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20 | 2017
Ponto Urbe 20
Edição electrónica
URL: http://journals.openedition.org/pontourbe/3355
DOI: 10.4000/pontourbe.3355
ISSN: 1981-3341
Editora
Núcleo de Antropologia Urbana da Universidade de São Paulo
Refêrencia eletrónica
Ponto Urbe, 20 | 2017, « Ponto Urbe 20 » [Online], posto online no dia 30 junho 2017, consultado o 27
setembro 2020. URL : http://journals.openedition.org/pontourbe/3355 ; DOI : https://doi.org/10.4000/
pontourbe.3355
This work is licensed under a Creative Commons Attribution 4.0 International License.
1
SUMÁRIO
Editorial
Artigos
Resenhas
Tradução
Cir-kula
Concretos que falam: análise comparativa de grafites sob vias suspensas nas cidades de São
Paulo e Lorena/SP
Bianca Siqueira Martins Domingos, Gabriel de Oliveira Eloy e Luiz Fernando Vargas Malerba Fernandes
Ensaios fotográficos
Etnográficas
Novos agentes e novas configurações no carnaval dos blocos de rua na cidade do Rio de
Janeiro
Marina Bay Frydberg
Editorial
1 É com muita alegria que lançamos a 20ª edição da Revista Ponto Urbe, a revista do
Núcleo de Antropologia Urbana da Universidade de São Paulo. Ao longo dessas vinte
edições, valorizou-se o diálogo entre a antropologia urbana e outras áreas temáticas da
antropologia além de outras disciplinas afins que se propõem a pensar práticas
culturais no contexto urbano, o que resulta em uma enorme diversidade de
procedências institucionais, temas e abordagens. Concebemos a revista como um
espaço de divulgação de trabalhos já concluídos ou em andamento e também como um
meio didático tanto para quem propõe contribuições para cada edição – recebemos
trabalhos de estudantes de graduação a pesquisadores consolidados em suas áreas –
quanto para a comissão editorial, que reúne pesquisadores de graduação, pós-
graduação e associados do NAU.
2 A 20ª edição da Ponto Urbe é exemplo dessa diversidade e do exercício de aprendizado.
Nesse número, trazemos sete Artigos. Caterine Reginensi discute as vicissitudes da
prática etnográfica em espaços de fronteira das cidades, enquanto Marina Ramos Neves
de Castro e Fábio Fonseca de Castro examinam os trajetos etnográficos em uma feira
popular em Belém. Thiago Oliveira explora o mercado das Sex Shops em João Pessoa,
Paraíba e Daniela Ferriani descreve o cotidiano de pacientes de Alzheimer no estado de
São Paulo. Oscar Oropeza e Felipe Murrieta investigam as estratégias sociais de
adaptação e questões de vulnerabilidade social em uma metrópole mexicana afetada
por uma inundação. Letizia Patriarca realiza um exercício descritivo da prostituição de
travestis no Jardim Itatinga (Campinas, SP). Renata Menezes, por sua vez, discute a
manipulação de imagens religiosas no Brasil contemporâneo a partir de uma análise de
um “evento crítico”, a Marcha das Vadias de 2013, no Rio de Janeiro.
3 Na seção Cirkula, o artigo de Bianca Siqueira Martins Domingos, Gabriel de Oliveira
Eloy e Luiz Fernando Vargas Malerba Fernandes compara grafites feitos em colunas de
viadutos nas cidades de São Paulo e Lorena, suas relações com o entorno e com seus
espectadores em um “museu a céu aberto”. Discussão que traz subsídios para pensar as
recentes políticas cinzentas que tomam a paisagem urbana.
4 A seção Etnográficas, que traz relatos etnográficos, traz a contribuição de Marina
Frydberg sobre o carnaval de rua no Rio de Janeiro; de Renato Passos e Maria da Penha
Vasconcellos sobre a tragédia de Mariana, MG, ocorrida em 2015; e de Wellinton Silva e
Beatriz Brandão sobre as relações entre o crack e os corpos que transitam pelas ruas da
cidade.
5 O Especial dessa edição é fruto do Seminário Temático - Tecnologias da reflexividade e as
pesquisas sobre ritual, usos de substâncias e saúde, coordenado por Marcelo Simão
Mercante e Ana Letícia de Fiori durante a VI Reunião de Antropologia da Ciência e
Tecnologia, realizada na USP em maio de 2017. Além de um texto introdutório, que
retoma as discussões do antigo grupo NAU Consciência, o especial conta com o artigo de
Maiton Bernardelli, discutindo papéis de psicólogo e etnógrafo em uma comunidade
terapêutica no Acre e Danielli Katherine Pascoal da Silva, relacionando concepções de
saúde mental e depressão em regimes de saberes médico, psicológico e próprios da
União do Vegetal.
6 A Ayahuasca também é tema da Resenha de Henrique Antunes, do livro Reinvenções e
controvérsias: a necessidade da tradição e as disputas em torno da regulamentação da
ayahuasca. A seção traz também a resenha do livro “A maior zoeira” na escola –
Experiências juvenis na periferia de São Paulo, fruto da tese de doutorado do pesquisador
do NAU Alexandre Barbosa Pereira, realizada por Cristiane Gonçalves. E, por fim, a
resenha de Maison du Brésil – cotidiano e experiência de pesquisadores brasileiros em Paris,
por Leonardo Azevedo.
7 A 20ª edição da Ponto Urbe traz, na seção de Tradução, a análise de Xavier Costa sobre
tradição e modernidade na festa popular do Fallas, em Valencia, Espanha, traduzida por
Breno Alencar.
8 Neste número, trazemos o rol de pareceristas que contribuíram na avaliação de
propostas nos últimos 3 anos. Reiteramos os agradecimentos a todas as pessoas que
gentilmente aceitaram ler, avaliar e oferecer sugestões às contribuições submetidas à
Revista Ponto Urbe. A revista é fruto dessa generosidade acadêmica. Que a Ponto Urbe
possa ter uma vida longa e próspera.
Artigos
Daniela Feriani
NOTA DO AUTOR
Este texto é parte de minha tese de doutorado, denominada Entre sopros e assombros:
estética e experiência na doença de Alzheimer, financiada pela Fundação de Amparo à
Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp). A pesquisa de campo aqui apresentada foi
feita através do acompanhamento de consultas nos ambulatórios de neurologia e
psiquiatria geriátrica de um hospital universitário e de reuniões do grupo de apoio aos
familiares da Associação Brasileira de Alzheimer (ABRAz), ambos no Estado de São
Paulo. Nesses campos, os cuidadores são familiares, principalmente cônjuges e filhos, e
as famílias pertencem, principalmente, a níveis socioeconômicos menos favorecidos.
As imagens que abrem o texto estão disponíveis na internet e são de ensaios
fotográficos sobre a doença de Alzheimer - “Mirella”, de Fausto Podavini (imagens: 1 /
linha 1 e 3 / linha 2); “La noche que me quieras”, de Alejandro Kirchuk (imagem 3 /
linha 1); “Essa luz sobre o jardim”, de Fábio Messias (imagens 1 e 2 / linha 2); “Grace”,
de Susan Falzone (imagens 1, 2 e 3 / linha 3) - e de autorretratos de William
Utermohden (imagem 2 / linha1), diagnosticado com a doença.
demonstrou certa dificuldade para escolher o tema. Esboçou algo como “me diz como
faz...”, parou, pensou e, um pouco receoso, completou “... como faz café?” e comentou,
olhando para a residente e para o outro médico: “pra mulher é mais fácil porque aí
pergunta como cozinha”, ao que a esposa falou “mas ele faz café!”, indicando que
poderia ser essa a pergunta. O paciente, ainda que de maneira bem devagar, respondeu
de maneira coerente.
51 A complexidade do diagnóstico, as dúvidas e nuances que o mesmo denota, acabam por
explicitar disputas entre as áreas destinadas a delineá-lo, como neurologia, psiquiatria
e geriatria. Afinal, quem pode – ou quem tem mais autoridade – para falar em nome da
doença? Graham (2006) mostra como o diagnóstico de demência, ainda que haja um
critério, encobre diversas combinações possíveis entre sintomas e sinais dependendo da
experiência profissional e de vida do médico. Nesse sentido, os diferentes tipos de
especialidades médicas interferem nos critérios de diagnóstico diferencial (especificar
qual tipo de demência) e contribuem para a pluralidade de situações que são definidas
como demência.
52 Nessas disputas em torno do que é neurológico e do que é psiquiátrico, temos a consulta
de João, de 53 anos. Quem o acompanhou foi a esposa. Foi ela quem conversou com a
residente, já que o estado do marido é muito crítico, quase não fala, ficando de braços
cruzados e olhar perdido durante toda a consulta, chegando a cochilar em alguns
momentos.
53 A acompanhante disse que João vem piorando muito desde a última consulta, em 2012
(o diagnóstico foi de demência frontotemporal). Há 2 anos, o marido ainda falava e
conseguia escrever, mas que atualmente não consegue mais formular uma frase
completa, diz coisas sem sentido e, quando alguém conversa ou pergunta algo para ele,
repete a última palavra que a pessoa disse. Não reconhece mais os filhos e os netos. Ele
não fala que quer ir ao banheiro e faz xixi na calça, não fala que quer comer, mas
quando vê comida, come compulsivamente. Contou que, outro dia, comeu um pote
inteiro de pimenta, daquelas bem ardidas, e não esboçou qualquer reação. Já chegou a
comer ração de cachorro. Se não der banho, escovar os dentes, vesti-lo, ele não faz. “E
olha que ele era uma pessoa muito preocupada com a higiene!”, afirmou.
54 A residente, apontando para a acompanhante, perguntou quem era ela. O paciente disse
o nome da esposa. “E o que ela é sua?”, perguntou a residente. “Sua mãe”, respondeu
João. A residente fez várias anotações no prontuário. Em seguida, saiu para chamar os
médicos. Aproveitei para conversar com a esposa7. Perguntei como ela percebeu o início
da doença. Ela me explicou que já estavam separados há 5 anos quando começou. Como
continuaram amigos e saíam juntos, ela começou a perceber os primeiros sinais, há 2
anos, no modo como ele estava dirigindo – falta de atenção, não dava seta, fazia
ultrapassagem arriscada. Depois começaram alguns hábitos estranhos, como guardar
“porcarias” e “coisas velhas” e ficar enchendo garrafas com água para colocá-las no
freezer. Além disso, João demonstrava tristeza, apatia e isolamento social. Ficou
desinibido, tirando a roupa e andando pelado em público.
55 A doença fez com que ela e João voltassem a morar juntos, já que ninguém da família, a
não ser a irmã dele, demonstrou alguma intenção de cuidá-lo. “Mas a situação é muito
difícil pra mim. Não tenho mais vida; não tenho mais final de semana”, desabafou.
56 Dois médicos entraram na sala. Ao saber que o paciente estava tomando antipsicótico,
receitado por um psiquiatra, o médico-chefe se exaltou. Disse ser um problema ir ao
psiquiatra antes de consultar na neurologia. Afirmou que o antipsicótico aumenta a
78 (paciente): ah, às vezes vou na despensa pegar uma coisa e esqueço o que ia pegar.
79 (residente para a irmã): tem notado mais esquecimento dela?
80 (irmã): ah sim, ela está bem esquecida, viu? Não reconhece alguns parentes. Esquece
onde almoçou no mesmo dia.
81 (residente): ela consegue cozinhar o que cozinhava antes?
82 (paciente): eu consigo!
83 (residente): ... ou você acha que as receitas estão mais simples?
84 (irmã): estão mais simples. Ela não sai mais sozinha, não vai para a cidade...
85 (residente): acha que ela conseguiria?
86 (paciente): eu consigo!
87 (irmã): não consegue.
88 (residente): pra se vestir, tomar banho, faz tudo sozinha?
89 (paciente): faço!
90 (irmã): faz, mas assim... às vezes não sabe escolher a roupa, usa sempre a mesma...
91 (residente): dorme bem?
92 (paciente): durmo.
93 (irmã para a paciente): a senhora não acorda de madrugada?
94 (paciente): é, acordo umas 5hs e não consigo dormir mais.
95 Em outra consulta, Odila, de 82 anos, disse estar ótima. As filhas se entreolharam e uma
delas disse, baixinho: “depois ela vai entrevistar a gente!”; “é, porque ela não vai dar
nenhuma queixa!”. A mãe negou problema de memória, disse que mora sozinha, faz
todos os afazeres domésticos e que já viajou o mundo inteiro sozinha, o que as filhas
confirmaram mas com a ressalva de que a última viagem foi há 5 anos. Quando a
residente se dirigiu às filhas, elas pediram para conversar a sós, o que elas fizeram no
corredor, ficando apenas eu e Odila na sala conversando. Contou-me que trabalhou
numa loja de moda e que depois foi governanta num hotel. Falou sobre as viagens, que
faz tudo sozinha e que ainda dirige. Nesse momento entrou uma das filhas na sala e
disse ser mentira, que ela não dirige mais há alguns anos. A paciente insistiu que dirige.
Quando o médico entrou, a residente relatou que as filhas notaram a mãe mais apática
(Odila olhou para mim e fez uma cara de desaprovação) e muito esquecida, contando a
mesma coisa várias vezes no mesmo dia. O diagnóstico está em investigação.
96 No ambulatório da neurologia, Luís, de 63 anos, diagnosticado com demência vascular,
discordou do relato da esposa. Segundo ela, o marido se tornou mal-humorado e
esquecido, começou a errar ao dirigir, andando no meio da faixa, chegou a confundir
dinheiro com o documento, quebrou os pratos, um dia, porque não queria comer
macarrão, começou a errar o serviço, ficando muito nervoso e querendo bater nas
pessoas, quer sair de casa, sacudindo o portão, perde-se dentro de casa, não sabendo
onde fica o banheiro e já tendo confundido a sala com o quarto, põe roupa ao contrário
e está mais triste. Um dia, no supermercado, falou para um homem que ele estava gordo
e, para uma mulher, que ela parecia homem. Após uma longa conversa com a esposa, o
residente se dirigiu ao paciente, o qual permaneceu quieto durante a consulta e parecia
não estar prestando atenção, perguntando se ele estava mais triste. De maneira
exaltada, ele respondeu: “tudo o que ela falou é mentira. Não é bem assim não! Quando
ela falou do portão, foi porque eles trancaram. Eu não tô louco!”
97 (residente): a gente conversa com o familiar porque às vezes a gente não percebe. O que
o Sr. acha do que ela falou?
98 (paciente): acho que ela é ignorante! Esse negócio da comida... se eu não gosto, eu não
como mesmo.
99 (residente): e por que o Sr. está aqui?
100 (paciente): porque eu quero me curar.
101 (residente): e o que o Sr tem?
102 (paciente): dor de cabeça; quero sarar minha dor de cabeça;
103 (residente): e o Sr faz alguma coisa?
104 (paciente): tudo que eu vou fazer não posso. Eles não deixam, aí vira briga. Eu queria
trabalhar.
105 No exame físico, o residente pediu ao paciente para andar lá fora, no corredor. Ficando
só eu e a esposa na sala, ela virou para mim e disse, num sussurro: “ai, eu não quero
mais falar na frente dele. Viu como ele ficou bravo?”.
106 Um senhor de 81 anos, acompanhado pela esposa e pelo filho, também ficou nervoso
com a família. Era a sua primeira consulta no ambulatório da psiquiatria geriátrica. A
esposa contou que o marido está mais esquecido de uns 4 anos para cá e só fala do
passado, que ele está muito ansioso, não aceita a idade e às vezes diz que está com
depressão. O marido discordou: “eu só falo que tô velho, ué, e não tô?”. A residente
perguntou se ele faz alguma atividade em casa e a esposa riu, dizendo para perguntar
para ele. “Eu não! Arrumar cozinha? Cada macaco no seu galho!”, respondeu. A
conversa continuou:
107 (residente): paga conta?
108 (esposa): paga, mas está com mais dificuldade para fazer a conta. Eu vou com ele para
pegar o pagamento.
109 (residente): por quê?
110 (esposa): ah, porque ele faz confusão.
111 (paciente): confusão? Que confusão eu faço? Fala pra mim! (em tom exaltado)
112 Teodorica, de 80 anos, foi à consulta acompanhada pela cuidadora (profissional), que
está com ela há 3 anos. A senhora, bem vestida e sorridente, disse estar muito bem e
que faz ginástica 3 vezes por semana.
113 Durante a consulta, a cuidadora disse que a paciente está muito esquecida, não faz nada
em casa, mexe nas coisas, deixando uma bagunça. Teodorica, ficando de cabeça baixa na
maior parte do tempo, “bufou” e olhou brava para a cuidadora em alguns momentos,
numa clara discordância do que estava sendo dito. Às vezes soltava um “ai, meu Deus!”
e olhava para mim, mostrando indignação.
114 (residente): em casa, é a sra quem faz as coisas?
115 (cuidadora): não faz nada; eu que faço tudo. O que ela faz é esquentar o leite dela
quando não estou.
116 (residente): a sra sai sozinha?
117 (paciente): saio.
144 Rafael, de 81 anos, disse, logo no início da consulta na neurologia, que “proibiram de eu
viajar”. E continuou: “deixa eu perguntar uma coisa para a sra. Tô morando na casa
desse filho e ele tá construindo; eu posso fazer uma massinha lá?” A residente
respondeu que pode, mas com supervisão. O filho balançou a cabeça de um lado para o
outro, discordando, e contou que, um dia, o pai teve tontura enquanto consertava uma
pia. A conversa seguiu:
145 (filho): ele anda querendo tomar umas pingas mas não deixo.
146 (paciente): que tomar pinga o que, rapaz? Eu não bebo bebida alcoólica...
147 (filho): não bebe porque eu não dou.
148 (paciente): olha, o Sr. me respeite... (filho ri)
149 (residente): come bem?
150 (filho): come que nem um touro.
151 (paciente): como um pratinho pequeno só. (filho faz uma expressão de discórdia) Que é que
é isso? (diz Rafael, percebendo a expressão do filho. Filho ri)
152 (residente): toma banho sozinho?
153 (filho): tem que brigar...
154 (paciente): mas você é um pastor na igreja...
155 (filho): tem dia que ele esquece...
156 (paciente): tem dia que tomo banho duas vezes pra não brigar...
157 Nesse embate entre acompanhante e paciente, o parentesco se constitui e se
desconstitui, instaura-se uma estranheza, redefinem-se relações e pais, filhos e
cônjuges se tornam cuidadores e narradores – e, de certa maneira, “diagnosticadores”.
Administrar a tensa coexistência entre “deixar fazer” e “fazer por ele” implica numa
negociação constante entre o enfermo e os familiares; alguns o fazem com bom humor
e brincadeiras, mas, em muitas vezes, a interação é alvo de conflitos.
158 A coexistência entre “deixar fazer” e “fazer por ele” parece se tornar ainda mais tensa e
de difícil administração quando se está diante de um velho. A doença de Alzheimer faz a
velhice oscilar entre o normal e o patológico, sendo mais uma fronteira difícil de ser
delimitada.
159 A ponderação sobre o uso de medicamentos numa doença misteriosa e incurável como
a doença de Alzheimer é recorrente entre os médicos e residentes. A velhice faz com
que a cautela seja ainda maior. Em uma conversa com a residente, o psiquiatra disse:
“muita cautela para usar antipsicótico em idoso porque aumenta risco de evento
cardiovascular. Só usar em casos graves, por exemplo, aquele paciente com demência
que ficava dando com a frigideira na cabeça da esposa”. Numa discussão de caso na
neurologia, o médico, apesar da queixa da filha de que o pai passava a noite sem
dormir, não receitou qualquer remédio, dizendo:
Nós temos que aprender a pensar nos efeitos colaterais, tentar outras coisas
primeiro. Vamos tentar mudar isso (a insônia) com atividade física, não deixar o
paciente dormir durante o dia, tem que dar atividades pra ele ocupar a cabeça, não
tomar café e refrigerante à noite, não ver novela e filme muito agitado, ter horário
para dormir. Fazendo tudo isso já é pra melhorar o sono dele.
160 Diante de duas demências graves – demência vascular e doença de Alzheimer,
respectivamente -, ouvi os médicos psiquiatras dizerem aos residentes:
A gente precisa ponderar. Os principais dilemas nossos não são técnicos, mas
morais. O que é melhor? A medicina fala em defender a vida em primeiro lugar, mas
que vida? Que vida é essa? Pra mim, a medicina precisa dar conforto, aliviar o
sofrimento. Então, se ele não está mais agressivo, porque era um caso grave - fazia
xixi na roupa, tinha alucinações -, é melhor dormir mais e dar conforto à família do
que mantê-lo acordado mais agressivo, irritado. Então, se ele não está dopado e não
está incomodando a família, deixa como está.
Ela bate papo com as alucinações. Se não está incomodando a família, não está
causando sofrimento, se ela não fica agitada, tentando pegar as alucinações, acho
melhor não alterar os remédios nessa altura, porque aí mexe, às vezes tem recaída.
Aí é melhor ficar lá, quietinha com as alucinações. Precisamos ponderar os efeitos
colaterais dos remédios. Às vezes, é melhor deixá-la falando com as alucinações.
161 Em conversa comigo, um psiquiatra disse: “Sabe o que é mais difícil em demência e que
eu tive que aprender? É que às vezes não tem o que fazer! Demência grave não tem o
que fazer! A gente tenta, fica angustiado, mas não tem o que fazer.” Numa conversa
entre o psiquiatra e uma residente, ele recomendou: “quando é demência grave, a gente
tem que sentir a família, se a família está enlouquecendo, pra saber se aumenta o
remédio, deixando o paciente mais sedado. Porque senão a família não aguenta mesmo,
tranca o paciente, bate”. “Já aconteceu!”, disse a residente. “É então... e a gente vai
julgar? Não dá pra julgar!”, complementou o médico.
162 “Sentir a família” acaba por orientar muitas das decisões quanto à medicação. Se a
demanda da família é levada em conta no manejo da medicação – e o relato do
cuidador-familiar é indispensável para a investigação da doença -, alguns de seus
conflitos atravessam as paredes da sala de consulta e não podem ser resolvidos ali.
Ouvindo mais uma conversa no ambulatório da psiquiatria, o residente contava o caso
de uma filha que cuida da mãe diagnosticada com doença de Alzheimer. Segundo o
residente, a filha está esgotada, não aguenta mais, chorando na consulta. O médico
disse que “isso é o mais difícil no Alzheimer: lidar com o contexto. Mas nosso trabalho é
limitado nisso. O que vamos fazer? É uma situação que não se resolve com prescrição de
receitas”. “A gente tem que mexer no que é mexível”, ouvi outro psiquiatra sobre um
caso de depressão.
163 Numa consulta no ambulatório da neurologia, as filhas, que acompanhavam o pai,
contaram como a doença acirrou o conflito entre elas e a madrasta, numa tentativa de
pedir uma intervenção por parte do residente que atendeu o caso. Segundo as filhas, a
madrasta não cuida do pai, deixando-o “todo mijado, sem agasalho, descalço”.
“Complicado”, disse o residente. “Eu não sei o que posso fazer não. Essas coisas de
família a gente não pode interferir. Vocês podem ir atrás de entrar com uma ação de
maus tratos.”
164 O manejo da medicalização a partir das ponderações trazidas pelo familiar e a
dificuldade de lidar com o contexto parecem se encontrar na recomendação, quando
possível (normalmente para casos leves e moderados) de tratamentos não
farmacológicos, como estimulação cognitiva (oficinas de memória, musicoterapia,
arteterapia, participação em cursos e atividades para idosos) e participação em
reuniões sociais e familiares, numa tentativa de diminuir ou estabilizar os remédios e os
conflitos familiares. Porém, tal recomendação também pode ser vista como uma
maneira de não levar em conta o contexto, já que algumas famílias reclamam não ter
dinheiro para pagar profissionais que façam essas atividades e/ou tempo, pois não
podem deixar o emprego.
165 A dificuldade de se lidar com o contexto também pode ser vista em falas como “não faço
nada, tô aposentado!”, quando o doente é questionado sobre as atividades que faz
durante o dia e “não há necessidade de saber o dia!”, quando é perguntando sobre isso
no teste. Outro aspecto é em relação ao gênero, já que, diante de perguntas sobre
atividades domésticas, como cozinhar, fazer supermercado, arrumar a casa, alguns
dizem não fazer tais atividades não porque não conseguem em função da doença, mas
por serem tidas como “femininas”. “Cada macaco no seu galho”, “Ah, isso eu nunca fiz
mesmo!”, “isso é ela quem faz!” são expressões que mostram como o gênero constitui
pessoa e a relação com a doença. As perguntas referem-se a um script normalmente
esperado da mulher, indicando muito mais uma hierarquia de gênero do que o
comprometimento da funcionalidade por causa da doença.11
166 Se a família é fundamental para chegar ao diagnóstico e atua como medida ou dosagem
para a indicação ou suspensão de medicamentos, ela também é um obstáculo ao levar à
consulta situações e conflitos que, apesar de relacionados ao caso que está sendo
atendido, fogem da alçada do trabalho médico. Se o familiar-cuidador contribui para
recuperar e compor os fios soltos que vão sendo deixados nas trajetórias do doente, tal
empreitada não se dá sem constrangimentos e discordâncias. Nesse entrecruzamento
de vozes, ruídos, lacunas, silêncios são ouvidos.
181 (médico): mas é importante fazer alguma coisa. (dirigindo-se ao paciente) Nós estamos
falando do Sr. O que o Sr. acha da nossa conversa?
182 (paciente): a conversa tá boa.
183 (medico): o Sr. tá esquecido?
184 (paciente): tô.
185 (médico): o Sr. acha isso ruim?
186 (paciente): não.
187 (médico): o Sr. é animado ou desanimado?
188 (paciente): animado. (filha se surpreende, comentando “ah, é...”)
189 (médico): por que o Sr. não quer fazer as coisas? É importante para o Sr. fazer...
190 (paciente): ah, tô velho, né... quero descanso; é preguiça. (ri)
191 (médico, para a residente): eu faço essas perguntas pra saber da parte emocional, não só
da memória. Apatia é um sintoma muito comum da doença de Alzheimer, mais do que
depressão. A gente tem que ver outros sintomas, não só os cognitivos. Apatia é não
querer fazer; cognição é não saber, não conseguir fazer. Toda vez tem que perguntar
não só sobre esquecimento mas também sobre funcionamento. Para casos leves, fazer
perguntas mais para se vestir, tomar banho. Para casos graves, fazer perguntas sobre
alimentação. Se a alimentação estiver comprometida, não por motivos motores mas
cognitivos, aí todo o resto também vai estar. A capacidade funcional é cognitiva.
192 Antes de ir embora, o médico se virou para Joaquim e disse: “o Sr. ouviu o que eu falei?”
E ele respondeu, rindo: “pra comer muito e dormir”. O médico, também rindo, rebateu:
“não. É pra fazer caminhada pra perder essa barriga aqui!” (apontando a barriga do
paciente). Quando o médico saiu, a residente olhou para a filha e disse: “o que tem mais é
apatia. Vamos tentar fazer com que ele participe mais, fazer atividade física”.
193 Acompanhada pelo marido, Aparecida, de 67 anos, foi à consulta na neurologia.
194 (residente): como a sra está?
195 (paciente): ah, é difícil de gravar! Eu vejo tudo e aí, quando eu vou contar, não sai.
196 (residente): me dá um exemplo.
197 (paciente não soube dar exemplo e olha para o marido)
198 (marido): esquece o dia, onde guardou a roupa...
199 (residente): esquece nomes de pessoas?
200 (marido): da família não, mas das pessoas da igreja sim... a gente vai na igreja quatro
vezes por semana. Ela era professora, é professora.
201 (paciente): deve ser mal de professora isso, viu! Conheço várias assim.
202 (residente): faz a comida?
203 (marido): faz, mas a gente tem que ficar acompanhando. Às vezes esquece de pôr açúcar
no café...
204 (residente): tá fazendo exercício físico?
205 (esposa): faço caminhada.
206 (marido): é, a gente faz caminhada três vezes por semana.
207 (residente): a memória tá piorando?
nora). Porque senão falamos que é depressão e pronto. Precisamos saber quais outros
domínios do cérebro são afetados, se tem esquecimento, se deixa fogão ligado, se
esquece nomes de parentes, para saber se é demência.
257 A complexidade da busca pelo diagnóstico é discutida, com frequência, pelos médicos e
residentes. Em uma das aulas, um psiquiatra falou sobre isso.
A psiquiatria geriátrica é um passo a mais do que a psiquiatria geral. Na psiquiatria
geral, se tem delírio auditivo, é esquizofrenia. Se tem depressão, é depressão. Mas
na psiquiatria geriátrica, se tem depressão, não significa que é depressão: pode ser
algo a mais, por exemplo, demência. Se tem alucinação, pode ser esquizofrenia ou
demência. Se a pessoa começa a desenvolver sintomas neuropsiquiátricos
tardiamente, devemos suspeitar de demência. É preciso ter uma visão mais
espectral.
