Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Trimestral.
Continuação de: Revista da Universidade de São Paulo
Descrição baseada em: N. 93 (2012)
ISSN 0103-9989
8 Apresentação – Saúde nas cidades: desafios do século XXI Eliseu Alves Waldman
91 Cidades Saudáveis: uma forma de abordagem ou uma estratégia de ação em saúde urbana?
Marcia Faria Westphal e Sandra Costa Oliveira
textos
105 O príncipe e o plebeu ou o rei do Brasil numa cidade republicana João Baptista Borges
Pereira
107 A visita da peste Boris Schnaiderman, Roberto Oliveira e Jerusa Pires Ferreira
arte
118 A explosão de uma metáfora visual: Joan Miró Aguinaldo José Gonçalves
livros
137 Poética da derrelição: o grito do silêncio José de Paula Ramos Jr.
Conselho Editorial
Ana lucia duarte lanna
belmiro mendes de castro filho
cicero romão resende araujo
eduardo victorio morettin
eugênio bucci (membro nato)
franco maria lajolo
joão sayad
José Antonio Marin-Neto
lilia katri moritz schwarcz
miguel trefaut urbano rodrigues
oscar josé pinto éboli
Francisco Costa
09/03/16 15:52
dossiê saúde urbana
Apresentação
Saúde nas cidades:
desafios do século XXI
Marcos Santos/USP imagens
serviços de saúde, além de riscos de uma poten- mente em áreas urbanas. Sua presença no Brasil
cial mudança dos padrões de morbimortalidade foi confirmada em maio de 2015 e, poucos meses
nas grandes cidades (Carballo & Nerukar, 2001). depois, o vírus zika já havia se disseminado pela
Um fator adicional de preocupação, de caráter maioria dos estados brasileiros e boa parte dos
global, e com foco especial nos grandes centros países da América Latina e Caribe. Vale lembrar
urbanos, resulta das alterações recentes do com- que tal fato ocorreu pouco mais de um ano após
portamento das doenças infecciosas (Faucci & a emergência do vírus chikungunya na mesma
Morens, 2012). Tal inquietação contrapõe-se à região (Dyer, 2016; Faucci & Morens, 2016).
visão otimista vigente até os anos 1980, em face O vírus zika é ainda pouco conhecido, tendo
da tendência declinante que apresentavam. As- sido isolado pela primeira vez de um primata não
sistimos, então, nos últimos 30 anos, a alterações humano, em Uganda, em 1947. Até recentemen-
nos padrões de transmissão, que aumentaram te, circulava entre primatas selvagens em países
rapidamente a velocidade da disseminação das da África e Ásia, com raros registros de infecção
doenças infecciosas em escala várias vezes maior humana, até a ocorrência de uma epidemia na Mi-
do que aquela registrada em outros períodos da cronésia, em 2007 (Faye et al., 2014). Desde seu
história (Satcher, 1995; Faucci & Morens, 2012). isolamento até a epidemia na Polinésia Francesa,
Vários fatores contribuíram para essa mudança em 2013, a infecção pelo vírus zika era caracte-
do comportamento, destacando-se o rápido au- rizada por manifestações clínicas pouco intensas
mento da população e da urbanização e a amplia- ou inaparentes, semelhantes às da dengue, porém,
ção do intercâmbio internacional entre as últimas sem registros de formas hemorrágicas ou de óbitos.
décadas do século XX e o início do XXI, além da No entanto, na Polinésia foram relatados dezenas
elevada capacidade de mutação e adaptação dos de casos de síndrome de Guillain-Barré e outras
microrganismos (Faucci & Morens, 2012). manifestações neurológicas (Faucci & Morens,
O caráter imprevisível das doenças infec- 2016). Mas o que vem preocupando seriamente as
ciosas e o potencial pandêmico de muitas delas autoridades sanitárias brasileiras e de organismos
podem determinar rápida elevação da morbimor- internacionais é a rapidez com que esse vírus dis-
talidade, ultrapassando a capacidade de resposta seminou-se e, pelos registros no Brasil, o aumento
dos serviços de saúde, além de causar forte im- da ocorrência de microcefalia, possivelmente asso-
pacto econômico nos países atingidos (Morens et ciada ao zika. Ainda que faltem as conclusões dos
al., 2004). Eventos com essas características têm estudos necessários para a confirmação do nexo
sido cada vez mais frequentes e criam situações causal entre a infecção e a malformação congênita,
de emergência em saúde pública de importância a potencial gravidade dos fatos levou a Organiza-
internacional. Como exemplos, assistimos nos úl- ção Mundial da Saúde (OMS) a cogitar declarar
timos 15 anos a pandemias de Sars (severe acute estado de emergência em saúde pública de impor-
respiratory syndrome) e da influenza pandêmi- tância internacional. Esse exemplo mostra a rapi-
ca (H1N1) e grave epidemia causada pelo vírus dez e a gravidade que a emergência de doenças in-
ebola, provocando elevado número de mortes em fecciosas pode assumir, atingindo principalmente
três países do continente africano (Peiris et al., os aglomerados urbanos (Faucci & Morens, 2016).
2003; Taubenberger & Morens, 2010). Tais fatos Vale assinalar que desastres naturais e aci-
fizeram com que as doenças infecciosas voltas- dentes ambientais também podem atingir amplos
sem a ser incluídas na agenda de prioridades de territórios, às vezes vários países, causando com
organismos internacionais. frequência, além de impacto na economia, emer-
Um exemplo atual e que situa o Brasil como gências de saúde pública, para as quais os países
o epicentro de uma pandemia que já atingiu a e os organismos internacionais devem estar pre-
Oceania, boa parte dos países latino-americanos e parados (Spencer et al., 1977). O recente aciden-
do Caribe e ainda Cabo Verde, país da África oci- te em Mariana (MG), devido ao rompimento das
dental, é a emergência do vírus zika, transmitido barragens de uma mineradora, é um exemplo.
pelo mesmo mosquito vetor da dengue e da chi- Tal panorama destaca a diversidade e a com-
kungunya, o Aedes aegypti, presente principal- plexidade das questões relativas à saúde nas ci-
de intervenção em saúde urbana, tendo em vista Os artigos incluídos neste dossiê oferecem ao
a complexidade dos problemas e as estratégias leitor subsídios para a melhor compreensão das
necessárias para ampliar o desenvolvimento das diferentes dimensões que envolvem o tema, as-
potencialidades locais. Propõe-se, ainda, o com- sim como para identificar potenciais prioridades
promisso das autoridades locais com políticas para políticas públicas voltadas à promoção da
públicas intersetoriais, o empoderamento da po- qualidade de vida das populações urbanas e da
pulação e a busca de equidade social. equidade em saúde.
Bibliografia
resumo abstract
O artigo discute interfaces entre The ar ticle probes the inter faces
conceitos de saúde urbana e de qualidade b e t we e n th e co n ce pt s o f u r b a n
ambient al, apresent ando bases health and environmental quality by
conceituais e enfocando elementos presenting conceptual frameworks and
que compõem a qualidade ambiental focusing on elements that make urban
environment quality a determinant
urbana como fator determinante de
of health. Then, it addresses the
saúde. A seguir, enfoca as relações entre
relations between globalization and
globalização e urbanização mundial
world urbanization; and presents the
e apresenta o caso emblemático da example case of Brazilian urbanization
urbanização brasileira e algumas de suas and some of its most striking features
características mais marcantes, que têm with a significant impact on urban
consequências importantes na saúde health: urban sprawl, agglomeration
urbana: espraiamento urbano, (des) diseconomies, and the ef fec ts of
economias de aglomeração e efeitos globalized virtual communication.
da virtualidade globalizada.
Keywords: urban health; environmental
Palavras-chave: saúde urbana; qua- quality; urban sprawl; urbanization.
lidade ambiental; espraiamento urba-
no; urbanização.
Marcos Santos/USP imagens
pode estar associada às características do indiví- biente. Ribeiro e Vargas (2014) sugerem quatro
duo, ao lugar urbano e à composição e caracterís- aspectos da qualidade do ambiente urbano: es-
ticas do grupo (Proietti & Caiaffa, 2005). pacial, biológico, social e econômico (Tabela 1).
A saúde urbana está, também, muito relacio- Cada elemento afeta o detalhe e, frequentemente,
nada aos conceitos de qualidade de vida e do am- o todo da imagem coletiva.
tabela 1
tabela 3
População Total
2010, havia, no país, 6.326 aglomerados subnor- 2011). A ocupação precária ocorre, muitas ve-
mais1, com 3,2 milhões de domicílios (IBGE, zes, em áreas de preservação ambiental, como
fundos de vale, margens de lagos ou represas,
e encostas, promovendo danos ambientais e ris-
cos para a população moradora. No país, 47%
dos domicílios subnormais estavam em áreas
1 Conhecidos como favelas, invasões, grotas, baixadas,
comunidades, vilas, ressacas, mocambos e palafitas,
dentre outros (IBGE, 2011). de aclive moderado ou acentuado. Na RMSP
146 mil domicílios subnormais estavam às mar- to de precipitação pluviométrica sob a forma de
gens de córregos ou rios, e mais de 10 mil em tempestades. Nas áreas urbanas em clima tropical,
áreas de preservação ambiental (IBGE, 2011). as precipitações críticas são as mais intensas e de
Essa ocupação, ao impedir a expansão natural curta duração e contribuem para o agravamento
dos cursos d’água, por ocasião das cheias, pro- das inundações (Alves Filho & Ribeiro, 2006). Já
voca assoreamento e carrega resíduos urbanos a baixa incidência de radiação entre edifícios altos
aí produzidos, ocasionando obstruções e con- resulta em ilhas de frio (Gonçalves, 1999). Ilhas de
taminação das águas (Barros, 2005). calor e de frio, associadas ao calor produzido pelas
Também é grande o número de ocupações atividades humanas e à concentração de poluen-
indevidas sob pontes e viadutos, de cortiços e de tes, são indicadores de degradação atmosférica nas
moradores de rua, com sérios problemas de saú- grandes cidades, contribuindo para as mudanças
de pública: saúde mental, doenças sexualmente climáticas e com efeitos sobre a saúde dos residen-
transmissíveis e outras doenças infecciosas. tes. As condições de moradia podem agravar os
A impermeabilização crescente do solo au- efeitos da ilha e das ondas de calor, especialmente
menta o escoamento superficial e a vazão dos sob clima tropical, em que ventilação e isolamen-
rios, provocando inundações frequentes e avassa- to térmico inadequados tornam mais críticos os
ladoras e dificultando a alimentação dos aquíferos efeitos sobre a saúde (Ribeiro Sobral, 2005; Silva
subterrâneos. Além disso, as extensas superfícies & Ribeiro, 2006).
impermeáveis, ao absorverem parte da radiação
solar, aumentam a temperatura e produzem o efeito As (des)economias de aglomeração
conhecido como “ilha de calor”, causando descon-
forto aos cidadãos. A elevação da temperatura gera A sociedade brasileira passou a ser urbana
movimento de ar ascendente, provocando aumen- e industrial, com forte peso do setor terciário.
Reprodução
Grandes aglomerações, ao formarem mercados educação e serviços públicos, além dos impactos
que viabilizam a oferta de sofisticados e raros nocivos da exposição à poluição do ar, do seden-
bens, serviços e mão de obra, ao mesmo tempo tarismo e do stress emocional.
que oferecem grandes oportunidades, produzem O caso de São Paulo é emblemático. Segun-
efeitos negativos ao ambiente e à saúde (deseco- do a Companhia de Engenharia de Tráfego (CET,
nomias). Grandes mercados, ao intensificar flu- 2014, tabelas 1.4; 11.4 e 11.5), a frota individual,
xos de pessoas, mercadorias e veículos, produzem em 2014, era de 6.500.000 veículos, 41,75% maior
congestionamentos de veículos, pessoas e infor- que em 2005, com aumento progressivo da imobi-
mações, poluição de diversas naturezas e confli- lidade. O maior tempo perdido nos congestiona-
tos sociais, incapazes de serem absorvidos pelo mentos favoreceu o crescimento do uso de motoci-
ambiente natural, equacionados pela sociedade e cletas, cujo registro teve incremento de 112% entre
gerenciados pelo poder público. 2005-2014, atingindo mais de 1 milhão em 2014.
Os fluxos urbanos, de diversas naturezas, es- Os congestionamentos têm superado 300 km nos
tão diretamente relacionados à (i)mobilidade, com horários de pico, e a busca por maior eficiência no
sérias implicações no desempenho econômico e uso do tempo fez crescer o número de motos e a
socioambiental das cidades e no tempo gasto no sua velocidade de deslocamento, o que contribuiu
movimento pendular do cotidiano (Vargas, 2008). para o aumento significativo de acidentes de trânsi-
O custo dos congestionamentos urbanos to fatais, sendo os motociclistas 35% das vítimas2.
extrapola, em muito, aquele do desperdício de
tempo gasto nos deslocamentos. Segundo Cintra
(2014), o custo anual estimado da imobilidade
na cidade de São Paulo é de cerca de 40 bilhões 2 Segundo a CET, em 2014, foram 1.249 acidentes fatais
de reais. Esse montante é dez vezes o orçamen- ocasionados por diversos tipos de veículos, além
daqueles que provocam incapacidades permanentes,
to anual da Universidade de São Paulo, dando impactando na qualidade do atendimento e nos custos
uma dimensão do que se perde em termos de relacionados à saúde.
Bibliografia
SHIELDS, K. N. et al. “Traffic-related Air Pollution Exposure and Changes in Heart Rate
Variability in Mexico City: a Panel Study”, in Environmental Health: a Global Access
Science Source, 12(1), 2013.
SILVA, E. N.; RIBEIRO, H. “Alterações da Temperatura em Ambientes Externos de Favela e
Desconforto Térmico”, in Revista de Saúde Pública (2006) 40, pp. 663-70.
SIQUEIRA, K. “Cargas, Operação Corujão”, in O Carreteiro, n. 369, 2005. Disponível em:
www.revistaocarreteiro.com.br/modules/revista.php?recid=108. Acesso em: 10/4/2009.
VARGAS, H. C. Espaço Terciário. O Lugar, a Arquitetura e a Imagem do Comércio. São Paulo,
Senac, 2001.
. (I)Mobilidade Urbana. São Paulo, URBS, jul.-ago.-set./2008, pp. 7-11.
. Comércio, Espaço Público e Cidadania. I Encontro da Associação Nacional de
Pós-graduação e Pesquisa em Ambiente e Sociedade. Indaiatuba, Anppas, 2002.
população e voltaram a crescer, áreas que conti- trito menos populoso é a Barra Funda, com cerca
nuaram no processo de esvaziamento iniciado na de 14 mil habitantes, e o mais populoso é Santa
década de 80 e áreas que continuaram crescendo Cecília, com quase 84 mil. A população é esta-
ainda que em taxas menores comparativamente cionária, com 14,5% de idosos e 14,5% de jovens.
ao período de grande crescimento das décadas Alguns distritos, como Barra Funda, Consolação,
de 60 e 70. Há quatro processos relacionados Liberdade, Bela Vista e Santa Cecília, têm maior
a esse crescimento/esvaziamento dos distritos proporção de idosos do que jovens na sua com-
paulistanos: a migração recente constituída prin- posição etária (Fundação Seade, s/d).
cipalmente por latino-americanos, africanos e Todos os distritos da zona central, com ex-
árabes; a produção imobiliária via mercado com ceção do distrito da Consolação, apresentaram
adensamento urbano em vários distritos; a taxa de crescimento populacional maior que a média
fecundidade dos grupos de residentes; o processo municipal (0,59) (Fundação Seade, s/d).
de criação/remoção de favelas. Nos distritos que A renda per capita média é muito variável
reverteram a tendência de esvaziamento nos úl- entre os distritos, com quatro deles apresentando
timos dez anos, o processo predominante parece valores inferiores à média municipal e os demais
ter sido o adensamento urbano, com a construção com renda per capita variando entre 1,36 e 3,36
de mais edifícios de apartamentos, a eliminação vezes a média municipal, em valores nominais de
de favelas, o menor fluxo migratório e a menor 2010. Em termos de salário mínimo vigente em
taxa de fecundidade. Nos distritos com manu- 2010, a renda per capita varia entre 1,78 e 7,43
tenção das tendências de redução populacional, salários mínimos (Gráfico 1). Quanto à proporção
os processos responsáveis parecem ser a queda de domicílios com renda per capita inferior a ¼
acentuada da fecundidade e a ausência de fluxos de salário mínimo (R$ 127,50), que define a linha
migratórios importantes. Finalmente, naquelas da miséria, todos os distritos, exceto o Bom Retiro,
áreas que continuaram crescendo, predominam apresentam valores inferiores à média municipal
os fluxos migratórios e o crescimento das favelas (8,55% dos domicílios). Para o indicador de pobre-
(Marques & Requena, 2013). za – renda per capita menor que ½ salário míni-
mo –, a melhor situação é a do distrito da Bela
Vista, com 6% dos domicílios nessa situação, e a
A ZONA CENTRAL E AS
pior é a do Bom Retiro, com 21,5% dos domicí-
COMPLEXIDADES DA METRÓPOLE lios nesse grupo. Todos os distritos, exceto o Bom
Retiro, têm valores inferiores à média municipal
A região central de São Paulo, constituída de 18,7% dos domicílios com renda per capita in-
por 11 distritos dos 97 que compõem a cidade, ferior a ½ salário mínimo (Fundação Seade, s/d).
