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Andressa Ferreira1
Jean Carlos Moreno2
Resumo
Abstract
This paper analyzes the possibilities of building didactic experiences on teaching Latin-
American women’s history to middle school students, using the narratives and representations
within the Antiprincesas collection of books. The biographical narrative was proposed at the
same time as a methodology and as an object of study. Aiming to overcome the eurocentric and
male-centric representations, strategies that question History teaching and learning on their
cognitive, emotional and social dimensions are discussed.
Keywords
Introdução
Questionadas no Brasil com mais intensidade desde os anos 1980, as relações entre a
modernidade, a colonialidade e o ensino escolar de História têm ficado cada vez mais evidentes
Superar a Colonialidade
O grupo Modernidade/Colonialidade (M/C), propugnador do paradigma decolonial, foi
constituído no final dos anos 1990, sendo composto por intelectuais latino-americanos situados
em diferentes universidades das Américas. Radicalizando as teorias pós-coloniais, o coletivo
M/C propõe uma renovação crítica e utópica das ciências sociais por meio da opção decolonial,
um movimento de resistência epistêmico, teórico e político à colonialidade global
(BALLESTRIN, 2013).
As teorias formuladas por autores integrantes do grupo M/C evidenciam que as relações
coloniais entre países do norte global imperialista e sul global colonizado não se extinguiram
com o fim do colonialismo. A colonialidade reflete-se, atualmente, como a complexa rede
estrutural do poder capitalista redefinida no contexto de um sistema-mundo globalizado,
dividindo-se nas esferas da natureza, economia, ser, saber e gênero.
María Lugones, filósofa feminista, integra o acervo teórico do grupo M/C ao utilizar o
conceito de gênero como uma ferramenta analítica acerca das relações de poder impostas no
contexto de invasão colonial. Conceitos como colonialidade de gênero abrangem reflexões
decoloniais e feministas, enriquecendo o debate fomentado pelo grupo. A autora amplia as
análises de Anibal Quijano acerca do conceito de colonialidade do poder, articulando-o à
problemática de gênero. Por isso, para compreender suas reflexões, é preciso, antes, prospectar
as análises do autor.
Destarte, a colonização da América foi concomitante à constituição de um novo padrão
mundial de poder: a colonialidade. Por um lado, estes fatores resultaram na classificação e
hierarquização da população mundial em torno da ideia de raça. Por outro, implicaram na
consolidação do capitalismo em termos globais, como uma nova forma de controle do trabalho,
de seus recursos e produtos, inaugurando os mercados mundiais. A colonialidade, portanto,
fundamenta a ideia de raça e é constitutiva do poder capitalista (QUIJANO, 2005).
A modernidade emerge neste contexto, resultado do colonialismo instaurado na
América. Neste sentido Mignolo afirma não haver modernidade sem colonialidade, sendo um
elemento intrínseco ao outro (MIGNOLO, 2017).
A colonialidade do poder, conceitualizada por Quijano como um termo que define “um
dos elementos fundantes do atual padrão de poder, a classificação social básica e universal da
população do planeta em torno da ideia de raça” (QUIJANO, 2002, p.1), foi imposta pelos
europeus na atual América Latina durante o período de invasão colonial, definindo os povos
originários como raças biologicamente inferiores. Neste contexto, identidades sociais
historicamente novas foram forjadas: europeus, índios, mestiços e negros são termos que
conotam indivíduos classificados e hierarquizados racialmente.
Consubstanciada sobretudo pela filosofia da história hegeliana, a ideia da existência de
raças superiores e inferiores rumo a padrões teleológicos de evolução foi o alicerce que
legitimou as relações de dominação impostas pela conquista colonial. A “missão civilizatória”
europeia seria responsável por guiar coletividades primitivas para dimensões mais elevadas da
linear evolução humana. A invasão colonial, portanto, justificou-se sob estes aspectos.
