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Terreno Baldio

Um livro sobre balbuciar e criançar os espaços


para desacostumar Geografias
Por uma Teoria sobre a Espacialização da Vida
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JADER JANER MOREIRA LOPES

Terreno Baldio
Um livro sobre balbuciar e criançar os espaços
para desacostumar Geografias

Por uma Teoria sobre a Espacialização da Vida

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Copyright © Jader Janer Moreira Lopes

Todos os direitos garantidos. Qualquer parte desta obra pode ser reproduzida,
transmitida ou arquivada desde que levados em conta os direitos do autor.

Jader Janer Moreira Lopes

Terreno Baldio. Um livro sobre balbuciar e criançar os espaços para


desacostumar Geografias. Por uma Teoria sobre a Espacialização da Vida. São
Carlos: Pedro & João Editores, 2021. 199p. 16 x 23 cm.

ISBN: 978-65-5869-420-5 [Impresso]

1. Vivências espaciais. 2. Geografia da infância. 3. Bebês. 4. Crianças. I. Título.

CDD – 370

Capa: Petricor Design


Diagramação: Diany Akiko Lee
Editores: Pedro Amaro de Moura Brito & João Rodrigo de Moura Brito

Conselho Científico da Pedro & João Editores:


Augusto Ponzio (Bari/Itália); João Wanderley Geraldi (Unicamp/ Brasil); Hélio Márcio
Pajeú (UFPE/Brasil); Maria Isabel de Moura (UFSCar/Brasil); Maria da Piedade Resende
da Costa (UFSCar/Brasil); Valdemir Miotello (UFSCar/Brasil); Ana Cláudia Bortolozzi
(UNESP/ Bauru/Brasil); Mariangela Lima de Almeida (UFES/Brasil); José Kuiava
(UNIOESTE/Brasil); Marisol Barenco de Mello (UFF/Brasil); Camila Caracelli Scherma
(UFFS/Brasil); Luís Fernando Soares Zuin (USP/Brasil).

Pedro & João Editores


www.pedroejoaoeditores.com.br
13568-878 – São Carlos – SP
2021

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Livro 07:

Ocupa-se de Topogênese,
interespacialidades e emergir o nascer como Ser Terreno

- Germinar...

Há muitas formas de os bebês e as crianças se envolverem com as


paisagens. A minha teve uma certa de mistura de medo e fascinação,
de algumas preocupações, mas também de encantamentos. Eu me
sentia incluído nesses sentimentos, nesses afetos, era minha liberdade
à “moda de paisagem”, para lembrar o deslumbrar de Manuel de
Barros. Todo ser humano, incluindo aí os bebês e as crianças, vive à
mercê de sua “à moda de paisagem”.
Acho que preciso contar um pouco mais sobre isso, para poder
trazer, para a sombra da árvore, o degustar da fruta com calma que
essa luz disfarçada pelas folhas e galhos da copa criam. Sempre gostei
das sombras e de seus descansos para nossa vida, por isso, não
entendia quando falavam mal delas. Um amigo de família, que sempre
nos visitava, era artesão de madeiras, fazia móveis e objetos. Seu
ofício era sempre carregado de conversas, ininterruptamente cheias
de coisas estranhas que estavam acontecendo no mundo. Ele
terminava muitas frases com “é.... são tempos sombrios”. Não sabia
se ele tinha criado essas palavras, mas para mim eram dele. Apesar de
elas fecharem suas orações precedidas de coisas estranhas e que,
aparentemente, apontavam para algum momento difícil, eu sempre
saía feliz de escutar suas conversas. Isso porque os “tempos
sombrios” me diziam de um mundo cheio de sombras para a gente
descansar e arvorear-se sem pressa! Eram tempos bons! Vivia, assim,
as sombras “à moda de paisagens”. Mas ainda quero falar mais desse
estado. Sempre gostei de comer frutas nos quintais e pomares! Até
mesmo as compradas nas mercearias. E sempre gostei de engolir o que
as pessoas chamavam de bagaço e os caroços. E um dia escutei de um
adulto: “- Fica engolindo caroço para você ver. Vai nascer uma árvore
dentro de sua barriga”. Por isso falei de medo e fascinação. O que eu
deveria fazer? Lembrava de uma experiência que a gente fazia na

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escola com caroço e feijão embebido no algodão com água e, colocada
no copo, germinava em menos de uma semana. Era assim que
imaginava todas as sementes em minha barriga. Tudo crescendo e se
ramificando. Tinha a paisagem fora de mim, mas também dentro,
germinando e crescendo, talvez, um dia, eu me faria eterno e cheio de
raízes. Eu pensava: como eu ficaria? Afinal, engolia um monte de
sementes de frutas diferentes. Tinha a certeza de que seria paisagem.
A verdade é que me fiz mesmo! Estou nela e elas em mim. Essa é a
colocação de todos nós nos espaços em que vivemos: são as trocas
que se fazem ao longo do viver que transformam a nossa relação com
o meio e conosco mesmos. Viver a moda paisagem é estado de
interespacialidade. Vamos a um berçário de uma creche para falar mais
sobre essa disposição humana de viver à moda de paisagem como
encontro interespacial. São gentes em andanças de terrenos.
O berçário está localizado em uma cidade da Zona da Mata de
Minas Gerais. Início da tarde. Os bebês estavam começando a
despertar de seu descanso, um momento presente na rotina da
instituição. As educadoras fazem muitos movimentos ao mesmo
tempo. Arrumam os colchonetes em um canto preparado para recebê-
los, colocam alguns materiais no chão para que os bebês possam
acessar, pegam outros no colo, alguns se deslocam livremente pelo
espaço. Naquele local, a vida era intensa, há muitas movimentações.
Só quem experiencia espaços como esses sente a vivência forte que
esses locais proporcionam. Os bebês mobilizam muito a vivência
humana. A simultaneidade de eventos é impetuosa, há de se fazer
muitas coisas ao mesmo tempo. Gestos, cursos, corpos lentos, corpos
rápidos, balanços, bamboleios, meneios, acenos, gesticulações,
trejeitos diversos, uma profusão constante de gentes em meio a
muitos palavreamentos.
As mobilidades, os artefatos esparramados pelo chão, os
mobiliários, as frestas de luz da tarde que incidiam pelas janelas, os
pés, as mãos, os corpos e tudo mais estava ali e, claro, entre tudo isso,
as muitas palavras, os muitos dizeres, as muitas expressões. Eram
intensas trocas, eram intensos diálogos, a linguagem emanava de
muitas formas. Tudo conversava. Um espaço falante. Narrador não só
das ausências, das outras histórias que já o ocuparam e fizeram, mas
também das muitas que continuam fundindo com a geografia que ali
prosperava. É a vida sendo vida.

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Está aí a afirmação feita anteriormente: a compreensão de que
nenhuma vida se encerra nela mesmo, toda vida é um encontro que vai
além de minha própria existência no mundo, de meu recorte epidérmico,
de minha dita peculiaridade, toda vida é um continuum de pessoas, de
espaços e tempos. Um encontro no qual o liar se faz. Moda paisagem65.
Se a vida terminasse na pessoa, fosse uma escolha solitária, como
muitos discursos tendem a apontar, muitas crianças estariam vivas,
não teriam finalizado suas vidas em balas perdidas comuns nos
grandes centros urbanos brasileiros, nas travessias de mares e
oceanos, em caminhadas longas por regiões secas, em territórios e
conflitos. É vida liar, por isso Bakhtin (2012) nos assinou com sua
impetuosa frase: Não temos álibi!
Por tudo isso que o conceito de vivência é uma categoria
fundamental para Vigotski (2006, 2010) para pensar o humano e seus
processos de transformações. A vivência é sempre dinâmica, nunca
está paralisada, está sempre em movimentos de criação da pessoa em
si mesma, da pessoa no mundo, do mundo na pessoa e nas outras
pessoas. É o arvorear, o enraizar! Por isso, esse mestre das inversões e
invenções vai elaborar, como base de compreensão do
desenvolvimento das crianças, as neoformações.
Ele quer nos dizer do novo, catar os resquícios que emergem da
cultura e que faz a vida um movimento incessante e, que, ao contrário
do que muito se pensa por aí, não é gradativo e processual, é potencial.
E, se seus postulados trazem esses desdobramentos, eles não
param nas colocações anteriores. Eles chegam ao tema central desta
obra que é a vivência espacial dos bebês e crianças. Basta voltar ao
registro que abre esta seção, que ajuda a compreender a próxima
afirmação: se nenhuma vida se encerra nela mesma, o mesmo pode ser

65Viver “à moda paisagem” esbarra-se em um outro importante conceito de Vigotski


(2006, p. 264), o de “situação social de desenvolvimento”. Eis: “Al inicio de cada
período de edade la relación que se establece entre el niño y el entorno que le rodea,
sobre todo el social, es totalmente peculiar, especifica, única e irrepetible para esta
edad. Denominamos esa relación de situación social del desarrolho en el dicha edade.
La situación social del desarrolho es el punto de partida para todos los câmbios
dinâmicos que se producen en desarrolho durante el período de cada edad. Determina
plenamente y por enterro las formas y la trayectoria que permitem al niño adquirir
nuevas propriedades de la personalidade de que lo social se transforme em individual.
Por tanto, la primera cuestión que debemos resolver, al estudiar la dinâmica de alguna
edad, es aclarar la situación social del desarrollo”.

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dito do espaço. Eis o argumento principal de todos os nossos
trabalhos, elaborados em anos de encontros: toda vivência espacial é
sempre uma vivência interespacial.
Esse é um dos conceitos centrais das teses que defendemos: as
relações que se faziam em quaisquer espaços, como no berçário
descrito, são sempre uma criação interespacial. Viver à moda
paisagem é esse estado. Olha lá no berçário, naquele local, ninguém
estava sozinho. Um bebê se arrasta para a porta que dava acesso a
uma sala de banho, de trocas de fraldas. Uma educadora o pega no
colo e comenta: “- Brinca no lado de cá porque a porta vai se abrir e
fechar, é hora de trocar muitas fraldas”. Leva-o para o outro canto e o
coloca no chão. Outra, com um bebê em seu colo, conta que ele lembra
a filha de uma amiga que morava em seu bairro. Uma melodia embala
outra criança, fala de um lugar que também ouvia na minha infância o
“Tororó” e que naquela época não sabia onde ficava. Só mais tarde
aprendi que se fazia referência ao rio Itororó, um rio santista, o Itororó
era agora o Tororó, era assim que aquele bebê ia conhecer aquele
espaço, como eu também conheci66. Cantos, cantos, contos! E assim,
corpos, palavras, as coisas, pessoas se tocavam. Cada um estava em
vivências e existências compartilhadas, é nesse sentido (e sentir) que
todo o espaço geográfico é sempre um interespaço. Toda
espacialidade é sempre interespacialidade, onde estão as relações
intercorpóreas, interdiscursivas67, intertemporais, onde o social e o
pessoal se fazem em cultura. Mesmo nos espaços desertos de vida
acompanhadas, há muitas vozes que, polifonicamente, fazem do
espaço essa condição se existir. Germinação em forma de signo. É
assim que o espaço nasce como espaço geográfico, domiciliado e

66 As cantigas que são compartilhadas em nossas infâncias criam muitas imaginações.


Encontro-me com Bartolomeu Campos de Queiroz ao narrar: “Ele [seu avô] andava
devagar, arrastando os pés como se num atoleiro, gestos medidos, olhar comprido e
fundos suspiros como se fatigado pela falta do que fazer. Para curar a vida só com
muito chá-de-pouco-caso, lamentava pelo meio da casa. Alguns diziam que ele era um
homem com paciência de Jó. Eu não sabia se Jó era um escravo amigo de Maria Turum,
jogador de caxangá, ou se um compadre de meu avô, vizinho da Terezinha” (QUEIROZ,
1995, p. 09). Prezado Bartolomeu, eu tinha as mesmas dúvidas.
67 Aportor-me nos estudos da professora Cecília Goulart, que em muito me ajudaram

a tecer as considerações aqui feitas, são muitas obras para cita, registro duas:
GOULART, C.M.A; WILSON, V. (0rg). Aprender a escrita, aprender com a escrita. São
Paulo: Editora Summus. 2013; GOULART, C.M.A et all, Alfabetização e Discurso:
Dilemas e Caminhos Metodológicos. Campinas: Editora Mercado das Letras. 2019.