258 As consultas mostram as nuances que envolvem a doença de Alzheimer, ora vista como
uma doença orgânica, do cérebro, neurológica, ora como um misto entre o orgânico e o
psíquico/social. As fronteiras entre depressão e demência são tênues, uma vez que há
sintomas em comum, como apatia, tristeza, perda de atenção e falta de iniciativa para
realizar atividades. Uma depressão pode levar a uma demência e uma demência pode
levar a uma depressão. Quando há o comprometimento do que médicos e residentes
chamam de funcionalidade, o caso tende a ser diagnosticado como demência, ainda que
a pessoa esteja também deprimida.14 Como um psiquiatra me disse, uma pessoa com
depressão não deixa de saber como se cozinha, toma banho ou atravessa a rua, mas
alguém com demência pode não mais conseguir fazê-los. Por isso, as consultas precisam
de longas conversas com o paciente e o acompanhante. Aqui, detalhes do cotidiano
contam e muito.15
259 Ainda que seja um fio importante para a composição da doença, a memória está
entrelaçada às atividades do dia a dia, relacionando-se a outras dimensões. Um
neurologista, após ouvir a residente dizer que a paciente esquece como cozinha e só se
lembrou de 4 nomes de animais, chamou-lhe a atenção: “viu como a gente tem mania
de achar que tudo é memória? A gente vê como problema de memória e não de
linguagem, cognição”. Ou seja, ao invés de tomar o “não mais cozinhar” e o baixo
número de nomes de animais ditos (a fluência verbal de uma pessoa considerada
saudável é de 11 ou mais) como problemas de cognição (não conseguir fazer) e de
linguagem, respectivamente, a residente teria interpretado como problemas de
memória (esquecer-se de cozinhar ou de como cozinhar; não se lembrar dos nomes).
260 Esse mesmo neurologista, numa avaliação de outro paciente, ao achar estranho que a
queixa era mais amnéstica sendo que o quadro parecia ser de demência vascular, o qual
apresenta sintomas mais motores (como marcha e movimentos lentificados), comentou
com a residente: “a questão é que o paciente ou o familiar sempre fala de memória: “ah,
ele esquece de dar descarga” (uma das queixas trazidas pelo familiar); provavelmente não é
esquecimento, mas mais alteração de comportamento, desleixo com a higiene pessoal.
Se perde o caminho, falam que ele esqueceu... mas nem sempre é isso; a confusão nem
sempre é esquecimento”. Além disso, a memória, na relação com a funcionalidade, pode
transbordar para outras dimensões possíveis, numa oscilação com a imaginação e a
alucinação – é quando o cotidiano se torna assombrado. 16
embaixo do chuveiro para tomar banho – numa outra vez, tentou tomar banho com a
água do vaso sanitário -, Guilherme, que vestiu a camisa como se fosse calça e tentou
mudar o canal da televisão com um chinelo. Se o cotidiano pode se tornar assombrado,
a busca pelo dia a dia, na clínica, é imprescindível: é preciso recolher os rastros que
restam, ainda mais numa doença cujos fios vão se soltando aos poucos 25. As fotografias e
os relatos que vimos mostram como essas cenas domésticas se tornam também
metáforas, assombros, fantasmas da doença.
272 Entre a popularização e a incerteza, entre a epidemia e a indefinição, a doença de
Alzheimer se torna tanto um enigma quanto um termo guarda-chuva: ao mesmo tempo
em que não se sabe ao certo o que é nem o que fazer, ela abarca uma multiplicidade e
heterogeneidade de situações. O nome “doença de Alzheimer” se desloca ao longo das
notícias, diagnósticos, experiências e relatos. Comprometimento cognitivo leve,
demência, velhice, loucura podem se tornar “doença de Alzheimer”, num constante
deslize, ao mesmo tempo em que há uma investigação minuciosa para se chegar ao
diagnóstico. As dúvidas se é doença ou velhice, as oscilações entre demência e lucidez,
rotina e criatividade, terror e humor, as nuances entre neurológico e psiquiátrico,
normal e patológico, memória e alucinação, a ambiguidade do trauma como causa e não
causa indicam uma densidade de relações difícil de ser discernida.
273 O diagnóstico como um “embrolho” difícil de desatar 26, numa doença cujos fios vão se
soltando aos poucos, traz uma abertura da clínica: a classificação dos sintomas coexiste
com a necessidade de recolher os detalhes do dia a dia, imaginar cenas, ouvir relatos e
queixas de pacientes e cuidadores, ponderar medicamentos, sentir a família, lidar com
a incerteza, reconhecer quando não há o que fazer. O discurso da “dissolução do self”
coexiste com a recomendação de estimulação cognitiva, a rotina, com a criatividade e
importância das relações sociais. A busca pelo diagnóstico alarga a temporalidade
clínica ao arrastar a investigação por anos, às vezes de maneira a nunca se concluir,
num processo em contínuo movimento no qual seguir os rastros e as pistas do cotidiano
se torna tão ou mais importante do que o ponto de chegada. Nesse sentido, a doença de
Alzheimer alarga o paradigma biomédico, uma vez que a busca e dificuldade da
classificação encontram outros pontos, outras linhas ao longo do percurso, como a
narrativa, a experiência, o cotidiano, a incerteza.
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Blogs:
http://living-with-alzhiemers.blogspot.com.br/
http://davidhilfiker.blogspot.com.br/
NOTAS
1. Se, para a doença de Alzheimer, o sintoma mais importante é a perda da memória, na
demência frontotemporal são as mudanças comportamentais o que mais chama a atenção, como
desinibição, agressividade, desleixo com a higiene pessoal etc. Tais nuances, porém, são difíceis
de serem percebidas e muitas vezes se embaralham, tornando o diagnóstico diferencial (se é
doença de Alzheimer ou outro tipo de demência) ainda mais complexo e demorado.
2. Discussão de caso é uma expressão usada por médicos e residentes e se trata de uma conversa
entre eles numa tentativa de chegar ao diagnóstico.
3. O comprometimento cognitivo leve (CCL) está no limiar entre o envelhecimento tido como
normal e o envelhecimento considerado patológico. O CCL é alvo de polêmica entre os médicos:
mesmo não sendo doença, alguns defendem uma intervenção farmacológica como forma de
prevenção de uma possível demência, apesar de alguns estudos mostrarem uma baixa eficácia dos
remédios nessa “fase”.
4. Outros familiares associaram o início da doença a algum episódio traumático ou de grande
stress. O trauma como causa, porém, é polêmico para os médicos: ora eles admitem essa
possibilidade, ora a descartam em favor de uma interpretação mais orgânica, neurológica da
doença.
5. “Paciente”, “doente”, “doença” são termos em suspensão, já que o que estou propondo é
investigá-los. “Paciente” denota uma passividade que não condiz com o que observei nas
consultas. “Doente” e “doença” não podem ser tomados de antemão, já que pretendo percorrer a
composição dos mesmos. Uso tais termos dentro de contextos específicos, como as consultas
médicas.
6. Em outra consulta, esse mesmo médico disse “não se é demente o tempo todo!”, mostrando
que há flutuações na doença.
7. Durante a consulta, ficava numa cadeira, no canto da sala, observando e anotando o diálogo em
meu caderno de campo. Apesar de tentar ao máximo não interferir para não prejudicar a
investigação clínica, era comum paciente e acompanhante olharam para mim, fazer algum gesto,
falar algo. Nos vários momentos em que o residente saía, seja para pegar receitas ou para chamar
os médicos, aproveitava para conversar com eles.
8. A carbamazepina é um dos principais fármacos utilizados para o tratamento da epilepsia
9. Alterações comportamentais, como apatia, agressividade, desinibição etc.
10. Até o momento, a doença de Alzheimer é considerada incurável. Apesar disso, os médicos e a
equipe de voluntários da Associação Brasileira de Alzheimer (ABRAz) dizem que ela tem
tratamento através do manejo dos sintomas (agressividade, apatia, alucinação, tristeza etc).
11. Isso reforçou a desconfiança que vinha tendo em relação a uma explicação meramente
demográfica que normalmente é dada por médicos e profissionais da saúde para o índice de dois
a três vezes maior de incidência de doença de Alzheimer em mulheres (as mulheres, por viverem
mais, teriam mais chances de ter a doença). Será que há mais casos de doença de Alzheimer em
mulheres ou eles são mais facilmente percebidos e diagnosticados, uma vez que, como estamos
vendo, detalhes do dia a dia, principalmente no que se refere às tarefas domésticas, são
fundamentais para o diagnóstico? Se os homens não fazem tais atividades, a busca pelo
diagnóstico se torna ainda mais difícil.
12. Mini Exame do Estado Mental, com perguntas para avaliar memória, função executiva,
orientação temporal e espacial.
13. Analfabetismo – ou o pouco uso do cérebro ao longo da vida -, tabagismo e sedentarismo,
além de outras comorbidades (como diabetes, obesidade, hipertensão, depressão) são
considerados fatores de risco para o desenvolvimento da doença.
14. Para uma discussão sobre o binarismo funcional/disfuncional como substituição do par
normal/patológico na gerontologia e sexologia, ver Katz, S. & Marshall, B. (2004).
15. O diagnóstico é clínico, ou seja, baseado na investigação com paciente e acompanhante
durante a consulta. Exames de neuroimagem, como ressonância magnética, são um suporte ao
diagnóstico, indicando qual parte do cérebro está mais atingida – se for o hipocampo, região
responsável pela memória, a suspeita é de doença de Alzheimer; já a região frontal atrofiada
indicaria a demência frontotemporal. A neuroimagem, porém, não define o diagnóstico, apenas o
auxilia. Até o momento, não há um exame que detecte a patologia e o diagnóstico é sempre de
“provável doença de Alzheimer”.
16. Discuto memória em “Rastros da memória na doença de Alzheimer: entre a invenção e a
alucinação” (Revista de Antropologia USP, no prelo).
17. Sobre como o diagnóstico mudou nos últimos dois séculos, tornando-se mais técnico,
especializado e burocrático, ver Rosenberg (2002).
18. Além de abalar a definição de diagnóstico moderno presente na coletânea Sociology of
Diagnosis, o diagnóstico da doença de Alzheimer, como uma sobreposição entre natureza e
cultura, orgânico e inorgânico, jamais foi moderno também no sentido de Latour (1994).
19. Como fazer um diagnóstico precoce é o principal tema das aulas e pesquisas na medicina.
Sobre como essa expectativa muda visões pessoais e respostas sociais para a doença de
Alzheimer, ver Yvonne Cuijpers e Harro Van Lente (2015).
20. Como disse Temple, em Sacks (2006): “Se pudesse estalar os dedos e deixar de ser autista, não
o faria – porque então não seria mais eu. O autismo é parte do que eu sou” (p.290).
21. Numa campanha denominada “Still”, na rede social Facebook, a Associação de Alzheimer da
Irlanda publicou fotos de pessoas com a doença segurando um cartaz escrito “still (nome da
pessoa)” ou “still (insistently) (nome da pessoa)”. Ainda que a doença de Alzheimer não seja vista
como traço da personalidade – apesar de alguns traços de personalidade serem elencados como
fatores de risco para a doença -, existe uma reivindicação de uma diferença ontológica criada pela
doença – “Bem vindo ao meu mundo”, escreve Joe, autor do blog Living with Alzheimer´s – ao
fazer dela um modo de subjetivação, um estilo de vida. Se tal reivindicação pode ser importante
para que essas pessoas sejam ouvidas e reconhecidas, ela pode criar um abismo ou uma dicotomia
entre “nós”, saudáveis, e “eles”, doentes, podendo prejudicar a comunicação e convivência.
22. Como vimos, alguns pacientes, ao serem questionados pelo residente sobre como se sentiam
ou o que tinham, respondiam estar bem ou se referiam a outras queixas, como tontura, resfriado,
dor de cabeça.
23. Na ABRAz pesquisada, os doentes/pacientes não podem participar das reuniões. Em uma
reunião, a coordenadora chamou a atenção da filha por ela ter levado o pai – já era a segunda vez
que ela o levava -, diagnosticado com doença de Alzheimer, explicando que o grupo era voltado
aos familiares. A filha não gostou, disse que o pai ficava esperando a hora de ir e que, não tendo
com quem deixá-lo, ela não poderia mais participar das reuniões – o que aconteceu. Também
entre a equipe de voluntários, isso já foi motivo de discórdia: enquanto a educadora física e a
psicóloga insistiam para que houvesse atividade voltada a eles, a coordenadora, que é
fonoaudióloga, resistia à tal possibilidade.
24. É muito comum associar a doença de Alzheimer à “dissolução do self”, expressão usada por
médicos e residentes para indicar um sintoma alucinatório, uma “perda da noção de realidade”,
quando, por exemplo, o doente não se reconhece ao se ver no espelho. Em minha pesquisa,
problematizo essa expressão ao mostrar que ela se conecta a uma determinada noção de pessoa e
interpretação da doença. Ao trazer os relatos dos próprios doentes, é possível dissolver e/ou
potencializar a dissolução, vendo outras maneiras possíveis de lidar com e compreender a doença
para além do discurso biomédico.
25. “É como se os fios fossem se soltando aos poucos”: era assim que a coordenadora da ABRAz
começava a explicar a doença nas reuniões do grupo de apoio aos familiares.
26. Numa frase de um psiquiatra, ao comentar as novas pesquisas sobre diagnóstico precoce: “o
biomarcador é importante, mas achar que ele vai desatar, acabar com o embrolho...”.
RESUMOS
A partir da observação de consultas nos ambulatórios de neurologia e psiquiatria geriátrica de
um hospital universitário e de reuniões da Associação Brasileira de Alzheimer, o artigo mostra o
complexo e difícil trajeto para a composição do diagnóstico de doença de Alzheimer, com vozes
entrecruzadas de cuidadores-familiares, doentes, residentes e médicos, disputas entre as áreas da
medicina, polêmicas e revisões diagnósticas. Ao longo da tessitura da doença, a funcionalidade se
apresenta como embate narrativo e performático entre os sujeitos envolvidos e o diagnóstico se
revela um enigma que desestabiliza não só paradigmas médicos, mas também filosóficos,
políticos, sociais ao conectar a doença com outras noções, como memória, pessoa, velhice. Nesse
percurso, a família aparece como medida e desmedida: se o relato do cuidador-familiar é
fundamental para o diagnóstico, ele leva às consultas outros conflitos que transbordam a
competência médica.
From observation of consultations in the outpatient clinics of neurology and geriatric psychiatry
of a University hospital and meetings of the Brazilian Association of Alzheimer's, the article
shows the complex and difficult path to the composition of the diagnosis of Alzheimer's disease,
with voices intersecting caregivers-family members, patients, residents, and doctors, disputes
between the areas of medicine, polemics and diagnostic reviews. Along the composition of the
disease, the functionality presents itself as a collision of a narrative and the performance
between the subjects involved and the diagnosis reveals itself as a puzzle that destabilizes not
only the medical paradigms, but also philosophical, political, social, when the disease is
connected to other notions, such as memory, person and old age. On this journey, the family
appears as measured and unmeasured: if the familiar-caregiver report is critical to the diagnosis,
it leads to queries other conflicts that spill over medical competence.
ÍNDICE
Palavras-chave: doença de Alzheimer, diagnóstico, funcionalidade, cuidador-familiar, cotidiano
Keywords: Alzheimer`s disease, diagnosis, functionality, caregivers-family, everyday life
AUTOR
DANIELA FERIANI
Doutora em Antropologia na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp)
danielaferiani@yahoo.com.br
Introdução
1.
1 João Pessoa, janeiro de 2015. Imagine-se na frente de uma vitrine. À sua frente, entre
um item decorativo e outro, apresentam-se calcinhas e sutiãs vestidos em manequins
sem qualquer expressão de vida. Essa imagem é o que na linguagem cinematográfica
poderia ser chamada de plano aberto. Uma grande angular com foco ao centro e sem
muitas camadas de informação. Agora adensemos mais um pouco e entremos nos
detalhes da vitrine: calcinhas vermelhas e outros tons que poderiam ser lidos como
“provocativos” dentro de certa gramática do sexo. Em destaque, uma lingerie preta
decorada com rendados, busto farto sustentado por uma armação em ferro e nas costas,
além dos detalhes sutilmente desenhados, inúmeras casas pelas quais um pedaço de
cetim ou seda compõe um jogo de amarração. A estética da peça convida à companhia.
Como amarrar a lingerie sem algum tipo de parceria, seja amigável, filial ou conjugal?
2 Pois então, entremos na loja a fim de conferir informações de caráter prático, como
preço e possibilidades de troca – afinal, estamos em um mundo que apesar do clima de
sensualidade e sensibilidade que tenta construir, ainda é o mundo do comércio e do
capital. A pequena loja é composta por araras nas paredes que organizam os produtos:
calcinhas, pijamas, sutiãs e meias especiais. Numa pequena porção da parede próxima à
vitrine também se percebe alguns cabides ocupados por cuecas. Poucas. Ao centro, duas
mesas expõem outros tipos de produto e mais ao fundo a loja se divide entre
provadores e um balcão que funciona como caixa para fechamento das compras e
pagamento. Na pequena loja três vendedoras se dividem entre os expositores de
produtos. A contrastar com os tons vibrantes e os códigos de sensualidade da vitrine,
todas vestem calças e camisas pretas sem qualquer ilustração. Entre os expositores:
calcinhas para crianças, para idosos com incontinência urinária, para mulheres
gestantes e parturientes, cuecas, pijamas, pantufas, robes. Na diversidade de produtos
que compõem o universo das roupas íntimas, ao fundo da loja uma pequena mesa
destoa. Protegido por um vidro ali estão expostas “coisinhas”, “produtos pro casal”,
utensílios e acessórios que têm como objetivo “apimentar a relação”: óleos para
massagem – alguns esquentam, outros esfriam -, lubrificantes íntimos com promessas
de provocar sensações diversas, anéis penianos, canetas para riscar o corpo. Além disso,
espalham-se sobre a mesa outros utensílios com caráter lúdico também sugestivos:
baralhos ilustrados com posições sexuais, dados e algemas decoradas com pelúcia.
3 Pergunto se há outros produtos ‘desse tipo’ na loja. A vendedora responde: não. Sigo
em direção a outras prateleiras ao passo que minha acompanhante, curiosa e de olhos
curiosos continua a conversar com uma das vendedoras. Enquanto pergunto sobre os
benefícios anatômicos das cuecas sem costura minha companheira se inteira sobre os
efeitos provocados pelos produtos. Ao fim, uma aura de segredo nos separa.
Desconfiado, pergunto: então, o que ele disse mais? Taxativa, responde: coisas de
meninas, coisas de mulher. Finaliza com uma risada.
2.
4 Duas (outras) vitrines: uma loja física e um website. Estamos na primeira vitrine, a loja
física de um sex shop localizado em uma das avenidas mais importantes e mais
movimentadas de João Pessoa. Em uma extensa vitrine da loja, localizada no primeiro
piso de um prédio bastante simples, manequins estão enfileirados e trajando fantasias
montadas tomando como princípio de vestuário a roupa de baixo. Em contraste com o
elaborado das peças e sutileza dos materiais apresentados na primeira cena, aqui os
tecidos são simples, as roupas curtas e as lógicas que viabilizam sua produção, uso e
significação são de outra ordem: trata-se da lógica do decalque, a paródia de lugares e
posições da vida social reinseridos agora em um contexto de malícia e sedução. Em
tecidos curtos e baratos se remontam disfarces e fantasias: bombeiros, enfermeiras,
policiais, professoras e colegiais. Todavia, assim como no quadro acima, há outras
opções de fantasias que tradicionalmente serão usadas mais por mulheres do que por
homens.
5 No térreo da loja há um outro empreendimento, uma lanchonete. Meses antes
funcionava ali também uma loja de brinquedos e roupas infantis. Subimos então as
escadas laterais que dão à loja. Ao chegar ao primeiro piso, tocamos a campainha para
que o vendedor venha nos receber e a porta seja aberta. Ao adentrarmos se descortina
um outro universo de possibilidades anteriormente não previsíveis. Nada de
dissimulação ou suavização. Fantasias dividiam espaços com instrumentos e
dispositivos diversos com a finalidade de expandir as possibilidades de vivência do
sexo: algemas, cassetetes, cremes, velas, óleos, próteses penianas, inúmeros dispositivos
masturbadores, revistas, filmes, livros, bombas de sucção, ferramentas para “punição”
e para “recompensas”. Batons, óleos e gel para serem aplicados em inúmeras partes do
corpo fosse com o objetivo de esquentar, esfriar ou produzir gostos e sensações.
Instrumentos para prender partes do corpo e para expandir e esticá-las. Os materiais
eram os mais diversos: látex, couro, plástico, borracha, óleos naturais, gel, aço
cirúrgico, madeira, silicone.
Nesse caso, como se verá pelos exemplos etnográficos tratados a seguir, tais
movimentos são constituídos a partir das trajetórias dos indivíduos, como sugerido por
Barth (2005), já que em última instância cada indivíduo pode ser pensado como uma
cultura.
24 No que tange ao erotismo, o mercado se configura como uma rede polimorfa de
serviços e bens oferecidos. Desde os sex shops apresentados aqui até os motéis, os
diversos espaços de prostituição, produtos como próteses vibráteis e introduzíveis no
corpo, passando por estimuladores, bares e boates, clubes privês, até materiais como
livros, filmes e revistas, e pessoas, a oferta de materiais culturais produzidos e
distribuídos com base em conhecimentos conceituais e procedimentais sobre o sexo é
imensa. Esses produtos, mais que ilustrar a vida sexual dos indivíduos
contemporaneamente “[são organizados] para explorar todas as diferenciações sociais
através de uma motivada diferenciação de bens”, conforme sugere Maria Filomena
Gregori (2012, p.59). Veja-se por exemplo as lingeries sensuais apresentadas na
primeira cena e as próteses e fantasias da segunda. Ainda segundo Gregori, a relação do
mercado com os erotismos contemporâneos
Trata-se antes de um processo de direções variadas que implica de um lado, a
articulação entre sacanagem, autoestima, ginástica e prazer, perdendo, assim, seu
sentido clandestino anterior; de outro, a constituição de etiquetas para os
praticantes a partir de convenções de gênero e de sexualidade (Gregori 2012, p.60).
25 As relações estabelecidas a partir dos sex shops, como se verá a seguir, configuram
movimentos complexos onde processos de transformação e normatização das
convenções sobre as sexualidades convergem. Por outro lado, dentro de uma certa
perspectiva, também é possível apontar para espaços de contestação daquilo que
Hannerz (1992a) sugeriu como sendo as intencionalidades embutidas nas mercadorias
culturais e que estariam como parte constituinte dessas mercadorias junto com os
apelos estéticos, informacionais, intelectual, emocional e, acrescentemos, erótico! Nos
termos desse trabalho acredito, apoiando em Barth (2005), que esse movimento de
contestação tem como princípio a própria trajetória dos indivíduos e a interação que
estabelecem com os materiais culturais a que têm acesso.
36 No pequeno espaço pude perceber que as eventuais clientes que chegavam em sua
maioria saiam logo após dar uma rápida entrada ou espiarem pela entrada. Resolvi
então ser mais efetivo e perguntei “e as fantasias da vitrine, tem mais ou só essas?”.
Surpresa e ao mesmo tempo animada, como se tivesse descoberto alguma coisa ela
então me olha enérgica e diz: “ah! Então é pra sua namorada?!”. Pergunto como ela
descobriu: “ah, desconfiei logo, e o senhor não tem aliança”. Em araras penduradas na
parede próximas ao fim da loja a vendedora me apresenta algumas das variações das
mesmas fantasias que havia previsto anteriormente: coelhas, enfermeiras, professoras,
estudantes colegiais. Além desses tipos chamava atenção pelo contraste uma única
fantasia que composta por uma pequena camisa de estampa xadrez e um tecido que
imitava o jeans tentava dar um ar de cowgirl, ou como me explicava a vendedora
“menina de rodeio”.
37 As respostas apresentadas a mim pela vendedora configuram algo que pode ser pensado
como uma transformação nas dinâmicas da sexualidade no cenário urbano
contemporâneo. Essa transformação diz respeito à participação das mulheres na
construção daquilo que vamos chamar de ‘cenários sexuais’, isso é, as situações
cotidianas que no contexto das trajetórias individuais configuram as experiências
vividas. Como observa a vendedora, a maior parte dos clientes da loja é feminina,
informação que pude constatar também nos demais lugares que etnografei. Essa
informação é sustentada também pela ABEME que em pesquisa de 2012 afirmou que
70% do público atendido pelas empresas associadas a ela eram mulheres. Se dentro de
um regime de produção da sexualidade caracterizado pela família burguesa, como
sugere Foucault (2013), há um processo de maior controle sobre o corpo da mulher e
inclusive sobre suas possibilidades de manifestação de desejos e vontades, através de
uma lógica de consumo o mercado vem provocando transformações nas convenções
possibilitando às mulheres acesso a bens, serviços e informações que produzem
mudanças nas suas próprias experiências sensoriais e uso dos prazeres.
38 Essa mudança, todavia, precisa ser vista com maior atenção e não ser confundida com
uma liberdade da mulher tomada de modo generalizado e irrefletido. Não seria
produtivo, em termos analíticos, sugerir a existência de uma estrutura em processo de
reajustamento em função da recorrência de eventos promovidos pelos indivíduos no
curso do tempo, como possivelmente sugeriria Marshal Sahlins (2008). Nesses termos,
ainda que, conforme Sahlins, seja importante considerar a intencionalidade do
indivíduo cotidianamente compondo as situações de sua vida, parece haver relações
bem mais complexas, configurando arranjos polimorfos e mutáveis, não estruturas. As
negociações entre estado e formas de vida como molduras conservadoras na
distribuição da cultura e, por outro lado, mercado e movimentos na tentativa de
distribuições transformativas e alternativas parecem estar além da definição proposta
por Sahlins de estrutura da conjuntura para explicar os processos de transformação da
vida social.
39 Aquém de uma suposta liberdade da mulher, parece haver uma redefinição das táticas
de controle e intervenção sobre o corpo que se faz agora não na instância da proibição e
da interdição, mas no adestramento e docilização. Como assinala Foucault, os processos
que caracterizam o dispositivo da sexualidade não excluem os característicos do
dispositivo da aliança. Ambos atuam de modo simultâneo, em disputa. Nesse sentido,
percebo haver aqui uma convergência entre práticas contestatórias possibilitadas
através da circulação de mercadorias culturais em uma escala global, como anteviu
Hannerz (1992a) que são compensadas por um regime de controle sobre os usos do
corpo e os prazeres.
Se o dispositivo da aliança se articula fortemente com a economia devido ao papel
que pode desempenhar na transmissão ou circulação de riquezas, o dispositivo da
sexualidade se liga à economia através de articulações numerosas e sutis, sendo o
corpo a principal – corpo que produz e consome. Numa palavra, o dispositivo da
aliança está ordenado para uma homeostase do corpo social, a qual é sua função
manter. Daí seu vínculo privilegiado com o direito; daí também o fato de o
momento decisivo, para ele, ser a “reprodução”. O dispositivo da sexualidade tem,
como razão de ser, não o reproduzir, mas o proliferar, inovar, anexar, inventar,
penetrar nos corpos de maneira cada vez mais detalhada e controlar as populações
de modo cada vez mais global (Foucault 2013, p.116).
40 Essa interseção entre transformações e permanências, entre convenções e câmbios são
operadas através de categorias que presumem, como se verá mais adiante, a existência
de uma verdade sobre o sexo que pode ser aprendida, como já assinalado por Rubin
(1984). Sobre essa verdade, adverte a autora, as variações são percebidas como
negativas, ainda que possam ser negociáveis. Nesses termos, o mercado erótico como
percebido aqui, pode ser percebido como um gigantesco operador atuando na
negociação dessas fronteiras entre prazer e perigo, em especial no que concerne às
sexualidades femininas, como já percebido por Vance (1984).
41 Essas aproximações entre conversão e convenção tal como estabelecidas aproximam-se
da noção proposta por Maria Filomena Gregori (2012; 2011) de um ‘erotismo
politicamente correto’ construído nesse processo de negociação de fronteiras e baseado
na existência de uma sexualidade saudável pela qual deve-se zelar. Se no trabalho de
Gregori essas noções parecem ser acionadas principalmente em sex shops segmentados
para públicos em estratos sociais mais altos, de modo mais ou menos objetivo essa
noção parece orientar o funcionamento de quase todos os espaços que pude observar.
42 De modo mais específico, tal como operada no contexto etnografado, as táticas de
regulação e controle dizem respeito a um ordenamento monogâmico e quase sempre
heterossexual dos cenários sexuais que constituem a experiência erótica dos
indivíduos.
de uma retórica que intenciona, além do consumo, ensinar a tornar o prazer algo
saudável. (Gregori 2012, p. 81-2).
48 Não pude perceber nos espaços etnografados a associação estabelecida pela autora
entre gênero, classe e público. De modo geral são as mulheres a maior parte do público
que se utiliza desse comércio e se há diferentes ordenamentos e padrões de loja, esses
são quase sempre estabelecidos tendo em vista as mulheres 8.
