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Introdução

No presente artigo busco entender a construção da disciplina História na


proposta da Base Nacional Comum Curricular (BNCC), entre os anos de 2015
e 2016, e relacioná-la a conceitos como currículo, identidade e as demais
disputas e demandas sociais em vigência no momento ao qual foram
publicadas. Busquei compreender, por meio de leituras, a construção do
currículo de História e suas representações e disputas, a exemplo da tentativa
de superação de um currículo predominantemente colonizado e a inserção de
sujeitos históricos tradicionalmente determinados como “outros”, bem como o
contexto em que sua produção estava inserida. As duas primeiras versões,
lançadas em um cenário bastante polarizado - com o processo de
impeachment da presidenta Dilma Roussef, destituição de presidentes das
casas legislativas, prisões de senadores, reações conservadoras, o aumento
de movimentos como Escola sem Partido, que defendiam assiduamente a
exclusão radical da abordagem de termos como gênero nas escolas, e até
mesmo a criminalização da docência - culminou em uma ampla discussão
entre os historiadores sobre quais sujeitos deveriam ser representados e quais
conteúdos e narrativas deveriam ser abordadas dentro do currículo. Essas
discussões, como afirma a historiadora Flávia Caimi, indicam que o campo do
ensino de História é como “um lócus de contradições, de pluralismo de ideias,
de provisoriedade explicativa e de dinâmica interpretativa acerca da
experiência humana no tempo” (CAIMI, 2015).

A construção da Base Nacional Comum Curricular em sua


primeira versão
Queremos aqui dar destaque à primeira versão do texto da
BNCC que tinha como lógica vertebral a centralidade da
História do Brasil, além da História da América, sendo
duramente criticada por isso. Aqui damos ênfase a essa
primeira versão por acreditarmos que ela trazia algo de
inovador e que possibilitaria o distanciamento de uma lógica de
aprendizagem baseada unicamente na cronologia e na
passagem de informações e se aproximaria de um modelo que
possibilita maior espaço para a discussão da formação do
cotidiano em que o educando está inserido (CRUZ, 2018)