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povoado, pois, como nos trouxe Volóchinov (2017, p. 96), “um signo
só pode surgir em um território interindividual [...]”, o choro de um
bebê, por exemplo, não é uma tipologia a ser aprisionada em sons e
entonações, mas um enunciado nesse território interindividual,
reconhecido pelo seu movimento comunicativo. Esse tem sido um
forte desejo, o canto que ecoa a partir dos traços de um cosmo em
firmamentos de bases positivistas, como nos aponta Jerebtsov (2014)
que sempre buscou “controlar outras pessoas (por isso desumaniza o
homem e a sociedade). (idem, pg. 18)”. Olhemos para o outro em suas
peculariades e contiguidades, suas muitas linguagens (expressões,
palavras, sons, movimentos...quantas forem) “essência das vivências
[que] se revela no seu processo de desenvolvimento histórico-
cultural.” (ibidem) [e geográfica]. Jerebtsov recorda Hegel e comenta:
“sob cada túmulo está enterrada a história da humanidade” (ibidem),
disso poderíamos desdobrar: sob cada vida estão os estratos e
sedimentos desse mundo herdado, de onde há o enunciado do novo.
O ser humano nasce nas muitas instituições, coisas e pessoas. Uma
das marcas da paisagem em seu aspecto geográfico é que ela é marcada
por diversas [aqui converto essa palavra em substantivo] onde se habita,
onde se inicia, onde se vira difusão. Por isso, nenhum processo humano é
isolado, solitário, está sempre marcado por formas presentes no espaço
e que fazem parte das relações interespaciais e de tudo que está nesses
locais: os cheiros, os sabores, as sensações, as palavras, as muitas feições,
a fome, o medo, a felicidade, as angústias, os sons. São expressões em
solos que vivo [vivemos]: esse ser muquifo, as esquisitices que nos
singularizam, nos fazem peculiar em contíguos.
Vigotski, em seu último livro escrito, uso aqui a tradução em
espanhol publicada em Buenos Aires (minha versão é de 2007)
intitulado “Pensamiento y habla”68 fez o esforço de conjugar suas
concepções e ideias de pesquisas que envolvem o desenvolvimento e
o processo de transformação dessas duas dimensões humanas, como
elas se fazem no existir, ou seja, se dedica a compreender as raízes
genéticas do pensamento e da fala. Ao final da obra fica claro que a
fala não é algo que cada um de nós detemos, mas, efetivamente aquilo
que viramos e somos. E nisso concorrem os muitos termos, conceitos,
o autor irá, inclusive evidenciar como o que chama de conceitos
científicos e espontâneos percorrem vias diferentes nas peculiaridades

68 Ver referências bibliográficas.

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contiguas que faz a nossa consciências e nas generalizações. Vigotski
optou (talvez pelo momento em que vivia), usar para um conjunto de
conceitos, o termo científico, aqueles que não emergem do chão da
vida e que são constituídos nas relações cotidianas e da práxis do fazer,
mas, sobretudo, são os que se fazem nas relações institucionalmente
elaboradas para isso, situam-se ai a diferença por exemplo, entre
compreender o vocábulo irmão e, trazendo m conceito da minha área,
território. Vigotski, reconheço essas diferenças e muitas outras que
você nos alertou, novamente nos fez lembrar que não é possível olhar
para palavras vagueantes e as redes de onde eles se tecem, pois
balançam com insetos que buscam se livrar das teias de aranhas que
os aprisonam. Assim como você refez e significou o importate conceito
de fala egocêntrica de Jean Piager (idem), ouso pensar os conceitos
científicos, como conceitos de Ofício, aqueles que tem na
intencionalidade (ou deveria ter) o desenho de seu desenvolvimento
no outro. Desejo discutir isso mais com você.
Voltemos a olhar o quarto com cheiro de velas da mulher curvada.
Um espaço de encontro, um local onde aquela doadora de palavras
curava bebês e crianças. É fé legítima do encontro, espaços que se
intercruzam para criar o sagrado. É a condição do homem rocha, do
homem beco, de todos nós. A interespacialidade é Topogênese.
Curvar-se para pegar um bebê é uma intensa experiência
intercorpórea, convertida em vivências que unem duas atitudes e atos
responsivos, quer sejam em quartos que se benzem, quer sejam em
creches, em casas, em praças ou ruas. Nesse sentido, qualquer
intencionalidade pedagógica é [e deve ser] sempre uma
interintencionalidade.
O cuidar (que é sempre educar e, claro, seu inverso) tem uma
liação com os bebês e com as crianças que é marcada pela
interespacialidade. Essa relação deve ter mais força que qualquer
política social e institucional. Apesar de reconhecer a fundamental
importância desses documentos, gostaria aqui de relembrar que essa
é uma condição anterior à existência dos papéis, pois está na base da
relação antropológica que forja a humanidade em seus planos
genéticos e filogenéticos.
Em uma outra creche, em um dia como qualquer outro, que nunca
é igual a outro, estamos sentados em uma roda em um pátio interno.
Uma história vai ser contada. É uma história sobre animais que vivem

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em uma paisagem típica do Brasil: o cerrado. No decorrer da história,
acontecimentos levaram os animais a ter que tomar muitas decisões.
A narrativa está envolvida em canções e pelas cordas de um violão. O
silêncio foi quebrado com muitas questões. As crianças perguntavam
sobre o cerrado, sobre que animais eram aqueles, o que teria
acontecido depois. A história não se encerrou, acabou virando muitas
buscas para se conhecer aquele local a que nenhuma delas tinha ido.
Viviam em uma paisagem geográfica onde o urbano se misturava com
árvores verdes o ano inteiro. O cerrado distante agora chegava àquele
pátio. Fotos e imagens de livros, de páginas virtuais foram acessadas.
Suas cores e formas surgindo. Outros autores foram chamados, novas
paisagens e continentes também.
É no nome que as coisas começam a existir. A interespacialidade e a
Topogênese emergem de qualquer nome. Há nomes de gentes, de coisas,
de movimentos, tudo criado não como forma de organizar o real, mas
como unidade que gesta a consciência (BAKHTIN, 1988) e que, por isso, é
constância em inacabamentos. Não são representações estáticas do real
em nós, é nossa unidade semiótica nessa relação.
Nessa mesma creche, um projeto desenvolvido com crianças sobre
dinossauros chegou à conclusão, após intenso debate sobre a extinção
desses seres na superfície terrestre, que houve, sim, o choque do
meteoro que atingiu nosso planeta há alguns milhões de anos atrás. Mas
ele não foi responsável pelo desaparecimento, uma outra hipótese foi
criada, eles fugiram para um local chamado “Docha”, um outro mundo e
lá estão até hoje, escondidos dos humanos e vivendo suas vidas.
Se a Topogênese é olhar como ocorre a gênese da vivência
espacial, se consideramos a vivência como fronteiras que colocam em
movimento o plano social e pessoal, na vivência espacial, na
emergência do espaço geográfico no ser humano, a interespacialidade
é a unidade, é “Docha”. Esse lugar situado não entre dois mundos,
duas fronteiras, ele não é um entre lugar, mas é um novo lugar.
Condição genética à moda paisagem. Docha pode viver sem aspas,
existe não só nessas linhas, mas na vida daqueles que as criaram e
daqueles que com eles viveram, como eu, o que me permite hoje falar
da sua existência.
Não se habita nenhum lugar sozinho. Qualquer bebê caminha, se
arrasta, se desloca não em um plano, uma superfície asséptica
socialmente, mas em espaços herdados. Essa é uma diferença crucial para

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entendermos que qualquer experiência sensório-motora é sempre uma
vivência social e, com ela, interespacial. É assim que nos fazemos terrenos.
Não abandonemos os outros na crença que se bastam por si só, há muitas
linguagens que estão se criando. Docha é sempre plural. Está cheio de
mundos sendo criados para serem habitados.
Não é possível negar que você está ali, não é possível negar que o
outro está ali, não é possível negar que essa existência é uma
[co]existência, que as vivências são [con]vivências e o espaço é, assim,
[com]partilha entre aqueles que o habita e de onde muitas [U]topias69
se fazem. Qualquer território de infância é um território interespacial,
qualquer paisagem de infância é uma interpaisagem, qualquer lugar é
um interlugar.... Poderia continuar descrevendo essas expressões do
espaço geográfico, dos ambientes que vivemos, mas o importante é a
relação que permite nos unirem conosco mesmo e com o mundo, nos
fazer Ser Terrenos.
A interespacialidade deve ser compreendida como unidade e
contiguidade. Aqui o prefixo inter busca expressar exatamente isso e
não a concepção tradicional de interação que coloca a separação entre
dois pontos que se interagem. Foi com essa concepção que Vigostki
(2006) buscou romper, a do espaço como absoluto, a do espaço como
simples superfície, a do espaço como relações de pontos que se situam
em suas separações, para pensar na unidade, nas relações que são
fusões, no vocábulo que toma emprestado da língua alemã: o ur-wir.
A interespacialidade como contiguidade não pode ser reduzida a
uma interação compreendida apenas como a internalização do mundo
externo para o mundo interno, mas sim como um acontecido entre os
movimentos existentes no espaço e os movimentos existentes nos
bebês e crianças [nas pessoas]. Há de se considerar esses muitos
movimentos, o plano social e o plano pessoal não são estáticos, estão
em deslocações. Essa é a relação com. Todo ser humano é
contiguidade em transformação, não há unidade afeto-intelecto fora

69Peço emprestado esse vocábulo a professora Patrícia Medina Malgajero (2018, p.