49 Um elemento recorrente em ambos os espaços é o poder de disseminar informações
atribuído às vendedoras. Em seu exercício diário de lidar com clientes, as vendedoras
são acionadas constantemente para esclarecer dúvidas sobre os produtos e a forma
correta de utilizar. Em conversa com uma dessas vendedoras, fui esclarecido que muitas
das compras que os clientes realizam têm como base a curiosidade ou desconforto. Em
outros termos, ou se compra para saber como é um determinado produto, ou com vistas
a minimizar algum tipo de situação inconveniente, a exemplo de cheiros e dores.
50 Minha segunda visita ao sex shop apresentada na cena 2 se deu no fim de dezembro,
ocasião em que após conversar por alguns dias com Lúcio fui acompanhá-lo ao sex
shop. Lúcio tem 27 anos, é estudante e trabalha como auxiliar administrativo em um
escritório imobiliário. Seu companheiro é professor da rede pública e mora no Recife,
razão pela qual o acesso de Lúcio aos sex shops de João Pessoa é contrabalanceado pelas
suas experiências em outro centro urbano do nordeste. Na ocasião, Lúcio pretendia
comprar um conjunto de bolas tailandesas, um sex toy caracterizado por um fio ao longo
do qual estão presas diversas bolas. Os tamanhos são variados, bem como os materiais e
as texturas. Além da corda, algumas versões apresentam as bolas tailandesas em
bastões rígidos ou flexíveis. Perguntei qual a razão de escolher esse brinquedo, e ele me
esclareceu que era algo recorrente nos filmes pornográficos heterossexuais que assistia
e que queria saber como era.
51 Ao chegar a loja fui reconhecido pela vendedora em função de minha primeira visita, há
pouco mais de uma semana. Recebeu-me de modo gentil e logo em seguida
cumprimentou Lúcio. Após informarmos o que procurávamos ela nos expunha os
produtos que tinha: bolas menores, de cerca de 2 cm de diâmetro, bolas em tamanho
crescente, com bastão flexível, em plástico ou silicone, com gel estimulante dentro,
entre outras. Durante a ilustração das possibilidades a vendedora discorria sobre as
vantagens e possibilidades de cada material, tamanho e as possíveis complicações
decorrentes de sua administração. Sugeria também os produtos que poderiam ser
usados de modo conciliado para melhorar a experiência e a melhor maneira de inserir o
parceiro no jogo, caso fosse de seu interesse.
52 Como se pode perceber, nesse caso a vendedora assume um importante papel na
distribuição dos saberes sobre o sexo, participando ativamente dessa economia do
conhecimento. Recobro assim a posição de Hannerz (1992b) no sentido de refletir sobre
uma teoria da cultura no seio de uma sociologia do conhecimento:
A teoria da cultura precisa estar realçada por uma sociologia do conhecimento –
aquelas estruturas de significados e formas significantes não são uniformemente,
mas problematicamente distribuídas entre as populações de modo que tanto a
cultura em si quanto a ordem das relações sociais são influenciadas por essa
complexidade distribuída (Hannerz 1992b, p.36)9.
53 A compreensão das dinâmicas em análise implica fundamentalmente uma maior
atenção aos processos pelos quais conhecimentos, valores e ideias são produzidos,
repassados, bem como canalizados e obstaculizados. Curioso e empolgado, pergunto a
Considerações Finais
58 Neste trabalho procurei contemplar algumas das tensões constituintes dos erotismos
contemporâneos, com especial atenção para o lugar ocupado pelo mercado e os efeitos
por ele produzidos na configuração de dinâmicas da sexualidade entre pessoas que
frequentam sex shops em João Pessoa. A partir de uma exploração inicial desse tipo de
espaços pude identificar um amplo desenvolvimento desse mercado segmentado pela
cidade, em especial nos últimos 4 anos. Esse processo vem se distribuindo pela cidade
sem que seja possível identificar a conformação de regiões nucleares ainda.
59 O exame do material etnográfico coletado possibilitou perceber que os efeitos do
mercado enquanto ator implicado no manejo do fluxo cultural se manifestam de modo
bastante complexo, articulando a si outras estratégias e espaços de organização dos
materiais culturais em circulação. O que se pode perceber é a coexistência de
movimentos de mudança e conservação que constituem uma tensão. Nesse espaço de
tensão o mercado, aquém de possibilitar rearranjos nas lógicas de acesso a recursos e
modos de usar o corpo, acaba por corroborar na permanência e transformação de
estratégias que visam o controle do corpo através de processos de adestramento e
docilização dos corpos e prazeres: cursos, informações técnicas sobre o manuseio dos
materiais. Essa dialética está incorporada também na constituição de um erotismo
politicamente correto, como observou Maria Filomena Gregori, baseado na existência
de uma sexualidade saudável que pode ser exercida através do acesso a determinado
tipo de informação e produtos.
60 Assim, o mercado erótico assume uma posição que é não apenas de subsídio a uma
prática social, mas atua também de modo a oferecer informações, valores e ideias que
são acionados em uma economia do conhecimento sobre o sexo do qual também fazem
parte outros agentes, como escolas, estado e movimentos sociais. Nessa economia as
vendedoras desempenham um papel fundamental, tendo em vista a posição que
assumem como especialistas na matéria. Sua atuação diz respeito não apenas ao acesso
às informações, mas também ao cerceamento e canalização em função de credenciais,
interesses e manutenção de segredos e, em nível extremo, na confirmação de censuras.
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NOTAS
1. Dildos são próteses introduzíveis com formatos variados, alguns antropomórficos, outros
diversos; já os vibradores são modalidades de dildos que reproduzem a anatomia peniana em
proporções diversas e têm como propriedade a capacidade de vibrar através de baterias. O tema
será retomado na sessão final do artigo.
2. No curso desse trabalho não estabeleço qualquer distinção entre pornografia e erotismo,
usando sempre que possível o termo pornô e erotismo como sinônimos. Acompanhando uma
tradição de estudos recentes na área, rejeito assim as construções que localizam como erótico os
materiais de produção erudita e pornográfico o que é massificado e comercial (Gregori 2012;
2004; Díaz-Benítez, 2010).
3. Por sua vez os produtos vendidos nesses estabelecimentos eram muitas vezes chamados de
“segredinhos”, “coisas para apimentar a relação”, “brinquedos” pelas pessoas com as quais pude
manter contato durante o desenvolvimento da etnografia.
4. É possível dizer que para Foucault fosse mais propício dizer que o poder é produzido e então
distribui os indivíduos. Todavia, tomando, como se verá ao longo do trabalho, o poder também
como a possibilidade de acessar e controlar o acesso a determinadas informações, é possível dizer
que ele não apenas distribui os indivíduos, mas de modo complementar é distribuído por esses no
curso das ações (HANNERZ 1992a).
5. Os dados atribuídos à ABEME no corpo do texto foram retirados de sua página:
www.abeme.com.br
6. Todos os nomes aqui são fictícios. Das duas restantes uma não utilizo por não ter tido
autorização dela para apresentar sua história, e a última devido ao pouco contato que tivemos, o
que tornaria uma interpretação dessas trajetórias fragilizadas pela superficialidade das
informações que pude obter até então.
7. Pompoarismo é uma técnica, presumivelmente de origem indiana, que consiste no controle dos
músculos vaginais para fins diversos, desde o prazer durante o sexo até a facilitação do parto.
8. Pude observar uma estreita relação entre geração e acesso a esse tipo de mercado. Os poucos
homens que encontrei ou com quem pude conversar e me falaram sobre sua relação com esse
tipo de comércio eram em sua maioria jovens, entre 23 e 28 anos. Na minha rede de contatos
pude perceber também uma certa resistência de homens mais velhos irem até as lojas físicas, de
modo que quando utilizavam esse serviço quase sempre foi através de compras online.
9. Tradução minha: “culture theory needs to be enhanced by a sociology of knowledge—that
structures of meaning and meaningful form are not uniformly shared but problematically
distributed in populations and that both culture itself and the order of social relationships are
significantly influenced by this distributive complexity”.
10. As categorias de segredo, distinção, credenciais e expertise, conforme Hannerz (1992a) são
aquelas que no cenário ocidental melhor podem explicar os meios pela qual o fluxo global de
informações é canalizado ou barrado. O segredo atua através da ocultação ou negação da
existência de uma informação; a distinção com a canalização do fluxo a partir de interesses e
constituição de relações de influência; as credenciais pelo reconhecimento de atores mais ou
menos legítimos através de títulos e credenciais, por exemplo; por fim, a expertise se refere a um
caráter ou habilidade de alguém tomado como especialista.
RESUMOS
Tomando como princípio algumas das configurações dos erotismos contemporaneamente, o
artigo analisa as interseções entre mercado e sexualidades no processo de distribuição da cultura.
O artigo apresenta um mapeamento dos sex shops em João Pessoa articulando-o a um debate
sobre a posição dos agentes inseridos nessa dinâmica dentro de uma economia do conhecimento
sobre o sexo mais ampla. O mercado erótico, em especial os sex shops de João Pessoa, são usados
aqui como mote etnográfico, para refletir as tensões entre processos de transformação e
conservação de convenções sobre sexualidades.
Taking as principle some of the settings of contemporary eroticism, the article examines the
intersections between market and sexuality in the culture of the distribution process. The article
presents a preliminary mapping of sex shops in João Pessoa linking it to a debate on the position
of the agents entered this dynamic within a wider economy of knowledge about sex. The erotic
market, especially sex shops in João Pessoa, is used as ethnographic motto to reflect tensions
between the processes of shifting and conservation on sexual conventions.
ÍNDICE
Keywords: contemporary eroticism, sex shop, erotic economies, sexualities
Palavras-chave: erotismos contemporâneos, sex shop, economias eróticas, sexualidades
AUTOR
THIAGO DE LIMA OLIVEIRA
Doutorando em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo
petraios@hotmail.com
Introdução
1 Pouco a pouco, o conceito de margens, revisitando meus campos de pesquisas e
praticando uma nova etnografia, foi determinante. Assim, optei por partir de uma
definição ampla das margens como situações que apartam e até excluem diversos
sujeitos. As margens se constroem na relação e na tensão entre formal/ informal,
poderes/ contra-poderes e entre reconhecimento e negação.
2 As cidades brasileiras, mas também latino-americanas ou africanas, representam
figuras emblemáticas das margens: extensões urbanas, explosão demográfica,
combinadas com desigualdades e profusão de áreas fragmentadas (Sierra, Tadie, 2008).
As margens urbanas devem ser entendidas como uma construção espacial e social que
proporciona melhor compreensão do desenvolvimento urbano. As margens remetem a
outros conceitos, tais como interstícios, fronteiras, periferias. Mas não podem ser
reduzidas a um ou outro. Nas pesquisas realizadas na Guiana Francesa e no Amapá,
utilizarei mais o conceito de fronteira para mostrar como esse conceito proposto pelos
Estados, na realidade é feito de espaços porosos que os indivíduos contornam
continuamente. Nos espaços físicos e simbólicos de uma metrópole como o Rio de
Janeiro e até de uma cidade média como Campos dos Goytacazes, o conceito de margem
parece mais pertinente. De fato, as margens revelam muito mais do que o conceito de
periferia. As margens podem ser constituídas de populações em movimento, ligando
vários bairros ou trechos de cidade, como por exemplo, nas pesquisas com meninos de
rua (Morelle, 2008), com camelôs (Reginensi, 2012), com músicos ou artistas nos campos
de refugiados na Palestina (Puig, 2008, Dias, 2013). Porém, as margens não se reduzem
ao desvio ou a marginalidade, podem ser definidas como um outro mundo muitas vezes
combatido mas tolerado, porque participa de fato da existência da sociedade urbana.
3 O artigo apresenta duas etapas do meu percurso de antropóloga estudando as
fronteiras e as margens urbanas: uma compõe uma parte sobre encontros nas
Figura 1. St. Laurent du Maroni, o rio /fronteira, ao fundo Albina, cidade surinamesa , créditos
CReginensi, 1997
Figura 2. Desde Laranjal , vista da fábrica de celulose, créditos C.Reginensi, agosto de 1998
10 Paulo, vendedor de sorvetes, me levou até o rio Jari ‘’o desastre’’, como ele chamava a
fábrica de celulose instalada na cidade vizinha, no Estado do Pará, e que polui a cidade e
o rio. Paulo chegou aos 3 anos, com a mãe e dois irmãos, no ‘‘beiradão’’, imensa favela
que hospedou muitas famílias cujos membros trabalhavam na usina. Foi o caso de o tio
materno dele. Lembrava das condições do barraco, quando criança, e da dificuldade
para circular na favela de palafitas. Também comentou as melhorias no lugar, como a
instalação de passarelas de madeira de boa qualidade, facilitando o acesso ao bairro e
melhorando a imagem do bairro. Assim, sentia-se orgulhoso de dar seu endereço e
receber amigos, embora reconhecendo que o bairro continua isolado pois mal atendido
pelo transporte ou ainda por ser um lugar onde ocorre tráfico de drogas e prostituição.
11 Percebi umas caixas postais na curva de uma estrada na saída do município de Rémire
Montjoly em direção a Caiena; isto foi num domingo, quando um jovem brasileiro me
pediu carona depois de ter assistido a uma festa de aniversário de amigos comuns. Não
tinha encontro marcado mas descobri a "vila brasileira", BP 134, ou Cabassou: vários
nomes para o mesmo lugar, de acordo com quem se fala: os moradores chamam o lugar
de Cabassou, me diz o rapaz, e mais tarde descobriria que o poder público chamava o
lugar de BP 134 ou vila brasileira. Entramos pela "Avenida", pequena rua de terra
batida, terra vermelha da Guiana. Uma grande variedade de casas se espalhava,
crianças brincavam e gritavam. Prometi voltar. E dois anos depois, Zélia, moradora do
local e participante de uma associação de mulheres, me convidou à sua casa. Ela foi me
esperar na entrada da avenida, e antes de chegar em casa, paramos na Suzanna, outra
mulher da associação Dynameta. As duas falaram das suas trajetórias no Brasil até
chegar à Guiana. A primeira insistiu na autoconstrução da casa, na parte mais precária
do bairro e no medo de ser removida, mais tarde falou do seu projeto de organizar um
grupo de costureiras e de criar sua empresa. A segunda, considerou que já tinha a sua
empresa montada, informalmente: fabrica salgados na sua cozinha e vende na cidade
inteira. A casa dela é grande, a cozinha organizada para preparar os salgadinhos e
outras comidas que o marido muitas vezes vai vender porque ela está aprendendo a
dirigir e vai de bicicleta, mas quando chove não dá para ir até Caiena.
12 Eliana vendia água de coco na praça Zagury e morava no bairro de Perpétuo Socorro.
Depois de falar várias vezes com ela nos finais da tarde, aceitou me levar para visitar o
seu bairro, lá depois do canal como ela dizia, outras pessoas e muitas dificuldades: sem
água, sem luz, mas melhorou um pouco: "mas tudo demorado, tudo entupido, muitas
vezes no período da chuva, a vida é complicada, aqui !". Apesar de tudo isso, ela vendia
cada dia e quando chovia muito, ficava em casa e preparava doces e ia vender com sua
cunhada em outros bairros de Macapá. O marido era carpinteiro e tinha um bom
emprego. Os dois filhos estudavam. Esperava poder consolidar a casa, arrumar o quintal
e desenvolver uma atividade de agricultura familiar.
Figura 5. O canal que separa as duas favelas, créditos CReginensi, abril de 2001
13 Maria marcava sempre encontro comigo na casa dela, não muito longe da entrada da
favela de Caranguejo. Depois de várias visitas, uma manhã levou-me para trás do canal.
Dizia que do outro lado do canal eram "outras pessoas", "outro lugar", invasões mais
recentes. Não conhecia ninguém lá, mas observando comigo as casas, disse que
provavelmente as pessoas fizeram como ela e o seu marido, ou seja, montaram uma
barraca e depois, juntando um dinheiro para comprar tijolos, consolidaram a casa.
Figura 6. Os trajetos do Danilo durante a semana, montagem Sarah Wickenburg com créditos das
fotos, CReginensi, 2002/2007
14 Da rua onde morei durante mais de um mês, ia todos os dias observar os vendedores
ambulantes na avenida Barroso, perto do Shopping Castanheira. Foi num desses dias
que conheci Danilo, que falou da avenida como uma fronteira. Conforme a fala dele, os
vendedores desse lado da avenida tinham barracas, negociavam com a prefeitura, do
outro lado eram vendedores mais ocasionais ou alguns que trabalhavam no meio de
trânsito. Colocou também a questão da fronteira quando me falou de onde morava:
Ananindeua, que caracterizou como bairro periférico de Belém. Danilo tomava conta de
um total de dez barracas padronizadas: quatro nessa avenida onde marcava encontros,
três perto da rodoviária e outras três, no centro de Belém, na avenida Presidente
Vargas. Todos os dias, de manhã, ia de carro da sua residência até cada barraca, e de
tarde ficava numa barraca da avenida Barroso onde vendia relógios. Às terças e/ou
quartas-feiras, o ritmo era diferente. Ao chegar perto do centro, ia pelas ruas nos
arredores do mercado Ver-o-Peso e comprava nos atacadistas para, depois, colocar a
mercadoria nas barracas. Nas nossas conversas nunca quis falar da prefeitura, das
negociações; quem cuidava dessa parte do negócio eram a mãe e o tio.
15 Das minhas caminhadas, na Orla de Copacabana ao final do dia e de noite, observei que
vendedores de milho, tapioca, pipoca, com carrocinha e alguns barraqueiros chegavam
a pé, descendo da favela do Pavão em direção da praia. Um desses vendedor comentou:
(...) nós do morro temos a vista mais linda ...mas sempre em tensão ...entre o tráfico
e a polícia ...às vezes não consigo subir então, espero aqui embaixo...(João,vendedor
de milho).
fazer". A partir dessa conceituação, as favelas devem ser pensadas como uma porta de
entrada para os mais pobres (Abramo, 2009), e como territórios construídos nas
relações sociais, materiais e simbólicas são estabelecidas entre e pelos indivíduos/
grupos sociais. Assim, o território das favelas gera práticas sociais, a vinculação do
indivíduo e do grupo com o seu meio, operando de acordo com a cultura de cada grupo.
E, as "fronteiras" entre "nós" e os "outros" acabam não tendo limites tão marcados na
realidade cotidiana. Retomando a proposta de Frederick Barth (1999) as estruturas mais
significativas da cultura – "ou seja, aquelas que mais consequências sistemáticas têm
para os atos e relações das pessoas – talvez não estejam em suas formas, mas sim em
sua distribuição e padrões de não compartilhamento". O que ele quer dizer é que
podem ser vistos diferentes jogos de poder e desigualdades que caracterizam a cultura
– no seu desenrolar cotidiano e nas institucionalizações de suas formas. Olhei para as
favelas e a praia observando toda sorte de símbolos produzidos ali como um espaço de
trocas, não apenas econômicas como também simbólicas, onde a cultura e as práticas se
dão de maneira relacional a partir do trânsito dos indivíduos entre os diversos
universos discursivos que se interagem no território e fora dele (Reginensi, 2012).
33 Nestes anos de pesquisas etnográficas considerei que a metáfora da fronteira era
interessante como categoria analítica, como “forma privilegiada de sociabilidade”
(Sousa Santos, 2001).
34 Por fim, o conceito de fronteira implica uma luta e uma negociação com a autoridade,
com o poder público para conseguir ou afirmar sua legitimidade. A fronteira física e
simbólica deve ser relativizada, viver na fronteira deve ser experimentado como "viver
nas margens sem viver uma vida marginal" (De Sousa Santos, op.cit. p.353 e Bautes,
Reginensi, op.cit.), propósito que experimentei com vários atores da economia da praia
ou da floresta, na metrópole do Rio de Janeiro. Os moradores, encontrados a partir
dessas pesquisas etnográficas, criam um cenário que pode ser analisado como uma
arena pública (Cefai, 2007), e o estudo das suas trajetórias como ação coletiva, permite o
debate sobre as fronteiras ou margens da política contemporânea no Brasil (Feltran,
2010). Assim, os sujeitos utilizam-se, de forma seletiva, das tradições, das origens,
sabem mobilizar oportunidades e mudar de estatuto. Segundo Feltran (op.cit.) a
pressuposição da desigualdade que atravessa os espaços, obriga a se repensar
continuamente a ação política. E a política, nestes contextos (favelas ou periferias),
pressupõe um conflito anterior que tem origem no tecido social e pela definição de
quem são os grupos sociais legítimos. Isto vem retomar a proposta de Jacques Rancière
(1995) segundo quem a política é, em primeiro lugar, um cenário de conflitos 7. No texto
de Gabriel Feltran (op.cit.: 228), a noção de margem como categoria analítica deve ser
trabalhada para auxiliar a demarcação das clivagens entre periferias e política ou das
margens da política. A metáfora da fronteira é interessante porque, ao mesmo tempo, ‟
em que denota uma separação, a noção preserva a possibilidade de fluxos, controlados,
entre as parcelas separadas”.
35 Conforme Das e Poole (2004) as margens se referem a três definições: as margens da
legalidade oficial, as margens da legibilidade estatal (referência à burocracia escrita) e as
margens da normalidade como espaço entre os corpos, a lei e a disciplina (referência ao
‘’biopoder’’ de Michel Foucault).
36 Assim a partir da construção desse referencial teórico metodológico essas perguntas
foram destacadas: Quem reside hoje nas margens da cidade? Como abordar as cidades
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NOTAS
1. Minha integração, em 2000, num laboratório de pesquisa da Universidade Le Mirail, em
Toulouse, cujos membros trabalhavam na América Latina, me permitiu revisitar meu objeto de
estudo e ampliar a perspectiva etnográfica, compartilhando campos e reflexões com
pesquisadores da sociologia e da geografia. Um ano depois de integrar este laboratório, associei-
me como participante estrangeira ao Núcleo Favela e Cidadania da Escola de Serviço Social da
Universidade Federal do Rio de Janeiro (FACI/ESS/UFRJ), que já era parceiro do meu laboratório
de Toulouse.
2. Pesquisadora visitante (PVE) CNPq, - 2014-2016 - convidada pelo programa de Pós-Graduação
em Sociologia Política, Uenf Darcy Ribeiro.
3. Bushinengues ou Negros são de origem africana, antigos escravos que fugiram das plantações
da Guiana Holandesa antes da abolição da escravatura e se dispersaram pelo território das
Guianas. Eles são compostos de várias etnias: Bonis, Djukas, Saramakas e Paramacas.
4. O wakaman/homem que anda é um jovem, de 15 a 30 anos de origem crioula, negra, indígena ou
brasileira, que vive na região de Saint Laurent, mas também em outras cidades da Guiana, do
Suriname. Reconhecem-se através de sinais, da linguagem, mas também pela roupa: tênis (da
marca Nike), bonés, camisetas, calças, joias de ouro. Ouvem reggae, rap. As atividades deles
concentram-se no setor urbano, Não têm carteira de identidade, seja qual for a sua nacionalidade.
Sabem quem conserta um motor de carro, fabrica um barco ou onde encontrar as mercadorias as
mais diversas: álcool, cigarros, e outros objetos possíveis de serem revendidos. Trabalham em
função das oportunidades e estabelecem redes de contato. (trabalho de campo em 1997/1998)
5. Pesquisadora visitante da FAPERJ, no FACI /ESS/UFRJ, 2009-2010
6. Explorei três níveis de espaço-tempo da mobilidade: o primeiro contempla a migração ao longo
da vida do indivíduo, dos pais dele, do interior do estado ou de outro estado até a cidade atual; o
segundo é o da mobilidade residencial na mesma cidade, as diversas mudanças e, muitas vezes,
considerando a construção da casa que nunca acaba; e o terceiro momento observado é a
mobilidade do cotidiano, na procura de um trabalho ou exercendo uma atividade entre formal e
informal.
7. Mas, além das fronteiras, a política deve ser entendida como reconfiguração do sensível e o
princípio da igualdade deve ser priorizado. Esta reconfiguração, conforme Rancière (2004),
corresponde também à inclusão no comum de novos sujeitos e de objetos inéditos, de maneira a
permitir dar visibilidade àqueles que não se faziam visíveis, de modo a se fazer perceber como
seres falantes. Essa inserção não é feita nem de uma vez por todas, nem de modo definitivo. .
8. Vídeo Outro Rio, acesso . http://youtu.be/Lbq3sk1ZsE0 O mapa da memória, que tornou visíveis
as casas e o nome dos seus ocupantes. https://www.dropbox.com/s/elve5k679l6fr35/
Mapa%20da%20Memoria.pdf?dl=0
9. Tento resgatar aqui parte do debate do qual participaram Gabriel Feltran, Nicolas Bautès e
Jerôme Tadié: Jornada de estudo Informalidade e política França / Brasil, Paris, 21e 22 de maio de
2014.
10. A noção de subalterno e resistência subalterna, conforme esses autores mas também a
indiana Spivak (na tradução brasileira de Sandra Almeida e als. 2010, p.12) definem o sujeito
subalterno como aquele que pertence “às camadas mais baixas da sociedade constituídas pelos
modos específicos de exclusão dos mercados, da representação política e legal, e da possibilidade
de se tornarem membros plenos no estrato social dominante”. Por entanto, não significa que esse
subalterno não tem voz, que não resiste, conforme Jacques Rancière e a noção de ‘‘seres falantes’’.
RESUMOS
O artigo visa debater a influência das margens no processo de urbanização das cidades a partir de
alguns estudos de casos na Guiana Francesa, no Norte do Brasil (Macapá e Belém do Pará) e
Nordeste (Recife-PE) colocados em perspectiva com trabalhos empíricos mais recentes
desenvolvidos na metrópole do Rio de Janeiro, e numa cidade média do estado do Rio de Janeiro:
Campos dos Goytacazes. Como abordar as cidades através das suas margens e como interferem
diferentes lógicas de poder será o fio condutor de nossa proposta.
As margens remetem a outros conceitos, tais como interstícios, fronteiras. A reflexão sobre as
margens como elaboração de um objeto de pesquisa antropológica questiona as categorias e
categorizações: margens, marginalização, fronteiras, rural/urbano, público/privado nas cidades
brasileiras, o que também sugere essa outra pergunta: com que abordagem metodológica estudar
as margens? Que significa fazer etnografia nas margens das cidades e do Estado ?
This article aims to discuss the influence of margins in the process of urbanization of cities from
some case studies in French Guiana, in northern Brazil (Macapa and Belem do Para) and
Northeast (Recife-PE) placed in perspective with empirical work more recent developed in the
metropolis of Rio de Janeiro, and an average city in the state of Rio de Janeiro: Campos dos
Goytacazes. How to approach the cities through their margins, and as interfere different logics of
power will be the main thread of our proposal. The margins refer to other concepts, such as
interstices, borders. Reflecting on the margins as drafting a anthropological research object
question categories and categorizations: margins, marginalization, border, rural / urban, public
/ private in Brazilian cities, which also suggests that other question: what methodological
approach to study the margins? That means doing ethnography on the edges of cities and the
state?
ÍNDICE
Palavras-chave: margens, fronteiras, cidade, poder, etnografia
Keywords: margins, borders, city, power, ethnography
AUTOR
CATERINE REGINENSI
creginensi@gmail.com
Doutora em sociologia pela Universidade de Paris VIII, livre-docente em Antropologia Urbana na
Universidade de Toulouse, professora titular na Universidade Estadual do Norte Fluminense
Darcy Ribeiro.
NOTA DO AUTOR
Uma versão deste artigo foi apresentada, por seus autores, na V Reunião Equatorial de
Antropologia e XIV Reunião de Antropólogos do Norte e Nordeste (Rea-Abanne),
realizadas em Maceió, em 2015.
1. Introdução
1 Acompanhamos o cotidiano da feira do Guamá, em Belém, durante oito meses. Esse
período se dividiu em dois momentos, entre os anos de 2011 e 2012: cinco meses em que
a feira funcionou de forma provisória, durante a reforma do seu prédio principal – uma
reforma longa e problemática, que se estendia já há dois anos – e três meses posteriores
à conclusão dessa obra. Acompanhamos o dia a dia dos feirantes e do seu universo,
composto pelos outros tipos humanos que dividiam o espaço: os fornecedores,
fregueses, frequentadores cotidianos e os funcionários dos demais comércios da
proximidade.
2 O artigo procura fazer uma descrição fenomenológica desse espaço. Nossa perspectiva,
dialogando com os procedimentos etnográficos, parte de uma exposição compreensiva
das espacialidades da feira. Desejamos valorizar a dimensão endógena da experiência
espacial dos sujeitos sociais observados, procurando um procedimento fenomenológico
por meio do qual possamos reduzir a feira àquilo que ela expressa, enquanto lugar.
3 A noção de etnocartografia está inicialmente vinculada à de cartografia cultural, ou à
projeção visual, em mapas, de espaços étnicos. Ela foi tratada dessa maneira entre 1920
e 1970 (Bromberger 1984), sendo, desde então, gradativamente compreendida como
há. Atualmente, o Guamá, com seus 94.610 habitantes (IBGE 2013), é o bairro mais
populoso dos 48 que integram a cidade. Seu nome é uma referência ao rio que o
margeia e, com uma história popular e cultural rica – o bairro sedia variados grupos de
“pássaros”, os teatros populares de Belém – permanece sendo um dos espaços
belemenses com maiores índices de desigualdade social.
