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OS DILEMAS DO ENSINO DE HISTÓRIA NA AMÉRICA LATINA: UM

RECORRIDO ENTRE OS CURRÍCULOS DO BRASIL E DA COLÔMBIA


Guilherme Moretti Camargo (Uenp/Pibic- Fundação Araucária)
guimoretticamargo@gmail.com
Jean Carlos Moreno (Uenp/Pibic- Fundação Araucária)
jeanmoreno09@gmail.com
Palavras-chave: currículo; Brasil; Colômbia
Introdução
O presente resumo apresenta parte de uma pesquisa de Iniciação Científica, em
andamento, que busca comparar os currículos de Ciencias Sociales e História,
respectivamente da Colômbia e do Brasil em relação aos discursos identitários presentes
nestas descrições. A Base Nacional Comum Curricular (BNCC) possui diversas
similaridades com o currículo colombiano, mais conhecido como Lineamientos
Curriculares (LCCS), publicado em 2002. Ambos se apresentam com propostas de
promover a multiculturalidade e a interdisciplinaridade, capaz de transformar o
indivíduo em um cidadão crítico que possa contribuir ativamente na sociedade,
realizando um exercício de compreensão da realidade à qual está inserido. Porém,
apesar de possuírem estes objetivos, demonstram controvérsias em comum nas duas
propostas curriculares. Neste resumo, procurei apresentar algumas semelhanças entre
ambos currículos, bem como algumas diferenças, e trazê-las como questões
problematizadoras para o ensino. Analisarei, para ser mais específico, as questões de
sujeitos que estão (ou não) inseridas no currículo, a narrativa a qual se busca construir
(ou perpetuar) e a questão identitária presente em ambas as propostas.
Desenvolvimento
A 16 de setembro de 2015, a primeira versão da Base Nacional Comum
Curricular é disponibilizada, no site do MEC, para o público, sem a disciplina de
História, que só teve seu texto publicado duas semanas depois. O ponto principal de sua
proposta é tido, como afirma Moreno (2022), no maior cumprimento da lei 11.645/08,
que dava destaque a outras matrizes identitárias que trespassavam a já consolidada
narrativa-mestra linear e eurocêntrica. De imediato surgiram diversos manifestos por
parte dos historiadores sobre o documento, que buscou romper com um código
disciplinar centenário, que já não correspondia às demandas e desafios da sociedade
brasileira contemporânea. Este último ponto foi tema central para as discussões acerca
da BNCC, visto que vários historiadores pertencentes a cátedras tradicionalistas
lançaram seus próprios artigos, os quais criticavam fortemente a construção da
disciplina de História e o que ela se propunha a ensinar, por “deixar de lado” as
tradicionais repartições, tais como História Medieval, História Antiga e História
Moderna, provenientes do modelo quadripartite francês e já embasadas nos currículos
tradicionais. “Houve acusações de haver muito índio, negro, gênero e América,
conteúdos chamados genérica e jocosamente de ‘temas multiculturalistas’, em
detrimento dos temas canônicos” (NETO, 2020).
Para compreender a proposta do ensino de História na BNCC, é necessário
compreender sua interrelação com um formato curricular já estabelecido como tradição
desde meados dos anos 1990. Esse currículo tradicional é organizado através de uma
cronologia conhecida como “história integrada”. Nessa organização cronológica, uma
História que abarca “toda a história da civilização” tem maior espaço dentro do que se é
ensinado na escola, enquanto História do Brasil, dos povos africanos e da América
Latina ocupavam menor espaço, apresentadas, de certa forma, como “menos
importantes” (MORENO, 2019). A decisão de enfatizar a História do Brasil como ponto
central de estudo e construção curricular enfrentam, diretamente, o eurocentrismo e uma
história predominantemente europeia que excluía as “periferias coloniais”. Além disso,
como afirma Moreno, é utilizada essa ênfase por “se tratar de um espaço político
privilegiado da vivência dos estudantes” (MORENO, 2016).
Com isso, a historiadora Maria Aparecida da Silva Cabral reitera que:
“O nosso argumento de que o currículo trata de uma formação
cultural, política, social e histórica de crianças em situação de ensino e
aprendizagem. Ou seja, é possível ensinar história através de um ponto
de vista narrativo, pois já se faz isso do ponto de vista europeu”
(CABRAL, 2018).
Para a historiadora, a questão principal é a de qual conceito de identidade pretende ser
abordado por parte da população e não deixa de criticar o fato de uma tentativa de
construir uma identidade nacional, que aborda suas origens e raízes, ter sido tão
rechaçada em um país que é visto como uma “história paralela ao expansionismo
europeu”. Para ela, “buscar entender a própria origem partindo da base narrativa de