é um exemplo típico de território marcado por A saúde é a resultante de um processo en-
extrema heterogeneidade. Alguns bairros, como volvendo diferentes dimensões das condições de
Higienópolis, por exemplo, ainda conservam par- vida e dos contextos sociais nos quais os grupos
te da população mais rica da cidade, enquanto sociais vivem. Segundo o modelo elaborado pela
outros, como o Brás e o Bom Retiro, sofreram Comissão sobre Determinantes Sociais da Saúde
profundas transformações com a presença cada da Organização Mundial da Saúde (WHO, 2007),
vez maior de migrantes estrangeiros. Na última o perfil epidemiológico, ou seja, as necessidades
década, a população em situação de rua cresceu de saúde dos diferentes grupos sociais dependem
65%, e 55% dela se concentra na região central da de um conjunto de determinantes estruturais e
cidade (Barata, Ribeiro & Cassanti, 2011; Prefei- intermediários. Os determinantes estruturais in-
tura do Município de São Paulo, 2011). cluem o contexto socioeconômico e político defi-
Os distritos que constituem a zona central nido pelas condições de governança; as políticas
são Barra Funda, Bela Vista, Bom Retiro, Brás, macroeconômicas; as políticas sociais relaciona-
Cambuci, Consolação, Liberdade, Pari, Repúbli- das a mercado de trabalho, moradia e ocupação
ca, Santa Cecília e Sé. Juntos, reúnem 4,25% (492 do solo urbano; as políticas públicas relacionadas
mil habitantes) da população de São Paulo. O dis- a educação, saúde e proteção social; e os valores
CONSOLAÇÃO
BARRA FUNDA
BELA VISTA
SANTA CECÍLIA
LIBERDADE
Distritos
CAMBUCI
REPÚBLICA
BRÁS
PARI
BOM RETIRO
SÉ
0 1 2 3 4 5 6 7 8
figura 1
Barra Funda
Bom Retiro
Pari
Santa Cecília
República Brás
Sé
Consolação
Vulnerabilidade
Características
SEM COM
Idade
<30 anos 20,9 30,2
30-59 anos 49,1 56,5
60 anos e mais 30,0 13,3
Sexo
Masculino 46,0 42,9
Feminino 54,0 57,1
Cor
Branca 82,3 45,9
Parda 3,5 12,3
Preta 10,4 38,8
Outras 3,7 3,0
Escolaridade
Básico incompleto 5,6 26,3
Básico completo 6,8 19,7
Médio incompleto 7,2 19,5
Médio completo 33,9 29,2
Superior 46,5 5,3
Situação conjugal
Nunca foi casado 35,0 33,3
Atualmente casado 27,6 19,9
Vive com companheiro 7,5 19,5
Separado/divorciado 17,5 21,4
Viúvo 12,4 6,0
Ocupação
Assalariado formal 56,6 43,8
Assalariado informal 7,6 20,6
Autônomo com negócio 13,8 7,5
Autônomo sem negócio 12,4 27,5
Empregador com até 5 empregados 4,8 0,3
Empregador com mais de 5 empregados 4,8 0,3
Desempregado 3,0 12,5
Renda mensal
Até ½ SM 0,7 2,2
½-1 SM 1,0 10,2
1-2 SM 3,4 33,6
2-3 SM 10,2 23,7
3-5 SM 18,8 19,6
5-10 SM 29,8 8,3
10-20 SM 29,6 2,0
> 20 SM 9,5 0,4
ções que essa situação impõe a outras dimen- domésticas, em caso de doença e no cuidado com
sões da inserção social (Mercado et al., 2007). crianças ou idosos.
Todos os indicadores de estratificação social A avaliação das condições do local de residên-
mostram a precariedade da situação do grupo com cia (iluminação, ruído, poluição ambiental, limpeza
vulnerabilidade social, que é mais jovem, apresen- pública, espaços de lazer e riscos para pedestres ou
ta maior proporção de pretos e pardos, tem menor ciclistas, sensação de insegurança e medo de assal-
nível de escolaridade, menor renda mensal, inser- to) revelou insatisfação dez vezes maior entre os in-
ção precária no mercado de trabalho e maior taxa divíduos do grupo vulnerável (18,4% versus 1,4%).
de desemprego. Esse conjunto de determinantes de estratifi-
A percepção de discriminação também foi cação social e condições materiais de vida tem
maior nesse grupo. A prevalência estimada foi reflexo na autopercepção do estado de saúde e
de 12,4% a 18,6%, enquanto no grupo não vul- no relato de limitações nas atividades cotidianas,
nerável os valores estimados foram de 6,2% a psiquismo, dor crônica e problemas emocionais
11,8%. Os motivos para sentir-se discriminado (Lawrence, 2012).
foram semelhantes em relação a idade, orienta- Embora em ambos os grupos predomine estado
ção sexual, religião, nacionalidade, incapacidade de saúde bom ou muito bom, o grupo com vul-
física e língua. Apenas três motivos foram mais nerabilidade social refere mais estados de saúde
frequentes no grupo vulnerável: raça/cor (8,4% regular, ruim e péssimo em comparação com o
versus 3,7%), classe social (4,5% versus 1,8%) e grupo sem vulnerabilidade (37,6% versus 17,9%),
gênero (6,5% versus 0%). refletindo assim suas piores condições de vida e
A rede de suporte social também é menor para sua precária inserção social.
os indivíduos no grupo vulnerável, havendo o do- A maior parte dos indivíduos que percebem
bro de indivíduos que referiram contar com pou- sua saúde como boa ou muito boa faz parte do gru-
ca ou nenhuma ajuda para a realização de tarefas po sem vulnerabilidade social. Entre aqueles que
gráfico 2
50
45
40
35
PREVALÊNCIA
30
25
20
15
10
5
0
MUITO BOM BOM REGULAR RUIM PÉSSIMO
ESTADO DE SAÚDE
SEM COM
tabela 2
Saúde regular,
Saúde boa ou muito boa
ruim ou péssima
Saúde
Não Não
Vulnerável Vulnerável
vulnerável vulnerável
Limitação das atividades cotidianas
Nenhuma 84,0 69,7 23,7 30,0
Pouca 13,4 22,8 31,6 28,1
Moderada 1,1 3,7 13,2 6,5
Intensa 1,4 3,7 25,0 25,9
Muito intensa 0,0 0,0 6,6 9,2
Psiquismo
Bem todo o tempo 12,5 12,9 5,4 3,7
Bem a maior parte do tempo 78,5 71,5 59,5 48,7
Bem uma pequena parte do tempo 9,1 15,6 33,8 46,5
Nunca está bem 0,0 0,0 1,4 1,1
Dor
Sem dor 85,8 68,4 35,1 38,6
Levemente incapacitante 7,9 15,8 24,7 15,9
Moderadamente incapacitante 3,1 7,7 19,5 16,4
Intensamente incapacitante 3,1 8,1 20,8 29,1
Problemas emocionais
Incapacitante 4,0 8,1 20,8 35,6
Não incapacitante 96,0 91,9 79,2 64,6
tabela 3
GRÁFICO 3
70
60
50
PREVALÊNCIA
40
30
20
10
0
MUITO BOM BOM REGULAR RUIM PÉSSIMO
ESTADO DE SAÚDE
VULNERÁVEL MIGRANTE
ruim e péssimo, com exceção da questão sobre dor (7%). O uso de drogas ilícitas relatado foi cinco
crônica. Embora a situação seja bastante parecida vezes menor do que aquele referido pelo grupo
com a observada para os grupos vulneráveis, esse vulnerável, exceto para anfetaminas, em que a pre-
deslocamento relativo para as ponderações de pior valência foi a metade da observada naquele grupo.
estado de saúde é coerente com a apreciação geral É difícil avaliar se as respostas correspondem ao
de saúde regular nesse grupo. comportamento dos migrantes ou se sua situação
A prevalência de episódios de violência ao lon- já vulnerável influenciou na veracidade das res-
go da vida foi menor no grupo de migrantes (28%), postas, uma vez que todos têm conhecimento de
mas a violência por parceiro íntimo foi a mais alta que o consumo de drogas é criminalizado no país.
(44%). Os relatos de violência física ou sexual por O grupo de migrantes bolivianos, especial-
outras pessoas que não o parceiro foram semelhan- mente os recentes, por sua precária inserção na
tes aos observados para o grupo de moradores com sociedade brasileira, ainda que pertença a um es-
vulnerabilidade social. trato relativamente mais educado, está incluído nos
O consumo e a dependência de álcool também estratos mais baixos de renda e ocupação, fato que
foram semelhantes aos do grupo vulnerável, embo- repercute em seu estado de saúde, seja na autoper-
ra o tabagismo tenha sido menor entre os migrantes cepção, seja nos componentes de saúde física ou
tabela 4
Saúde regular,
Saúde boa ou muito boa
Saúde ruim ou péssima
Migrante Vulnerável Migrante Vulnerável
Limitação das atividades cotidianas
Nenhuma 66,7 69,7 36,5 30,0
Pouca 13,3 22,8 17,5 28,1
Moderada 4,4 3,7 20,6 6,5
Intensa 6,7 3,7 8,7 25,9
Muito intensa 8,9 0,0 16,7 9,2
Psiquismo
Bem todo o tempo 20,0 12,9 13,5 3,7
Bem a maior parte do tempo 55,6 71,5 34,1 48,7
Bem uma pequena parte do tempo 20,0 15,6 39,7 46,5
Nunca está bem 4,4 0,0 12,7 1,1
Dor
Sem dor 62,5 68,4 37,4 38,6
Levemente incapacitante 31,3 15,8 32,8 15,9
Moderadamente incapacitante 2,1 7,7 17,6 16,4
Intensamente incapacitante 4,2 8,1 12,2 29,1
Problemas emocionais
Incapacitante 25,0 8,1 48,9 35,6
Não incapacitante 75,0 91,9 51,1 64,6
tabela 5
Pessoas em
Características Migrantes Vulneráveis
situação de rua
Idade
<30 anos 49,1 30,2 11,2
30-59 anos 50,4 56,5 74,9
60 anos e mais 0,5 13,3 13,1
Sexo
Masculino 52,5 42,9 68,1
Feminino 47,5 57,1 31,1
Cor
Branca 11,6 45,9 36,3
Parda 65,2 12,3 44,0
Preta 0,6 38,8 16,1
Indígena/amarela 22,6 3,0 3,6
Escolaridade
Básico 18,8 46,0 51,2
Médio 66,6 48,7 35,6
Superior 3,7 5,3 3,2
Situação conjugal
Nunca foi casado 28,4 33,3 52,6
Atualmente casado 38,9 19,9 4,8
Vive com companheiro 29,5 19,5 5,2
Separado/divorciado 2,1 21,4 29,5
Viúvo 1,1 6,0 8,0
Renda mensal
Até ½ SM 1,2 2,2 64,8
½-1 SM 12,0 10,2 26,1
1-2 SM 41,0 33,6 6,4
2-3 SM 22,3 23,7 1,6
3-10 SM 23,5 27,9 1,1
> 10 SM 0,0 2,4 0,0
marginalizado nos grandes centros urbanos (Ba- Entre esse grupo foi observada a maior percep-
rata et al., 2015). ção de discriminação, com 85% deles relatando
O grupo dos indivíduos em situação de rua é experiência de ser discriminado por viver na rua,
constituído por adultos do sexo masculino, pardos por questões de higiene pessoal, incapacidade fí-
ou brancos, com escolaridade básica completa ou sica ou mental, cor ou orientação sexual.
incompleta, solteiros, separados, divorciados ou Cerca de 2/3 deles não mantêm nenhum tipo
viúvos, com renda mensal inferior a 1/2 salário de vínculo com familiares e dependem das ins-
mínimo, obtida através de atividades informais tituições públicas ou sociais para solucionar pro-
ou mendicância. Entretanto, 12% dos entrevista- blemas. Apenas 11% referiram poder contar com
dos referiram ter trabalho, dos quais 3% em em- o apoio de familiares em caso de necessidade. O
pregos formais, mas, dada a situação financeira, sentimento de insegurança e medo é alto entre
recorriam aos albergues como moradia durante a esse grupo, refletindo a situação de desamparo
semana de trabalho. em que se encontram.
As condições financeiras precárias foram Esse é o grupo que apresenta a pior percep-
apontadas por 63% dos indivíduos como o prin- ção do estado de saúde, com a maior proporção
cipal motivo para estarem vivendo nas ruas. de classificações no estado ruim. No entanto,
Em seguida foram mencionadas a ausência de cerca de 45% classificaram sua saúde como boa
família ou desavenças com ela. Cerca de 1/3 ou muito boa, superando a proporção declarada
deles estava há menos de um ano vivendo na pelos migrantes. Esses resultados estão relacio-
rua, 1/3 entre um e cinco anos e 1/3 há mais nados com a própria composição da amostra
de cinco anos. estudada, na qual cerca de 1/3 dos indivíduos
GRÁFICO 4
70
60
50
PREVALÊNCIA
40
30
20
10
0
MUITO BOM BOM REGULAR RUIM PÉSSIMO
ESTADO DE SAÚDE
Bibliografia
o atual estado da arte no que se refere à atenção à o ambiente de trabalho (Hipócrates, 1950; Para-
saúde das pessoas em condições de vulnerabilida- celsus, 1941; Engels, 1986). O conceito de saúde
de nos centros urbanos. somente pode ser determinado considerando-se a
realidade de uma sociedade concreta, cujos cida-
dãos participem tanto da definição de seus contor-
SAÚDE, DIREITO DE TODOS E DEVER DO nos gerais quanto do controle de sua fixação em
ESTADO: ABRANGÊNCIA E APLICAÇÃO cada caso particular.
decorre que as ações e os serviços de saúde de- tropolitana de São Paulo. No Brasil há 39 regiões
vem ser prestados sem discriminações de qualquer consideradas regiões metropolitanas, que abri-
natureza e gratuitamente, para que o acesso seja gam 46,8% da população brasileira (89.420.179
efetivamente universal. pessoas) e representam o espaço territorial onde
O terceiro princípio que pode ser extraído do se encontram, de forma concentrada, as diversas
artigo 196 da Constituição é o da integralidade condições de vulnerabilidade possíveis, desde as
das ações e serviços de saúde do SUS, que de- biológicas até as socioeconômicas e culturais, em
vem abranger a promoção (educação em saúde, um contexto de trabalhos precarizados e altos ín-
espaços de lazer e esporte, por exemplo), a pro- dices de violência.
teção (vigilância em saúde, vigilância sanitária, Esses grandes centros urbanos, destinos mais
saneamento básico, por exemplo) e a recuperação procurados pelos migrantes e imigrantes por apre-
(assistência médica hospitalar, ambulatorial e far- sentarem melhor realidade econômica e oportu-
macêutica, urgências e emergências, por exemplo) nidades de emprego e estudo, pouco se planejam
da saúde individual e coletiva. para esse fluxo de novos moradores. Assim, cres-
Finalmente, o SUS deve observar, em sua cem em todas as regiões do país as áreas habita-
organização, o princípio da equidade. Por esse das por pessoas em moradias precárias, formando
princípio, o Estado deve organizar a sua rede pú- ocupações urbanas irregulares que afetam as con-
blica de saúde de forma que trate desigualmente dições de saúde desses cidadãos.
os desiguais na medida em que se desigualam. O Essa grande concentração nos centros urba-
tratamento desigual dado a quem precisa é uma nos resulta também na concentração de pessoas
exigência que o princípio da equidade impõe ao em condição de vulnerabilidade, que, agrupadas
Estado justamente para garantir o princípio da conforme a especificidade da vulnerabilidade sub-
igualdade. Se o serviço público de saúde fosse jetiva, possuem necessidades específicas de saúde
oferecido de forma igualitária a todos, sem con- que diversificam as necessidades e tornam, assim,
sideração das diferenças sociais, biológicas, eco- mais complexas as dificuldades de organizar a rede
nômicas ou culturais existentes entre as pessoas, pública de assistência à saúde da população que
o princípio da igualdade apenas serviria para es- vive nos centros urbanos.
conder as iniquidades sociais e individuais e, com Seja em razão do grande número de pessoas
isso, preservar ou promover injustiças. Assim, em concentradas em um território urbano, seja em
nome do princípio da equidade é que o SUS or- razão das dinâmicas próprias da vida em centros
ganiza serviços voltados à atenção especial de urbanos, o fato é que tanto as vulnerabilidades
grupos sociais como os idosos, as crianças, as decorrentes de condições biológicas quanto
gestantes ou os povos indígenas. as decorrentes de condições socioeconômicas
e culturais podem ser encontradas com maior
prevalência e gravidade nos centros urbanos do
PECULIARIDADES DO DIREITO
que na área rural.
À SAÚDE PARA PESSOAS EM
CONDIÇÕES DE VULNERABILIDADE INIQUIDADES SOCIAIS EM SAÚDE E
NOS CENTROS URBANOS CONDIÇÕES DE VULNERABILIDADE
De acordo com o Censo do IBGE de 2010, vi- No Brasil, país com dimensões continentais,
vem nos centros urbanos brasileiros 84,5% da po- a diversidade geográfica, econômica, social e
pulação. Dentro desse grupo populacional urbano, cultural da população é de grande relevância e
especial destaque deve ser dado para os que vivem impacta fortemente as necessidades de saúde de
nas metrópoles, que são agrupamentos de municí- cada região. Nesse contexto, as políticas públi-
pios com alta densidade demográfica, variando de cas de saúde organizadas pelo Estado vêm tra-
18,36 habitantes/km², na região de Lages em Santa balhando fortemente com o conceito de grupos
Catarina, a 2.476,82 habitantes/km² na Região Me- em condição de vulnerabilidade.
figura 1
180.000.000
160.000.000
140.000.000
120.000.000
100.000.000
80.000.000
60.000.000
40.000.000
20.000.000
0
Total Branca Preta Amarela Parda Indígena Sem
declaração
Urbana 160.925.792 80.212.529 12.430.469 803.377 66.158.924 315.180 5.313
Rural 29.830.007 10.839.117 2.087.492 280.911 16.118.409 502.783 1.295
10,1%, renda entre três e cinco SM; 5,6%, renda de serviços, voltada a todos indistintamente, o
entre cinco e dez SM; e 1,8%, renda superior a dez Sistema Único de Saúde brasileiro vem traba-
SM (Fundação João Pinheiro, 2014). lhando na linha de construção de políticas es-
Recentemente alguns centros urbanos brasilei- tratégicas que visam contemplar e orientar as
ros vêm sendo destino de um novo tipo de popula- ações em saúde para grupos populacionais em
ção vulnerável para o país, que é o imigrante ilegal. condição de vulnerabilidade. Essas políticas po-
No município de São Paulo, por exemplo, chamam dem ser diferenciadas em três tipos, a saber: 1)
a atenção das autoridades públicas os fluxos imigra- políticas de saúde voltadas a grupos em vulne-
tórios de haitianos e bolivianos. Enquanto os dados rabilidade socioeconômico-cultural; 2) políticas
oficiais do IBGE apontavam 17.960 bolivianos vi- de atenção à saúde indígena; 3) políticas de aten-
vendo no município de São Paulo em 2010, já no ção por fases dos ciclos de vida.
ano de 2013 o Consulado da Bolívia calculava em A divisão nesses três tipos considera o obje-
aproximadamente 100 mil os bolivianos vivendo em tivo principal de cada política. O primeiro tem o
São Paulo, muitos em condição irregular (Folha de foco principal na equidade da atenção e na que-
S. Paulo, 2013). Muitos desses imigrantes que che- bra de preconceitos; o segundo visa à garantia do
gam aos centros urbanos brasileiros têm dificulda- acesso à saúde de forma integral e respeitando
des com a língua, a cultura e, principalmente, com as diferenciações culturais; já o terceiro foca a
a regularização documental de sua permanência no orientação técnica e assistencial no cuidado nos
país, fato que os torna vulneráveis a diversos tipos diferentes momentos do ciclo de vida ou em con-
de problemas sociais (trabalho, renda). A falta de dições biológicas específicas, como os privados
documentos que regularizem a permanência do de liberdade e pessoas com deficiência.
imigrante ilegal no país afeta o acesso à rede pú-
blica de saúde por diversas razões: pelo desconhe-
Políticas de saúde e vulnerabilidades
cimento por parte dos imigrantes de seus direitos
relacionados com a saúde no Brasil; pelo medo socioeconômicas e culturais
que os imigrantes em situação irregular têm de se
comunicar com agentes do Estado e, assim, ter sua Entre as políticas que visam à equidade
condição de ilegalidade descoberta; e, ainda, pelo na atenção à saúde de grupos em vulnerabili-
desconhecimento dos agentes públicos que atuam dades socioeconômicas e culturais, incluem-
na rede de saúde, que recusam o atendimento por -se políticas para a população negra (Brasil,
falta de documentação. 2009), população LGBT (Ministério da Saúde,
Vê-se, portanto, que a vulnerabilidade pode 2013a), populações do campo, da floresta e das
ser causada por iniquidades sociais diversas, águas (Ministério da Saúde, 2013b) ou, ainda,
como renda, cor, educação ou local de moradia. pessoas em situação de rua (Brasil, 2009). Os
Assim, os desafios do sistema de saúde brasileiro imigrantes, embora se encontrem em condi-
envolvem a necessidade de superar as dificulda- ções de vulnerabilidades socioeconômicas e
des provocadas por essas iniquidades, especial- culturais, não são assistidos por uma política
mente nos centros urbanos, que concentram gran- de saúde específica, estando sujeitos às polí-
de parte de nossa população. ticas gerais do SUS.