13 A feira do Guamá se localiza na junção entre a avenida José Bonifácio e a avenida Barão
de Igarapé-Miry. Esta, ao cruzar com a primeira, se estreita e toma outro nome:
travessa Mucajá – precariamente urbanizada. O maior prédio do cruzamento é o
mercado novo, também chamado de mercado de carne e na sua diagonal está o
mercado de farinha. Em frente ao primeiro, pela av. José Bonifácio, há várias lojas de
material de construção; na sua lateral, pela passagem Mucajá, sucede toda sorte de
pequenas vendas: farinha, tucupi, frango abatido na hora e “material de mercearia” –
como se conhece os diversos produtos industrializados utilizados para embalar aquilo
que é vendido na feira. Atrás do prédio da farinha, há pequenos boxes gradeados, que
vendem produtos importados tipo “Paraguai”. A calçada da av. José Bonifácio é também
tomada por vários camelôs e vendedores ambulantes, a maioria deles vendedores de
roupas usadas. Neste sentido, a feira se estende a mais ou menos cerca de 300 a 400
metros do cruzamento entre as três ruas, nas quatro direções.
14 No primeiro momento da pesquisa, e nos dois anos que a antecederam, o mercado
sofria, como dissemos, uma intervenção do poder público, uma reforma e
“revitalização” – termo usado por esse poder público e ironizado pelos feirantes,
incomodados como a demora da obra. Durante todo esse período os feirantes foram, de
maneira extremamente precária, dispostos na calçada da av. José Bonifácio e num longo
trecho da passagem Mucajá, para isso fechada ao trânsito.
15 Na instalação provisória e precária do mercado, os boxes foram montados com madeira
e pintados com cores variadas – vermelho, verde, azul e amarelo preponderavam sobre
as demais cores, secundárias e terciárias. Cada feirante apropriou-se de sua barraca/
boxe de maneira particular, arrumando-a e decorando-a de acordo com sua necessidade
e gosto.
16 O corredor dos açougueiros, no primeiro momento da pesquisa, estava situado na
calçada da av. José Bonifácio, prolongando-se quase até a esquina da passagem Mucajá.
Era o espaço de entrada na feira, corredor estreito e pouco iluminado, que mal chegava
a um metro e meio de largura. Nele, o cheiro de carne preponderava e havia muitas
moscas, pequenos insetos e um vai e vem incessante de pessoas e de animais
domésticos sem dono, principalmente cachorros. Geralmente, as pessoas tinham de se
colocar de lado para dar passagem às outras e, por vezes, o fluxo humano simplesmente
bloqueava, interrompido por atos simples de reabastecimento de mercadoria ou pelo
processo de compra de algum freguês. As manhãs de sábado eram particularmente
agitadas, considerando ser esse o dia em que a maioria das pessoas costuma fazer suas
compras na feira. Nesse espaço concentrado e com pouca circulação de ar, a balbúrdia
imperava: as vozes altas e estridentes dos feirantes a oferecer suas mercadorias, o
diálogo constante entre os feirantes e deles com os fregueses, os risos, os gracejos, as
galhofas e, por fim, os múltiplos sons de rádios, músicas gravadas, do fluxo de
automóveis e ônibus naquela esquina engarrafada pelo sinal de três tempos e do apito
dos guardas de trânsito tentando disciplinar algo daquele fluxo contínuo e caótico.
17 Seguindo esse corredor, cerca de 3 metros antes de alcançarmos a luminosidade ao
fundo, havia uma entrada à direita, perpendicular à av. José Bonifácio, já na Passagem
Guamá. Não havia saudosismo em suas falas, apenas a referência limitada à época em
que começaram a trabalhar no lugar, a maioria nos anos de 1970.
34 Na calçada em torno do prédio da farinha também se encontrava a maioria dos
marreteiros, os comerciantes informais que vendem toda a sorte de produtos, tais como
roupas novas, eletroeletrônicos, peças para fogão e utensílios domésticos, cosméticos,
pilhas e um sem fim de produtos. É importante considerar que parte significativa desses
comerciantes constituem, simplesmente, extensões das lojas localizadas na av. Barão de
Igarapé-Miry, a ocupar suas calçadas dissimulando seus produtos como se fossem
oferecidos pela economia informal.
35 No entanto, é forçoso observar que logo no início da av. Barão de Igarapé-Miry, em
frente ao prédio da farinha, os vendedores são autônomos e não vinculados às lojas que
se pronunciam em seguida do referido prédio.
36 Além dos feirantes propriamente ditos e de toda sorte de comerciantes informais, há
também, no território, lojas oferecendo os mais variados produtos e serviços, do
pequeno comércio de manufaturados aos estabelecimentos maiores, dentre os quais um
supermercado, três lojas de material de construção, duas farmácias e nove
“confecções”, ou seja, lojas de tecidos e roupas. A feira vai se prolongando ao longo da
av. Barão de Igarapé-Miry e, aos poucos, as lojas vão se tornando mais espaçadas e
raras. No entanto, observamos que, no final da referida avenida, vamos encontrar outra
feira. Ou seja, essa avenida é marcada, em suas extremidades, por duas feiras.
3. Conclusão
37 O Guamá é estrondoso. O cruzamento lento de ônibus e veículos se acompanha das
carroças e dos cavalos, mas sobretudo dos “carremãos”, carrocetes puxados a braço,
levando toda sorte de produtos: ferro velho, açaí, cimento e madeira, quase sempre,
mas igualmente terra, barro e tijolos. Há também o ruído dos cães e dos animais à
venda, quase sempre presos em paneiros. Muitas aves: galinhas e patos. Alguns
periquitos e pássaros de canto. A feira tem a forma do seu ruído: a forma da balbúrdia
indefinível na qual se destaca, de vez em quando, um grito estridente anunciando um
produto ou serviço, ou, ainda, uma gargalhada, uma provocação ou a expressão de um
negócio sendo fechado. Por vezes, os limites da feira nos pareceram ser os limites de
onde se escutava a feira.
38 Pensar sobre isso nos fez pensar em como a feira, enquanto lugar, era o lugar de nossa
sensação de estar-presente. Não um lugar fora de nós mesmos, mas um lugar que se
delimitava por nossa percepção. Essa ideia remete a Hall, para quem
“O “lugar” é específico, concreto, conhecido, familiar, delimitado: o ponto de
práticas sociais específicas que nos moldaram e nos formaram e com as quais nossas
identidades estão estreitamente ligadas [...] “(Hall 2003: 72).
39 Ou seja, pode-se compreender o lugar – um dado lugar – como uma experiência
contígua à experiência de ser. Não um jogo eventual: de um ser que percebe o espaço,
mas uma experiência intersubjetiva, com uma dimensão temporal e histórica, por meio
da qual uma feira, qualquer feira, evoca a forma-feira ancestral, sabida por todos os
povos na sua prática de trocar, dar e receber e, também, formas-feira específicas,
existentes em experiências comuns e em epocalidades. Giddens, por exemplo, discute a
experiência comum do lugar moderno:
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RESUMOS
O artigo procura fazer uma descrição fenomenológica da feira do Guamá, situada no bairro de
mesmo nome, em Belém-PA. Dialogando com procedimentos etnocartográficos, parte-se de uma
exposição compreensiva das espacialidades da feira. Deseja-se valorizar a dimensão endógena da
experiência espacial dos sujeitos sociais observados. Empreender uma fenomenologia do lugar
significa, em nossa compreensão, um duplo movimento: primeiramente, indagar como os
indivíduos encontram o mundo na sua complexidade espacial e, em seguida, interpretar como
esses encontros são usados para dar sentido ao mundo espacial. Percebe-se o espaço como uma
dimensão vivenciada pelos indivíduos, e não como algo prefigurado por meio de representações.
Dessa maneira, a feira que descrevemos corresponde a um espaço na sua dimensão
intersubjetiva: não como algo pré-ontologicamente dado, mas sim como uma construção em
curso de sentidos.
double movement: First, to ask how the social subjects find the world in its spatial complexity
and, then, to interpret how these encouters are used to make sense to spatial world. One sees the
space as a dimension experienced by individuals, and not as something foreshadowed by
representations. Thus, the market we describe corresponds a space in its intersubjective
dimension: not as something pre-ontologically given, but rather as an ongoing construction of
meaning.
ÍNDICE
Keywords: market, ethnocartography, phenomenology
Palavras-chave: feira, etnocartografia, fenomenologia
AUTORES
MARINA RAMOS NEVES DE CASTRO
Email: mrndecastro@gmail.com
Doutoranda em Antropologia PPGA-UFPA
Mestre em Artes PPGArtes-UFPA
Mestre em Estudos das Sociedades Latino-Americanas pelo Instituto de Altos Estudos sobre a
América Latina (Iheal) - Université de La Sorbonne-Nouvelle - Paris 3
Introducción
1 Los desastres en el mundo contemporáneo representan un desafío epistemológico dado
que implican problemas complejos y temporalidades múltiples, ahora en cuestión en la
práctica de los científicos sociales.
2 El desastre es producto de la manipulación del hombre sobre la naturaleza y forma
progresivamente las condiciones de vulnerabilidad social y el riesgo. Como evento que
se materializa en un determinado tiempo y espacio, el desastre supone la emergencia
de actores sociopolíticos con percepciones, discursos y acciones propias. Aquí
entendemos al desastre como un proceso socioambiental y no exclusivamente natural
(Swyngedouw 2006: 11).
3 En los estudios sociales sobre los desastres existen de manera general dos perspectivas
de análisis. La primera, una perspectiva “objetiva” o “macro”, que discute el problema
en términos de la construcción social del riesgo, o sea, asociándolo a la vulnerabilidad
como condición y exposición (pobreza, marginación, ubicación) de una población
específica (los afectados). Desde esta perspectiva, los autores que manejan esta
perspectiva hacen una crítica al desarrollo, al que vinculan con los efectos ocasionados
por acciones humanas sobre el ambiente. Por ejemplo, en las metrópolis, los impactos
negativos que ocasiona la industrialización y los procesos de poblamiento (véase De
Alba y Castillo 2014; García 2005).
4 La segunda perspectiva es “subjetiva” o “micro”. En ella se discute el desastre en
términos de la percepción social del riesgo, es decir, cómo los actores sociales definen,
perciben y viven el riesgo ante algún tipo de emergencia, como las inundaciones (véase
De Alba y Castillo 2014; García 2005).
5 Sin embargo, aquí parece necesario conocer las causas de los desastres y explicarlas con
datos estadísticos específicos. Hoy resulta relevante analizar las acciones individuales o
colectivas de los afectados, con la finalidad de tener un acercamiento detallado de este
tipo de fenómenos socioambientales y sus implicaciones en las emociones, o en su
carácter político. Luego volveremos sobre este aspecto.
6 El análisis del comportamiento social frente a los desastres durante largos períodos, no
sólo permite distinguir sus adaptaciones al ambiente natural, sino que también puede
representar adaptaciones ideológicas observadas a través de la innovación, con la
construcción de visiones del mundo (Oliver-Smith y Hoffman 2002: 10), o a partir de
prácticas específicas.
7 Una gran variedad de autores discute la utilidad del concepto “estrategias sociales de
prevención y adaptación”, a partir del análisis de casos concretos, en diferentes partes
del mundo (Allen 2006; Angulo 2006; Audefroy 2012, Audefroy y Cabrera 2012; Briones
2012; Cuevas 2010; 2012; García 2006; 2009; 2012; Gentle y Maraseni 2012; Ishaya y Abaje
2008; Mertz et. al. 2009; Norton y Chantry 2012; Nyong et. al. 2007; Osbahr, et. al. 2010;
Pelling 2002; Quesada 2012; Rashid 2000; Warner, 2012).
8 Esos autores subrayan la importancia de problematizar el conocimiento ancestral y
socioculturalmente construido, que es comúnmente asociado a la prevención de riesgos
ante amenazas naturales. Desde varias escalas, dichos textos contribuyen a la
deconstrucción de riesgos y a la construcción de culturas de prevención, así como a la
tipificación de esas estrategias (García 2012: 10-11).
9 ¿Cómo se han definido dichas estrategias? Por ejemplo, Jimena Cuevas (2010: 22-26)
menciona que las estrategias se dividen en: a) estrategias y prácticas institucionales y;
b) prácticas espaciales individuales y colectivas. Las primeras son disposiciones
institucionales (programas, decretos, etc.) generadas históricamente y diseñadas para
resolver problemas específicos y repetitivos, por eso las prácticas institucionales se
derivan directamente de las estrategias. Las segundas se caracterizan por responder de
manera individual o colectiva a las situaciones vividas, son formas de actuar que
responden a las necesidades que el mismo espacio social plantea en situaciones de
calamidad.
10 En cambio, para Virginia García (García 2006: 39-40) las estrategias adaptativas son
construcciones culturales que un grupo, una comunidad o una sociedad adopta y
adapta para enfrentarse a las amenazas y, en términos generales, para dar la cara a los
desastres. Dependen del manejo y conocimiento culturales del ambiente y de los
recursos disponibles. Son hábitos, costumbres, comportamientos, tradiciones y
prácticas que con frecuencia son desarrolladas a escala local o regional. Estas
estrategias adaptativas son:
Parte de la adaptación que las sociedades han llevado a cabo con el medio que les
rodea y del tipo de relaciones que han desarrollado tras haber vivido en condiciones
de riesgo a lo largo de generaciones. Como cualquier adaptación ecológica–cultural,
las estrategias adaptativas en condiciones de riesgo constituyen procesos creativos
(García 2006: 40).
11 Además, en este tipo de estrategias se reconstruyen distintas memorias colectivas que
son una herramienta aplicada para combatir situaciones de calamidad (Altez 2016: 23).
Para el análisis del desastre urbano por inundación, aquí se aportan otros elementos
autores (véase Bassols 1983; Márquez y Pradilla 2008; Olivera y Guadarrama 2002;
Ramírez 2006).
19 En cada municipio (Estado de México) o delegación (ciudad de México) dichas
dinámicas se han presentado de forma distinta. En el caso del municipio de Ecatepec,
son estas variables importantes para analizar las inundaciones como fenómenos
socioambientales.
20 El municipio de Ecatepec se localiza al oriente de la ciudad de México, colinda con los
municipios de Acolman, Atenco, Coacalco, Nezahualcóyotl, Tecámac, Tlalnepantla,
Texcoco y con la delegación Gustavo A. Madero, perteneciente al Distrito Federal (Ver
Mapa 1).
21 Según el último Censo de Población y Vivienda 2010, en este municipio se concentran
1,658,806 habitantes, lo que lo sitúa como el más poblado de la metrópolis de México. El
perfil de esta población presenta fuertes desigualdades.4 Del mismo modo, es de los
municipios más pobres de Latinoamérica (PMDU 2009: 55).
conjuntos urbanos de “Los Héroes” y “La Guadalupana”. Por igual, los asentamientos
irregulares se extendieron hacia el perímetro del municipio, en la zona de Guadalupe
Victoria, Llano de los Báez, La Laguna y las faldas de la Sierra de Guadalupe (PMDU
2009: 45-53).
26 Después de la década de los noventa hasta la actualidad las inmobiliarias privadas son
ejes promotores de la oferta de vivienda y del poblamiento formal, entre ellas: Grupo
SADASI, HOGARES UNIÓN, CASAS ARA y GEO (PMDU 2009).
27 A la par de ello persiste un tipo de poblamiento informal. Estos otros pobladores
ocuparon terrenos no regulados por las autoridades locales, ubicados a las orillas de los
cerros o cerca de los canales de aguas residuales. Por lo general sus casas habitación
fueron construidas con materiales que van desde cartón hasta concreto.
fábricas, el concreto y otros materiales con los que se construyen las viviendas de todo
tipo, generan hundimientos y modifican la red hidráulica y del drenaje. En
consecuencia, la población registra condiciones de vulnerabilidad socioambiental. El
proceso de industrialización y los asentamientos humanos coadyuvan a la formación de
dicha vulnerabilidad.
33 Un tipo específico de vulnerabilidad son las inundaciones, fenómenos frecuentes en la
época de lluvias. Según una estimación gubernamental, en un lapso de once años (2002
a 2013), los afectados por las inundaciones fueron alrededor 75,191 mil personas (CAEM
2011: 11).7 Esta vulnerabilidad repetida se convierte en una condición de desastre. La
población tiene que hacer frente a ello de manera sistemática. Este es el objeto del
artículo presente.
34 A continuación, analizaremos cómo los afectados por el desastre implementan distintas
estrategias de prevención y adaptación, para contener los efectos negativos de las
inundaciones. En específico, nuestro análisis se centra en la colonia Pedro Ojeda
Paullada, ubicada en la periferia de Ecatepec.
35 ¿Cómo sobreviven los habitantes de una colonia popular a las inundaciones?
36 La colonia Pedro Ojeda Paullada ha sido afectada frecuentemente por las inundaciones
por desbordamiento del Río de los Remedios, un antiguo río y ahora un canal de aguas
residuales que atraviesa gran parte del municipio de Ecatepec (Mapa 2).
Sin derechohabiencia
dinero para que recuperemos nuestras cosas (la mayoría son muebles,
electrodomésticos, etc.), muchos hemos perdido varias (Grupo focal con personas
afectadas, Ecatepec, 21/09/2012).
42 Aunque hay un esfuerzo por parte de las autoridades locales, éstos no son suficientes.
Las autoridades hacen frente a este tipo de desastres mediante la creación (o
reparación) de la infraestructura y la concientización de los afectados, sobre qué hacer
en caso de alguna inundación. De ahí que los afectados, a partir de vivir el desastre en
este lugar, han creado y aplicado determinadas estrategias sociales de adaptación. Las
estrategias de atención gubernamental no son suficientes para ellos:
[…] luego vienen los de Protección Civil que disque pa’ que sepamos qué hacer en la
inundación, ¡ya sabemos que tenemos que prevenir papeles importantes, buscar
ayuda, guardar nuestras cosas! […] así le hemos hecho siempre (Grupo focal con
personas afectadas, Ecatepec, 21/09/2012).
43 En cambio, las acciones que desarrollan los afectados son de carácter inmediato, e
improvisadas, buscan lugares de refugio (iglesias, escuelas, casas de vecinos, etc.) fuera
de su casa para protegerse del agua y busca espacios en donde asegurar sus
pertenencias, ya sea en las azoteas de sus viviendas o en la de cualquier vecino. Una vez
más, las autoridades evidencian regularmente una respuesta tardía y la improvisación:
[De nuevo, las autoridades] llegaron tarde. [Cuando llegaron] ya estábamos sacando
nuestras cosas […] algunos subimos nuestras cosas a las azoteas, otros se las
llevaron a las casas de los de a lado. [las autoridades] No nos avisaron de que el río
[Río de los Remedios se fuera a desbordar [aunque nosotros] ya nos habíamos
percatado de la salida del agua [por ello] salimos buscando un lugar a donde
refugiarnos (Grupo focal con personas afectadas, Ecatepec, 21/09/2012).
No nos organizamos de manera más formal porque prácticamente no coincidimos.
Hay un consejo de participación ciudadana y pues cada tres años, pues éste, se
someten a votación, los eligen y pues prácticamente, después no los demos. A veces
cuando vamos con el presidente del Consejo para pues tratar de meter un oficio, o
que ellos metan un oficio a las autoridades para que nos escuchen… es mucho
embrollo. En lugar de eso prácticamente les hemos dicho, mientras no entuben el
río siempre vamos a tener el agua cerca (Grupo focal con personas afectadas,
Ecatepec de Morelos, 21/09/2012).
44 Los afectados desarrollan acciones de mayor especialización técnica, o de mayor
organización y de tiempo. Transforman el territorio y lo adaptan para proteger sus
hogares ante el advenimiento del agua. Por ejemplo, construyen paredes de tierra o
concreto en la entrada de sus viviendas, como se muestra en las imágenes 3 y 4:
[…] hemos aprendido hacerle frente al agua, algunos reforzamos las entradas de
nuestras casas, unos hacen paredes de tierra o hacemos bardas de concreto (Grupo
focal con personas afectadas, Ecatepec, 21/09/2012).
Imagen 5. Diques con discos de plástico en el perímetro del Río de los Remedios.
Imagen 6. Diques con discos de plástico en el perímetro del Río de los Remedios.
Imagen 7. Diques con discos de plástico en el perímetro del Río de los Remedios.
48 De diferente forma, los afectados también tratan de adaptarse aun con los pocos
recursos que les deja su precariedad económica, a través de otras prácticas que no
necesariamente transforman su espacio de existencia (casa, calle o colonia), pero que
nacen de la improvisación, del ‘vivir al instante’ en la inundación. Esa otra práctica es el
endeudamiento. Solicitan préstamos monetarios a pequeñas microfinanciadoras 9 y
entre los mismos familiares o vecinos, para reconstruir su vivienda:
[…] los vecinos nos hacemos el favor de prestarnos cosas y dinero […] en la cuadra
hay gente que tiene negocios de tienda, peluquerías […] ellos han pedido prestado a
Compartamos o a CAME (microfinanciadoras) para recuperar su negocio […] si
tuviéramos dinero sí nos cambiaríamos de casa, pero la verdad, es que nos hemos
acostumbrado a vivir con el agua en nuestras casas (Grupo focal con personas
afectadas, Ecatepec, 21/09/2012).
49 Las estrategias que construyen las personas afectadas, son en gran parte fruto del
aprendizaje que les ha dejado ‘vivir al instante’ en el desastre. Es decir, de un
conocimiento tradicional, socioculturalmente construido (García, 2014: 10-11), a otro
conocimiento en constante renovación y transmisión. Éste último es posible por la
interacción social entre los afectados y lo que implica vivir en un ambiente de
vulnerabilidad.
50 Por ejemplo, frente a las formas institucionales de comunicación del desastre, que los
inundan de panfletos o folletos, lo afectados construyen nuevas formas de
comunicación en el desastre:
Hemos tenido un poquito más de comunicación entre vecinos porque muchas veces
a lo mejor la grieta no es enfrente a nuestras casas, pero en la de otros vecinos sí y
de allí se expande a toda la colonia. Entre los vecinos pusimos una especie como de
una bocina y cada vez que hay problema con el río, que vemos que sube el nivel, le
hablamos al vecino que toca la bocina para ver qué es lo que está pasando y a salir a
ver si efectivamente hay alguna fractura en el canal (Grupo focal con personas
afectadas, Ecatepec de Morelos, 21/09/2012).
51 Dichas acciones transforman su territorio inmediato, vivido (Porto, 2009: 23-25). El
apego socioterritorial al lugar representa un vínculo simbólico o patrimonial (Giménez
2000: 30-32).
52 Estas acciones o estrategias son elementales para que los “borrados” por el desastre
prevengan y se adapten a las inundaciones, reduzcan el riesgo de pérdidas
socioeconómicas o se recuperen más rápido de ellas. En algunos casos, se puede
observar que estas acciones son acompañadas de una serie de dispositivos materiales y
no materiales como facilitadores para la adaptación.
53 En este caso, los recursos no materiales se definirían en la ayuda mutua, los favores; o
sea, el capital social que se teje entre los familiares, los vecinos o el vínculo con las
microfinanciadoras. De distinta manera, se observa que los recursos materiales son,
tanto los objetos utilizados para hacer diques a las orillas del Río de Los Remedios,
como las paredes de tierra y concreto en la entrada de los hogares.
54 La utilidad de ambos tipos de recursos representa un reconocimiento entre iguales
(afectados) y un apego socio emocional al espacio que habitan. No hay una
preponderancia de uno sobre otro, tienen igual importancia en la consolidación de las
estrategias de adaptación.
Conclusiones
69 En este texto se evidencia cómo los “borrados” del desastre construyen estrategias
sociales de prevención y adaptación, a partir de las inundaciones recurrentes en el
municipio de Ecatepec de Morelos, en la metrópolis de México. Esto ocurre en
particular en la colonia Pedro Ojeda Paullada, un asentamiento urbano-popular ubicado
en las inmediaciones del Río de Los Remedios, un canal de aguas residuales.
70 Las inundaciones en este lugar son la consecuencia de un proceso sociohistórico en la
producción del espacio urbano local, en el cual la actividad industrial y el proceso de
poblamiento han generado condiciones de vulnerabilidad socioambiental, que junto a
las lluvias, incrementan el riesgo y el posible desastre.
71 Hemos analizado las acciones de adaptación y prevención que los “borrados” del desastre
generan de manera creativa. Éstas son producto de su interacción social y del proceso
de agenciamiento y de sentido, que desarrollan en un espacio-tiempo específico, en el
cual se reflejan una serie de recursos materiales y no materiales.
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NOTAS
1. En este caso, nos enfocaremos en la población afectada que habita cerca o a orillas del Río de
los Remedios un afluente de aguas residuales.
2. Cabe mencionar que el concepto de estrategias sociales de adaptación o estrategias adaptativas
se encuentra en construcción. En la definición que proponemos se considera que en estas
acciones hay un contenido sociopolítico de la sobrevivencia por explorar, el cual no puede ser
problematizado a partir del uso de conceptos como resiliencia. De acuerdo con Georgina Calderón,
en el análisis de los riesgos y los desastres, el concepto de resiliencia intenta desplazar al de
vulnerabilidad y ha llevado a (…) desorientar el foco de atención, desde los análisis sociales y de
funcionamiento general del sistema económico y político, hacia la escala individual. Como si los
individuos pudieran resolver por ellos mismos las problemáticas en las que están sumidos
(Calderón 2011:14). Hablar de estrategias sociales de adaptación o estrategias adaptativas, nos
permite reconocer la capacidad de los afectados como sujetos que transforman y se adaptan al
desastre.
3. Aquí nos referimos de igual manera a la metrópolis de México y a la Zona Metropolitana del
Valle de México (ZMVM), la cual actualmente cuenta con más de 21 millones de habitantes y se
integra por las 16 delegaciones del Distrito Federal, 59 municipios del Estado de México y 29
municipios del Estado de Hidalgo (INEGI, 2010).
4. El ingreso predominante en el municipio es de 1 a 5 veces el salario mínimo mensual. El 68.52
% de la población cuenta con educación primaria, el 37. 90 % con educación media superior, el
3.77% con estudios universitarios y, solo el 0.44 % con posgrado (INEGI 2010).
RESÚMENES
En el texto se usa el concepto estrategias sociales de adaptación para el caso de los afectados por las
inundaciones en la colonia Pedro Ojeda Paullada en Ecatepec de Morelos, metrópolis de México.
Con ello, se analizan las causas de la vulnerabilidad socioambiental, que constituyen la condición
de riesgo en ese lugar. Se pone especial énfasis en cómo los afectados, sobre todo aquellos
ubicados a las orillas de los canales de aguas residuales, responden y se adaptan a eventos
socioambientales, con base en distintas acciones emergentes y a un conocimiento construido en
su interacción con el espacio que habitan. Para dar cuenta de ello se utilizan entrevistas tipo focus
group, fotografías, notas de periódico, documentos y datos oficiales. Todo esto con la finalidad de
presentar otros elementos de análisis sobre el riesgo de desastre por inundación, que permitan
ampliar su conocimiento desde las experiencias de los afectados.
O texto utiliza o conceito de estratégias de adaptação social para o caso das pessoas atingidas por
inundações na colônia Pedro Ojeda Paullada em Ecatepec de Morelos, metrópole do México.
In the text uses the concept social adaptation strategies for the case of those affected by floods in
the colony Pedro Ojeda Paullada in Ecatepec de Morelos, Mexico metropolis. With this, the causes
of social and environmental vulnerability, which constitute risk status at that location are
analyzed. Special emphasis is placed on how those affected, especially those located on the banks
of canals sewage, respond and adapt to social and environmental events, based on various
emerging equities and a built knowledge in their interaction with the space they inhabit. To
account for this type focus group interviews, photographs, newspaper notes, documents and
official data are used. All this in order to introduce other elements of risk analysis on flood
disaster, that expand their knowledge from the experiences of those affected.
ÍNDICE
Keywords: social adaptation strategies, risk, disaster, Pedro Ojeda Paullada colony, Ecatepec de
Morelos
Palavras-chave: Estratégias de adaptação social, risco, desastre, Colonia Pedro Ojeda Paullada,
Ecatepec de Morelos
Palabras claves: Estrategias sociales de adaptación, riesgo, desastre, colonia Pedro Ojeda
Paullada, Ecatepec de Morelos
AUTORES
MTRO. OSCAR ADÁN CASTILLO OROPEZA
Universidad Autónoma del Estado de México, México
oscaradan68@hotmail.com
Da rodovia dos Bandeirantes, pego o acesso para outra estrada, que dista ainda
cerca de 10 km do centro da cidade de Campinas e no outro sentido conduz ao
Aeroporto Internacional de Viracopos e a outras cidades do interior paulista.
Seguindo as placas, chega-se facilmente ao bairro Jardim Itatinga, com um limite
geográfico demarcado, por ser entrecruzado por essas rodovias.