678) que me remete “a vislumbrar la necesidad de construir otros mundos y la
emergencia éstos, a través de otros relatos que se producen en los espacios-lugares
— topos — del acontecimento a partir de “hacer memoria” em contextos de
emergencia y movilización social y política, es decir: de las u-topías. MELGAREJO,
Patricia Medina. Autorías infantiles — amor em tempos de escuela. Entrevista com
Marisol Barenco de Mello. Noria Investigación Educativa, v. 2, no 1, 2018. Disponível
em: https://revistas.udistrital.edu.co/ojs/index.php/NoriaIE/article/view/14180/14335

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do átimo de espaço e tempo que também estão em transformação. É
a vida em vida.
É comum ouvir em nossos espaços de trabalhos cotidianos: “toda
criança tem seu tempo”. Gostaria de acrescentar algo mais: toda
criança tem seu espaço, mas também de ir além, ao tempo e ao espaço
da criança, há a unidade com o tempo e o espaço com o outro. No
estado interespacial, é o espaço/tempo dela com nosso espaço/tempo
(Ur-Wir ou se preferir Docha.) Por isso uma vez afirmei: “[...] a criança
não está no espaço, não está no território, não está no lugar, nem na
paisagem; ela é o espaço, ela é o território, ela é o lugar, é a paisagem
e, por serem produtoras de cultura e de geografias, enriquecem nossa
condição humana” (LOPES, ano, p.87)
Do círculo da Filosofia da Linguagem, formado por Mikhail
Bakhtin, Valentin Volóchinov e Pavel Medeveidev, temos nos
apropriado de diversas concepções que, a nosso ver, em muito
contribuíram para compreender a espacialidade na vida humana.
Agora interessam as noções de exotopia e de excedente de visão,
expressões criadas por Bakhtin. A definição de exotopia está na
fronteira da criação estética, assim como nas relações que se
estabelecem no ato de pesquisar. Esses termos apontam as relações
entre duas consciências alocadas em espaços diferenciados, uma
consciência capaz de ser o excedente de visão da outra e que permite
perceber muitas nuances que não seriam possíveis de existir, se essa
situação não se estabelece. Ela está presente, por exemplo, na relação
do autor com sua obra, com seus heróis criados, quando, em dado
momento, a autoria permite observar a criação artística de posições
para além do criado. A mesma condição se dá no ato de pesquisa e esse
gradiente espacial é fundamental na sistematização das escrituras, nos
registros estéticos, pois permite ir além de si mesmo e contemplar o
outro e a si, de muitas posições. Cria condições que outorguem às
pessoas irem além de si próprias, de seus limites e recortes axiológicos
na e da vida, codificando outras leituras possíveis de um mesmo
evento, o que concederia a liberdade e a autoria.
Por isso, deslocar-se para a alteridade (inclusive consigo mesmo)
como ato responsivo de formação e constituição do humano, deslocar-
se para a coetanidade como a grande marca da existência e
experiência humana na Terra é que permite as vivências.

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Apropriando-nos desse conceito e alargando para além do
expresso por esse autor e seu círculo, assumimos a ideia de que a
exotopia não é apenas esse lugar ocupado pelo outro, mas também o
espaço dado pelo outro. É nesse sentido que podemos pensar as
exotopias e, rearranjando o próprio termo em exotopos, pois as
relações que se estabelecem na vida, o estar situado em diferentes
sítios espaciais permitem a constante doação de paisagens, de
territórios, de lugares que são reelaborados em sua condição criadora
e enraizados no humano e na cultura.
Essa expropriação como condição de que a existência da
interespacialidade não acontece só na relação com o outro, mas
também na relação consigo mesmo! Ela é uma das características da
autoria humana, como liberdade.
Finalizo com uma pequena vivência. De minha residência. ouço
vozes de crianças que brincam, são dois irmãos, um menino e uma
menina, moradores da casa ao lado. Sempre digo que as vozes infantis
estão desaparecendo dos espaços urbanos (essas são um dos rastros
apagados sobre os quais Benjamin nos alertou). Mas ainda tenho esse
privilégio sonoro na paisagem, entre nossos muros, escuto o cantar
das crianças, seus risos, choros, seus desentendimentos, seus afagos e
amores estão por ali também. Há uma interespacialidade que
atravessa os muros e chega até o espaço em que resido. Ela rasga as
construções e me mobilizam. É dessa fusão que se trata esse termo.
Docha existe ao meu lado e em mim.

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Tornar-se Virado

Um dia agraciando os eucaliptos


A criança contemplou seu tamanho
Passou uma pessoa estirada como eles
Comentou
Um dia você vai ser grande assim
Bastou
A criança desvalorizou
Não queria verticalizar-se
Queria completar-se eternamente
naquele tamanho
Logo tratou de resolver
Soube da culpa do tempo
Desligou todos os relógios
Até o cuco da sala
ficou em silêncio
Bobagem
Outro disse
Ninguém para o esticamento
Passou a andar de cabeça para baixo
Sabia da gravidade
Esse dar-se que puxa tudo para baixo
Se doou-o
Tornou-se um ser virado
Não curvado
Virado mesmo
Até hoje dizem
Lá vai a criança virada
Querendo ver o mundo às avessas
Querendo ser diferente dos Verticalizados
Assim se delineou
Preferiu curar-se de gravidades
E esquecer os relógios

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Livro 08

Ocupa-se de Vivência Espacial


de bebês e crianças e as metamorfoses em Ser Terreno

Fabular....

Erámos cinco crianças, quatro meninos e uma menina. Como todo


terreno baldio que teve sua origem a partir de uma casa que foi
derrubada, havia restos de materiais, que não tinham sido retirados,
arames retorcidos, madeiras, janelas, telhas e outras coisas que se
amontoavam em um dos cantos na parte de trás do lote, que possuía
uma considerável extensão. Esses materiais eram riquezas e tesouros
para nossas brincadeiras.
Naquele dia, estávamos brincando de voar. Fizemos aviões a
partir das madeiras. Um maior e larga era a base na qual a gente
sentava, em que cabiam duas a três pessoas. Outra, mais fina e
comprida, foi colocada de forma atravessada. Eram as asas que
permitiriam o voo, em uma das quais uma garrafa foi cuidadosamente
equilibrada deitada e apoiada por pedras. Eram armas. Isso mesmo,
pois, assim que sentamos, iniciou-se uma batalha aérea. Foram
montados dois aviões, em um deles dois meninos, eram o piloto e o
copiloto; em outros, mais dois meninos na mesma condição e a menina
também, era a paraquedista. Nós não erámos inimigos, ao contrário,
precisávamos atravessar uma área para que ela pudesse saltar e nos
avisar onde pousar naquele local desconhecido. As bocas faziam sons
dos deslocamentos e trocavam conversas pelo rádio. Pegamos alguns
torrões de pedra e jogávamos entre nós, eles espatifavam no chão.
Estávamos sendo atacados. Era um tipo de bomba desconhecida que
estourava no ar, em torno dos aviões! Ficamos mais agitados!
Falávamos muito entre nós. De repente, uma das pedrasbombas
acerta. Ao se espatifar perto da asa do avião em que eu estava, a
garrafa acabou rolando, caiu no chão e quebrou-se. Ocorreu um
silêncio, afinal, em nossa brincadeira, nenhum torrão de terra seca
deveria acertar diretamente um de nós ou o avião, era somente em seu
entorno, mas os estilhaços da pedra destruíram a garrafa. Nós nos

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entreolhamos. E agora? O silêncio foi quebrado pela voz da menina
paraquedista, que logo comentou: “Não temos mais tempo, vou saltar
e achar um lugar para a gente pousar, fomos atingidos!” O estouro da
garrafa mudou o rumo da brincadeira. Não tínhamos mais como
continuar o voo, só nos restava pousar. Concordamos com a cabeça,
os olhos estavam arregalados e assustados. Ela pulou da madeira e
correu para a frente do terreno. Parou. Levantou os braços, o gesto
nos dizia que era ali que deveríamos descer. E fizemos: “- O terreno é
atribulado, está deprimindo as rodas do avião”, uma das crianças
pilotos comentou. Isso fez o pouso tremer muito, a gente era jogado
de um lado para o outro. Mas conseguimos. Saltamos dos aviões e
fomos na direção da menina que estava arrumando o paraquedas: “-
Temos que esconder”, disse. Tudo tinha dado certo. Estávamos
salvos. Mas estávamos em territórios desconhecidos. O que
deveríamos esperar? O que aconteceria conosco? Como voltaríamos
para nossas casas? “Temos que andar”, ela disse! E foi o que fizemos.
Aquele território que tinha a qualidade de ser desconhecido ia ser
conhecido por nós
Todo espaço que guarda essa qualidade de território desconhecido
nasce da ausência de não ter sido contado ou narrado por outros tipos de
linguagens. Tem também a condição de interespaço. Toda linguagem não
apenas nos diz algo, mas também nos cria algo. Veja os mapas, por
exemplo, sempre tivemos a ilusão de que eles “representam” o lugar. Se
essa forma de registro é um de seus valores, associada a ela temos outro:
todo mapa é criador de lugares que fazem perder a propriedade de espaços
aparentemente incógnitos. Ali não tínhamos mapas em forma de lata. Os
arredondados e amassados. Éramos só nós desmapeadamente andantes.
Dos aviões de madeira, as bombas, que eram torrões de terra seco,
das batalhas aéreas, saltos de paraquedas e pouso pouco tranquilo, me
encontro com Vigotski (2018). É esse autor que, novamente, traz para
mim uma significativa contribuição para a vivência espacial, para os
interespaços e a Topogênese. Seus caminhos por esses territórios
mapearam registros de grande valor, que precisam ser compartilhados,
pois envolvem essas atitudes brincantes presentes no ser humano e com
força transformadora na infância. Andemos com essas crianças
conhecendo esse lugar por elas desconhecidos e, nesse diálogo
caminhante, convidamos esse registrador de vidas da Bieolorússia para vir

140
conosco70. Mas, logo digo, nosso diálogo terá como tema a vivência
espacial, mesmo reconhecendo que, para isso, precisarei passar por
diversas outras considerações.
Comecemos com o termo atividade criadora. Ele irá assumir que
“chamamos de atividade criadora do homem àquela em que se cria
algo novo” (VIGOTSKI, 2018, p.14). Essa é mais uma das rupturas
importantes trazidas por Vigotski, que reforçam, para mim, o fato de
ser o mestre das invenções e inversões, além de valer a ele o título de
Mozart da Psicologia que lhe foi atribuído por Stephen Toulmin (1978).
Vigotski (2009) traz para a alicerce de qualquer processo a
imaginação, afirmando ser ela a base de toda atividade criadora. Com isso,
coloca em questão os princípios de apoio puramente racionais, cognitivos,
evidenciando que, mesmo as criações mais técnicas não se assentam aí71.
Não é preciso dizer o impacto que essa afirmação possui nos
processos educativos, nos currículos e na organização da vida
escolarizada e, claro, nas formas de olhar para o ser humano! Não é
preciso dizer, basta seguir a orientação do autor: imaginar72!

70 Talvez devesse aqui me portar como o próprio Vigotski e outros autores desse
período, como Bakhtin, Volochinov, Medvedev, em relação a seus movimentos de
escrita que, a meu ver, se encadeavam com o método que escolheram para seus
trabalhos. Era muito comum fazerem um levantamento de autores, teorias e
postulados diversos que circulavam em sua época em torno do tema que estavam
abordando, apresentavam para o leitor como uma forma de mapear todo um
contexto, não para aplicar, mas para, em aproximações e distanciamentos, criar suas
próprias ideias e concepções, ir além do já existido. Em muitos momentos, isso
apresentava contradições e rupturas, em outros, refundar conceitos importantes,
como, por exemplo, a noção de fala egocêntrica herdada de Piaget. Mas, para tecer
meus argumentos neste momento, trarei esse autor da Teoria Histórico-Cultural para
o diálogo, sem, com isso, desconsiderar que muitas outras pessoas se dedicaram aos
temas que estarão aqui presentes.
71 Em suas palavras: “Na verdade, a imaginação, base de toda atividade criadora,

manifesta-se em dúvida em todos os campos da vida cultural, tornando-se igualmente


possível a criação artística, científica e técnica. Nesse sentido, necessariamente, tudo
o que nos cerca e foi feito pelas mãos do homem, todo o mundo da cultura,
diferentemente do mundo da natureza, tudo isso é produto da imaginação e da
criação humana que nela se baseia” (ibidem).
72 Por isso, vou assumir alguns pontos que são para mim centrais e que se fazem em diferença

desse autor e, também, em relação a muitos outros e que, como bem apontou Kravtsov
(2014), tornam impossível buscar aproximações, já que, na sua origem, seus princípios
epistemológicos e ontológicos são bem diversificados. São rupturas profundas que refundam
todas as perspectivas e trazem muitas outras implicações.

