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Ensino de História na berlinda.

Por Bruno Almeida | Historiador


almeida.online@yahoo.com.br

Currículo Escolar é tudo aquilo que a sociedade pressupõe minimamente necessário de ser
aprendido pelos alunos ao longo de sua formação acadêmica. Com a diversidade de concepções
acerca do que seja “conhecimento” e “ensino”, é quase inevitável que a proposta de elaboração
de um currículo fixo e comum à todas as escolas do país gere polêmica. Tem sido assim desde as
reformas curriculares de Francisco Campos (1931), Gustavo Capanema (1942-1951) e Jarbas
Passarinho (1971). Quando a Constituição Federal de 1988 determinou, em seu artigo 210, como
dever do Estado “conteúdos mínimos [...] de maneira a assegurar a formação básica comum e
respeito aos valores culturais e artísticos, nacionais e regionais” a polêmica voltou à tona, com um
conteúdo não menos grave.
Com elaboração prevista na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei 9394/96),
somente após quase 20 anos a Base Nacional Comum Curricular entrou na pauta de prioridades
do governo federal. Apresentada pelo MEC em 16 de setembro de 2015 como parte do Plano
Nacional de Educação, ainda na passagem relâmpago de Renato Janine Ribeiro pelo ministério, e
elaborada por 116 especialistas (elencados no DOU Nº 132 de 14 de julho de 2015) a BNCC de
História tem sido rechaçada desde então pelos próprios ministros da educação, professores
universitários e associações acadêmicas em revistas especializadas, blogs, colunas, seminários,
redes sociais, etc.
Tão grave quanto as lacunas, fragmentações, inadequações, descontinuidades,
generalizações e a inexistência de matriz teórica do documento, que pode ser lido aqui, é o fato
de que a fase de consulta pública, que permite a apreciação do texto preliminar, encerrou ontem
(15 de dezembro). O governo federal pretende elaborar um documento final até março de 2016
para que em junho do mesmo ano possa estar apto a aplicá-la.
A História como ciência foi gestada no contexto de século XIX como demanda do Estado-
nação. Nesse sentido atendia ao propósito de eternizar os feitos de um povo dentro de uma
perspectiva positivista, nacionalista, evolucionista e eurocêntrica. A crítica historiográfica do século
XX tratou de ampliar os horizontes da História propondo novos objetos e novas metodologias.
Quando Marc Bloch, ilustre historiador francês pioneiro da Escola dos Analles, definiu a história
como “a ciência dos homens no tempo” , duas dimensões vieram à tona: a dimensão humana e a
dimensão cronológica. A BNCC atenta contra essas duas dimensões em diversos aspectos.
A despeito do debate ideologizante que a repercussão tem tomado, a proposta da BNCC é
pertinente, urgente e louvável, mas absolutamente incompetente em sua forma de executá-la. A
proposta inicial prevê que 60% do currículo seja padronizado pela BNCC e os outros 40%
definidos localmente a partir do contexto regional. Mas aqui já surge o primeiro questionamento:
Como definir e quantificar o conteúdo comum e o conteúdo livre?
A falta de qualificação no debate é evidente, visto que a plataforma aberta às sugestões é
limitada a textos de 4000 caracteres, sem contar o tempo exíguo para a apreciação dos 200
objetivos previstos para o Ensino Fundamental e Médio! A maioria dos professores de História da
Educação Básica com quem conversei nas últimas 3 semanas ouviram falar sobre a BNCC, mas
encontravam-se significativamente desinformados, o que mostra a falta de mobilização para um
debate mais amplo.
A completa e absoluta inexistência de um referencial bibliográfico que aponte a
fundamentação teórica da proposta é inaceitável e se traduz em temáticas generalizantes e
abstratas distribuídas ao longo dos anos de Ensino Fundamental e Médio.
A priorização intencional da História do Brasil, da África e Americana atende à uma
demanda de ruptura com o eurocentrismo que se faz de forma desastrosa ao negligenciar o
ensino de História Antiga, Medieval e Moderna. A proposta preliminar da BNCC vai de um extremo
ao outro de forma absolutamente irresponsável, visto que a supressão desses tópicos privaria o
aluno do acesso a matrizes importantes do pensamento ocidental.
A aposta em uma análise multiculturalista é louvável, mas também se faz de forma
desastrosa ao problematizar as temporalidades privando o aluno de uma análise historicizada dos
acontecimentos. No afã de fazer o conhecimento histórico ser útil e relacionável com o cotidiano
do aluno, arrisca-se propostas de análises desprovidas de historicidade e inviáveis de serem feitas
com a complexidade necessária em determinadas faixas etárias. O tempo histórico é o tempo dos
homens e é justamente esta dimensão cronológica que distingue a História das outras ciências
humanas!
A despeito dos problemas teórico-metodológicos apontados, as mudanças propostas pela
BNCC para o ensino de História no país ainda suscitam prognósticos preocupantes. Para
adequação à nova proposta os livros didáticos passariam por uma reformulação de porte
expressivo, o que me faz perguntar se o lobby de determinados grupos não têm pesado mais que
a preocupação com a qualidade do ensino, visto que entidades como a Fundação Roberto Marinho
financiaram pesquisas que orientaram o Movimento Pela Base Nacional Comum. E os vestibulares
se adequariam à essas demandas? A Matriz de Ciências Humanas do ENEM está longe de
contemplar essa proposta. As universidades estão preparadas para ofertar uma formação de
professores que se adeque à essas mudanças? Perguntas e lacunas que, temo eu, urgem
respostas e preenchimentos.
Precisamos sim de uma Base Nacional Curricular Comum que promova uma ruptura com o
eurocentrismo, que cumpra a Lei 11.645/08 ao garantir o ensino de história, cultura e
religiosidade afro-brasileira e indígena e que tenha relação com a realidade social dos alunos
brasileiros. O documento publicado pelo MEC no dia 16 de setembro do ano corrente não cumpre
esse papel.

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