Antes de atravessar o viaduto, de um lado, há um grande motel. Do outro, avisto que
o drive-in está repintado e agora possui um nome/marca. Ao lado, galpões de
grande extensão, sendo um ferro-velho, uma borracharia, uma mecânica, uma loja
de autopeças e outro grande motel. Sigo com meu carro pela rua vicinal à estrada
que ladeia o bairro, passo por postos de gasolina, um ponto de táxi e pontos de
ônibus. Dentro do bairro estes ônibus não circulam, mas como não é muito extenso,
o Jardim Itatinga pode ser percorrido a pé. Há ruas esburacadas, uma ou outra sem
asfalto, calçadas craqueladas, salpicadas de cacos de vidro e pacotes de camisinhas.
Quando ando com alguém de salto alto, fico pensando na arte de manejá-lo nesse
piso.
Estou voltando ao bairro após o recesso do final do ano de 2014 e avisto novos
estabelecimentos, reformas em casas de prostituição, em botecos e um novo salão
de cabeleireiro. Uma casa reformada me chama particularmente atenção, pois
estava funcionando no esquema que costuma ser usado de noite no bairro, mas
observo que ainda está claro. É um modelo que parece exigir maior investimento,
pois havia profissionais do sexo e homens “laçadores”, chamando clientes para
entrar no estabelecimento. Perfiladas/os no meio da rua (e não nas calçadas),
conseguem abordar os veículos que transitam pelos dois sentidos. Três homens com
camisa branca, gravata e calça azul escura de terno ao lado de mulheres com
vestidos curtos. Não deixo de pensar que o calor, com sensação térmica de quase 40
graus, não devia ser fácil para estes homens que gesticulavam incessantemente
para que os carros estacionassem na casa diante da qual estavam e para qual
trabalhavam.
Passo pelo CEPROMM, a sede do Centro de Estudos e Promoção da Mulher
Marginalizada que atua no Jardim Itatinga e como é começo de janeiro, estava
fechado para as férias, de forma que as vagas de estacionamento que oferece
estavam barradas por correntes. Penso nas correntes desta sede, protegendo vagas
esvaziadas. Simbólica e ironicamente diz muito sobre a atuação salvacionista desta
instituição, contrastada pela atuação de Bianca, travesti e puta, que há anos atua
nesta instituição e fora dela, fazendo questão de levar o debate da “profissional do
sexo que não é coitadinha”.
Percorro ainda um portão com uma madeira e seu escrito improvisado de tinta
alertando: “residência familiar”. Dentre diversos e inúmeros estabelecimentos com
banners e letreiros que indicam que ali funcionam casas de prostituição, há alguns
poucos portões no bairro com essa indicação. Estaciono com a atenção de sempre,
para que o carro não atrapalhe a visibilidade das profissionais que estão nas
calçadas e performam seu trato com os clientes, que passam quase que
exclusivamente de carro, moto e caminhão.
Nesse dia, havia mais carros estacionados na rua que de costume; sendo que os
veículos de clientes não costumam ficar nas ruas, estacionando nos
estabelecimentos nos quais as profissionais alugam os quartos para o programa. Há
também a possibilidade de realizar programas dentro do carro ou em um
estacionamento, de forma que não pagam o valor do aluguel do quarto para a dona
da casa de prostituição.
Já na frente de uma dessas casas, avisto Márcia sentada em uma cadeira de balanço,
Miriam em pé e sempre com seu iPhone na mão e Cintia, sentada em uma mureta.
São as travestis que vejo há três anos pelo bairro, de costume, fazendo ponto juntas,
sempre com maquiagem, suas roupas de marca e apresentação impecável. Elas
aproveitam a sombra debaixo de uma árvore, na qual também penduram suas
bolsas, sendo pegas de forma quase que ritual quando vão em direção a um carro ou
a um quarto para realizar um programa.
Contam-me que estava ocorrendo uma reunião da Associação Mulheres Guerreiras,
que atua em prol do reconhecimento e melhores condições para profissionais do
sexo de Campinas e região. Daí descubro o motivo dos carros na rua. Passo pela
reunião, na qual se discute um caso de violência policial que acometeu o bairro em
outubro de 2013, quando policiais militares sitiaram o Jardim Itatinga por um final
de semana inteiro.
Encerrada a reunião, falo com Lígia, sentada diante da manicure que atende as
profissionais do sexo, que ficam nas calçadas do Jardim Itatinga. Ambas negras,
Lígia travesti sorridente com seus vinte e poucos e Virgínia mulher vivida com seus
quarenta e muitos e a determinação de arrastar seu carrinho com os apetrechos de
manicure por todo o bairro. Converso também com Silvia, uma travesti negra, que
conta ser de Cuiabá e começa a me falar de sua relação com seu namorado, que é
ciumento a ponto de tê-la agredido fisicamente. Eu já me contorcia com a história
dele ter apertado seu pescoço em uma festa, até que Silvia conta que um dia lhe
revidou com um soco na cara e desde então nunca mais ele “se meteu a besta” com
ela.
Depois acompanho Bianca em suas atividades diárias de manutenção dentro de um
pensionato. Além de inúmeros quartos onde as travestis dormem em beliches, há
uma quantidade infindável de orquídeas, paixão de Bianca. Nada em pouca
quantidade, há também quase tantos pequenos cachorros quanto a quantidade de
travestis que dormem nos quartos. As que ficam mais tempo no bairro - pois muitas
passam somente dias ou temporadas, retornando para suas cidades para visitar suas
famílias ou circulando por outras cidades para realizar programas - acabam
cuidando de um cachorro em especial. Um outro dia, fui com Márcia, em seu carro
zero km, levar um cachorro que estava doente. Márcia aproveitou para comprar um
xampu de quase 50 reais – o mesmo preço médio que cobra por meia hora de
programa - para o seu cachorro, do qual ela cuida tão bem quanto de sua
apresentação pessoal.
Vou ainda até outra casa de travestis no bairro. Aproveito para colecionar os vários
nomes dos diversos estabelecimentos do Jardim Itatinga. Há categorizações como
drink bar, show bar, boate, nomes que acionam fetiches como “As cariocas”;
Heterotopia
5 A localização do bairro, entrecortado por grandes rodovias e distante do centro da
cidade de Campinas, caracteriza-o tanto com um limite geográfico relativamente
demarcado, quanto como periférico. Somam-se a isso, as descrições das calçadas, nem
sempre asfaltadas, e dos galpões de grandes extensões. Pela centralidade da
prostituição para o Jardim Itatinga, os motéis de grande extensão também contribuem
para sua especificidade. Penso sobretudo em oposição a pequenos hotéis/motéis de
centros de cidades, frequentemente usados para programas, que costumam ser visíveis
por uma escada e um letreiro luminoso, mais do que por esbanjar espaço.
6 Contudo, considerar o Jardim Itatinga como bairro periférico não necessariamente
implica que haja uma vivência de periferia por parte de suas/seus moradoras/es e
trabalhadoras/es. É justamente através da prática da prostituição ali realizada, que as
travestis conseguem juntar dinheiro para suas transformações corporais e/ou para suas
aspirações a bens e viagens. Silvana de Souza Nascimento, em seus trabalhos com
travestis no interior da Paraíba também constatou que “a prostituição atua como um
vetor, econômico e simbólico, para a transformação corporal e facilita a aquisição de variados
objetos e substâncias” (2014, p.82). No caso relatado, Márcia com o dinheiro obtido na
prostituição, conseguiu comprar em dois anos um carro 0km, no valor de cerca de 60
mil reais2 e com ele levava seu cachorro de estimação ao pet
7 shop. Márcia também já foi europeia (TEIXEIRA, 2008), tendo vivido alguns anos em
Portugal, o que lhe conferia determinado prestígio e respeito, tanto entre as outras
travestis que circulam pelo bairro, quanto pelos clientes.
30 A seguir, trago dois relatos de jornal com discursos semelhantes, que foram acionados
em prol do afastamento de prostitutas mulheres e travestis do mesmo espaço físico que
famílias:
uma intervenção policial para resolução desse problema, o relato evidencia uma
moralidade ainda bastante presente6.
conversando, uma ou outra logo negociava com um carro e rapidamente voltava, depois
de um programa encerrado em 20 minutos.
44 Desde a primeira vez que fui ao bairro, fiquei impressionada com a quantidade de
carros de empresas, daqueles com escadas em cima, que entregam e realizam serviços,
frequentes pelas ruas do bairro no período de manhã e tarde. Além de carros de
manutenção de serviços, caminhões, motos e homens quase sempre sozinhos. É comum
ouvir que elas preferem fazer programas de tarde, pois são mais garantidos, mas nem
todas, sobretudo as travestis, se sentem à vontade para circular durante o dia – embora
o bairro garanta mais segurança do que outros pontos de rua. Isto porque é recorrente
em etnografias junto a travestis apontar para sua circulação noturna, por receio de
violências recorrentes à luz do. Esta vivência da e na noite é tão marcante que o
trabalho de Hélio Silva o reproduz na organização de seu livro (2003), trazendo
primeiro as cenas de tarde, depois de noite e só por fim, durante o dia, apontando para
especificidade das vivências travestis na prostituição.
45 A noite do Jardim Itatinga, ao contrário do dia, é mais atrativa para grupos de jovens,
para beber, flertar, ouvir música e não necessariamente realizar um programa. De
qualquer forma, independente de período de férias e feriado o Jardim Itatinga não tem
seu movimento muito alterado, sendo sempre bastante buscado para realização de
programas. Em um dia de frio e chuva, perguntei a uma comerciante de um bar se o
movimento caía por isso, mas ela categoricamente afirmou que não mudava nada.
Segundo ela, a variação do movimento tem a ver com final de semana, sempre mais
cheio, e sobretudo com o dia de pagamento. Isto aponta para uma determinada
clientela de trabalhadores assalariados - embora carros luxuosos de clientes também
transitem pelo bairro. Trabalhadores assalariados que recebem no começo do mês
compõem a maioria dos carros de clientes, fazendo com que o bairro fique mais
frequentado quando recebem salário e isto conforma uma lógica de funcionamento que
aproxima a passagem de tempo no bairro com as lógicas de fora dele.
46 Outro exemplo dessa conexão com o tempo fora do bairro pode ser lida pela fraca
movimentação durante os jogos do Brasil na Copa do Mundo de 2014. Durante o jogo
que assisti no Jardim Itatinga, quase não passaram veículos e ao perguntar para Fafá se
ela já havia visto o bairro tão deserto, ela alegou que isso só havia ocorrido no final de
semana de violência policial. Somente o jogo de estreia da Copa foi considerado um
sucesso pelas profissionais do sexo, comentando que tinha até fila na porta. Mas os
seguintes ficaram somente como promessa de muitos clientes. Algumas alegaram que
iriam para São Paulo, em busca de alguns programas, já que Campinas não estava
atraindo estrangeiros.
47 Toda a movimentação anterior e durante os jogos da Copa do Mundo não parecia
destoar do restante dos lugares, havendo uma proliferação de venda de camisetas da
seleção e itens com as cores verde e amarela. Em sua apresentação nas ruas do bairro,
muitas aderiram a algum item – sandália, blusa, calcinha, corneta – agenciando seu
capital corporal na negociação do programa. Durante o jogo que assisti no bairro, nos
reunimos em um boteco, e Marcia e as demais postavam na internet uma infinidade de
fotos tiradas ao longo dos minutos do jogo. Ficamos reunidas diante de uma tv de tela
média e imagem chuviscada, participando de um bolão (do qual não acertei o resultado
da vitória de 4x1 da seleção brasileira sobre Camarões). Enquanto uma ou outra ficava
meio à espera de clientes, dos raros carros que passaram durante o jogo, nenhum
parou. Houve quem me dissesse que haveria clientes em busca de companhia para
assistir aos jogos, o que não parece incomum pelos relatos de que além do prazer
encontrado nas mais diversas formas de fetiche, muitos homens procuram um
programa, querendo simplesmente companhia e nesse sentido as profissionais
atribuem a si mesmas a função de psicólogas do amor (SOUSA, 1998, p. 118 – 119).
48 Quanto ao quinto princípio das heterotopias, Foucault afirma que apresentam um
sistema de abertura e fechamento, tornando-se lugares igualmente isolados e
penetráveis. Um exemplo trazido pelo autor é o9 de motel, no qual pode-se entrar de
carro com a amante, realizando um sexo considerado ilícito, mas de forma garantida e
consentida (2013b, p.120). Em outra versão de tradução, há explicitamente o exemplo
de uma casa de tolerância, pois justamente enseja o paradoxo de ser um local onde fervor
se emana e um sexo igualmente considerado ilícito pode se concretizar (2013a, p.28).
49 Esta característica de uma certa liberalidade própria de um determinado espaço, pode
ser pensada no Jardim Itatinga através da proliferação de estabelecimentos
visivelmente destinados à prostituição, uma vez que ainda constam criminalizados
perante a legislação brasileira. De fato, a expressão unânime de todas as pessoas que
passam pelo bairro pela primeira vez é de espanto, perante a normalidade com a qual as
mulheres e travestis ficam nas calçadas em seu trato com clientes. A enorme
quantidade, variabilidade e visibilidade dos estabelecimentos também proporciona esse
aspecto de uma realidade apartada do restante.
50 O sexto e último princípio esboçado por Foucault quanto à heterotopia situa esta como
local que se relaciona com o espaço restante, apresentando determinada função. Ou
trata-se de uma heterotopia de compensação, que cria um lugar extremamente
meticuloso, para apontar como os demais são caóticos, ou pode ser uma heterotopia de
ilusão, que cria um espaço de contestação de outros espaços reais – quanto a este tipo,
novamente citam-se casas de tolerância.
51 A própria denominação enquanto casas de tolerância remete à ideia de mal necessário, já
argumentada, acerca da prostituição ser estigmatizada. A separação do bairro Jardim
Itatinga em relação à cidade de Campinas e a demarcação das “residências familiares”
são exemplos disto e apontam para as oposições entre espaço público X privado, família
X social. Nesse sentido, Foucault sugere que nossa noção de espaço talvez não tenha
sido completamente dessacralizada:
talvez, nossa vida ainda seja comandada por um certo número de oposições nas
quais não se pode tocar, e que a instituição e a prática até agora não ousaram
atacar: oposições que admitimos como inteiramente dadas – por exemplo, entre o
espaço privado e o espaço público, entre o espaço da família e o espaço social, entre
o espaço cultural e o espaço útil, entre o espaço de lazeres e o espaço de trabalho;
todas elas são animadas ainda por uma surda sacralização. (2013b, p.114)
52 São estas oposições que ao mesmo tempo apartam e aproximam o bairro do restante de
lógicas e códigos. Não só as casas de prostituição, mas todo o bairro Jardim Itatinga
apresenta esta relação com o entorno, de relativa autonomia.
Violência policial
53 Se por um lado há esta lógica própria do Jardim Itatinga, também há essa constante
relação com o entorno, que ficou mais evidente para mim, sobretudo por conta da já
mencionada violência policial que ocorreu no bairro em outubro de 2013 10. A reunião
que ocorria no relato inicial, impulsionada pela Associação Mulheres Guerreiras, tinha
o objetivo de continuar o diálogo sobre as ações legais tomadas contra este episódio
ocorrido no bairro por um final de semana inteiro. Após a morte de um sargento no
bairro vizinho, policiais militares foram ao Jardim Itatntiga na sexta-feira à noite e
abordaram de forma violenta moradoras/es e trabalhadoras/es, impedindo que
circulassem pelas ruas do bairro. Dentre relatos de cárcere privado e toque de recolher,
policiais militares também sitiaram o bairro por três dias, impedindo que serviços
fossem entregues no bairro e que clientes acedessem a ele 11.
54 De acordo com o que já foi descrito, as ruas do bairro figuram como locais importantes
para negociação do programa, sobretudo porque os clientes chegam quase que
exclusivamente em veículos. A importância econômica das casas e da prostituição
realizada em parte nestas e em parte nas ruas do bairro é tamanha, que interromper
esta movimentação foi alegado como modo de fazer com que as pessoas falassem o que
sabiam sobre a morte do sargento.
55 Segundo Márcia:
Márcia: Nunca tinha visto, nunca tinha nem presenciado, de você ser presa dentro
de casa, de não deixar você sair e ser agredida verbalmente e até fisicamente.
Entraram nos quartos, reviraram tudo. Tinham assassinado um sargento. [...] Eu não
fui agredida porque eu O- BE-DE-CI, né.
L: Qual era a ordem?
Márcia: De entrar pra dentro e não sair pra nada, de não ir pra lugar nenhum, então
eu assim, eu não fui agredida fisicamente, mas verbalmente eu fui, porque eu tava
saindo pra comprar coisas no mercado e eles falaram pra mim entrar pra dentro,
que se não ia enfiar o cassetete no meu cu, já que é o que eu tava querendo e não sei
o que... Então pra mim isso é agressão. Que ia enfiar na minha boca, não só pra mim,
pra todas as outras aqui de casa.
56 Márcia, ao contar da ameaça do cassetete no seu cu, não só pra ela, mas também pras
outras travestis, demonstra que a abordagem policial com elas pode ser ainda mais
carregada de preconceitos e possui uma especificidade caracterizada como transfobia.
Na continuação da entrevista, ela revela uma noção aguçada do (des)serviço policial,
quando trata-se de travestis na prostituição de ruas:
L: E o que você acha da polícia?
Márcia: Acho eles uns idiotas, uns fdp. Assim, sabe o que que eu acho ruim? Que a
gente tem medo de pessoas que tão ali na sociedade pra poder proteger a gente.
Então eu vou ter medo de uma pessoa, eu tenho medo da lei.. não da lei, mas das
pessoas que servem à lei. Eu não, a gente tem... (Entrevista realizada dia
22/04/2014)
57 Luana, que também estava presente durante o ocorrido, contou que o bairro ficou
sombrio, só com a circulação de policiais e as luzes dos postes, referindo-se à ausência
do rotineiro movimento de carros de clientes, que iluminam e enchem as ruas. Dentre
os resultados da violenta abordagem policial, ocorreram ofensas verbais, xingamentos
contra um casal de lésbicas que gerencia um bar, quebra dos braços de uma prostituta
estrangeira e um tiro disparado. O toque de recolher configurou uma situação de cárcere
privado, bem como foi relatado por uma moradora, que alegou não poder nem sair nas
ruas, ao aviso dos policiais dizendo que enquanto não achassem o culpado, ninguém
poderia trabalhar.
58 Isto se refere à enorme quantidade de comércios variados que coexistem no bairro e
segundo esta moradora isso aqui é uma pirâmide, um depende do outro. Em seu caso, ela e
seu marido possuem barraquinhas que vendem comidas e sua mãe cuida de crianças das
meninas que trabalham e também lava suas roupas. Reafirmando essa dependência entre
as/os moradoras/es do bairro, ela comentou que estas meninas teriam ficado também
sem comer, uma vez que entregadores não podiam adentrar o bairro e nas ruas onde
elas geralmente comem nessas barraquinhas, não se podia ficar. Por este motivo, ela e
sua mãe, que moram numa dessas casas com escrito “residência familiar” também
participaram da manifestação de protesto ocorrida na rodovia.
59 Na segunda-feira, terceiro dia no qual o Jardim Itatinga amanheceria com as pessoas
sem poder circular, ocorreu a decisiva atuação das pessoas do bairro, que ocupando as
pistas da Rodovia Santos Dumont, interromperam o trânsito de veículos. Com o objetivo
de chamar atenção para violência em curso essa atuação fez com que aos poucos o
movimento e as atividades fossem retomadas no bairro.
60 A ideia de pirâmide relatada revela-se na quantidade de serviços que existem no bairro,
que funcionam em relação direta com as pessoas e com os estabelecimentos envolvidos
com a prostituição. As profissionais do sexo são também consumidoras de comida,
oferecidas em estabelecimentos ou em barraquinhas e são também ávidas compradoras
de roupa e produtos de beleza. Aparece então, outro lado do negócio que movimenta o
bairro: além dos estabelecimentos para realização de programas, há o Posto de Saúde,
salões de beleza, postos de gasolina, ponto de táxi, mercados, lojas de roupa, estúdio de
tatuagem, consultório de dentista, consultório de psicanalista e ambulantes que
prestam diversos serviços - como aqueles que possuem um ponto mais ou menos fixo
em uma esquina ou aqueles que percorrem as ruas vendendo algo. Há a venda de
produtos tanto para os clientes quanto para as profissionais do bairro, para as quais já
presenciei a venda de dvds piratas, roupas, calçados, doces, salgados e produtos de
beleza e farmácia.
61 Estes últimos merecem especial atenção uma vez que no bairro não há uma farmácia e
todos os produtos são revendidos a preços absurdamente mais caros. Já constatei carros
de marcas de produtos de beleza, com suas revendedoras que paravam na frente de
cada casa de prostituição, oferecendo-os para as profissionais do sexo. É a dinâmica de
trabalho das profissionais do sexo que faz com que produtos e serviços sejam
negociados nas ruas, de porta em porta e talvez isso justifique os preços abusivos. Um
maço de cigarros que é normalmente vendido a cerca de R$ 6,00 é lá revendido a
R$10,00. Márcia diz saber que os preços dos produtos que compram no bairro, como
hidratantes, são muito mais caros, mas alega que é mais prático do que se deslocar para
comprá-los.
62 Outro serviço frequente nas calçadas, em frente às casas de prostituição é o de
manicure. Uma vez participei de uma conversa interessante com uma manicure, uma
senhora branca, com seus cabelos curtos também brancos e óculos de grau. Enquanto
fazia as unhas de Betania, falavam sobre valores de seus lucros. Betania comentava
sobre sua tentativa de abrir um salão de beleza, mas que fazer uma escova demorava 2
horas e só valia R$ 40,00, ao passo que um programinha de meia hora lhe rendia R$ 50,00.
Afirmava que enquanto profissional do sexo ganhava muito mais e a manicure também
aproveitou para dizer que só trabalhava no Jardim Itatinga e isso lhe rendia muito
dinheiro – sendo que ao levantarem os valores, o da manicure correspondia à metade
do lucro da profissional do sexo. Esta senhora também alegou que por seu trabalho no
bairro ela via cada coisa que lhe fazia pensar que homem não presta mesmo e por isso ela
contava não ter se casado.
63 Outra manicure, Virgínia, que apareceu na descrição inicial, costumava fazer as unhas
de muitas travestis do bairro. Ela me contou que foi trabalhar no Jardim Itatinga pois
não queria mais ficar com seu marido. A única alternativa era sair de sua cidade de
origem e já em Campinas apareceu a oportunidade de trabalhar no bairro, o que ela
dizia ter sido assustador no começo. Há 17 anos Virgínia trabalhava ali como manicure
e vendedora de produtos rendados, alegando que passou a gostar muito do bairro e de seu
trabalho, até porque por meio disto havia conseguido comprar seu carro. Negra e
evangélica, enfatizava que havia justificado para seu pastor o fato de trabalhar no
Jardim Itatinga. Em sua conversa aparecia constantemente essa forma de se justificar,
jogando com o estigma e preconceito associados ao bairro, assim como uma certa culpa
por sua filha ter trabalhado lá como profissional do sexo. Virgínia se culpava, pois havia
largado seu marido, trazendo sua filha para morar com ela no bairro. No começo, sem
nada, dormiam em um colchão no chão, e aos poucos ela foi juntando dinheiro, até
conseguir morar do outro lado da rodovia, no bairro vizinho. Sua história contada em
tom de superação se combinava com uma progressiva aceitação das pessoas do bairro,
afinal relatadas como amigas, e pelas quais se dizia agradecida, fazendo entender melhor
a profissão da filha. Enfaticamente contou que sua filha escolheu ser profissional do sexo,
embora tenha se casado, largando a profissão e o bairro.
64 Portanto, a análise aqui proposta pretendeu descrever e analisar a prática da
prostituição, realizada especificamente por travestis, sugerindo seu caráter laboral por
ser realizado em estabelecimentos comerciais próprios ao bairro. As vivências de
travestis, de profissionais do sexo e no Jardim Itatinga se equiparam, demonstrando a
necessidade de uma análise que não foque somente uma dessas dimensões, mas que as
considere em relação. O caráter relacional foi também esboçado para o bairro, pela sua
relativa autonomia na qual trocas sexuais são aberta e diariamente realizadas em suas
ruas. Considerando então a violência ocorrida no Jardim Itatinga, o movimento deste
artigo pretendeu perpassar e extrapolar a noção do bairro, abordando vivências que
remetem (mas não só) ao trabalho na prostituição e abordando trocas econômico-
sexuais engendradas na prática da prostituição.
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ZANZOTTI, Maria Isabel. Nas margens do corpo, da cidade e do estado: educação, saúde e
violência contra travestis. Usp, 2015.
NOTAS
1. Este artigo é um recorte, adaptado de um capítulo da minha dissertação de mestrado As
corajosas: etnografando experiências travestis na prostituição (2015).
2. Saliento que os valores correspondem a janeiro de 2015 e que todos os nomes das pessoas
foram aqui transmutados, tanto para preservá-las, quanto pelo entendimento do caráter ficcional
dos textos antropológicos.
3. Neste curto texto, as noções de cultura, sociedades ditas ‘primitivas’ não aparecem bem pontuadas
e são contrastantes com a abordagem antropológica deste artigo, mas a conceitualização de
heterotopia parece válida para o exercício aqui proposto.
4. Não será possível aprofundar aqui o debate e a situação paradoxal de semilegalidade da
prostituição, mas cabe indicar que o trabalho de profissional do sexo é garantido pela
Classificação Brasileira de Ocupações, ao passo que há ainda a criminalização de casas de
prostituição e de quem as gerencie.
5. Há uma grande discussão quanto à heterossexualidade das travestis e dos clientes que as
buscam, como traz com atenção Larissa Pelúcio, ao analisar os T-lovers (2009). Contudo, muitas
vezes ouvia delas que quanto à sexualidade, consideravam-se gays mesmo. Luana uma vez foi
categórica ao dizer: sou gay ué, gay é mais geral, já dá pra entender e depois vem que sou travesti.
6. Esta moralidade que perpetua a separação entre mulheres de família e mulheres prostitutas,
liga-se com uma ideia de degeneração atribuída a mulheres que trocam serviços sexuais por
RESUMOS
Neste artigo o exercício descritivo é também abordagem metodológica e objetivo analítico. Em
diálogo direto com a noção de heterotopia de Michel Foucault, o bairro vai se apresentando como
tal, em uma particular relação de autonomia e ligação com outros espaços. Desse exercício, vai se
delineando a conformação do bairro relacionada à prática da prostituição, em arranjos de
estabelecimentos diversos e focando na prática de travestis que lá realizam programas. A
centralidade da prostituição para o bairro fica evidente também pelo relato de violência policial
ocorrida em 2013 como forma de retaliação, suspendendo as atividades econômicas. O argumento
percorrido é da indissociabilidade analítica quanto às vivências de travestis, enquanto
profissionais do sexo e especificamente no bairro Jardim Itatinga (Campinas -SP).
In this article the descriptive exercise is also the methodological approach and the analytical
objective. In direct dialogue with Michel Foucault's notion of heterotopia, the neighborhood
presents itself as such, in a particular relationship of autonomy and connection with other
spaces. From this exercise, the conformation of the neighborhood related to the practice of
prostitution in varied business arrangements is outlined and focusing on the practice of travestis
who conduct sex work there. The centrality of prostitution in the neighborhood is also evident by
the report of police violence in 2013 as a form of retaliation, suspending economic activities. The
argument is based on the analytical indissociability regarding the experiences of travestis, as sex
workers and specifically in the neighborhood of Jardim Itatinga (Campinas -SP).
ÍNDICE
Keywords: Urban Anthropology, Prostitution; Travesti, Heterotopia, Police Violence
Palavras-chave: Antropologia Urbana, Prostituição, Travestis, Heterotopia, Violência Policial
AUTOR
LETIZIA PATRIARCA
Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade de São Paulo
(PPGAS/USP).
e-mail: patr.letizia@gmail.com
NOTA DO AUTOR
Este trabalho foi sistematizado durante um estágio sênior como Visiting Scholar no
Center for Religion and Media, NYU, de 2015 a 2016, com financiamento de uma bolsa
da Capes, a quem agradeço.
O que foi separado ritualmente pode ser restituído, mediante o rito, à esfera profana
(...). Há um contágio profano, um tocar que desencanta e devolve ao uso aquilo que o
sagrado havia separado e petrificado (...). Profanar não significa simplesmente abolir e
cancelar as separações mas aprender a fazer delas um uso novo, a brincar com elas (...).
A profanação do improfanável é a tarefa política da geração que vem (Agamben, 2007,
p. 66, 75, 79)
Preâmbulo
Este artigo passou por um longo processo de fermentação, no qual seus contornos e
propósitos foram se redefinindo em uma sucessão de apresentações 1, apesar de manter
as características de um ensaio. O evento em que ele se baseia – a performance
iconoclasta realizada por um coletivo porno-terrorista, o Coletivo Coiote, na Marcha das
Vadias, em 27 de julho de 2013, no Rio de Janeiro, e suas repercussões – passou, no
percurso, por diferentes apropriações. Inicialmente ele foi apresentado em diálogo com
outro evento, a VI Caminhada pela Diversidade Religiosa (realizada também no Rio de
Janeiro, em 08 de setembro do mesmo ano), para demonstrar como, nesses dois rituais
políticos, a categoria intolerância religiosa (uma forma relativamente recente de
qualificar conflitos de cunho religioso, cuja gênese precisa ser melhor compreendida),
era posta em operação, sendo incorporada como mais um tema na pauta da luta por
direitos. Tratava-se então de pensar os processos sociais pelos quais uma categoria
política seria performada e adquiriria força e concretude.