Essas políticas que focalizam as pessoas em
condições de vulnerabilidades socioeconômi-
ORGANIZAÇÃO DO SUS PARA O cas e culturais estão sob a responsabilidade do
ATENDIMENTO DAS PESSOAS EM Departamento de Apoio à Gestão Participativa
da Secretaria de Gestão Estratégica e Parti-
CONDIÇÃO DE VULNERABILIDADE cipativa do Ministério da Saúde. As ações do
Ministério da Saúde caminham no sentido de
Como sistema universal, o SUS está organi- apoiar os movimentos sociais e os conselhos de
zado para atender a todos os que estiverem em saúde no exercício do controle social das polí-
território nacional. Para além de sua rede geral ticas de saúde, em especial as políticas de pro-
O artigo propõe uma reflexão crítica This article proposes a critical reflection
sobre o crescimento da interface entre on the increasing interaction of human
mobilidade humana e saúde global. mobility with global health. The idea that
Sustenta que a globalização econômica economic globalization did not bring
não propiciou a plena liberdade de forth a really full and free international
circulação internacional das pessoas. movement of people is supported by
Demonstra que a ampla maioria dos this analysis, as well as the fact that
deslocados forçados dirige-se aos most displaced people go to developing
países em vias de desenvolvimento, countries, which have already sheltered
que também têm acolhido cerca da in their territories nearly half of all
metade do contingente de migrantes international migrants. The European
internacionais. Aponta que a resposta response to the intense inflow of migrants
europeia ao aumento do fluxo de and refugees over the last years and
migrantes e refugiados ocorrido nos the recent Ebola epidemic in Western
últimos anos e a recente epidemia de Africa are considered to be reasons for
ebola na África Ocidental causaram o an increasing securitization of issues
incremento da securitização da temática concerning human mobility. Finally, this
da mobilidade humana. Por fim, o artigo article suggests that the centrality of the
propõe a retomada da centralidade do International Health Regulations should
Regulamento Sanitário Internacional be resumed as the best way to guarantee
como a melhor forma de garantir o direito the right to migration during worldwide
de migrar durante as crises sanitárias de health crises.
alcance global.
Key words: global health; human
Pa l av r a s - c h ave : s a ú d e g l o b a l; mobilit y; international migration;
m o b ili da d e humana; mi gr a çõ es refuge; International Health
internacionais; refúgio; Regulamento Regulations.
Marcos Santos/USP imagens
Sanitário Internacional.
grantes econômicos, elites, etc., encontram-se hoje há atualmente um direito de saída praticamen-
prejudicadas, pois muitas pessoas pertencem a mais te generalizado, enquanto o direito de entrada é
de uma categoria ao mesmo tempo ou ao longo de raramente reconhecido. Sendo a política migra-
sua vida (Wenden, 2015; Mezzadra, 2015). Do mesmo tória uma prerrogativa da soberania nacional,
modo, as tradicionais diferenças entre país de acolhi- os Estados podem restringir tanto o ingresso de
da, partida ou trânsito tornaram-se menos claras, eis “estrangeiros” em seu território como os direitos
que alguns países hoje pertencem simultaneamente dos que já nele se encontram. Um dos tratados
a mais de uma categoria. internacionais de direitos humanos com menor
O presente artigo propõe uma reflexão crítica adesão é o referente aos direitos dos migrantes.
sobre o crescimento da interface entre mobilidade Até hoje, apenas 48 Estados, e entre eles nenhum
humana e saúde global. Baseado em documentos país desenvolvido, aceitaram a Convenção das
e na literatura especializada, sustenta que a globa- Nações Unidas sobre a proteção dos direitos dos
lização econômica não propiciou a plena liberdade trabalhadores migrantes e de suas famílias, ado-
de circulação internacional das pessoas, e que a tada em 1990 (ONU/ACNUDH, s/d).
ampla maioria dos refugiados dirige-se aos países As dificuldades de acesso a direitos, porém, não
em vias de desenvolvimento, que também têm aco- têm causado a diminuição dos fluxos migratórios.
lhido cerca da metade do contingente de migrantes Em 2013, o número de migrantes internacionais foi
internacionais. A seguir, explora dois fenômenos estimado em 232 milhões de pessoas ou 3,2% da
que têm contribuído para que a mobilidade huma- população mundial, não havendo alterações signi-
na seja cada vez mais apresentada como “crise” ou ficativas desse percentual desde 1995 (ONU, 2013).
“problema”, no sentido pejorativo desses termos: Estima-se que 130 milhões de pessoas tenham par-
a resposta europeia ao aumento do fluxo de mi- tido do sul ao norte e de um país a outro do norte,
grantes e refugiados ocorrido nos últimos anos, e 110 milhões do norte ao sul e de um país a outro
e a epidemia de ebola na África Ocidental (2014- do sul (Wenden, 2013). As políticas migratórias
2015). Por fim, o artigo propõe a retomada da cen- restritivas predominam nos países desenvolvidos.
tralidade do Regulamento Sanitário Internacional Nos países em desenvolvimento, em geral, não há
(RSI) da OMS (Brasil, 2009) como melhor forma restrição de ingresso, mas a ausência de políticas
de enfrentar as crises sanitárias de alcance global, migratórias produz efeitos equivalentes aos das po-
pois sua implementação consagra o multilateralis- líticas restritivas. A facilidade de cruzar fronteiras
mo, pautado pelo interesse das populações e não porosas é sucedida por uma grande dificuldade de
de um Estado específico, e exige o fortalecimento obter a regularização migratória. A situação mi-
dos sistemas nacionais de saúde. gratória irregular torna a pessoa mais suscetível à
precarização das condições de trabalho, aumentan-
do o risco de degradação de sua saúde, dificultando
CARACTERÍSTICAS ATUAIS
assim a inclusão social e econômica dos migrantes,
DA MOBILIDADE HUMANA como ocorre, por exemplo, nos Brics (Brasil, Rús-
sia, Índia, China e África do Sul).
A liberdade de circulação internacional de pes- Nos últimos quatro anos, a persistência ou o
soas, considerada como uma das principais carac- agravamento de conflitos armados causou o au-
terísticas da globalização econômica, é exercida mento vertiginoso dos deslocamentos forçados.
de modo assimétrico no mundo contemporâneo. No ano de 2014, havia no mundo 59,5 milhões de
Cerca de 1,1 bilhão de turistas realizam viagens deslocados forçados, em sua maioria em decor-
internacionais a cada ano (UNWTO, 2015), en- rência de conflitos armados, entre eles 19,5 mi-
quanto mais de dois terços da população do planeta lhões de refugiados, 38,2 milhões de deslocados
permanecem absolutamente sedentários por falta internos e 1,8 milhão de solicitantes de refúgio,
de recursos materiais ou de rede de contatos que tendo a apatridia – a ausência ou perda de vínculo
permita seu deslocamento (Wenden, 2015). de nacionalidade com um Estado – afetado pelo
Quando se trata da radicação em um país menos 10 milhões de pessoas (UNHCR, 2015).
para fins de residência temporária ou definitiva, Elas deveriam beneficiar-se tanto do direito dos
os 196 Estados partes são obrigados a comunicar em Com o fortalecimento dos sistemas nacionais
tempo hábil à OMS as informações exatas e detalha- de saúde, os Estados seriam menos dependentes
das sobre a existência de qualquer evento que possa dos programas globais direcionados ao combate de
corresponder à definição de ESPII. Para honrar essa doenças específicas. Por conseguinte, a abordagem
obrigação, os Estados comprometeram-se a desenvol- internacional da saúde do migrante e do refugiado
ver capacidades nacionais que implicam a existência está relacionada aos embates que estão em jogo na
de um sistema de vigilância sanitária e epidemioló- formulação de políticas migratórias nacionais e re-
gica eficiente. Entretanto, em novembro de 2014, ape- gionais, mas igualmente aos que existem no próprio
nas 64 Estados declararam à OMS que as normas mí- campo da saúde global. Segundo Marcos Cueto
nimas concernentes às capacidades nacionais haviam (2015), desde os primórdios da cooperação inter-
sido respeitadas (OMS, 2015). A recente epidemia de nacional sanitária dois enfoques estão em disputa:
ebola revelou a precariedade dos sistemas de saúde o primeiro tem como foco o uso de tecnologias mo-
dos países mais atingidos pela epidemia (Guiné, Li- dernas para o controle de doenças, a captação de
béria e Serra Leoa), mas também a absoluta ausência recursos dos doadores privados e o vínculo entre a
de estratégias multilaterais ou de financiamento para saúde pública e o crescimento econômico, enquanto
que os Estados mais pobres pudessem implementar o o segundo, em geral chamado de enfoque social da
RSI (Fidler, 2015). Mais do que omissão, estudos re- saúde global, prioriza a redução das desigualdades
centes indicam o papel decisivo do Fundo Monetário entre Estados e dentro dos Estados. O desafio da
Internacional e do Banco Mundial na decadência dos mobilidade humana evidencia os limites da primei-
sistemas de saúde da África Ocidental, por meio de ra abordagem e convoca a comunidade acadêmica
políticas de ajuste estrutural que ocasionaram a de- a desenvolver com urgência, no âmbito da segunda,
missão ou a redução de salários do pessoal de saúde uma agenda de pesquisa crítica sobre a mobilidade
(Kentikelenis et al., 2015; Wallace et al., 2015). humana e a saúde global.
Bibliografia
gráfico 1
Taxa de mortalidade por homicídio/100 mil habitantes (faixa etária), MSP, 2013
29,1
25,8
21,2 20,6
17,0
14,5 14,5
8,1 9,2
5,5 4,6 4,3 3,8
1,9 1,1 2,4
4a 9a a a a
14 5-19 -24 5-29
a
34
a
39
a
44
a
49
a 4a -59a 64a -69a -74a ais
0- 5- - - - - - -5 5 - 0 m
10 1 20 2 30 35 40 45 50 5 60 65 7 e
75
gráfico 2
120
100
80
60
40
20
0
1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013
Masculino 93,4 91,3 99,6 110,9 111,3 111,4 99,9 91,1 69,4 49,8 43,9 33,6 27,8 28,5 26,1 23,7 29,5 26,8
Feminino 6,8 7,1 7,1 8 8,2 7,4 6,9 6,7 5 3,7 4,3 3 2,9 2,9 2,8 2,1 2,5 2,7
mulheres foi de 2,7 por 100 mil habitantes, no de drogas e armas (Adorno, 2002). Essa configura-
sexo masculino esse coeficiente foi de 26,8 por ção é facilitada por mudanças na economia global,
100 mil habitantes. que flexibilizaram os mercados e proporcionaram
Cabe destacar que alguns distritos adminis- maior abertura para atividades ilegais, bem como
trativos apresentam taxas mais elevadas do que a por novos padrões de desenvolvimento tecnológico
média para o MSP. No geral, os locais mais pe- e urbano (Adorno & Salla, 2007).
riféricos concentram o maior número de vítimas Os estudos de Zaluar (1994, 2004) são pio-
(Cardia, Adorno & Poleto, 2003). Embora, como neiros no deslindamento dessas transformações,
ressaltam Peres et al. (2011), a tendência de que- evidenciando a expansão do tráfico de drogas nas
da tenha sido mais intensa nas áreas de exclusão favelas e bairros populares no Rio de Janeiro e
social extrema ou de alta exclusão social, ultra- seus efeitos na sociabilidade, provocando graves
passando a encontrada para a população total, a desarranjos sociais e alta mortalidade por homicí-
redução observada não foi suficiente para mini- dio. No que concerne ao MSP, apesar de especifi-
mizar a desigualdade na distribuição no risco de cidades locais, a expansão do comércio de drogas e
morte por homicídio no município. seus efeitos sociais também adquirem centralidade
no entendimento das dinâmicas e tensionamentos
sociais na cidade (Feltran, 2008; Telles, 2010).
Alterações nos padrões
Vários fatores estão relacionados ao desenvol-
de criminalidade vimento dessa criminalidade, como a própria im-
plicação das agências responsáveis por combatê-
O crescimento dos homicídios e de outros -lo (Zaluar, 2004; Misse, 2007). Não é possível
crimes violentos no MSP, a partir dos anos 1980, entender a expansão dos mercados ilegais de
coaduna-se com alterações mais amplas na cri- drogas, por exemplo, sem considerar o apoio das
minalidade no país. Nesse momento, embora a agências estatais, especialmente na facilitação da
criminalidade individual permaneça, salienta-se circulação de drogas e armas (Zaluar, 2004). Nesse
a conformação de padrões mais organizados de sentido, configura-se uma rede de alianças, tro-
atuação, em moldes empresariais e com conexões ca de favores, práticas de extorsão, ou seja, uma
internacionais, especialmente em torno do tráfico rede de agenciamentos baseada em transações de
gráfico 3
900
800 791
708
700
600 610 546 543 563
573 510
500
460 461
400 397
300
401 346
300
200
100
0
2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013 2014
no período de 2002 a 20117, no MSP, quase a tota- as execuções desse tipo com suspeitas de envol-
lidade das vítimas era do sexo masculino (99,7%); vimento policial, inclusive em ações em que pes-
mais da metade eram negros e pardos (55%); e soas encapuzadas, por vezes em motos, passam
a grande maioria (80%) era jovem, com idades atirando, deixando para trás um alto número de
entre 15 e 29 anos (sendo a faixa etária de 20 a 24 vítimas fatais (Cano & Alvadia, 2008; Ruotti et
anos aquela com maior concentração de vítimas). al., 2014; Dias et al., 2015). Contudo, muito pouco
Ademais, o mesmo estudo mostra que a letalidade é feito para elucidar e punir esses casos, sendo que
policial está desigualmente distribuída pelo terri- a impunidade permanece como regra. Assim, ob-
tório, sendo que a maior parte dos mortos residia serva-se que o Estado e seus diferentes segmentos,
em distritos periféricos8. inclusive de segurança e justiça, atuam ainda hoje
Há de se destacar que a violência policial vai seguindo uma lógica de criminalização e repressão
além das intervenções no exercício da atividade de alguns grupos sociais, valendo-se da situação de
cotidiana. Historicamente, o país é marcado por criminalidade e insegurança pública para alargar
situações extralegais de execução perpetradas por seus mecanismos punitivos e, quando não, desres-
policiais, especialmente como integrantes de gru- peitar a própria lei.
pos de extermínio (Lemos-Nelson, 2006; Telles,
2010; Meneghetti, 2011). Atualmente, muitas são
Exposição direta e
indireta à violência
7 Totalizando 1.491 vítimas para todo o período. Número
menor em relação aos dados da Secretaria da Segurança
As diferentes transformações mencionadas
Pública referentes à categoria “mortos por intervenção
legal” (que foi de 2.618). têm seus efeitos nas experiências cotidianas da
8 Os dez distritos com maior número de pessoas mortas população, que passa a estar exposta a distintos
por policiais foram: Sapopemba (54 vítimas); Brasilândia tipos de vitimizações. Não só a eventos fatais,
(53); Cidade Tiradentes (39); Capão Redondo (36); Jaraguá
(33); Cachoeirinha (31); Itaquera (31); Lajeado (30); Cidade como apresentado em relação aos homicídios (ou
Ademar (29); e Cangaíba (28) (Sou da Paz, s/d). à letalidade policial), mas a agressões e eventos
500
450 443
400
350 335 343
300 307 280
266 259
274
250 250 242
200 215
210
150 158
123
100
50
0
2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013 2014
diversos, que podem fazer parte da experiên- algum dos 12 tipos de crimes ou ofensas considera-
cia direta das pessoas (nos casos em que se é a dos. Em relação aos 12 meses anteriores à realiza-
própria vítima ou pessoas muito próximas são ção da pesquisa, 21% afirmaram que o fato ocorreu
as vítimas, como familiares e/ou amigos) ou de pelo menos uma vez. No MSP, 36% dos entrevis-
situações mais difusas, indiretas (presenciadas tados disseram ter sido vitimados na vida e 24,1%
nos locais de moradia, na cidade ou mesmo aces- nos últimos 12 meses. Nesse estudo, porém, são as
sadas por canais de comunicação). agressões (14,3%), seguidas pelas discriminações
Segundo Borges (2013), com base em survey (10,7%), que têm maior peso dentre as vitimizações
do Instituto de Estudos Sociais e Políticos (Iesp- nos últimos 12 meses (para o total da amostra).
