sua averiguação é
importante ter em conta a evolução do circunstancialismo social que rodeia a aplicação da lei e

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Introdução ao Estudo do Direito II 137
Daniel Vieira Lourenço – Turma B

os desenvolvimentos realizados pela jurisprudência e pela doutrina como modo de ajustamento


da lei a esta evolução.

E quais são os critérios da interpretação?

Podemos falar :

 Do sentido literal;

 Do contexto significativo da lei;

 Da intenção reguladora do legislador histórico;

 Dos critérios teleológico-objectivos.

O sentido literal e o contexto significativo

Trata-se de definir a relevância que o elemento literal tem para o intérprete. Segundo o
professor Germano Marques da Silva, o primeiro elemento a considerar na interpretação
é a letra da lei, ou seja, o sentido das diversas palavras que a compõem. O elemento literal
é assim, o elemento de base.

O art. 9.º CC é inequívoco a este respeito: a interpretação deve partir dos textos (n.º 1); não
pode ser considerado o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de
correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso (n.º 2); e, o intérprete presumirá
que o legislador “soube exprimir o seu pensamento em termos adequados” (nº 3).

O texto tem, por conseguinte, um duplo significado:

 O de ponto de partida para a determinação do sentido normativo;


 O de limite nesta determinação.

O sentido literal é o significado da proposição jurídica apurado com base no elemento


literal.

Porém este critério nunca é, por si, suficiente. Embora seja o ponto de partida, é um elemento
frágil, porquê? Porque há palavras por vezes vagas, equívocas e pode bem suceder que o
legislador tenha dito mais ou menos o que realmente pretendia dizer. Por isso, o elemento literal
não pode ser isolado de um outro critério, o do contexto significativo.

Para atender ao contexto significativo da proposição jurídica importa ter em conta o conjunto
funcional em que se insere a regra. Isto é, o sentido de cada uma das normas não pode ser
estabelecido isoladamente, mas só mediante a sua inserção no conjunto. Deve-se ter em conta a
inserção destes conjuntos nos ramos de Direito e os nexos que se estabelecem entre estes dois,
bem como a inserção dos ramos do Direito no conjunto do sistema normativo. Isto permite a
revelação de lugares paralelos, ou seja, de outros textos relevantes para uma norma que podem
estar por assim dizer, mais “afastados” desta. Por exemplo, o artigo 1273.º do CC
“indemnização por benfeitorias”, previsto no livro III relativamente aos Direitos reais, não pode
deixar de ser interpretado em conjugação com o artigo 216.º do CC, que está na parte inicial do
código onde se definem as várias modalidades de benfeitorias. Resumidamente o critério do
contexto significativo está ligado ao seguinte cânone hermenêutico: o sentido da parte é
esclarecido pelo todo.

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Introdução ao Estudo do Direito II 138
Daniel Vieira Lourenço – Turma B

Importa acrescentar que, em alguns casos, o sentido da proposição jurídica, determinado com
recurso aos critérios do sentido literal e do contexto significativo, pode ser inequívoco, por
forma a dispensar o recurso a outros critérios.

Assim, poderíamos dizer que só quando houver uma pluralidade de sentidos literais
possíveis é que é necessário recorrer a critérios teleológicos.

Mas é preciso ter em conta que os critérios teleológicos podem ser relevantes para a
determinação desta pluralidade de sentidos literais possíveis.

A Intenção Reguladora do Legislador Histórico e os Critérios Teleológico-Objectivos

 O elemento teleológico subjetivo é a intenção real do legislador histórico, consiste no fim


visado pelo legislador ao fazer a lei, na razão de ser da lei. A lei deve ser entendida de
maneira a que melhor corresponda à realização do fim que o legislador pretendeu.
 Já os elementos teleológico-objetivos reportam-se a fins ou valores que são independentes
da intenção do legislador histórico, por exemplo, os valores da ordem jurídica e os fins de
política legislativa de vasto alcance.

Perante uma pluralidade de sentidos literais possíveis decorre da posição anteriormente adotada
que, quanto às leis relativamente recentes, se deve dar preferência ao sentido que
corresponde à intenção real do legislador histórico.

Relativamente a estas leis o recurso aos elementos teleológico-objectivos é assim, de algum


modo, subsidiário. Só haverá que recorrer aos valores da ordem jurídica, aos princípios
jurídicos e a outros elementos teleológico-objectivos quando não for possível estabelecer
conclusivamente qual é o sentido normativo que corresponde à intenção reguladora do
legislador histórico. É neste sentido que deve ser entendido o art. 9.º/3 CC quando estabelece
que o “intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas”.

Já as leis mais antigas têm de ser aplicadas num contexto social diferente daquele que
existia no momento da criação da lei e a situações que não podiam ser previstas pelo
legislador histórico. Neste caso há que ter em conta o novo contexto social e examinar até
que ponto à luz da valoração feita pelo legislador se justifica a aplicação da lei a situações
que não podiam ser previstas pelo legislador.

Além disso, porém, o intérprete deverá examinar se a aplicação da lei a estas situações não
poderá ser justificada à luz dos valores e princípios da ordem jurídica atual, atendendo
igualmente ao trabalho criativo desenvolvido na aplicação da lei em causa pela jurisprudência e
pela ciência jurídica.

Este exame poderá levar a uma extensão ou a uma restrição do sentido anteriormente
atribuído à proposição jurídica.

Também é possível que a evolução da ordem jurídica possa influenciar a interpretação da


lei, levando a modificar o sentido até aí atribuído a uma proposição jurídica.

Isto pode suceder, em primeiro lugar, pela alteração do contexto significativo em que a
proposição jurídica tem de ser inserida.

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Introdução ao Estudo do Direito II 139
Daniel Vieira Lourenço – Turma B

Em segundo lugar, dentro dos limites em que atuam os critérios teleológico-objectivos de


interpretação, isto pode resultar do surgimento de novos valores e princípios jurídicos, ou do
desenvolvimento dos existentes.

Esta distinção entre leis recentes e leis antigas não é meramente cronológica, pois a atualidade
da lei depende também do ritmo de evolução que se tenha verificado no domínio social por ela
regulado.

Mas os critérios teleológico-objectivos podem desempenhar um papel mesmo em relação a leis


recentes e quando o sentido literal ou a intenção reguladora do legislador histórico forem
inequívocos. Por exemplo, a deteção de contradições valorativas e as normas “estranhas ao
sistema”.

A descoberta de uma contradição valorativa poderá em certos casos, nos termos


anteriormente expostos, colocar um problema de violação do princípio constitucional da
igualdade.

Por “norma estranha ao sistema” entende-se, em conformidade com o anteriormente exposto, a


que não é reconduzível a um princípio jurídico ou ideia retora do sistema. Parece defensável que
a estas normas deva ser atribuído, de entre os vários sentidos literais possíveis, aquele que
conduzir a um âmbito de aplicação mais restrito.

Trabalho:

 “1ª situação - Perante uma pluralidade de sentidos literais possíveis decorre que,
quanto às leis relativamente recentes, se deve dar preferência ao sentido que
corresponde à intenção real do legislador histórico. Isto porque, relativamente a estas
leis o recurso aos elementos teleológico-objetivos é assim, de algum modo, subsidiário.
Só haverá que recorrer aos valores da ordem jurídica, aos princípios jurídicos e a
outros elementos teleológico-objetivos quando não for possível estabelecer
conclusivamente qual é o sentido normativo que corresponde à intenção do legislador
histórico. É neste sentido que deve ser entendido o artigo 9.º/3 CC quando estabelece
que o “intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas”,
reportando-se ao legislador em abstrato, que é racional, justo e sábio, não sendo
importante determinar o sentido da interpretação dado pelo legislador em concreto,
que muitas vezes é precipitado e incorreto.
 2ª situação - Diz respeito às leis antigas: estas têm de ser aplicadas num contexto
social diferente daquele que existia no momento da criação da lei e a situações que
não podiam ser previstas pelo legislador histórico. Neste caso há que ter em conta o
novo contexto social e examinar até que ponto à luz da valoração feita pelo legislador
se justifica a aplicação da lei a situações que não podiam ser previstas pelo legislador.
Ao fazer isto temos a vantagem de uma maior adaptação às exigências da vida, dado
que se interpreta à luz das exigências atuais uma lei que pode ter, por exemplo, trinta
anos.

Além disso, porém, o intérprete deverá examinar se a aplicação da lei a estas situações (que
não podiam ser previstas pelo legislador) não poderá ser justificada à luz dos valores e
princípios da ordem jurídica atual (elementos teleológico-objetivos), atendendo igualmente ao
trabalho criativo desenvolvido na aplicação da lei em causa pela jurisprudência
(interpretação que é feita pelos tribunais no âmbito de um processo) e pela ciência jurídica.

139
Introdução ao Estudo do Direito II 140
Daniel Vieira Lourenço – Turma B

Segundo o professor Luís de Lima Pinheiro, este exame poderá levar a uma extensão ou a uma
restrição do sentido anteriormente atribuído à proposição jurídica.

Também é possível que a evolução da ordem jurídica possa influenciar a interpretação da lei,
levando a modificar o sentido até aí atribuído a uma proposição jurídica. Isto pode suceder, em
primeiro lugar, pela alteração do contexto significativo em que a proposição jurídica tem de
ser inserida.

✓ Por exemplo, qualquer constituição que perdure precisa de se adaptar


às novas realidades. Hoje o supremo tribunal considera que a
possibilidade do casamento de pessoas do mesmo sexo é uma exigência
da dignidade da pessoa humana. Assim, dentro dos limites em que
atuam os critérios teleológico-objetivos de interpretação, isto pode
resultar do surgimento de novos valores e princípios jurídicos, ou do
desenvolvimento dos existentes.

Os critérios teleológico-objetivos desempenham assim, um papel em relação a leis recentes


quando o sentido literal ou a intenção reguladora do legislador histórico forem inequívocos.
Por exemplo quando se detetam contradições valorativas e as normas “estranhas ao sistema”.

A descoberta de uma contradição valorativa poderá ocorrer por exemplo, com uma
contradição entre o artigo 24.º e o 41.º da CRP.

✓ Imaginemos o seguinte: um homem que se encontra internado no


hospital recusa-se a receber uma transfusão de sangue por ir contra às
suas convicções religiosas, colocando-se em jogo o principio vida com o
princípio da liberdade de consciência, religião e de culto.

Relativamente a “norma estranha ao sistema” a que não é reconduzível a um princípio jurídico


ou ideia retora do sistema. A estas normas deve ser atribuído, de entre os vários sentidos
literais possíveis, aquele que conduzir a um âmbito de aplicação mais restrito. 282.º/1 do CC.”

Conformidade com a Constituição

As regras da lei ordinária que forem contrárias à Constituição são inválidas. Pode no
entanto suceder que, de entre as várias interpretações possíveis da lei, exista uma interpretação
que não contrarie a Constituição. Neste caso o intérprete deve preferir a interpretação que, por
ser conforme à Constituição, permite considerar a lei válida.

Ou seja, se de uma lei são possíveis de retirar vários significados nós vamos optar por aquele
que não é contrário à Constituição, se todos os significados ou as soluções dadas pela aplicação
da lei são contrárias às Constituição então a própria lei será inconstitucional e terá de ser
afastada.

Verifica-se, assim, que a conformidade com a Constituição também é um critério de


interpretação.

O que devemos entender aqui por “interpretação possível”? Ou, por outras palavras, qual a
relação que se deve estabelecer entre o critério da conformidade com a Constituição e os
outros critérios de interpretação?

140
Introdução ao Estudo do Direito II 141
Daniel Vieira Lourenço – Turma B

As regras da lei ordinária que forem contrárias à Constituição são inválidas. Pode no entanto
suceder que, de entre as várias interpretações possíveis da lei, exista uma interpretação que não
contrarie a Constituição. Neste caso o intérprete deve preferir a interpretação que, por ser
conforme à Constituição, permite considerar a lei válida (Principio do Aproveitamento
Máximo da regra Jurídica).

A interpretação conforme à Constituição ganha um sentido específico no que toca às leis


restritivas de direitos, liberdades e garantias. O n.º 3 do art. 18.º CRP determina que estas leis
não podem “diminuir a extensão e o alcance do conteúdo essencial dos preceitos
constitucionais” (por força do principio da igualdade).

Para além de outras consequências que daí advêm, interessa diretamente ao tema assinalar que,
segundo Jorge Miranda, as leis restritivas devem ser interpretadas, senão restritivamente, pelo
menos sem recurso à interpretação extensiva e à analogia.

Interrelação Dos Critérios De Interpretação

Resumindo o anteriormente exposto, podemos dizer que o critério literal define o ponto de
partida da interpretação, mas também o seu limite.

A inserção no contexto significativo é indispensável e está indissociavelmente ligada ao


estabelecimento do sentido literal.

Os critérios teleológicos intervêm quando, perante os critérios anteriores, existe uma


pluralidade de interpretações possíveis. Mas a consideração dos critérios teleológicos também
pode contribuir para descobrir interpretações, que embora compatíveis com os critérios literal e
do contexto significativo, não são por eles desvendadas.

De entre os critérios teleológicos deve, em princípio, ser dada primazia à intenção reguladora
do legislador histórico, quando esta possa ser demonstrada. Só na insuficiência deste critério
são chamados a atuar os critérios teleológico-objectivos.

Mas o papel dos critérios teleológico-objectivos não é meramente subsidiário, dada a


necessidade de atender à alteração de circunstâncias entre o momento em que a lei foi criada e o
momento em que é aplicada e a deteção de contradições valorativas e de “normas estranhas ao
sistema”.

Elementos – Forma que o intérprete tem para recolher alguns dados para a interpretação (em
que sistema a norma se insere, razão de ser da norma,…). O professor Lima Pinheiro considera
que mais do que elementos que podem ser coordenados o que interessa é seguir critérios, os
critérios são regras que o interprete-aplicador não deve deixar de observar.

Critérios:

1) Critério Literal e Contexto Significativo (letra da lei inserida num determinado


sistema);
2) Critérios Teleológicos:
a) Critério Teleológico-Subjetivo (Intenção Histórica do Legislador – tem
prioridade);
b) Critério Teleológico-Objetivo (Fins e valores independentes do legislador
histórico);

141
Introdução ao Estudo do Direito II 142
Daniel Vieira Lourenço – Turma B

c) Conformidade com a Constituição;

Interpretação (Sandra Lopes Luis)

A interpretação consiste na determinação do sentido da regra que decorre da fonte, de forma a


poder resolver o caso concreto. Imaginando-se que a regra é uma obra de arte, um quadro, por
exemplo, pela via da interpretação vai-se determinar o significado de cada traço da pintura.

Modalidades de Interpretação

Os autores apresentam várias modalidades de interpretação, de acordo com 3 critérios


principais:

 Critério da Fonte e Valor (atende à natureza do ato que faz a interpretação e, por outro
lado, ao valor que essa interpretação tem relativamente aos restantes sujeitos intérpretes e
aplicadores do Direito):
 Interpretação Autêntica:
✓ Interpretação que é feita por uma nova norma – a lei interpretativa
(art.13 CC) – que se dirige a fixar o sentido da lei anterior e que tem
valor igual ou superior da lei anterior (pode ser sucessiva – posterior- ou
simultânea);
✓ A interpretação autêntica é vinculativa para todos os aplicadores do
Direito;
 Interpretação Oficial:
✓ É feita por uma norma de valor inferior ao da norma interpretada;
✓ A interpretação oficial não tem eficácia externa devido ao artigo 112/5
CRP (as leis de valor inferior não podem alterar ou contradizer o sentido
normativo de leis hierarquicamente superiores, não tem efeito vinculativo
para todos, apresenta apenas uma eficácia interna, ou seja, vincula só os
agentes administrativos subordinados à entidade que fez a interpretação
oficial);
 Interpretação Judicial:
✓ Interpretação feita pelos Tribunais no âmbito do processo;
✓ Só tem valor vinculativo no processo em si.
 Interpretação Doutrinal:
✓ É feita pelos juristas ou jurisconsultos e fora das condições que
caracterizam as situações anteriores;
✓ Não tem qualquer força vinculativa, mas pode persuadir devido ao
prestigio do intérprete ou de coerência lógica de argumentação;
 Interpretação Particular:
✓ É a interpretação que é feita por qualquer cidadão comum, não jurista (art.
6º CC);
✓ Não tem qualquer força vinculativa;

 Critério do Objetivo ou Fim da Interpretação (Decorre de correntes doutrinárias que


surgiram no século XIX, através das quais se pretendia saber as finalidades da
interpretação);
 Tese Subjetivista e Objetivista;
 Tese Historicista e Atualista;

142
Introdução ao Estudo do Direito II 143
Daniel Vieira Lourenço – Turma B

 Critério do Resultado da Interpretação;


▪ Interpretação Declarativa;
▪ Interpretação Extensiva e Restritiva;
▪ Interpretação Abrogante;
▪ Nterpretação Enunciativa;
▪ Interpretação Corretiva;

Resultados Da Interpretação: Interpretação Declarativa, Restritiva E Extensiva (Professor


Lima Pinheiro e Sandra Lopes Luís)

Atendendo à relação entre o sentido literal e o sentido normativo atribuído à proposição


jurídica, os resultados da interpretação são tradicionalmente classificados como interpretação
declarativa, extensiva e restritiva.

 Segundo esta classificação, a interpretação é declarativa quando “o sentido da lei cabe


dentro da sua letra” ou quando “o sentido literal se identifica com o sentido real”.
Havendo mais de um sentido literal possível a interpretação será lata, restrita e média,
conforme se acolha o sentido mais lato, mais restrito ou um sentido médio. É também claro
que pode haver diferentes sentidos médios.
Verifica-se quando o espirito da lei, determinado pelos elementos lógicos, coincide
perfeitamente com o significado das suas palavras, não havendo desarmonia entre a letra e o
espirito da lei: o legislador disse X, e era precisamente X que queria dizer.
As dificuldades que podem surgir com esta determinação verificam-se quando o significado
literal é ambíguo ou indeterminado. O que ocorre quando o legislador usa expressões
plurissignificativas, isto é, expressões cujo sentido comum das palavras comporta mais do
que um significado, por exemplo, a palavra “homem”, pode ter o significado, em termos
amplos, de ser humano, ou ter o significado, em termos mais restritos, de pessoa do sexo
masculino. Nestes casos, cabe ao intérprete fixar um dos significados possíveis, que deverá
ser escolhido atendendo ao elemento lógico da interpretação. Assim, fala-se de:
✓ Interpretação Declarativa Lata – Se o intérprete optar pelo significado mais
extenso, no exemplo dado, quando opta pelo significado de “ser humano”, por
exemplo o artigo 362ºCC (“Prova documental é a que resulta de documento; diz-
se documento qualquer objecto elaborado pelo homem com o fim de reproduzir
ou representar uma pessoa, coisa ou facto.”);
✓ Interpretação Declarativa Restrita – Se o intérprete opta pelo significado menos
extenso, por exemplo, quando opta pelo significado de pessoa do sexo masculino;
✓ Interpretação Declarativa Média –Se o intérprete não tem que optar por um
destes sentidos e adota o seu significado mais comum ou frequente.

Nas interpretações restritiva e extensiva existe uma desarmonia entre a letra da lei e o espirito da
lei (elemento lógico e literal). Nestes casos o intérprete está autorizado a fazer uma retificaçao
do sentido literal, por consideração do elemento lógico, que se deve situar dentro dos sentidos
literais possíveis (art.9º/2CC), adotando-se um significado mais afastado do significado comum
das palavras.

