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Esboço preliminar 1 – No recanto abstrato atemporal

Parte 1: Consciência/Inconsciência
No lugar em que fronteiras são ilusões óticas insuperáveis que continuam dando do
outro lado de um círculo vicioso e infinito, de reencontro da mandíbula da eterna
serpente da existência com sua calda; no qual como outras relíquias em outras vindas do
tempo, a balança de Anúbis e a pena de Maat apenas aguardam o ressurgimento dos
escaravelhos da vida; onde as nuvens passam ousadas e penetrantes trotando sobre as
veredas de capim, ao se inclinarem pra frente e pra trás, conversando com os cachos das
frondosas arvores que descampam, lá ao lado do refeitório das formigas, profundo como
o magma da terra, fruto de perseverante ocupação, sobre o terceiro galho mais alto, o
melhor para sonecas de todo este agora, com três botões da camisa fora de suas casas,
expulsos pelo peso do braço que pende involuntariamente tentando aliviar o calor, ali
repousa a primeira perspectiva de que partirão, e já partem, as direções daquilo que
ouvirão, e já ouvem. O canto das próprias arvores flerta com o significado dos sonhos
que embalam, seus aromas sutis as tornam mestras de caminhos oníricos agradáveis, e
quão satisfeitas ficam, rindo pelos cantos ao admirar o sorriso contemplativo de prazer
desperto, conduzido a pouco por seus sopros. Consciência de supetão cai num pulo só
no limite da sombra da copa, o dualismo do mundo interage com ele uma vez mais,
dessa vez trajada termicamente, em calor vermelho fogo. Renasce das cinzas do sono
pensativo e fitando o infinito, apregoado lá no horizonte, parte em divagações, quase
meditando, pé após pé. Saindo do requinte da fauna assombreada redefine seu senso de
direção para evitar o escaldante meio dia. As questões da Vida (sua tataravó) sempre
reencontram as trilhas de dúvida e reflexão, começa a deter seus pensamentos numa
mistura refogada das novas memorias oníricas ainda orvalhando de frescor com os
velhos dilemas existenciais de sempre, enraizados dos pés à cabeça, brotando pelos
poros da face. Precavida como é, apoia seus parâmetros nas trincheiras normativas
cavadas em si mesma, dissimula a própria percepção do mundo ao querer se proteger,
como a extensão de um respaldo materno, ergue fortalezas aveludadas, fofas como
pantufas, entorno de cada passo avante no mundo, precisa do conforto de que acredita
depender, enquanto não se descobre mais extensa do que aparenta. Ele se senta à beira
do precipício no caminho crepuscular, há mares de névoa dissolvendo os detalhes
maléficos e prejuízos de suas decisões, como insetos despercebidos na calçada cujo
pesar ao pisar se negligencia. Estando estufada de um gás objetivo altamente
inflamável, usando óculos sem grau preciso, deseja mirar do topo com plenitude, nas
relações em que se envolve, ser elástico no exercício de ser. Mas esse pacote de desejos
contradiz a produtividade utilitarista hereditária, que a guia como um aroma quente,
úmido e diluído em cores, quase saído de uma lâmpada mágica, tamanho é o teor
místico enrustido, uma sedução que faz levitar, devaneio divãnico quase hipnótico. Sobe
num tronco, flutuantes rio abaixo e de volta acima, é a expectativa entorno da promessa
de alivio da dor existencial, de que injeções atenuantes serão aplicadas sem que sejam
percebidas, a condição para se jogar de hipocrisias, é desmemoriar, tornando o amargor
cotidiano breve e minimalista como a passagem de um comprimido amargo pelas
papilas gustativas antes do copo d’agua. O fato de Consciência se multiplicar, conseguir
se dividir e operar diferentes motores geradores de fenômenos associativos, de polos
coordenativos aliados apesar de diversos, esbanja autonomia, cerceada por fronteiras
anuviadas, um singular preservativo de seu auto cárcere, para que o modo como se
apresenta a si mesma persista maleável. Apanha um dente de leão perdido à procura de
cobiças frustradas ao cruzar a terceira clareira de um aeroglifo, ele mesmo pode ser para
si o cadeado trancado aos portões dos próprios caminhos ou a brisa que a faz migrar
involuntariamente ao sul primaveril como folhas desapegadas de seus caules, sutis como
as linhas da palma da própria mão, vulgos portais premonitórios do destino. Na entrada
de casa, pressente novamente bênçãos oníricas de prazer e descoberta, mas a solidão e o
silêncio da ida até a cama o recordam de muitos porquês agônicos de suas indagações,
os cômodos intrépidos, sempre ocupados por algo no fundo da escuridão, conversam e
olham. Gotas pingando ritmicamente na pia harmonizam com o ranger das tabuas de
assoalho, e até com o chacoalhar das cortinas, mas nem algo nem alguém solidariza. As
cobertas rapidamente se tornam as habituais dunas metamorfas, perpetuas de
efemeridade, um oásis para os camelos do esclarecimento, montados pelo sono
profundo, de olhar misterioso.