A 16 de setembro de 2015, a primeira versão da Base Nacional Comum


Curricular é disponibilizada, no site do MEC, para o público, sem a disciplina de
História, que só teve seu texto publicado duas semanas depois. O ponto
principal de sua proposta é tido, como afirma Moreno (2022), no maior
cumprimento da lei 11.645/08, que dava destaque a outras matrizes identitárias
que trespassavam a já consolidada narrativa-mestra linear e eurocêntrica,
ponto esse abordado mais à frente. De imediato surgiram diversos manifestos
por parte dos historiadores sobre o documento, que buscou romper com um
código disciplinar centenário, que já não correspondia às demandas e desafios
da sociedade brasileira contemporânea. Este último ponto foi tema central para
as discussões acerca da BNCC, visto que vários historiadores pertencentes a
cátedras tradicionais lançaram seus próprios artigos, os quais criticavam
fortemente a construção da disciplina de História e o que ela se propunha a
ensinar, por “deixar de lado” as tradicionais repartições, tais como História
Medieval, História Antiga e História Moderna, provenientes do modelo
quadripartite francês e já embasadas nos currículos, e abarcar uma “História
Patriótica e Nacionalista baseada em nexos e vínculos” (CALIL, 2015). “Houve
acusações de haver muito índio, negro, gênero e América, conteúdos
chamados genérica e jocosamente de ‘temas multiculturalistas’, em detrimento
dos temas canônicos” (NETO, 2020).
Para compreender a proposta do ensino de História na BNCC, é
necessário compreender sua interrelação com um formato curricular já
estabelecido como tradição desde meados dos anos 1990. Esse currículo
tradicional é organizado através de uma cronologia conhecida como “história
integrada”. Nessa organização cronológica, uma História tentava abarcar “toda
a história da civilização” tem maior espaço dentro do que se é ensinado na
escola, enquanto História do Brasil, dos povos africanos e da América Latina
ocupavam menor espaço, apresentadas, de certa forma, como “menos
importantes” (MORENO, 2019). A decisão de enfatizar a História do Brasil
como ponto central de estudo e construção curricular enfrenta, diretamente, o
eurocentrismo e uma história predominantemente europeia que excluía as
“periferias coloniais”. Além disso, como afirma Moreno, é utilizada essa ênfase
por “se tratar de um espaço político privilegiado da vivência dos estudantes”
(MORENO, 2016).
Apesar de suas explicitas lacunas, a BNCC, em sua primeira versão,
apresentava um raio de esperança para um currículo decolonial. Caimi (2015)
não deixava de lado os defeitos da proposta curricular, mas também não tirava
o mérito dos esforços de ensinar uma história que atendia às demandas sociais
rumo à emancipação do eurocentrismo.
Currículo, identidade e as disputas sociais presentes na BNCC
O currículo foi discutido e gerou embates por trabalhar, mesmo que não
seja essa sua finalidade, uma lista de conteúdo a serem ensinados e objetivos
a serem alcançados. Moreno afirmava que umas das questões que tornava o
debate acerca da BNCC mais difícil e menos profundo era a disputa e a
necessidade de seleção de qual passado deve ser ensinado no ambiente
escolar (MORENO, 2019). Silva (2010) afirmava que o currículo é um campo
de disputas sociais e, concomitantemente a essas disputas, é um campo que
constitui subjetividades. Dessa forma, o currículo é uma forma de produzir
meios em que o estudante olhe para si mesmo e para os outros e entenda,
através de uma análise de sua realidade, o processo identitário formativo ao
qual faz parte.
A construção de um currículo escolar nacional contribui na
problematização de uma identidade nacional formada através do ensino.
Assim, a disciplina de História é muito presente, pois ela é responsável na
formação de uma identidade nacional através da formação e da obtenção de
informações que moldam concepções de mundo (BRAZÃO, 2017). O currículo
na contemporaneidade busca abordar as demandas sociais presentes em uma
sociedade. Essas demandas, porém, são definidas por cultura hegemônica que
define qual história deva vir a ser iluminada nos currículos. Essa primeira
versão da BNCC apresentava rupturas com o eurocentrismo que fomentam o
pensamento decolonial. Tal pensamento estabelece que há uma hegemonia
cultural europeia que não reconhece a cultura de outros povos e, quando assim
faz, as coloca em um patamar de inferioridade (ou até mesmo de incivilizadas).
Quando a primeira versão da BNCC foi apresentada, seu texto continha
o principal objetivo de um “novo currículo de história”, que propunha o
reconhecimento de uma diversidade étnica-cultural ao buscar a maior
diversidade de conteúdo. Abordar este ponto leva a pensar sobre qual narrativa
se pretende ensinar. Como afirma Laville (1999), o ensino de História é sempre
alvo de críticas ou denúncias por conta dos conteúdos factuais presentes nos
programas e currículos escolares. Afirma, ainda, que o ensino de história age
como um veículo de uma narrativa exclusiva que tem a necessidade de ser
assimilada, custe o que custar (LAVILLE, 1999). Para o historiador canadense,
essas mudanças curriculares ocorrem para dar conta de interesses e das
diversas necessidades do contexto ao qual está inserido, como no caso de
governos ditatoriais, onde buscou-se manter a ordem estabelecida e perpetuar
uma tradição que buscava instaurar uma nova “identidade nacional”.
A historiadora Maria Aparecida da Silva Cabral reitera que o “argumento
de que o currículo trata de uma formação cultural, política, social e histórica de
crianças em situação de ensino e aprendizagem. Ou seja, é possível ensinar
história através de um ponto de vista narrativo, pois já se faz isso do ponto de
vista europeu” (CABRAL, 2018). Para a historiadora, a questão principal é a de
qual conceito de identidade pretende ser abordado por parte da população e
não deixa de criticar o fato de uma tentativa de construir uma identidade
nacional, que aborda suas origens e raízes, ter sido tão rechaçada em um país
que é visto como uma “história paralela ao expansionismo europeu”. Para ela,
“buscar entender a própria origem partindo da base narrativa de onde se situa
no presente, e não de uma história longínqua predominantemente
colonizadora, deveria ser visto como algo bom e benéfico” (CABRAL, 2018).
Para finalizar este tópico, deixo uma citação, também da historiadora
Maria Aparecida da Silva Cabral, em relação ao currículo e à BNCC a qual
considerei pertinente por aglutinar, em poucas palavras, todo o conteúdo
trabalhado até então:
Se considerarmos que os currículos são sempre seleções
culturais, resultados de negociações, tensões e embates entre
as diversas forças sociais que disputam os projetos educativos
nas sociedades, entenderemos que, nessa primeira versão da
BNCC, há uma aposta política e epistemológica de um grupo
de professores e pesquisadores em favor da renovação do
ensino da História no âmbito escolar. Assim, a equipe
elaboradora da proposta preliminar buscou demarcar o lugar
social do saber histórica na educação básica e sua relação
com os saberes do campo da historiografia (CABRAL, 2018).