 Temos uma interpretação extensiva quando o sentido normativo está imperfeitamente


expresso na letra da lei e é possível estabelecer que a intenção reguladora do legislador
corresponde linguisticamente a uma proposição jurídica diferente que abrange casos

143
Introdução ao Estudo do Direito II 144
Daniel Vieira Lourenço – Turma B

que não estão abrangidos na letra da lei (o legislador disse menos do que queria dizer).
O sentido normativo é mais amplo que o sentido literal, o intérprete deve estender a
letra da lei, em função dos elementos lógicos da interpretação.
✓ Por exemplo, no art. 2181º CC, sobre o testamento em mão comum, estabelece-se
que “Não podem estar no mesmo acto duas ou mais pessoas, quer em proveito
recíproco, quer em favor de terceiro”. O legislador quis excluir todas as
modalidades de testamento de mão comum, mas escapou-lhe uma das possibilidades:
aquele testamento em que os intervenientes disponham simultaneamente a favor de
pessoas diferentes. Assim, A e B testam simultaneamente, mas A em favor de C e B
em favor de D. Ora, esta caso é claramente abrangido pelo ratio legis.
✓ Por exemplo, o artigo 877º CC proíbe a venda de pais e avós, a filhos e netos, sem
consentimento dos outros filhos e netos. Coloca-se a questão de saber se a expressão
“avós” se refere só aos pais dos pais, ou também aos pais dos pais e bisavós? A
resposta a esta questão vai no sentido afirmativo, porque atendendo aos elementos
lógicos de interpretação, em especial, ao elemento teleológico, a proibição deve ser
estendida a bisavós e a bisnetos, pois com o artigo 877º CC pretende-se, por um
lado, que os restantes filhos ou netos não sejam tratados de modo desigual, e, por
outro lado assegurar o principio da intangibilidade da legitima (quota hereditária
indisponível), valores que seriam igualmente postergados no caso de se permitir a
venda sem consentimento entre bisavós e bisnetos. Com esta extensão da letra da
lei ainda se respeita o artigo 9º/2 CC, que constitui um limite aos casos de
interpretação extensiva.

 Inversamente se passam as coisas com a interpretação restritiva. O sentido normativo


também está imperfeitamente expresso na letra da lei mas o sentido literal é mais amplo
que o sentido normativo. A letra da lei abrange casos que o legislador não quis
regular (O legislador disse mais do que queria dizer). O sentido atribuído à
proposição jurídica deve por isso ficar aquém do seu sentido literal, o intérprete
deve limitar a letra da lei, em função dos elementos lógicos da interpretação.
✓ Por exemplo, o art. 50.º/1/c C. Estrada proíbe o estacionamento nos lugares onde se
faça o acesso de pessoas ou veículos a propriedades, a parques ou a lugares de
estacionamento. Perante o sentido literal, a proibição abrange o proprietário de
uma garagem que estaciona o seu veículo em frente da mesma. À luz de um critério
teleológico, porém, parece claro que a proibição não deve abranger este caso.
✓ Por exemplo, o artigo 282º/1 dispõe que “É anulável, por usura, o negocio jurídico,
quando alguém, explorando a situação de necessidade, inexperiência, ligeireza,
dependência, estado mental ou fraqueza de caráter de outrem, obtiver deste, para si
ou para terceiro, a promessa ou a concessão de benefícios excessivos ou
injustificados.”, face a esta disposição coloca-se a questão de saber qual a natureza
ou tipo de “…estado mental…” que estará aqui em causa. “estado mental” é a
situação psicológica em que uma pessoa se encontra, o que pode abranger uma
multiplicidade de estados. Atendendo aos elementos lógicos da interpretação, parece
que a regra não pretende abranger todos estes estados psicológicos, mas apenas os
estados mentais depressivos ou negativos que revelem uma fragilidade susceptível de
permitir o aproveitamento por parte de outrem, o que se pretende evitar. Se
inserirmos o elemento sistemático e considerarmos a inclusão da expressão no
próprio preceito determinar-se-á que o que está em causa é somente um estado

144
Introdução ao Estudo do Direito II 145
Daniel Vieira Lourenço – Turma B

mental negativo ou frágil. O elemento teleológico também aponta para essa situação,
uma vez que não faz sentido que se viesse anular um negócio por quem o tivesse
celebrado num estado mental firme e lúcido. Assim, se conclui, que o real sentido
não abrange qualquer estado mental mas unicamente os estados mentais negativos e
depressivos, o que implica uma restrição do preceirto por consideração dos
elementos lógicos. A interpretação nestes termos não vem pôr em causa o artigo
9º/2CC, pois os estados mentais negativos ou depressivos ainda cabem dentro da
expressão mais ampla “estado mental”.

Esta classificação dos resultados da interpretação é compatível, com o afirmado


anteriormente, quando foi referido que a interpretação é limitada pelo sentido literal
possível?

Larenz assinala que nem sempre é claro o que se entende por interpretação extensiva e
restritiva. Que o fim último da interpretação não é a averiguação da “vontade real” do
legislador histórico mas o significado jurídico atual da lei. Que este significado se deve
encontrar sempre dentro do sentido possível do enunciado linguístico. Interpretação extensiva
ou restritiva não poderia por isso significar mais que a opção, entre os sentidos literais
possíveis, por um sentido lato ou restrito.

Embora a classificação tradicional seja geralmente aceite entre nós, também não é contestado
que, de acordo com o art. 9.º/2 CC não pode ser acolhida uma interpretação “que não tenha
na letra da lei um mínimo de correspondência verbal”. Se identificarmos este mínimo de
correspondência verbal com o sentido literal possível, poderemos ainda afirmar que a
interpretação se tem de conter nos limites definidos pelo sentido possível do enunciado
linguístico.

Em todo o caso, a interpretação extensiva e restritiva pode distinguir-se da interpretação


declarativa lata ou restrita na medida em que pressupõe que o sentido normativo, ainda
que dentro do sentido literal possível, está imperfeitamente expresso no enunciado da lei.

Há toda a vantagem em estabelecer uma distinção clara entre interpretação e aplicação


analógica ou redução teleológica da lei. Só o critério do sentido literal possível parece fornecer
um critério seguro para esta distinção:

✓ A aplicação de uma regra a situações que não cabem no sentido literal possível
da proposição jurídica terá de ser fundamentada em analogia.
✓ A exclusão do âmbito de aplicação de uma regra de situações sem fundamento
no sentido literal possível terá de ser justificada por redução teleológica.

A Dita “Interpretação Enunciativa”. O Argumento “A Contrario”

Dias Marques refere-se ao procedimento denominado “interpretação enunciativa” que prefere


designar por “descoberta de normas implícitas”. Esta descoberta faz-se mediante argumentos
lógicos entre os quais se conta o argumento a contrario. Mas também o argumento a minori ad
maius – a lei que proíbe o menos proíbe o mais – e a maiori ad minus - a regra que permite o
mais permite o menos, designadamente.

145
Introdução ao Estudo do Direito II 146
Daniel Vieira Lourenço – Turma B

Também Oliveira Ascensão se refere à interpretação enunciativa como terceiro processo de


determinação das regras jurídicas, a par da interpretação propriamente dita e da
integração de lacunas.

Esta interpretação enunciativa pressupõe “a prévia determinação de uma regra” ao passo


que a interpretação em sentido técnico consiste na obtenção da regra a partir da fonte. E
consiste na obtenção, a partir da regra previamente determinada, de outra regra,
mediante processos exclusivamente lógicos.

Oliveira Ascensão assinala, todavia, que a admissibilidade desta interpretação enunciativa é


fortemente contestável, principalmente porque se pode dizer que em todos estes casos está
implícita uma valoração, não sendo portanto exato que a nova regra se obtém por
processos exclusivamente lógicos.

Na visão das coisas que se me afigura preferível, o que está em causa, nestes casos, ou é ainda
interpretação em sentido técnico ou é integração de lacunas.

✓ Quando a regra implícita ainda encontra um mínimo de apoio no texto da lei, trata-se,
como nos outros casos de interpretação, de apurar o sentido normativo de uma
proposição jurídica. Com esta especificidade: procura-se inferir, a partir de um
enunciado linguístico, de uma proposição jurídica, mais do que uma regra.
✓ Nas hipóteses mais frequentes, a “regra implícita” não encontra um mínimo de apoio no
texto da lei, razão por que se trata de justificar uma solução por meio dos critérios que
orientam a integração de lacunas.

Em ambos os casos podem ser utilizados argumentos lógicos, mas os critérios decisivos são
sempre teleológicos. Os argumentos a minori ad maius e a maiori ad minus podem ser
entendidos teleologicamente, reconduzindo-se então ao argumento de maioria de razão (a
fortiori).

Interpretação Enunciativa (Sandra Lopes Luis)

Interpretação enunciativa é aquela em que o intérprete deduz dum preceito uma regra que nela
está contida, usando para tal certas inferências ou argumentos lógico-jurídicos.

Na interpretação em sentido estrito visa-se apenas descobrir o sentido real, que tem na lei pelo
menos uma explicitação mínima. Na inferência lógica de regras implícitas trata-se de com base
em regras já existentes, inferir outras regras, que estão expressamente formuladas, através de
processos lógicos de inferência.

 Interpretação em Sentido Restrito – o sentido da lei está explicito, por isso, o


intérprete limita-se a retirar uma regra que tem na letra da lei um “mínimo de
correspondência verbal”: Letra + Lei = Sentido X (ou regra X).
 Interpretação Enunciativa – o sentido da lei está implícito, por isso, o intérprete,
através de processos lógicos de inferência, retira da lei outras regras não expressamente
formuladas: Da regra X, o espirito da lei permite retirar a regra Y (uma nova regra
sem correspondência na letra da lei, mas implicitamente manifestada).

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Introdução ao Estudo do Direito II 147
Daniel Vieira Lourenço – Turma B

Podem-se separar 4 argumentos:

1) “A minori ad maius” – a lei que proíbe o menos, também proíbe o mais, por exemplo,
se uma norma proíbe aos menores de 21 anos a administração de bens imóveis, é
possível inferir que a venda dos mesmos lhes está vedada;
2) “A minori ad minus” – a lei que permite o mais, também permite o menos, por
exemplo, se uma lei permite a venda de um certo bem, é possível inferir a possibilidade
de empréstimo desse mesmo bem;
3) “A Contrario” – da disciplina excepcional para certo caso, deduz-se um principio regra
oposto para os casos não abrangidos pela norma excepcional: o regime excepcional leva
aos regimes regra, por exemplo, o artigo 875ºCC;
4) “A legitimidade dos fins, justifica os meios” – a lei que proíbe ou permite o fim, proíbe
ou permite o meio, por exemplo, se uma lei permite a caça, em certas áreas delimitadas,
a uma categoria de cidadãos, é possível inferir a legalidade da venda de caçadeiras a
essa mesma classe de pessoas.

 Admissibilidade da Interpretação Enunciativa

A interpretação enunciativa é contestada por alguns, mas admite-se, em geral, como uma
modalidade de interpretação quanto ao resultado (o ponto de partida é a lei).

Em sentido inverso, Oliveira Ascensão considera a interpretação enunciativa como uma terceira
categoria de determinação de regras, ao lado da interpretação e integração de lacunas.

“Interpretação Corretiva” E Interpretação Ab-Rogante

 A dita interpretação corretiva é o procedimento pelo qual o resultado da interpretação é


afastado, modificado ou corrigido pelo intérprete com fundamento em injustiça,
inoportunidade ou inconveniência.

A defesa da interpretação corretiva encontra um precursor em Aristóteles. Na atualidade,


alguns autores jusnaturalistas entendem que a interpretação corretiva é excecionalmente
admissível quando o sentido normativo apurado seja contrário ao Direito Natural. Em
rigor, porém, não se trata então de interpretação mas de uma correção fundada em limites
que se entendem ser supra-positivos. É neste sentido que Oliveira Ascensão defende que a
“ordem natural” deve prevalecer sobre o sentido da fonte que se lhe revele contrário.

Também os defensores de uma grande liberdade dos juízes na aplicação da lei, designadamente
a Escola do Direito Livre, tendem a encarar as regras jurídicas como critérios instrumentais ou
orientadores de que o intérprete pode, pelo menos em casos extremos, desvincular-se, quando
tal seja exigido pela justiça do caso concreto.

A opção do legislador do Código Civil foi claramente contra a admissibilidade da dita


interpretação corretiva.

Do art. 9.º do Anteprojeto de Manuel De Andrade constava que “É consentido restringir o


preceito da lei quando, para casos especiais, ele levaria a consequências graves e imprevistas
que certamente o legislador não teria querido sancionar”. Este texto não passou para o Código
Civil. Antes pelo contrário, o legislador estabeleceu, no art. 8.º/2, que o “dever de obediência

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Introdução ao Estudo do Direito II 148
Daniel Vieira Lourenço – Turma B

à lei não pode ser afastado sob pretexto de ser injusto ou imoral o conteúdo do preceito
legislativo”.

Também do art. 203.º CRP, atrás examinado, decorre que os tribunais estão vinculados à lei, e
esta vinculação à lei – como observa Teixeira De Sousa –, é uma importante garantia do Estado
de Direito e um corolário da divisão de poderes, porque ela não só assegura a prevalência da
lei sobre as convicções pessoais ou o sentimento do juiz, mas também obsta a que o juiz
sobreponha a sua vontade à do legislador.

O mesmo resulta, mais amplamente, do sentido e estrutura geral do sistema jurídico português,
de acordo com o anteriormente exposto.

Claro é que, com esta tomada de posição do legislador, não se elimina a questão das exigências
supra-positivas que se coloquem ao Direito vigente. Esta questão já foi anteriormente
examinada, não havendo qualquer razão para a recolocar a propósito da interpretação.

É ainda de observar que algumas das preocupações a que a dita interpretação corretiva
procurou responder podem ser atendidas, ainda que limitadamente, mediante institutos
jurídico-positivos como o abuso do direito (art. 334.º CC), bem como mediante o
procedimento de redução teleológica.

 A interpretação ab-rogante é aquela em que da interpretação não resulta qualquer sentido


útil. A interpretação ab-rogante significa, portanto, que de uma determinada proposição
jurídica não se pode retirar qualquer critério de orientação ou decisão num caso concreto.

Isto pode verificar-se, desde logo, em três casos.

 Primeiro, quando a proposição jurídica não é inteligível.


 Segundo, quando uma proposição jurídica remeta para um regime que não existe no
sistema jurídico.
 Terceiro, quando ocorre uma contradição entre normas. Há uma contradição entre
normas quando duas normas vigentes geram consequências jurídicas incompatíveis.

Perante uma contradição normativa, se não se encontrar justificação para dar prevalência a uma
das normas sobre a outra, é inevitável concluir que nenhuma delas pode ser aplicada na
resolução do caso.

Questiona-se também se as contradições valorativas não poderão levar à conclusão que há uma
“falta de sentido”.

Resulta do anteriormente exposto que, salvaguardada a hipótese de inconstitucionalidade, a


contradição valorativa não prejudica a aplicação das normas em causa.

Resta saber se será adequado falar de interpretação ab-rogante a respeito das contradições
normativas, uma vez que se trata, afinal, da descoberta de uma lacuna no quadro do normal
processo de interpretação da lei.

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Introdução ao Estudo do Direito II 149
Daniel Vieira Lourenço – Turma B

Interpretação Corretiva (Sandra Lopes Luis)

A interpretação correctiva verifica-se quando o sentido real da lei é afastado, modificado ou


corrigido pelo intérprete. Com fundamento em injustiça ou inoportunidade. Atende à ideia de
que o legislador não teria querido aquela norma se tivesse previsto o seu resultado.

A interpretação correctiva é diferente:

 Da Interpretação Extensiva e Restritiva – Porque na interpretação correctiva o


sentido real não é aceite (da lei X decorre a regra X, e o intérprete não concorda
com a regra X;
 Da Interpretação Abrogante – Porque nesta não existe regra.

Interpretação Abrogante (Sandra Lopes Luís)

Interpretação abrogante é aquela em que o intérprete reconhece que o sentido da lei é


indecifrável, ou seja, que é impossível determinar o seu conteúdo, isto porque existe uma
incompatibilidade ou contradição insanável entre o espirito e a letra da lei –do confronto entre a
letra e o espirito da lei não é possível retirar qualquer sentido ou significado à lei. Por estes
motivos, o intérprete limita-se a reconhecer que a fonte jurídica não apresenta nenhuma regra:
“ele não mata a regra, apenas verifica que ela está morta”.

Modalidades de Interpretação Abrogante

 Interpretação Abrogante Lógica – Resulta da incongruência insanável de preceitos


interpretados, o que leva a uma impossibilidade prática de solução: “Não pode ser
assim!”
 Interpretação Abrgante Valorativa – Verifica-se quando os valores subjacentes às
disposições em causa forem incompatíveis entre si, isto é, os preceitos interpretados são
informados por critérios valorativos opostos ou contraditórios – “Não deve ser assim!”
 Admissibilidade na Doutrina da Interpretação Abrogante Lógica

A interpretação abrogante tem um carater excepcional no Direito Português, ocorre em casos


muito raros porque o intérprete está sujeito ao princípio do aproveitamento máximo das leis (art.
9º/3) e, como tal, tem o dever de descobrir-lhes, sempre, um sentido útil.

Verifica-se em 3 casos:

 Quando se conclui que um artigo é carecido de qualquer sentido, após a utilização de


todos os mecanismos de interpretação possíveis para retirar um sentido à regra, por
exemplo, se o artigo 66º/1CC tivesse a redacção “a personalidade jurdica adquire-se
com o nascimento completo e com morte”;
 Quando a lei remete para um regime jurídico que não existe;
 Quando as leis apresentem disposições contraditórias, sem que se possa falar de
revogação, por exemplo, se o artigo 68º dissesse “a personalidade cessa com a vida”,
seria incompatível com o artigo 66º CC que dispõe que “a personalidade adquire-se no
nascimento compelto e com vida”.

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Introdução ao Estudo do Direito II 150
Daniel Vieira Lourenço – Turma B

 Admissibilidade na Doutrina da Interpretação Abrogante Valorativa

Oliveira Ascensão considera inadmissível, em Portugal, a interpretação abrogante valorativa,


porque se o legislador pôs simultaneamente em vigor duas regras, a valoração do intérprete não
se pode substituir à do legislador, preferindo uma, ou, considerando as duas liquidadas. Em
sentido diverso, o professor Miguel Galvão Teles permite esta modalidade de interpretação
quando a incompatibilidade valorativa for particularmente grave.

Interpretação Do Direito Consuetudinário E Dos Precedentes

No que toca ao costume não basta demonstrar a existência de uma prática social reiterada
(uso). É preciso demonstrar também que esta prática corresponde a uma convicção de
vinculatividade jurídica. Para este efeito torna-se necessário determinar o sentido da prática
social reiterada, interpretá-la.

De onde resulta que não se pode isolar a questão da interpretação da questão da existência da
regra consuetudinária. Por outras palavras, saber se uma prática social reiterada corresponde
a um costume é já um problema de interpretação. É ainda necessário determinar o conteúdo da
regra consuetudinária. Podemos por isso dizer que na interpretação do Direito consuetudinário
se trata fundamentalmente de formular linguisticamente a norma indicada pela conduta
(Larenz).

Se excluirmos o costume constitucional, o costume tradicional não é uma fonte do Direito muito
importante nos sistemas jurídicos modernos. Mas já assume maior importância aquela
modalidade de costume jurisprudencial. Ora, a interpretação do costume jurisprudencial
exige uma interpretação das decisões judiciais em que se baseia.