onde se situa no presente, e não de uma história longínqua predominantemente
colonizadora, deveria ser visto como algo bom e benéfico” (CABRAL, 2018).
Na Colômbia, assim como em diversos outros países da América-Latina, o
ensino de História é tema de intensa disputa. Seja para manutenção de uma hegemonia
previamente imposta ou pela problematização e rompimento com a mesma. Nas
palavras de Sánchez Vásquez (2012), o ensino de História e das Ciências Sociais
ajudam a perpetuar uma narrativa que transforme ou solidifique uma linha ideológica
dentro do meio social e fortaleça uma identidade nacional. Seguindo na mesma linha,
retomo ao conceito de currículo de Ivor Goodson (1991), onde afirma que o currículo é
a invenção ou a problematização de tradições há muito colocadas e concretizadas dentro
do âmbito acadêmico-social, que apresenta sujeitos, demandas e uma narrativa
produzida de acordo com a linha de raciocínio vigente, ou seja, de acordo com a
tradição em vigor. A partir disso, recorro sobre à construção do ensino de História na
proposta curricular apresentada pelo Ministério da Educação Nacional (MEN) em 2002,
o qual apresentava significantes mudanças e implementações perante um currículo há
muito a mercê da colonialidade, de raízes positivistas e da produção e valorização de
uma narrativa que “deixava de lado” a pluriculturalidade (MARTÍN, 2016) como
processo de formação identitário, apesar das diversas tentativas de reverter este cenário.
Como afirma Ibagón (2016), ao utilizar como exemplo o ensino das matrizes
socioculturais africanas, a proposta, apesar de apresentar um caráter interdisciplinar e
buscar abarcar sujeitos caracterizados como o “outro” dentro de um contexto narrativo
eurocêntrico vigente, possui diversas controvérsias quanto à inserção de temas como as
matrizes africanas, os indígenas e sua cultura (que são essenciais para entender a relação
passado-presente no qual o cidadão a ser formado está inserido) e a problematização
uma identidade nacional baseada na construção de um ”nacionalismo”, que conta com
as histórias de “grandes heróis” e “grandes acontecimentos”, estes todos situados dentro
de uma narrativa-mestra, cujo contexto é apresentado em um cenário de constante
colonialidade.
Dessa forma, mesmo com o claro objetivo de “multiculturalizar” o currículo,
sujeitos como os negros, nativos e suas trajetórias ainda são ensinados a partir do marco
cronológico da chegada dos espanhóis e da escravidão. Nas palavras de Ibagón, mesmo
com uma reforma que propunha a “defensa da condição humana e o respeito por sua
diversidade: multicultural, étnica de gêneros e opções pessoais de vida como recriação
da identidade colombiana” (IBAGÓN, 2016), o tema “afro” ainda se encontrava de
forma abstrata e generalizada, além de contemplar apenas as grades do quarto e sétimo
ano (9 e 12 anos). A proposta dos Lineamientos Curriculares demonstrava uma
organização cronológico-temática com um forte acento eurocêntrico em relação ao
tema, explicitando que, apesar da tentativa, o currículo ainda estava fadado a uma
narrativa predominantemente colonial.
Conclusão
Como demonstrado anteriormente, há questões que vão em contramão ao
objetivo apresentado nos textos iniciais de ambas as propostas. Ao propor promover
uma interdisciplinaridade e uma multiculturalidade do ensino de História, entende-se
que haverá maior integração das demandas do presente e de sujeitos caracterizados
como “outros”. Desta forma, através de uma análise de ambos os currículos, busca-se,
nesta pesquisa, abordar dois temas que são pautas em debates sobre o que ser (ou não
ser) ensinado dentro da sala de aula.
Além das questões disciplinares, existem as questões de tempo de aula. A grade
curricular do 9° ano da BNCC, por exemplo, apresenta uma quantidade de temáticas e
assuntos a serem abordados que não se encaixam no tempo dado aos professores de
História nas escolas, que desfrutam de duas ou três aulas semanais com cinquenta
minutos cada uma. Nos LCCS, há uma série de perguntas problematizadoras a serem
abordadas ao longo dos anos acadêmicos que são deixadas de lado, muito por conta do
tempo em sala de aula, pois também desfrutam de apenas duas aulas semanais com uma
hora cada.
Entende-se que a História explicitada aos alunos tem um ponto de vista: o
europeu. Esse ponto de vista perpetua uma tradição curricular que insere sujeitos como
negros, mulheres e as questões de gênero de forma sucinta e partindo de um marco
cronológico o qual teve um papel subalterno, como, por exemplo, a escravidão. É
abordada a “história do Ocidente, de grandes acontecimentos e de grandes homens,
heróis da pátria” (IBAGÓN, 2016).

Referências:

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