141
E, adiante, a partir dessa alegação, ele vai tentar descrever: como
ocorre essa atividade criadora? Ele reconhece que, no ser humano, o
“[...] cérebro não é apenas o órgão que conserva e reproduz nossa
experiência anterior, mas também o combina e reelabora, de forma
criadora, elementos da experiência anterior, erigindo novas situações
e novos comportamentos.” (idem, p. 15). Estão aí a atitude e a
atividade criadora da imaginação e da criação.
O interessante dessa afirmação é como ele irá destacar que esses
elementos tomados de empréstimos, ou doados, herdados do mundo
que existe, não são marcados apenas pelo estar físico e sensorial, como é
comum pensarmos nas perspectivas da experiência. Isso porque as
palavras ditas por outras pessoas, as narrativas de coisas e lugares
também são bases desses elementos criadores. Essa é, inclusive, para ele,
a grande capacidade humana, que se recria, ao se liar com esses
elementos do mundo (sejam humanos ou não humanos).
Há um outro ponto a ser considerado. Isso não está fora das
emoções, visto que elas também se envolvem de forma intensa com a
atitude de criação e imaginação. É o ato inseparável do intelecto. A
forja do signo. O medo, a insegurança, o prazer, a felicidade e muitas
outras emoções não estão abandonadas da imaginação. São as
sementes que germinam em nossas barrigas e que nos colocam no
mundo e em nós.
Apesar de não ser um elemento abordado por Vigtoski, mas que
nossas pesquisas têm apontado e que é preciso registar, todas essas
relações são qualitativamente diferentes e suas variadas vivências
permitem as muitas ressignificações da própria imaginação, da própria
unidade afeto-intelecto.
Essa condição de imaginação e criação, como uma das marcas do
humano, para ele, “manifesta-se com toda a sua força já na mais tenra
infância” (idem, p. 18). Isso fica explícito, sobretudo, no ato de brincar,
que sempre é marcado por suas renovações73.
Assim, temos mais um importante conceito a vir compor o
repertório de contribuições desse autor, ao conceito de vivência,

73 Voltemos às palavras de Vigotski (idem, p. 18): “As brincadeiras infantis, frequentemente,

são apenas um eco do que a criança viu dos adultos, no entanto, esses elementos da
experiência anterior nunca se reproduzem, na brincadeira, exatamente como ocorrem na
realidade. A brincadeira da criança não é uma simples recordação do que vivenciou, mas
uma reelaboração critativa de impressões vivenciadas”.

142
junta-se o de reelaboração criativa, criadora como forma de produzir
o novo e refundar constantemente a história humana. E, ao se
perguntar quais os processos que gerariam o desenvolvimento dessa
condição tipicamente humanas, aponta a atividade brincante como
uma das potências. Por conta disso, já que estamos em caminhadas
conjuntas, voltemos aos aviões.
Naquele terreno baldio, havia um grupo de crianças. Os restos de
uma demolição foram unidos e ordenados em formas que remetiam a
dois aviões. Os movimentos permitiram cada criança ocupar seu lugar
no voo que se iniciaria em pouco tempo. Tudo se juntava, madeiras,
corpos, palavras, o espaço, o tempo! O enredo brincante se inicia.
Vasconcelos (2016) sempre afirmou que uma das características
centrais do brincar é a sua condição efêmera, ela simplesmente
começa e acaba sem predeterminações, esse é um de seus mais
fantásticos encantos! Assim como o rumo em que ela vai tomando, não
há a dureza do planejamento prévio, de regras que devem ser seguidas
e não podem ser burladas.
O brincar é a vida em processo. A vida dos que estão, a vida de
outros. Os tempos dos que estão, os tempos de outros. Os espaços de
quem estão, os espaços dos outros. Aí há uma conjunção paisagística
(com todos seus elementos). Na vivência espacial, espaços e tempos
se unem no presente momento, que deixa de ser fugas para se esticar.
Isso não significa, porém, um descolamento total do mundo, vez
que há muitos fios que se prendem. Isso porque, mesmo a brincadeira
sendo aparentemente livre de regras, elas se fazem em seus
processos, elas se amalgamam com as escalas sociais, pois há alguns
princípios presentes.
Por isso falei em enredo brincante. Se essa palavra, atualmente,
está muito marcada pela ideia das sucessões que marcam as ações de
obras estéticas (início, meio e fim), aqui, ela está marcada pela sua
condição de enredar-se, um efeito que é um feito, em que as relações
intensas de intimidade entre as coisas, as pessoas, os animais, os
espaços e tempos, naquele momento e local, estão em liares! A batalha
que vai se intensificando à medida que o voo avança, que bombas
começam a eclodir perto dos aviões. Uma garrafa quebra. O voo
brincante toma outros rumos.
Em seu texto que trata dessa temática, Vigotski (2008) irá trazer
importantes considerações como esse ato vai se constituindo como

143
atitude e cria uma das maiores forças do ser humano, que é a sua
capacidade de se libertar das relações sensoriais imediatas que atam o
corpo e a vida em único tempo e espaço. As brincadeiras permitem
estabelecer outras relações que vão além do momento existido, são
potência para além.
E como isso aconteceria?
Vigotski (2008) aponta que uma das gêneses do brincar pode ser
encontrada no desejo de algo a ser feito, nos indícios de uma
consciência de si no mundo e do mundo. Embora, muitas vezes, essa
concepção seja interpretada em uma perspectiva da falta, para mim, é
exatamente o contrário, é a presença, a presença da condição volitiva
que envolve qualquer desejo e, claro, como ele mesmo aponta,
presente [n]“a esfera afetiva” (VIGOTSKI, 2008, p. 25).
A criança tem o desejo do inacabamento. O brincar é desejo, é
atitude! É, assim que, depois da longa viagem, as quatro meninas
chegaram à praia e encontraram o sol quente e o vendedor de água de
coco que também estava por ali74.
Vigotski (idem) evidencia que há uma mudança qualitativa
significativa e diferenciada entre os primeiros anos de vida e os desejos
que nele ocorrem, que geralmente são realizados no imediato; para a
criança mais velha, o desejo pode ser adiado, pode ser deslocado para
o além. Todo desejo sempre envolve o querer ir além de si, de sua
corporeidade (entendida como totalidade afeto-intelecto-biológico),
ao mesmo tempo em que nos envolve (enraíza) nos entornos do
mundo (sejam eles quais forem).
Nesse sentido, a brincadeira na “pré-escola”, como ele nomeia,
não apenas é criada pelo desejo, mas reconfigura o próprio desejo,
diferenciando-o de outros momentos da infância, pois esse passa a ter
a possibilidade do alargamento, inclusive da generalização dos afetos,
o que antes acontecia de forma mais pontual. Essa generalização, que

74 Ele nos diz: “Na idade pré-escolar, surgem necessidades específicas, impulsos
específicos que são muito importantes para o desenvolvimento da criança e que
conduzem diretamente à brincadeira. Isso ocorre porque, na criança dessa idade,
emerge uma série de tendências irrealizáveis, de desejos não-realizáveis
imediatamente. Na primeira infância, a criança manifesta a tendência para a resolução
e a satisfação imediata de seus desejos. O adiamento da realização de seus desejos é
difícil para a criança pequena, pode ser possível somente em limites bem estreitos; não
se conhece uma criança de até três anos que tenha um desejo de fazer algo depois de
alguns dias.” (Idem, p. 25)

144
agora passa a ocupar o campo semântico, permite se libertar do
campo visual e físico imediato que liga a corporeidade da criança75.
Na primeira infância, essas amarras situacionais são muito
determinadas pelos elementos da paisagem (fortemente os objetos).
Lembremos que o próprio Vigotski (2006) irá apontar que a principal
atividade-guia desse momento são as forças sociais que os objetos
apresentam como artefatos da cultura, porque, para ele, a consciência
na primeira infância é marcada pela união entre a percepção e o afeto.
Isso significa dizer que a percepção envolve os afetos e as próprias
relações motoras, gestando uma corporeidade no mundo, onde esses
liames (que se impulsiona pela percepção) criam a atividade, atando-a
ao meio em que se encontra. Seus desejos se direcionam para esse meio.
Vai ser a brincadeira que permite alterar essa relação da
percepção, afeto e ação corporal. Outras relações começam a se
desenhar na corporeidade com a paisagem e seus elementos, pois,
nesse momento, um elemento importante entra nesse processo: o
significado que envolve a situação.
Na primeira infância, essa divergência entre o significado da
situação e o seu campo visual parece ser impossível de ocorrer.
Inclusive, as palavras ditas se unem de forma íntima aos objetos e seus
significados. A interespacialidade apontada anteriormente, onde as
narrativas também se fazem, sempre estão presentes, mesmo que
mudem qualitativamente suas propriedades nesse liar.
Uma das primeiras propriedades das palavras e suas relações
espaciais está não apenas em nomear os objetos, mas também nessa
relação interespacial de criar orientação, localização e, claro, evidenciar
para as crianças a função cultural de cada um desses materiais como
artefato da cultura. Ele usa, como exemplo, a palavra “relógio” que, ao
ser dita, desperta o interesse de localizar tal objeto no espaço76.