As regras criadas ou desenvolvidas pelas decisões judiciais são até certo ponto expressas
linguisticamente na fundamentação das mesmas.

Mas a determinação do sentido da regra é frequentemente dificultado porque, tratando-se


de decisões de casos concretos, não há uma delimitação clara, por forma geral e abstrata,
da previsão da norma. Por isso, é muitas vezes problemático se a solução retida num caso
deve ou não ser aplicada noutro caso.

Estes problemas são importantes, não só perante o costume jurisprudencial, mas também pelo
papel que a comparação de casos e o “raciocínio de caso para caso” pode e deve desempenhar
na interpretação e integração da lei.

Em todos estes casos, o intérprete tem de distinguir, na sentença, além da decisão propriamente
dita, a fixação da situação jurídica, os enunciados sobre os factos, o critério de decisão e outras
considerações que não constituem, em rigor, fundamento da decisão.

O fim da interpretação dos precedentes é apurar qual a ideia normativa em que o tribunal
se baseou para chegar à solução do caso. O que conta é o critério ou critérios jurídicos em
que o tribunal baseou a sua decisão (aquilo que nos sistemas do Common Law se designa
por ratio decidendi). Se relacionarmos isto com o esquema do silogismo judiciário, diremos
que o critério de decisão, ou ratio decidendi, constitui a premissa maior.

Por vezes as decisões referem regras ou princípios que não constituem, em rigor, fundamento da
solução do caso. Estas considerações que não constituem fundamento da solução são nos

150
Introdução ao Estudo do Direito II 151
Daniel Vieira Lourenço – Turma B

sistemas do Common Law designadas por obiter dicta. Pode tratar-se de regras ou princípios
que vão além do que é necessário para a decisão do caso concreto ou que são relativos a
situações hipotéticas diferentes.

O intérprete deve distinguir claramente o que é ratio decidendi e o que é obiter dicta. O que
conta para extrair de um conjunto de decisões judiciais uma solução uniforme e constante, que
constitua a base de um costume jurisprudencial, é igualmente o critério de decisão que nelas foi
seguido.

Na resolução dos problemas de interpretação e integração, para que se promova a uniformidade


da jurisprudência e se atue em conformidade com o princípio da igualdade, os diferentes casos
têm de ser comparados entre si à luz do critério de decisão que foi adotado pelas decisões
anteriores. As considerações feitas em obiter dicta têm um valor inferior, que pode ser
equiparado ao das opiniões jurídicas formuladas pela doutrina.

O intérprete tem ainda de procurar delimitar o âmbito de aplicação da ratio decidendi,


separando os elementos da situação de facto que são relevantes para a sua atuação dos que são
irrelevantes. Na interpretação-aplicação isto tem normalmente lugar quando se questiona se a
solução que foi anteriormente dada a um determinado caso deve ou não ser aplicada a um novo
caso.

Há aqui um raciocínio por analogia, porque se trata de saber se os casos são análogos, ou, por
outras palavras, se as razões que justificaram a solução dada no caso anterior também
procedem no caso vertente. O intérprete tem de examinar se o caso vertente apresenta os
mesmos elementos que foram relevantes na decisão do caso anterior e se, além disso, não
apresenta elementos, que estando ausentes no caso anterior, poderão justificar uma solução
diferente.

 Por vezes a indagação sobre o critério de decisão levará o intérprete apenas a um princípio
jurídico, porque não será possível determinar suficientemente uma previsão e uma
estatuição.

Para a determinação do sentido normativo da decisão judicial o intérprete tem de partir do


sentido literal dos enunciados linguísticos que constam do texto da decisão e do respectivo
contexto significativo.

▪ Quanto à determinação do sentido literal, são especialmente importantes os usos


linguísticos dos juristas e, em particular, aqueles que são mais seguidos pelos juízes.
▪ Quanto ao contexto significativo, a relação material controvertida é um dos elementos
que devem ser tidos em conta.

Quando perante o sentido literal e o contexto significativo houver mais de uma interpretação
possível, parece legítimo que o intérprete atenda a critérios teleológico-objectivos. Com
efeito, o tribunal está vinculado aos valores e princípios da ordem jurídica e, por
conseguinte, eles devem ser tidos em conta na determinação do sentido normativo da
decisão, mesmo que a fundamentação da decisão não o evidencie.

Também vale para a interpretação do Direito consuetudinário e dos precedentes o critério


da interpretação conforme à Constituição.

151
Introdução ao Estudo do Direito II 152
Daniel Vieira Lourenço – Turma B

Interpretação e Integração Capítulo IX


Integração de Lacunas
O conteúdo ou o sentido de uma lei é
decifrado através da interpretação ▪ Interpretação e integração
(interpretação declarativa, extensiva e
restritiva). Descobrem-se regras implícitas ▪ O dever de integrar a lacuna
através do exame de uma lei (interpretação
▪ Lacuna e situação extrajurídica
enunciativa). A integração de lacunas é a
atividade de colmatar omissões ou vazios em
▪ Espécies de lacunas e sua
domínio que o Direito deveria reger. determinação. A redução
teleológica
As disposições que regulam esta matéria são,
essencialmente os artigos 8/1, 10 e 11 CC.
▪ Integração de lacunas – em geral
Artigo 8/1 CC
▪ Integração de lacunas: a
1. “O tribunal não pode abster-se de analogia
julgar, invocando a falta ou
obscuridade da lei ou alegando ▪ Proibições do uso da analogia
dúvida insanável acerca dos factos
▪ Integração de lacunas: o recurso
em litigio.”
a princípios jurídicos. A dita
Artigo 10 CC analogia iuris, de Direito ou
global
1. “Os casos que a lei não preveja são
regulados segundo a norma ▪ Integração de lacunas: a criação
aplicável aos casos análogos. de um critério de decisão pelo
2. Há analogia sempre que no caso intérprete
omisso procedam as razões
▪ Limites à integração de lacunas
justificativas da regulamentação do
caso previsto na lei.
3. Na falta de caso análogo, a situação
é resolvida segundo a norma que o
próprio intérprete criaria, se
houvesse de legislar dentro do
espírito do sistema.”

Artigo 11CC

1. “As normas excepcionais não


comportam aplicação analógica,
mas admitem interpretação
extensiva.”

152
Introdução ao Estudo do Direito II 153
Daniel Vieira Lourenço – Turma B

Lacuna Jurídica (Sandra Lopes Luís)

A lacuna existe quando se verifica a ausência de uma regra jurídica para reger certa
matéria, que deve ser prevista e regulada pelo Direito. Se considerarmos o sistema
jurídico como um puzzle, a lacuna será a ausência de uma peça desse puzzle. Devem
verificar-se dois requisitos:

 Inexistência de Disciplina Jurídica ou Vazio Jurídico;


 Imprescindibilidade Dessa Disciplina – o vazio respeita matéria que o Direito não
pode ignorar e que deve ser juridicamente conformada. A lacuna não se esgota na
ausência de lei, se existir uma regra costumeira/jurisprudencial aplicada ao caso não
haverá lacuna. Do mesmo modo, é relevante demarcar fronteiras entre o Direito e as
outras ordens normativas, assim, não haverá lacuna, por exemplo, se não existir
regulação jurídica das formas de saudação dos vizinhos (neste caso, estariam em
causa somente regras do trato social);

Espécies de Lacunas (Sandra Lopes Luis)

 Lacunas Voluntárias e Involuntárias


▪ Lacunas Voluntárias – a falta de disciplina decorre da vontade do legislador,
que propositadamente não quis resolver a questão e deixou-a para a
jurisprudência; por exemplo, a questão da eutanásia ou das barrigas de
aluguer;
▪ Lacunas Involuntárias – O legislador não previu a situação, por isso, não
elaborou a lei, casos em que, por lapso, o legislador não teve conhecimento da
situação ou pensou erradamente que já estava disciplinada;
 Lacunas Iniciais e Posteriores
▪ Lacunas Iniciais – Surgem na altura em que o legislador legisla;
▪ Lacunas Posteriores – Decorrem de novas questões que aparecem por
motivos da evolução técnica ou económica, e determinam não a aplicação de
certa lei que se tornou desajustada, por exemplo, contrato de compra e venda
pela internet;
 Lacunas de Previsão e de Estatuição
▪ Lacunas de Previsão – Resultam da falta de previsão de uma certa situação
de facto;
▪ Lacunas de Estatuição – Resultam da inexistência de consequências a que o
Direito faz corresponder a verificação de certa situação de facto, por
exemplo, quando se afirma que haverá um certo prazo para a verificação de
um acto mas se esquece de determinar tal prazo.
 Lacunas da Lei e do Direito
▪ Lacunas da Lei – Surgem ao nível do Direito legislado e revestem as
seguintes modalidades:
- Manifestas – Quando a lei não contem nenhuma norma jurídica e
devesse conter;

153
Introdução ao Estudo do Direito II 154
Daniel Vieira Lourenço – Turma B

- Ocultas – Quando a lei contém uma norma jurídica aplicável a um


conjunto genérico de situações mas não previu regras para certos
casos específicos a que as primeiras não se podem aplicar;
- De Colisão – Quando várias normas contraditórias regulam uma
dada situação, e, na falta de um critério que afaste um eventual
conflito, nenhuma se aplica
▪ Lacunas de Direito – Verificam-se ao nível mais amplo do ordenamento
jurídico, que sendo um sistema aberto e sujeito a constante evolução, é
susceptível de ser lacunoso, por exemplo, a não regulamentação de
direitos económicos, sociais e culturais ou das novas áreas do Direito
Administrativo especial.

Fundamento da Existência de Lacuna (Sandra Lopes Luis)

O ordenamento jurídico é lacunoso por natureza, pelo facto das suas fontes não
conseguirem abranger todas as situações hipotéticas. Destacam-se as seguintes razões:

 A Imprevisibilidade – o constante desenvolvimento social, económico e


tecnológico, faz com que muitas vezes o Direito seja capaz de prever e regular
com antecedência certos aspectos da vida das pessoas.
 A Intenção do Legislador de não Disciplinar Certa Matéria – Sucede quando
o conhecimento de certas matérias é muito incipiente e não existe um consenso
social suficiente que permita ao legislador tomar uma posição, razão pela qual
este prefere deixar a resolução da questão aos órgãos que aplicam o Direito, por
exemplo, a questão da eutanásia.

Numa primeira aproximação podemos dizer que temos uma lacuna quando não
encontramos, através da interpretação das proposições jurídicas vigentes,
mormente a lei e o costume, uma regra diretamente aplicável a um caso carecido
de regulação jurídica.

 Há desde logo uma lacuna quando uma situação da vida carecida de regulação
jurídica não cabe no sentido literal possível de qualquer proposição jurídica
completa.
 Por outro lado, pode suceder que uma situação seja abrangida pelo sentido
literal possível de uma proposição jurídica, mas que os critérios teleológicos de
interpretação nos levem a concluir que, afinal, a situação não é reconduzível à
previsão da regra.

 Por tudo isto a interpretação é prévia à integração de lacunas. Só depois de


interpretadas as proposições jurídicas vigentes se pode saber se há ou não uma
norma aplicável à situação carecida de regulação jurídica.

A delimitação entre interpretação e integração não se traça, porém, sem dificuldades. Já


contactámos com estas dificuldades a respeito da chamada interpretação extensiva e
restritiva.

154
Introdução ao Estudo do Direito II 155
Daniel Vieira Lourenço – Turma B

Segundo o entendimento corrente entre nós uma proposição jurídica ainda é diretamente
aplicável a uma situação quando esta não cabe na letra da lei mas está compreendida no
seu espírito. Seria uma caso de interpretação extensiva.

 Só haveria lacuna quando a situação não fosse compreendida nem pela letra
nem pelo espírito da lei.

Pelas razões atrás expostas, o professor Lima Pinheiro considera preferível o


entendimento seguido por autores como Betti e Larenz, segundo o qual há lacuna a
partir do momento em que a situação carecida de regulação jurídica não cabe no
sentido literal possível da proposição jurídica. Esta posição parece defensável face ao
art. 9.º CC, porquanto o seu n.º 2 estabelece que não pode ser considerado pelo
intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de
correspondência verbal.

O Dever de Integra a Lacuna

O órgão de aplicação do Direito tem o dever de integrar a lacuna. Perante uma


situação, que embora carecida de regulação jurídica, não seja objeto de qualquer
norma jurídica, o tribunal não pode denegar justiça.

✓ Desde logo o proíbe o art. 8.º/1 CC, segundo o qual “O tribunal não pode
abster-se de julgar, invocando a falta ou obscuridade da lei ou alegando
dúvida insanável acerca dos factos em litígio”.
✓ No mesmo sentido dispõe o art. 3.º/2 do Estatuto dos Magistrados Judiciais (Lei
n.º 21/85, de 30/7).
✓ A denegação de justiça constitui mesmo um crime, tipificado no art. 369.º/1 CP.
✓ Este dever de integrar a lacuna também tem um fundamento constitucional.

Lacuna e Situação Extrajurídica

Não há lacuna sempre que falta uma proposição normativa aplicável. Só há lacuna
se a situação não prevista carece de regulação jurídica.

Ora, a maior parte das situações da vida não é prevista nem regulada pelo Direito.

Por exemplo, se alguém se queixa de que o vizinho não o cumprimenta quando se cruza
com ele na rua, parece claro que esta situação não tem relevância jurídica.

Trata-se de situações que são extramuros da ordem jurídica.

Só há uma lacuna quando a situação deve ser juridicamente regulada. Neste


sentido dispõe expressamente o art. 3.º/2 do Estatuto dos Magistrados Judiciais.

A fronteira entre as situações carecidas de regulação jurídica e situações que o não são
nem sempre é fácil de traçar.

155
Introdução ao Estudo do Direito II 156
Daniel Vieira Lourenço – Turma B

 Isto sucede designadamente naqueles casos em que a moral impõe uma conduta ou
confere um direito. A este respeito há também que ter em conta os traços
distintivos relativamente à delimitação entre ordem jurídica e moral. Mas a
mera descrição destes traços não resolve todos os problemas, porque há uma
importante área de sobreposição da moral e do Direito.

 Noutros casos ainda, a situação não é abrangida quer por regras jurídicas quer
por regras extrajurídicas, sem que seja evidente que se trata de uma situação
extramuros da ordem jurídica. Nestes casos difíceis saber se uma situação carece de
regulação jurídica é uma questão de valoração. Os critérios para esta valoração
têm de se encontrar no Direito vigente. Importa averiguar se os valores da ordem
jurídica justificam uma regulação vinculativa no caso.
▪ A resposta deve ser afirmativa quando se verifica que a situação é
abrangida pela ideia orientadora que está subjacente a determinado
complexo normativo. A este respeito fala-se, por vezes, de uma “falha no
plano do legislador”.
▪ Claro é que não há lacuna quando o legislador, conscientemente, não
regulou uma determinada situação, ou não consagrou um
determinado instituto jurídico, por entender que a situação não
carece de regulação jurídica ou por não querer dar acolhimento a
determinado instituto. Se a falha é “conforme ao plano” não há uma
lacuna.

 Diferente é a situação em que o legislador não regulou uma determinada


situação por entender que, apesar de carecida de regulação jurídica, ainda
não encontrou uma solução legal adequada, devendo a mesma ser
desenvolvida pela jurisprudência e pela doutrina. Também se fala a este
respeito de “lacunas intencionais”. Neste caso existe uma lacuna, apesar de
não existir uma “falha no plano do legislador”.

 Também se suscitam dificuldades, em ligação com a teoria geral do negócio


jurídico, quando as partes chegam a um acordo que poderia constituir um
contrato válido e eficaz, mas manifestam a intenção de não se vincularem
juridicamente. Se entendermos por negócio jurídico um ato intencional dirigido
à produção de efeitos jurídicos (efeitos que a ordem jurídica lhe imputa em razão
desta intencionalidade), parece que podemos admitir estes “acordos de
cavalheiros”.

Estas diretrizes ajudam a resolver muitas das dificuldades na delimitação das


situações carecidas de regulação jurídica, mas não todas.

 Subsiste uma controvérsia relativamente às situações que, embora não sendo


abrangidas pela intencionalidade normativa da lei, seriam dignas de tutela jurídica
perante a ordem jurídica considerada no seu conjunto, os seus princípios gerais e

156
Introdução ao Estudo do Direito II 157
Daniel Vieira Lourenço – Turma B

valores. É questionado se, aqui, ainda há uma lacuna que o órgão de aplicação pode
(e deve) integrar ou se apenas será possível tutelar juridicamente esta situação
através de um processo de “aperfeiçoamento do Direito para além da lei”.

A doutrina portuguesa parece favorecer o primeiro entendimento, permitindo


afirmar que a lacuna não é só uma “falha no plano do legislador” mas também
qualquer falha que contraria o plano do sistema jurídico.

Espécies de lacunas e sua determinação. A redução teleológica

A literatura jurídica dá conta de diversas classificações de lacunas.

 O professor Oliveira Ascensão distingue lacuna de previsão e lacuna de


estatuição.
▪ Na primeira modalidade falha a previsão de um caso que deve ser
juridicamente regulado.
▪ Na segunda, há previsão, mas não se estatuíram os efeitos jurídicos
correspondentes.

 O autor também se refere às lacunas ocultas que, naturalmente, se contrapõem às


lacunas patentes.

 Baptista Machado distingue entre lacunas da lei e lacunas do Direito.

 Este autor também distingue entre lacunas patentes e ocultas.

 Enfim, Baptista Machado refere as “lacunas de colisão” lógicas e teleológicas


que são as que resultariam das contradições normativas e valorativas que já
foram anteriormente caracterizadas.

Decorre do então exposto que, na opinião do professor Lima Pinheiro, só as


contradições normativas, em que duas normas aplicáveis à mesma situação
desencadeiam consequências jurídicas entre si incompatíveis, podem gerar
“lacunas de colisão”.

 A lacuna patente é frequentemente identificada com os casos de “silêncio da lei”.


Pelas razões que atrás foram expostas é mais rigoroso dizer que há uma lacuna
patente quando a situação não é abrangida pelo sentido literal possível de
qualquer proposição jurídico-normativa.

 Por seu turno, há uma lacuna oculta quando uma situação é abrangida pelo
sentido literal possível de uma proposição jurídico-normativa, mas por força de
uma interpretação restritiva, de uma interpretação ab-rogante ou de uma
redução teleológica vem a concluir-se que, em última análise, tal proposição
jurídica lhe não é aplicável. Naturalmente que nem toda a interpretação restritiva
ou redução teleológica conduz à revelação de uma lacuna oculta.

157
Introdução ao Estudo do Direito II 158
Daniel Vieira Lourenço – Turma B

▪ Isto não se verifica, designadamente, quando destes procedimentos resulta que a


situação deve ser considerada extrajurídica ou fica abrangida pela
aplicabilidade de outra norma (designadamente uma norma que é geral
relativamente à norma que resulta de uma interpretação restritiva ou que foi
sujeita a redução teleológica).

 O Procedimento De Redução Teleológica

À semelhança do que se verifica com a interpretação restritiva, também no caso da


redução teleológica é por força de critérios teleológicos que a situação é subtraída ao
campo de aplicação da regra que, à primeira vista, a regula.

✓ Só que na interpretação restritiva, segundo o professor Lima Pinheiro, esta


limitação da hipótese normativa ainda corresponde a um dos sentidos literais
possíveis, ao passo que a redução teleológica fica aquém do sentido literal
possível.
✓ Observe-se que a quem siga o entendimento dominante entre nós sobre os
limites da interpretação, poderá parecer defensável que os casos de redução
teleológica sejam reconduzidos à interpretação restritiva, com a consequente
negação de autonomia ao procedimento da redução teleológica.