-Uerj), realizado em junho de 2010, a estimativa Furtos e roubos de objetos foram declarados por
da taxa de vitimização no país, nos últimos 12 9,8% e 3,6% dos entrevistados, respectivamente.
meses, foi de 14% para o conjunto de delitos É possível identificar também estudos que per-
abordados. Ademais, os dados obtidos indicam mitem comparações ao longo do tempo, como o do
uma distribuição desigual dessa vitimização, Centro de Políticas Públicas e Instituto de Ensino e
sendo que as capitais apresentaram uma taxa de Pesquisa (CPP/Insper, 2013), para o MSP, e a pes-
vitimização de 20,6%, significativamente maior quisa do Núcleo de Estudos da Violência (Cardia
do que as encontradas para os municípios da et al., 2013), para 11 capitais do país. Conforme o
periferia (15,3%) e do interior (10,7%). Entre os primeiro, verifica-se uma queda na vitimização no
delitos abordados, os crimes contra o patrimô- MSP para o conjunto de violências ou delitos pes-
nio (furtos e roubos) foram aqueles com maior quisados, embora permaneça em patamar eleva-
prevalência (ambos com 31,3%). do, passando de 46,6% (em 2003) para 39,5% (em
Já conforme pesquisa da Secretaria Nacional 2013). Assim, todos os delitos, de forma agrupada,
de Segurança Pública –Senasp (2013), a qual con- apresentaram queda, com exceção dos furtos, cuja
siderou o conjunto de municípios com mais de 15 diminuição não é significativa. Entre as ocorrên-
mil habitantes na área urbana do país, 32,6% dos cias que apresentam maior valor, em 2013, tem-se
entrevistados disseram ter sofrido ao longo da vida o estelionato (18,7%), a agressão verbal (15,2%) e
o furto (12,6%). A segunda pesquisa (Cardia et al., Esse sentimento de insegurança tem sido mensu-
2013) também verifica uma diminuição na exposi- rado por perguntas relacionadas ao medo das pes-
ção direta à violência (nos últimos 12 meses), em soas em circular por áreas da cidade e/ou bairro
relação ao conjunto de capitais selecionadas9, entre (durante o dia e à noite) e/ou o medo de ser vítima
1990 e 2010, exceto para roubo com uso de arma de violência. Embora os percentuais difiram entre
de fogo e ocorrências relacionadas ao consumo de os estudos, a insegurança geralmente é mais ele-
drogas (“alguém ofereceu drogas” e “alguém pediu vada na circulação pela cidade quando comparada
informação sobre onde comprar drogas”). No que ao bairro de moradia, bem como esse sentimento
concerne ao crescimento das últimas ocorrências, é crescente no período noturno (Borges, 2013; Se-
é possível relacioná-las à expansão do mercado nasp, 2013). No MSP, em 2010, a maior parte das
ilícito de drogas referido anteriormente, o qual é pessoas entrevistadas (39,1%) relatou pouca segu-
percebido pela população com mais intensidade rança ao andar à noite sozinha pela vizinhança, e
na sua vida cotidiana. A desagregação dos dados 17,9% mencionaram nenhuma segurança (Cardia
por faixa etária demonstra ainda que são os mais et al., 2013). Ademais, é possível apontar diferen-
jovens os mais vitimados. ciações em relação ao perfil dos entrevistados, na
maioria das vezes são as mulheres e as pessoas
com mais idade, bem como aquelas com maior po-
CONSEQUÊNCIAS DA EXPOSIÇÃO
der aquisitivo ou escolaridade, as que apresentam
À VIOLÊNCIA URBANA maior medo (Borges, 2013; Senasp, 2013). Como
consequência, diferentes estratégias são referidas
As consequências da exposição direta ou in- como forma de proteção individual, como evitar
direta à violência são muitas e envolvem desde sair de casa portando dinheiro, objetos de muito
lesões físicas e morte até efeitos menos palpáveis, valor ou outros pertences que chamem atenção
que se expressam através de sentimentos difusos (78,1%), frequentar locais desertos ou eventos com
de medo e insegurança, que geram sofrimento, poucas pessoas circulando (73%), sair à noite ou
levam a mudanças de comportamento e inter- chegar muito tarde em casa (64,3%) ou mesmo mu-
ferem nos padrões de sociabilidade (Caldeira, dar de trajeto entre a casa e o trabalho ou a escola
2000; Cardia et al., 2013; Borges, 2013). Além ou lazer (33,7%), entre outros (Senasp, 2013).
disso, embora raras no Brasil, existem inúmeras Diversos também são os efeitos dessa vitimi-
pesquisas internacionais que demonstram a exis- zação e da insegurança na saúde da população.
tência de associação entre exposição à violência Segundo Wright (2006), o sentimento de insegu-
e diversos efeitos na saúde (Guerra et al., 2003; rança parece funcionar como um mediador entre
Wright, 2006; Fairbrook, 2013). a exposição à violência e as condições mórbidas
Em relação ao sentimento de insegurança no através das mudanças comportamentais, como
país provocado pelas diferentes vitimizações à adoção de comportamentos de risco, isolamento
violência urbana, alguns estudos mostram como social e comprometimento do cuidado em saúde.
esse sentimento é elevado, tendo efeitos específicos Na infância e adolescência, a exposição direta
na rotina das pessoas (Cardia et al., 2013; Senasp, ou indireta à violência comunitária ou “urbana”
2013; Borges, 2013; CPP/Insper, 2013). Embora tem se mostrado positivamente associada a trans-
a relação entre vitimização e medo da violência torno de estresse pós-traumático, abuso de subs-
possa não ser tão direta, ou seja, os mais vitimados tância, problemas externalizantes (comportamento
nem sempre são os mais inseguros (Aguiar, 2005), antissocial e violento) e internalizantes (depressão
não é possível desconsiderar a relação que também e ansiedade), baixa autoestima, insegurança na re-
é encontrada entre esses fenômenos (Borges, 2013). lação com os pais ou cuidadores e asma (Guerra
et al., 2003; Wright, 2006; Apter et al., 2010; Fair-
brook, 2013). Em adultos, Koss et al. (1990) encon-
traram associação entre vitimização direta e auto-
9 Belém, Belo Horizonte, Fortaleza, Goiânia, Manaus, Porto
Alegre, Porto Velho, Recife, Rio de Janeiro, Salvador e percepção do estado de saúde em mulheres, sendo
São Paulo. que vítimas de violência comunitária avaliam o
violenta vem apresentando, como seu reverso, a que a perspectiva e as ações da saúde pública,
intensificação de ações de repressão. Assim, a alta em conjunção com diferentes campos, tornam-
letalidade policial conectada ao recrudescimen- -se essenciais não só para minimizar os danos
to do encarceramento bem como a permanência causados pela violência urbana, mas para alterar
de ações de execuções extralegais com suspeita a própria maneira de conceber essa violência e as
de envolvimento policial revelam que a visão di- possibilidades para combatê-la. De forma central,
fundida sobre a promoção da segurança no país destaca-se o auxílio na disseminação e consolida-
ainda está muito atrelada a estratégias reativas, ção de um olhar preventivo na promoção da saúde
por vezes violentas e arbitrárias. É nesse sentido e bem-estar da população como um todo.
Bibliografia
MACHADO DA SILVA, Luiz Antonio. Vida Sob Cerco. Violência e Rotina nas Favelas do Rio de
Janeiro. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 2008.
MENEGHETTI, F. K. “Origem e Fundamentos dos Esquadrões da Morte no Brasil”, in XXXV
Encontro da ANPAD. Rio de Janeiro, setembro de 2011. Disponível em: http://www.
anpad.org.br/admin/pdf/EOR1233.pdf. Acesso em: 10/nov./2015.
MISSE, M. “Mercados Ilegais, Redes de Proteção e Organização Local do Crime no Rio de
Janeiro”, in Estudos Avançados, 21(61), 2007, pp. 139-57.
Ministério da Saúde. Informações de Saúde. Disponível em: http://datasus.saude.gov.br/
informacoes-de-saude/tabnet. Acesso em: 4/nov./2015.
Mitchell, S. J. et al. “How Does Violence Exposure Affect the Psychological Health and
Parenting of Young African-American Mothers?”, in Social Science & Medicine, 70, 2010,
pp. 526-33.
Neme, C. Relatório 15 anos da Ouvidoria da Polícia. São Paulo, Ouvidoria da Polícia do
Estado de São Paulo, Imprensa Oficial, 2011.
Peres, M. F. T. et al. “Queda dos Homicídios em São Paulo, Brasil: uma Análise Descritiva”,
in Revista Panamericana de Salud Pública, 29(1), 2011, pp. 17-26.
PERES, M. F. T. “Prevenção, Atenção e Controle de Violências Interpessoais Comunitárias”,
in Jairnilson Silva Paim; Naomar de Almeida Filho (orgs.). Saúde Coletiva: Teoria e Prática.
1a ed. Rio de Janeiro, MedBook, 2014, pp. 437-64.
. “Violência e Homicídios: Emergência, Crescimento e Consolidação de um
Problema de Saúde de Dimensão Coletiva”, in Carlos Augusto Monteiro; Renata Bertazzi
Levy. Velhos e Novos Males da Saúde no Brasil. De Geisel a Dilma. São Paulo, Hucitec,
Nupens/USP, 2015, pp. 348-74.
RUOTTi, C. et al. “A Vulnerabilidade dos Jovens à Morte Violenta: um Estudo de Caso no
Contexto dos ‘Crimes de Maio’”, in Saúde e Sociedade, 23(3), 2014, pp. 733-48.
Salla, F. “Sistema Prisional no Brasil: Balanço de uma Década”, in Núcleo de Estudos da
Violência da USP (org.). 5o. Relatório Nacional sobre os Direitos Humanos no Brasil 2001-
2010. 1a ed. São Paulo, Urbania, 2012, pp. 150-7.
SENASP – Secretaria Nacional de Saúde Pública. Pesquisa Nacional de Vitimização, 2013.
Disponível em: www.crisp.ufmg.br/wp-content/uploads/2013/10/Relatório-PNV-
Senasp_final.pdf. Acesso em: 10/nov./2015.
SOU Da PAZ. Perfil das Pessoas Mortas na Cidade de São Paulo por Policiais em Serviço (2002-
2011), s/d. Disponível em: http://www.soudapaz.org/upload/pdf/perfil_das_pessoas_
mortas_pelas_pol_cias_na_cidade_de_sp_2002_a_2011.pdf. Acesso em: 10/nov./2015.
Telles, V. da S. Cidade: Tramas, Dobras e Percursos. Tese de livre-docência. São Paulo,
Departamento de Sociologia da FFLCH-USP, 2010.
UNODC – United Nations Office on Drugs and Crime. Global Study on Homicide 2013: Trends,
Contexts, Data. Viena, Unodoc, 2013.
WHO – World Health Organization. Hidden Cities: Unmasking and Overcoming Health
Inequities in Urban Settings. Geneva, WHO, 2010.
Wright, R. J. “Health Effects of Socially Toxic Neighborhoods: the Violence and Urban
Asthma Paradigm”, in Clinics in Chest Medicine, 27, 2006, pp. 413-21.
Zaluar, A. O Condomínio do Diabo. Rio de Janeiro, Editora UFRJ, 1994.
. Integração Perversa: Pobreza e Tráfico de Drogas. Rio de Janeiro, Ed. FGV, 2004.
efeitos indiretos estão relacionados às influências alcança o órgão-alvo do vetor, este está apto para
climáticas na propagação de doenças disseminadas transmiti-lo a outro hospedeiro vertebrado sus-
pela água, pelos alimentos e por vetores. Muitas cetível. O tempo entre o repasto infectivo rea-
doenças infecciosas cujos agentes são transmiti- lizado pelo vetor e o momento em que este se
dos por vetores – como as leishmanioses, tendo encontra apto para transmitir o agente infectante
flebotomíneos como vetores da leishmânia, as ar- é denominado de período de incubação extrínse-
boviroses (dengue, encefalites, febre amarela, febre co (PIE), que é sensível à temperatura, sendo um
do Nilo Ocidental) e a filariose bancroftiana, com importante componente na dinâmica de transmis-
mosquitos atuando na transmissão de seus agen- são de um patógeno. Com efeito, em condições de
tes – são sensíveis a mudanças de temperatura e laboratório, foi demonstrado que o aumento de
exposição a condições extremas. O aumento das 2ºC na temperatura reduz em até quatro dias o
temperaturas resulta em alterações climáticas que PIE do vírus DENV-2 na fêmea de Aedes aegypti.
podem levar à emergência e expansão no espaço Dessa forma, quanto mais alta é a temperatura
geográfico para maiores latitudes e altitudes e na (até certos limites), menor é o PIE, resultando em
dilatação dos períodos de tempo favoráveis das mosquitos infectantes mais jovens e com tempo
doenças (Harrigan et al., 2014; Rossati et al., 2014). maior de vida na condição de transmissor.
O desenvolvimento dos flebotomíneos e dos Mudanças climáticas associadas ao aumento
mosquitos é holometabólico, englobando as fases de chuvas ou de temperatura podem afetar a dis-
de ovo, larva (com quatro estádios), pupa e adulto. tribuição espacial e temporal dos insetos vetores
Os adultos têm importância para a saúde pública, de patógenos e das doenças infecciosas corres-
pois muitos são vetores biológicos de patógenos pondentes, aumentando a transmissão. Entretan-
humanos, como o Aedes aegypti (vetor dos vírus to, alguns estudos apontam que os períodos de
da dengue – DENV – e da febre amarela), o Culex seca também são igualmente importantes, pois o
quinquefasciatus (vetor do vírus da febre do Nilo armazenamento de água de maneira inadequada
Ocidental e da filária Wuchereria bancrofti) e a pode aumentar a oferta de criadouros para de-
Lutzomyia longipalpis (vetor de Leishmania in- terminados mosquitos vetores (Barclay, 2008;
fantum). O tempo de desenvolvimento entre o ovo Meason & Paterson, 2014). É importante apontar
e o adulto depende de variáveis climáticas, espe- que os aspectos sociais, políticos e econômicos,
cialmente a temperatura: quanto mais quente, mais como as migrações humanas, a globalização dos
rápido é o ciclo e, consequentemente, maior pode transportes, o desmatamento e a pobreza nas
ser a densidade da população de adultos. Pesquisas áreas urbanas, podem intensificar os impactos
em laboratório mostram que mosquitos podem re- causados pelas mudanças climáticas, facilitando
duzir em até um dia e meio o seu tempo de desen- o aumento e a expansão da população de vetores
volvimento quando a temperatura aumenta em 2ºC (Barcellos et al., 2009).
(Rueda et al., 1990). Dessa forma, o aquecimento Nas seções a seguir são abordados aspectos
global poderia aumentar a densidade da população do aquecimento global e suas consequências
de adultos desses insetos, proporcionando contato para a emergência de algumas doenças trans-
mais frequente entre vetores e hospedeiros (huma- mitidas por vetores, como leishmanioses, arbo-
nos ou animais) e, consequentemente, aumentando viroses e filarioses, e mosquitos (“pernilongos”,
a disseminação das doenças. “muriçocas” ou “carapanãs”) que têm relevância
Um vetor, ao picar um hospedeiro vertebrado como causadores de incômodos.
infectado, ingere junto com o sangue o agente
etiológico de determinada doença. Uma vez no
intestino do vetor, esse agente, que pode ser um
FLEBOTOMÍNEOS E LEISHMANIOSES
vírus ou um protozoário, precisa estar adaptado a
resistir a barreiras físicas e imunológicas do inse- Leishmanioses são infecções que têm como
to, possibilitando alcançar o órgão-alvo (glândula agentes diversas espécies de protozoário do gê-
salivar ou uma parte específica do intestino) a nero Leishmania transmitidas por várias espécies
partir do qual será transmitido. Quando o agente de flebotomíneos e podem apresentar manifesta-
de São Paulo instiga a uma possível associação. incidência superior a 300 casos/100 mil habitantes/
Desde a introdução da febre amarela urbana no ano (CVE, s/d), limite utilizado pelo Ministério
Brasil, na vigência do período colonial, nunca se da Saúde para considerar um local com epidemia
registrou em São Paulo essa doença, cujo vírus (SES, 1985). Novamente, destaca-se que o ambien-
era transmitido pelo Aedes aegypti. Em 1985, ano te da cidade de São Paulo, embora menos favorá-
em que se detectou a presença desse mosquito vel, foi cada vez menos desfavorável para o vírus
em São Paulo, a cidade já fora arrolada entre os e sua relação com o vetor do que o encontrado em
municípios com PEs positivos. Em oposição São José do Rio Preto.
ao que ocorrera em São José do Rio Preto, A persistência e a intensidade da dengue
mesmo diante da infestação contínua do em São José do Rio Preto são esperadas por se
vetor em PEs, as delimitações não detec- tratar de cidade de clima tropical e com condi-
tavam a infestação nos domicílios. Somente em ções ideais para o desenvolvimento do vetor e de
1992, sete anos após a primeira constatação do sua relação com o patógeno. Quanto ao que vem
mosquito, é que foi confirmada a extrapolação ocorrendo na capital, nos parece que o enfrenta-
dos focos e a infestação domiciliar. Tal compor- mento de epidemias de dengue seja uma novidade
tamento atesta que o ambiente em São Paulo não do quadro epidemiológico, tendo-se em conta a
foi favorável para o Aedes aegypti como fora em ausência de eventos registrados de febre amarela e,
São José do Rio Preto (Chiaravalloti-Neto, 1997; presume-se, o fato de nunca ter havido infestação
Nascimento, 2001). pelo vetor antes da aqui relatada.