A segunda versão da BNCC: entre retrocessos e exclusões


A construção de identidades sociais, na modernidade, é dificultada
quando se recusa a inverter a perspectiva eurocêntrica. Diversos sujeitos
sociais são deixados de lado em um currículo predominantemente colonizado.
Populações negras, indígenas e não europeias são taxadas como “apêndices”
de uma tradição proveniente da Europa (MULLET, 2018).
A segunda versão da BNCC, publicada em 3 de maio de 2016, foi um
choque à comunidade acadêmica que se empenhava em torno das discussões
sobre o que deveria ou não ser ensinado. Essa segunda versão apresentava
uma proposta que retornava aos moldes curriculares eurocêntricos, retornando
aos eixos de “lista de conteúdos”. Essa espécie de “retrocesso” (BRAZÃO,
2017) se deu majoritariamente por conta das inúmeras críticas lançadas -
inclusive pela ANPUH – em relação à primeira versão apresentada. Com isso,
podemos retomar ao conceito de currículo citado anteriormente e criado por
Ivor Goodson. Percebemos, com esta segunda versão, um conflito social em
torno do currículo e a apresentação de um controle social explicitado pela
seleção dos conteúdos que o compõem, deixando claro a cultura hegemônica
em vigor, bem como a “exclusão” (BRAZÃO, 2017) de uma árdua tentativa de
problematizar uma identidade nacional já encrustada (GOODSON, 2013). Esta
versão, pode-se assim dizer, buscou retomar às tradições - “o currículo é a
invenção de tradições” (GOODSON, 2013) – as quais houve a intenção de
romper anteriormente. É uma disputa para manutenção e perpetuação do
colonialismo.
De acordo com Nilton Mullet (2018), “a segunda versão da BNCC
aparentemente despolitizou o recorte e a seleção dos conteúdos e das
problematizações a serem realizadas no âmbito de uma aula de história,
mantendo a clássica e eurocêntrica divisão da temporalidade histórica
quadripartite e a já conhecida e tediosa lista de conteúdos”.
As questões de identidades sociais, tais quais a de gênero, foram
excluídas dessa versão. Enquanto na primeira versão encontrava-se uma
abordagem ainda que “tímida” (MULLET, 2018) e simples do tema, na segunda
versão é totalmente deixado de lado. Nesta versão, outros sujeitos como
indígenas são pouco citados, e quando o são, estão relacionados ao contato
com os europeus e a sua consequente escravização; assim também ocorre
com os afrodescendentes. As mulheres, agentes sociais antes abordados de
forma mais clara, voltam à estaca de “invisibilidade” até o momento em que
conquistam direitos políticos. Outras orientações sexuais “sequer aparecem
como possibilidades efetivas de identidade, constituindo-se como experiência
humana de um “outro” a ser anexado, mais do que integrado, à sociedade e à
história” (MULLET, 2018).
A questão identitária partindo da retomada de valores europeus podem
ser vistos como uma questão diretamente ligada à narrativa-mestra que circula
o currículo da disciplina de História. O próprio ministro da educação a época da
publicação da primeira versão da BNCC teceu críticas quanto ao seu conteúdo
e a falta de outros, tais como a já conhecida periodização quadripartite
francesa do século XIX. Dessa forma, podemos começar a debater, no próximo
tópico, a questão da narrativa-mestra como universal antropológico e sua
relação com o ensino de História, bem como a forma que engendra um
currículo tradicionalmente voltado a uma visão europeia, que taxa de “outro”
todos aqueles agentes sociais excluídos do ensino de história moderno , como
mulheres, indígenas e os povos africanos.
Narrativa-mestra em torno do ensino de História e a teoria da
aprendizagem histórica ruseniana