A redução teleológica é um importante instrumento de diferenciação do Direito.


Com efeito ela permite estabelecer um regime jurídico diferente para situações
que, em primeira análise, se encontravam submetidas à mesma disciplina jurídica.

Esta diferenciação é um corolário do princípio da igualdade, segundo o qual aquilo


que é desigual deve ser tratado desigualmente. Os traços específicos da situação em
presença vêm a justificar uma valoração diferente desta situação, esta diferença de
valoração exige uma diferenciação, um tratamento diferente para esta situação.

✓ A redução teleológica pode, em primeiro lugar, ser prescrita pelo fim da


própria norma a limitar. É o que se verifica quando se puder apurar que,
segundo a intenção do legislador histórico, a norma não deve abranger uma
situação que cabe na sua letra.

✓ Quando não puder ser demonstrada a intenção do legislador histórico, ou esta


não for inequívoca, a redução pode também resultar da atuação de critérios
teleológico-objectivos.

Mas não estará isto em contradição com o art. 9.º/2 CC quando dispõe que não pode
ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei
um mínimo de correspondência verbal?

 Em principio, não há contradição. O art. 9.º rege a interpretação e aqui já não


se trata de interpretação. Se é permitida a aplicação analógica da regra, por

158
Introdução ao Estudo do Direito II 159
Daniel Vieira Lourenço – Turma B

se entender que a intenção normativa abrange o caso omisso, também deve


ser permitida a redução teleológica, que é o procedimento inverso: a
intenção normativa não abrange o caso previsto na regra. Ambos os
procedimentos encontram o seu fundamento no princípio da igualdade.

A redução teleológica também pode resultar de contradições normativas e,


porventura, da consideração de outros princípios e valores da ordem jurídica.

Já se deve encarar com muita reserva a redução teleológica fundada em valores e


princípios da ordem jurídica, que se contraponham à intencionalidade da norma em
causa e que não suscitem um problema de constitucionalidade. E isto porque as decisões
tomadas pelo legislador devem em princípio ser respeitadas e a “estranheza” da norma
“relativamente ao sistema” não coloca, por si, em causa a sua vigência.

Quando muito, parece de admitir que o desenvolvimento da ordem jurídica, posterior à


criação da lei, ou a evolução social entretanto verificada, podem vir a justificar uma
diferenciação. Mas então já não se trata de algo estranho à determinação da
intencionalidade da norma em causa, mas da intervenção de critérios teleológico-
objectivos justificada pela evolução da ordem jurídica ou do contexto social.

Integração De Lacunas

O órgão de aplicação tem o dever de integrar a lacuna. Também se fala, por vezes,
em “suprir” ou em “colmatar” a lacuna. Integrar a lacuna é obter a solução jurídica
do caso. Para o órgão de aplicação, designadamente para o tribunal, isto significa
achar o critério de decisão do caso que lhe é submetido. Claro que o problema da
disciplina jurídica de uma situação que não se encontra diretamente regulada também se
pode colocar independentemente de qualquer processo jurisdicional, e, mesmo,
independentemente de qualquer litígio.

A missão de integrar a lacuna é confiada aos órgãos de aplicação do Direito e, à


semelhança do que se verifica com a interpretação, a todos aqueles que tenham de
determinar a disciplina jurídica aplicável a uma situação.

Oliveira Ascensão distingue processos extrassistemáticos e intrassistemáticos de


integração de lacunas.

 Seriam processos extrassistemáticos a atribuição a um órgão legislativo da


competência para integrar lacunas, os processos discricionários e os processos
equitativos. Estes processos seriam caracterizados por não assegurarem a
conformidade da solução com o sistema.
 Contrapor-se-iam aos processos intrassistemáticos, que seriam os que se
encontram consagrados no art. 10.º CC.

Haveria um processo discricionário de integração de lacunas quando fosse confiado a


uma entidade administrativa o poder de resolver, com base em razões de conveniência,
as situações em que não existisse regra.

159
Introdução ao Estudo do Direito II 160
Daniel Vieira Lourenço – Turma B

No entanto, oferece dúvida que se possa falar aqui de lacuna. Não se trata de uma
“falha no plano do legislador” mas da atribuição, pela lei, de um poder de
determinação de consequências jurídicas cujo exercício não está submetido a
regras. Por outras palavras, parece tratar-se de um processo de solução de casos por
via não normativa, e não de um processo de integração de lacunas.

O terceiro processo extrassistemático seria o equitativo. O acordo num julgamento de


equidade é possível quer haja ou não regras diretamente aplicáveis ao caso e,
portanto, é claro que a equidade transcende o problema da integração de lacunas.
O que se coloca agora é a questão de saber se a equidade pode constituir um processo
de integração de lacunas.

O legislador do Código Civil de 1966 determinou que, “Na falta de caso análogo, a
situação é resolvida segundo a norma que o próprio intérprete criaria, se houvesse de
legislar dentro do espírito do sistema” (art. 10.º/3).

Assim, na falta de analogia, o intérprete não fica colocado na posição do tribunal


que deve julgar segundo a equidade, mas numa posição diferente, que lhe exige a
formulação de uma proposição jurídica geral e abstrata que seja suscetível de
aplicação em casos futuros. Ao passo que a equidade, como já sabem, não é
orientada à obtenção de uma solução suscetível de generalização, mas uma solução
puramente individualizadora.

 Portanto, a equidade não é actualmente um processo de integração de


lacunas no sistema jurídico português.

Não quer isto dizer, porém, que os processos de integração de lacunas correspondam a
modelos inteiramente intrassistemáticos de decisão e que as soluções a que cheguem
constituam normas jurídico-positivas, que possam desempenhar plenamente uma função
orientadora de condutas.

A integração da lacuna vem a traduzir-se numa apreciação do caso segundo um


critério jurídico. Mas será um critério normativo?

 Quando a lacuna é integrada mediante a aplicação da norma que regula um


caso análogo, o critério é normativo. Mas há uma diferença fundamental entre
a aplicação direta da norma e a sua aplicação analógica. É que o juízo feito pelo
tribunal sobre a aplicação analógica da regra não vincula o mesmo tribunal
ou outros tribunais na decisão futura de casos semelhantes.

 Quando a lacuna é integrada mediante a concretização de um princípio


geral, o critério não é normativo, porque não se baseia em qualquer norma
jurídico-positiva.

Enfim, quando a situação tiver de ser resolvida “segundo a norma que o próprio
intérprete criaria”, o tribunal tem de formular um critério de decisão sob a forma

160
Introdução ao Estudo do Direito II 161
Daniel Vieira Lourenço – Turma B

de uma proposição jurídica geral e abstrata, mas parece claro que não se trata de
uma proposição jurídico-positiva, que o mesmo tribunal ou outros tribunais
estejam vinculados a aplicar na decisão de casos futuros. Portanto, neste caso a
decisão também não se baseia num critério normativo.

A conclusão do professor Lima Pinheiro é que, havendo uma lacuna, o critério de


decisão nem sempre é normativo.

E a integração da lacuna também não altera, por si, a situação normativa


existente. Após a integração continua a haver lacuna.

▪ Se surgir futuramente um caso idêntico ou semelhante o problema volta a


colocar-se e têm de ser atuados os processos de integração de lacunas.

 Claro que a solução pode vir a ser positivada, pela lei ou pelo costume. Só então
os sujeitos dispõem de um critério de conduta seguro por onde se podem orientar.
Mas nesse momento deixará de haver lacuna, porque se terá criado uma norma
diretamente aplicável ao caso.

Por outro lado, na opinião do professor Lima Pinheiro, nem todos os processos de
integração previstos no art. 10.º CC podem ser considerados intrassistemáticos.

Já quando o intérprete procede a um raciocínio por analogia ou à concretização de


princípios jurídicos não há uma delimitação e hierarquização tão clara dos
argumentos relevantes como na decisão fundada na aplicação direta de regras
jurídicas. Nem sempre se pode estabelecer uma hierarquia entre os princípios jurídicos.
O modelo de decisão caracteriza-se pela mobilidade, mas ainda é predominantemente
intrassistemático.

No caso da criação da solução pelo intérprete “como se fosse o legislador”, o modelo de


decisão é predominantemente extrassistemático: o intérprete tem de atender aos
princípios gerais e aos valores do sistema, mas, porquanto não é possível obter a
solução a partir destes princípios e valores, o intérprete tem uma larga margem de
liberdade e tem de lançar mão de argumentos que não se baseiam no sistema.

Integração De Lacunas: A Analogia

A integração de lacunas através da aplicação da regra que regula um caso análogo


é uma decorrência do princípio da igualdade: tratar do mesmo modo os casos
semelhantes.

É o que determina o art. 10.º/1 CC: “Os casos que a lei não preveja são regulados
segundo a norma aplicável aos casos análogos”.

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Introdução ao Estudo do Direito II 162
Daniel Vieira Lourenço – Turma B

 E quando é que dois casos são análogos?

O n.º 2 do mesmo artigo procura dar uma resposta a esta questão: “Há analogia sempre
que no caso omisso procedam as razões justificativas da regulamentação do caso
previsto na lei”.

Por outras palavras, os casos são análogos quando devem ser valorados da mesma
forma, quando a valoração jurídica do caso regulado por uma norma também se
justifica em relação ao caso omisso.

▪ Por exemplo, quando surgiu o transporte aéreo, e enquanto este não foi objeto
de regulação legal, colocou-se a questão de saber se seriam aplicáveis
analogicamente as normas reguladoras do transporte marítimo.

O juízo de analogia não se baseia num raciocínio lógico-concetual, mas numa


valoração, num pensamento valorativo. Para se saber quais os elementos utilizados
para delimitar a previsão da norma que são relevantes para a valoração jurídica é
necessário examinar os fins prosseguidos pela norma, é preciso esclarecer a ratio legis.

Certos argumentos lógicos podem ser relevantes para a integração de lacunas:

 O argumento a minori ad maius e a maiori ad minus.

Estes argumentos comportam duas formulações, conforme atendem à previsão da regra


ou à estatuição da regra (Teixeira de Sousa).

✓ Assim, o argumento a minori ad maius significa, do ponto de vista da


previsão, que se o menos é suficiente para produzir certo efeito jurídico, o
mais produz necessariamente esse efeito; do ponto de vista da estatuição,
que a lei que proíbe o menos proíbe o mais.

✓ O argumento a maiori ad minus significa, do ponto de vista da previsão, que


se o mais não produz certo efeito jurídico, o menos também não o pode
produzir; do ponto de vista da estatuição, que a regra que permite o mais
permite o menos.

✓ Quanto ao argumento a contrario, o professor Lima Pinheiro não lhe


encontra sentido útil.

Os argumentos a minori ad maius e a maiori ad minus não devem ser entendidos


como argumentos de pura lógica formal, mas antes relacionados com a analogia.
Podemos reconduzir estes argumentos ao argumento da maioria de razão, ou a
fortiori, segundo o qual a consequência jurídica estabelecida por uma regra para
um determinado caso deve valer por “maioria de razão” para um caso omisso
quando a ratio legis se apresenta ainda mais justificada para o caso omisso do que
para o caso previsto.

162
Introdução ao Estudo do Direito II 163
Daniel Vieira Lourenço – Turma B

O argumento por maioria de razão encontra, à semelhança da analogia, a sua


justificação no princípio da igualdade. Só que agora a diferença entre os casos em
presença não justifica um tratamento diferente: torna ainda mais premente um
tratamento igual.

Uma vez que a valoração subjacente à regra se justifica para o caso omisso, pode dizer-
se que o caso regulado pela regra é um caso análogo, e, assim, reconduzir os
argumentos a minori ad maius e a maiori ad minus à analogia.

Proibição do Uso da Analogia

 É o que verifica, em primeiro lugar, com as normas restritivas de direitos,


liberdades e garantias. Segundo o art. 18.º/2 CRP “A lei só pode restringir os
direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na
Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar
outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos”. Como assinala Jorge
Miranda, as leis restritivas devem ser interpretadas, senão restritivamente, pelo
menos sem recurso à interpretação extensiva e à analogia. Isto explica-se pelo
caráter restritivo das restrições aos direitos fundamentais.

 Em segundo lugar, decorre do art. 29.º CRP e do art. 1.º/3 CP, que não são
aplicáveis por analogia as normas que qualificam um facto como crime,
definem um estado de perigosidade ou determinam a pena ou medida de
segurança que lhes corresponde. .
Também neste caso, segundo o entendimento dominante, a dita interpretação
extensiva, nos termos em que é tradicionalmente entendida entre nós, se
encontra excluída. Neste sentido pode aliás invocar-se o art. 29.º/3 CRP, segundo o
qual “Não podem ser aplicadas penas ou medidas de segurança que não estejam
expressamente cominadas em lei anterior”. Isto é justificado pelo princípio da
legalidade, que exprime as especiais exigências de segurança jurídica e certeza
do Direito objetivo, que aqui estão colocadas, e pela proteção dos direitos
fundamentais que estão em jogo.

 No caso das normas excecionais, proíbe-se a aplicação analógica mas admite-se


a interpretação extensiva (art. 11.º CC). Esta admissibilidade da dita
interpretação extensiva pode ser entendida como um limite à proibição de
aplicação analógica.

Como assinala Oliveira Ascensão, surgem casos que apresentam mais semelhanças
com os regulados de modo excecional que com os constantes de regra geral.
Importa então examinar se a valoração feita pelo legislador relativamente aos casos
regulados pela regra excecional se justifica também para outros casos e aí será
interpretação extensiva e não aplicação anológica.

163
Introdução ao Estudo do Direito II 164
Daniel Vieira Lourenço – Turma B

A intenção do legislador histórico pode ser claramente contrária a qualquer


aplicação analógica da regra excecional, que implica uma redução teleológica da
“regra geral”.

 Por exemplo, mesmo que a venda de certos bens móveis, pelo seu
elevadíssimo preço, justificasse a aplicação das exigências de forma
estabelecidas para a venda de imóveis, parece claramente contrário à
intenção do legislador que se viesse subtrair o caso à norma geral do art.
219.º CC para lhe aplicar analogicamente a regra do art. 875.º CC.

Noutros casos, porém, a intencionalidade normativa não se contrapõe à aplicação


analógica da regra excecional a casos que são abrangidos pela sua ratio.

Este modo de ver as coisas é compatível com o disposto no art. 11.º CC. Com efeito,
a aplicação da regra excecional a casos que estão abrangidos pela intenção
regulativa que lhe está subjacente mas não pelo seu sentido literal possível cabe
naquilo que segundo a doutrina corrente entre nós constitui uma “interpretação
extensiva”.

 Refira-se ainda que por força do art. 11.º/4 da Lei Geral Tributária, as “lacunas
resultantes de normas tributárias abrangidas na reserva de lei da Assembleia da
República não são susceptíveis de integração analógica”. Os casos anteriormente
examinados dizem respeito à proibição da analogia com respeito a categorias de
normas ou ramos do Direito. Esta proibição tem, em princípio, o sentido de
excluir a existência de uma lacuna que o intérprete possa integrar, seja com
recurso com a analogia, seja com recurso a princípios jurídicos ou a uma regra
hipotética.

 Mais limitadamente, a aplicação analógica pode ser excluída pelo legislador


relativamente a uma determinada norma ou regime jurídico.

Tipologias:

 Exemplificativa;

 Taxativa;

 Delimitativa.

Da exclusão da aplicação analógica de uma norma ou regime jurídico não parece


resultar necessariamente a inexistência de uma lacuna que deva ser integrada
mediante qualquer dos métodos admitidos para o efeito, designadamente a
aplicabilidade analógica de outra norma ou regime jurídico, o recurso a princípios
jurídicos ou a um critério de decisão criado pelo intérprete.

164
Introdução ao Estudo do Direito II 165
Daniel Vieira Lourenço – Turma B

Integração De Lacunas: O Recurso A Princípios Jurídicos. A Dita Analogia Iuris,


De Direito Ou Global

Perante uma lacuna, quando não se encontre uma norma aplicável a um caso análogo, o
art. 10.º CC manda resolver a situação “segundo a norma que o próprio intérprete
criaria, se houvesse de legislar dentro do espírito do sistema”.

Alguns autores, porém, distinguem, da integração segundo a norma que o intérprete


criaria, a integração mediante a analogia iuris, de Direito ou global. Segundo este
entendimento, há lugar à analogia iuris quando a solução para o caso pode ser
encontrada mediante a concretização de um princípio jurídico. Esta dita analogia
iuris distingue-se portanto da analogia anteriormente estudada, que é por estes
autores designada analogia legis, ou analogia de lei.

A integração da lacuna mediante a concretização de um princípio jurídico é um


processo bastante diferente daquela integração que, embora “dentro do espírito do
sistema”, não possa fundamentar-se num princípio jurídico. Justifica-se, portanto, a
autonomização do recurso a princípios jurídicos como processo de integração de
lacunas.

Já oferece dúvida que este processo possa ser visto como uma modalidade de analogia.
Estas dúvidas relacionam-se com a distinção entre a analogia legis e analogia iuris.

Esta distinção é correntemente traçada nos seguintes termos:

▪ Na analogia legis o intérprete conclui que a ratio de uma determinada


norma abrange o caso omisso;
▪ Na analogia iuris o caso omisso não é abrangido pela ratio de uma norma
singular, mas é abrangido por um princípio geral que se obtém a partir de
várias normas singulares.

Para precisar melhor a distinção entre a analogia dita legis e o recurso a princípios
jurídicos terá utilidade recordar a caracterização dos princípios jurídicos anteriormente
feita.

 Disse-se que um princípio é uma proposição jurídica com elevado grau de


indeterminação que, exprimindo diretamente um fim ou valor da ordem jurídica,
constitui uma diretriz de solução. Os princípios assim definidos, são princípios
diretivos, que atuam como “comandos de otimização”, orientam a obtenção da
solução por forma que se promova a máxima realização possível de um valor ou
fim da ordem jurídica. Destes princípios distinguem-se os princípios meramente
descritivos, que constituem “regras gerais”. Estas “regras gerais” obtêm-se
mediante um processo de abstração e generalização a partir das normas
singulares. Elas são proposições determinadas e, por isso, não podem funcionar
como “comandos de otimização”. Se a “regra geral” que se obtém a partir das
normas singulares, é uma regra vigente, então ela regula os casos que caiam no

165
Introdução ao Estudo do Direito II 166
Daniel Vieira Lourenço – Turma B

âmbito da sua previsão, mesmo que não sejam abrangidos pelas normas
singulares. O problema está em que o intérprete procede neste caso a uma
generalização que não está contida no sentido literal possível das proposições
jurídicas singulares. O que permite encarar este processo de abstração e
generalização como um processo de integração de lacunas.

Haverá aqui um raciocínio de analogia? É certo que para se formular a “regra geral”
não basta um processo lógico-formal. Há que partir da ratio legis de cada uma das
normas singulares para chegar à ratio, mais ampla, da “regra geral”. Poderá então
verificar-se que esta ratio abrange situações que não são abrangidas por qualquer das
normas singulares.

Não choca, por conseguinte, que se fale a este respeito de uma analogia de Direito
ou global. Mas não é menos certo que o momento decisivo, neste processo, reside na
passagem das regras singulares à “regra geral”. É mais uma generalização que uma
comparação entre casos de um ponto de vista valorativo.

Algo diferente é a hipótese de integração da lacuna por recurso a princípios jurídicos


stricto sensu, princípios jurídicos diretivos.