Mas o caso dos santos e das vadias foi tornando-se autônomo ao ser associado a
reflexões anteriormente desenvolvidas sobre o tema das materialidades religiosas
(Menezes, 2011; 2013). Trata-se de tomá-lo quanto aos efeitos das manipulações
políticas de imagens religiosas, principalmente aquelas de caráter transgressivo;
manuseios que pretendam de alguma forma atacar o poder dessas imagens, mas que
esbarrem em sua força. Portanto, é sobre a complexidade da transgressão à imagem
religiosa com fins políticos que o artigo versa.
A ideia de manipulação assume aqui seu sentido menos maquiavélico, isto é,
“manipular” é entendido como sinônimo de “mexer com as mãos”, “manusear”, numa
aproximação à noção de técnica manual, afastando-se de outros sentidos
dicionarizados, como os de “um condicionamento em proveito próprio”, ou de “uma
adulteração”. Já a noção de evento aproxima-se das abordagens manchesterianas de
situação social, ou, como proposto por Bruce Kapferer, de evento crítico:
The approach to the event discussed here is one that goes beyond conventional
perspectives of the event as representational of the social or of society and, instead,
as a moment or moments of immanence and the affirmation and realization of
potential. (…) The social or society in this perspective is not a closed totality
representable in the event that if it expresses its world, it is also a force in its
making, going beyond what it might be said to represent. (Kapferer, 2010, p. 2).
Concordando largamente com autores próximos à Escola de Manchester como Max
Gluckman, Clyde Mitchel, Jaap Van Velsen e Victor Turner, embora revisitando-os a
partir de abordagens pós-estruturalistas, como as de Gilles Deleuze e Félix Guattari e
Alan Badiou, Kapferer reforça a utilidade da análise calcada em uma situação de crise
por seu caráter revelador de forças em interação no mundo social:
That is, they were moments in which the intransigencies and irresolvable tensions
ingrained in social and personal life (the two being inseparable) boiled to the
surface and became, if only momentarily, part of public awareness for the
participants as well as for the anthropologist.
The methodological value that the Manchester group placed on events—
specifically, events of conflict and contestation and not just any event or act or
practice—was that they revealed what ordinary and routine social practices of a
repeated, ongoing kind tend to obscure (Kapferer, 2010, p. 3).
Como nos lembra ainda o autor, eventos críticos não apenas revelam forças e padrões já
existentes, mas são também momentos que permitem a irrupção do novo, do até então
impensável, do surpreendente, do desestabilizador. É sob essa perspectiva de eventos a
partir dos quais o novo pode irromper, ou nos quais podemos justamente testemunhar
a dificuldade dessa irrupção, que se justifica essa análise.
A apropriação do evento das vadias será um exercício do que foi chamado em outro
trabalho de um jogo de percurso (Menezes, 2013), parafraseando a ideia de Jacques Revel
de jogos de escala. Revel, na introdução de seu livro de 1996, enfatiza que a opção por
escalas de análise mais ou menos amplas produzem resultados diferentes. Não apenas
mais ou menos restritos, mas bastante diferentes:
A escolha de uma escala particular de observação produz efeitos de conhecimento, e
pode ser posta a serviço de estratégias de conhecimentos. Variar a objetiva não
significa apenas aumentar (ou diminuir) o tamanho do objeto, significa modificar
sua forma e sua trama. (REVEL,1996: 20).
Diante dessa proposta de jogos de escala que reconstroem um objeto de estudo, defende-se a
existência de efeitos de conhecimento e de reconstrução do objeto produzido por jogos
de percurso. Um percurso de pesquisa geralmente produz uma sequência de questões,
junto à incorporação das problemáticas e de um léxico contidos na literatura de um
determinado campo de discussões, provocando uma espécie de encadeamento, que se
desenvolve num sentido específico. Se esse encadeamento por um lado facilita a
discussão, por outro pode condicioná-la. O diálogo entre pessoas com trajetórias de
pesquisa diferentes, em espécies de jogos de percurso, tornaria possível, a meu ver, obter
um rendimento peculiar, num processo que contribuiria para desmontar doxas, para
encontrar novas maneiras de perguntar, para estabelecer ângulos inéditos de
abordagem. Uma experiência de estranhamento, tão cara à Antropologia, gerada entre
os próprios pares.
Como a autora desse artigo não é uma estudiosa de gênero, nem uma militante
feminista (embora se sinta bastante contemplada pelas pautas do feminismo), sua
abordagem da Marcha das Vadias se dá a partir de um encadeamento de percurso na
área da religião. Acredita-se que há uma diferença entre chegar à Marcha das Vadias
pela discussão do feminismo e da luta por direitos, e chegar a ela pelas discussões da
religião, do culto aos santos, dos limites entre objetos religiosos e objetos artísticos, e
das transformações do campo religioso brasileiro contemporâneo, mas é justamente
uma tentativa de tomar essas diferenças como um efeito de conhecimento produtivo
que se estará buscando produzir neste artigo.
Foi nesse contexto efervescente, no mês seguinte às Jornadas de Junho, que a Marcha das
Vadias aconteceu, simultaneamente à JMJ e à visita papal. Aproveitando a conjuntura
de 2013, além de suas bandeiras tradicionais, o movimento decidiu abordar também a
garantia do Estado laico. Sabia-se que no encontro do papa com os Jovens a condenação
do aborto estaria na pauta (ver as análises de Luna, 2016; Mariz & Carranza, 2015),
então ênfase seria dada à pauta feminista de descriminalizar esse ato, pois, como
ressaltou uma das organizadoras:
(...) A não legalização do aborto que ocorre no Brasil é uma questão muito cara para
as mulheres. E tem acirrado cada vez mais, com o estatuto do nascituro, com a
criminalidade de movimentos sociais que falam sobre a legalização do aborto, entre
outras coisas que a gente tem visto no Congresso Nacional.
http://www.vermelho.org.br/noticia_print.php?id_noticia=218822&id_secao=8,
acessado em 19/04/2017.
Portanto, a Marcha estava marcada há meses para julho, numa estratégia política de
contraponto à agenda religiosa que tomaria conta da cidade nesse período, mas não
havia intenção de um confronto aberto:
Não teria por que um movimento que faz uma marcha contra a violência buscar um
confronto que possa gerar um ato de violência”, ressaltou Nataraj, uma das
organizadoras. O momento é propício ao diálogo. A ideia é fazer um contraponto
pacífico à visita do papa, onde serão colocadas as pautas da marcha, “que vão de
encontro [sic] ao Estado laico. http://www.vermelho.org.br/noticia_print.php?
id_noticia=218822&id_secao=8 , acessado em 19/04/2017
No entanto, deslocamentos espaciais foram ocorrendo e configuraram uma outra
situação. O previsto era que a Marcha acontecesse ao mesmo tempo que a JMJ, mas não
no mesmo lugar, pois enquanto a primeira seria em seu espaço habitual, na orla de
Copacabana, a Jornada ocorreria em Guaratiba, zona oeste da cidade. Mas, poucos dias
antes do dia 27, em consequência de fortes chuvas que caíram durante a semana, o
terreno de Guaratiba se tornou um lamaçal e a organização da JMJ, constatando a
impossibilidade de realizar as atividades previstas no local, transferiu-as justamente
para a Praia de Copacabana3, o mesmo lugar da Marcha. O compartilhamento, mesmo
involuntário, do espaço, poderia subir o tom do contraponto. Ciente disso, o coletivo
que organiza a Marcha das Vadias solicitou a grupos e participantes que repensassem
suas formas de manifestação, considerando o novo cenário. No entanto, dado o caráter
democrático e descentralizado desse movimento, os conteúdos não foram, como nunca
são, regulados, nem previamente conhecidos, ou seja, havia autonomia para se fazer o
que quisesse.
No dia 27 de julho de 2013, a Marcha das Vadias começou às 13h e durou até o final da
tarde, segundo participantes divulgaram nas redes sociais, com muita alegria e sucesso.
Apesar de não ter estado lá presencialmente, acompanhei as repercussões na timeline
de amigas militantes e vi suas fotos e postagens a respeito 4. A grande mídia também
divulgou matérias a respeito, enfatizando a oposição Vadias X Igreja Católica, como por
exemplo na cobertura da Folha de São Paulo: https://www.youtube.com/watch?
v=9Ti_UWpurpE
Porém, comentários sobre os excessos da performance de um coletivo artístico, a qual
envolvera sexo com crucifixos e imagens de santos e quebra de estátuas, começaram a
pipocar no Facebook. As pessoas que chegavam em casa vindas do ato foram
surpreendidas ao ver que a mídia e as redes sociais haviam se concentrado naquele fato,
que muitas não tinham sequer testemunhado, porque na marcha ocorrem muitos
eventos simultâneos e não há um só foco de atenção. Os rumores crescentes levaram-
me a buscar a cena da performance no YouTube: https://goo.gl/aOCava, acessado em
16/06/2017.
O vídeo foi descrito por Luna (2016), que tratou da simbologia da performance na
perspectiva da luta pela legalização do aborto:
A filmagem mostra um homem e uma mulher no centro de uma roda formada por
integrantes da Marcha das Vadias. Algumas pessoas dão as mãos, segurando um
barbante à moda de um cordão de isolamento. O homem e a mulher vestem um tipo
de tapa-sexo feito de um cordão e na frente, ele tem um quadro em formato de
círculo com uma imagem religiosa e ela tem um crucifixo grande. Na parte de trás
do tapa-sexo, entre os glúteos, ele insere um crucifixo menor. Ele calça botas de
marcha e ela porta botinas pretas. Ambos têm os rostos cobertos com panos pretos,
provavelmente camisetas amarradas, que deixam apenas os olhos à vista. O resto
[dos corpos tatuados] está despido. No chão, encontram-se ícones religiosos: uma
imagem de Nossa Senhora Aparecida e uma segunda de outra Nossa Senhora. A
mulher posiciona crucifixos e cruzes de vários tamanhos, arrastando-os com os pés,
de modo a formar uma pilha entre as duas imagens. Ouve-se uma batucada de fundo
e palmas ritmadas. Um homem do público usa um contêiner de coleta de lixo como
se fosse um tambor e batuca. Uma mulher do público canta “solta a revolta. Revolta
santa” no ritmo do batuque e continua “A policia não te protege, só se vigia”. A
mulher da performance dobra os joelhos e mexe os quadris se requebrando sobre a
imagem de nossa Senhora Aparecida, até encostar a região genital, de modo que a
cabeça da santa fica entre suas pernas. Ela faz um movimento de fletir os joelhos e
contrair os quadris como se estivesse socando a cabeça da imagem em sua vulva [ela
faz movimentos de penetração com a imagem]. Ele dança em torno das imagens.
Nesse momento, o círculo se aperta e algumas pessoas (da organização da marcha?)
se dão as mãos fazendo uma corrente possivelmente para isolar a área da
performance. O homem então passa rapidamente a fazer o mesmo tipo de dança
sobre a imagem da outra santa. Ele tem palavras escritas em marrom logo abaixo do
peito: “dar o cu é uma delícia”. Ele levanta um braço enquanto requebra sobre a
imagem. A mulher se levanta, pega a imagem de Nossa Senhora Aparecida, ergue e
arremessa no chão, e depois anda em torno. O crucifixo tapa-sexo está quase solto e
balança. O homem também ergue e quebra a outra imagem, pega o pedaço maior e
atira no chão novamente. Ela ergue uma imagem menor de Nossa Senhora
Aparecida e a exibe para a audiência, arremessando-a no chão em seguida. Os dois
caminham e gingam em torno das imagens. Um homem do público bate palmas
ritmadas e a atriz da performance acompanha. Ela arrasta os crucifixos com os pés,
juntando-os com a pilha de cacos de louça. Ele passa um pequeno crucifixo para a
mão dela. Nesse momento, o homem se deita com seus ombros e a parte superior
das costas no chão, apoiado sobre seus braços flexionados, mantendo as pernas
erguidas na posição de vela e abre suas pernas, expondo a região do períneo.
O vídeo termina após o homem, na posição de vela, ser penetrado no ânus pelo
crucifixo manuseado por sua colega de performance, que antes teve o cuidado de cobri-
lo com um preservativo. Fazer sexo com a imagem de santos, quebrá-las, fazer sexo com
o crucifixo ao som de um funk, sob os aplausos da plateia. Trata-se da estratégia
político-artística do Coletivo Coiote, que, como já dito, identifica-se como “pornô-
terrorista”. Alguns sinais distintivos desse grupo podem ser vistos no vídeo: os rostos
cobertos por camisetas negras, típicos da estratégia Black Blocs; o uso de botinas, dando
um certo tom militar, em contraponto aos corpos nus e tatuados; o uso da música do
coletivo Anarkofunk, que, como o próprio nome indica, combina funk a perspectivas
anarquistas, a própria música escolhida, que se chama “Toca a revolta”, e cujo refrão
defende a “ação direta”, e principalmente o uso da nudez, sexo e da profanação do
próprio corpo como armas políticas. Segundo Vergara (2015):
O Coletivo Coiote existe desde 2012 e realizam intervenções em espaços públicos,
bares, festas e manifestações (...) sua crítica é dirigida à heterossexualidade
compulsória, à normalização e colonização dos corpos e à homofobia institucional.
(p. 108) Ele é um grupo nômade de performance que se utiliza da prática
escatológica, da modificação corporal e do improviso na construção de um
“terrorismo com o cu” ou “pornô-terrorismo (p. 110).
As performances realizadas pelo Coletivo Coiote lançam mão o tempo todo de
estratégias autoimunizadoras quando expõem seus corpos violentados. Porém ao
expor essa vulnerabilidade, não o fazem buscando comoção do Estado ou de uma
“opinião pública” genérica, mas no intuito de catalisar uma revolta. As
performances estão voltadas aos marginalizados extreme, aos vulneráveis e
precarizados como abertura para uma aliança coletiva.
A sua estética vincula artefatos da religião afro, modificações corporais, como
costura da boca e das genitais, o uso do nu e da máscara negra e a musicalidade do
“AnarkoFunk”. O nu tem uma relação muito forte com as extensões do corpo ao
espaço. (Vergara, 2015: 120)
Minha intenção ao trazer esses dados sobre o grupo é mostrar sua perspectiva de
organização, e relacioná-lo com as formas de fazer política e com os movimentos sociais
que vinham ganhando visibilidade desde as Jornadas de Junho. Assim como a própria
Marcha das Vadias, o Coletivo Coiote seria um dos grupos envolvidos nas novas
modalidades de protesto que estavam em jogo, muito diferentes das mobilizações de
partidos políticos, sindicatos e movimentos sociais que até então haviam marcado o
período de resistência à ditadura e de construção da Nova República.
Nos dias que seguiram, através da minha página do Facebook, que, por força do nó da
rede constituído por meu perfil, ou minha persona pública, intersecta frades
franciscanos especialistas em agroecologia, monges beneditinos dedicados à
restauração, sambistas, ativistas do movimento de cultura popular, filhos e mães de
santo, feministas, anarquistas, jovens dos coletivos suburbanos, militantes Lgbtt,
familiares de espectro político e comportamental variado etc (junto a outras tantas
formas contemporâneas de estar no mundo...), foi possível observar a série de
comentários críticos se aquecendo.
Os primeiros deles vieram, como talvez fosse esperado, de redes católicas mais
tradicionais, chocadas com uma atitude que consideravam extremamente agressiva e
violenta, porque se tratava de um ataque a imagens religiosas acontecido durante a
visita do papa ao Rio de Janeiro. Já segmentos católicos vinculados à igreja progressista
– que talvez pudessem ser definidos como uma “esquerda católica” - manifestaram seu
descontentamento com a performance, não tanto pela questão do desrespeito, mas pelo
que seria “uma inabilidade política”. Afinal, a JMC, cujas liturgias estavam nas mãos da
Renovação Carismática Católica, acontecia com o papa Francisco recém-empossado, e
para os católicos, havia uma disputa entre as correntes internas por uma maior
aproximação do papado. Francisco, um papa argentino, parecia recolocar na pauta,
ainda que em termos diferentes dos anos 1960 e 1970, a questão da opção da Igreja
Católica pelos pobres e pela pobreza, e havia a expectativa por sua guinada mais à
esquerda (Mariz & Carranza, 2015). Essa disputa poderia ser emblematizada pela foto
abaixo, que circulou por diversos blogues da internet, e que mostra “peregrinos da
JMC”, facilmente identificáveis pelas mochilas do evento, aos pés do Cristo Redentor,
um dos símbolos da cidade do Rio de Janeiro (e do catolicismo na cidade), segurando
uma faixa pela busca do pedreiro Amarildo.
Foto encontrável em diversos blogues da internet, sem que a autoria fosse determinada. Capturada
em 16/07/2017. Uso não comercial, acadêmico da imagem.
quando são despedaçadas pela violência doméstica, por estupros; quando tantos
LGBTs são agredidos e mortos todos os dias. A Igreja Católica também carrega
responsabilidade por todo este sangue derramado quando fomenta intolerância e
misoginia.
Karla T, Blogue Escritos Feministas, escrito em 28/07/2013, acessado em
16/06/2017, https://escritosfeministas.wordpress.com/2013/07/28/sobre-santas-
quebradas-e-violencia/
Outras feministas se colocaram contra a performance, por questões estratégicas, pois
consideraram que ela afastara mais pessoas do movimento do que aproximara.
Ontem, quando escrevi sobre a depredação de estátuas religiosas na Marcha das
Vadias do Rio, peguei leve, pisei em ovos. (...) Mas foram chegando outras imagens e
detalhes do que foi o ato. Primeiro que foi uma performance de duas pessoas de um
grupo que costuma fazer intervenções como essa, o Coletivo Coiote. Segundo que
não foi só fazer picadinho de santa que o tal coletivo fez. Teve crucifixo sendo
enfiado na vagina e no ânus. Essa imagem que eu ponho ao lado é de uma página
que apoia o ato. Mas pode apostar que esta imagem e outras mais gráficas estão
circulando entre reaças que neste exato momento denunciam a Marcha das Vadias
ao Ministério Público.
Porque de repente depredar símbolos religiosos pode configurar crime segundo o
Código Penal, neste artigo aqui: "Art. 208 - vilipendiar publicamente ato ou objeto
de culto religioso: Pena - detenção, de 1 (um) mês a 1 (um) ano, ou multa." Eu ser
contra ou a favor dessa lei não muda nada (sou contra). Não quero que o casal do
coletivo seja punido, e muito menos a organização da Marcha, que nem viu a
performance e não teve nada a ver com ela. Mas num momento em que todxs nós
deveríamos estar comemorando o sucesso que foi a Marcha, aqui estamos nós na
defensiva, brigando entre nós, com as organizadoras precisando consultar
advogados e sendo ameaçadas de estupro e morte.
Minha pergunta é: precisava mesmo disso tudo? O que a gente ganha com o ódio de
quem viu seus símbolos desrespeitados? O que essa performance acrescentou ao
feminismo? À Marcha das Vadias? (Aronvich, 2013)
Outras reações, no entanto, me soaram um tanto inesperadas.
Primeiro, assustou-me o grau de violência, um tom um tanto “fascista” dos comentários
contra a performance – uma agressividade que vinha se agravando nas redes sociais
desde as manifestações de junho de 2013, com episódios de protesto e alguns ataques
Black Blocs interpretados como vandalismo, e combatidos com uma desmedida
violência repressiva do Estado. Mas ver escritas despudoramente uma série de
expressões de ódio era assustador, embora hoje, depois das eleições presidenciais de
2014, e do impeachment de 2016, isso não surpreenda mais ninguém.
A agressividade do Facebook, crescente, correspondeu a ameaças de morte, pela
internet ou por telefone, a algumas das organizadoras e/ou porta-vozes da marcha, que
tiveram seus nomes e números vazados na imprensa, ou que, ao fazerem o cordão de
isolamento em torno do coletivo durante a performance, mantiveram seus rostos
descobertos e puderam ser reconhecidas (os performers, com maior domínio do uso de
estratégias de provocação no espaço público, atuaram com o rosto coberto com
camisetas, como os Black Blocs, mas também eles acabaram sendo identificados e
ameaçados). Mesmo que não tivessem sido responsáveis pela performance, dado o
caráter autônomo da marcha; essas mulheres foram bastante assediadas e tiveram que
sair de circulação por algum tempo, correndo risco de vida (no caso de uma militante
na faixa dos 30 anos, que entrevistei meses depois, ela estava inclusive revendo sua
participação no movimento diante do grau de exposição pelo qual passou e da
fragilidade das redes de proteção feministas que pode experimentar). Essa experiência
ocasião para uma série de exibições, organizadas ou estimuladas por essa grande e
milenar organização transnacional especializada em práticas simbólicas, que é a Igreja
Católica Apostólica Romana. Esta, em parceria com governos municipal, estadual e
federal, e com empresas públicas e privadas manipulou imagens religiosas em prédios e
outros espaços públicos, através de exposições de relíquias e arte sacra, procissões,
missas campais, vigílias etc. Como exemplos, teríamos a exposição de obras do
Vaticano, A Herança do Sagrado, no Museu Nacional de Belas Artes; de fotos e objetos de
romarias e devoções populares no Museu do Folclore, de objetos, textos e imagens
referentes a Odetinha, uma menina em processo de canonização, na Basílica e Colégio
Nossa Senhora da Imaculada Conceição, na Praia de Botafogo; de cruzes e peças de arte
sacra e religiosa no Centro Cultural do Banco do Brasil, no centro da cidade; de textos,
fotos e objetos referente ao Santo Sudário no Galpão das Artes do Jardim Botânico, além
de celebrações e shows religiosos ligados ao Festival da Juventude (católica), uma Feira
Vocacional na Quinta da Boa Vista e eventos de massa com a presença do papa, como a
missa de encerramento das Jornadas, para três milhões e meio de pessoas na Praia de
Copacabana.
As imagens religiosas apareceram em todas essas ocasiões explorando sua ambiguidade
como “obras de arte” (sacra, popular ou erudita), condições que as legitimavam como
objeto de atenção do poder público em um estado laico preocupado com arte e cultura;
e/ou na condição de exibição de objetos sagrados, condição que as aproximava de seus
usos em rituais religiosos.
Portanto, se havia lutas simbólicas passando pela mobilização de imagens religiosas em
espaços públicos, é preciso constatar que ela não era unilateral. Mas para além de sua
manipulação enquanto cultura e enquanto parte de cultos católicos, outras formas mais
sutis aconteceram. Vários movimentos pro-life de todo o mundo vieram à cidade para a
JMJ, equipados para fazer campanha de sensibilização pela proibição do aborto. Com
essa finalidade, uma das formas encontradas de proselitismo foi a distribuição nas ruas,
igrejas e meios de transportes, de imagens de fetos e embriões de cera e de plástico, em
tamanho natural ou em miniaturas, compondo terços, ou autônomas, junto a folhetos
de propaganda pela vida e orações.
Gostaria de solicitar a atenção de todos para a iniciativa abaixo. Trata-se de um
projeto – idealizado por alguns jovens voluntários da JMJ 2013 – de confeccionar um
pequeno “kit” pró-vida a ser colocado nas mochilas dos peregrinos que virão ao Rio
de Janeiro para a próxima Jornada Mundial da Juventude. (...)
O kit é muito simples, e consiste apenas em uma réplica (em plástico) de um ser
humano às 12 semanas de gestação e um folheto explicativo (em três idiomas) sobre
o início da vida humana e a importância de que ela seja defendida desde a
concepção. Cada kit (réplica + embalagem + folder + mão de obra) custa R$ 0,91 –
isto mesmo, noventa e um centavos. Queremos confeccionar um milhão de kits.
Como os idealizadores infelizmente não dispõem de recursos financeiros para tanto,
precisam contar com a generosidade dos católicos para transformar este projeto em
realidade.
http://www.deuslovult.org/
2013/02/15/promocao-da-cultura-da-vida-na-jmj-2013/acessado em 17/04/2016.
concepções em torno do religioso e de seu lugar na vida nacional – seja dos que têm
religião, seja dos que a rejeitam, ou dos que ocupam posições intermediárias entre os
dois polos – constituem uma arena de debates extremamente potente no Brasil atual. As
reações diversas à performance iconoclasta parecem revelar algumas dessas posições e
concepções diferenciadas.
A concepção de imagem religiosa apresentada pelo Coletivo Coiote e por alguns
segmentos que defenderam sua atuação parece marcada por um viés senão
“iluminista”, ao menos monofônico de concepção da imagem. Elas são tratadas como
objetos que simbolizam dominação, e por isso quebrá-las seria um ato ‘libertador”,
desestabilizador do senso comum. Mas essa forma de tratamento opera uma dupla
redução. Primeiro, se as imagens são tratadas como símbolos, elas precisam ser
entendidas como passíveis de múltiplas interpretações: elas simbolizam a opressão e a
violência que a ICAR exerceu sobre pessoas e corpos por milênios, mas elas também são
capazes de simbolizar resistência, esperança, libertação e fonte de poder para inúmeros
grupos sociais, que veem nos santos não o castigo e a repressão, mas o carinho, o
refúgio, a amizade e a intimidade. Assim, há um confronto entre interpretações
simbólicas antagônicas.
Uma segunda redução está no conceito de símbolo que está sendo posto em operação: a
ideia da imagem como “mero símbolo”, mantendo relações de exterioridade com os
universos que simbolizam, isto é, apenas como apenas estátuas de gesso, como objetos
passíveis de ser destruídos porque não são comparáveis a pessoas reais. Como os
estudos antropológicos das últimas décadas têm mostrado, as ontologias são múltiplas,
operam com lógicas diversas, e a relação coisa-pessoa muitas vezes não é passível de
uma demarcação nítida. Do ponto de vista de certas ontologias religiosas, imagens
religiosas não apenas simbolizam, ou simbolizam reapresentando a coisa simbolizada,
tornando-a presente, e não apenas evocando-a (Engelke,) . Assim, elas comem, falam,
pulsam, são coisas vivas. Quebrá-las é, num certo sentido, matá-las ou ao menos atentar
contra sua vitalidade e potência.
A escolha por profanar justamente imagens de Nossa Senhora denota, senão o
desconhecimento da situação religiosa do país, ao menos a aposta arriscada em jogo em
um ato terrorista. Trata-se da santa mais popular do Brasil, em muitas regiões, mais
acionada até que o próprio filho (Menezes, 1996), e aquela que foi chutada em cadeia
televisiva por um bispo da Igreja Universal em 1995, no episódio conhecido como
“chute na santa”, que causou uma polêmica nacional (Almeida, 2007). Imitando,
propositalmente ou não, o ato do bispo, os performers do Coletivo Coiote tocaram numa
tecla sensível, pois um problema vivido cotidianamente por centenas de pessoas em
seus bairros, trabalhos, colégios é o ataque, físico ou moral, pelo porte de objetos
religiosos, majoritariamente aquelas das religiões afro-brasileiras e, em escala muito
menor, dos católicos; um ataque que envolve recorrentemente a quebra das imagens de
santo.
Grande energia social e política tem sido despendida contra esses ataques, procurando
tipificá-los como intolerância religiosa, o que, pela legislação brasileira, é considerado um
crime6 (Miranda, 2012; 2014). Há todo um esforço feito, pelos movimentos negro e dos
povos de terreiro, para evidenciar conexões entre os ataques às religiões afro-
brasileiras e o racismo (embora, obviamente, não apenas negros sejam adeptos dessa
religião), associando a garantia à liberdade religiosa à luta pela igualdade racial. Nesse
sentindo, é interessante que a acusação de intolerância tenha sido acionada para
Uma saída invocada por militantes com os quais debati o episódio, é de que seria
preciso haver respeito, uma espécie de plataforma pré-estabelecida de acordos mútuos,
com o estabelecimento de uma certa de moralidade no trato de temas religiosos. Mas
como ter essa moralidade baseando a luta, se a aposta da Marcha vai no sentido de usar
a amoralidade como arma política de alargamento de fronteiras e de denúncia da moral
convencional? Fica a questão se é possível fazer política de provocação em tempos de
moralização (Kapferer, 2015).
Michael Taussig dá uma pista importante ao falar de transgressão. Ele lembra que (...)
the barrier crossed by transgression does not so much exist in its own right as erupt into being
on account of its being transgressed” (Taussig, 1998, p. 350). Se a transgressão é uma
irrupção, a produção de uma barreira que passa a existir ao ser transgredida, ou seja,
que não é pré-existente, a passagem do respeito ao desrespeito não pode ser definida de
forma absoluta ou prévia, mas sim emerge quando já aconteceu. Respeito e desrespeito
são termos definíveis relacionalmente, em episódios concretos, muitas vezes em
disputas e acusações cruzadas.