Uma história construída no século XIX e reforçada nos inícios


do século XX constituiu áreas e objetos de pesquisa que se
cristalizaram e que compõem, em conjunto, uma narrativa-
mestra, linear e eurocêntrica, difícil de se mover
concretamente, mesmo com todos os esforços, historiográficos
inclusive (MORENO, 2019a)
É bastante evidente as diversas dificuldades e desafios do ensino de
História no Brasil. Porém, a narrativa-mestra acaba por se tornar uma das
questões centrais, pois “representa um entrave para a abertura de novas trilhas
e significações” (MORENO, 2019). Essa narrativa-mestra eurocêntrica é um
impasse ainda não superado dentro do campo do ensino. A narrativa-mestra é
fruto de um “tempo colonizado” (MORENO, 2019), de um universalismo
histórico europeu que criou uma “linha do tempo única, das grandes criações
da modernidade, consubstanciada na filosofia da história hegeliana, que passa
a ser a representação da História Universal” (MORENO, 2019). Por mais que
se tente superá-la, ela acaba por ditar os rumos do debate em torno da
aprendizagem histórica. A necessidade de uma lei para o ensino de questões
que fazem parte da realidade e da formação identitária brasileira mostra que os
currículos são predominantemente colonizados e a narrativa-mestra ainda é
objeto central de muitas discussões acerca do ensino de História, como
apresentado anteriormente, na tentativa de romper com um currículo tradicional
e abarcar uma historiografia fora dos parâmetros europeus.
A colonialidade do tempo (MORENO, 2019c) é bastante presente no
ensino de História quando, “estar em contato com a História” é estar em
contato com uma realidade longínqua europeia. “Nós”, de um ponto de vista
europeu, não abarca culturas e conhecimentos do “não europeu”. Entender que
há um passado europeu comum a todos, um universalismo eurocentrista,
remete à “colonialidade do poder” e à “colonialidade do saber”, termos criados
por Anibal Quijano que se referem à perpetuação da cultura europeia e a
repressão de outras formas de conhecimento (QUIJANO, 2005).
Em 2015, quando a primeira versão da Base Nacional Comum Curricular
foi publicada, a mesma tentou “interferir e modificar a lógica eurocêntrica da
organização da História Escolar” (MORENO, 2019). A manutenção e
concretização do colonialismo ainda são, como afirma Moreno (2019),
presentes na construção de currículos contemporâneos, apesar dos esforços
para a produção de um currículo decolonial.
A perspectiva de uma narrativa predominante, demonstra que o ensino
de História e conhecimento histórico remontam a uma formação identitária
perante a sociedade. Auxilia a ressignificar fatos históricos e relacioná-los a
mudanças da historiografia moderna. A tentativa de inclusão de sujeitos sociais
“paralelos” à historiografia há muito concretizada causa, de certa forma,
estranhamento e discordância na comunidade acadêmica, por fugir, como
citado anteriormente, das “tradições produzidas na construção de um currículo
em volta de conflitos sociais” (GOODSON, 2013). A exemplo da primeira
versão da Base Nacional Comum Curricular, quando a mesma tentou “interferir
e modificar a lógica eurocentrista da organização da História escolar”
(MORENO, 2019), a reação imediata foi a de historiadores que buscaram tecer
críticas em defesa de suas associações de cátedras. Essa reação, por si só,
explicita a tentativa de manutenção da narrativa-mestra e do colonialismo do
saber histórico. Isso demonstra que “a academia guarda marcas de seu
processo de construção e institucionalização” (MORENO, 2019a).
Partindo para as teorias do historiador Jorn Rüsen, o caminho trilhado a
partir da cientifização da História pode ser visto como uma tentativa de
“controlar, senão eliminar, a subjetividade” (MORENO, 2019a). O ponto de
partida da teoria ruseniana é a do entendimento da consciência histórica como
um universal antropológico. Para o teórico, “a capacidade de criar significados
e experiências temporais é uma conquista cultural fundamental, inclusive para
o processo de hominização, definindo o homem como espécie” (MORENO,
2018). A teoria ruseniana auxiliou na elaboração de uma compreensão sobre o
papel do ensino histórico. Tal compreensão entende que o pensamento
histórico como força vital de qualquer sociedade contribui para a sustentação
