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Atividade 5 - Discussão sobre o espaço macrossocial da modernidade colonial e da Diáspora

Africana na América Latina


Pesquisa Social (2022/2) - PPGS UFSCar

Cairo Henrique dos Santos Lima

Para situar o afrofuturismo enquanto movimento estético-político no interior das formações


culturais da Diáspora Africana, é necessário considerar não apenas as especificidades da Diáspora em
suas manifestações latino-americanas, mas também, as relações entre o surgimento da modernidade a
partir do processo colonialista e a Diáspora Africana como foco de resistência à universalização deste
projeto moderno-colonial (GROSFOGUEL, 2016; QUIJANO, 2005). A caracterização política das
relações estabelecidas entre diferentes povos e suas respectivas formas de cultura e de interpretação
histórica, especialmente a partindo das rotas atlânticas, exige levar em conta os processos do
colonialismo e da colonialidade, isto é, dos processos que levaram à formação de um sistema global de
dominação e exploração baseado na ideia de raça e dos parâmetros de poder, saber e ser por trás dessa
articulação.

O processo colonial de formação da modernidade eurocentrada envolve relações entre os


interesses das elites da Europa Ocidental com a formação do sistema-mundo capitalista, isto é, de uma
forma de organização universal das formas de controle do trabalho a partir de um novo padrão de
poder global, baseado na raça como instrumento de classificação social, de dominação e de exploração
dos povos não-europeus (QUIJANO, 2005). A importância da América Latina no momento da gênese
epistemológica da modernidade é que funcionou como espaço de construção de um novo projeto
político, vinculado ao novo padrão de poder, e, consequentemente, de intersubjetividade, que viria a
ser alçado como padrão “moderno” através da naturalização de transformações históricas.

Culturas originárias como dos maias, astecas e dos povos de Tahuantinsuyo (posteriormente
conhecidos como Incas) foram desconsideradas como uma fonte de singularidade indesejável no
trajeto de homogeneização social pretendido por países hegemônicos na disputa colonial
latinoamericana, como a Inglaterra, no norte do continente, e países como a Espanha e Portugal, no sul
(MIGNOLO, 2008). Em ambos os casos, o surgimento e o desenvolvimento deste projeto colonial de
classificação, dominação e exploração social, passou por uma uniformização (unilinear e
unidirecional) das formas de controle do trabalho, do sexo, da intersubjetividade, do conhecimento, da
experiência, e, em suma, das culturas pré-existentes entre povos originários da América Latina e povos
sequestrados, sobretudo, no continente africano - sendo as próprias identidades geoculturais dos
continentes um objeto de disputas históricas.

Com base em estratégias de resistência cultural como o sincretismo, a interiorização ou a


codificação linguística (GILROY, 2012), a Diáspora Africana na América Latina pode ser
compreendida enquanto uma parte constitutiva da modernidade, tendo em vista que a exteriorização da
colonialidade não implica sua desvinculação, isto é, a quantidade de trabalho gratuito apropriado dos
povos indígenas e africanos por povos europeus na América Latina é a base dos privilégios e da forma
geopolítica da modernidade (QUIJANO, 2005). Por isso, a Diáspora Africana como vetor de projetos
decoloniais, pode ser vista como formação duradoura no tempo, surgindo, não em função da
modernidade, mas pelo revés dessa função, pelos elementos que foram excluídos como indesejados,
mas preservados e ressignificados.

A dispersão das formas resistentes de manifestação cultural da Diáspora Africana na América


Latina ocorre de acordo com as condições sociais estabelecidas, em termos, por exemplo, da situação
de representação proporcional, minoritária ou majoritária de determinados grupos étnico-raciais no
seio dos Estados-Nação. Considerando a inadequação crônica do projeto eurocêntrico de
implementação do Estado-Nação europeu como modelo de desenvolvimento político-econômico em
regiões não-européias do mundo (HALL, 2003), todos estes Estados falham na homogeneização social
da população por motivos diversos.
Entretanto, destacamos que as ausências e as incompletudes do projeto moderno-colonial na
América Latina também forneceram as próprias condições de sobrevivência para formas culturais da
Diáspora Africana através da hibridação cultural (CANCLINI, 2019). No caso particular do Brasil, a
situação de imposição da ideologia de “democracia racial” junto ao estabelecimento de instrumentos
políticos para o avanço do projeto eugenista, que vigoraram até, no mínimo, o início do século XX,
traz condições muito complexas para a organização de estratégias de resistência cultural. A
peculiaridade do território brasileiro, de sua extensão e de sua variação imensas, geraram expressões
polivalentes dessa resistência cultural afrodiaspórica, como no caso do Jongo, da Congada, do
Carimbó, da própria Capoeira, entre outras.