De igual forma, se tomamos a definição durkheimiana de religião como uma oposição
entre sagrado e profano, isto é, como uma forma relacional classificatória e
hierarquizante, mas vazia de conteúdo, podemos entender que atos que objetivam a
profanação são capazes de produzir o efeito inverso do desejado, isto é, mais
sacralização. Ao atacar a imagem religiosa, gestos profanadores colocam-se em
oposição a ela, e ao invés de degradá-la, mesmo fazendo-a em pedaços e revelando sua
fragilidade, a sacralizam, pois reproduzem a oposição sagrado / profano e fazem com
que a barreira da transgressão irrompa. Num aparente paradoxo, cercá-la de
profanações pode fazer com que sua sacralidade seja ressaltada.
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protesto-9027497, acessado em 16/06/2017.
NOTAS
1. Versões diferentes deste trabalho foram apresentadas no II Encontro Mexicano e Brasileiro de
Antropologia (Brasília, UnB, novembro de 2013), na II Jornada de Antropologia da Devoção (Rio
de Janeiro, MN/UFRJ, dezembro de 2013), na Mesa-Redonda Movimentos do Religioso na
Contemporaneidade (Rio de Janeiro, MN/UFRJ, abril de 2014), no Seminário do Nau (São Paulo, USP,
agosto de 2014); em uma palestra no PPGA da UFPE, Recife, em março de 2015: em um workshop
sobre Antropologia, Arte e Imagem na New York University, Nova York, em fevereiro de 2016 e
no Seminário Power, Politics, and Religion in Brazil: Ruptures, Continuities, and Crisis, em
Edimburgo, na University of Edimburgh em abril de 2017. Nesses eventos, pude me beneficiar dos
debates com o público e com diversos colegas, em especial com Christina Vital da Cunha, que me
estimulou a concluir o trabalho.
2. “A rapidez com que a marcha se disseminou pelo país e mobilizou a juventude é indissociável
das possibilidades que as novas tecnologias de comunicação oferecem ao ativismo político. Já em
2012, no segundo ano do advento da Marcha das Vadias, 23 cidades, de todas as regiões do Brasil
organizaram protestos usando ferramentas como Facebook, Twitter, YouTube, blogues e emails”
(Gomes & Sorj, 2014: 437).
3. A inviabilização do uso do terreno em Guaratiba foi outro ponto de aquecimento do debate.
Com alto investimento de recursos da Igreja e da Prefeitura do Rio, ele não pode ser utilizado. A
notícia de que um dos donos do terreno era Jacob Barata, um dos maiores empresários de ônibus
do Rio, intensificou as críticas à participação pública na JMJ. Poucos dias antes, em 13 de julho de
2013, o casamento da neta de Barata, chamada nos protestos de “Dona Baratinha”, personagem
infantil, foi alvo de manifestações contra o setor de transportes no Rio, que seria controlado por
uma máfia associada ao governo do prefeito Eduardo Paes, o qual mediara o caro aluguel do
terreno. Sobre as manifestações no casamento, ver https://oglobo.globo.com/rio/casamento-de-
neta-de-jacob-barata-marcado-por-protesto-9027497, acessado em 16/06/2017.
4. Para analisar a performance e suas repercussões, procurei recompor o evento através de
imagens do YouTube, das redes sociais e de notas da mídia, além de ter conversado com colegas
que estiveram lá e de ter entrevistado duas mulheres ligadas à sua organização. Para a montagem
deste trabalho, houve ainda uma reflexão metodológica sobre a internet como campo de
pesquisas antropológicas (cf. Martin, 2003)
5. A chegada a essa temática é devedora dos trabalhos de Mafra (2011) e Wright (1998). Duas
excelentes demonstrações desses imbricamentos estão nas teses de Sant’Anna (2017) e Bandeira
(2017), sobre, respectivamente, a Marcha para Jesus e a música gospel, que foram defendidas na
UFRJ no início do primeiro semestre.
6. A lei Caó (7.716/89), aprovada em janeiro de 1989, definia como crime o ato de praticar
preconceitos de raça ou de cor, sendo ampliada em maio de 1997 para incluir “discriminação ou
preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional” (redação dada pela lei
9.459/97).
RESUMOS
O artigo analisa uma performance envolvendo quebra de imagens religiosas, ocorrida na Marcha
das Vadias de 2013, no Rio de Janeiro, bem como as repercussões que teve. Através da noção de
evento crítico, de Bruce Kapferer, pretende discutir as implicações dos usos de imagens religiosas
em lutas políticas que envolvam identidades.
The article analyzes a performance involving the breakdown of religious images, which took
place at the Slut Walk of 2013, in Rio de Janeiro, as well as the repercussions it had. Through
Bruce Kapferer's notion of a critical event, the intention is to discuss the implications of the use
of religious images in political struggles involving identities.
ÍNDICE
Keywords: rituals and performance, materialities, religion and politics, religion and identity
politics, religious objects
Palavras-chave: rituais e performance, materialidades, religião e política, religião e política de
identidade, objetos religiosos
AUTOR
RENATA DE CASTRO MENEZES
Professora associada do Departamento de Antropologia do Museu Nacional, Universidade Federal
do Rio de Janeiro.
Doutora em Antropologia Social, 2004, UFRJ; com pós-doutorado na NYU, 2016.
Pesquisadora do CNPq
Email: renata.menezes@pq.cnpq.br
Resenhas
REFERÊNCIA
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Relume Dumará.
AUTOR
LEONARDO FRANCISCO DE AZEVEDO
Doutorando em Ciências Sociais - PPGCSO/UFJF
leonardoazevedof@gmail.com
REFERÊNCIA
PEREIRA, Alexandre Barbosa. “A maior zoeira” na escola – Experiências juvenis na
periferia de São Paulo. São Paulo: Editora UNIFESP, 2016, 235pp.
conflituosa e orientada pela definição de escola como uma das agências responsáveis
pela definição de juventude, como detentora de estruturas globais configuradas por
dispositivo disciplinar, no sentido foucaultiano, e de uma realidade específica.
Destacam-se as tecnologias que alteram as relações sociais na contemporaneidade e a
zoeira como categoria central na compreensão das práticas lúdicas e jocosas que
podem, não raramente, utilizar agentes tecnológicos. É desestabilizadora da rotina e
regras escolares, é agonística. Carrega também doses de machismo, racismo e outros
preconceitos, além de flertar com a criminalidade. Pela experiência juvenil, o autor
apreende a forma como se constitui a experiência escolar na desestabilização da
disciplina, tomada na dissonância em relação aos discursos e práticas de controle da
escola. As zoeiras questionam a eficácia disciplinar e, ao mesmo tempo, reafirmam
preconceitos. Ao final da introdução, inspirado pelas reflexões dos estudos culturais,
destaca a forma como a periferia se define pela condição subalterna do jovem periférico
sem desembocar numa condição de passividade.
2 As experiências juvenis periféricas, multifacetadas e contextuais, são discutidas a partir
dos múltiplos usos da categoria periferia pelos moradores e por pesquisadores do tema.
O capítulo um é organizado em torno de binarismos que emergem do campo, pensados
como conceitos relacionais: funk/rap; centro/periferia; masculinidade/feminilidade, de
modo a romper com visões reducionistas, ao empreender análise relacional das
distintas dimensões constitutivas da condição juvenil, para além das dicotomias já
exaustivamente discutidas pelas ciências sociais. Ao privilegiar o modo como os jovens
atribuem sentidos múltiplos e paradoxais às dicotomias, o autor escapa de definições
rígidas. Problematiza a dicotomia centro/periferia e sua disputa de sentidos, a partir
dos bairros Cidade Ademar e Jardim Elisa Maria, descritos no livro também pelos
indicadores de vulnerabilidade social, como parte de distritos específicos. A estratégia
argumentativa lança mão da ideia de quebrada, tomada como ilustrativa da
multiplicidade de sentidos que, tal como periferia, pode adquirir. Pensar em quebrada é
pensar, ao mesmo tempo, tanto em relações comunitárias como em criminalidade.
Ruas, escolas, lan houses e comunidades do Orkut deram visibilidade às tecnologias e ao
funk (nos carros, nos celulares na sala de aula) como relevantes para a experiência
juvenil. Nos bailes funks de rua que acompanhou, as dinâmicas de sociabilidade juvenil
revelaram performatividades de gênero, nos convocando a pensar na subalternidade e
centralidade dos corpos atravessados pelo gênero e pela raça, relevantes para
compreender a atual geração de jovens. Funk, motos, carros, celulares e outras
tecnologias são elementos importantes das relações, denominadas pelo autor de lúdico-
agonísticas nas dinâmicas juvenis, interferindo nas dinâmicas escolares e vice-versa.
Repertórios de violência e criminalidade são acionados nas práticas juvenis
estabelecidas na escola e apresentam conteúdos ambivalentes. As discussões sobre as
questões de gênero são reconhecidas como relevantes pelo autor, mas o livro não tem
fôlego para maiores desdobramentos teóricos em torno das masculinidades que se
destacam no campo e de seu aspecto relacional com feminilidades, entre outras
questões de gênero que aparecem do começo ao fim do texto. Utiliza o recurso
comparativo na discussão e, como exemplo, destaco a narrativa em torno do funk e hip-
hop, movimentos que estabelecem um ponto de vista sobre a periferia a partir dela
mesma. O livro debate sobre a possibilidade de um novo tipo de centralidade para a
performatividade feminina oferecida pelo funk, a partir de relação mais explícita com a
sexualidade. Conta que para o hip-hop a centralidade se dá politicamente, pela inserção
de pautas políticas e na crítica social. No funk, a centralidade se dá no consumo de bens,
como no estilo funk ostentação (do consumo), e/ou exaltando a criminalidade, inclusive
como via de acesso ao consumo. Periferia e centro são categorias relacionais, abordadas
deste modo pois, se tomadas isoladamente, esvaziam-se de sentido, argumenta o autor
inspirado pelas discussões de Stuart Hall.
3 A escola é reinventada pelos jovens no jogo cotidiano das sociabilidades juvenis e, ao
mesmo tempo, contribui para a noção de juventude. As experiências escolares, tratadas
no capítulo dois, são potencializadas no cuidadoso diálogo com autores da sociologia e
antropologia da educação. Escola é tomada de forma ampla, como invenção cultural que
se caracteriza pela organização e utilização padronizada do tempo; como aparelho
tecnológico compondo dispositivo educacional. O autor esteve nas escolas durante
período suficiente para identificar muitas dificuldades do cotidiano, além dos desafios
próprios da posição liminar do antropólogo. Em campo, despertou desconfiança nos
alunos e professores e teve um percurso etnográfico autoqualificado como extenuante e
angustiante. Viveu a rigidez da escola no cumprimento das regras, o que reforçou sua
função de disciplinamento, apesar do processo de desinstitucionalização em curso
anunciado por vários autores. Na sala de aula pôde observar as dinâmicas das
interações juvenis de forma mais intensa, mas também participou de rodas, jogos e
conversas no pátio, considerado pelos estudantes como o espaço mais importante da
escola. Observou a circulação nos diferentes ambientes e o modo como muros e trancas
tentavam impedir a comunicação entre áreas internas da escola e o mundo externo.
Aproximou-se do descontentamento em relação à condição docente e do esforço dos
professores (incluindo ele próprio) em recuperar algum lugar de autoridade, enquanto
via como estudantes, num movimento resistente, assumiam postura desafiadora da
autoridade docente, além de protagonizarem gozações. O interesse do pesquisador pelo
modo como jovens se apropriavam da escola era justamente o que o corpo docente
achava que devia ser eliminado. Observou tensão constante na relação entre
professores e estudantes. Muitas vezes, professores referiam-se aos estudantes como
marginais e/ou vítimas de desestruturações familiares, perspectivas que os
subalternizam e tidas como determinante para abandono da escola. Temporalidade
apareceu como importante marcador da experiência escolar, ao apresentar-se de forma
múltipla. Estudantes experimentam o tempo de maneira cíclica, pelos elementos que
organizam o cotidiano escolar, e de forma linear na seriação dos anos letivos.
Temporalidades institucionais eram contrapostas pelas temporalidades das
brincadeiras juvenis, baseadas na vivência entre pares, permitindo libertação da rotina
e do tempo da escola. Uma potência do trabalho é atribuir relevância para situações que
colocaram em xeque o caráter disciplinador e de autoridade (do professor). Zoar é
zombar da ordem escolar, mas geralmente é bem mais que isso, quando revelam as
insistentes tentativas de retomar o controle sobre os alunos que, quase sempre,
fracassam. O livro mostra reinvenção do espaço e da instituição escolar a partir de
condições impostas pelos estudantes, por suas temporalidades e ludicidades, ainda que
perpetuando desigualdades sociais nas formas de se expressar, revelando um
movimento reverso na reprodução social efetivada pela escola. Mostra descompasso
entre repertórios juvenis e escolar e rechaço dos símbolos juvenis pelos profissionais da
educação. Debate como a insistência institucional disciplinadora choca-se com os
modos de expressão juvenil, nas disjunções e conjunções construídas socialmente e que
articulam a experiência juvenil a outras experiências nas relações do cotidiano escolar.
Na condição de etnógrafo-docente, o autor pode discutir autoridade, categoria central
no trabalho, valendo-se da compreensão sobre o atravessamento geracional sentido na
própria pele e que deu acesso a uma outra dimensão distante de sua experiência como
pesquisador a quem foi permitido, como observador, aproximar-se dos estudantes. Na
condição de pesquisador-docente, apreende o caráter relacional das experiências de
estudante e experiência de professor, em confronto. Diante de sua turma se deu conta
do quanto seus alunos não estavam preocupados com o que ele tinha a dizer e do
quanto tentavam burlar as regras, tornando mais nítida a disputa entre ludicidade e a
seriedade encarnada na temporalidade oficial da escola e nas tentativas de aplicação
das normas encarnadas pelos professores.
4 A sociabilidade performática estudantil, que provoca desestabilização das normas,
disjunção e conjunção, é central no capítulo três. Estão presentes nas relações de
amizade ou agressividade, incluindo nas zoeiras com o pesquisador, apelidado de “Bin
Laden”, e marcaram a própria etnografia pela experiência e peculiaridade das zoeiras
entre homens, dos meninos com o pesquisador. Na leitura, lida-se com uma certa
expectativa (frustrada) por um debate ampliado sobre masculinidades nessa relação, o
que não atrapalha o curso potente da obra em mostrar os caminhos etnográficos
encontrados nas brincadeiras que traduziram uma dimensão importante da condição
escolar e juvenil. O ato de zoar é ambíguo e mobiliza, na articulação de elementos
jocosos e agonísticos, dinâmicas relacionais integrativas e disruptivas. O riso que a
zoeira provoca pode ser amistoso e cruel, desestabiliza a dinâmica escolar que se
pretende regrada e controlada e é visto como desrespeito. A zoeira é elemento
relevante na escola, encarna o lúdico nas sociabilidades juvenis, apresentando aspectos
de socialidade e conflito. O autor aponta para profundas alterações nos modos de ser
jovem na atualidade a partir das relações estabelecidas com as novas tecnologias de
comunicação e com a presença delas nas sociabilidades da escola, particularmente
celulares e aparelhos sonoros que ajudam no rompimento com regras escolares ao
mesmo tempo que articulam espaço de convivência juvenil e lazer, permitindo fuga
subjetiva de lá, apesar das trancas. Aproximar-se das meninas no campo foi
condicionado às limitações de gênero, deixando o pesquisador mais próximo dos
rapazes para realizar a etnografia que, nessas condições, revelou predomínio masculino
nas dinâmicas das zoeiras e uma participação feminina menos performática e
agonística, demarcando fronteiras de gênero. As performances centrais são masculinas,
mesmo quando reforçavam uma condição de subalternidade, como era o caso das
brincadeiras homofóbicas. Discute acerca da jocosidade heteronormativa das
brincadeiras que subalternizavam sexualidades não heterossexuais, inclusive em
expressões utilizadas pelo professor ao se permitir zoar com estudante, zombando de
sua (possível) homossexualidade. Zoeiras mais agressivas ou até violentas
materializavam um modo de masculinidade hegemônica que se define relacionalmente.
No jogo de forças, a escola parece permissiva com as performances lúdicas
protagonizadas pelos meninos. O livro assume uma genereficação da zoeira, dando
pistas interessantes, apesar de usar algumas vezes, a palavra sexo como sinônimo de
gênero. Indica necessidade de trabalhos etnográficos sobre as especificidades da
participação das meninas nas zoeiras inclusive para entender melhor expressões de
feminilidade em corpos lidos como pertencentes a homens e vice-versa. Narra situações
onde meninas empreenderam atitudes que desestabilizaram a ordem e autoridade de
forma, inclusive, beligerante. Tipo de ocorrência que, justamente por escapar dos
referenciais de feminilidade esperados, ganhavam visibilidade institucional e eram
enquadradas por julgamentos morais. A centralidade do corpo na escola é discutida a
partir das sociabilidades performáticas juvenis das zoeiras que continham, elas
AUTOR
CRISTIANE GONÇALVES DA SILVA
email: cristiane.goncalves.silva@gmail.com
Pós-doutoranda do Departamento de Antropologia da Universidade de São Paulo e do Programa
de Pós-Doutorado da Faculdade de Ciências Sociais da Universidade de Buenos Aires
Docente da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP)/ Instituto de Saúde e Sociedade -
Campus Baixada Santista
Reinvenções e controvérsias: a
necessidade da tradição e as
disputas em torno da
regulamentação da ayahuasca
Henrique Fernandes Antunes
REFERÊNCIA
LABATE, Beatriz Caiuby; CAVNAR, Clancy; GEARIN, Alex K.. The world ayahuasca diaspora:
reinventions and controversies. New York: Routledge, 2016, 270 pp.
2 Neste volume, Dawson (2016) fornece uma análise importante para abordar o primeiro
problema, investigando o que ele denominou de processos de retradicionalização
associados à diáspora mundial da ayahuasca. Segundo o autor, trata-se de uma
reconfiguração que envolve a recapitulação de crenças e práticas tradicionais de uma
maneira que não só leva a reinvenções através de um processo de hibridização, mas
também pode criar novas tradições, com a introdução de novos rituais, crenças e
valores anteriormente ausentes do imaginário amazônico. Frequentemente, esses
processos não ocorrem sem tensões, e o surgimento de controvérsias coloca novos
problemas e apresenta novos desafios. Por exemplo, Labate e Assis ressaltam que a
difusão do Santo Daime pelo ICEFLU em todo o Brasil e em muitas partes do mundo
conduziu a instituição a uma dinâmica social inteiramente diferente que a transformou
em uma religião global, capaz de se adaptar a concepções mais plurais, subjetivas e
individuais. Ao mesmo tempo, a capacidade de adaptação da instituição não é ilimitada
e algumas tensões tornaram-se visíveis à medida que o grupo se expandiu. Uma das
mais recentes controvérsias refere-se às disputas sobre a possibilidade de traduzir os
hinos Santo Daime atestados por Labate, Assis e Cavnar (2016). Em um lado da disputa,
os “tradicionalistas” insistem em manter a letra dos hinos em português, mantendo-se
o mais próximo possível da forma como são tocados e cantados no Brasil. Por outro
lado, “tradutores” argumentam que a tradução de hinos é uma forma positiva de
adaptação cultural (Labate, Assis, Cavnar, 2016: 112). Uma vez que não existe uma
política ou orientação institucional clara para esse assunto, essas visões tendem a
coexistir e colidir, resultando no que os autores chamam de “guerras de tradução”
(Labate, Assis, Cavnar, 2016: 115). Neste contexto, as disputas sobre noções de
identidade e legitimidade são postas em movimento para construir noções particulares
de tradição e ortodoxia.
3 Algumas controvérsias mais específicas também podem surgir dependendo do contexto
nacional em que o grupo está inserido. Como Eli Sheiner (2016: 89) demonstrou,
algumas preocupações foram levantadas sobre a adaptabilidade de algumas das práticas
do Santo Daime à cultura canadense, como a espiritualização de comportamentos
potencialmente patológicos. Outro exemplo pode ser visto na abordagem das relações
de gênero. O Céu do Montreal, uma das poucas igrejas de Santo Daime lideradas por
uma mulher, abordou frequentemente a questão da desigualdade de gênero, buscando o
mesmo tipo de responsabilidades e deveres entre homens e mulheres, como o direito de
liderar rituais e servir o chá. Como resultado, a igreja teria enfrentado resistências
institucionais no Brasil (Sheiner, 2016: 91). No entanto, este não é um fenômeno
localizado e individual. Labate, Assis e Cavnar ressaltam que, à medida em que há uma
expansão para um novo contexto geográfico, social e cultural, alguns aspectos do grupo
considerados problemáticos ou incongruentes com o contexto local, neste caso, práticas
entendidas como sexistas e reacionárias, podem ser suprimidas ou ganhar uma nova
roupagem, em um processo de negociação entre autenticidade e adaptabilidade local
(Labate et al, 2016: 107).
4 Deixando as religiões ayahuasqueiras de lado e focando nos impactos locais do boom da
ayahuasca na Amazônia peruana, Joshua Homan (2016) tenta entender como a diáspora
ayahuasca criou novas controvérsias na Amazônia urbana e nas comunidades rurais.
Homan argumenta que a ayahuasca é crucial para uma indústria multimilionária nos
centros urbanos da Amazônia, em parte devido ao aumento do turismo xamânico na
região nas décadas anteriores. Esta nova indústria estaria afetando a vida social e
busca da iluminação e desenvolvimento pessoal. Segundo Walsh, Aziz foi preso após
uma cerimônia realizada em um hotel. Mais tarde, ele foi processado e condenado por
um júri por produzir uma droga Classe A - dimetiltriptamina (DMT) - e fornecê-la a
outros, o que resultou em uma pena de prisão de quinze meses. A defesa de Aziz
baseou-se em dois argumentos principais: em primeiro lugar, que a queixa contra ele
consistia num abuso processual. Na perspectiva da defesa, a exigência de segurança
jurídica consagrada no artigo 7º da Convenção Europeia de Direitos Humanos (CEDH)
não foi cumprida, uma vez que o estatuto jurídico da ayahuasca não era claro. Segundo,
mesmo se a ayahuasca fosse contemplada pela legislação britânica sobre drogas, Aziz
deveria ter recebido uma isenção da proibição por motivos religiosos, de acordo com o
artigo 9 da CEDH (Walsh, 2016: 243-244).
9 Um dos aspectos interessantes que Walsh destacou sobre o caso diz respeito ao choque
de narrativas. De um lado, a defesa retratou a ayahuasca como uma poção de cura
xamânica com propriedades espirituais e Aziz como praticante de uma tradição cultural
e religiosa baseada no xamanismo amazônico. Em contrapartida, o tribunal tratou Aziz
como um químico que produzía uma droga ilícita. Neste confronto, a narrativa de
defesa perdeu e a ayahuasca foi considerada pelo tribunal inglês como uma substância
proibida, rejeitando as alegações de Aziz baseadas na CEDH. Este é apenas um dos
muitos casos legais em todo o mundo envolvendo o uso da ayahuasca que gira em torno
de questões como o uso e tráfico de drogas, saúde pública, segurança pública, liberdade
religiosa, políticas de reconhecimento. Esse tipo de controvérsia legal está se tornando
cada vez mais frequente em um contexto em que a diáspora da ayahuasca ganha força.
Nesse sentido, não só os governos nacionais desempenham um papel fundamental,
como também os conselhos internacionais, ONGs e atores sociais como juristas,
pesquisadores, acadêmicos, os quais se inserem progressivamente neste debate,
disputando as maneiras pelas quais as narrativas sobre ayahuasca são construídas.
10 Outro exemplo importante apresentado no livro refere-se o papel da Junta
Internacional de Fiscalização de Entorpecentes (JIFE) da ONU e sua posição em relação à
ayahuasca, mobilizada ao mesmo tempo por governos e por aqueles que defendem o
seu uso ritual. Inicialmente, o conselho concluiu em 2001 que a ayahuasca não estava
sob controle internacional, não estando sujeita a nenhum dos artigos da Convenção das
Nações Unidas sobre Substâncias Psicotrópicas de 1971. No entanto, uma década mais
tarde, a JIFE propôs que os governos nacionais deveriam considerar o controle de certas
plantas psicoativas, transferindo para os estados o poder de decidir se a ayahuasca
deveria ser proibida ou regulamentada. Outro exemplo interessante é o papel cada vez
mais ativo desempenhado pelo International Center for Ethnobotanical Education,
Research and Service (ICEERS). O ICEERS apresenta-se como uma organização sem fins
lucrativos, comprometida com a luta contra a criminalização da ayahuasca e com a
promoção da regulamentação da bebida. Além de prestar assistência jurídica aos
usuários e grupos de ayahuasca, o ICEERS ajudou a desenvolver os Critérios de Apoio ao
Fundo de Defesa da Ayahuasca, compostos de treze princípios baseados em incidentes
ocorridos no passado recente (Loenen, Franquero, Avilés, 2016).
11 A título de conclusão, gostaria de destacar a contribuição do volume para compreender
essas questões e seus desdobramentos, visto que o avanço da diáspora mundial da
ayahuasca inevitavelmente levará a novas reinvenções e controvérsias. Estes processos
estão geralmente associados a disputas em relação aos usos e apropriações de certas
categorias e práticas, e frequentemente colidem com a estrutura legal de muitos
estados nacionais. Deste modo, novas concepções de tradição serão criadas e novas
formas de estabelecer legitimidade entre grupos e entre governos nacionais serão
mobilizadas, abalando a paisagem já instável dessa diáspora. Este esforço coletivo nos
propõe, portanto, uma abordagem audaciosa para enfrentar esses desenvolvimentos,
evitando respostas simples para questões complexas e tentando colocar em perspectiva
as questões em jogo. Assim, este volume não é apenas uma contribuição importante
para a compreensão dos novos desafios que nos são apresentados, mas também abre
caminho para uma melhor compreensão dos novos desafios.
BIBLIOGRAFIA
DAWSON, Andrew. 2016. “If tradition did not exist, it would have to be invented:
retraditionalization and the world ayahuasca diaspora”. In: LABATE, Beatriz Caiuby; CAVNAR,
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LABATE, Beatriz Caiuby; ASSIS, Glauber Loures de; CAVNAR, Clancy. 2016. “A religious battle:
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LOENEN, Benjamin K. de; FRANQUERO, Òscar Parés; AVILÉS, Constanza Sánchez. 2016. “A climate
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PELUSO, Daniela M.. 2016. “Global ayahuasca: an entrepreneurial ecosystem”. In: LABATE, Beatriz
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SHEINER, Eli Oda. 2016. “Culling the spirits: an exploration of Santo Daime’s adaptation in
Canada”. In: LABATE, Beatriz Caiuby; CAVNAR, Clancy; GEARIN, Alex K.. The world ayahuasca
diaspora: reinventions and controversies. New York: Routledge. pp. 79-98.
WALSH, Charlotte. 2016. “Ayahuasca in the English courts: legal entanglements with the jungle
vine”. In: LABATE, Beatriz Caiuby et al., The world ayahuasca diaspora: reinventions and controversies.
New York: Routledge. pp. 243-262.
AUTOR
HENRIQUE FERNANDES ANTUNES
Doutorando PPGAS/USP
Tradução
Xavier Costa
Tradução : Breno Alencar
Pesquisa empírica
5 Os participantes (Costa 1999: 104-122, 215-223) mostram sua grande habilidade em
produzir uma síntese entre o festivo e o moderno por meio de seu (personificado)
exercício prático das atividades centrais da sociabilidade festiva: humor, jogo,
banquete, trabalho social, desaprovações satíricas, desfile, etc. Além disso, a
organização das Fallas também inclui um sentido moderno da democracia e da
administração em seu contexto social festivo. Estes elementos modernos são
seletivamente incluídos a partir da perspectiva dos princípios de democracia e de
igualdade pessoal que são característicos da sociabilidade (Costa 1999: 176-185).
6 A esfera pública do Fallas apresenta igualmente uma interação entre a tradição festiva e
a vida moderna e contemporânea. Esta esfera pública popular se fundamenta nos
encontros e em reuniões sociais regulares. Nestas situações os atores se encontram,
falam e põem a sociabilidade festiva em prática (Costa 1999: 245). Por exemplo, o jogo
de cartas ou o dominó envolvem igualmente uma mistura sociável de temas que trazem
observações irônicas e satíricas amparadas em eventos locais ou gerais da vida
contemporânea. As conversas incluem brincar, provocar, gabar-se e sutis mudanças de
linguagem para fazer observações sobre política, o estado dos serviços de saúde, etc. A
substância lúdica da sociabilidade é o campo desta interação com o presente.
Geralmente a atitude das Fallas diante da televisão (Costa 1999: 247) poderia ser
qualificada como ambígua em relação a sua “aura”, mas seletiva com relação à
sociabilidade. Por um lado, os membros têm um certo respeito pelos novos meios de
comunicação social em razão de sua autoridade e sua “aura”. Por outro lado, eles fazem
núcleo central da minha abordagem sobre as tradições festivas é constituído pela teoria
da festa de Heidegger (1982), mas seus conceitos são traduzidos por outros mais
“operatórios” na pesquisa com a ajuda da teoria da sociabilidade de Simmel (1971). No
entanto, também recorri a outros autores para caracterizar as atividades específicas a
que chamo “sociabilidade festiva” e a sua reflexividade (Costa, 1998, 1999: 37-62). Essa
perspectiva é iluminada por uma ideia central e duas derivadas:
11 1. O caráter lúdico e artístico de sociabilidade pode ser interpretado como uma
“sociabilidade festiva” quando ele ocorre em uma comunidade que reflexivamente
“cuida da festa” como uma tradição;
12 2. A sociabilidade festiva é mostrada como tendo a sua própria esfera pública na qual a
sua reflexividade pode ser expressa através da arte e do jogo;
13 3. Discute-se que as tradições festivas, como “tradições substanciais”, não se opõem
necessariamente às formas modernas e contemporâneas de experiência e de
reflexividade, mas que elas possam ser incorporadas como parte do diálogo que a
tradição estabelece com experiência atual (Costa 1999: 40).