da História como projeto formador para as sociedades na crise da
modernidade. Para Rüsen, a aprendizagem será concretizada apenas quando
todo o conhecimento histórico adquirido seja relacionado à subjetividade do
sujeito, auxiliado da compressão de si mesmo e de sua própria realidade.
Portanto, a teoria da aprendizagem histórica elaborada por Rüsen coloca o
sujeito em si como foco da aprendizagem, fugindo do “acúmulo de
conhecimento”, ditado como “matéria morta” para o teórico alemão. Para
Moreno (2018), a teoria ruseniana aproxima a Didática da História e a Ciência
da História, “colocando-as como parte do mesmo saber [...] ao salientar os
propósitos que os dois lugares institucionais comungam”. Esses lugares são,
em suma, o desejo e a tentativa de superar fragilidades da memória e suprir a
carência de orientação no mundo moderno.
Dessa forma, para o historiador alemão, a narrativa-mestra, vista como
um universal antropológico, é um local de intensa disputa, onde toda e
qualquer cultura precisa explicar de alguma forma a humanidade e suas
relações sociais enquanto unidos em sociedade. A partir dessa afirmação,
pode-se entender que cabe à própria sociedade definir a especificidade de seu
saber histórico e de qual discurso formativo identitário pretende-se ser
repassado ao longo dos anos. É a partir disso que a questão de identidades
nacionais se forma e o indivíduo é capaz de perceber sua própria história, se
colocando como objeto central do conhecimento histórico, como citado
anteriormente. “Além da narrativa mestra que tenciona construir uma ideia de
humanidade que ajude a superar os etnocentrismos, pode-se interpretar que
Rusen propõe um ensino de História organizado em temas aos quais se possa
atribuir um sentido no tempo. Seus exemplos práticos, neste caso, são poucos,
mas profundos: os direitos humanos, a democracia como cultura pública e a
relação humana com a natureza.” (MORENO, 2019a).
Apesar de tudo, a transposição da teoria de Rüsen para pensar as
propostas curriculares no Brasil ainda é muito questionada. Os contextos
históricos abordados são totalmente divergentes de si, e precisam ser
traduzidos de acordo com a realidade histórica de cada país, com as diferentes
influências de identidades nacionais, sujeitos históricos e o próprio
colonialismo, que adentra na formação social dos sujeitos. Porém, é inegável
que a teoria da aprendizagem histórica elaborada por Rüsen serviu de
inspiração para a elaboração de outras teorias acerca do ensino de História no
Brasil e sua colonialidade. A tentativa de abordar sujeitos históricos e as
demandas sociais que estão mais alinhadas à nossa realidade material pode
ser vista como uma tentativa, mesmo que cheia de lacunas e controvérsias, de
traduzir a teoria ruseniana para a realidade do ensino brasileiro, propondo uma
reelaboração do universalismo histórico, projetando a consciência histórica
para um ambiente mais próximo ao “universalismo próprio” - que entende-se
como a realidade material e social ao qual se está inserido - do indivíduo.
Como afirma Moreno (2017), essa “utopia” ruseniana serve de base para uma
nova orientação cultural, pois propõe que o humanismo contemporâneo ainda
não está em todo o seu potencial. Assim, fundamental e necessariamente
deve-se “insistir e alargar as bases da modernidade e do humanismo de
padrão iluminista para repensar as identidades históricas em um mundo global
policêntrico pautado na interculturalidade” (MORENO, 2017). Mostra-se
necessário fornecer e utilizar de “pistas epistemológicas e conceituais”
(MORENO, 2017) para formular as propostas curriculares para o ensino de
História no Brasil. Ainda, de acordo com Moreno, a teoria ruseniana é capaz de
indagar a reflexão sobre essas bases epistemológicas e políticas na construção
de um currículo histórico.
Ao buscar enfatizar outros campos históricos, agentes e sujeitos sociais
e outras narrativas, essa distorção de mundo provocada por uma visão
eurocentrada vai se corrigindo aos poucos. Uma identidade mais próxima ao
âmbito natural de crianças e jovens estudantes pode ir sendo trabalhada a
partir de objetos de estudo que se aproximem de sua própria realidade material
e histórica - tal como o estudo dos povos indígenas. “Somente uma
interpretação honesta do passado pode conduzir a uma orientação coerente”
(MORENO, 2017).