Na história da autoctonia da dengue na cidade Na década de 1980, a constatação da ausên-
de São Paulo, os primeiros casos são de 1999. Em cia de infestação domiciliar pelo Aedes aegypti
2001, 14 anos após a detecção de focos do mos- levou à hipótese de que essa espécie não seria um
quito e sete anos após a confirmação da infestação problema para a cidade. Mesmo se ocorresse a
domiciliar, pela primeira vez, o número de casos infestação domiciliar, a cidade não seria atingida
ultrapassou uma centena. Em 2007, o número de de modo importante por epidemias de dengue.
casos ultrapassou a barreira do milhar. Os anos de Na década de 1990, considerou-se uma segunda
2014 e 2015 são aqueles com maiores números de hipótese na qual o risco de epidemias de dengue
casos, respectivamente, 30.066 e 44.674. Em 2015, seria menor na cidade em função da presença de
até outubro, pela primeira vez, São Paulo teve uma poluentes atmosféricos, com interferência negati-
Filipe Nunes/SECOM-PMO
Muitos referem tratar-se de um rio morto; esse mosquito não é só para amortecer o incômo-
porém, essa condição não é verdadeira. Fora do, mas para minimizar a transmissão de Wuche-
alguns animais, como a capivara e a garça, que reria bancrofti, agente etiológico da filariose, que
frequentam a área, a vida nesse rio concentra-se na condição avançada da infecção é popularmente
nas bactérias anaeróbicas, cujo processamento conhecida como elefantíase. Essa desafiadora do-
dos depósitos dos sedimentos produz o odor de ença é alvo de combate exaustivo, com a meta de
gases como o H2S (gás sulfídrico), característico erradicá-la em breve, porém, não pela despoluição
do ar que se respira nas imediações (Cunha et das águas da malha urbana, mas pela eliminação
al., 2011). É nas margens do canal, nos lugares da infecção no hospedeiro humano, pois a droga
protegidos pelo acúmulo de resíduos flutuantes, utilizada é eficaz (Fontes et al., 2012).
que se concentram as larvas e pupas de Culex A maior preocupação recai sobre a compe-
quinquefasciatus, agrupadas em milhares de in- tência que tem esse culicídeo de veicular vários
divíduos, na superfície contígua à lâmina d’água. arbovírus, como exemplo o agente da febre do
As larvas permanecem rentes à superfície, onde Nilo Ocidental, infecção que, a partir das pri-
respiram o ar atmosférico por meio de seus si- meiras notificações em 1999, disseminou-se pela
fões. Ao mesmo tempo se alimentam ao pulsarem América do Norte. O mais grave é que essa do-
suas escovas orais, mecanismo que conduz para ença pode evoluir para encefalites, paralisia e
a boca os microrganismos e detritos do líquido morte (Harrigan, 2014).
que compõem sua dieta. Ficam livres dos pre- Em época de alterações climáticas, que faci-
dadores, pois ali não existem. Peixes e larvas de litam a emersão e a dispersão das doenças asso-
insetos que fazem a regulação natural das larvas ciadas aos vetores, deixar esse mosquito proli-
de mosquitos respiram por brânquias, mas como ferar livremente é no mínimo uma imprudência.
extrair o oxigênio de onde não há? Rapidamente Nossos gestores do ambiente precisam redobrar
pupam, e logo emergem os adultos. As fêmeas a atenção sobre o estado em que se encontra
são fertilizadas ali mesmo nas margens e depois nossa água doce depois de utilizada, sendo a
voam para o entorno, onde praticam a hematofa- ameaça dos mosquitos mais uma justificativa a
gia na população humana das proximidades. Sen- fortalecer a política saudável.
do espécie de acentuada antropofilia, atormenta Em suma, o quadro futuro das mudanças cli-
os moradores, constituindo-se em uma verdadeira máticas e das doenças veiculadas por insetos nos
“praga urbana” (Morais, Marrelli & Natal, 2006). grandes centros urbanos é um exercício de futuro-
Não há transmissão de patógenos em São Pau- logia. Mas, pelo princípio da precaução, bastante
lo por esse mosquito, sendo o incômodo pelas caro à saúde pública, é importante considerá-lo e
picadas e suas reações os motivos que justificam tomar as medidas preventivas necessárias, ao in-
o combate a esse culicídeo. A prefeitura de São vés de tentar mitigar as suas graves consequências,
Paulo arca com os custos e a habilidade de seus caso o quadro se confirme. O problema, tratando-
técnicos para amenizar a situação; porém, a so- -se de insetos vetores ou incômodos, das doenças
lução definitiva somente virá com a despoluição aqui vistas – leishmaniose visceral, dengue, febre
desse manancial. Essa situação se replica pela amarela, chikungunya e zika – é que as medidas
rede de córregos de nossa urbe e se espalha pelas de controle conhecidas e atualmente utilizadas
cidades brasileiras, configurando-se como um au- parecem não dar conta, havendo a necessidade de
têntico problema de saúde pública nacional. investimento em pesquisas para desenvolvimento
O conflito é mais agudo em lugares como a de novos e mais efetivos métodos de vigilância e
área metropolitana de Recife, onde a luta contra controle vetorial e/ou de vacinas.
ALVAR, J. et al. “Leishmaniasis Worldwide and Global Estimates of Its Incidence”, in PLoS
ONE, 7(5), 2012, p. e35671.
ARAUJO, R. V. et al. “São Paulo Urban Heat Islands Have a Higher Incidence of Dengue than
Other Urban Areas”, in The Brazilian Journal of Infectious Diseases, 19(2), 2015, pp. 146-55.
BARCELLOS, C. et al. “Mudanças Climáticas e Ambientais e as Doenças Infecciosas: Cenários
e Incertezas para o Brasil”, in Epidemiologia e Serviços de Saúde, 18, 2009, pp. 285-304.
BARCLAY, E. “Is Climate Change Affecting Dengue in the Americas?”, in The Lancet, 371,
2008, pp. 973-4.
BHATT, S. et al. “The Global Distribution and Burden of Dengue”, in Nature, 496(7.446),
2013, pp. 504-7.
CASANOVA, C. et al. “Distribution of Lutzomyia longipalpis Chemotype Populations in São
Paulo State, Brazil”, in PLoS Neglected Tropical Diseases, 9(3), 2015, p. e0003620.
CHIARAVALLOTI-NETO, F. “Descrição da Colonização de Aedes aegypti na Região de São
José do Rio Preto, São Paulo”, in Revista da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical, 30,
1997, pp. 279-85.
CUNHA, D. G. et al. “Contiguous Urban Rivers Should Not Be Necessarily Submitted to the
Same Management Plan: the Case of Tietê and Pinheiros Rivers (São Paulo, Brazil)”, in
Anais da Academia Brasileira de Ciências, 83(4), 2011, pp. 1.465-80.
CVE – Centro de Vigilância Epidemiológica Professor Alexandre Vranjac. Secretaria de
Saúde do Estado de São Paulo. Distribuição dos Casos de Dengue Autóctones segundo o
Município Provável de Infecção e Casos Importados de Outros Estados segundo o Município
de Residência no Estado de São Paulo. Disponível em http://www.cve.saude.sp.gov.br/
htm/zoo/. Acessado em: 22/11/2015.
FONTES, G. et al. “Lymphatic filariasis in Brazil: Epidemiological Situation and Outlook for
Elimination”, in Parasities & Vectors, 26(5), 2012, p. 272.
HARBACH, R. E. “Culex pipiens: Species Versus Species Complex Taxonomic History and
Perspective”, in Journal of the American Mosquito Control Association, 28(4 Suppl), 2012,
pp. 10-23.
HARRIGAN, R. J. et al. “A Continental Risk Assessment of West Nile Virus Under Climate
Change”, in Global Change Biology, 20(8), 2014, pp. 2.417-25.
LOUISE, C.; VIDAL, P. O.; SUESDEK, L. “Microevolution of Aedes aegypti”, in PLoS ONE, 10(9),
2015, p. e0137851.
MEASON, B.; PATERSON, R. “Chikungunya, Climate Change, and Human Rights”, in Health
and Human Rights, 16, 2014, pp. 105-12.
MORAIS, S. A.; MARRELLI, M. T.; NATAL, D. “Aspectos da Distribuição de Culex (Culex)
quinquefasciatus Say (Diptera: Culicidae) na Região do Rio Pinheiros, na Cidade de São
Paulo, Estado de São Paulo, Brasil”, in Revista Brasileira de Entomologia, 50(3), 2006, pp.
413-18.
NASCIMENTO, C. B. A Baixa Transmissão de Dengue na Região Metropolitana de São Paulo
no Contexto das Demais Regiões do Estado: Razões e Perspectiva. Tese de doutorado. São
Paulo, Faculdade de Saúde Pública da USP, 2001.
PAHO – Pan American Health Organization. Regional Office of the World Health
Organization – WHO. “Leishmaniases: ‘Epidemiological Report of the Americas’”, in
Report Leishmaniases n. 32.015.
Este artigo apresenta o referencial no This article presents the framework upon
qual a estratégia de Cidades Saudáveis, which the strategies for the WHO Healthy
proposta pela OMS, se apoia. Apresenta Cities project are based. It shows data
dados da realidade urbana brasileira on the current Brazilian urban reality,
atual que indicam a necessidade de which suggest a need for changing the
mudar o enfoque de intervenção approach to urban health, given the
em saúde urbana, tendo em vista a complexity of problems and strategies
complexidade dos problemas e das needed for enhancing the building of
estratégias necessárias para ampliar o local capacities. It makes comments on
desenvolvimento das potencialidades the project development methodology,
locais. Comenta a metodologia de which has been drafted and redrafted
desenvolvimento do projeto, que tem according to the theoretical framework:
sido construída e reconstruída em commitment from local governments to
função do referencial de abordagem: public inter-sector policies, population
compromisso das autoridades locais empowerment and the pursuit of social
com políticas públicas intersetoriais, equality. It answers the initial question
empoderamento da população e busca that this is an approach that demands
de equidade social. Responde à questão new action strategies for urban health
inicial de que essa é uma forma de development.
abordagem que exige novas estratégias
de ação em saúde urbana. Keywords: health promotion; urban
health; Healthy Cities.
Palavras-chave: promoção da saúde;
saúde urbana; Cidades Saudáveis.
Marcos Santos/USP imagens
para a de irrelevância estrutural na nova econo- seus corolários, vamos apresentar alguns da-
mia, aprofundando as grandes desigualdades en- dos que nos ajudam a identificar problemas e
tre desenvolvidos e em desenvolvimento (Castells potencialidades do Brasil urbano e apresentar
& Borja, 1996; Castells, 1999). conceitos e princípios da estratégia de Cidades
Como aplicar esse modelo e essas ideias no Saudáveis e sua aplicação nos municípios bra-
contexto brasileiro neste momento em que se sileiros como alternativa aos modelos econo-
vem perdendo o que se construiu nos últimos 12 micistas de desenvolvimento.
anos? O país vinha fortalecendo sua economia e
se inserindo no processo de globalização, che-
gando a ocupar a sétima posição na comparação
DESENVOLVIMENTO URBANO,
do PIB dos países do mundo. Que fazer agora INIQUIDADES EM CONDIÇÕES
com um PIB de -0,24 em outubro de 2015, com
uma taxa de desemprego que chegou a 7,60 e DE VIDA E SAÚDE NO BRASIL
uma taxa de inflação de 10,5%, voltando à si-
tuação de 1992 (Ipea, 2015)? A comparação de O Brasil vem sendo marcado desde o início
dados do Brasil no Índice de Desenvolvimento do século XX por grandes transformações, entre
Humano (IDH) de 2010 ressalta desigualdades elas o intenso processo de urbanização. Em seis
regionais entre o Norte e Nordeste e o Sul e Su- décadas, o Brasil se transformou, de predomi-
deste. As condições de educação da população nantemente rural, em um país com mais de 85%
não têm acompanhado o crescimento dos ou- da população vivendo em áreas predominante-
tros indicadores, e isso não tem permitido que o mente urbanas. Em 1940 a população urbana do
Brasil ocupe melhores condições nesse ranking país era de 10.891.000 habitantes, 31,24% da
– IDH –, reforçando que as desigualdades ainda população total; em 2010, a população urbana
precisam de maior atenção dos governos no que passou a ser de 160.092.160 habitantes, 84,36%
se refere a políticas públicas (PNUD, 2011). da população total, com uma projeção grande
Discutir e resolver esses problemas estruturais de crescimento para 2050 chegando a mais de
que afetam a saúde tem se tornado um grande 200% (Gráfico 1) (Borges, Ervatti & Jardim,
desafio para gestores públicos de todas as esfe- 2015; Santos & Silveira, 2004; Santos, 1996).
ras governamentais. A partir da Constituição de O tema “habitação”, especialmente nas cida-
1998, foi definido no artigo 196, de relevância des onde se concentra a maior parte dela, tem sido
pública, que “[...] saúde é direito de todos e dever alvo das atenções das entidades internacionais de
do Estado”. Regulamentando as premissas dessa pesquisas sociais há mais de 40 anos. Com efeito,
mesma Constituição, foi criado o Sistema Único para atender a esse objetivo foi criado, no âmbito
de Saúde (SUS), através da Lei Federal 8.080/90 e da Organização das Nações Unidas (ONU), o Fó-
da Lei 8.142 do mesmo ano, que tem como princí- rum Habitat, cuja primeira reunião foi realizada
pios a equidade, a universalidade, a integralidade em Vancouver, Canadá, em 1976, a segunda, na
e a participação social. A partir daí ficou garan- Turquia, em Istambul, em 1996, com o reconheci-
tido o direito a saúde, permitindo que todos pu- mento da rápida urbanização como um fenômeno
dessem usufruir dos serviços públicos ofertados de escala mundial, e a terceira será no próximo
por hospitais, unidades básicas de saúde (UBS), ano e como as anteriores. Os organizadores pre-
ambulatórios de atendimento a saúde (AMAs), tendem que ela seja “uma oportunidade para fir-
ambulatórios de especialidades (AMEs) e outros. mar compromissos de futuro e bem-estar com a
Entretanto, ter direito a saúde não consiste apenas vida, combatendo desigualdades sociais e segre-
em ter acesso a um sistema de saúde para todos. gações, buscando transformar cidades em espaços
Ter direito a saúde é também ter moradia digna, acessíveis para todos, democráticos, lugares para
educação, trabalho, lazer, cultura, transporte pú- efetivação dos direitos e exercício de oportunida-
blico de qualidade, entre outros. des” (Balbim & Amanajas, 2014). Desde o início
Para responder à questão inicial e discutir o fórum vem defendendo que as condições dos
como produzir saúde socialmente em todos os assentamentos humanos “são determinantes da
250
237,7
200
Milhões de habitantes
150 138
111 Urbana
100 Rural
80,4
52,1
50 38,8 41,1 38,6 35,8
28,3 33,2 31,3 31,8
12,9 18,8 16,3
0
1940 1950 1960 1970 1980 1990 2000 2050*
*Projeção da ONU
qualidade de vida, cuja melhoria é pré-requisito mento da população. Enquanto a população bra-
para a plena satisfação das necessidades básicas, sileira cresceu 9,8% entre 2004 e 2013, o número
tais como: emprego, habitação, serviços de saúde, total de domicílios particulares no Brasil cresceu
educação e lazer”. 25,1% no mesmo período. Esse processo impacta
Tanto a urbanização brasileira como a pro- a necessidade de expansão da oferta de habitações
posta de Cidades Saudáveis estão inseridas nos com acesso a serviços básicos e é influenciado
pressupostos do Fórum Habitat. Se tivéssemos por fatores diversos, que vão desde as mudan-
que preparar um relatório da situação do Brasil ças demográficas da população (queda das taxas
para contribuir com as discussões daquela confe- de fecundidade, envelhecimento populacional,
rência e ao mesmo tempo verificar se a realidade mudanças nos arranjos familiares) até os fatores
é passível de uma ação em promoção da saúde, econômicos (aumento do rendimento médio da
os indicadores que íriamos utilizar seriam os re- população, crescimento econômico, dinâmica do
lacionados aos princípios dessa área de atuação: mercado imobiliário e do setor de construção ci-
a equidade, a participação social, a intersetoria- vil, expansão do crédito e programas de habitação
lidade e a sustentabilidade, entre outros. popular). Essa realidade nos permite pensar que
Com base nesses pressupostos do Fórum Ha- nosso país se beneficiaria muito com a introdução
bitat e pensando em como tornar as cidades brasi- desse tipo de agenda.
leiras mais saudáveis, justas e igualitárias, fomos No Brasil, o número médio de moradores
analisar alguns indicadores da necessidade dessa por domicílio em 2013 foi de 3,1, com destaque
forma de intervenção no Brasil, com o objetivo de para a Região Norte, onde havia 3,6 pessoas por
melhorar a qualidade de vida e saúde da popula- domicílio, influenciado pelo Amazonas, com
ção residente no país. 3,9 pessoas por domicílio, e pelo Amapá, com
Verificamos que o número total de domicílios 3,8 pessoas por domicílio, enquanto no Rio
vem se expandindo em ritmo superior ao cresci- Grande do Sul e no Rio de Janeiro foi registra-
da a menor razão entre habitantes e domicílios: com coleta de esgoto e fossa séptica é de 64,3%.
2,8 (PNAD/IBGE, 2013). A maior cobertura permaneceu com a Região
Nas cidades, desde 1940 até hoje, condições Sudeste (88,7%), enquanto a menor (19,3%) foi
inadequadas de habitação foram fazendo parte encontrada na Região Norte. Em relação ao
do quadro de mudanças urbanas, agravando os abastecimento de água em 2013, 85,3% das habi-
problemas de saúde, que se evidenciaram pelo tações tinham água encanada. O maior aumento
aumento das doenças transmissíveis relaciona- de 2012 para 2013 foi registrado na Região Sul,
das à falta de saneamento básico, e também pelo que passou de 87,1% para 88,5%, sendo que na
aumento das doenças respiratórias relacionadas Região Centro-Oeste ocorreu a maior redução
a umidade e falta de ventilação de casas auto- – de 86% para 84%. Na coleta de lixo, 89,8%
construídas e à poluição atmosférica (Jacobi das habitações foram beneficiadas. A Região Su-
apud Comarú & Westphal, 2004). deste teve a liderança na oferta de serviço, com
Como parte desse quadro de mudanças, o fe- 96,3% de casas atendidas, e o Norte e o Nordes-
nômeno da favelização demonstra a gravidade te mantiveram as menores proporções (78,8% e
das consequências do processo de urbanização. 78,5%, respectivamente). A energia elétrica che-
O problema do crescimento do número de fave- ga a 99,6% de domicílios, exceto para a Região
las que emergiu entre os anos de 1980 e 1991 e Norte, que tem 97,7% ligados à rede. O telefone
que continua se ampliando, especialmente nas chega a 92,7% dos domicílios brasileiros. Cada
grandes metrópoles do país, chega, até o Censo vez mais casas têm somente telefone celular. As
de 2010, a expor a precariedade de condições iniquidades de acesso a esses serviços públicos
de habitação em que vivem 5,6% da população ficam evidenciadas nessas diferenças entre re-
dos municípios brasileiros, perfazendo um to- giões do país, e se fizermos uma análise mais
tal de 3.224.529 habitantes de casas nas favelas, profunda, facilmente encontraremos diferenças
correspondendo a 6.329 favelas localizadas em entre estados e entre municípios do país.