75 Voltemos às suas palavras: “Penso que a brincadeira com situação imaginária é algo
essencialmente novo, impossível para a criança até os três anos; é um novo tipo de
comportamento, cuja essência encontra-se no fato de que a atividade, na situação
imaginária, liberta a criança das amarras situacionais.”(idem, p. 29)
76 Não é difícil compreender isso, levando-se em conta o processo de desenvolvimento

da fala da criança. O adulto diz à criança: "relógio". Ela começa a procurar e encontra-
o, ou seja, a primeira função da palavra diz respeito à orientação no espaço, à distinção
de lugares separados no espaço; a palavra, inicialmente, significa um lugar conhecido
na situação. (Idem, p. 30)

145
Se, até este momento, o campo semântico e o ótico estão
intimamente ligados nos bebês e nas crianças pequenas, a atividade
do brincar irá permitir essa gradativa separação, pois “a ideia separa-
se do objeto e a ação desencadeia-se da ideia e não do objeto”
(ibidem). Veja que se trata de uma mudança qualitativa de grande
importância e que começa a criar novas relações de existir no mundo
e nas relações interespaciais. Se, antes, a força determinadora do
social de cada objeto gerava uma ação brincante, uma criança pequena
pega uma vassoura (mesmo que seja de brinquedo) e brinca de varrer,
por exemplo, ou uma outra pega uma bola e a faz rolar (às vezes
infinitamente). Nesse momento em que essa divergência de semântica
se altera, a vassoura pode virar um cavalo a ser montado e galopado.
O significado da palavra passa a ter outras relações com o nomeado. A
vassoura é vassoura, mas sua semântica pode agora começar a se
separar do existido em sua funcionalidade social.
Vigotski irá apontar que essa separação, além de gradativa, não é
também uma tarefa tão fácil. Por isso, a brincadeira é fundamental
nesse processo, pois ela gera essas possibilidades. O autor irá dizer que
a criança não consegue fazer essa separação de forma imediata e rápida,
ela ainda precisa de um “pivô” (termo usado por ele) que leve a isso. O
pivô seriam esses objetos que servem de apoio para essa
transformação. Nesse sentido, assim que o cabo de vassoura se torna
um pivô, irá permitir (ao ser usado como cavalo) que o sentido se altere.
Nas relações interespaciais, outras semânticas passam a circular,
mesmo que elas ainda se apoiem em semânticas anteriores. É assim que
o novo vai sendo reelaborado e criado e, sobretudo, isso permite a
transformação do liar, pois transforma também o campo da percepção.
Se, na primeira infância, a peculiaridade da percepção está
intimamente relacionada com os elementos do dito “real” e do social
nos objetos, nas coisas e nas palavras, forja-se um mundo com
“significado e sentido” (idem, p. 31), onde o sentido faz parte direta do
objeto, unindo-se à sua percepção. Tudo criado pela palavra dita. Não
há uma separação. Essa é a generalização que marcaria esse momento.
Vigotski possui um exemplo clássico para designar essa condição, ao
olhar um relógio, que é visto nessa condição e não em um amontoado
de peças que o formam.
Serão esses pivôs que permitem fazer a inversão levando a perda
da força social do objeto e de sua nomeação, para o sentido emergir

146
em primeiro plano. Mas há uma outra qualidade desse pivô. Ele deve,
pelo menos inicialmente, permitir que a ação se ligue ao sentido novo
a ser criado. O próprio autor irá apontar que um cabo de vassoura
permite esse encontro, mas o mesmo não poderia ocorrer, por
exemplo, com um cartão postal ou um palito de fósforo. Há aqui uma
diferença entre esse simbolismo de pegar um fósforo e apresentar
como signo de um cavalo, mesmo reconhecendo que todo símbolo é
também um signo. Nesse momento, fósforo não tem o signo de cavalo
para a criança. A generalização “cavalo” não pode ser transmitida para
esse objeto, que mantém sua generalização anterior, pois as
características dos objetos na brincadeira se conversavam, para
permitir a mudança do significado, mas esse ainda é “inseparável da
ação com o objeto real” (idem, p. 31). Por isso, a palavra pivô tem um
importante sentido. Para ele, “o significado da palavra, o significado
do objeto, é dominante e determina seu comportamento. (ibidem).
Assim, inicia-se uma possível libertação do objeto pelo significado que
ainda é inseparável da ação possível sobre ele.
Essa cisão, esse estar em relação diferenciada entre significado
com os objetos, que são mais soltos de amarras sociais e os
significados das ações que ainda permanecem mais determinados, são
importantes, pois é o caráter transitório da brincadeira que irá permitir
a liberdade humana e o desenvolvimento da imaginação e criação, ou
seja, outras generalizações possíveis. É no brincar que a [...] criança
opera com objetos como sendo coisas que possuem sentido, opera
com os significados das palavras, que substituem os objetos; por isso,
na brincadeira, ocorre a emancipação das palavras em relação aos
objetos. (ibidem)
Nesse processo, novamente o pivô parece ser fundamental, pois
coloca em convergência objetos que permitem que seus significados
se descolem do real. Os objetos se encontram em campos semânticos
que podem ser deslocados entre si. Dessa forma, é como se o cavalo
real atribuído ao cabo de vassoura estivesse por lá, pois “ela vê o
objeto por detrás da palavra” (idem, p. 32). Essa condição também
ocorre com a ação que também vai sendo alterada com outra ação cujo
sentido fica mais envolvido.
Assim, aviões voam em terrenos baldios, bombas explodem,
pousos acontecem!

147
A atividade brincante, como se percebe, tem grande impactos nas
transformações humanas e na totalidade o existir, em se relacionar
consigo mesmo e com o mundo. É a gênese da liberdade que nos torna
mais humanos, de sermos capazes de nos demover, de nós e de nossos
entornos. Há muitas possibilidades de aprisionamentos no ser humano,
mas as minhas possibilidades de fabular no mundo são imprisionáveis.
Toma-se consciência da palavra e das liberdades que dela podem advir.
Objeto e palavra se unem, não mais em condição de aprisionar a
percepção e a ação, mas em atitude criadora, pois ambos estão livres. São
“Os” com asas. Os afetos se forjam em diferenças e possibilidades.
Na Topogênese, a brincadeira é um ato e uma atitude
fundamental. A emergência de uma vivência espacial se faz no evento
do brincar. As crianças exercem sua condição inaugural em relação aos
topos. O terreno baldio já não existe mais, existe um céu infinito, uma
visão aérea que sobrevoa a superfície terrestre e se revela em palavras:
“Cuidado com aqueles morros”, uma criança apontava para baixo;
“Olha que rio grande e perigoso”, outro comentário e mais um gesto
com as mãos. O gesto não é um ato mecânico, por isso ele tem uma
grande importância na Teoria Histórico-Cultural. Ele circunstancia, no
enredo brincante, o que se deseja ser, o existido. É relação pura. Na
vivência espacial, o concreto se faz da imaginação, vai se tornando
forma e passa a compor uma espacialidade nova. Um outro mundo é
forjado. Não é mera reconfiguração do espaço, é feito inaugural.
Cerimônia de conceber. No brincar, as crianças criam sítios geográficos
inexistidos. São capazes não só de falar sobre, de olhar para eles de
várias posições, são capazes de fazer cartografias e elaborar mapas,
em tampas de panelas, em riscos no chão, quando os aviões pousam.
Por isso, repitamos as palavras de Vigotski: “[...] a imaginação, base de
toda atividade criadora[...]” (obra citada).
Na descrição que faz parte do início desta seção, conseguimos
pousar sãos e salvos. Como não estávamos mais no terreno baldio,
mas em um espaço completamente desconhecido, estávamos
perdidos. A nossa paraquedista pegou uma pedra pontiaguda e
desenhou no chão um mapa para onde deveríamos ir. Era só seguir o
curso do rio, estávamos salvos pela segunda vez. Situa-se aí a
liberdade, que é consciência, que a imaginação nos leva, que a
brincadeira cria. Por isso, é atividade-guia no desenvolvimento
humano. É a base da humanidade e de cada um de nós em relação. E a

148
vivência espacial nessa mirada é [U]topia. Erámos todas crianças de em
torno de 7 anos de idade e descolonizávamos o mundo.
É assim que se faz o ato criador, seja em que escala for, pois “a
criação, na verdade, não existe apenas quando se criam grandes obras
históricas, mas por toda parte em que o homem imagina, combina,
modifica algo novo, mesmo que esse novo se pareça a um
grãozinho[...]” (VIGOTSKI, idem, p. 17)77. Encontramos Docha, mesmo
sem ver os dinossauros que aí vivem, eles agora não estão em nossa
frente, mas sim no lugar em que escolheram para viver.
Lembranças! Memórias. As marcas de espaços e tempos
ocupados em qualquer passado se renovam constantemente em nós
mesmos e nas relações que estabelecemos com o outro. São
evocações de outros tempos que se tornam presentes no
contemporâneo do humano e, com suas forças, interpelam o futuro a
ser construído e elaborado. Por isso, toda memória é força bruta da
criação e não ecos desfigurados de uma recordação, de um saudoso
tempo que se foi, é matiz e pujança criadora de cultura. Impulso e
vivência no terreno baldio.
Junta-se, portanto, à noção de imaginação como base da
Topogênese e da vivência espacial, a noção de interespacialidade e o
brincar. Atitudes liantes. Não como entres, como pontos isolados que
se unem, mas como unidade, como o inexistido que se configura
material e simbolicamente como liberdade78. São as metamorfoses do
viver, que vão transformando os terrenos que nos fazem estar na
unidade da vida completamente esparramada no espaço.

77 Ele ainda nos diz: “Se levarmos em conta a presença da imaginação coletiva, que une

todos esses grãozinhos não raros insignificantes da criação individual, veremos que
grande parte de tudo o que foi criado pela humanidade pertence exatamente ao
trabalho criador anônimo e coletivo de inventores desconhecidos” (Ibidem, p. 16).
78 Segundo Vigotski (1998, p. 130), “as possibilidades de agir com liberdade que surgem

na consciência do homem, estão intimamente ligadas a imaginação, ou seja, à tão


peculiar disposição da consciência para com a realidade, que surge graças a atividade
de imaginação”.

149
150
Excerto
Ocupa-se de não
esquecer

“Sêres anfíbios - habitantes da terra e da água, meio homens e meio


bichos. Alimentados na infância com caldo de caranguejo: este leite de
lama. Sêres humanos que se faziam assim irmãos de leite de caranguejos.
Que aprendiam a engatinhar e a anda com os caranguejos da lama e que
depois de terem bebido n infância este leite de lama, de se terem
enlambuzado com o caldo grosso da lama dos mangues e de se terem
impregnado do se cheiro de terra podre e de maresia, nunca mais se
podiam libertar desta crosta de lama que os tornava tão parecidos com
os caranguejos, seus irmãos, com as suas duras carapaças também
enlambuzadas de lama.” (JOSUÉ DE CASTRO, 1967, p. 12-3)

151
152
Livro 09

Ocupa-se de Justiça Existencial e


Amorosidade Espacial

Metamorfosear....