O dia raiou à busca de um fugitivo sonolento do descanso, como se o relógio biológico
previsse o uivo de ventos dissonantes, encharcados de borboletas sedentas por borrifar
seus efeitos caóticos de mudança imprevisível. Consciência sai galopante para o porto,
com a imagem onírica do som de dedos de um ser de outro planeta arranhando sua
janela, que sempre esteve lá, mas só pode ser ouvido quando nos calamos, a centímetros
de sua respiração, ofegante e quase criogênica, o ser talvez não esteja lá, mas seu bisavô
Instinto faz-se sentir na busca do que quer que seja aliviante para uma sede
interplanetária curiosamente entorpecida por suor frio e dejavu. Apesar da boa-fé, não
ousará mais se aproximar do mar de paixões, em que finalmente se chocou com as
fronteiras definitivas do que concebe como eu. Sua natureza é atracada a um núcleo
identitário que sufoca em meio a tamanha liquidez e oscilação, o que descobriu ao, na
primeira experiência marítima com seu avô, o Medo, capitão do navio Leviatã. Sua
expressão lembrando por um lado um peixe fisgado por um anzol agonizando, e por
outro uma hiena cínica fora carimbada em sua memória pelas cantigas de família
contadas por seu pai, e a tinta do carimbo era azul vingança. Provavelmente ele nascera
já vestido e adulto, tamanha a rigidez amadeirada de suas juntas. O dia amanhecera
aparentando teatralizar uma extensão do sonho como se tudo fluísse naturalmente sem
pedir apresentações ou direções, um cotidiano roteirizado ensaiado mil vezes antes da
representação perfeita e confiante, embarcou. A barca com fisionomia crustácea nada
convidativa, usa suas garras instintivas para pescar e aprisionar emoções mais sutis, há
tempos repugnadas ao relento por seu criador. Desde o rapto do amuleto temporal, o
chacoalhar das ondas no mar das paixões se tornou voraz, mas manipulado, e os ventos
pararam de correr, agora lutam para não se afogar abaixo d’água. De forma a retardar a
fuga das emoções, o Leviatã energiza uma abóbada congelante entorno de si, causada
pelo estufamento do Medo, que perpetua seu poder marítimo pela exclusividade
necessária do presente, os ventos agitados que antes acalmavam as ondas, ausentes as
tornaram inquietas. Agora, tamanha é a abastança de seu monopólio de montantes
emocionais encarcerados nos calabouços, que o peso já faz trincar as tábuas do convés,
e envergar suas velas, eis o preço de hegemonias. No cais, falseado de camaradagem, o
capitão despejara na Consciência a esperança de um inigualável descobrimento – “desde
os primórdios em idas e vindas envolvo meus tripulantes e passageiros na bem tecida
teia do desencanto, sou o portal para toda e qualquer novidade ou surpresa, é claro, para
aqueles que desejam.” Com um toque sutil de encanto nos ouvidos da Consciência,
Hobbes, o papagaio lacaio, a provocou hipnoticamente contornando perspicaz num giro
entorno de seus ombros – “maricas!” – recordando o vazio que a levara até a encosta
marítima, a peça faltante naquele que parecia ser o canto último do quebra-cabeça de
esferas de sua existência, que reluzia no horizonte do desconhecido, e a empurrou com o
incentivo de uma brisa de verão, entorpecida com o acalanto do aroma desamoroso, e
então partiram. Acordado o monstro navegante, e já a velejar, a agudez das frequências
lá abarcadas fazia com que cada giro no leme tendesse à rota mais brusca imaginável,
enjoos, vertigens, agonias e o enunciado desencanto logo afloraram na Consciência, que
cercada pela satírica risada de marujos eufóricos (uma tripulação de criaturas
fantásticas, folclóricas e fantasmagóricas) numa mistura de simultâneo mergulho e
queda, foi atirado à beira de uma encosta encrustada de pedregulhos, e engolido pela
enseada, fervilhando de parasitas dolorosos, gritadores fanáticos porta-vozes do Medo.