323 municípios brasileiros. Condições de vida e A mobilidade urbana é atualmente um dos
habitação nos aglomerados subnormais mais co- problemas mais discutidos no mundo globaliza-
nhecidos por favelas são altamente desfavoráveis do. Tomou grande proporção diante da amplia-
à saúde e condição importante para o aumento ção do processo de urbanização – as cidades
do tráfico e uso de drogas e da violência urbana em todo o mundo não param de se expandir e
(Comarú & Westphal, 2004). adensar, criando problemas para os adminis-
Agora, 15 anos depois, esse número deve tradores locais, que não conseguem se adequar
estar muito maior, dado que pouco foi feito em de maneira eficiente para resolver grandes con-
termos de políticas públicas do governo para gestionamentos, excesso de veículos nas ruas,
estancar esse crescimento. Nos últimos anos a avenidas e rodovias, dificuldades no uso dos
política pública federal do Ministério das Cida- espaços públicos, poluição do ar, com danos à
des, Minha Casa, Minha Vida, está se propondo saúde da população e ao meio ambiente. Esses
a diminuir o déficit de habitação para a popu- problemas afetam a população como um todo:
lação carente do país, mas não tem consegui- adultos, jovens crianças em idade escolar, ido-
do atingir as metas propostas (Ministério das sos e outros (Cançado, 2006; Assunção et al.,
Cidades, 2015). 2009; Saldiva, 2006).
Em relação à qualidade dos serviços de in- Diariamente as pessoas se deslocam para lo-
fraestrutura urbana nas zonas das cidades em cais próximos de suas casas ou para muito longe
que os brasileiros vivem, 28% de todas as ca- para realizar seus afazeres: ir para o trabalho,
sas no Brasil são consideradas com condições para a escola, até mesmo a uma instituição de
inadequadas, em outras palavras, em todas falta saúde. Com o crescimento das cidades de for-
pelo menos um serviço básico essencial. O ser- ma desordenada, hoje temos que solucionar
viço mais deficiente é o esgotamento sanitário, problemas relacionados ao deslocamento diário
segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de das pessoas, de diferentes condições socioeco-
Domicílios (PNAD). O percentual de domicílios nômicas, algumas usando automóveis individu-
educadoras, entre tantas outras denominações Hoje o projeto Cidades Saudáveis continua sen-
possíveis. Vamos aqui focalizar a estratégia de do um movimento global, tendo por base o concei-
Cidades Saudáveis, que tem muito em comum to de Saúde para Todos no Século XXI da OMS.
com as outras agendas. Continua existindo uma rede europeia constituída
por 1.200 cidades e vilas de 30 países europeus
que assumiram o compromisso de promover saúde
A CIDADE SAUDÁVEL: UMA PROPOSTA
e desenvolvimento sustentável. A designação de
DE DESENVOLVIMENTO LOCAL cada cidade para integrar a rede passa por um pro-
cesso de candidatura que envolve a resposta a um
Considerando os problemas urbanos contem- conjunto de critérios de designação e de elegibili-
porâneos e as possibilidades que a cidade oferece dade definidos pela OMS. A rede funciona em fa-
para a realização de projetos sociais, a Organi- ses com duração de cinco anos, sendo que a quinta
zação Mundial da Saúde (OMS) e suas agências fase acaba de terminar e teve como tema Saúde
regionais, como a Organização Pan-Americana da e Equidade em Todas as Políticas Locais. Outros
Saúde (Opas), propuseram a estratégia de Cidades continentes desenvolvem projetos semelhantes:
Saudáveis (Westphal, 2000). América do Norte, com participação maior de
As ideias que orientam essa proposta partem Canadá e México; América do Sul, com Brasil e
do princípio de que a saúde de um indivíduo, de Argentina principalmente; Ásia, com Indonésia,
um grupo de indivíduos ou de uma comunidade Tailândia, Japão e outros; África, com Quênia;
não depende só de médicos e medicamentos. Re- Oceania, com Austrália; entre outros.
laciona-se também com coisas que o homem criou,
cria e faz, com as interações dos grupos sociais,
ESTRATÉGIAS UTILIZADAS PELOS
com as políticas adotadas pelo governo, inclusive
com os próprios mecanismos de atenção à doença, PROJETOS CIDADES SAUDÁVEIS
com o ensino da medicina, da enfermagem, com a
educação, com as intervenções sobre o meio am- O projeto Cidades Saudáveis propõe uma
biente, entre outros (Santos & Westphal, 1999). abordagem à saúde e ao bem-estar da popula-
A agenda Cidades Saudáveis, estimulada pela ção através de ações locais, “no contexto da vida
OMS e também pela sua correspondente nas diária das pessoas facilitando a ação conjunta
Américas – Opas –, tem sido uma estratégia fun- entre as autoridades locais, sociedade civil, e
damental para a melhoria da qualidade de vida outros atores-chave para melhorar as condições
das populações. Para além de reconhecer a saúde e a qualidade de vida do e no lugar onde as pes-
em sua positividade como expressão de qualidade soas vivem, trabalham, estudam e se divertem,
de vida, uma cidade que se pretende saudável gera e promover o desenvolvimento de sistemas e es-
processos participativos, sociais e institucionais na truturas sustentáveis” (Opas/OMS, 2002). Esse
elaboração coletiva de determinada visão de cida- projeto, segundo Mendes (1996), é “estruturante
de e, sobretudo, busca acordar uma intervenção do campo da saúde”, em que os atores sociais
coletiva e direcionada a todas as políticas sociais (governo, organizações da sociedade civil e or-
para uma meta: melhorar continuamente a vida de ganizações não governamentais) procuram, por
todos os cidadãos (Westphal et al., 2013). meio da “gestão social”, transformar a cidade em
A primeira iniciativa de cidades saudáveis foi um espaço de “produção social da saúde”. Des-
realizada por representantes do escritório europeu sa forma, saúde é entendida como qualidade de
da OMS, que assumiram a ideia do projeto Cidades vida e considerada objeto de todas as políticas
Saudáveis como estruturante do novo paradigma públicas, entre as quais as de saúde.
da promoção da saúde, iniciando sua divulgação Apesar disso, repetindo a ênfase da literatu-
junto aos países europeus, em 1985. Ao mesmo ra relacionada a projetos Cidades Saudáveis, é
tempo foi desenvolvida no Canadá (Toronto) uma essencial, para a formação e crescimento de um
iniciativa semelhante, que foi iniciada em 1987 e projeto, um compromisso político do gestor, em
envolveu no princípio 14 cidades. geral o prefeito de uma cidade, e se a proposta en-
para uma política local mais autônoma, criando de maneira negativa, em algumas dinâmicas das
novas instâncias de decisão, facilitando práti- agendas. Constatou-se, também, que o conceito
cas de controle social e de democratização da de rede de movimentos e de atores colabora na
gestão, contribuindo para uma nova cultura po- sustentabilidade dos projetos, e finalmente os
lítica. Neste sentido é inegável a contribuição envolvidos nos projetos indicaram que foi uma
das novas experiências de gestão municipal na experiência positiva (Westphal et al., 2013).
perspectiva do movimento Cidades Saudáveis e Assim considerando, se houvesse interesse
as efetivadas com outras agendas sociais (Wes- das autoridades do país em implementar experi-
tphal, Mendes & Comarú, 2006). ências de Cidades Saudáveis e semelhantes, como
Um estudo nacional multicêntrico, realizado as agendas sociais tipo Agenda 21, haveria muitos
nas cinco regiões do país, finalizado em 2011, benefícios para as cidades em si e para a popula-
analisou as agendas de desenvolvimento local ção que vive nelas, especialmente se fosse uma
em funcionamento no país, Cidades Saudáveis e ação integradora de agendas. Hoje, o Ministério
Agenda 21, procurando estabelecer relações entre do Meio Ambiente abre editais para municípios
o esforço social local despendido e os resulta- se candidatarem para implementar projetos de
dos efetivos das agendas sociais e seus efeitos Agenda 21; o Ministério das Cidades, para os mu-
sobre os determinantes sociais. Identificou-se nicípios implementarem o plano diretor de seus
que algumas ações foram importantes, tais como municípios; mas o Ministério da Saúde, neste mo-
a indução de geração de renda e de controle do mento, não tem editais desse tipo, somente abrin-
poder econômico, e ainda a definição da vocação do espaço para projetos que interfiram em estilos
econômica para o município, aumentando o mon- de vida, como atividade física e nutrição, apesar
tante e estabelecendo o caráter dos investimentos da revisão no ano passado da Política Nacional
financeiros. Pressupostos participativos mostra- de Promoção da Saúde (PNPS, 2014), que reforça
ram-se presentes nas experiências estudadas, sen- a necessidade de ações do tipo das apresentadas
do a participação social uma diretriz básica em neste artigo sobre Cidades Saudáveis.
todos os casos estudados. De modo geral, amplos Fica aí uma ideia: a realização de novas ações
setores da sociedade atuaram nos processo de de- integradas das diferentes agendas municipais com
senvolvimento de agendas, indicando problemas e objetivos semelhantes, em forma de rede. Isso se
propostas, mas o processo de decisão, na maioria faz urgente, pois é uma estratégia importante de
dos casos, acabou por ser centralizado pelo poder governo para a produção social da saúde, no seu
público ou por um grupo específico. Conflitos de sentido amplo, tendo em vista as necessidades das
caráter partidário também interferiram, às vezes pessoas que residem nas cidades.
S
Apenas uma crônica histórica
tão* e “batizaram” todos os logradouros públicos dado chamá-lo assim, porque o homem era o “rei
da cidade que ainda engatinhava (ruas, avenidas, do Brasil”. Percebi que não adiantaria insistir na
praças, largos) com nomes expressivos da fase re- pergunta, pois a resposta seria sempre a mesma.
publicana. Nessa toponímia não havia espaço para Dias depois, em plena Av. Silva Jardim – líder
nomes ligados ao império, ou que o lembrassem. republicano engolido pelo Vesúvio –, reencontrei
Foi nesse cenário republicano que se delineou os dois personagens rindo e conversando anima-
o palco do encontro entre um nobre e um plebeu, damente. Curioso, acompanhei-os, a distância,
em meados da década de 50 (século XX), no salão até a Praça da República, onde ambos se senta-
de uma selaria, a Selaria Oliveira, de Antônio ram em um banco à sombra de árvore frondosa.
Bento de Oliveira, descendente da família pio- De repente, o fazendeiro Amaral atravessou a rua
neira Garcia/Caetano de Oliveira. Ao passar pela em direção ao bar da família do hoje professor
ampla selaria, situada na Rua Euclydes da Cunha, Jorge Nagle, então meu amigo de infância e co-
não me contive e entrei, talvez por permanente lega de ginásio, enquanto “seu rei” aguardava-o
curiosidade pelas peças expostas, talvez para re- no banco. Aproveitei a oportunidade, pedi licença
lembrar meus tempos de adolescência, quando ao senhor Amaral e lhe perguntei, em tons confi-
passava meus dias cavalgando em pelo, isto é, denciais, quem era realmente o seu companheiro.
sem arreios ou selas, pelos pastos da fazenda de Foi quando, para minha surpresa, fiquei sabendo
meu tio-avô Getúlio Pimentel. Ao entrar na ampla que o “seu rei” era o Príncipe Dom Pedro Henri-
selaria presenciei o diálogo entre três pessoas: o que Afonso Felipe Maria Gastão Miguel Gabriel
fazendeiro Mário Botelho do Amaral – que anos Rafael Gonzaga de Orleans e Bragança Bourbon,
depois seria prefeito da cidade –, trajando seu neto da princesa Isabel, chamado pela família ou
costumeiro terno de brim cáqui e calçando botas autointitulado Dom Pedro III do Brasil.
longas, bem engraxadas; ao seu lado, um senhor Soube, também, que o príncipe morava em
bem vestido, com terno cinza, formal, que fugia fazenda de 63 alqueires, sem energia elétrica,
aos padrões dos trajes dos homens de uma cida- no norte do Paraná. Nessa pequena proprieda-
de ainda muito provinciana, ruralizada, “caipi- de, criava 11 filhos, com a ajuda de sua esposa,
ra”; compondo o triângulo, estava o proprietário Maria Isabel Francisca Teresa Josefa de Wit-
da selaria, que, cerimoniosamente, exibia, com telsbach e Croy-Soire. Segundo o fazendeiro, o
indisfarçável orgulho, a sela previamente enco- príncipe vinha, com frequência, a Santa Cruz do
mendada pelo senhor de terno cinza. Reparei Rio Pardo para visitá-lo e fazer compras, princi-
que o comerciante dirigia-se ao cliente, sempre o palmente arreios para seus 12 cavalos. O senhor
tratando com a expressão “meu rei” ou “seu rei”. Antônio Bento tinha razão.
Tão logo os clientes saíram da selaria, pergun- O Rei do Brasil estava transitando alegre e
tei, curioso, ao senhor Antônio Bento, quem era tranquilo por um cenário republicano, sem desper-
aquele senhor chamado por ele de “seu rei” ou tar atenção alguma. Era apenas mais um a visitar
“meu rei”. Com a maior naturalidade, ele me res- uma cidade considerada na época a mais civilizada
pondeu que o Mário Amaral lhe havia recomen- do antigo sertão do Paranapanema.
* Assíduo colaborador do jornal foi O toniel Mot ta, escritor, foi fundador, em 1934, da área de línguas
então pastor de uma incipiente igreja presbiteriana neolatinas da USP, da qual f izeram par te posterior-
do lugarejo, que anos antes nascera de um embrião mente T. Maurer Jr., Isaac Nicolau Sallum e Cidmar
d o p r o te s t a nt is m o r u r a l d e Av a r é . G r a m át i co e Teodoro Pais.
U
Boris Schnaiderman
Roberto Oliveira
Jerusa Pires Ferreira
Por agora, uma amostra de como dois grandes Curiosamente, nos países de língua inglesa,
escritores imaginaram ou presenciaram os acon- parece que não se atribuiu a mesma importân-
tecimentos funestos, e procuraram instalá-los em cia a John Wilson. Assim, a edição de 1995 da
seu tempo e em suas linguagens. Enciclopédia Britânica simplesmente omite o
seu nome, embora ele figure com dados biográ-
ficos em edições anteriores. O pouco apreço dos
Reprodução
Um Jovem
Mui digno Presidente! Vou lembrar
Um homem muito conhecido nosso,
Cujas chalaças, casos engraçados,
Ditos agudos, mais observações
Tão doidas, mas em divertida empáfia,
Vivificavam nossa prosa à mesa,
Aniquilando a treva, que hoje em dia
Retrato de Púschkin por Orest Kiprensky
O contágio, nosso hóspede, nos manda
E arrasa nossas mentes mais agudas.
Dois dias faz, em nosso riso a glória
ALEXANDER S. PÚSCHKIN (1799-1837) De seus relatos retinia assaz.
Será que em nosso alegre banquetear
Conforme uma nota às Obras Completas de Se esqueça Jackson? Eis sua poltrona
Púschkin, em dez volumes, da Editora da Acade- Vazia, como que parada à espera
mia de Ciências da URSS (Moscou, 1957), o texto Do folgazão. Mas ele já partiu
do poeta russo data de 1830 e constitui tradução de Para as moradas frias do subsolo...
uma cena do poema dramático de John Wilson, A Embora sua linguagem eloquente
Cidade da Peste (The City of the Plague, 1816). As Não se calasse à beira do caixão,
canções de Mary e do Presidente, nele incluídas, Ainda somos muitos e não temos
ainda de acordo com a mesma nota, são um acrés- Motivo de tristeza, e eu proponho
cimo de Púschkin e não lembram de modo algum Bebermos à memória sua, ao alegre
canções do próprio John Wilson. Na peça deste, Soar dos cálices, dos ahs, dos gritos
descreve-se a peste de Londres em 1665. Como se ele estivesse aqui, conosco.
O interesse de Púschkin por esse tema se deve
certamente ao fato de estar grassando então na O Presidente
Rússia uma epidemia de cólera, que era frequen- Ele foi o primeiro a nos deixar.
temente chamada de peste. Pois digo, ao silenciar assim, bebamos
Essa peça entrou no rol das obras mais difundidas À sua memória e honra para sempre.
da tradição poética russa, e a expressão “festim em
tempo de peste” se tornou uma frase feita que cir-
culou em diversas circunstâncias históricas do país. 1 Tradução de Boris Schnaiderman.
O Presidente Muitos
Escutem: ouço rodas avançando. Um hino à Peste! Vamos, pois, ouvi-lo!
Um hino à Peste! Bravo! Bravo! Bravo!
Artigo VI
Paris, 19 de abril 1832
que, muitas vezes, coisas jogadas fora podem ser 6 Referência a Carlos X (1757-1836), rei da França entre
1825 e 1830, cujos partidários continuaram a defender
desenterradas do lixo e vendidas. Então quando os direitos reais até sua morte, embora deposto pela
a própria polícia realiza esse trabalho, para que Revolução de 1830 e sucedido por Luís Felipe I.
jubilaram. Esses tinham finalmente encontrado atirava sobre eles. Muitos se salvaram graças à
os aliados mais naturais, os trapeiros e velhas presença de espírito, muitos foram arrancados
catadoras de lixo, que se utilizaram dos mesmos do perigo, pela ação da guarda comunitária,
princípios, fazendo-se paladinos do convencio- que todos os dias patrulhava a cidade inteira;
nal, dos interesses tradicionais da sucessão do outros foram gravemente feridos e mutilados;
lixo, de todo tipo de podridão. seis homens impiedosamente massacrados. Não
Quando a revolta dos trapeiros foi sufocada há visão mais aterradora do que a ferocidade do
pela força das armas, e como o cólera ainda não povo sedento de sangue atacando vítimas indefe-
grassava com o vigor esperado por certas pes- sas. E então um mar escuro de pessoas se balan-
soas, que, a cada desgraça e agitação popular, ça nas ruas, onde espumam ondas de operários
desejavam o triunfo de sua causa ou, pelo me- descamisados entre gritos e urros, impiedosos,
nos, a queda do governo; ouviu-se, de repente, pagãos, demoníacos. Escutei na Rua Saint-Denis
o rumor de que esse monte de gente tão rapida- o famoso chamado: À la lanterne!7. E algumas
mente enterrado não havia morrido de doença, vozes cheias de ódio me disseram que estavam
mas sim de veneno, que se dizia ter sido colo- enforcando um envenenador. Alguns diziam que
cado em todos os alimentos nos mercados de era um carlista, que havia sido encontrado em seu
vegetais, padarias, açougues e casas de vinhos. bolso um brevet du lis8; outros disseram que era
Quanto mais estranhos eram esses relatos, mais um padre, e que tal tipo era capaz de tudo. Na Rua
acolhidos pelo povo. E mesmo os céticos que Vaugirard, onde foram massacrados dois homens
balançavam a cabeça foram obrigados a dar fé que tinham consigo um pó branco, vi um desses
quando apareceu um aviso do Chefe de Polícia. desgraçados quando ainda ofegava, e até mesmo
A Polícia, aqui como em todo lugar, está menos as velhas tiraram os tamancos dos pés e bateram
interessada em impedir o crime e muito mais em nele até que morresse. Ele estava completamente
ser informada sobre ele, ou queria vangloriar-se nu, ensanguentado, quebrado e esmagado; não só
de seus conhecimentos científicos ou, tenciona- as roupas, mas o cabelo, o sexo, os lábios e o
va, a cada rumor verdadeiro ou falso de envene- nariz foram arrancados, e um homem selvagem
namento, pelo menos, colocar o governo a salvo amarrou uma corda em volta do pé do cadáver e
de suspeitas: bastou que ela dissesse expressa- arrastou-o pela rua, enquanto gritava sem parar,
mente, em seu infeliz aviso, que estava na pista “Voilà le cólera morbus!”. Uma linda mulher,
dos envenenadores, para confirmar oficialmente empalidecida pela emoção, com os seios nus e as
o maldoso boato e toda Paris caiu no pior dos mãos manchadas de sangue, estava lá e, quando
delírios de morte. o cadáver passou perto dela, deu-lhe um pontapé.