Conclusões finais
Após uma apresentação e uma análise, mesmo que rasa, das duas
primeiras versões da Base Nacional Comum Curricular, e relacionar suas
construções com conceitos de currículo, identidade e narrativa-mestra,
podemos perceber que, de uma para a outra, a manivela girou.
A primeira versão, como trabalhado anteriormente, buscava essa ruptura
com a história da tradição escolar ao trazer a História do Brasil ao centro e
abarcar “o outro” - cultura afro-brasileira, formação dos povos africanos, povos
indígenas, etc. Essa primeira versão, como a historiadora Flavia Caimi (2015)
afirmava, buscava trazer ao aluno uma proposta curricular que auxiliasse no
autorreconhecimento de sua própria cultura e de seus antepassados próximos,
e não mais a produção de uma identidade baseada em valores europeus
oriundos da colonialidade. A tentativa de problematizar a identidade nacional,
em um primeiro momento a partir dessa proposta e apesar de suas diversas
lacunas e controvérsias, trouxe um “raio de luz” rumo a um currículo decolonial
e brasileiro.
A segunda versão, de 2016, retoma os paradigmas coloniais e volta a
abordar uma história baseada em uma linha evolutiva construída sob o
imperialismo europeu. Um currículo tradicional que apresenta um
“universalismo europeu” como ponto central dos estudos, que analisam a
formação da Europa como potência mundial e suas histórias paralelas
vinculadas ao seu expansionismo, como a História da América, da África e do
Brasil. Essa versão retoma aos conceitos de “narrativa-mestra” e demonstra
um processo de manutenção de um currículo, dado como ambiente de
disputas, colonializado, trazendo a história europeia como “verdade histórica”
no âmbito de ensino.
Desta forma, analisar as propostas curriculares da BNCC e suas
respectivas narrativa-mestra, presentes nas duas versões de formas totalmente
divergentes entre si, é analisar, direta e indiretamente, a construção social
envolta dos currículos brasileiros para o ensino de História, as demais
demandas sociais em disputa, que impactam diretamente em qual narrativa
pretendem-se iluminar dentro do currículo, e os conceitos identitários os quais
pretende-se formular e concretizar enquanto sociedade, dado o pluralismo
enquanto sociedade.

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