Atirado ao mar, se aterrorizou a debater músculos jamais usados diante de menor terror,
ao mesmo tempo em que o ensejo de satisfazer uma nova necessidade floresceu no
ápice do desencanto, um êxtase entorpecente, que o fez querer colher algo desconhecido
e que sabia ser áspero demais para se pegar com as mãos. Boiando como uma rede de
pesca, deixou-se invadir pelas adulteradas e atordoantes paixões, até cambaleante,
carregado como que num caixão em marcha fúnebre, cruzar o recôncavo arrastando
suas próprias ancoras de volta às orlas da percepção. Um ensurdecedor bater de asas do
cardume de bolhas nervosas em sua mente foi o estopim ceifador de regressos ao mar,
junto às risadas que ecoavam ricocheteantes, anunciantes de mudanças bruscas, jamais
permitidas em sua cotidiana monotonia, até contrair o vírus da ansiedade. E no ultimo
vislumbre das velas do monstro a desaparecer na linha do sol, ouviu-se das grades
laterais do calabouço inferior, um animalesco e desesperado grito de Loucura – “urh,
urh, arhhh” - silenciado de imediato. Desencantada, caminhando pela praia e ainda
recuperando o folego, é seduzida como uma marionete, por seus pensamentos, que a
conduzem a enigmas auto induzidos, a imagem de um buraco sendo preenchido de terra
emite um som doce de flauta – “os opostos se tornaram lados da mesma substancia, não
persisto sem me conhecer, sou uma roda que não gira, sem meu oposto, que sinto pulsar
longe e dentro de mim” – quebrando rochas no momento de reflexão, resgate de
lembranças infantis e sublime miração, o botão da flor da dúvida germinou, e esta se
abriu, o yin de seu yang o aguardava em algum lugar, o Medo fora o precursor de seu
caminho interior, idôneo ao se proclamar o portal da surpresa – “que serão e de onde
vem esses cheiros de que me lembro e nunca senti, as visões que ecoam em marcas
d’água mas que sinto ausentes, como preencher minhas lacunas, que haverá oculto atrás
das palavras e dos atos, que mais me conduzem do que servem de instrumento dos meus
desejos?” – conteúdos submersos nos símbolos da realidade se sobressaíram,
transpirando inerte como um sentimento platônico e nostálgico, que entrelaça seu
caminho aos caminhos possíveis de universos paralelos, sempre existentes até que as
ideias deixem de ser meras palavras.