Anteriormente conhecemos João. Um grumete presente nas


embarcações portuguesas que aportaram no que seria, mais tarde, o
território brasileiro. Sabemos que foram muitas crianças que vieram
nessa condição, havendo, inclusive, uma menção a elas na Carta de
Caminha escrita em 1500 ao Rei de Portugal, na época D. Manuel I. Essa
menção faz referência a dois grumetes que teriam fugido da nau e nos
leva a pensar o que teria feito duas crianças ficarem em terras
completamente desconhecidas79.
O que aconteceu com elas jamais saberemos, deixaram-se em um
território, que talvez tenham visto pela primeira vez, um local
incógnito, mas que, talvez, a [U]topia desse espaço poderia significar
uma vida melhor do que a das embarcações. Há muitas pessoas ainda
hoje nessa condição.
Vamos, agora, à vida de outra criança, também chamada de João.
Se o João citado anteriormente tinha como sobrenome seu oficio
“grumete”, esse outro, que tem um possível sobrenome, é João Paulo.
João Paulo vive no Brasil, agora também já com o nome de Brasil,
com suas fronteiras estabelecidas e como um território autônomo e
oficialmente independente. Vive na região do nordeste, em uma
cidade “dos rios, das pontes e das antigas residências palacianas é
também a cidade dos mocambos: das choças, dos casebres de barro
batido a sopapo, cobertas de capim, de palha de coqueiro e de fôlhas
de Flandres” (CASTRO, 1967, p. 27). É uma criança que faz parte de

79 “Creo Senhor que com estes dous degradados que aquy ficam. ficam mais dous
grumetes que esta noute se sairam desta naao no esqujfe em terra fogidos, os quaaes nõ
vierã majs e creemos que ficaram aquy por que demanhaã prazendo adeus fazemos daquy
nosa partida.” A Carta de Pero Vaz de Caminha. MINISTÉRIO DA CULTURA. Fundação
Biblioteca Nacional. Departamento Nacional do Livro. Disponível em: http://objdigital.bn.
br/Acervo_Digital/livros_eletronicos/carta.pdf Acesso em: 10 jan. 2021

153
uma comunidade que tem no seu corpo a paisagem do mangue. Os
mangues do rio Capibaribe. Pessoas cuja pele tem cor de mangue, tem
cheiro de mangue. É um corpo mangue. Ali, crianças brincam de
afundar suas mãos no solo lamacento, sabem da vida dos caranguejos
que também são suas vidas. Passam o dia ali, junto com outras
pessoas, outras crianças, até as bem pequenas, que aprendem a
engatinhar no solo que as abriga. São seres anfíbios.
João habita esse lugar, é uma das crianças que vai se
metamorfoseando na crosta dura desses seres vivos, que lhes dão a
carne, o leite e os caldos de seu existir. Chega a questionar ao pai, com
a boca cheia de carne branca desse ser da lama: “- [...] por que a gente
veio morar aqui no mangue” (idem, p. 32) A resposta veio, o senhor Zé
Luiz responde: “-Foi o destino, João Paulo, que nos trouxe aqui”. E sua
mãe complementa: “- Lá, do outro lado, é o paraíso dos ricos, aqui é o
paraíso dos pobres” (ibidem). O “aqui” é a Aldeia Teimosa, paraíso dos
caranguejos e das pessoas, um espaço erguido na luta contra o poder
oficial que não os desejava ali, mas, mesmo assim, foram a cada tempo
recolhidos de suas vidas, erguendo aquela geografia, que iriam ser
suas existências na forma de viver.
O trabalho de João Paulo envolvia também entregar os caranguejos
ao pároco da cidade, um padre da localidade, cuja cozinheira, Ana, os
preparava. Além disso, era um fazedor de tempestades usando sons de
bombos e águas derramadas, nos leitos dos rios que habitavam os
guaiamus, cuja condição atmosférica, agora fabricada pelas mãos daquela
criança, fazia-os sair de seus esconderijos, podendo ser coletados. Os
guaiamus, diferentes dos outros caranguejos, não vivem no mangue, têm
carapaças azuis e brilhantes, como as porcelanas chinesas da casa
paroquial. Era a carne predileta do padre Aristides. Por isso João Paulo os
caçava fabricando atmosfera.
A localidade tinha um nome que parecia fazer jus ao seu achar-se,
era conhecida por Alagados! A vida de João Paulo não surgiu nela, mas
em outro sítio nordestino, cuja seca levou seu pai, Zé Luiz, a sair com
sua família, após um filho morto pela fome e sede, a buscar a vida em
outro território! Muitos migram para achar a vida, como era o caso dele
e de muitas outras pessoas que se colocaram em caminhadas. Na
busca da vida, é comum a esses indesejados e negados encontrar a
morte. No caso de Zé Luiz e sua família, foi esse lugar que fez
possibilidade do viver. A geografia tem a dureza de ceifar e de brotar.

154
Nesse lugar, ergueu, com outras pessoas, sua moradia. João Paulo foi
crescendo e conheceu muitas pessoas, viveu intensamente a
paisagem, fez-se em relações, mas foi aí, também, que teve seu corpo
definitivamente enterrado.
Houve no país uma Revolução. Uma luta que emergiu nesse período
e que se estendeu no território pernambucano, chegando, inclusive, a
essa a região. E a revolta encontrou João Paulo. Desaparecido, assim
como muitos outros mortos por balas que varavam o local e eclodiam em
sons que pareciam trovões que lembravam as tempestades atmosféricas
e as que ele fazia em busca dos caranguejos azuis, seu corpo encontrou
definitivamente a paisagem que fez sua vida. Ninguém nunca mais o
encontrou. O destino e os caprichos daquela geografia pareciam desejar
João Paulo, eternamente, apenas para si. Era a fome da paisagem pelos
corpos? Pelo corpo de João Paulo “[...] que, com sua carne em
decomposição, irá alimentar a lama que alimenta o Ciclo dos
Caranguejos”. (Idem, p. 177).
O corpo de João Grumete está enterrado na história, o corpo de
João Paulo, na geografia do mangue. Alimentam outros círculos, essa
forma simbólica cujas curvaturas se refazem em diferentes histórias e
geografias do viver e do existir.
Na Topogênese que forja a vivência espacial, o corpo em sua
totalidade também é formado. O existir se faz na integralidade. Não há
cisões. Elas são meras aparências que enganam nossos olhos e
percepções e que criam recortes das coisas e dos seres, saltam como
se fossem se libertar do espaço e tempo, mas nem todos os fios que
os liam e enredam se rompem. Na condição social que abriga a
interespecialidade do ser humano, nada escapa a ela, não em
agressivas amarras deterministas, mas forças que se colidem e se
refazem constantemente.
Josué de Castro viria chamar João Pedro de uma criança
caranguejo. Na verdade, ele usou esse termo para as pessoas que
viviam nessa aldeia que teimava estar na superfície terrestre. Tomei a
liberdade de, a partir de suas narrativas, trazer as minhas. Esse autor
veio mostrar a fome como uma das situações que envolve o ser
humano nesse território chamado Brasil, mas também em muitas
partes desse planeta. Dedicou a vida para escancarar para o mundo
uma das piores mazelas criadas por essa sociedade. Dedicou-se a
pensar formas de erradicá-la. Infelizmente, seus desejos e ideais ainda

155
não foram atingidos e, hoje, sabemos que até se intensificaram. Josué,
deveríamos ter aprendido mais com suas palavras.
Conheci o mangue pela primeira vez pelo cheiro. Nas idas entre
os estados de Minas Gerais e Rio de Janeiro, a descida da grande serra
não apenas criava um desconforto no ouvido, uma sensação de
tamponamento: “- É a pressão”, dizia meu pai: “Tem que engolir cuspe
com a boca aberta que melhora”, completava. Era um movimento
difícil, tentávamos, mas parecia impossível. Era mais fácil engasgar do
que romper a pressão nos tímpanos. Era mais fácil suportar o enjoo
trazido pelas curvas. Minha irmã reclamava delas: “por que as curvas
não vivem de outra forma, nasceram para causar desconforto e ânsias?
”. Eu já tinha outra relação com elas, gostava dessa tortuosidade
porque sempre escondia algo que viria depois delas, tortuosidades são
misteriosas. Depois desse desconforto e das curvas, a planura vinha
com um cheiro diferente, na grande e longa baixada pela qual nos
deslocávamos, encontrávamos um odor que era prenúncio de outra
paisagem. Novamente meu pai intervinha: “É cheiro do mangue”.
Olhávamos pelas janelas do veículo que nos levava e víamos as lamas,
as árvores e suas raízes que as equilibravam. Eram sempre muitas.
Sempre dizíamos como pareciam garras se segurando no solo mole.
Mas era o cheiro que primeiro nos dizia que ali havia um outro
horizonte. Mas nunca vi, ali, as pessoas mergulhadas, mulheres,
crianças ou bebês, como nos contou Josué de Castro. Creio que
existiam, pois era comum ver, nas beiras da estrada, pessoas
vendendo os caranguejos que ficavam dependurados em estruturas
de pau e os mantinham, aos montes, suspensos no ar. Uma imagem de
que não se esquece.
Como alguém que nasceu em uma terra sem mangues e cuja
questão alimentar possuía uma forte presença no viver de seus
moradores, meu contato com a fome ocorreu de outras formas e não
pelos caranguejos. Confesso que não me lembro de ter passado fome
em minha infância, não por falta de comidas. Nas casas mineiras, havia
criações e plantações nos quintais que permitiam o alimento presente
diariamente e no decorrer de todas as estações do ano. Além disso, a
preocupação em ter comida durante os diferentes ciclos da natureza era
uma constante, tudo era aproveitado e transformado. As carnes dos
animais eram mantidas por meses em latas com banha, o queijo curado
também se mantinha por muitos dias, os doces das épocas eram

156
endurecidos com açúcar e viravam blocos quadrados que aumentavam
sua durabilidade, as frutas também eram cozidas com água e açúcar e
guardadas em potes que as prolongavam, assim como outras coisas,
brotos de bambu no vinagre, pimenta na cachaça, linguiças desidratadas
e penduradas nos fogões de lenha. Os biscoitos, roscas e broas faziam
parte de algumas refeições, nas quais o pão, feito tradicionalmente de
trigo, era praticamente ausente. Minha avó sempre dizia que a comida
de mineiro era feita de aproveitamentos e sobras: a gente coloca farinha
no feijão batido para engrossar e render mais, assim que se faz um bom
tutu. No feijão tropeiro, vão retalhos de couve, de carnes e de tudo que
não foi consumido. São sobras renovadas e renomeadas. Na galinha
com quiabo, é bom colocar as partes que têm pouca carne e mais ossos
da ave, porque o sabor fica melhor.
A palavra frango não existia em seu vocabulário. Era galinha ou
“ciscante”: “Amanhã vamos fazer um ciscante para comer”. A galinha
era um prato de alguns domingos, morta nos quintais. E, sem nenhum
dó, uma das que vivia no terreiro era escolhida, após, o pescoço
depenado, a faca afiada fazia seu trabalho. Só as crianças corajosas
assistiam. Eu não era uma delas, minha avó falava que “ter pena” fazia
a morte demorar a chegar. Como eu não queria aumentar o sofrimento
do animal, nunca estava no local do sacrifício. Era assim com todos os
animais abatidos: só voltávamos para o local depois do serviço feito,
pois todas as crianças se envolviam na feitura que se seguia àquele
ato. E assim a gente ia se alimentando. Entre dós e risos, íamos
fabrincando chouriços, enchendo linguiças, limpando as tripas com
limão e fubá, retirando areia do fígado das ciscantes, comendo fiapos
de carnes e torresmos que iam sendo preparados para serem
armazenados. Era sempre um fazer coletivo, que durava o dia todo e,
às vezes, mais de um dia, dependendo do animal abatido ou do que
estava sendo feito. Mas era um encontro intenso, um fazer cheio de
brincadeira e histórias. No final, havia a partilha. Todos levavam para
casa uma parte do preparado.
Havia, sim, o desejo de comer algo a que não tínhamos acesso,
quer por questões financeiras ou por não estar disponível. Além disso,
existia uma rede alimentar que estava sempre além de nossas casas,
complementavam nossas alimentações, comer em outras residências
era algo comum.

