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Apropriação tecnológica e coesão social: a identidade dos movimentos

culturais no contexto da pandemia


Cairo Henrique Lima

Atualmente, efeitos catastróficos resultantes da pandemia global de COVID-19 tem se


aprofundado rapidamente em múltiplas dimensões de nossa vida social, dilatando a
percepção cotidiana de um contexto excepcional.

Por um lado, tais mudanças têm trazido alvoroço e desorientação aos grupos socialmente
mais vulneráveis (população de rua, trabalhadores informais, comunidades carentes,
portadores de deficiência, etc.), por outro,

tem motivado reações estratégicas por parte dos que dominam na hierarquia política e
econômica de poder (política institucional, empresariado, mídia televisiva e jornalística,
setor bancário, etc.).

Um posicionamento rígido dessa pequena parcela da população em favor da


racionalidade neoliberal vem tornando-a opositora às demandas daqueles reunidos pela
vulnerabilidade frente à crise, uma comunidade de sentido decorrente da divisão social
da moléstia.

Essa parte merece desenvolvimento. Em que grupos, exatamente, está a oposição? Seria
importante explicar e exemplificar.

Pode-se dizer então, que essas imagens de identidade coordenam diferentes grupos ao
redor de narrativas comuns de diferenças e semelhanças, que distanciam pelo medo, mas
aproximam pela solidariedade.

Nesse sentido, a demanda pela preservação de hábitos relacionais durante o contexto da


pandemia tem muitas vezes sido satisfeita pela mediação de práticas comunitárias
virtuais, tais como as lives, videoconferências, salas de aula online, entre outras formas
de transmissão remota de informações na Web. Dado esse contexto, nos voltamos em
particular, para as práticas virtuais de representação dos movimentos culturais, cuja
capacidade comunicacional, ancorada na estética e no discurso, se baseie na produção e
circulação de videogravações em plataformas digitais, notadamente o YouTube – bem
como, devido ao agravamento da pandemia, na interação virtual temporalmente
simultânea, exemplificada pelas lives. Essa apropriação de espaços tecnologicamente
mediados proporcionaria a diversos movimentos sociais e culturais a oportunidade de
reagrupar suas identidades coletivas e redefinir seu direcionamento comunitário – seja
ideológico ou artístico – durante o contexto de exceção da pandemia.

Com base em nossa pesquisa em andamento, temos por objeto um conjunto de


fenômenos interno aos movimentos culturais – nomeadamente o Hip-Hop - destacando
o RAP (gênero musical), os slams de poesia e as batalhas de rima (práticas culturais). Já
há algum tempo tais fenômenos vem se inserindo nos espaços virtuais, particularmente
na plataforma digital YouTube, cujo valor analítico diferencial repousa em seus aspectos
audiovisuais, abertos à interação virtual em tempo real, crescentemente eleita como
experiência suplementar àquela das práticas culturais em si. Acreditamos que nossa
hipótese de que as narrativas político-culturais que organizam e dão sentido a essas
práticas tem sido cada vez mais projetadas e alojadas no espaço representacional das
mídias digitais a partir de conteúdo audiovisual, se torna mais nítida e estabelece
continuidade com o contexto de isolamento social (que impele as identidades culturais a

imergirem na virtualidade em busca de coesão). Esse processo de ressignificação


contextual modifica o entendimento pragmático da Internet, que passa a projetar
modelos virtuais suplementares às condições materiais das práticas de representação,
que reorganizam as categorias de experiência da realidade: o que há pouco tempo se
apresentava como possibilidade se torna necessidade, pois, em vista da normativa de
isolamento, nosso espaço relacional se torna recortado, sendo circunscrito no interior da
Web, em mídias digitais, jornais online e transmissões remotas. Desse modo, o contexto
pandêmico atribui ao uso dos espaços sociotécnicos virtuais um significado excepcional
e inevitável, com caráter prioritário de utilidade social geral, não apenas ao passar a
trabalhar em casa, para fazer transações financeiras online ou atenuar a clausura do
tédio, mas também, para adquirir informações e, com isso, se conectar a redes de
relações construídas pela identificação comum com uma narrativa particular (coesão),
que seja correspondente ou derivada da forma predominante de organização da
experiência pessoal “pré-pandemia” e que confirme sua autoatribuição na alteridade.

O ascendente atravessamento virtual da rotina levaria então agrupamentos sociais (ou


movimentos culturais) a reorganizar a experiência de suas práticas no interior de espaços
virtuais compatíveis com sua modalidade expressiva ou gênero comunicativo –
acreditamos que a linguagem audiovisual utilizada, por exemplo, pelo YouTube, seja
capaz de visibilizar iniciativas culturais desta ordem. Desde o inicio da quarentena
muitos tem sido os modos como diversos agrupamentos identitários (órgãos políticos
institucionais, setores do sistema educacional, artistas e movimentos culturais, entidades
religiosas, etc.) passaram a se apropriar da mediação tecnológica para disponibilizar ao
grupo, meios de produzir coesão interna, reagrupando os componentes coletivos de suas
identidades para retomar ou redefinir suas atividades enquanto conjunto. Alguns
exemplos da apropriação tecnológica com fins de coesão durante o contexto da
pandemia envolvem as lives (transmissões audiovisuais em tempo real), utilizadas para
uma polinização informativa, por parte: dos governos federal e estadual, de professores
e alunos suspensos por modelos EAD, por artistas e movimentos culturais em seus
shows e eventos adaptados, e mesmo em reuniões remotas por motivo de credo.
Podemos dizer que a responsabilidade na elaboração eficaz dessas interações virtuais
vem se tornando comunitária ou solidária, pois, na heterogeneidade dos grupos sociais
agenciada por estes novos espaços relacionais, muitos não têm acesso à tecnologia,
outros não têm a habilidade ou o conhecimento necessário para participar. A despeito
dessas restrições, no tocante ao segmento Hip-Hop dos movimentos culturais - enquanto
grupo identitário e objeto de pesquisa - temos observado uma narração virtual de
práticas habituais na agenda social desses grupos. Artistas da cena musical RAP têm
utilizado as lives para reunir público (na própria casa, performando um show, gravando
um videoclipe, etc.), bem como destacado os temas políticos agregados pelo contexto
lírica e esteticamente. De modo similar, slams de poesia e batalhas de rima, práticas
culturais tradicionalmente situadas no espaço público urbano, estão reformulando suas
capacidades técnicas para produzir experiências virtuais adaptadas que suplantem as
condições materiais das práticas no “contexto normal” – nesse caso, as competições de
poesia e de rima utilizam as lives para reunir, semanal ou mensalmente, internautas que
comungam uma mesma identidade cultural (público, poetas/MC’s, apresentadores, etc.).
Por enquanto, estes são alguns dos apontamentos sociológicos possíveis sobre a relação
entre cultura e tecnologia durante o contexto da pandemia global de COVID-19.

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