“Isso é um absurdo”, clamaram os mais ve- Ela riu e pediu que pagasse alguns francos por
lhos que, mesmo nos momentos mais ferozes da sua doce artesania, a fim de que pudesse comprar
revolução, não tinham experimentado tal sacri- um vestido de luto, porque sua mãe havia morrido
légio. “Franceses, fomos desonrados!”, gritaram algumas horas atrás, envenenada.
os homens, batendo na testa. As mulheres, cheias No dia seguinte, soube-se pelos jornais
de angústia, apertavam seus filhos pequenos públicos que os infelizes que haviam sido tão
contra o seio, chorando e lamentando amarga- cruelmente massacrados eram inocentes, que o
mente que os bichinhos iriam morrer em seus pó suspeito encontrado com eles era cloretos,
braços. Os pobres não ousavam comer ou beber
e torciam as mãos de dor e raiva. Era como se
fosse o fim do mundo. Especialmente, nas esqui-
nas onde se encontravam os bares pintados de 7 À la lanterne!, tradicional chamamento usado no início da
Revolução Francesa, quando os lampiões serviam como
vermelho, os grupos se reuniam e discutiam, e instrumento para as multidões realizarem linchamentos
lá, na maioria das vezes, revistavam os homens e execuções nas ruas de Paris, enforcando funcionários
do rei e aristocratas nos postes.
que pareciam suspeitos, e azar o deles se en-
8 Carta de nobreza, outorgada pelo rei, marcada com três
contrassem algo estranho em seus bolsos! Como lírios brancos, tradicional símbolo da realeza na França,
animais selvagens, em um frenesi, a multidão se que, na época, identificava seu possuidor como carlista.
A Morte como o Corta-Gargantas, gravura de Alfred Rethel (1851), inspirada nos relatos jornalísticos
de Heinrich Heine sobre o surto de cólera em 1832, em um baile de máscaras na festa de
mi-Carême, em Paris. Aqui, a Morte toca um tipo de violino, enquanto os músicos fogem. À direita,
vê-se a silhueta de uma mulher, enrolada em uma mortalha, símbolo da doença. No primeiro plano,
algumas pessoas caídas, mortas pelo cólera, vestidas com as fantasias do baile.
Os carlistas se queixaram disso, com toda de um ódio particular, mas sim “no interesse do
razão. Porém, esbravejaram e xingaram tanto e bem comum segundo os princípios da teoria da
tão alto que me despertou suspeita; essa não é de dissuasão”9. Sim, talvez os carlistas tenham caído
modo algum a fala dos inocentes. Contudo, após na armadilha preparada pelo governo; os envene-
o convencimento dos mais bem informados, não namentos não lhes foram geralmente atribuídos e
houve mais envenenamentos. Pode ser que tenha muito menos aos republicanos, mas àquele partido
sido tramado um envenenamento aparente e que “que é sempre vencido pelas armas, ressuscita pelo
tenham sido contratados alguns miseráveis, que uso de meios covardes, atinge o sucesso e o poder
jogaram todo tipo de pó inofensivo nos alimentos, por meio da infelicidade dos franceses e, agora,
a fim de deixar a população inquieta e agitada. Se desprovido da ajuda dos cossacos, poderia pro-
for esse o caso, não se deve cobrar duramente do vavelmente se refugiar em venenos comuns”, foi
povo esse tumulto, tanto mais porque não se trata nesses termos que se manifestou o Constitutionnel.
9 A referência atesta o cunho jurídico-político dado à dia a ideia de que a revolução filosófica na Alemanha,
peste por Heine. A teoria clássica da dissuasão (Abschre- cuja etapa final era então a filosofia de Hegel, constituía
ckungstheorie) defende que a ameaça de sanções poderá o prólogo da iminente revolução democrática no país,
ter um efeito dissuasivo do crime quando a punição que, efetivamente, ocorreu em 1848. Posteriormente,
dos autores for maior do que a satisfação obtida com o Marx e Engels criticam as ideias de Feuerbach, o que
crime. Sua elaboração deve-se ao fundador da moderna não impede Engels de louvar a antevisão de Heine, que
doutrina do direito penal da Alemanha, o jurista Anselm afirmara ser a revolução filosófica alemã do século XIX
Feuerbach (1775-1833), pai do filósofo Ludwig Feuerbach um prelúdio do desmoronamento político da antiga
(1804-72), membro da esquerda hegeliana, assim como ordem. Assim, Engels escreve, em 1886, no livro Ludwig
Marx, Engels e Heine. Em 1833-34, Heine publicou Die Feuerbach e o Fim da Filosofia Clássica Alemã: “O que,
romantische Schule (A Escola Romântica) e Zur Geschichte porém, nem os governos nem os liberais viram, viu-o já
der Religion und Philosophie in Deutschland (Para a História em 1833, pelo menos, um homem, mas é certo que se
da Religião e da Filosofia na Alemanha), nas quais defen- chamava Heinrich Heine”.
Joan M i r
A
exposição realizada pelo Museu ou finas ações construtivas de uma imagem que
Tomie Ohtake durante o mês de não pode ser descrita com precisão. Mais ainda
julho de 2015 reorganizou meus se complica caso o aficionado crítico leve muito a
sentidos para captar em direções sério o pensamento de Roland Barthes segundo o
díspares. Centralizada num só qual a pintura consiste naquilo que descrevo dela.
corpo, a exposição causou uma Mas essa descrição, diríamos, se desenha pelo ca-
das mais inebriantes sensações minho, o caminho com desvios de dentro, de uma
que se poderia ter e ao mesmo forma plasmada por uma linha que constrói o ob-
tempo aguçou o “olho do espí- jeto inusitado e maravilhoso, em que as referências
rito”, para lembrar e fazer justiça do mundo são apenas aludidas ou nem isso, por
ao excelente fenomenólogo Mer- algo que se apresenta numa primeira instância e
leau-Ponty ao ler pintura e anali- depois penetra no nosso pensamento, deixando-nos
sar a obra de Paul Cézanne. Para à mercê de um consolo referencial.
quem conhece a obra do artista catalão, visitando-a Minha reflexão sobre esse universo foi ocor-
em museus espanhóis, perscrutando há anos essa rendo concomitantemente ao movimento de meu
pintura nos volumes de obras publicadas, estudan- corpo e meus olhos, e aquele percurso mágico foi
do par e passo seu processo, evidentemente, ao compondo a revisitação de minha experiência de
ver uma exposição que apresenta obras possíveis, percepção da obra desse artista catalão e fiquei a
é difícil não ficar procurando aquele quadro que mirar uma parede off-white que estava na minha
não se encontra presente ou relacionando o quadro frente ainda sem obras expostas por se tratar da
exposto com quadros ausentes naquela parede off- parede de minha casa. Foi nesse espaço que co-
-white que parecia fazer parte da composição. Foi mecei a refletir e captar sensações sinestésicas e
assim que se construiu no meu imaginário uma cinestésicas antes mesmo de saber que obras se-
outra exposição e se foi gerando paulatinamente no riam apresentadas na exposição. Por experiências
conjunto de meus pensamentos sensíveis a maior anteriores em exposições de pintura, antes de en-
conjunção de obras plásticas que já vi do pintor trar na minha atmosfera, senti a necessidade de
catalão. Num primeiro momento, quando estamos acompanhar os visitantes na sua caminhada pelo
diante dessa obra, nosso olhar tende a ficar meio museu. Observar a postura dos visitantes de expo-
ingênuo e somos puxados por uma energia para
dentro do movimento que a obra engendrou e que
agora nos envolve, e ficamos lá, diante de um qua-
dro, tendo a impressão de que não podemos deixá-
-lo e seguir a viagem da exposição para ver o outro AGUINALDO JOSÉ GONÇALVES é professor de
Relações Intersemióticas, escritor, ensaísta, crítico
quadro. A obra de Miró cria no interior da moldu- de artes e autor de, entre outros, Das Estampas
ra um ritmo e uma sintaxe que determinam ações (Nankin Editorial).
sição temporária de obras de arte consiste numa arte que se categoriza mediante as mediações do
prática que desenvolvo há muito tempo, e sempre entendido e do categorizado.
colhi alguns frutos que se converteram em certa A pedido de um jornal de artes, conhecendo
compreensão um pouco mais apurada da obra que esse meu estranho prazer em perseguir visitadores
estava sendo exposta. A justaposição dos quadros que se dizem aficionados pelos museus de São Pau-
ao longo das paredes do museu e os passos lentos lo, acompanhei numa tarde de sábado no Museu
do visitante-observador criam uma relação quase de Arte de São Paulo um casal de meia-idade que
impossível de ser decodificada mediante os dita- parecia ser, pelo modo de se vestir e pelos trejeitos
mes do silêncio que conduzem à relação que se tor- delicados e civilizados, de classe média alta, inte-
na linguagem no seu mais estrito sentido. De quan- lectualizado, que faz questão de visitar os grandes
do em quando, um observador comenta com muito museus de sua cidade em ocasião das grandes ex-
cuidado ao amigo que o acompanha, ao ver algo posições itinerantes. E tratava-se de uma exposição
que lhe desperta uma sensação diferente. Quando singular de Claude Monet, que trazia um impressio-
o artista se destaca pela forma de composição do nismo tardio do pintor francês marcado por certo
desenho, o observador faz o olhar de admiração desconstrutivismo do estilo em relação às figura-
pela técnica utilizada e pelo primor do traço ou da tivizações das obras anteriores. Como se sabe, por
cor manifestada. Quando o artista se caracteriza mais que Monet criasse as profusões sensoriais de
pelo insólito, como é o caso do surrealismo, o imagens com sobreposição de linhas e de cores,
observador se comporta com o olhar de quem os elementos invariantes de sua pintura sempre se
esperava o singular agora já categorizado pela mantiveram visíveis, perceptíveis e reconhecíveis.
história da arte. De maneira geral, as expecta- Entretanto, as obras que compunham ou povo-
tivas atendem a um comportamento da própria avam aquela exposição pertenciam à última fase de
nesse trabalho foi a forma com que esses elementos cedimento dessa pintura que indicia a permanente
míticos foram trabalhados mitopoeticamente pelo reflexão sobre linguagem, tendo no signo sua célula
artista para que se elevassem à condição de signo e sua fundamentação, é o fato de Miró, em inúme-
estético, ou signo poético, na fabricação de uma ros quadros, se valer do mesmo título ou do mesmo
sintaxe irregular em que o mito se situa como sig- processo de esvaziamento da palavra. Explicando
no e mais como signo estético de uma composição melhor: em muitos quadros ele usa a palavra “per-
maior. Voltando aos primeiros trabalhos, reiteramos sonagem” para nomear uma das partes do título,
a relevância de assinalar que o fio metafórico dessa como vemos nos quadros Oiseau emprisonné par
pintura sempre esteve de uma ou de outra maneira un personnage (1963) e Personnage et oiseaux de-
presente mesmo naqueles primeiros trabalhos de vant le soleil (1976).
recortes da terra e das coisas do campo, em que a O fato de apenas nomear a imagem como “per-
ruralidade se apresenta como força da linguagem sonagem” se torna mais instigante do que se essa
e nela a própria pintura se mostra como constru- imagem vazia fosse preenchida com algum nome.
ção e como imagem. Essa forma de passar o ara- Esse esvaziamento determina um dos aspectos de
do sobre a terra possui caráter paródico em que os desrealização de sua pintura de várias formas. Não
próprios substratos referenciais se transubstanciam se pode compreender esse trabalho como um exer-
como signos e se assemelham ao ato de o artista cício figurativo e nem como não figurativo. Trata-se
ler a tradição e se voltar para a própria linguagem, de uma terceira ordem de coisas em que o signo
passando o arado nos ditames da tradição. Um pro- passa a ocupar o lugar dos referentes, mesmo quan-
Reprodução
Joan Miró, Oiseau emprisonné par un Joan Miró, Personnage et oiseaux devant le
personnage, 1963 soleil, 1976
do nomeados na criação da metáfora do título. Esse de um procedimento marcado pelo lúdico, e isso lhe
signo “personagem”, que se reitera durante toda a confere algumas características ou traços de estilo
produção de Miró, talvez seja o modulador de seu que a distinguem de outras pinturas. O lúdico des-
trabalho de esvaziamento que na poesia denomi- sa pintura está no modo de se realizar no espaço
namos exercício de deslexicalização da linguagem e de conduzir o olhar do receptor ao se propor a
em busca da construção da metáfora. Ao observador entrar em sintonia com ela. Integrado ou fundido
cabe se relacionar com os vazios do signo e se mo- a esse caráter lúdico está, no âmbito das imagens,
vimentar no sentido em que é construído pelas ima- o aspecto alegórico dessa pintura. Entretanto, o
gens. Ou melhor: o observador memorializado deve teor alegórico que a compõe não corresponde à
buscar nos seus referentes do mundo alguma coisa alegoria clássica, mas condiz em vários aspectos
que o leve a preencher o que a imagem esvaziou. com a alegoria moderna sistematizada e teorizada
Sempre ou quase sempre “o personagem” vem se por Walter Benjamin no seu Origem do Drama
relacionando com algum outro elemento nomeado Barroco Alemão. Miró trabalha com sucatas ou
e contextualizado na tela. Esse talvez seja um dos fragmentos de coisas que transforma e pedaços de
fundamentos mais relevantes dessa pintura que se signos que se alinham e se integram de maneira
faz alegórica sem desvelar os passos dessa alegoria. maravilhosa. Sua alegoria é da ruína que aponta
Para que se possa compreender parte desse pro- para o insondável e para o insólito de profunda
cesso há que se perseguir cada uma de suas instân- beleza e de fascínio instigante. Digo instigante por-
cias. A primeira delas é compreender a pintura de que a estranha alegoria de seu trabalho tem como
Joan Miró como pintura que se distanciou muito das fio de prumo o dinâmico que brinca no espaço bi-
tentativas renascentistas para se impor como pintu- dimensional e dribla os limites da moldura.
ra. A obra de Miró é pintura e se realiza no espaço A terceira instância que deve ser percebida na
planar bidimensional da tela. Ela se apresenta dentro pintura de Miró se constrói pelos movimentos das
imagens conduzidas por uma sintaxe que impõe com alguns índices em procedimentos surpreen-
um ritmo determinante da microestrutura do qua- dentes, muitas vezes parecendo tratar-se do acaso
dro. Esse movimento gerado pelo trajeto da linha criativo sem a técnica do “lance de dados”, para
constrói formas que vão emergindo na composição aludir ao poema de Mallarmé. Integrado a essa
da massa cromática, e isso é determinante na cons- busca, a essa condução do trabalho para uma ar-
trução do estilo de Joan Miró. É muito pouco dizer ticulação metafórica, atenuando paulatinamente
de uma metapintura, sobretudo pelo desgaste que o teor alegórico de sua pintura, o pintor catalão
essa expressão sofreu nos últimos tempos. Entre- vai se enriquecer de determinados recursos que o
tanto, é necessário afirmar que nesse estilo o vol- fazem se aproximar cada vez mais dos elementos
tar-se da linguagem para ela mesma tornou-se um constitutivos do poético e, consequentemente, da
estilema, como se fosse inerente ao próprio traço metáfora plástica que o conduzirá ao ponto máxi-
do artista, e a presença da alegoria tão intensa na mo de sua invenção. Apesar de os fundamentos
obra de Miró não é uma condição que determinará retóricos serem os mesmos para qualquer forma
a evolução de seu trabalho. Ocorrendo de maneira de linguagem, eles oscilam ou se manifestam de
assistemática e sem poder assumir um determi- modo distinto para cada uma delas. Nesse cami-
nismo de produção, o que ocorre no movimento nho, os recursos retóricos, a estilística, as figuras
encaracolado de seu trabalho é uma busca (com clássicas de retórica nasceram e persistiram para as
muitos encontros) de um signo visual complexo ou artes verbais. Nesse caso, o que é normal ocorrer
o que preferiria denominar de metáfora complexa com as figuras manifestadas num poema não o é
na pintura de Joan Miró. Creio que esse fenômeno na expressão de uma pintura ou de uma escultura.
foi se desenvolvendo durante todos os anos em que Daí o grau de valorização quando ocorre, num ar-
o artista trabalhou, e percorre pontos inusitados tista plástico, a criação de uma metáfora, sobretudo
quando essa metáfora atinge um grau elevado de se iluminam, mas que na verdade se distinguem
construção e de efeito expressivo. Na história da nas suas bases de sustentação: a natureza bipar-
pintura, poucos são aqueles artistas que tenderam à tida do signo verbal, com seus dois planos que,
busca desse efeito metafórico com bons resultados. se interagem na formação da célula (significante
Acabam ficando nos efeitos alegóricos, fabricando e significado ou plano de expressão e plano de
metáforas locais que se integram a outras figuras conteúdo), distinto do caráter analógico do signo
no espaço da tela. (Façamos aqui uma homenagem icônico, trazem toda a diferença na construção da
a um artista que, em pleno século XV, conseguiu imagem, incluindo a metáfora visual. É nesse sen-
efeitos preciosos de natureza alegórica, mas atin- tido que se encontra a relevância da trajetória de
gindo em belos momentos certo efeito metafórico. Miró em busca de uma ampliação dos limites do
Trata-se de Hieronymus Bosch.) signo icônico para que conseguisse atingir esferas
Como dissemos, a construção da metáfora em retóricas que, em princípio, não seriam próprias
Miró encontrou muitos recursos expressivos que da pintura. A isso denominamos a busca de uma
pudessem ir sedimentando esse trabalho. Para poética que foi paulatinamente sendo atingida pelo
atingir o lírico visual por meio de um signo com- pintor. Assim, reafirmando, Miró foi condensando
plexo é necessário um processo de condensação elementos constitutivos de traços de alegoria para
dos elementos alegóricos, de enxugamento desses conseguir galgar o patamar da metáfora. Curioso
elementos, para que os termos da metáfora (o me- que um dos procedimentos utilizados desde a fase
taforizante e o metaforizado) possam entrar em inicial de seu trabalho (décadas de 20 e 30) foi
fusionismo e gerar o objeto final que possa pulsar incluir o signo verbal no espaço planar de suas pin-
por si, com universos transfigurados, e por isso turas, trazer para as ações do interior da moldura
mobilizar sentidos estigmatizados no fruidor. Isso uma espécie de “conflito semiótico”, que, além de
significa que a grande busca dessa pintura esteve conseguir efeitos muito especiais e bonitos, levava
voltada para a questão do poético naquela dimen- a questão retórica dos dois códigos para dentro da
são basilar tão própria para o discurso verbal e tão tela. Observemos um quadro de Joan Miró e um
difícil para o discurso visual. Duas semióticas que poema de Saint-Pol Roux.