157
Aos adoecidos e que às vezes estavam solitários, minha avó e
outras pessoas da localidade nos faziam levar pratos prontos para o
almoço e jantar. Eu mesmo já fui um desses entregadores, fiz isso
várias vezes. Um dos moradores do beco, que não andava bem das
pernas, tinha que ficar de repouso. Minha avó enchia o prato, cobria
com outro e amarrava com um pano de prato, dando um nó em cima.
Sempre recomendava o cuidado para não misturar as comidas, já que
eram levadas nas mãos, equilibrando-se. Esse movimento era no
almoço e no jantar, quando os pratos eram trocados.
Em minha infância, muitos alimentos ainda assumiam a qualidade
de brinquedos, eram comidas para outros acontecidos de vida: espigas
de milho viravam bonecos, palhas bases para petecas, chuchus bois
para nossos sítios.
Isso não significa que não conheci a fome. Nessa localidade, sabia
que havia pessoas que precisavam dos alimentos doados por outros e
nem estavam doentes como o morador do beco. Tinha doença do
capital, que ceifava seu corpo. Algo que eu não entendia e desconhecia
como se fabricava gente nessa condição. Elas também estavam
vivendo por ali.
Foram as palavras daqueles que as viveram e a própria literatura
que foram constituindo para mim essa existência, revelando-me como
uma das grandes crueldades humanas. Mais tarde, quando voltei a
olhar para essas localidades mineiras, marcadas pelo imaginário da
farta comida boa, o fosso daqueles que não viviam essa mineiridade,
mesmo nascidos nesse território, me abateu. Eram diferentes dos
seres anfíbios de Josué de Castro, tinham para mim outros nomes, que
deixavam claro que ser desterritorializado não é apenas a perda pela
saída do território a que se pertence, mas também a perda, não da
identidade, essa palavra enganadora e perigosa que às vezes é tão
desejada e usada, mas falo da perda da alteridade, da palavra criada
pelo outro, das relações que criam esses sabores, esses cheiros, os
aromas, as memórias do viver.
Se ser mineiro era sinônimo de comida farta e boa, por que havia
mineiros desterritorializados desse vocábulo? Ficava explícito para
mim não ser possível falar em território, sem falar em relações de
alteridade, onde a metáfora da identidade transita de acordos com os
interesses que essas relações se forjam. Aprendi e convivi, não com os
mudantes, mas com os desterritorializados das palavras.

158
Ao território usado de Santos (1999) que nos comenta ser o “chão
mais a identidade”80, há de se associar o “chão mais a alteridade”. Para
a vida humana, cuja a geografia não cabe e não encerra em si, a
subjetividade é uma ilusão, se perdida fora de sua contiguidade. Nem
sempre devemos procurar as palavras nos livros, mas nessa vida usada,
isso se aprende com as crianças. Escolho a contiguidade e a alteridade
como escopo de ser e estar com e no mundo.
As linhas abissais de que falam Boaventura Santos (2007) não
estão somente nos espaços de grande escala, separando pontos
cardeais e localizações, mas também nas escalas da vida cotidiana e no
estado de ser paisagem que a palavra cria. Conheci mineiros sem
mineiridade. Mineiros com fome de ser mineiro, criado pela fome que
lhe abatiam.
Assumir as relações espaciais como interespaciais é evocar,
também, que as relações com os espaços são sempre mediadas
axiologicamente, sempre marcadas pela alteridade em que diferentes
alocações de vida se colocam em muitas fronteiras, inclusive nas
expressões que emanam do espaço geográfico, como as noções de
paisagens, de territórios e lugares, entre outros.
Como todas essas expressões são forjadas no encontro entre o
plano social e pessoal e ao serem incorporadas criam as peculiaridades
que formam cada um de nós (que marcam também a unidade do
humano), há um deslocamento da clássica perspectiva de identidade
para a alteridade.
A própria concepção de identidade, um signo, semioticamente
presente nas linguagens espaciais, como no conceito de território, por
exemplo, que tradicionalmente a evocou, se altera, ao pensarmos na
condição interespacial do humano.
As relações interespaciais não se fazem de forma verticalizada,
fincando pessoas (isoladas) no espaço físico, mas de formas
horizontalizadas, na arena discursiva que envolve os espaços e as
vivências que desse emergem. São as dimensões do espaço geográfico
assumido como interespacialidade. Esse estado em constante renovação.

80Eis sentença completa: O território não é apenas o conjunto dos sistemas naturais e
de sistemas de coisas superpostas. O território tem que ser entendido como o
território usado, não o território em si. O território usado é o chão mais a identidade.
(Santos, 1999, pg. 08).

159
Recordo-me de meus estudos sobre as crianças migrantes. Nas
buscas que envolvem qualquer pesquisa e que, inicialmente, são muito
ampliadas, vamos conversando com pessoas que cremos, naquele
momento, podem trazer alguma luz para nossa questão de partida. Em
uma dessas conversas, levantando as migrações internacionais que
fizeram parte do município onde a pesquisa acontecia, deparei-me
com a comunidade de origem alemã que existe nessa cidade e que é,
inclusive, responsável, por uma festa anual, que relembra as tradições
desse país. Nas conversas, memórias e narrativas de um país que ficou
no passado e que continua sendo revisitado pelos enunciados que os
habitantes desses bairros não deixam morrer, narram paisagens
congeladas em um espaçotempo, um cronotopo (BAKHITN, 2016) que
fixa esses fragmentos como no espelho de Cosme, um dos moradores
do manguezal na obra citada de Josué de Castro, que, por ter ficado
paralítico, olha a vida de seu mocambo pelo reflexo de um espelho.
Embora a temática da migração não seja a reflexão deste texto,
retomei esse tema, para mostrar como a dimensão da
interespecialidade não pode ser vista apenas em uma faceta, a saída
de um migrante de seu território. Os ditos processos de
desterritorialização não são apenas a perda de um território, mas,
sobretudo, a perda das relações enunciativas e das múltiplas
linguagens que forjam as relações interespaciais. São elas que são
carregadas e que se tornam cronotopos, os condensados (LOPES,
2019) em novas relações que serão construídas. Como fica o Ser
Terreno nessa condição?
Como disse, não aprendi apenas nos livros essa desumana forma
de relação e alteridade que é a fome, mas com muitas pessoas que a
viveram. Dona Regina, uma senhora que nos deixou em pleno solstício
de inverno do ano de 2020, com seus 80 anos de idade, foi uma delas.
Gostava de falar delicado, com leveza da brisa, mas sabia ser
tempestade também. Tinha habilidade com plantas, árvores e
guardava, na sua ancestralidade, como cada uma delas poderia nos
doar curas. Mas também dizia que aprendera a conhecer todas,
porque, para alguém que muitas vezes não tinha comida suficiente
disponível, saber quais plantas alimentam e quais envenenam e matam
era um conhecimento essencial. Talvez por isso ministrava como
ninguém os sabores e alimentar as pessoas era uma de suas missões.
Ela sempre dizia: “-Ninguém pode ficar sem comer, passar fome e

160
comer tem que ter sabor”. Comida deve ser sempre feita a mais, para
sobrar, pode sempre aparecer alguém a ser alimentado. Ensinou-nos a
fazer mandioca bem cozida, quase desmanchando, com açúcar. Era
um prato de matar a fome na infância, quando, muitas vezes, essa era
a única comida do dia. Mas, por trás de todos esses sabores que
fartavam nossos almoços, ela nunca esquecia a vida no interior desse
estado. Criada em fazendas e depois em casas de pessoas
desconhecidas, sempre estava na condição de ser uma “empregada
doméstica”, para usar suas palavras. No campo e mais tarde na cidade,
contava como eram as sobras que lhe permitiam alimentar-se e como
precisava criar estratégias para poder comer, quando a fome
aumentava ou o desejo de comer algo negado, mas existente em seu
espaço de trabalho, aparecia.
Josué, não conheci os homens anfíbios e seus corpos cobertos de
lama. Mas o que posso lhe afirmar é que, mesmo aqui, nesse outro
pedaço do Brasil, havia também pessoas passando fome. A esses seres
pernambucanos, somam-se os desterritorializados mineiros de sua
mineiridade. Pessoas descarnadas de seus territórios de palavras. Se,
nos mangues, as carnes brancas e seus sugos os alimentavam, aqui as
relações retiravam suas carnes, negociavam, pela fome, a força do
trabalho, paga pela perda de sons de estômagos vazios. Ao imaginário
que se faz desse estado, que é marcado pelo comer, há muitas relações
alteritárias, que criam diferentes feições dessa relação. Tudo isso é
Topogênese, é traço da interespacialidade. E, como você, fui
conhecendo uma das piores facetas que esse mundo produziu81 e que
nunca está sozinha.
Seus livros e, em especial, este a que aqui faço menção, foi uma
grande formação. Não há como esquecer. Assim como as palavras de

81 No prefácio do livro, Josué de Castro nos diz: “O tema deste livro é a história da
descoberta que da fome fiz nos meus anos de infância, nos alagados da cidade do
Recife, onde convivi com os afogados dêste mar de miséria. Procuro mostrar neste
livro de ficção que não foi na Sorbonne nem em qualquer outra universidade sábia que
travei conhecimento com fenômeno da fome. O fenômeno se revelou
expontâneamente a meus olhos nos mangues do Capibaribe, nos bairros miseráveis
da cidade do Recife: Afogados, Pina, Santo Amaro, Ilha do Leite. Esta é que foi a minha
Sorbonne: a lama dos mangues do Recife fervilhando de caranguejos e povoada de
sêres humanos feitos de carne de caranguejo, pensando e sentindo como
caranguejos”. (idem, p. 12)

161
Mateus, que me mostrou os mudantes, me fez olhar o fenômeno da fome
de outra posição espacial, compreendê-la em seus muitos aspectos.
Essa é a consciência e a liberdade que apontamos anteriormente
a partir de Vigotski, poder lidar com esse termo e reconhecer as
diferentes axiologias que o portam, poder ter escolhas autorais,
questionar a naturalização dos determinismos e inatismos sociais e
biológicos. Essa é a liberdade geográfica.
Meu movimento nesses interespaços me coloca em diferentes
alteridades naquilo que é historicamente construído. A construção
histórica de um evento se rompe nas possibilidades geográficas de estar
em posições diferenciadas no fluxo interespacial de meu viver no tempo.
E, se todo espaço é uma relação interespacial, o que nos resta
agora? A resposta é simples e já nos foi apresentada: a não indiferença.
O mapa de lata redondo retorna à minha mão e com ele miro as
praças no Brasil.
As praças sempre desempenharam um papel importante na
história da humanidade, são centros de convergências de pessoas, que
ali se posicionam e fazem suas pausas, para descanso, alimentação,
conversar, estar com outras pessoas. Para as crianças, são espaços de
movimentos ampliados, de brincadeiras. As praças expressam, de
forma explícita, a dimensão relacional que marca as
interespacialidades. Na minha infância, por exemplo, na comunidade
em que vivi, uma grande praça localizada em sua área central era um
espaço de convergência de muitas brincadeiras e muitos de nós,
crianças, nos encontrávamos unindo, inclusive nossas diferenças,
entre elas, as socioeconômicas.
Mas, para nós, que vivemos em países com grandes
desigualdades de renda entre seus habitantes, a praça também
desempenha uma outra função. É muitas vezes espaço de acolhida e
moradia de pessoas que não têm onde viver e que fazem desses locais
seus territórios de vida. Ali vivem suas rotinas, sobrevivem com seus
apetrechos, papelões, cobertores, panelas, roupas e muitas outros
objetos, constituindo suas geografias escaneladas da espacialidade
original e mantidas por desabridas fronteiras pela vida. E é sobre uma
dessas praças que gostaria de falar.
Discorro sobre uma praça localizada em uma cidade de,
aproximadamente, 600 mil habitantes, um espaço urbano situado em
uma região metropolitana brasileira, onde desenvolvia meu local de