As múltiplas faces da Consciência são lados de um dado viciado, voam à sorte e caem
repetidas vezes em padrões enjaulados, normalmente ocultam qualquer desvio ou
complemento passional, um cão sorridente que faz de sua calda um guizo voraz por
carinhos torna-se uma gárgula insólita; beija flores se bicando em meio à polinização,
talvez conversando sobre quando visitarão o novo ninho alheio para um chá, vistos de
uma consciência rígida são triviais como os acenos dos pedestres que se perdem no
esquecimento sempre que caminha pela rua obstinado em chegar ao cerne de seus
dilemas. Os apaixonados, sentados nos bancos do parque central, as vezes a seu lado,
mas sempre na extremidade ao máximo oposta, quase portadores de alergia social –
“tolos, solitários em meio à multidão” - quando se remoendo em solidão e angustia
platônica, pensando naqueles que anseiam alcançar, que por certo também almejam
equivocadamente possuir, com seus olhares atemporais, perpetuamente fixos na imagem
do desejo, colada como um cartaz de procurado sobre todo o campo de visão alcançável,
mas jamais vista na face de um qualquer, inspiraram-no a andar de costas, pisando em
pegadas esquecidas, a se tornar arqueóloga e cartógrafa de si, à procura do fim de um
pique-esconde consigo, ao tirar a venda se libertou da cabra-cega, mas terminando de
contar a procurar está apenas por começar. Reconstituindo os próprios passos dados
quando escondido em áreas interiores ainda sob encantamento induzido, Consciência
realiza que deve usar o vento a favor das velas de seu esclarecimento, se volta ao
aconchegante e indelével invólucro aveludado de inigualável conforto paterno da
Curiosidade, alguém que só dizia o que queria, que – “estranhamente sempre é o ideal
a se saber a cada pronunciamento em respostas a meus questionamentos, às vezes o
sinto como o mais próximo, dentre os nossos, de um ser onisciente ...” - como que
usando de suas artimanhas aprendidas e atalhos descobertos, na forma de álibis que
pudessem facilitar sua busca, o encontra em sua espécie de caverna subterrânea,
segundo ele, os mosquitos de lá são cegos. Lá se o vê, sempre à meia luz, alto e trajado
numa túnica amarelo musgo, um pote de tâmaras demarcando o limite máximo de luz
incisiva do recinto, nenhuma mosca, ou ácaro sequer, na verdade o ar mais gelado e
seco já respirado. Em seus questionamentos, Consciência precisa torcer a porca do
parafuso até espanar, torcer o pano úmido até secar, por seu pai ser incógnito como pi,
pragmático em demasia – “há tempos, antes da era racional, ditada por sua mãe,
corrompida que foi por meu irmão Poder, que se deu a ela cedendo o governo da
realidade, ascensão esta derivada de uma propaganda populista, também passei pelo
desencantamento, ao perder minhas mais profundas propriedades e, em verdade, passar
alguns anos no fundo do mar, entorpecido pelo temor da solidão, me derrubei em
amores por aquela que me cercava naquele plano profundo e arenoso, a Paixão. Antes
da derrocada amotinada de seu império marítimo por lacaios racionais infiltrados e
medonhas criaturas das sombras, e de ser expulsa de seus domínios, me revestiu de seu
vigor entusiasmante, muito diferente da aparente coerência logica de sua mãe,
preservando assim minha sobrevivência a troco de um favor secreto, um segredo, que
agora, em vista do aconselhamento de Destino, passo a você, por necessidade.” – em
cerca de um minuto de contemplação, talvez Consciência tivesse respirado mais que
duas vezes - “A semente de nossa relação gerou o oposto de ti, tirada de mim na
ascensão do poder racional, e agora que as próximas pedras do caminho foram
dispostas, deves resgatar sua natural unidade, inevitavelmente indo busca-la”. A última
oração fora tão enfaticamente anunciada com tom de incentivo, que os olhos de seu pai
foram vistos reluzentes mesmo sob a sombra do capuz, e mal fora terminada, nossos
olhos nessa trama saíram em disparada para fora da caverna. A Consciência voa sobre
as colinas em declive, arrastando a folhagem ainda não dispersa dos quintais, mirando a
entrada da floresta dos pesares, no intuito de ao cruzá-la, poder colher e dispor mais
pedras, caminhando em seu conhecimento interior, dessa vez, de sua tia Verdade,
aprisionada por sua mãe no vale da sensatez. O aroma inebriante de sangue ressecado
sobre os troncos, e os cadáveres putrefados ardendo em larvas, adubando as raízes num