Os povos originários foram classificados como não-humanos, espécies animais
“incontrolavelmente sexuais e selvagens”. Inferiorizados segundo critérios raciais, tiveram suas
subjetividades negadas pela conquista colonial. Humanos eram os sujeitos europeus, pois
dotados de “civilidade”. Todos os outros foram categorizados como bestas selvagens. Por estes
critérios a violência colonizadora justificou-se. Assim, “machos tornaram-se não-humanos-por-
não-homens e fêmeas colonizadas tornaram-se não-humanas-por-não-mulheres” (LUGONES,
2014, p. 936-937).
A colonialidade de gênero refere-se, especialmente, ao processo de subordinação ao
qual foram submetidas as mulheres originárias da América Latina. A especificidade do termo
relaciona-se ao seu duplo significado: a opressão de gênero e raça, interseccionalizadas. Ambos
os elementos, desde o período colonial, articulam-se conjuntamente “para hierarquizar
humanidades” (GOMES, 2018, p. 75).
A colonialidade de gênero reflete-se na composição dos currículos escolares, pela
ausência da memória de mulheres negras e indígenas na narrativa da história escolar. O
apagamento da memória do elemento feminino no ensino de História é, deste modo, fato
explícito. O silenciamento da história das mulheres no âmbito das disciplinas escolares – e
acadêmicas – intensifica-se quando interseccionalizado em termos de gênero e raça
(COSTARD, 2017).
Uma exigência nossa ao escolher é que elas sejam latino-americanas, uma vez
que sempre lemos histórias de princesas europeias. O padrão nasce nos EUA
ou na Europa, e (...) nós, latino-americanos, não nos encaixamos (Apud
RODRIGUEZ, 2016, não paginado).
Considerações finais
A História, enquanto discurso em forma de narrativa, produz lembrança e esquecimento,
pois o historiador, no âmbito da operação historiográfica, seleciona memórias a serem narradas
em detrimento de outras. Estruturadas a partir da narrativa-mestra eurocêntrica, as memórias
revisitadas no âmbito do ensino de História privilegiam as experiencias dos povos europeus,
sobretudo sujeitos do gênero masculino.
Neste contexto, mulheres latino-americanas são historicamente silenciadas, tanto na
existência concreta quanto nas pesquisas acadêmicas e composições dos materiais didáticos
escolares. A situação se agrava quando se trata interseccionalmente de gênero e raça, objetos
concretos da invisibilização na permanência expressa pela colonialidade.
Na contemporaneidade, é preciso fazer defeitos em tais memórias, isto é, captar os
silêncios, as ausências nas narrativas históricas oficiais, de modo a deslocar seus sentidos e
lugares de enunciação (ALBUQUERQUE, 2012.)
Faz-se necessário prospectar os desvios das narrativas consagradas sobre o passado,
rearticulando-as e produzindo, assim, uma narrativa histórica pautada pela alteridade
intercultural, comprometida com uma agenda política de transformação, reconhecendo a
assimetria de poder e os conflitos decorrentes (CANDAU, 2008).
Certa vez, quando perguntada sobre sua situação como mulher chilena, Violeta Parra
afirmou “la única ventaja mía es que gracias a la guitarra dejé de pelar papas. Porque yo no soy
nadie. ¡Hay tantas mujeres como yo en cualquier comarca de Chile! Ellas pelan el ajo todo el
día; la vida es muy difícil” (Apud PELLEGRINO, 2002, p. 43). Quantas vozes reais, concretas
de tantas outras mulheres foram caladas ao longo do tempo? Nos silêncios e ausências da
história escolar ecoa a existência de diversos sujeitos inseridos na vida concreta,
subalternizados pelo eurocentrismo. Um dos caminhos para possibilitar a abertura pluriversal,
polifônica, é abrir, forçar as portas do ensino escolar de História para que este não esqueça de
sua dimensão utópica, fazendo parte de um projeto coletivo de superação das desigualdades.
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