Os princípios não se obtêm mediante um procedimento generalizador a partir de regras


jurídicas. Também aqui é necessária uma viagem de retorno desde as regras às ideias
que as enformam, mas agora não se trata de esclarecer a ratio de uma regra mais
ampla, mas de encontrar uma diretriz de solução que não se encontra
suficientemente determinada para constituir uma regra.

Perante um caso omisso eles constituem uma diretriz que aponta o sentido em que a
solução deve ser encontrada. Por conseguinte, o recurso aos princípios jurídicos é
também um processo de integração de lacunas.

Trata-se, também aqui, de um raciocínio de analogia? Aplicam-se aqui as


considerações anteriormente formuladas com respeito às “regras gerais”, mas creio que
este processo ainda se afasta mais de uma comparação de casos de um ponto de vista
valorativo.

O princípio jurídico não apresenta uma previsão determinada e, portanto, a sua


aplicação não depende de um exame da semelhança entre os casos que são
abrangidos pelas regras vigentes em que o princípio se manifesta e o caso omisso
de um ponto de vista valorativo.

O que conta é antes que o caso omisso diga respeito a um domínio jurídico em que
vigore o princípio jurídico em causa.

É também evidente que nas hipóteses em que os princípios são formulados e


desenvolvidos pela jurisprudência e pela ciência jurídica na resolução de lacunas da lei
não existe, à partida, qualquer comparação entre o caso omisso e os casos que se
encontram previstos no Direito vigente.

166
Introdução ao Estudo do Direito II 167
Daniel Vieira Lourenço – Turma B

O que se trata aqui, fundamentalmente, é de comparar os casos omissos em que o


princípio foi anteriormente aplicado com o caso em apreço.

 O art. 10.º CC não refere o recurso aos princípios jurídicos como processo de
integração de lacunas. Mas não se deve retirar daí a inadmissibilidade deste
processo de integração.

Na verdade, a formulação do n.º 3 do art. 10.º é suficientemente ampla para


abarcar a integração da lacuna mediante a concretização de um princípio jurídico.

Embora ambas as soluções caibam na letra do n.º 3 do art. 10.º, não é a mesma coisa
integrar a lacuna com recurso a um princípio jurídico vigente, que é um critério de
decisão que vincula o intérprete, e segundo um critério de decisão criado pelo
intérprete, sem que o sistema forneça uma diretriz de solução.

De todo o modo, observe-se que a formulação adotada pelo legislador no art. 10.º tem
por consequência que o intérprete, quando recorra a um princípio jurídico, não
pode limitar-se a fundamentar a solução do caso concreto no princípio. O intérprete
tem de enunciar sob a forma de uma proposição jurídica determinada – que
constituirá então uma concretização do princípio jurídico –, o critério de decisão
do caso.

Integração de Lacunas: a Criação de Um Critério de Decisão pelo Intérprete

Se não for possível encontrar uma norma aplicável a um caso análogo, nem obter, por
generalização de soluções particulares, uma “regra geral” que abranja o caso, nem
sequer dispor de um princípio jurídico vigente que constitua uma diretriz para a
solução do caso, resta ao intérprete criar, ele próprio, o critério de decisão do caso.

 A decisão não é arbitrária.


▪ Desde logo porque tem de obedecer a um critério racional.
▪ E ainda porque o intérprete não é inteiramente livre na formulação do
critério: ele tem de proceder “dentro do espírito do sistema”.

Na formulação do critério de decisão o intérprete tem de respeitar os valores e os


princípios da ordem jurídica, mas não existe qualquer valoração jurídica,
subjacente a uma norma vigente, ou a um conjunto de normas vigentes, que
abranja o caso, nem um princípio jurídico que constitua uma diretriz de solução.

Portanto, a solução não é justificada pelo sistema.

 Daí também que pareça mais próximo da realidade afirmar que a solução é
compatível com o sistema do que conforme ao sistema.

Também já foi por várias vezes sublinhado que o intérprete tem de formular o
critério de decisão sob a forma de uma proposição geral e abstrata determinada,
de uma regra, que seja suscetível de ser seguida em casos semelhantes.

167
Introdução ao Estudo do Direito II 168
Daniel Vieira Lourenço – Turma B

E, para o efeito, deve levar em conta as considerações de política legislativa e de


técnica legislativa que são relevantes para o legislador.

Limites à Integração de Lacunas

Em princípio, todas as lacunas podem e devem ser integradas.

Nos casos de proibição do uso de analogia, porém, não é permitido ao intérprete


aplicar uma lei a uma situação que estaria abrangida pela sua intenção regulativa
mas não pelo seu sentido literal possível. Isto significa, à primeira vista, que o
intérprete não tem a liberdade de integrar a lacuna: é claro que se o intérprete não
pode aplicar analogicamente uma regra também não pode criar, ele próprio, um
critério de decisão para o caso.

Mas, em última análise, o que está em causa não é a integração da lacuna, mas a
sua própria determinação. Só há lacuna se não houver uma regra diretamente
aplicável e tal representar uma “falha contrária ao plano”.

 Quando, na verdade, exista uma lacuna que careça de integração, poderá


suceder que esta integração seja impossível?

A resposta é afirmativa. Em certas situações muito raras a integração da lacuna pode ser
impedida por aquilo que se designa por obstáculo técnico insuperável.

Não há uniformidade na doutrina na apreciação deste ponto.

Na opinião do professor Lima Pinheiro, só há um obstáculo técnico


verdadeiramente insuperável quando a solução do caso depende de recursos
materiais ou institucionais que não estão disponíveis.

✓ Por exemplo, se uma lei permite a constituição de um determinado direito,


mediante a inscrição num registo, mas o registo não se encontra organizado,
existe uma lacuna que não é suscetível de integração.

A Integração de Lacunas (Sandra Lopes Luís)

O preenchimento do vazio jurídico é um processo normativo porque implica a


determinação de uma “regra” (concebida de uma forma geral e abstracta e de
hipoteticamente aplicável a todas as situações similares) para solucionar o caso
concreto, não se verificando uma resolução casuística das situações, como sucede na
equidade.

É também um processo precário porque pressupõe a permanência da lacuna após a sua


integração – o tribunal integra a lacuna para resolver o caso concreto mas esta terá de
voltar a ser preenchida em situações futuras.

Os Processos de Integração

168
Introdução ao Estudo do Direito II 169
Daniel Vieira Lourenço – Turma B

 Processos de Integração Intrassistemáticos (solução do caso faz-se tomando


por base o sistema de normas vigentes:
 Analogia legis – pressupõe o recurso a uma regra determinada,
normalmente legal;
 Analogia júris – pressupõe o recurso a um principio jurídico
determinado;
 Norma que o Intérprete Criaria – a resolução do caso apela ao espirito
do sistema;
 Processos de Integração Extra-Sistemáticos (Oliveira Ascensão) (a solução
dos casos funda-se noutros critérios):
 Normativos – Verificam-se quando o legislador emite uma norma para
colmatar a lacuna;
 Discricionários – Verifica-se quando o legislador dá à Administração a
possibilidade de optar entre duas soluções igualmente possíveis, de
acordo com a melhor prossecução do interesse publico;
 Equitativos – Verificam-se quando o juiz não decide segundo uma
norma, mas segundo as circunstâncias do caso concreto, isto é, o juiz não
pretende criar uma norma, procurando uma solução adequada a todos os
casos daquela índole, mas pretende, antes, considerar o caso nas suas
particularidades, procurando uma solução que se lhe adeqúe à luz do
valor da justiça;

Há quem defenda que nos casos de processos extra-sistemáticos não existe


verdadeiramente integração de lacunas, porque a lacuna ou desaparece ou então
nunca existiu, dado que:

✓ Se um ato legislativo regular a situação – a lacuna desaparece;


✓ Se a Administração atuar a abrigo de um poder discricionário que a lei lhe
confira – não existe qualquer lacuna;
✓ Se o juiz resolve um caso concreto com recurso à equidade – também não há
qualquer lacuna, não havendo igualmente qualquer preocupação normativa;

Analogia Legis

A analogia legis está prevista no artigo 10/1 CC e verifica-se quando o Direito não
prevê e os casos são regulados segundo a norma aplicável aos “casos análogos”. Os
casos análogos pressupõem a existência de dois requisitos:

1) Uma Similitude de Situações Fácticas, ou seja, a existência de duas


situações em que uma é regulada e outra não;
2) Uma Identidade de Razões Legais que justifica a aplicação do regime do
facto regulado ao facto não regulado. O que significa que se deve atender à
ratio legis e verificar se as mesmas razoes legais procedem para regular o
facto sem regime.

169
Introdução ao Estudo do Direito II 170
Daniel Vieira Lourenço – Turma B

Ou seja:

Para haver analogia não basta que o facto Y seja semelhante ao facto X, mas
deve-se também olhar para a justificação do regime que se define para este
ultimo (a ratio legis da lei A) e depois ponderar se essa mesma razão vale para
o primeiro (facto Y), só quando existe esta identidade de razoes legais é que
procedem as mesmas razoes justificativas, e se pode dizer que existe analogia.

A analogia pode ter como base qualquer regra, seja ela legal ou consuetudinária.

Diferença entre Analogia e Interpretação Extensiva

Em termos genéricos e pouco rigorosos, na integração o caso não está compreendido


nem na letra nem no espirito da lei, enquanto que na interpretação extensiva o caso não
está previsto na letra, mas está no espirito da lei (e não repugna a letra).

Limites à Analogia Legis

 Regras Excecionais (art.11 CC)

O artigo 11º CC admite a interpretação extensiva de normas excecionais mas impede a


sua aplicação analógica, o que radica na ideia que as normas só valem para os casos
previstos, e não para outros, sob pena de se generalizar o que é excecional

 Regras Penais Positivas (art.29CRP) – regras que definem os crimes e fixam as


penas e efeitos (principio da tipicidade penal), se certo facto não é considerado
crime não se pode aplicar analogicamente o regime que esteja previsto para um
outro facto que constitui ilícito penal;
 Regras Restritivas de Direitos, Liberdades e Garantias (art. 18CRP);
 Regras sobre Impostos (art. 103/2 CRP) – as regras que criam impostos e
determinam os seus elementos essenciais não podem ser aplicadas
analogicamente. Salvaguarda do principio da legalidade fiscal e da segurança
jurídica. Por exemplo, se uma lei prevê uma taxa de IVA de 30 % relativamente a
bebidas alcoólicas, não se pode aplicar analogicamente a sumos naturais;
 Tipologias Legais – institutos que visam regular realidades com aspectos
comuns (crimes, impostos, contratos, direitos reais, …). Por exemplo, quanto aos
direitos reais, temos o direito de propriedade, o usufruto, a compropriedade, entre
outros, e em relação a cada um deles fixa-se um regime jurídico que atende às
suas especialidades próprias. Se o legislador fixa um regime particular para cada
um dos tipos, na ausência de regulamentação de algum aspeto de um deles não se
pode aplicar analogicamente o disposto em outro tipo.

Analogias e Normas Excecionais (Oliveira Ascensão)

Oliveira Ascensão faz uma interpretação restritiva do artigo 11º CC e considera que a
regra excepcional aqui prevista não se basta com mera contradição de outra regra
(exceção formal, que depende apenas da técnica legislativa utilizada), mas exige um

170
Introdução ao Estudo do Direito II 171
Daniel Vieira Lourenço – Turma B

suporte mais sólido, isto é, que exista uma contradição com um dos princípios gerais
subjacentes às diferentes áreas do Direito, de molde a que se crie um verdadeiro ius
singulare (exceção material). Oliveira Ascensão pensa que este modo de determinação,
que atende à materialidade da norma, é o mais conforme com o sentido doa artigo 11º,
dado não depender exclusivamente da técnica legislativa utilizada.

Efectivamente, a excepcionalidade formal não pode ser o critério determinante, por


exemplo:

1) É proibida a circulação de veículos na rua X, com exceção dos moradores.


2) É permitida a circulação de veículos na rua X, com exceção dos não
moradores

O conteúdo da regra de conduta é exactamente o mesmo, em ambos os casos só os


moradores podem circular na rua X. no entanto, a regra e a exceção são diferentes:

1) Regra: “é proibida a circulação de veículos na rua X”; exceção: “só os


moradores podem circular”
2) Regra: “é permitida a circulação de veículos na rua X”; exceção: “os não
moradores não podem circular”

Tem-se duas regras com o mesmo significado mas cuja a identificação da regra e da
exceção varia devido à diferente técnica legislativa utilizada, não podendo, por estes
motivos, ser esta excepcionalidade que se pretende proibir no artigo 11º.

Para se excluir a analogia deve-se criar um verdadeiro ius singulare, que se verifica
quando a disciplina do caso vem contrariar um principio jurídico geral, por exemplo
o artigo 875ºCC que vem contrariar o 219ºCC.

Pagina 147 SANDRA LOPES LUIS

171
Introdução ao Estudo do Direito II 172
Daniel Vieira Lourenço – Turma B

Capítulo X
Aplicação da Lei no Tempo

Identificação do Problema

Toda a fonte do direito está historicamente


situada. O fenómeno é particularmente
visível na lei, em que se pode marcar
precisamente o antes e o depois da

172
Introdução ao Estudo do Direito II 173
Daniel Vieira Lourenço – Turma B

aquisição de validade. As fontes do direito são produzidas num determinado momento e


entram em vigor num certo momento. Se surgem várias fontes, colocadas no mesmo
nível hierárquico, mas formadas em tempos diversos, aplica-se o principio fundamental
de que “a lei nova revoga a lei antiga”, presente no artigo 7º nº2 do Código Civil. A
revogação da lei antiga pela lei nova permite assegurar a consistência do sistema
jurídico, porque evita que vigorem duas leis sobre a mesma matéria.

Mas, por detrás da simplicidade aparente deste principio, subsiste um mundo de


dificuldades, uma vez que este não resolve todos os problemas suscitados pela sucessão
de uma norma no tempo. A sucessão das normas no tempo coloca ainda a questão de
saber se determinado facto ou situação é regido pela norma antiga ou pela norma nova.

Segundo o Professor Doutor Oliveira Ascensão, podemos distinguir a repercussão da lei


nova sobre:
- os factos, isto é, acontecimentos que ocorreram num determinado momento e
num determinado lugar;
- as situações jurídicas, ou seja, consequências duradouras de factos jurídicos.

Os factos podem ser :


- factos instantâneos, ou seja, os factos de verificação instantânea; por exemplo:
a celebração de um negócio jurídico;
- factos duradouros ou situações de facto: continuados de produção sucessiva,
isto é, os factos que perduram no tempo; por exemplo: o tempo necessário para a
aquisição da propriedade por usucapião.

Segundo o Professor Doutor Miguel Teixeira de Sousa, na resolução dos problemas


relativos á aplicação da lei no tempo, há que escolher entre um interesse na estabilidade
(conducente á aplicação da lei antiga) e um interesse na adaptação (que conduz á
aplicação da lei nova).

Em princípio, os factos são valorados juridicamente pela norma que está em vigor no
momento da sua ocorrência. No entanto, pode colocar-se a questão de saber se uma lei
nova é aplicável a factos ocorridos na vigência da lei anterior, ou, por outras palavras, se
é de aplicação retroativa. Os problemas relativos á aplicação da lei no tempo decorrem
da sucessão de leis para regular a mesma realidade. Em conformidade com o exemplo
dado pelo Professor Doutor Luís Lima Pinheiro, temos o sujeito A que pratica um ato
que constitui um crime no momento da sua prática. Antes do julgamento, entra em vigor
uma nova lei que descriminaliza o ato. A deverá ser condenado á pena prevista na lei
antiga? Ou beneficiará da aplicação da lei nova?

Mas o problema coloca-se também com respeito a duas hipóteses diferentes.

A primeira, que diz respeito ás situações não conclusas, é a de factos que apenas
preencheram parcialmente uma previsão normativa de realização continuada ou
formação sucessiva da lei antiga, quando tal espécie de factos desencadeie um efeito
jurídico idêntico ou semelhante perante a lei nova. Por exemplo, há uma sucessão de

173
Introdução ao Estudo do Direito II 174
Daniel Vieira Lourenço – Turma B

leis em matéria de usucapião (aquisição de um direito real por efeito da posse


correspondente durante um certo período de tempo). Suponha-se que a lei nova
estabelece um prazo de usucapião mais longo que o fixado pela lei anterior. No
momento da entada em vigor da lei nova ainda não decorreu o prazo fixado pela lei
antiga. Será que o possuidor adquire o direito quando decorrer o prazo fixado pela lei
antiga? Ou só quando expirar o prazo fixado pela lei nova?

A segunda hipótese diz respeito ás situações em curso. Estas são situações que se tendo
constituído durante a vigência da norma antiga (e que por isso são situações conclusas)
ainda não esgotaram a produção dos seus efeitos no momento da entrada em vigor da lei
nova. Por exemplo, A e B casaram na vigência de um determinado Código Civil, sem
celebrarem convenção antenupcial (sem estipularem o regime de bens do casamento).
Mais tarde entra em vigor um novo Código Civil que altera o regime dos deveres
pessoais dos cônjuges e estabelece um regime de bens supletivo diferente. Pergunta-se:
com a entrada em vigor do novo Código Civil os deveres pessoais dos cônjuges passam
a ser por ele regidos ou continuam submetidos ao CC anterior? E o regime de bens
mantém-se ou é alterado?

Temos aqui uma situação jurídica que se constituiu na vigência da lei antiga e que se
transmitiu para a vigência da lei nova. Em esquema:
LA  LN
SJ

Segundo o Professor Doutor Miguel Teixeira de Sousa, uma solução possível para
resolver o problema da sucessão das leis no tempo é entender que as situações jurídicas
constituídas antes do inicio de vigência da lei nova continuam a ser regidas pela lei
antiga. Se assim suceder, então há que concluir que as fontes aplicáveis na decisão de
casos concretos não coincidem necessariamente com as fontes vigentes num sistema
jurídico, dado que podem ser aplicadas fontes que já não vigoram nesse sistema. Como
as fontes aplicáveis podem ser distintas das fontes vigentes, pode concluir-se que o
tempo de aplicabilidade das fontes nem sempre coincide com o seu tempo de vigência.

Para responder ás questões que foram sendo colocadas nos exemplos é necessário
determinar se um facto ou um aspeto de uma situação são regulados pela lei nova ou
pela lei antiga. A resolução dos conflitos de leis no tempo orienta-se pelos princípios da
não retroatividade da lei nova e da aplicação imediata da lei nova.
A não retroatividade da lei nova traduz-se, no facto, de que a lei nova não se aplica a
factos passados, isto é, a factos que ocorreram antes da entrada em vigor da lei nova; e
também não se aplica a factos passados, isto é, a factos que ocorreram antes da entrada
em vigor da lei nova.

Também da aplicação imediata da lei nova decorrem consequências, tais como: a


aplicação da lei nova a todos os factos futuros, que venham a ocorrer na sua vigência; a
aplicação da lei nova a todos os efeitos futuros, que venham a produzir-se na sua

174
Introdução ao Estudo do Direito II 175
Daniel Vieira Lourenço – Turma B

vigência; a aplicação da lei nova a todos os factos jurídicos, que se tenham iniciado na
vigência da lei antiga e que ainda estejam em curso no inicio de vigência da lei nova; a
aplicação da lei nova a todas as situações jurídicas, que se tenham constituído na
vigência da lei antiga e que não se tenham extinguido antes da vigência da lei nova.