movimento de sucção doentia, se somam aos gritos impessoais provindos das copas, que
insistentemente se chacoalham e esbarram, fazendo polvilhar farelos de agonia, no
coração de quem quer que passe. A Consciência apreende tal consonância mórbida e a
entrelaça com grande e rara falta de autocontrole à percepção das intempéries de sua
jornada, desconfia de si – “como posso tão livremente me expor, vulnerável e sem
respaldo do núcleo de minha personalidade, que agora sequer percebo?” – O primeiro
raio de luz parece rarefeito, se reconstituindo aos poucos fora do alcance do hálito
quente e ácido da floresta. Mais adiante, em meio a campos florais repletos por um
complexo habitacional de insetos multicoloridos se encontra seu destino. Desvalorizada
desde que fora considerada ultrapassada por seus hábitos idealmente incompatíveis com
a realidade material, isto é, agora racional, a Verdade fora isolada e não recebia visitas
há décadas, à gosto de sua própria irmã Razão. Sua casinha de sapê, humilde e
deteriorada por fora, persiste solícita por dentro, com paredes encobertas de fotografias
as mais variadas, jarros d’agua com flores vivas e mortas, e apesar de reservada, sua
residente jamais desacredita de si, ao contrário dos que creem que já caducou, nem se
deixa desestabilizar por sua sucessora utilitarista, a Pós-Verdade. A anciã, com sua
aparência por mais que empoeirada, se mostrava também flutuante, com um brilho na
pele jamais visto mesmo num sapo. Singela e resiliente, traça à Consciência os pontos
interiores que pedem conexões, para compreender a forma essencial e pura daquela fatia
especifica com cobertura e recheio, da existência que trouxera em sua indagação,
ensina-a a pescar, ao invés de dar-lhe o peixe – “pergunte-se, sua natureza precavida e
metódica, agora perspicaz e aturdida pela dúvida, contrasta a que, qual é a noite de seu
dia, enquanto dormes, quem sai soturnamente à surdina, o que está atrás do muro auto
erigido nas fronteiras de seu ego?” Ela almeja estimular a elasticidade e autonomia da
Consciência, nunca morta, mas adormecida, e esta navega atentamente dentro de si, seu
agir se assemelha ao movimento da brisa que faz farfalhar as folhas por um triz ligadas
ao caule que logo se soltam, e que agita sutilmente a barra do vestido da amada ninfa,
residente em seus mais profundos devaneios, batendo acima dos joelhos, de barra
maleável e continua como a borda de ondas. A miração retorna e ela chega ao cerne da
naturalizada e persistente sensação de incompletude que a assolava, a chave de seu
dilema é o descobrimento de si em níveis que não imaginava, a auto arqueologia
cartográfica se complexifica. Com o afastamento empoderado de sua mãe ainda na
infância, maior solidez com álibis oculares não lhe era opção frente ao mundo-cão, o
caminho mais curto fora bloqueado, chegando a ele, a queda da pilha de pedras do
coiote foi soterrante, desiludindo. Uma crucial perda de conselhos, deixados para trás
com pesar, agora percebido como uma desventura iluminadora, o tripulante de primeira
viagem vislumbra terra pela primeira vez, através da inebriante emoção de viver
verdadeiramente, de queimar sensações dentro de si, cada vez mais dando voz a seu
lado b.
Saindo do vale da sensatez, a Consciência prossegue descobrindo a realidade por trás do
mundo já conhecido na trilha que se segue – “arvores frondosas e robustas, por mais que
presas ao chão, mais vivas que os seres animados que me cercam, nuvens macias,
dançando vagarosamente, e se entrelaçando em amizade, como as ideias que me
invadem, sombreando e confortando meu caminho”. Naquela noite, seus sonhos foram
livres e avessos como nunca, fugindo com os grilhões cerrados, como se tivesse
emprestado os olhos de alguém que buscava, que o guiava a lugares e pessoas nunca
vistas, seria um outro eu em ação, saído de uma penumbra além das orlas da percepção?
Vislumbres esfumaçados, oscilando por vezes até a nitidez do contorno do sol atrás da
lua no eclipse, mas não influenciáveis em suas direções, as artimanhas da lucidez
onírica lhe eram ainda distantes, era uma experiência Malkovich. Ao acordar, viu-se
com trajes diferentes, com as veias da testa saltando tamanho o fluxo de sangue,
derivado da posição em que dormira no sofá, de pernas pro ar, lama ressecada nas solas
dos sapatos, respingada na barra da calça, e manchas roxas nas bordas de seu colarinho.