162
trabalho. Diariamente, eu passava por ela para chegar ao meu lugar de
ofício. Foram anos fazendo esse movimento pendular. Nessa praça,
havia uma família e outras pessoas, entre elas, crianças. Entre elas, um
bebê. Eu nunca soube o nome desse bebê ou das outras crianças. Mas
os anos de trabalho nessa instituição me permitiram ver seu
crescimento. A praça era seu espaço de vida e de viver. Podia olhar
diariamente seu crescimento. Mesmo observando distante, o bebê ia
se tornando uma criança, ainda sem nome para mim. Chamava-o
apenas por criança: “lá está a criança”, “veja a criança”, “a criança está
crescendo”! Ali ela brincava com as outras, interpelava pessoas que
passava. Quando ficou maior, passou a transitar entre os carros que
paravam em um sinal de trânsito que existia logo em frente. A praça
era a paisagem, o território e lugar daquele bebê, que virou uma
criança, cujo nome eu nunca soube. Com o tempo, passou a ser
chamada por mim e outras pessoas de a “Criança da Praça”, era seu
nome próprio. O espaço adjetivava a vida.
Um dia, esse batismo se rompeu. Ao chegar para o trabalho e
olhar para aquele forma na paisagem, nenhuma daquelas pessoas
estava mais ali, não sabia o que acontecera, dizer para onde tinham
ido. Nenhum deles, nenhum de seus objetos. Tudo havia sumido.
Nunca mais os veria. A criança com nome amalgamado pela praça,
poderia ter qualquer outro nome agora. Talvez fosse também João,
como o João, o grumete ou João Paulo, a criança anfíbia, talvez João
Mudante! Aquelas pessoas poderiam ser uma família de mudantes,
desses andantes que vão em seus movimentos, fazendo suas pausas,
quando é possível.
São essas vidas narradas e olhadas em suas proximidades e
distâncias que registram as muitas infâncias que se presentificam
nesse espaço brasileiro e, quiçá, dos muitos continentes desse planeta.
Mesmo sem saber seus nomes, elas estão por aí, como os mudantes,
os grumetes, os seres anfíbios de carapaça endurecida pelo barro do
mangue. São crianças coincidentes!
E, nas coincidências dos nomes e desnomes, chegamos a um outro
Paulo e a alguns outros acasos. Falamos de Josué de Castro, esse autor
que tem em Recife sua cidade de origem e, em 05 de setembro de 1908,
veio à vida! Nessa mesma cidade nordestina, também nasceu Paulo Freire,
assim como Castro, no mesmo mês, mas no dia 19, era o ano de 1921.

163
Não conheci Josué de Castro pessoalmente, somente por seus
livros e obras. Paulo Freire tive a oportunidade de escutar sua voz e
suas propostas em encontros ocorridos pelo país, antes de seu
falecimento, em 1997, e, claro, por seus inúmeros livros e pela
revolução que fez nos processos de educação. É quase impossível
fazer a escolha de qual de suas obras mais nos impacta e nos toca ao
ser lida, ao mesmo tempo as grandes dificuldades de se escolher com
as quais vamos dialogar em nossos textos. Mas há uma delas, que
talvez seja uma das menos citadas, que a mim atingiu (continua ainda
hoje) com intenso acento. Refiro-me ao livro: “Educadores de Rua:
Uma abordagem Crítica” (FREIRE, 1989).
Esse material é fruto de um encontro entre Paulo Freire e os
Educadores de Rua, ocorrido em São Paulo, no ano de 1985. Nele, o
educador pernambucano se dedica a dialogar com essas pessoas que
destinam parte de seus trabalhos às crianças que, assim, como a que
abre este texto, encontram, nas ruas, praças, ruelas, calçadas e outros
espaços, sua forma de existir.
O material transcrito do encontro é composto por muitas
referências que envolvem o como se relacionar com esses meninos e
meninas, que têm singularidades constitutivas marcantes, infâncias
construídas em muitas outras perspectivas e que se unificam em torno
de mais um vocábulo espacial: crianças de rua82.
É na relação entre essas crianças e as pessoas que com elas
convivem diariamente, que Paulo Freire irá trazer algumas expressivas
reflexões. Há muitas coisas a serem mobilizadas em cada um de nós,
quando transitamos entre as letras e frases desses registros. Há
questões que irão conduzir o leitor por suas palavras, como quando
nos indaga: como devemos nos colocar diante da criança? Ele mesmo

82 Seriam elas: “Essas crianças são, em sua maioria, meninos e meninas entre sete e
dezessete anos, que vivem na rua trabalhando para se sustentarem e/ou para ajudar no
sustento de suas famílias, que quase sempre são pobres demais para atender as
necessidades básicas de seus filhos. Quando estio na rua, essas crianças são efetivamente
desamparadas da proteção familiar e da comunidade, tornando-se, em consequência,
vulneráveis à exploração por terceiros e a uma variedade de perigos físicos e morais.
Muitas passam virtualmente nas ruas todas as horas em que estão acordadas, e algumas
até suas noites, tendo, portanto, pouco ou nenhum outro acesso aos serviços básicos,
tais como os relativos à saúde e à educação. Em decorrência disto, são poucas as
perspectivas de se desenvolverem e conquistarem um futuro melhor. Assim sendo, essas
crianças representam um enorme desperdício de potencial humano, tanto para elas
próprias quanto para a sociedade brasileira” (idem, p. 11).

164
responde: Colocar-se como pessoa, como agente, respeitando a
individualidade da criança, e seus valores e suas expectativas. Com
autenticidade e verdade, coerência” (idem, p. 13). Para ele, é nessa
relação atenta e paciente, que se pode criar “o momento em que se
descobre o mistério existencial[...]” (Ibidem).
E, nesse encontro, a transformação se faz, tem uma condição
inaugural para ambos, uma relação, que é vivida no drama (para
resgatar a expressão vigotskiana já usada), “[...] no conflito, cheio de
contradições, cujos valores” (ibidem) de ambos “começam a ser
quebrados, gerando uma nova postura [...]”(Ibidem).
Isso não significa anulação de um ou de outro, mas efetiva relação
cujo encontro e suas peculiares existenciais são transformadoras, é
fazer histórias e geografias com. É [com]viver, é [co]existir.
Dessa obra, ficou para mim um conceito que, hoje, ocupa também
a centralidade de meus estudos: o de amorosidade. Não que tenha
sido a primeira vez que li sobre isso, mas foi, sem dúvida, a primeira vez
que o assumi de forma consciente e simbolicamente marcado por sua
condição revolucionária, atribuída de um sentido explícito, em
afinidade com as outras pessoas.
Freire toma o ato amoroso como um ato político, evidenciando
que qualquer atitude política sempre passa pelo amor ao outro, um
amor mediado pela forte finalidade de transformação do mundo, onde
estão os sofrimentos e as explorações das pessoas, inclusive dessas
crianças, desses meninos e meninas de rua e da rua. Ele nos diz:
“Evidentemente, esse compromisso é amoroso, mas não piegas. O
nosso amor por esses meninos negados no seu direito de ser, só se
expressa autenticamente quando nosso sonho e o de criar um mundo
diferente” (Idem, p. 20).
Os estudos do ciclo de Bakhtin viriam completar essa perspectiva.
O reconhecimento da condição amorosa e ética desse autor viria a se
somar ao de Paulo Freire. A dimensão de amorosidade por eles e
outros estudos me levara a pensar em interfaces que fazem parte dos
argumentos deste livro e a cunhar os conceitos de justiça existencial e
amorosidade espacial, pois os bebês e as crianças, suas vivências
espaciais, também estão nesse processo.
Ao falarmos da vivência espacial como interespacial, a ela se
envolvem essas duas expressões que são os elos em torno das quais
ela se faz. Não há como pensar o interespaço, onde está a unidade

165
pessoas-natureza-sociedade, fora de uma justiça existencial que se
desdobra em uma amorosidade espacial.
É conhecida, nos debates geográficos, como em Harvey (2001,
2017), Edward Soja (2006, 2014) e outros, a concepção de “virada
espacial” (Giro Espacial, Spatial Turn), ou seja, o reconhecimento de
que a condição espacial e seu encontro com a vida humana são
essenciais na compreensão do existir. A essa dimensão junta-se o
conceito de justiça espacial (por exemplo, SOJA, 2014, entre outros),
marcado pela ênfase da impossibilidade de pensar a justiça social, sem
considerar os aspectos espaciais.
Boaventura de Souza Santos (em suas obras diversas, como em
2009) fala-nos em epistemicídios, em monoculturas do saber, em
justiça cognitiva, em conhecimentos entre o sul e o norte. Ao nos
aproximarmos das condições éticas e responsivas com o ser e estar das
crianças, falamos também em uma justiça existencial83.
A justiça existencial é o reconhecimento da vivência espacial
integrante da vida de bebês e as crianças, que se fazem presentes na
sociedade como criadores de cultura espacial, muitas vezes ignorados,
negligenciados, esquecidos e até ridicularizados por nossas lógicas
adultas, pelos egocentrismos adultos e pelas próprias condições
adultocêntricas das sociedades.
Nesse sentido, quando estamos falando de amorosidade espacial,
não estamos reforçando a condição romanceada com que, às vezes,
essa palavra amorosidade tem sido revestida. Frigotto (2005) foi
sagaz, ao mostrar como muitos conceitos são metamorfoseados.
Falamos aqui dessa condição ética, pois hão há justiça espacial sem
amorosidade espacial. Uma amorosidade renovadora, insubmissa, que
arranque os corpos dos Joãos dos mangues, das naus, que rompa com
as desterritorialidades das palavras e dos movimentos, que permita a
efetiva transformação.

83 Citando Soja (2014, p. 33): “Guiando esa exploración desde el principio, se trata de
la idea de que la justicia, se defina como se defina, tiene consecuencias geográficas,
una concepción espacial que es algo más que una simple reflexión de fondo o un
conjunto de atributos físicos que se trazan descriptivamente. […] la geografía, o
“espacialidad”, de la justicia […] es un componente integral y formativo de la propia
justicia, una parte vital de cómo la justicia y la injusticia se construyen socialmente y
evolucionan con el tiempo. Visto así, la búsqueda de la justicia espacial deviene
fundamentalmente, casi inevitablemente, una lucha por la geografía […].

166
Esse acontecimento aponta para outro: todos somos autores,
todos temos atitudes criadoras que forjam cultura. Nesse sentido,
todas as pessoas estão para mim em um mesmo horizonte social e se
fazem diferentes pelas belezas de suas existências e pelos seus atos
responsivos para com os outros. Em minha vida todas me criaram de
alguma forma, todas cuidaram de mim e, claro, fiz todos os esforços
para cuidar delas.
Uma das expressões mais importantes da Educação Infantil é a
condição indissociável entre cuidar e educar. Só se fazem seres
humanos, para lembrar a feitura de gente que Lara (2003) sempre
gostava de falar, no interstício e no átimo dessas duas palavras, que
são vocábulos ditos separados para serem lembrados, às vezes isso é
necessário para marcar o esquecido, mas que, no viver, são apenas um:
amorosidade.
Uma amorosidade marcada pelo encontro revolucionário, onde
diferenças se afirmem e dialoguem, pois assumo como Arendt (1997)
que esse encontro geracional, que está presente na sociedade e, muito
fortemente no campo educacional, não pode ser negado, o centro é a
fronteira, o liame. Há um giro significativo a ser feito. Caracóis.

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