189. Direito Intemporal ou Transitório. Regras de conflitos gerais e especiais

Designa-se por Direito Intertemporal ou transitório, segundo o Prof. Dr. Luís Lima
Pinheiro, o conjunto das normas e princípios que regulam a aplicação da lei no tempo,
isto é, que determinam se um facto, uma situação ou um aspeto de uma situação são
regulados pela lei nova ou pela lei antiga.

Para o Prof. Dr. Oliveira Ascensão, pode a lei fixar, casuisticamente, a solução das
hipóteses que se coloquem na fronteira entre uma lei e outra lei. Se assim o faz, temos o
chamado direito transitório.

Para o Prof. Dr. Miguel Teixeira de Sousa, o direito transitório (ou direito
intertemporal) resolve os problemas suscitados pelos conflitos de leis no tempo.

Temos duas modalidades de direito transitório:


- formal
- material.

Há direito transitório material quando as situações a que se referem as sucessivas leis


recebem disciplina própria. Temos, portanto, aquilo a que podemos chamar a terceira
solução. O direito transitório material fixa um regime especifico para determinados
factos ou efeitos jurídicos, isto é, institui um regime que não coincide nem com a da lei
antiga, nem com o da lei nova.

Há direito transitório formal quando o legislador se limita a escolher, de entre as leis


potencialmente aplicáveis, as que devem regular no todo ou em parte aquela situação. O
direito transitório formal escolhe, de entre a lei antiga e a lei nova, qual é a lei aplicável
a um certo facto ou a um determinado efeito jurídico, são por isso normas de regulação
indireta.

O direito transitório formal comporta regimes específicos: um regime especial e um


regime geral. É geral quando é aplicável á generalidade dos ramos do Direito ou a um
ramo do Direito no seu conjunto. É especial quando rege a aplicação no tempo de uma
determinada lei ou regra legal.

O regime especial do direito transitório formal encontra-se estabelecido no art.297º CC,


relativo á alteração de prazos, e o regime geral do direito transitório formal consta dos
art. 12º e 13º CC. Este ultimo regime geral é também designado regime legal
subsidiário.

Os regimes específicos do direito transitório formal vigoram em alguns ramos do


direito. Assim, no Direito Penal, vale o principio da aplicação da lei antiga ou lei nova

175
Introdução ao Estudo do Direito II 176
Daniel Vieira Lourenço – Turma B

que for concretamente mais favorável ao agente (artigo 29º nº4 2ªparte CRP; art. 2 nº4
CP); no Direito Processual, vigora a regra de que a lei nova é de aplicação imediata, ou
seja, vale a regra da aplicação imediata da lei relativa á forma dos atos (art. 142º nº1
CPC) e aos requisitos de exequibilidade dos títulos executivos (art.46º CPC). Claro que
estas regras são especiais relativamente ás que constam do art.12º CC, limitando a
aplicação destas regras. Mas continuam a ser gerais relativamente ás normas sobre a
aplicação no tempo de uma determinada lei ou regra legal.

Um elucidativo exemplo de regras de conflitos especiais é-nos dado pelo Dec.-Lei


nº47344, que aprovou o Código Civil. A maioria dos seus preceitos é constituída por
regras de conflitos especiais, ou seja, ocupa-se da solução de problemas específicos
levantados por situações duradouras que tendem a prolongar os seus efeitos no domínio
da nova lei. Seguindo o exemplo do Prof. Dr. Luís Lima Pinheiro, o art.14º determina,
quanto aos efeitos do casamento, que “o disposto nos arts. 1671º a 1697º do novo
código é aplicável aos casamentos celebrados até 31 de Maio de 1967, mas em caso
algum serão anulados os atos praticados pelos cônjuges na vigência da lei antiga, se em
face desta não estiverem viciados”.

Na maior parte dos casos as regras de conflitos especiais representam aplicações das
regras gerais a situações em que a sua atuação não poderia suscitar algumas dúvidas. O
legislador tratou então de concretizar a regra geral, por forma a evitar tais dúvidas.

190. Regras Materiais Especiais

As normas e princípios de Direito Intertemporal são, em primeira linha, de natureza


conflitual. Falando-se, neste sentido, de direito transitório formal. Neste contexto,
“formal” significa, pois, o mesmo que conflitual.

Nada impede o legislador, porém, de estabelecer um regime material especial para as


situações que apresentam laços temporais significativos com a lei nova e com a lei
antiga.

Por exemplo, o art. 20º do DL nº47344, sobre os filhos adulterinos, determina que os
“assentos secretos de perfilhação de filhos adulterinos, validamente lavrados ao abrigo
da legislação vigente, tornar-se-ão públicos mediante averbamento oficioso sempre que
sejam passadas certidões do respetivo registo de nascimento”. Esta norma não aplica a
lei nova, que estabelece que estes assentos são públicos, nem a lei antiga, que estabelece
que são secretos. Estabelece uma solução especial.

As regras materiais especiais de Direito Intertemporal são pouco frequentes. Mas já são
mais frequentes as regras de conflitos de leis no tempo que favorecem determinados
resultados materiais, designadamente mediante a aplicação da lei mais favorável ou
menos favorável à produção de um efeito jurídico.

Assim, o art. 2º do CP, após estabelecer que as “penas e medidas de segurança são
determinadas pela lei vigente no momento da pratica do facto ou do preenchimento dos

176
Introdução ao Estudo do Direito II 177
Daniel Vieira Lourenço – Turma B

pressupostos de que dependem” (nº1), determina que “o facto punível segundo a lei
vigente no momento da sua prática deixa de o ser se uma lei nova o eliminar do numero
das infrações” (nº2). O que aliás está em conformidade com o comando constitucional
contido no art. 29º/4 CRP, segundo o qual se aplicam retroativamente as leis penais de
conteúdo mais favorável ao arguido.

Princípio da irretroatividade. Determinações constitucionais

No Direito Intertemporal vigoram dois princípios, que convém examinar antes de


estudarmos as regras de conflitos gerais. Trata-se do princípio da irretroatividade e do
princípio da continuidade das situações jurídicas. Estes princípios são atualmente
complementados por um terceiro princípio, examinado mais adiante: o da aplicação
imediata da lei nova às situações em curso.

O primeiro princípio, que tem natureza puramente conflitual, é o princípio da


irretroatividade. Este princípio está enunciado no n.º 1 do art. 12.º CC: a “lei só dispõe
para o futuro; ainda que lhe seja atribuída eficácia retroactiva, presume-se que ficam
ressalvados os efeitos já produzidos pelos factos que a lei se destina a regular”.

Este princípio fundamenta-se, em primeiro lugar, na ideia de supremacia do Direito,


associada como está à atuação da norma como critério de conduta. A norma só pode
orientar as condutas que ocorram depois da sua entrada em vigor. A norma, quando se
aplique a factos que ocorreram antes da sua entrada em vigor, pode constituir um
critério de decisão, mas não um critério de conduta.

Daqui decorre que, em princípio, os factos são valorados juridicamente segundo a lei
em vigor no momento da sua ocorrência e que a nova lei não atinge os efeitos jurídicos
já produzidos segundo a lei antiga. Esta ideia constitui o núcleo de sentido do princípio
da irretroatividade.

Mesmo neste domínio, porém, o princípio da irretroatividade é suscetível de limitações,


que são aliás admitidas pelo n.º 1 do art. 12.º.

Estas limitações podem ser justificadas quer por valores jurídicos materiais que se
coloquem como particular premência em certos domínios quer pela necessidade
imperiosa de fazer face a situações determinadas, como sucede por vezes com as atrás
referidas leis-medida.

Na sistematização de OLIVEIRA ASCENSÃO, seguida por MARCELO REBELO DE


SOUSA e TEIXEIRA DE SOUSA, são quatro os graus de retroatividade: retroatividade
extrema, retroatividade quase extrema, retroatividade agravada e retroatividade
ordinária.

Na retroatividade extrema a lei nova é aplicada aos factos ocorridos antes da sua entrada
em vigor, sem quaisquer limites, e, portanto, também sem respeitar o caso julgado, i.e.,
os efeitos de uma decisão jurisdicional que não é suscetível de um recurso ordinário.

177
Introdução ao Estudo do Direito II 178
Daniel Vieira Lourenço – Turma B

Na retroatividade quase extrema o único limite à aplicação da lei nova aos factos
ocorridos antes da sua entrada em vigor é o caso julgado. Por conseguinte, a lei nova
também se aplica às situações que se constituíram e extinguiram ao abrigo de uma lei
antiga. Por exemplo, uma lei que viesse reduzir a taxa legal de juro máximo e
estabelecesse a sua aplicação a contratos, não só celebrados antes da sua entrada em
vigor, mas também executados anteriormente, desencadeando por isso a obrigação de
restituir os juros vencidos e pagos sob a lei antiga.

Na retroatividade agravada a lei nova só respeita, de entre os efeitos produzidos antes da


sua entrada em vigor, os que tiverem um título que lhes dê especial reconhecimento.
Será esta, como adiante veremos, a retroatividade das leis interpretativas nos termos do
art. 13.º CC.

Enfim, na retroatividade ordinária são respeitados os efeitos já produzidos pelos factos


que se destina a regular. A esta retroatividade se reporta a segunda parte do n.º 1 do art.
12.º CC.

O princípio da irretroatividade suscita especiais dificuldades com respeito às situações


duradouras constituídas ao abrigo da lei antiga.

A situação jurídica constituída ao abrigo da lei antiga é um efeito produzido por um


facto que ocorreu durante a vigência da lei antiga. Mas o princípio da irretroatividade
nada nos diz sobre a aplicação da lei nova aos efeitos que sejam doravante ligados à
situação. E, com efeito, há situações que se prolongam no tempo, e que não podem ficar
imunes à evolução da ordem jurídica (por exemplo, a propriedade de imóveis).

Parece óbvio que, em certos domínios, as leis novas, embora respeitem, em princípio, as
situações validamente constituídas segundo a lei antiga, tendem a ser aplicáveis ao seu
conteúdo. Sem prejuízo de uma diferenciação conforme o domínio jurídico em causa,
tende-se assim a distinguir entre a constituição da situação e o seu conteúdo.

Quando a lei nova extingue diretamente a situação criada ao abrigo da lei antiga, não
estamos, em minha opinião, perante um caso de aplicação retroativa da lei nova, mas de
regulação direta (ou material) de um efeito jurídico produzido por um facto ocorrido na
vigência da lei antiga e perante esta lei.

Esta aplicação direta da lei nova contende a meu ver com o princípio da continuidade
das situações jurídicas, adiante examinado, e não com o princípio da irretroatividade.

Disse-se que o princípio da irretroatividade admite limitações. Mas estas limitações não
são permitidas em certos domínios em que a Constituição proíbe a retroatividade.

Além destas proibições específicas é possível inferir das normas e princípios


constitucionais certos limites gerais à retroatividade das leis.

Comecemos por examinar as proibições específicas.

178
Introdução ao Estudo do Direito II 179
Daniel Vieira Lourenço – Turma B

Em primeiro lugar, o art. 18.º/3 CRP proíbe a retroatividade das leis restritivas de
direitos, liberdades e garantias.

Encontramos outras proibições no domínio penal.

Segundo o n.º 1 do art. 29.º CRP “Ninguém pode ser sentenciado criminalmente senão
em virtude de lei anterior que declare punível a acção ou a omissão, nem sofrer medida
de segurança cujos pressupostos não estejam fixados em lei anterior”.

Esta proibição é no entanto limitada pelo disposto no número seguinte: “O disposto no


número anterior não impede a punição, nos limites da lei interna, por acção ou omissão
que no momento da sua prática seja considerada criminosa segundo os princípios gerais
de direito internacional commumente reconhecidos”.

A lei sobre a competência dos tribunais em matéria criminal também não pode ser
retroativa, visto que nenhuma “causa pode ser subtraída ao tribunal cuja competência
esteja fixada em lei anterior” (art. 32.º/9 CRP).

Enfim, há uma proibição de retroatividade no domínio fiscal. Segundo o disposto no n.º


3 do art. 103.º CRP, ninguém “pode ser obrigado a pagar impostos que não hajam sido
criados nos termos da Constituição, que tenham natureza retroactiva ou cuja liquidação
e cobrança se não façam nos termos da lei”.

Vejamos agora que limites de alcance geral se podem inferir da Constituição.

Como já sabem o art. 282.º CRP prevê a declaração de inconstitucionalidade ou de


ilegalidade das normas com força obrigatória geral. Esta declaração tem eficácia
retroativa, pois produz efeitos desde a entrada em vigor da norma declarada
inconstitucional ou ilegal (n.º 1). No entanto, o n.º 3 deste artigo ressalva “os casos
julgados, salvo decisão em contrário do Tribunal Constitucional quando a norma
respeitar a matéria penal, disciplinar ou de ilícito de mera ordenação social e for de
conteúdo menos favorável ao arguido”.

A doutrina e a jurisprudência têm encontrado aqui a manifestação de um princípio geral


de respeito pelo caso julgado, que é incompatível com a retroatividade extrema.

A jurisprudência constitucional tem ido mais longe, entendendo que certas leis, que
apresentam um grau inferior de retroatividade, são inconstitucionais.

Mas este entendimento coloca pressupostos bastante restritivos a esta


inconstitucionalidade. Segundo o Tribunal Constitucional, “apenas uma retroactividade
intolerável, que afecte de forma inadmissível e arbitrária os direitos e expectativas
legitimamente fundados dos cidadãos viola o princípio da confiança, ínsito na ideia de
Estado de Direito democrático”.

A jurisprudência deste Tribunal tem-se ocupado principalmente dos casos da chamada


“retroatividade inautêntica” em que a lei nova estabelece consequências jurídicas para

179
Introdução ao Estudo do Direito II 180
Daniel Vieira Lourenço – Turma B

situações em curso, ou se aplica a fatos novos que ocorrem na sequência de um contexto


anterior que criou, eventualmente, expectativas jurídicas.

No caso de normas que estabelecem consequências jurídicas para situações que se


constituíram antes da sua entrada em vigor, o Tribunal Constitucional já entendeu que
só serão inconstitucionais se violarem, “de forma excessivamente onerosa, intolerável,
opressiva ou injustificada, a confiança do cidadão na manutenção da situação jurídica
com base na qual actuou. E como índice para tal conclusão, pode considerar-se
relevante o facto de a mutação da ordem jurídica afectar em sentido desfavorável uma
expectativa consolidada ao abrigo da lei antiga, e de, razoavelmente, os destinatários
das normas dela constantes não poderem contar com ela, bem como a circunstância de
ela não ser ditada pela necessidade de salvaguardar direitos ou interesses
constitucionalmente protegidos que devam considerar-se prevalentes (podendo recorrer-
se, aqui, ao princípio da proporcionalidade, explicitamente consagrado, a propósito dos
direitos, liberdades e garantias, no n.º 2 do artigo 18.º da Constituição)”.

Numa formulação mais recente, o Tribunal Constitucional definiu a ideia de


arbitrariedade ou excessiva onerosidade, para efeito da tutela do princípio da segurança
jurídica na vertente material da confiança, por referência a dois pressupostos essenciais:
a) a afetação de expectativas, em sentido desfavorável, será inadmissível, quando
constitua uma mutação da ordem jurídica com que, razoavelmente, os destinatários das
normas dela cons-tantes não possam contar; e ainda
b) quando não for ditada pela necessidade de salvaguardar direitos ou interesses
constitucionalmente protegidos que devam considerar-se prevalecentes (deve recorrer-
se, aqui, ao princípio da proporcionalidade, explicitamente consagrado, a propósito dos
direitos, liberdades e garantias, no n.º 2 do artigo 18.º da Constituição).

E considerou que “os dois critérios enunciados (…) são, no fundo, reconduzíveis a
quatro diferentes requisitos ou ‘testes’. Para que haja lugar à tutela jurídico-
constitucional da ‘confiança’ é necessário que:

o legislador tenha encetado comportamentos capazes de gerar nos privados


‘expectativas’ de continuidade;

tais expectativas devem ser legítimas, justificadas e fundadas em boas razões;

os privados devem ter feito planos de vida tendo em conta a perspetiva de continuidade
do ‘comportamento’ estadual;

não ocorram razões de interesse público que justifiquem, em ponderação, a não


continuidade do comportamento que gerou a situação de expectativa.

“Mesmo que se conclua pela premência do interesse público na mudança e adaptação do


quadro legislativo vigente, ainda assim é necessário aferir, à luz de parâmetros materiais
e axiológicos, se a medida do sacrifício é ‘inadmissível, arbitrária e demasiado
onerosa’”.

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Introdução ao Estudo do Direito II 181
Daniel Vieira Lourenço – Turma B

Não se trata, aqui, em rigor de um limite à retroatividade da lei, mas de uma tutela da
confiança na estabilidade do regime jurídico aplicável, que, em parte, constitui um
limite à aplicação imediata da lei nova às situações em curso e se relaciona com o
princípio da continuidade das situações jurídicas, examinado em seguida. Para além
disto, não se encontram ainda claramente definidos os contornos de um limite
constitucional genérico à retroatividade de certas leis, e o ponto suscita certa
controvérsia na doutrina.

192. Princípio da continuidade das situações jurídicas. Teoria dos direitos


adquiridos

Um segundo princípio geral que, em minha opinião, vigora no Direito Intertemporal, é o


princípio da continuidade das situações jurídicas.

Este princípio evoca, naturalmente, a teoria dos direitos adquiridos, que é uma das
teorias clássicas em matéria de aplicação da lei no tempo.

Esta teoria, já formulada na Idade Média, foi desenvolvida por autores como SAVIGNY
e GABBA.

Segundo esta teoria, a lei nova tem de respeitar os direitos validamente adquiridos à
sombra da lei antiga. Já não se impõe o respeito das simples expectativas.

Segundo esta teoria, a lei nova tem de respeitar os direitos validamente adquiridos à
sombra da lei antiga. Já não se impõe o respeito das simples expectativas.

Esta teoria foi entretanto objeto de larga crítica, que incidiu designadamente, na
dificuldade em delimitar o conceito de “direito adquirido” e na insuficiência da teoria
quanto aos efeitos dos direitos adquiridos

Além disso, a conveniência deste critério também é discutível. Decorre do


anteriormente exposto que, relativamente a situações duradouras, não se pode partir do
princípio que quaisquer efeitos que se devam produzir durante a vigência da lei nova
estão subtraídos à sua aplicação.

Por princípio da continuidade das situações jurídicas entendo a proposição jurídica


segundo a qual a destruição ou modificação essencial das situações constituídas ao
abrigo da lei antiga tem de firmar-se em valores e princípios supraordenados às
exigências gerais de segurança jurídica e à confiança dos sujeitos jurídicos – quando
objetivamente justificada – na permanência da situação existente.

Não se trata agora, como na teoria dos direitos adquiridos, de formular uma proposição
geral da qual se pretendem deduzir todas as soluções sobre a aplicação na lei do tempo.
É apenas um aspeto do problema – o do efeito da sucessão de leis sobre a continuidade
das situações em curso – que é contemplado pelo princípio.

Este princípio da continuidade das situações jurídicas fundamenta-se no valor da


segurança jurídica e no princípio da confiança na relação dos cidadãos com a legislação

181
Introdução ao Estudo do Direito II 182
Daniel Vieira Lourenço – Turma B

que, conforme ilustra a jurisprudência constitucional, pode ser visto como uma
concretização do princípio do Estado de Direito.

Este princípio não se opõe, em absoluto, à destruição ou modificação essencial das


situações preexistentes. Mas só as admite quando não haja uma confiança objetivamente
justificada e merecedora de proteção na permanência das situações, por parte dos seus
titulares, ou quando tal seja exigido por valores e princípios gerais supraordenados
relativamente às exigências da segurança jurídica e da proteção da confiança.