A dúvida com fugacidade assumiu forma de urticaria, assim, se recompondo com
rapidez, rumou avidamente para o recanto da prudência, morada de sua tia, Moral. Seu
cargo de porta voz de diretrizes racionais transpostas à realidade material, uma espécie
de ministra geral da Razão, não abria margem à nutrição de grandes expectativas, como
a irmã, Moral era rígida e sistemática, como dobras sanfonadas do relevo de uma cadeia
milenar de montanhas, e disse-lhe, integramente despida de concepções apaixonadas –
“isento do embrião da insegurança, não mais me resigno a omitir, seu pai tivera em
outrora um filho bastardo, jamais citado por comodidade diante da insuficiência racional
de contar-te, mas que utilidade pode haver nisso? Devido a hereditária alergia à
inoportunidade, é importante que saibas que estes são novos tempos, com o isolamento
de nossa em outrora querida irmã Verdade, a utilidade superou a veracidade. O período
pós-moderno da humanidade mostrou isso assimilando a metamorfose ambulante como
doutrina política e cultural, estamos convictos de que se deve esquecer tais asneiras. Seu
futuro vem sendo planejado, e será garantido com sucesso sob as asas de sua mãe, que
permaneceu fora tanto tempo, trabalhando duro na reprogramação racional do mundo
conhecido, esperava que em vista disso a situação já fosse obvia para ti. Ademais, não
se esqueça que sua tia Memória também está conosco, a temporalidade se tornou
relativa como a vida de Gaia, e ela pode certamente tornar tudo indolor para ti, como o
tem feito ao mundo, em nossa renovada gestão transcendental.” A Consciência já sabia
muito bem estar trilhando a direção correta para a transcendência do ego, a atração
magnética do egoísmo mal era sentida a essa altura, mas quanto mais próximo o
objetivo se torna mais os obstáculos aumentam e o terreno se torna íngreme. Dito isto,
sem mais delongas e com uma despedida fortuita mal explicada a Consciência sai, no
encalço de sua dualidade diametral, que de fato nutre a natureza inversa condizente com
a demanda de correspondência derivada de seu sentimento de incompletude, mas cujo
paradeiro e natureza atual, eram há tempos desconhecidos.
Acordando dia após dia numa rotina de sonambulismo quase epilépsico, a Consciência
se flagrara involuntariamente num gradual processo de desapego às estruturas racionais
da herança paterna, assoprando-as ao vento como felpos de um dente de leão, como que
vomitando um vírus, buscando um hospedeiro maléfico em seu centro de calor. Numa
manhã sabor suco de laranja, batendo à sua porta surge a confidente, mas imprudente
Liberdade, sabendo do espaço progressista aberto a mais por lá. Compatível consigo e
seu oportunismo, a lábia libertina não erra – “soube do teu drama e estagnando de
impaciência cá vim, quero ajudar-te meu caro, sei bem como os ”lá de cima” o tem
escanteado a acessar seu esclarecimento, posso elevar-te a contemplação de sua
ambição, em verdade, sou intimo daquele que busca, e mal vejo a hora de revê-lo por
aqui, creio ter me adiantado, mas não sejamos apreensivos, fica aqui a charada que ele
me encarregou de recitar para ti:
Meu alvorecer depende do teu crepúsculo,
Sem que desapareça não moverei um músculo,
Jaz atrás do espelho um grandessíssimo segredo,
Para vislumbra-lo é preciso que percas o medo,
Vejo-te correndo ávido aqui e acolá,
Respire fundo, o espetáculo acaba de começar,
Não deixo rastros para ti, tentar me ver será em vão,
E ao descobrir o óbvio, teus olhos se fecharão.
Ao final da última vogal o ambiente se esfumaçou desmaiado em uma poeira azulada,
elevando a flor da dúvida consciente ao ápice de seu deleite, lancinante e ardente.

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