Joan Miró, Le corps de ma brune puisque je l'aime comme ma chate habillée en vert salade comme
de la grêle c'est pareil, 1925
Ô tardive, dis-moi, quelles sont ces deux blancheurs Dize-me, ó tardia, que são estas duas brancuras
qui dans l’ombre s’avancent? que na sombra avançam?
Sans doute deux rayons de lune Sem dúvida dois raios de lua
exprimés par l’huis de ma venue. espremidos pela porta por onde entrei.
Un rayon de lune est fluide et diaphane, Um raio de lua é fluido e diáfano,
ce que je vois est opaque et solide. o que vejo é opaco e sólido.
Alors ce sont deux banderoles de neige Então são duas bandeirolas de neve
pleurées par les blessures de la tuile. choradas pelas feridas da telha.
Nous sommes en juillet, brune amante, Estamos em julho, amante morena,
mais fussions-nous en décembre, estivéssemos em dezembro,
l’haleine de la chambre aurait déjà fondu o hálito do quarto já teria derretido
les flocons que tu dis. o floco que tu dizes.
Alors ce sont deux rameaux d’aubépine Então são dois ramos de albepine
aux lèvres des persiennes. nos lábios das persianas.
Notre mansard est haute, Nossa mansarda é alta,
et je ne sache pas que l’aubépine pousse dans l’espace. e que eu saiba o espinheiro-branco não cresce alto.
Alors ce sont deux cols de cygne. Então são dois pescoços de cisne.
Nous n’avons pas de cygnes dans la chambre, Nós não temos cisnes no quarto,
et puis un col de cygne est souple et d’harmonie, e um pescoço de cisne é flexível e tem harmonia,
tandis qu’à la manière des serpents enquanto que, à maneira das serpentes,
ces choses-là se tordent. aquelas coisas se contorcem.
Et si c’étaient deux ce que tu viens de dire? E se fossem duas que acabas de dizer?
Deux serpents, veux-tu rire, blancs? Duas serpentes, brincas, brancas?
On a vu des serpents boire infiniment de lait. Foram vistas duas serpentes beberem leite infinitamente.
Personne avec toi n’est entré? Ninguém entrou contigo?
Personne que ma chevelure. Ninguém a não ser minha cabeleira.
Comment se seraient-ils introduits dans ce cas? Como teriam se introduzido, neste caso?
Aurais-tu peur de deux serpents qui burent trop de lait? Terias medo de duas serpentes que beberam muito leite?
Prends garde, Marcelle! ils vont sauter sur toi! Acautela-te, Marcelle! elas vão saltar em ti!
Viens, oh viens près du lit!... Vem, oh vem para o leito!...
Laisse donc ces foetus du sommeil! Deixa portanto esses fetos de sono!
Ils ont sauté, sauté jusqu’à ta gorge, ô ma pauvre! Elas saltaram, saltaram até tua garganta, minha pobre!
et leurs queues nouées à tes épaules, E suas caldas enroscadas nos teus ombros,
voilá qu’ils se balancent ei-las que balançam
dans tes gestes vers tes mains... em teus gestos por tuas mãos...
Fou, puisse ma caresse effacer ton cauchemar! Louco, possa minha carícia apagar teu pesadelo!
Ils assailent mon lit, rampent vers mon cou... Elas assaltam meu leito, rastejam por meu pescoço...
ah je les sens s’y joindre en collier de potence! Ah, eu as sinto juntarem-se em potente coleira.
Non, c’est moi qui t’enlace, bel halluciné… Não, sou eu que te enlaço, belo alucinado...
Eh quoi!... ces deux serpents qui burent trop de lait… Eh qual!... estas duas serpentes que beberam muito leite...
Seraient mes bras, ami, mes deux bras blancs… Seriam meus braços, amigo, meus dois braços brancos...
Tes bras... tes deux bras blancs... Teus braços... teus dois braços brancos.
Dentre tantas obras em que Miró se valeu étoile, de 1934, de Silence, de 1968, ou ainda de
desse recurso, a escolha de Le corps de ma bru- Poème I, também de 1968.
ne... se deve ao fato de ter sido produzido no iní- Trata-se de procedimentos similares com efei-
cio do desenvolvimento plástico do pintor e con- tos bastante distintos. Se bem que procedimentos
seguido expressar uma profusão e uma riqueza de similares não correspondem à igualdade de cons-
sentidos que dificilmente conseguiria nos quadros trução, e isso interfere decisivamente no resulta-
futuros. Creio que nele o artista se valeu muito do de cada uma das obras. Apenas para assinalar
da técnica, mas também de uma gama decisiva algumas diferenças, deve-se observar que no pri-
do imaginário criador, e diríamos que, por isso, meiro quadro, Escargot, femme, fleur, étoile, os
antes de atingir a verdadeira trajetória da bus- quatro nomeados entram em verdadeiro proces-
ca, Joan Miró encontrara o resultado esperado. so de transmutação, tornando-se irreconhecíveis
No quadro se fundem três elementos essenciais: como imagem de reconhecimento.
a dimensão plástica da pintura, em que se per- Eles se tornam ícones que se conjugam numa
cebe o “moreno”, que apresenta matizes entre o dinâmica que não cessa no espaço da pintura.
marrom e o púrpuro como fundo e, sobre eles, Essa dinâmica se integra à dinâmica das pala-
os fragmentos figurativos que nos reportam ao vras do título, que se tornam grafismos que se es-
poema de Roux, além de pedaços de versos de um parramam e se esticam em fios interligados pelo
poema de Guillaume Apollinaire. O quadro atua próprio ritmo que se cria. Os signos verbais que
decisivamente para que nos voltemos aos dois compõem o título do quadro, se compusessem
poemas, que os leiamos para que seja possível um sintagma nominal, deveriam trazer uma con-
uma compreensão mais profícua do que vemos. junção et que separasse os três primeiros signos
Claro que, se isso não ocorrer, o observador não (escargot, femme, fleur) do último (étoile), mas
será tolhido de perceber elementos de sentido no isso não ocorre, pois já no título está indiciado o
quadro. Pensando no sentido da construção da que vai ocorrer na composição do quadro, isto é,
metáfora – e esse quadro consiste numa metáfora “escargot, femme, fleur, étoile”, cuja ligação vai
visual –, temos no espaço planar bidimensional os ser intensificada pelo fio que une um signo ao
elementos constitutivos da clássica figura retórica. outro. Existem, no quadro, os elementos metoní-
Como se trata de pintura, os elementos se articu- micos que sugerem suas personagens, tais como a
lam formando um fusionismo para o olhar. Não se parte do braço e a mão que nos reportam à femme
trata apenas de paralelismos ou de justaposição de e, dessa parte, ao corpo inteiro da mulher. Mas
elementos; trata-se da intersecção entre elemen- o que se torna relevante no quadro é compreen-
tos pertencentes a campos semânticos distintos, e der a profusão dos elementos metamorfoseados
mais: esses elementos são discursivos, o que pro- e metaforizados que acabam provendo sentidos
move ainda mais um enriquecimento e uma grande desprovidos de uma expectativa de sentidos.
complexidade para a compreensão dessa metáfora. O segundo quadro escolhido, Silence, de
A propósito, a metáfora existe para traduzir 1968, faz parte de um paradigma de busca de uma
enigmaticamente o que não pode ser compreendi- poetização por meio, não de uma mistura, mas
do linearmente. A metáfora existe para esconder de uma profusão de elementos dos dois códigos
mais ainda os sentidos, sugerindo-os, e não para de modo que gere uma espécie de “nicho poéti-
desvendá-los; para isso temos a não metáfora, a co”. Trata-se de um tipo de obra não destacada
palavra habitual. Esse caminho inteligente per- pelo público por se desviar do instituído como
seguido por Miró haveria de se desenvolver e “pintura de Joan Miró”. Nesse caso, trata-se de
produzir grandes obras, em que a relação com a um quadro mais voltado para o conceptualismo
poesia ou com o poético se mantém ativa e sur- utilizado em determinadas instâncias de seu tra-
preendente. Em alguns casos o signo verbal é ex- balho. A riqueza do trabalho está em todas as
traído das escolhas do pintor, de seu minimalista suas partes. Penso aqui na voz crítico-poética de
vocabulário, de onde extrai quase todos os títulos Maurice Blanchot ao falar da poesia de Mallar-
de seu trabalho ou signos incluídos no interior mé e mostrar o sentido do abstrato da lingua-
da moldura. É o caso de Escargot, femme, fleur, gem como se fosse “dentro da noite, a noite”. No
quadro é o silêncio que se enuncia numa forma Criado também em 1968, uma das mais inten-
inquestionavelmente criativa, inaugural e genuí- sas décadas de inventividade do pintor, decisiva
na. O silêncio é figurativizado por traços, letras, para que desse passos largos e determinantes para
formas e a intensa cor rubra que se destaca den- o efetivo amadurecimento de certos recursos de
tro de um espaço de silêncio que causa enorme seu trabalho, Poema I sempre esteve na lista de
barulho interior. O quadro pode ser considerado minhas obsessões de gosto sobre as pinturas e
oximoro visual dentro dessa excelente metáfo- xilogravuras do pintor catalão, inserido mas não
ra que o expressa. Por um lado, tênues linhas analisado no meu trabalho crítico anterior (Gon-
semirretas delineiam o espaço como se fosse çalves, 1989). Poema I parece trazer com toda a
possível tocar a esfera do silêncio. Esse universo veemência os efeitos de influências da arte orien-
tênue é rompido por formas rotundas e intensas tal com a qual o artista esteve muito envolvido
que interceptam a leveza delineada no fundo do durante a década de 60, e isso foi decisivo para
quadro. Juntamente com essas formas e outras determinados gestos plásticos que ele produziu
que sustentam a força da matéria, as letras que conduzindo-o com toda a clareza e complexida-
compõem o signo silence tomam posse do espaço de à construção de grandes metáforas, em alguns
num frenético movimento: S, I, L, E, N, C, E são momentos, de puros efeitos visuais, e, em outros,
compostos e se distribuem pelo espaço de modo realizando o mais profundo diálogo entre o uni-
a se tornarem signos do silêncio fazendo parte da verso figural de dimensões icônicas e o universo
composição. Passemos, finalmente, ao terceiro verbal. A natureza desse trabalho se apresenta
quadro dos escolhidos para a compreensão da de modo a coibir o observador de dizer qualquer
metáfora visual em Miró. palavra sobre ele. Opondo-se ao quadro Silêncio,
Poema I se compõe e se realiza pelo princípio da demiurgo entre a obra e o fruidor. Passo então a
economia. Dir-se-ia que, como num poema lírico descrever ao menos os elementos perfunctórios
bem realizado, o quadro se modula por outros para apoiar o leitor na sua percepção relacional.
dois princípios regentes da alta realização poéti- “Relacional”, esta é uma palavra-chave que con-
ca: trata-se da contenção, retomando o princípio duz os elementos que povoam Poema I. Os signos
da economia, em que os elementos se tornam pe- e os semissímbolos são distribuídos de maneira
ças determinantes do poético e da metaforização, extremamente simétrica criando harmonia entre
que reúne em si seu caráter tensivo na construção todas as partes do espaço planar. Nomeando a
dos sentidos. Ao dizermos que esse quadro coí- obra de “poema”, há um intenso indício de que
be o observador, negando-se a ser descrito, seria a matéria composta e transmudada no quadro
contraditório estarmos aqui e agora o descreven- metaforiza metalinguisticamente a própria
do analiticamente. Entretanto, ao crítico não é natureza essencial do poema por meio desse outro
pertinente a proibição, uma vez que atua como código que é o da pintura.
Bibliografia
Rumo à Vertigem ou a Arte de Naufragar-se, de Wassily Chuck, Cotia, Ateliê Editorial, 2015, 184 p.
aparências, onde encontrar o verdadeiro funda- recorrentes neste Rumo à Vertigem ou a Arte de
mento do ser do homem? Naufragar-se que, agora, a Ateliê Editorial ofe-
Como resposta a essa indagação, Wassily rece ao leitor inteligente e exigente, bem como
Chuck se apropria das postulações de Heidegger, ao leitorado que nada espera além da fruição
contidas na conferência “Que é Metafísica?”, sensível de uma poesia encantadora, embora
pronunciada em 1929, que suspende o dilema profundamente melancólica. Todavia, perante
de Hamlet ao identificar a afirmação com a a obra poética de Wassily Chuck, talvez fosse
negação: ser é não ser, na medida em que o oportuno advertir o incauto leitor com as pala-
nada, origem de toda negação, dá sentido a tudo vras de Manuel Bandeira (1966, p. 7):
que ele não é.
O nada não é um objeto ou um ente, mas “Fecha o meu livro, se por agora
“revela-se propriamente o nada com o e no Não tens motivo nenhum de pranto.
ente” (Heidegger, 1973, p. 238), de tal modo
que, “como remissão (que rejeita) ao ente em [...]
sua totalidade em fuga, ele [o nada] revela este
ente em sua plena, até então oculta, estranheza E nestes versos de angústia rouca
como o absolutamente outro – em face do nada” Assim dos lábios a vida corre,
(Heidegger, 1973, p. 239). Deixando um acre sabor na boca.
“Um passo além do nada e chegas a ti mesmo. So- – Eu faço versos como quem morre”.
mente o medo te mantém deste lado do espelho”
(“Breve Diálogo entre o Poeta e sua Sombra”). Contudo, é preciso compreender a poesia de
Wassily Chuck não como fuga da realidade, mas
A fugacidade e a alteridade do ser, do ente como fuga para a realidade, por meio de um canto
e do homem assim se revelam perante o nada em surdina, à bocca chiusa, ou do silêncio elo-
e seus correlatos objetivos: as imagens da via- quente, que comove como um grito visceral, so-
gem, do mar, da noite, do naufrágio e da morte, frido, lúcido e autenticamente humano.
Bibliografia
BANDEIRA, Manuel. Estrela da Vida Inteira. Rio de Janeiro, José Olympio, 1966.
CHUCK, Wassily. “Prólogo do Autor: Rumo à Vertigem”, in O Outro Lado do Vento. Cotia,
Ateliê Editorial, 2008, p. 16.
HEIDEGGER, Martin. “Que é Metafísica?”, in Os Pensadores (v. XLV). São Paulo, Abril Cultural,
1973.
QUENTAL, Antero de. Sonetos Completos. Porto, Nova Crítica, 1980.
TORRANO, Jaa. O Sentido de Zeus. 2a ed. São Paulo, Iluminuras, 1996.
ciologia de Florestan Fernandes e do concretismo sil no início dos anos 60. O golpe de 64, seguido
dos poetas e artistas plásticos, Maria Arminda nos pelo acirramento da repressão quatro anos mais
faz refletir sobre o caminho percorrido, as poten- tarde, incidiu fortemente sobre esses projetos,
cialidades realizadas, algumas apenas parcialmen- ocasionando sua ruptura e descontinuidade. No
te, e as possibilidades de fato perdidas. caso do teatro de Jorge Andrade, as peças, cada
Apesar das diferenças indeléveis, algo de co- vez mais explicitamente políticas, tiveram dificul-
mum perpassou a sociologia e o teatro mais repre- dade em encontrar espaço para serem encenadas.
sentativos do período, presentes na trajetória de A aposentadoria precoce de Florestan Fernandes
Florestan Fernandes e no teatro de Jorge Andrade. em 1969 retirou o espaço de expressão onde se en-
A autora destaca o pioneirismo nas áreas a que gendrara a sua identidade intelectual e profissional.
se dedicaram: a sociologia acadêmica e a drama- A repressão não o calou, pelo contrário, Florestan
turgia moderna. Ao construírem suas trajetórias, produziu nos anos 70 obras de referência para a
também transformaram as instituições de tal forma interpretação da sociedade e da política do Brasil.
eram a elas articulados. Ela observa, próximo à Entretanto, os vínculos que se estabeleciam entre
conclusão do livro: “[...] no caso do dramaturgo essa produção e os seus lugares de origem se ha-
suas peças foram escritas ao mesmo tempo que viam esgarçado de forma definitiva.
o teatro adquiria perfil moderno e profissional. O As novas gerações passaram um longo período
sociólogo vivia a potencialidade da universidade de amnésia política, sem a capacidade de recons-
autônoma e produtora de suas próprias regras”. truir os nexos que engendraram a produção cultu-
Partícipes ativos, é possível perceber na traje- ral que caracterizou e deu identidade a São Paulo.
tória de Florestan e no teatro de Jorge Andrade Apenas recentemente se observa o esforço dessa
uma sincronia com a crescente politização que reconstrução para o qual a leitura desse livro é de
movimentou o meio intelectual e artístico no Bra- fundamental importância.
Bibliografia
LANNA, A. et al. (orgs.). São Paulo, Os Estrangeiros e a Construção da Cidade. São Paulo,
Alameda, 2011.
RIZEK, C. S. “A Cidade e Seus Temas: Relatos de uma Trajetória Exemplar”, in Tempo Social,
São Paulo, 2001, pp. 229-36.