Neste sentido parece apontar a jurisprudência constitucional portuguesa nos termos atrás
referidos.

O princípio da continuidade das situações jurídicas tem, a meu ver, natureza material.
Por certo ele estabelece um nexo íntimo com o princípio da irretroatividade, que, como
vimos, tem natureza conflitual. O princípio da continuidade das situações jurídicas
pressupõe, em primeiro lugar, a exclusiva aplicação, à constituição de situações
jurídicas, da lei em vigor no momento da ocorrência dos factos constitutivos.

Mas o conteúdo do princípio da continuidade das situações jurídicas, não se refere à


determinação do âmbito de aplicação no tempo das leis em sucessão, mas à
permanência das situações jurídicas. É um princípio que diz respeito à regulação direta,
pela lei nova, das situações constituídas ao abrigo da lei antiga.

193. A teoria do facto passado

A teoria que na atualidade é mais amplamente aceite em matéria de aplicação da lei no


tempo é a do facto passado.

Segundo esta teoria retroagir é agir sobre o passado; e como o passado se consubstancia
em factos é agir sobre factos passados.

A retroatividade da lei não pode significar uma alteração do passado. Por conseguinte,
quando se fala em agir sobre o passado, trata-se de aplicar a lei nova a factos passados.
A irretroatividade significa pois que aos factos passados se aplica a lei antiga e aos
factos novos a lei nova.

Claro que a teoria do facto passado, quando formulada com esta singeleza, não resolve
todos os problemas. Os factos de que aqui se trata são factos jurídicos, i.e., factos a que
a lei associa efeitos jurídicos. O problema do âmbito de aplicação da lei no tempo
subsiste relativamente aos efeitos jurídicos.

Mas a teoria do facto passado traz consigo um avanço importante relativamente à teoria
dos direitos adquiridos.

O problema da aplicação da lei no tempo não é colocado, em primeira linha, com


referência a direitos, mas a factos. Torna-se um processo mais analítico.

182
Introdução ao Estudo do Direito II 183
Daniel Vieira Lourenço – Turma B

E esta perspetiva é também metodologicamente mais correta porque o tempo é uma


dimensão da realidade fáctica. Os elementos de conexão com que operam as normas de
conflitos de Direito Intertemporal estabelecem-se diretamente com os factos, e não com
realidades jurídicas, como os direitos ou outras situações jurídicas.

Em todo o caso, na moderna ciência jurídica, a teoria do facto passado é complementada


pelo princípio da aplicação imediata da lei nova às situações em curso.

O art. 12.º CC consagra esta combinação da teoria do facto passado com o princípio da
aplicação imediata da lei nova às situações em curso, na formulação que lhe foi dada
por ENNECCERUS/NIPPERDEY.

Segundo esta doutrina, há que distinguir duas questões diferentes: aquilo que uma lei
prescreve sobre a sua aplicação no tempo e, em caso de dúvida, qual o âmbito de
aplicação no tempo que lhe deve ser atribuído. Isto significa que, na falta de declaração
expressa do legislador, a delimitação do âmbito recíproco de aplicação no tempo da lei
antiga e da lei nova é vista como um problema de interpretação da lei nova. O texto do
art. 12.º exprime claramente este enfoque interpretativo, ao formular as regras que
constam da 2.ª parte do n.º 1 e do n.º 2 como regras interpretativas, mediante a
referência a uma “presunção”, no n.º 1, e mediante a utilização da expressão “em caso
de dúvida”, no n.º 2.

Em minha opinião este enfoque interpretativo merece algumas reservas.

A interpretação das normas materiais da lei pode fornecer elementos importantes,


designadamente pelo esclarecimento da occasio legis e da intenção reguladora do
legislador histórico.

Mas tenho as maiores dúvidas que, da interpretação de normas materiais, se possa


retirar dirctamente uma norma de conflitos de leis. O estabelecimento de uma norma de
conflitos de leis requer um raciocínio conflitual, em que intervêm os fins e as técnicas
próprias do Direito Intertemporal. Isto transcende necessariamente a interpretação das
normas materiais.

194. Regras de conflitos gerais do art. 12.º CC

Para resolver os conflitos de leis no tempo deve, em primeiro lugar, atender-se às


normas de conflitos especiais contidas na lei nova.

A lei nova pode atribuir a si própria força retroativa. Isto é expressamente previsto pelo
art. 12.º/1/2.ª parte CC.

Por exemplo, uma lei que proíbe certas cláusulas pode declarar-se aplicável aos
contratos celebrados antes da sua entrada em vigor.

Claro é que a lei ordinária tem de respeitar os limites gerais e específicos à


retroatividade que decorrem da Constituição.

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Introdução ao Estudo do Direito II 184
Daniel Vieira Lourenço – Turma B

Esta retroatividade tem de resultar inequivocamente seja de declaração expressa do


legislador seja de norma implícita estabelecida com recurso aos relevantes critérios de
interpretação.

Na falta de regra de conflitos especial, há que recorrer às regras de conflitos gerais. Em


primeiro lugar deverá atender-se às regras gerais que são privativas do ramo do Direito
em causa. Só na falta ou perante a insuficiência destas cabe recorrer às regras de
conflitos gerais que decorrem do art. 12.º CC.

Segundo este Direito de Conflitos geral, em caso de dúvida deve entender-se que a lei
não é retroativa. É o que decorre da intervenção do princípio da irretroatividade no
quadro dos critérios teleológico-objectivos de interpretação.

No que toca aos atos jurídicos isto encontra-se estabelecido expressamente no art.
12.º/2/1.ª parte. Com efeito, este preceito determina que “Quando a lei dispõe sobre as
condições de validade substancial ou formal de quaisquer factos ou sobre os seus
efeitos, entende-se, em caso de dúvida, que só visa os factos novos”.

Presume-se que a retroatividade é meramente ordinária, i.e., que são ressalvados os


efeitos já produzidos pelos factos que a lei retroativa se destina a regular. Neste sentido
dispõe o art. 12.º/1/2.ª parte CC. Por conseguinte, a retroatividade agravada ou quase
extrema tem de resultar de declaração expressa ou de uma norma implícita estabelecida
com base nos relevantes critérios de interpretação.

Por exemplo, a lei nova que venha fixar uma taxa de juro máxima inferior à até aí
praticada e se declara aplicável aos contratos anteriores, não atinge, salvo demonstração
em contrário, os juros já vencidos no passado.

Quando a lei não se atribui a si mesma força retroativa é ainda necessário determinar o
seu âmbito de aplicação com respeito às situações em curso. A este respeito distingue-se
conforme a lei dispõe sobre factos ou dispõe diretamente sobre o conteúdo de situações
jurídicas abstraindo dos factos que lhes deram origem.

Comecemos por examinar os casos em que a lei dispõe sobre factos.

Segundo o princípio da irretroatividade, entende-se que a lei que dispõe sobre factos ou
sobre os seus efeitos só é aplicável aos factos novos, i.e., que ocorram depois da sua
entrada em vigor. Já vimos que isto se encontra expressamente consagrado, com
respeito aos atos jurídicos, no art. 12.º/2/1.ª parte.

Assim, por exemplo, a lei que venha estabelecer o regime aplicável a um determinado
tipo de contrato, quando não atribua a si própria força retroativa, só é aplicável à
validade e aos efeitos dos contratos celebrados após a sua entrada em vigor.

Observe-se que a lei que dispõe sobre um ato jurídico pode regular só os seus
pressupostos e os seus requisitos de validade e eficácia, ou só os seus efeitos, ou ambos.

Vejamos quais as consequências disto para as situações em curso.

184
Introdução ao Estudo do Direito II 185
Daniel Vieira Lourenço – Turma B

A constituição destas situações continua a ser apreciada segundo a lei antiga, porque é
um efeito desencadeado por um facto que se produziu na vigência desta lei.

Mas como a lei nova é aplicável aos factos novos, se ocorrer um facto que seja, segundo
esta lei, transmissivo, modificativo ou extintivo, a situação jurídica transmite-se,
modifica-se ou extingue-se.

Assim, por exemplo, as normas que sejam aplicáveis aos requisitos de validade do
casamento, só se aplicarão, se outra coisa não resultar inequivocamente da própria lei,
aos casamentos celebrados depois da sua entrada em vigor.

Mas as normas sobre divórcio e separação aplicar-se-ão, sob a mesma condição, aos
casamentos celebrados antes da sua entrada em vigor (pelo menos quando os factos em
que se fundamenta o divórcio ou a separação ocorrerem depois da sua entrada em
vigor).

Voltemo-nos agora para os casos em que a lei dispõe diretamente sobre o conteúdo de
uma situação jurídica, abstraindo do facto que lhe deu origem.

O princípio da irretroatividade já nada nos diz sobre o âmbito de aplicação destas


normas no tempo, i.e., sobre a questão de saber se elas se aplicam só às situações que se
venham a constituir no futuro ou também às situações preexistentes. Deve entender-se,
em caso de dúvida, que a nova lei é aplicável ao conteúdo de todas as situações da
categoria referida que devam produzir efeitos na vigência da nova lei.

Abrange, portanto, tanto o conteúdo das situações que se venham a constituir como o
das situações em curso. É o que resulta do princípio da aplicação imediata da lei nova às
situações em curso.

Neste sentido dispõe o art. 12.º/2/2.ª parte: “quando dispuser directamente sobre o
conteúdo de certas relações jurídicas, abstraindo dos factos que lhes deram origem,
entender-se-á que a lei abrange as próprias relações já constituídas, que subsistam à data
da sua entrada em vigor”. Relações jurídicas é aqui empregue em sentido amplo, por
forma a abranger quaisquer situações jurídicas.

Por exemplo, se uma lei vem estabelecer certas normas sobre o conteúdo da propriedade
horizontal, é de entender, se outra coisa não resultar inequivocamente da própria lei, que
se aplica quer aos direitos de propriedade horizontal que se venham a constituir no
futuro, quer aos que já existam à data da entrada em vigor da lei.

A distinção entre as normas que dispõem sobre factos e normas que dispõem
diretamente sobre o conteúdo de situações jurídicas abstraindo dos factos que lhes
deram origem nem sempre se deixará traçar sem dificuldades.

Esta distinção não se deve traçar apenas em função do teor literal das proposições
jurídicas em causa. Haverá também que atender à matéria em causa.

185
Introdução ao Estudo do Direito II 186
Daniel Vieira Lourenço – Turma B

O conteúdo de certas situações jurídicas é modelado, principalmente, pelos factos


constitutivos (também designados títulos constitutivos). É o que se verifica,
designadamente, com as obrigações contratuais. Assim, as normas sobre esta matéria
são geralmente de entender como normas que dispõem sobre factos. Quando estas
normas dispõem sobre o conteúdo da relação obrigacional é de partir do princípio que
não abstraem do facto constitutivo, que é o contrato.

De onde decorre que, se outra coisa não resultar inequivocamente da lei em causa, ela
só é aplicável aos direitos e obrigações gerados por contratos celebrados depois da sua
entrada em vigor.

Já o conteúdo de outras situações jurídicas é fixado exclusiva ou principalmente pela lei.


É o que se verifica com as situações jurídico-familiares, como o casamento e as relações
entre pais e filhos, com os estados jurídicos gerais, como a maioridade ou a interdição, e
com os direitos reais. As normas que dispõem sobre o conteúdo destas situações ou
qualidades jurídicas abstraem, normalmente, dos factos que lhes dão origem.

De onde decorre que, se outra coisa não resultar inequivocamente da lei em causa, estas
normas são aplicáveis quer às situações que se constituam no futuro quer às situações
preexistentes (situações em curso).

Para traçar esta distinção pode ainda ser necessário atender a outras considerações, caso
a dúvida subsista. A ratio legis pode fornecer indicações relevantes a este respeito: a
prossecução pela nova lei de valores fundamentais de caráter ético, económico, etc.,
constitui um argumento a favor da sua aplicação às situações preexistentes. Outra
consideração a ter em conta, e que se pode relacionar com anterior, é a duração das
situações em causa: é de partir do princípio que o conteúdo das situações de longa
duração fica submetido à lei nova.

Em contrapartida, a circunstância de a nova lei vir introduzir modificações essenciais no


conteúdo de determinada categoria de situações, pode pesar no sentido de excluir a sua
aplicação às situações em curso, mesmo quando tal aplicação decorra do critério geral
exposto. Isto pode fundamentar-se no princípio da continuidade das situações jurídicas.

A distinção conforme a lei dispõe sobre factos ou dispõe diretamente sobre o conteúdo
de situações jurídicas abstraindo dos factos que lhes dão origem deve ser referida a
normas e complexos normativos e não a leis. A mesma lei pode conter normas e
complexos normativos de ambos os tipos. É o que se verifica com o Código Civil.

É ainda de observar que esta distinção tem por consequência, relativamente às situações
em curso, um fracionamento entre constituição e conteúdo. As normas sobre
constituição da situação, contidas na lei nova, só são em princípio aplicáveis às
situações futuras. Por isso a constituição das situações em curso continua ser apreciada
segundo a lei antiga. As normas que disponham diretamente sobre o conteúdo são
aplicáveis às situações em curso. Por isso o conteúdo da situação passa a ser definido
pela nova lei.

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Introdução ao Estudo do Direito II 187
Daniel Vieira Lourenço – Turma B

Poderão surgir algumas dificuldades no caso dos efeitos que pressupõem uma
pluralidade de factos distanciados no tempo. Vejamos alguns princípios de solução.

Quando um dos factos constitui o fundamento real do efeito jurídico e o outro facto
surge como mera condição ou termo, cuja verificação desencadeia o efeito jurídico, será
decisivo o momento da produção do primeiro.

Assim, por exemplo, um negócio jurídico condicional está, em princípio, submetido à


lei em vigor no momento da sua celebração, e não à lei em vigor no momento da
verificação da condição.

Noutros casos, que são a regra, será em princípio aplicável a lei em vigor no momento
em que se completar o preenchimento da previsão normativa, i.e., em que se tiver
verificado o último dos factos pressupostos pela norma.

Assim, por exemplo, a sucessão hereditária será em princípio regida pela lei em vigor
no momento da morte e não pela lei em vigor no momento da constituição do vínculo
de parentesco.

Leis sobre prazos. Previsões de realização continuada e de formação sucessiva

Nos n.ºs 1 e 2 do art. 297.º CC encontramos regras sobre a aplicação no tempo das leis
que estabelecem prazos.

“1. A lei que estabelecer, para qualquer efeito, um prazo mais curto do que o fixado na
lei anterior é também aplicável aos prazos que já estiverem em curso, mas o prazo só se
conta a partir da entrada em vigor da nova lei, a não ser que, segundo a lei antiga, falte
menos tempo para o prazo se completar.

“2. A lei que fixar um prazo mais longo é igualmente aplicável aos prazos que já
estejam em curso, mas computar-se-á neles todo o tempo decorrido desde o seu
momento inicial.”

O n.º 1 refere-se à hipótese de a lei nova encurtar o prazo. Nesta hipótese a lei nova
aplica-se aos prazos em curso, mas o novo prazo só se conta a partir do início da
vigência da nova lei.

Assim, por exemplo, se o prazo era de cinco anos, e depois de decorrido um ano entra
em vigor uma nova lei que estabelece um prazo de dois anos, contam-se dois anos a
partir da entrada em vigor da nova lei.

No entanto, quando o tempo que falta para se completar o prazo fixado pela lei antiga
for menos que o prazo fixado pela nova lei, aplica-se a lei antiga.

Assim, por exemplo, se o prazo era de cinco anos, e depois de decorridos quatro anos
entra em vigor uma nova lei que estabelece um prazo de dois anos, o prazo continua a
contar-se segundo a lei antiga..

187
Introdução ao Estudo do Direito II 188
Daniel Vieira Lourenço – Turma B

A hipótese de a nova lei alongar o prazo é contemplada pelo n.º 2. Nesta hipótese
determina-se a aplicação da lei nova, mas computando-se todo o tempo decorrido
durante a vigência da lei antiga.

Por exemplo, se o prazo fixado pela lei antiga era de dois anos, e quando havia
decorrido um ano entrou em vigor uma lei nova, que fixa o prazo em cinco anos, é este
o prazo que se aplica, mas, para o efeito, conta o ano já decorrido durante a vigência da
lei antiga.

A previsão das normas sobre prazos é de realização continuada. O problema da sua


aplicação no tempo é um aspeto particular da problemática da aplicação no tempo das
normas dotadas de previsões de realização continuada ou de formação sucessiva.

As previsões de realização continuada são aquelas que se reportam a factos cuja


verificação se prolonga no tempo. Também se fala, neste contexto, de factos
continuados.

As previsões de formação sucessiva são aquelas que se reportam a uma pluralidade de


factos que devem ocorrer em momentos sucessivos. Estes factos também podem ser
vistos como elementos de um facto complexo, que se designará então por facto de
produção sucessiva.

Já decorre do exposto no número anterior que a teoria do facto passado tem sido
entendida no sentido de o momento relevante, para a aplicação da lei no tempo, ser
aquele em que se completa o preenchimento da previsão de realização continuada ou de
formação sucessiva. Só não é assim quando o facto posterior constitui uma mera
condição ou termo.

Segundo este entendimento mais corrente, se o preenchimento se completou na vigência


da lei anterior temos uma situação conclusa; se esta situação não esgotou todos os seus
efeitos na vigência da lei anterior, temos uma situação em curso.

Em princípio, será aplicável a lei nova enquanto disponha diretamente sobre o conteúdo
da situação, abstraindo do facto constitutivo, mas a sua constituição continuará a ser
apreciada segundo a lei antiga. Há ainda que atender ao princípio da continuidade das
situações jurídicas.

Se o preenchimento da previsão não se completou na vigência da lei anterior, temos


uma situação inconclusa. Neste caso, decorre do referido entendimento que é
exclusivamente aplicável a lei nova.

Pode suceder que a lei nova não atribua relevância jurídica ao facto continuado ou de
produção sucessiva que em parte se verificou na vigência da lei antiga. Por exemplo, a
lei antiga previa a prescrição aquisitiva de um determinado direito, que a lei nova não
prevê. Se o direito não chegou a ser adquirido segundo a lei antiga também não pode ser
adquirido face à lei nova. O problema morre aí.

188
Introdução ao Estudo do Direito II 189
Daniel Vieira Lourenço – Turma B

É mais frequente, porém, que a lei antiga e a lei nova atribuam relevância a factos da
mesma espécie. É o que se passa com uma sucessão de leis sobre prazos: o facto
decurso do tempo tanto releva perante a lei antiga como perante a lei nova. Coloca-se
então a questão de saber qual a relevância, perante a lei nova, da verificação parcial do
facto na vigência da lei antiga.

Nem a teoria do facto passado nem o princípio da continuidade das situações jurídicas
fornecem orientação para a resolução deste problema. Para a sua resolução afigura-se
antes decisiva a seguinte consideração: se tanto a lei antiga como a lei nova valoram
juridicamente o facto, e no mesmo sentido, negar relevância jurídica à verificação
parcial do facto durante a vigência da lei antiga constituiria uma contradição valorativa.

Em suma, as situações inconclusas também são relevantes, quando a lei nova liga um
efeito jurídico a factos continuados ou de produção sucessiva da mesma espécie dos
previstos pela lei anterior. Neste caso, os factos ou a parte do facto ocorridos na
vigência da lei anterior terão o valor que lhes for atribuído pela lei nova. Por outras
palavras, tudo se passará como se esses factos tivessem ocorrido na vigência da lei
nova.