A respeito do afrofuturismo especificamente é necessário trazer à tona uma genealogia mais


contemporânea de formas, vindas principalmente da literatura negra estadunidense, dos primeiros
movimentos artísticos afrodiaspóricos transnacionais e, recentemente, do movimento hip-hop
(ANDERSON & JENNINGS, 2014). Resgatando o contexto de desenvolvimento econômico “tardio”,
temos, no Brasil, um processo de substituição de importações que alavanca, entre as décadas de 1940 e
1980, a construção de uma sociedade de consumo ampla, capaz de dinamizar trocas comerciais, mas
não de homogeneizar uma identidade nacional.

Com o avanço da sociedade de consumo, certos tipos de produtos e tecnologias culturais são
deslocadas na hierarquia do acesso social, mais especificamente os aparatos de reprodução, como no
caso do toca-discos e do CD player portátil (SEVCENKO, 2001), que, à medida que eram superados
no mercado em vista da concorrência multinacional, eram apropriados e ressignificados por pessoas de
classes mais baixas - lembrando que, segundo Aníbal Quijano (2005) as classes “tem ‘cor” na América
Latina. Isso ocorre também tendo em vista a tendência de se pensar a cultura na América Latina a
partir de sua transformação popular através das mídias, digitais e/ou de massa, em geral, relacionada
ao interstício entre tecnologias culturais e saberes populares..

A importância do toca-discos nos anos 1980 no Brasil, por exemplo, é fundamental para o
surgimento do hip-hop como formação cultural de resistência, em vista da instrumentalização técnica
do aparelho de reprodução musical para a produção artística, seja de mais músicas, através da
bricolagem, seja de novos espaços de sociabilidade, como no caso dos bailes “black” (FÉLIX, 2005).
O afrofuturismo surge nesse contexto, tendo em vista as homologias da cultura hip-hop com a cultura
das periferias urbanas do Brasil e a ressignificação constante de tecnologias digitais. O afrofuturismo,
voltando-se ao futuro como dimensão política do tempo, catalisa muitas das preocupações constantes
na estética e no discurso comumente atribuído ao hip-hop, a exemplo do medo de morrer por bala
perdida, da busca por dinheiro como condição de existência, do uso da arte como meio de resistir.
Entretanto, no contexto brasileiro e também latinoamericano, inúmeras outras influências devem ser
relacionadas ao trajeto de desenvolvimento do afrofuturismo, dando-lhe uma explicação devidamente
sociológica.

Bibliografia

ANDERSON, Reynaldo; JENNINGS, John. The Digital Turn and the Visual Art of Kanye West.
Exeter University: Palgrave Connect, 2014.

CANCLINI, Néstor García. Culturas Híbridas: estratégias para entrar e sair da Modernidade.
São Paulo: EDUSP, 2019.

FÉLIX, João Batista de Jesus. Hip-hop: cultura e política no contexto paulistano. (Tese de
Doutorado). Programa de pós-graduação em Antropologia Social, Universidade de São Paulo, 2005.

HALL, Stuart. Da diáspora: Identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: Editora UFMG;
Brasília: Representação da UNESCO no Brasil, 2003.
GILROY, Paul. O Atlântico negro: modernidade e dupla consciência. São Paulo: Editora 34; Rio
de Janeiro: Universidade Cândido Mendes, 2012.

GROSFOGUEL, Ramón. A estrutura do conhecimento nas universidades ocidentalizadas:


racismo/sexismo epistêmico e os quatro genocídios/epistemicídios do longo século XVI. Revista
Sociedade e Estado, v. 31, n. 1, jan./abr., p. 25-49, 2016.

MIGNOLO, Walter. Desobediência epistêmica: a opção descolonial e o significado de identidade


em política. Cadernos de Letras da UFF - Dossiê: Literatura, língua e identidade, nº 34, p. 287-324,
2008.

QUIJANO, Aníbal. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. In: A colonialidade


do saber: eurocentrismo e Ciências Sociais. Buenos Aires: CLACSO, 2005.

SEVCENKO, Nicolau. A corrida para o século XXI: no loop da montanha-russa. São Paulo:
Companhia das Letras, 2001.

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