O entendimento que acabo de sufragar encontra-se consagrado com respeito à sucessão


no tempo das leis sobre prazos.

No entanto, no caso de o prazo fixado pela lei nova ser mais curto há um desvio aos
princípios de solução expostos, porque o encurtamento do prazo poderia ter efeitos de
surpresa que são contrários à segurança jurídica. Por exemplo, mediante o encurtamento
de um prazo de prescrição (extintiva) um direito poderia ficar automaticamente
prescrito com a entrada em vigor da lei nova.

A ratio do art. 297.º/1 CC também abrange os casos em que a lei antiga não estabelecia
qualquer prazo e ele veio a ser estabelecido pela lei nova. Assim, por exemplo, no caso
de a lei nova vir estabelecer um prazo para o exercício do direito, que a lei antiga não
continha, o prazo só se deve contar a partir do início da vigência da lei nova

As mesmas soluções são aplicáveis quando a lei nova altera o momento a partir do qual
um prazo se começa a contar. Se o momento inicial é antecipado aplica-se o art. 297.º/1
CC. Se é retardado aplica-se o art. 297.º/2 CC.

Por exemplo, tendo o novo art. 122.º CC antecipado a maioridade para os 18 anos
completos, os prazos que deveriam contar-se a partir do momento da maioridade só se
computam a partir da entrada em vigor da nova lei.

Segundo BAPTISTA MACHADO, o art. 297.º não será aplicável aos prazos cujo
decurso não desencadeia, de per si, a produção de qualquer efeito jurídico, como será o
caso dos prazos pressupostos por presunção legais ou de que depende o exercício de
faculdades legais. Assim, por exemplo, a lei que encurta o tempo necessário para a
conversão da separação em divórcio, será aplicável imediatamente e sem mais.

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Introdução ao Estudo do Direito II 190
Daniel Vieira Lourenço – Turma B

O tempo decorrido ao abrigo da lei antiga releva segundo o autor como “facto
pressuposto” e não como facto constitutivo.

Para BAPTISTA MACHADO e TEIXEIRA DE SOUSA serão casos de retroconexão


da lei nova e não de retroatividade. Numa primeira aproximação parece-me que a
diferença relativamente à retroatividade está em que a lei nova toma em conta o facto
ocorrido na vigência da lei antiga mas não lhe associa, por si, efeitos jurídicos.

Na linha do sugerido por BAPTISTA MACHADO e TEIXEIRA DE SOUSA, parece


que o art. 297.º também não será aplicável aos prazos supletivos estabelecidos em
matéria de negócios jurídicos, designadamente prazos de caducidade que podem ser
alterados por vontade das partes. A aplicação no tempo das leis que alteram estes prazos
fica em princípio sujeita às regras de conflitos gerais fixadas para os negócios jurídicos.

Leis Interpretativas

A propósito da classificação das regras jurídicas já procedemos à caracterização das


regras interpretativas. Como então se disse a regra interpretativa é a que se limita a fixar
o sentido juridicamente relevante de uma proposição jurídica.

As regras interpretativas relacionam-se com a interpretação autêntica, que já estudámos.


A lei que realiza a interpretação autêntica é sempre uma lei interpretativa, mas poderá
haver regras interpretativas que, por provirem de fonte hierarquicamente inferior à fonte
interpretada, não realizam uma interpretação autêntica. Quando se coloca o problema da
aplicação no tempo das leis interpretativas têm-se em vista aquelas que realizam a
interpretação autêntica.

O art. 13.º CC/1 estabelece que “A lei interpretativa integra-se na lei interpretada,
ficando salvos, porém, os efeitos já produzidos pelo cumprimento da obrigação, por
sentença passada em julgado, por transacção, ainda que não homologada, ou por actos
de análoga natureza”.

Que se quer significar por integração da lei interpretativa na lei interpretada?

Por integração da lei interpretativa na lei interpretada quer-se significar que a lei
interpretativa se aplica aos mesmos factos e situações que a lei interpretada. Tudo se
passa como se a lei interpretativa tivesse sido publicada na data em que o foi a lei
interpretada. Ao aplicar-se a factos que ocorreram antes da sua entrada em vigor ela vai
valorar condutas que se podem ter baseado noutra das interpretações possíveis.

Parece, por isso, preferível o entendimento segundo o qual a lei interpretativa é


retroativa (OLIVEIRA ASCENSÃO).

É uma retroatividade agravada, por que só respeita, dos efeitos já produzidos pelos
factos passados, aqueles que tiverem um título que lhes dê especial reconhecimento.

190
Introdução ao Estudo do Direito II 191
Daniel Vieira Lourenço – Turma B

Estes títulos são o caso julgado, o cumprimento da obrigação, a transação, i.e., o


contrato pelo qual as partes previnem ou terminam um litígio mediante recíprocas
concessões (art. 1248º/1 CC), e atos de análoga natureza.

Por que razão são ressalvados estes efeitos?

No caso do cumprimento da obrigação podemos dizer que, em princípio, a situação


esgotou os seus efeitos antes da entrada em vigor da lei interpretativa.

Nos restantes casos temos situações que se tornaram certas e pacíficas antes da entrada
em vigor da nova lei, já através de decisão judicial, já através de um acordo das partes
destinado a prevenir ou resolver um litígio.

É a esta luz que teremos de interpretar a expressão “actos de análoga natureza”. Serão
então de natureza análoga – como assinalam PIRES DE LIMA/ANTUNES VARELA e
BAPTISTA MACHADO – todos os atos que importem a definição ou reconhecimento
expresso do Direito, como é o caso da desistência – que é o abandono da pretensão, pelo
autor de uma ação – e da confissão do pedido – que é o reconhecimento, pelo réu, da
pretensão formulada pelo autor.

No entanto, se a lei interpretativa for favorável ao desistente ou confitente este pode


revogar a desistência ou confissão não homologadas pelo tribunal. É o que decorre do
n.º 2 do art. 13.º.

Para os referidos autores serão ainda de natureza análoga “de uma maneira geral, os
factos extintivos, tais como a compensação e a novação”. Aqui haverá que atender a
uma analogia com a extinção da obrigação pelo cumprimento. Esta analogia é de
afirmar relativamente a outros atos que constituem causas de extinção das obrigações,
como a compensação e a novação.

A compensação é o meio de o devedor se liberar da obrigação por extinção simultânea


do crédito equivalente de que disponha sobre o credor (arts. 847.º e segs. CC). A
novação é a extinção duma obrigação mediante a constituição de uma nova obrigação
em substituição da antiga (arts. 857.º e segs. CC).

Mas já não é líquido que se possa afirmar a analogia relativamente a quaisquer factos
extintivos de situações jurídicas.

Sucede por vezes que o legislador qualifica como interpretativa uma lei que é
substancialmente inovadora. O sentido desta qualificação é, normalmente, o de atribuir
retroatividade agravada à lei em questão.

Embora esta prática seja criticável do ponto de vista de técnica legislativa, o intérprete
deve acatar a retroatividade da lei, contanto que esta seja constitucionalmente permitida
e não contrarie lei ordinária hierarquicamente superior.

As determinações constitucionais de irretroatividade não podem ser contornadas


mediante a qualificação de uma lei como interpretativa. O intérprete tem de controlar o

191
Introdução ao Estudo do Direito II 192
Daniel Vieira Lourenço – Turma B

caráter interpretativo da lei. Assim, por exemplo, uma lei ordinária não pode, sob
pretexto de interpretação, vir alargar retroativamente o âmbito de aplicação de um tipo
de crime e muito menos criar retroativamente novos tipos de crime.

Enquanto as regras do art. 12.º CC estão formuladas como regras interpretativas, a regra
do art. 13.º/1 CC está formulada de modo precetivo, que poderia sugerir a vinculação do
próprio legislador. Mas isto não é inteiramente exato.

Parece-me que o legislador tanto pode estabelecer que a lei interpretativa não é
retroativa ou só é ordinariamente retroativa como, dentro dos limites constitucionais,
que a lei interpretativa tem retroatividade quase extrema. A regra do art. 13.º, enquanto
regra de conflitos geral, só será aplicável na falta de regra de conflitos especial.

De resto, uma vez que o art. 13.º é uma disposição ordinária, só se sobreporá às normas
sobre aplicação no tempo de fonte hierarquicamente inferior à lei formal.

Concretização Das Regras Gerais - Negócios Jurídicos E Obrigações

É frequentemente defendido que à formação, validade e eficácia dos negócios se aplica


a lei em vigor ao tempo da sua celebração.

Mas talvez se justifique uma posição mais cautelosa, que tenha em conta a grande
diversidade dos negócios jurídicos e, designadamente, o grau muito variável em que o
seu conteúdo é legalmente conformado.

Será por conseguinte aconselhável distinguir os negócios jurídicos obrigacionais, reais,


jurídico-familiares, sucessórios, etc., e atender à amplitude da liberdade de estipulação
permitida.

Por outro lado, são frequentes as disposições de Direito Intertemporal segundo as quais
um ato inválido à face da lei antiga só poderá ser anulado ou declarado nulo se não
satisfizer os requisitos estabelecidos pela lei nova. Veja-se os arts. 13.º, 14.º e 22.º do
DL n.º 47344, que aprovou o Código Civil, relativos ao casamento, aos atos praticados
pelos cônjuges e aos testamentos, respetivamente.

BAPTISTA MACHADO fala a este respeito de leis confirmativas.

BAPTISTA MACHADO e OLIVEIRA ASCENSÃO vêm aqui a expressão de um


princípio mais geral.

Para BAPTISTA MACHADO, poderá ser possível salvar a validade do ato celebrado
durante a vigência da lei antiga, por aplicação da lei nova, mesmo que esta lei não
disponha expressamente nesse sentido. Seria no entanto de exigir que a interpretação da
lei nova como confirmativa tenha um mínimo de apoio no texto legal e que a sua
aplicação não prejudique o interesse de uma contraparte ou de terceiros.

OLIVEIRA ASCENSÃO refere-se a um princípio “no sentido do aproveitamento dos


atos praticados quando perante a lei nova esses atos seriam válidos”.

192
Introdução ao Estudo do Direito II 193
Daniel Vieira Lourenço – Turma B

TEIXEIRA DE SOUSA distingue conforme o negócio jurídico estiver ou não a


produzir efeitos no momento da entrada em vigor da lei nova. Só no primeiro caso é que
se justificaria aplicar retroativamente a lei nova mais favorável à validade do negócio.

Como já observei, é seguro que as normas sobre contratos obrigacionais são, em


princípio, de entender como normas que dispõem sobre factos. Mesmo que se trate de
normas que regulam o conteúdo de relações contratuais, este conteúdo determina-se,
principalmente, pelos factos constitutivos.

É todavia possível que uma lei venha dispor diretamente sobre o conteúdo de relações
contratuais, abstraindo dos factos dos factos constitutivos. Por exemplo, uma lei que
proíba certas cláusulas contratuais; uma lei que venha alterar o regime do arrendamento
urbano.

Mas creio que, para chegar a esta conclusão, na falta de disposição de Direito
Transitório especial, o intérprete terá sempre de demonstrar que é intenção legislativa
atingir os contratos celebrados antes da entrada em vigor da lei.

Esta demonstração está naturalmente facilitada nos casos em que a lei incide sobre
relações contratuais, como o arrendamento urbano, que são de longa duração; ou em
que a lei prossiga em primeira linha fins de política económica, social, etc.

Nalguns casos esta aplicação da lei nova aos contratos em curso decorre
inequivocamente da ratio legis. Assim quando a lei nova tenha por objetivo reequilibrar
as relações contratuais que, em razão de perturbações políticas e sociais ou de
circunstâncias económicas imprevisíveis, viram a sua economia interna perturbada.

As normas sobre obrigações involuntárias são geralmente de entender como normas que
dispõem sobre factos. Por conseguinte, a responsabilidade extracontratual será regulada
pela lei vigente ao tempo da ocorrência do facto gerador de responsabilidade.

198. Cont. - direitos reais

Por aplicação das regras gerais, atrás expostas, a lei nova que disponha sobre o conteúdo
do direito real é aplicável aos direitos reais adquiridos na vigência da lei antiga, mas a
aquisição continua a ser apreciada segundo a lei antiga.

Assim, por exemplo, para determinar o conteúdo de um direito de propriedade,


adquirido antes da entrada em vigor do Código Civil vigente, é aplicável este Código
Civil.

Mas a lei reguladora da aquisição é a lei vigente ao tempo da ocorrência do facto


aquisitivo. Se a propriedade foi adquirida por contrato, será aplicável a lei em vigor ao
tempo celebração do contrato.

Embora, em princípio, as normas que regulam o conteúdo de um direito real abstraiam


do facto constitutivo, é de admitir a possibilidade de certas normas disporem sobre o
conteúdo do direito real enquanto efeito do facto constitutivo.

193
Introdução ao Estudo do Direito II 194
Daniel Vieira Lourenço – Turma B

Isto é concebível, designadamente, com aqueles elementos do conteúdo dos direitos


reais que podem ser modelados contratualmente.

A verificar-se esta hipótese, os elementos do conteúdo do direito real que são


dominados pelo facto constitutivo continuarão submetidos à lei em vigor no momento
da constituição.

199. Cont. - relações de família

As regras gerais sobre situações em curso aplicam-se também aos estados de família. O
estado de casado, adotado, etc., é um efeito produzido ao abrigo da lei em vigor no
momento da celebração do casamento ou da sentença de adoção. Portanto, a lei
posterior não atinge, salvo retroatividade, a constituição do estado. Mas a lei nova é
aplicável ao conteúdo do estado.

Assim, por exemplo, a lei que vem estabelecer requisitos de forma do casamento
diferentes dos formulados pela lei anterior só é aplicável aos casamentos doravante
celebrados. Mas as normas da lei nova relativas aos direitos e deveres dos cônjuges são
aplicáveis aos casamentos celebrados durante a vigência da lei antiga.

A fixação do regime de bens do casamento é um efeito produzido segundo a lei em


vigor ao tempo da celebração da convenção antenupcial e, na sua falta, ao tempo da
celebração do casamento. Por isso, a nova lei não pode, sem retroatividade, vir alterar o
regime de bens convencional ou supletivo. Fixado o regime de bens perante a lei antiga,
serão em princípio aplicáveis as regras da lei nova relativas ao conteúdo do regime de
bens.

Todavia, a solução mais frequente, e que foi seguida pelo Direito Transitório especial
contido no diploma que aprovou o Código Civil (art. 15.º), é a de o conjunto das normas
sobre regime de bens da lei nova só ser aplicável aos regimes de bens fixados depois da
sua entrada em vigor.

200. Cont. - sucessões por morte

A sucessão por morte é um conjunto de efeitos jurídicos desencadeados pela morte do


autor da sucessão. Isto quer se trate de sucessão legal ou de sucessão voluntária, i.e., da
sucessão regulada por um negócio jurídico, maxime um testamento. As regras gerais
levam, por conseguinte, à aplicação da lei em vigor no momento da abertura da
sucessão, que é o momento da morte do autor da sucessão.

Assim, se depois da abertura da sucessão, mas antes da partilha, surge uma lei que altera
as regras da sucessão legal, esta sucessão continua a reger-se pela lei em vigor ao tempo
da abertura da sucessão.

Do exposto não decorre que a formação e validade formal do testamento estejam


submetidas à mesma lei que regula a sucessão.

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Introdução ao Estudo do Direito II 195
Daniel Vieira Lourenço – Turma B

As normas sobre a formação e validade do testamento são normas que dispõem sobre
factos e, por conseguinte, salvo retroatividade, só seriam aplicáveis aos testamentos
feitos durante a sua vigência.

Sucede, porém, que o conteúdo do testamento diz respeito a efeitos que só se produzem
com a abertura da sucessão e, por isso, o testamento tem de ser substancialmente válido
perante a lei reguladora da sucessão.

Já a formação e a validade formal são apreciadas segundo a lei em vigor ao tempo da


feitura do testamento. Por isso, se houver uma sucessão de leis entre a feitura do
testamento e a abertura da sucessão, a formação e a validade formal do testamento
continuam a ser apreciadas segundo a lei antiga.

201. Direito Penal

Já assinalei que nesta matéria há que ter em conta a proibição constitucional de


retroatividade da incriminação e das medidas de segurança.

Mas do art. 29.º/4 CRP também decorre a aplicação retroativa das leis penais de
conteúdo mais favorável ao arguido.

Esta determinação é concretizada pelos n.ºs 2 e segs. do art. 2.º CP.

N.º 2: “O facto punível segundo a lei vigente no momento da sua prática deixa de o ser
se uma lei nova o eliminar do número de infracções; neste caso, e se tiver havido
condenação, ainda que transitada em julgado, cessam a execução e os seus efeitos
penais”.

N.º 3: “Quando a lei valer para um determinado período de tempo, continua a ser
punível o facto praticado durante esse período”.

N.º 4: “Quando as disposições penais vigentes no momento da prática do facto punível


forem diferentes das estabelecidas em leis posteriores, é sempre aplicado o regime que
concretamente se mostrar mais favorável ao agente; se tiver havido condenação, ainda
que transitada em julgado, cessam a execução e os efeitos penais logo que a parte da
pena que se encontrar cumprida atinja o limite máximo da pena prevista na lei
posterior”.

Neste caso a nova lei não descriminaliza, mas altera o regime legal aplicável. Aplica-se
também retroativamente a lei nova mais favorável.

202. Direito Processual

Neste domínio vigora, segundo o entendimento tradicional, a regra geral da aplicação


imediata da lei nova. Quer isto dizer que a lei processual nova é aplicável aos processos
relativos a factos ocorridos antes da sua entrada em vigor e, mesmo, aos processos já em
curso.

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Introdução ao Estudo do Direito II 196
Daniel Vieira Lourenço – Turma B

No entanto, há autores, como BAPTISTA MACHADO e CASTRO MENDES, que


entendem que não vigora, no domínio processual, um princípio específico, e que se
aplicam as regras gerais contidas nos arts. 12.º e 13.º CC.

Se olharmos aos factos processuais – e não aos factos relativos à relação material
controvertida –, podemos dizer que aquilo que se designa por aplicação imediata da lei
processual nova se reconduz, em princípio, à regra geral segundo a qual a lei dispõe
sobre os factos ocorridos durante a sua vigência.

Assim, quanto à forma dos atos processuais e do processo, dispõe o art. 136.º CPC:

“1 – A forma dos diversos actos processuais é regulada pela lei que vigore no momento
em que foram praticados.

“2 – A forma do processo aplicável determina-se pela lei vigente à data em que a acção
é proposta”.

A fixação da forma do processo pode ser vista como um efeito que é ligado ao facto
propositura da ação, pela lei vigente ao tempo da sua ocorrência.

Também relativamente à competência, o art. 38.º da Lei de Organização do Sistema


Judiciário (L n.º 62/2013, de 28/8) determina que a competência se fixa no momento em
que a ação se propõe (n.º 1) e que são irrelevantes as modificações de Direito, exceto se
for suprimido o órgão a que a causa estava afeta ou lhe for atribuída competência de que
inicialmente carecia para o conhecimento da causa (n.º 2). Isto deve ser conjugado com
o art. 61.º CPC, que ao admitir que a lei nova seja aplicável, em matéria de
competência, aos processos pendentes, parece supor o efeito retroativo da lei nova.

Claro que nada disto prejudica as regras de conflitos especiais contidas na lei nova. É o
caso das regras contidas nos arts. 5.º a 7.º da L n.º 41/2013, de 26/6, que aprovou o novo
CPC.

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Introdução ao Estudo do Direito II 197
Daniel Vieira Lourenço – Turma B

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