14 Na hermenêutica fenomenológica, a tradição está sempre entrelaçada com o presente,
integrando muitas de suas características em sua própria estrutura, algumas das quais
são tipicamente modernas. Além disso, as propriedades e formas de transmissão da
tradição são mais flexíveis e mais maleáveis do que são retratadas frequentemente. Este
entrecruzamento entre o passado e o presente corresponde a uma “tradução”
(Gadamer 1991: 116). Quero ressaltar aqui que esta “tradução” é produzida no próprio
seio de atividades sociáveis como nos termos de uma tradição como experiência atual.
A memória é conectada aos ritmos deste movimento social festivo que se tornam mais
intensos durante os dias da celebração. Produz o que Heidegger (1995: 243; 1982:71, 77)
chama de “Evento de Apropriação” (Ereignis). O evento festivo reúne os laços que se
ligam “quatro vezes mais” (céu, terra, o sagrado e a comunidade), constituindo um
sentido particular de “proximidade” com relação ao Mundo, que, entretanto, mantém
um misterioso lado vendado. Eu interpreto o reino lúdico e o artístico de sociabilidade
(Simmel 1971), como parte dessa “influência delicada”, operada através da arte e do
jogo, que o “quádruplo” exercita na comunidade festiva através dos laços que a ligam.
Esta interpretação contribui para a pesquisa tornando mais operacional os conceitos
heideggerianos, porque fundam-se na sociabilidade da interação gerada pela vida
concreta dos indivíduos. A sociabilidade transforma a “sociabilidade festiva” na
comunidade festiva. É expressa, e reproduzida, por meio de atividades centrais, como a
“sociabilização de conversas”, uma variedade de formas de brincar, humor, banquetes,
trabalho festivo e alegre desfile. O evento festivo é traduzido em termos sociológicos
como uma intensificação da sociabilidade festiva.
15 A reflexibilidade da sociabilidade festiva é caracterizada pela criação de uma distância
existencial (e de proximidade, ao mesmo tempo), um “re-mover” na minha
terminologia, paralela ao da arte e do jogo, em relação à vida e ao Mundo (Costa 1999:
42-45, 50). A reflexividade destas atividades centrais da sociabilidade festiva incluem o
corpo e as emoções que fazem parte deste existencial “re-movido” o que ajuda a manter
um sentimento de proximidade em relação ao Mundo. Por exemplo, as desaprovações
satíricas nas Fallas – que são paradigmáticas em conversas casuais, paradas e no
monumento efêmero – são sociáveis; são expressados com o corpo e geram uma
“realidade festiva” peculiar que ajuda os participantes a se re-mover em relação ao
Mundo.
20 Habermas (1992) reconhece que seu estudo se preocupa somente com a esfera pública
liberal. Os outros espaços públicos, incluindo o popular, parecem ter desaparecido.
Nenhum lugar é deixado para o satírico e a esfera popular pública (Habermas 1992:
xviii). Os protagonistas daquela “esfera pública emergente da sociedade civil” serão os
burgueses (Habermas 1992: 23). Sua opinião empobrecida da esfera pública se associa a
uma compreensão restrita da reflexividade, que é limitada à língua - na imanente
estrutura dupla da fala (Costa 1994; 1999: 73-77). Além disso, o modo de
“questionamento” desta reflexividade, na argumentação racional, restringe o potencial
dos participantes para “questionar” maneiras diferentes. Por exemplo, a concentração
de Habermas na argumentação divide as atitudes das pessoas em dois extremos, com
uma grande lacuna no meio: ou focalizam em uma tematização racional para resolver
um problema (argumentação crítica como a maneira de questionar) ou tomam como
rotineiras a existência de regras, conhecimentos etc., que são a vida depositada no
mundo. Não há nenhum lugar para uma questão mais ampla, uma “tematização
sociável”, que possa reter seu índice, mas uma forma subordinada da sociabilidade,
piadas, arte ou jogo.
21 A concepção de Giddens sobre reflexividade é restringida somente às dimensões
cognitivas, informativas, éticas e políticas. A arte e o festivo não têm nenhuma
relevância para ele no relacionamento com a reflexividade. Além disso, Giddens (1994b:
197) diz claramente que não “existe tal coisa como reflexividade artística”.
Corresponde a esta visão limitada de reflexividade uma visão empobrecida das
tradições na esfera pública. Para ele tradições têm que passar no teste de um modelo
dialógico de verdade que se baseia "no envolvimento dialógico de ideias em um espaço
público” (Giddens 1994a: 6). Ele supõe então que as tradições têm que se adaptar aos
cânones da justificação racional como uma condição de suas persistência e legitimação.
Em uma “sociedade pós-tradicional” supõe-se que a tradição dissolve-se em sua “forma
tradicional”, enquanto a reflexividade social dos indivíduos em uma “sociedade
destradicionalizada” torna possível à eles que decidam sobre a tradição. O predomínio
do decisionismo cognitivo é também evidente quando Giddens (1994a: 49) justapõe
tradição e natureza:
Tradição, como a natureza, usada para ser, no caso, uma estrutura externa para a
atividade humana “toma” muitas decisões por nós. Mas agora nós temos que decidir
sobre a tradição: o devemos sustentar ou o que devemos rejeitar. E tradição em si,
embora muitas vezes importante e valiosa, pode ser de muito pouca ajuda nesse
processo.
22 O racionalismo processual de Habermas e de Giddens tem uma tensão ambivalente
entre o “moderno” e o “modernista”. Eles não são modernistas dogmáticos porque
veem a modernidade como um problema e estão cientes das muitas limitações do
projeto moderno. No entanto, dividem-se em uma divergência modernista, porque (a)
tendem a ver uma forma simples de modernidade e esfera pública - talvez uma
“herança” visão grosseira do modernismo pelas ciências sociais, mas “amaciado” com
uma racionalidade processual minimalista - e (b) sua forma de racionalidade (e
reflexividade) é vista como critério legítimo “superior” em relação a outras práticas,
formas de experiências e tradições. Fazendo assim perdem a perspectiva dos limites de
seu “ideal de racionalidade”, que é igualmente uma fé que considera o debate racional
como sagrado (Durkheim 1987 [1912]: 231). Existe um eventual excesso nesta fé que se
recusa a reconhecer as reivindicações e “direitos” de outros ideais sociais existentes,
tais como as Fallas e o carnaval, que, no entanto, são capazes de interagir com a
experiência moderna.
NOTA
23 Este trabalho baseia-se em dados de uma pesquisa qualitativa realizada sobre as Fallas,
como parte da minha tese de doutorado (Costa 1999). Eu sou muito grato a James A.
Beckford (Universidade de Warwick, Reino Unido) por sua supervisão.
BIBLIOGRAFIA
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Editorial.
Costa, X. 1994. “La fluidificació comunicativa del ritual en Habermas”, Revista d’Esdudis Fallers
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547 Valencia” (unpublished PhD dissertation, University of Warwick, UK).
Durkheim, E. 1987 [1912]. Les formes elementals de la vida religiosa. Barcelona: Ediciones. 62.
Giddens, A. 1994a. Beyond Left and Right: The Future of Radical Politics. Cambridge: Polity.
Giddens, A. 1994b. “Living in a Post-Traditional Society”, in U. Beck, A. Giddens and S. Lash (eds)
Reflexive Modernization:Politics,Tradition and Aesthetics in the Modern Social Order.
Cambridge: Polity.
Habermas, J. 1992. The Structural Transformation of the Public Sphere: An Inquiry into a
Category of Bourgeois Society. Cambridge: Polity.
Heidegger, M. 1995. El origen de la obra de arte, Caminos del bosque. Madrid: Alianza.
Simmel, G. 1971. “Sociability”, in Georg Simmel on Individuality and Social Forms, ed. Donald M.
Levine. Chicago: University of Chicago Press.
RESUMOS
A sociabilidade festiva é central para a transmissão da tradição e é um campo fundamental da
interação entre a tradição e a modernidade festivas. Esta sociabilidade tem um reflexividade e
uma esfera pública própria. A oposição modernista dominante entre a tradição e a modernidade é
questionada com a ajuda de um estudo recente do festival do fogo do “fallas” (Valência, Espanha).
Festive sociability is central for the transmission of tradition and is a fundamental field of
interaction between the festive tradition and modernity. This sociability has a reflexivity and a
public sphere of its own. The dominant modernist opposition between tradition and modernity is
questioned with the help of a recent study of the Fire Festival of the “Fallas” (Valencia, Spain).
AUTORES
XAVIER COSTA
Contato: xavier.costa@uv.es
Doutor em Sociologia, Universidade de Warnick.
Professor de Sociologia do Conhecimento e Cultura e Teoria Sociológica, Universidade de
Valencia
Cir-kula
Introdução
1 Como desassociar a cor cinza do espaço urbano? Essa foi uma das muitas questões que
motivaram o início dessa pesquisa. Concreto, prédios, ruas, viadutos, muros, estações,
postes e poluição. A predominância do cinza é inegável no cenário urbano, dando nome
a documentários, músicas e poesias que frequentemente retratam as grandes cidades.
2 Um espaço cinza, tintas coloridas e criatividade têm empoderado cidadãos a se
apropriarem de espaços já há muitos anos. O grafite é apenas uma das diversas
modalidades de intervenções artísticas em espaços urbanos visando promover
acolhimento e maior aproximação entre cidadãos e a cidade, possibilitando novas
sociabilidades, releituras e, sobretudo, criando espaços colaborativos em detrimento
dos individuais. Neste contexto, um prisma de intencionalidades se faz presente no
efêmero mundo do grafite e da pixação.
3 Esse artigo é parte de um projeto de pesquisa do Programa Institucional de Bolsas de
Iniciação Científica para o Ensino Médio – PIBIC-EM – CNPq e tem como palco as
colunas de sustentação de duas vias elevadas de duas cidades: Lorena, no interior do
estado de São Paulo, e o Museu Aberto de Arte Urbana da cidade de São Paulo, o MAAU.
Aproximadamente 190 km separam essas cidades tão diferentes, mas com iniciativas
similares de intervenções artísticas em um espaço comum. Essa linguagem visual
Estado da Arte
Imbricações entre intervenções artísticas urbanas e a sociologia
urbana
5 Assim como obras edilícias, a cidade é uma construção no espaço, porém em grande
escala. A todo instante, os olhos observam mais do que pode ser visto, captam um
cenário ou uma paisagem que estão prontos para serem explorados. Nada é vivenciado
por si só, mas sempre estão interligados com os seus arredores, às cadências de
elementos que a ele conduzem, às nostálgicas experiências. Cada um de nós possui
vastas relações com alguma parte de sua cidade, e a imagem criada por cada um está
carregada de lembranças e significados. Não somos só observadores desse espaço, mas
fazemos parte dele; compartilhamos o mesmo palco com os outros. Na maioria das
vezes, nossa visão de cidade não é abrangente, mas antes parcial, fragmentada,
mesclada com considerações de outra natureza (LYNCH 2006).
6 A produção de espaços urbanos é fruto da sua constituição histórica e da relação
intrínseca entre o corpo e a cidade. Essa relação pode ser experienciada individual e
coletivamente, de forma transgressora ou não, em uma via de mão dupla em que o
espaço nos afeta e de como afetamos os espaços. A arte está no seio destas experiências,
em que o subjetivo se materializa, refletindo posicionamentos políticos, sentimentos,
poder e simbolismos. Desta forma, o campo foi lido considerando seus tempos e ritmos
“definidos nas binaridades bem estabelecidas entre centro e periferia, produção e
reprodução” (TELLES 2012: 15), em que a pesquisa busca refletir o “eco fiel da
realidade” fazendo-se porta-voz “de suas necessidades e de suas aspirações” (TOPALOV
1991: 35).
7 A apropriação de espaços da cidade por seus habitantes é um movimento que se
reconfigura com o passar dos anos. Além do picho e do grafite, outras formas de
intervenção em construções privadas e públicas dominam a cena urbana, como estêncil
(forma vazada por meio da qual é usado o spray de tinta), lambe-lambe (um tipo de
cartaz), ovo de tinta “borroco”, canetão (ou giz de cera), spray, extintor de incêndio
carregado com tinta, e látex, bomb (grafite rápido ou ilegal) ou grapixo (híbrido das
duas técnicas) usando látex como base e preenchimento (FILARDO 2015)¹.
8 Sob o enfoque deste estudo, discutir sobre grafite e pichação é, sobretudo, considerar a
cidade como um espaço vivo, em constante mutação. São as “formas de escrita do social
no corpo da cidade” (MARIANI e MEDEIROS 2013: 6) sob intencionalidade de resistência,
protesto, identificação de grupos e demarcações que produzem alteridades no urbano.
Essas inscrições podem ser anônimas ou identificadas por nomes, codinomes e siglas.
9 Pensar o grafite e a pichação nos leva a associar os atos artísticos à mobilidade no viés
das práticas e jogos circunscritos nos espaços da cidade. O estudo das mobilidades
urbanas surge justamente para “superar muitas das limitações das noções, categorias e
parâmetros estabelecidos para medir e caracterizar a segregação urbana”, permeados
por “complexidades inéditas das realidades que estavam a exigir abordagens aptas a
captar movimentos e deslocamentos, práticas e jogos redefinidos de atores” (TELLES
2012: 15). Nesses jogos, na visão de Appadurai (1996: 35), “o movimento humano
costuma ser decisivo na vida social”. No trânsito de indivíduos, novas valorações e
leituras de espaços surgem, por vezes produzindo e se materializando em demarcações
que são fruto desses movimentos, sendo essas demarcações o objeto de estudo desta
pesquisa.
10 A reflexão proposta perpassa também pela fácil acessibilidade às artes urbanas devido a
sua gratuidade e presença nas ruas e sobre o aspecto de como estes espaços vêm sendo
produzidos continuamente e as maneiras possíveis de resgatar e ou instituir valores
que possibilitam outras formas de existência, embasadas na produção do coletivo e do
bem comum. Consideram-se o grafite e a pichação como manifestações emergentes de
grupos e pessoas que, ao intervirem na cidade, produzem uma nova. (FURTADO e
ZANELLA 2009)
11 O grafite, enfoque deste estudo, é frequentemente posto em dualidade com a pichação,
em que o primeiro se caracteriza por um tipo de intervenção geralmente não
autorizada, porém com uma maior preocupação estética em relação à pichação,
marcada por cores e formas pictóricas, enquanto a pichação investe mais em formas de
escrita monocromática e é fruto de preconceito social. Filardo (2015)¹ associa a
pichação à periferia da cidade, enquanto o grafite se concentra em áreas centrais,
realizado por pessoas de classe média. No campo das regulamentações, a Lei de Crimes
Ambientais prevê pena de até um ano de prisão para quem "pichar, grafitar ou por
outro meio conspurcar edificação ou monumento urbano” (ALBUQUERQUE 2011).
12 Observa-se que o grafite está presente em cidades do mundo inteiro, enquanto o picho é
brasileiro. Essas intervenções criam um intenso diálogo com a cidade e propõe outra
relação com o entorno urbano, questionando, a partir de um olhar estético, os
territórios, as regulamentações do espaço e estrutura da cidade, assim como os
problemas coletivos subsistentes.
13 O termo grafite, na área da arqueologia, refere-se aos riscos, desenhos e sulcos nas
paredes de pedra na região da Pompeia, Itália, e que com o passar dos anos foi se
diferenciando, e na contemporaneidade apareceu inicialmente na Europa e no Brasil na
década de 60, no auge do movimento estudantil e como forma de inscrição política e
crítica à repressão imposta pela ditadura militar dos anos 60 do século XX. Em São
Paulo, surgiu na década de 70 (FURTADO e ZANELLA 2009). No Brasil, a grafia da prática
é “grafite”, enquanto na língua inglesa é “graffiti”.
Metodologia
18 A pesquisa é marcada por contrastes na amplitude da significação da palavra.
Contrastes entre as cidades, nas cores dos grafites, nas dimensões das colunas de
sustentação das vias elevadas, nas técnicas de grafitagem utilizadas e na quantidade de
grafites. A pesquisa de campo aplicou abordagem exploratória e comparativa, em que
se teve a intenção de lançar olhar sobre as intervenções artísticas urbanas como
produções culturais, manifesto e fantasia nas cidades em questão.
19 Os locais de estudo foram definidos por meio de duas vias, partindo do fato de que o
Museu Aberto de Arte Urbana – MAAU de São Paulo foi referência para nós desde a
concepção do projeto de pesquisa, e por encontrar nas pilastras do viaduto da nossa
cidade, Lorena, uma série de conexões. A via de Lorena é considerada viaduto por conta
do trânsito rodoviário, e a de São Paulo é linha elevada pela função metroviária.
20 Sob uma abordagem macro, a cidade de São Paulo possui atualmente 11.967.825
habitantes e 1.521,110 km² de área territorial, e Lorena com 87.178 habitantes e área
territorial de 414,160 km² (IBGE, 2016), Figura 1.
21 Por uma perspectiva micro, o Museu Aberto de Arte Urbana, “um dos primeiros museus
de arte aberta do mundo” (COSTA 2015) está localizado nas vigas do metrô da linha 1 –
azul, no canteiro central da Avenida Cruzeiro do Sul, no distrito de Santana, zona norte
de São Paulo. O Museu inicia-se na estação Santana, passa pela estação Carandiru e
termina na estação Portuguesa-Tietê, Figura 2 (b).
22 Essa galeria a céu aberto teve início em setembro de 2011 e conta com o apoio da
Secretaria de Estado da Cultura, do Metrô, da SP-Urbanismo, do setor Educativo da
Galeria Choque Cultural e do Paço das Artes, em que a proposta
“surgiu após a interrupção do trabalho de um grupo de artistas que grafitava este
mesmo local no começo de 2011. Sem autorização legal para pintar as colunas, o
grupo foi detido. Depois do ocorrido, iniciou-se um movimento para transformar a
detenção em projeto artístico” (PAÇO DAS ARTES 2016).
Figuras 2 – (a) Viaduto de Lorena, São Paulo e (b) visão do Museu Aberto de Arte Urbana de São
Paulo
23 Em Lorena a pesquisa foi feita no viaduto da Avenida Papa João XXIII, Figura 2 (b). O
viaduto foi construído por conta da linha férrea, e sob ele há residências e comércios
em ambos os lados e demarcações de estacionamento no chão, de bloquetes de cimento.
Próximo ao viaduto há uma importante e extensa via, muito utilizada para exercícios
físicos, a Avenida Mal. Teixeira Lott, que acompanha a extensão da linha do trem e
Concreto e Tinta
24 Nesta pesquisa voltamos nossos olhares em especial para as colunas coloridas de duas
vias elevadas. No vai e vem do metrô em São Paulo, no fluxo de carros em Lorena, eles
representavam antes apenas seu papel na mobilidade urbana e, agora, recebem as
múltiplas significações dos que passam por eles. Traçar paralelos comparativos e
analíticos entre a maior cidade da América Latina e uma cidade de médio porte do Vale
do Paraíba constituiu um grande desafio.
25 Foram usadas ao todo 3 mil latas de spray especial e 40 latas de 18 litros de látex
(HYPENESS 2011) nos 66 painéis de 4 metros de altura cada. Para muitos, essa região é
considerada o “berço do grafite paulistano” desde os anos 80 e 90, e entre os artistas
estão “Speto, Binho Ribeiro, Chivitz, Presto, Anjo, Markone, Zezão, Onesto, Akeni,
Minhau, Dalata, Caps, Magrela, Enivo, Mauro, Pqueno, Alopem, Dask, ZN Lovers, Sliks,
Desp, Coletivo ZN, Feik, Crânio, Inea, Biofa, Caze, Zéis e Alex Sena e Highraff” (COSTA
2015; PAÇO DAS ARTES 2016; TITO 2014). Binho Ribeiro, grafiteiro desde 1984 e um dos
curadores do MAAU junto com Chivitz (também curador da Bienal do Grafite), conta
que os moradores do bairro de Santana cobravam a transformação do canteiro central
em espaço de lazer pela prefeitura: "Antes isso aqui era muito descuidado, esse meio
era todo ocupado por barracos e não tinha segurança. Com o MAAU, a gente fez uma
proposta de revitalização e os moradores então começaram a apoiar", afirma. (TITO
2014)
26 Um dos pontos em comum nos grafites de Lorena e São Paulo é o uso da tipografia como
plano principal. Na Figura 3 (a) observou-se a predominância de cores fortes e
contrastantes no trabalho dos grafiteiros ADM e ELOC1, e na Figura 3 (b) o uso de cores
mais suaves dos grafiteiros DASK e ALOPZ. Ambos colocaram seus nomes como a
centralidade da intervenção.
Figuras 3 - Grafites com a tipografia como plano principal: (a) autoria de ADM em Lorena e (b) e de
DASK ALOPZ São Paulo
Figuras 4 - Grafites com temática ligada ao território e a cidade: (a) Lorena e (b) São Paulo
30 O sombrio marca presença nos painéis de Lorena e São Paulo. Na Figura 5 (a), a
visualização do grafite foi comprometida por uma placa de sinalização de trânsito.
Assim como nas Figuras 3 (a) e 4(a), os autores incluíram em suas intervenções a
tipografia com os seus nomes (ADM, SMOP e ELOC), desta vez, na base e centro do
painel. O cinza e o preto predominam no desenho na parte superior, em que um homem
está sobre uma ponte cercado por caules e raízes de árvores.
31 Na Figura 5 (b), o painel está próximo à estação de metrô e rodoviária do Tietê, e um
monstro é o tema central do painel em tons de vermelho, preto e branco. Analisando-os
transversalmente, estes podem ser discutidos e interpretados como conectores entre o
mundo atual e temas ligados à violência e crises sociais.
Figuras 5 - Grafites com temática sombria: (a) Lorena e (b) São Paulo
32 Os animais também são tema dos grafites, em que na Figura 6 (a) ilustra um grapixo
(misto de grafite e pichação) de um rato em tons de preto e vermelho, sendo que a
segunda cor está presente nos olhos e nariz. O animal é frequentemente associado à
sujeira nas ruas, e neste grafite elaborado pela PADS, está combinado com algumas
pichações na base, já gasta pela exposição ao tempo. Assim como a Figura 5 (a), há uma
placa de sinalização de trânsito colocada diante do painel. Na Figura 6 (b), uma coruja
Figuras 6 - Grafites com temática ligada a animais: (a) Lorena e (b) São Paulo
33 As cores, contrastes e ilustrações atraem os olhares de quem passa, sendo que nos dois
settings urbanos os pedestres podem contemplar as obras, e apenas em São Paulo
ocupantes de veículos motorizados também podem observar. As experiências
proporcionadas pela disposição sequencial dos grafites podem provocar o imaginário
do espectador no sentido de questionamentos e projeções acerca dos grafites,
intencionalidades dos grafiteiros ou se há ou não uma sequência lógica dos painéis que
produzem algum tipo de história. A velocidade do passo ou, no caso dos ocupantes de
veículos motorizados, da direção, é influenciada conforme o espectador tem sua
atenção capturada pelos grafites. Alguns transeuntes param para observar, fotografam,
buscam a assinatura do grafiteiro e estabelecem assim uma relação de vínculo com as
obras e aqueles espaços urbanos.
34 Para os que diariamente os veem, podem ser assimilados e naturalizados como parte do
espaço e entorno urbano, independente do posicionamento a favor ou contra as obras.
Para os que ocasionalmente circulam no MAAU ou sob o viaduto de Lorena, as reações
são produzidas com base no entendimento prévio que possuem sobre grafites,
impactando na velocidade de aceitação desses grafites como arte/obra artística.
35 Iniciativas como estas, além de levar arte de forma gratuita e acessível à população,
transformam espaços antes escuros e inseguros em grandes galerias a céu aberto,
interagindo com pedestres, ciclistas e motoristas, democratizando o acesso a
intervenções artísticas.
36 Em São Paulo, com a legalização do Museu, houve a participação de órgãos municipais e
de diversas organizações na revitalização do entorno, movimento este que não ocorreu
no município de Lorena, descontextualizando os grafites do ambiente em que está
inserido.
sobre o espaço do museu. O grafite exposto nas ruas transformam-nas em uma galeria
de exibição a céu aberto, em que a rua deixa de assumir apenas a função de trânsito de
carros e pessoas e passa a fornecer para o espectador subsídios para reflexões,
desencadeando sentimentos e o redimensionamento do olhar sobre o que vê.
44 Há também a ressignificação sobre a institucionalização do espaço de museu ou galeria
de arte, tendo em vista que as obras acessam as pessoas no seu ir e vir diário, sem que
haja o deslocamento do espectador até um espaço de museu, ao passo que isto pode
aproximá-lo do mundo das artes. Nesse ponto de inflexão, o espectador associa grafite à
arte, influenciando nas representações sociais dos grafiteiros (que podem passar a
serem aceitos por quem antes condenava as práticas) e desencadear interpretações
construídas a partir do imaginário de cada um.
45 Iniciativa semelhante ao MAAU ocorre sob a via elevada Presidente Artur da Costa e
Silva, o Minhocão, na região central da cidade de São Paulo já há alguns anos.
Construído em 1968, será transformado em um parque suspenso (http://
minhocao.org/), e que também teve suas colunas grafitadas e recebeu exposição
fotográfica. Teve, pois a subprefeitura da Sé decidiu neste ano cobrir as intervenções
com tinta cinza sob a alegação de que as obras estavam degradadas.
46 Artistas e Poder Público, atuando em conjunto e com iniciativas semelhantes, podem
transformar espaços na cidade, ampliando o campo de experiências da população.
Nestes dois casos estudados por esta pesquisa, a transformação veio com criatividade,
talento, latas de tintas, sprays e pincéis. O empoderamento social veste cores e traços,
não custa milhões e está ao alcance de todas as classes sociais, profissões e perfis.
47 De acordo com entrevistas realizadas com alguns dos grafiteiros autores das obras
expostas nesse artigo, as relações entre obra e cidade são indissociáveis. Pode-se
observar intencionalidades semelhantes dos curadores de São Paulo e Lorena. Binho,
um dos curadores do MAAU, falou em entrevista que o
“Projeto tem a arte como cunho social. Há espaço para artistas renomados que já
têm uma história, mas também abrimos para jovens grafiteiros da região, em início
de carreira, para que tenham uma troca de experiências, como se fosse uma escola
mesmo”2.
48 A fala do MAAU como “escola” cunha a intenção de continuidade dessa prática,
replicando para outros espaços e contextos. Ambas as propostas contaram com a
revitalização da área por meio de iluminação, calçadas e ciclovias, o que aconteceu em
São Paulo e não em Lorena.
Considerações Finais
49 As semelhanças entre os painéis sob as vias nas cidades de Lorena e São Paulo são
demarcadas pela intenção de estabelecer um espaço de exposição de grafites inseridos
nos espaços urbanos e comuns de vias públicas, bem com a revitalização por meio de
intervenções artísticas urbanas. Levar a arte ao público gratuitamente e revitalizar os
locais de exposição são formas de interações não somente com os cidadãos, mas
também com a materialidade das cidades.
50 O segundo ponto em comum são as similaridades das temáticas centrais das
intervenções e a intenção de estabelecer contrastes com as cores empregadas.
Agradecimentos
56 Os autores agradecem ao CNPq pela concessão da bolsa na categoria PIBIC-EM -
Processo: 800763/2014-9 (Cota 2015-2016).
BIBLIOGRAFIA
ALBUQUERQUE, C. Pichação é alvo de três novos documentários, que discutem seu lugar
entre o vandalismo e a arte, O Globo, 2011. Disponível em <http://oglobo.globo.com/cultura/
pichacao-alvo-de-tres-novos-documentarios-que-discutem-seu-lugar-entre-vandalismo-a-
arte-2718533#ixzz3yAfjIAFD> Acesso em 24 jan 2016
COSTA, T. Museu Aberto de Arte Urbana de São Paulo, 2015. Site oficial de turismo da cidade
de São Paulo. Disponível em <http://www.cidadedesaopaulo.com/sp/br/museus/4992-museu-
aberto-de-arte-urbana-de-sao-paulo-> Acesso em 14 jan 2016
² FILARDO, P. R. A Pichação (tags) em São Paulo: dinâmica dos agentes e do espaço. 2015. 84 f.
Dissertação (Mestrado) - Curso de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, São
Paulo, 2015.
HYPENESS. 1º museu aberto de arte urbana do mundo, 2011. Disponível em < http://
www.hypeness.com.br/2011/10/1-museu-aberto/> Acesso em 14 jan 2016
IBGE. Lorena. Cidades@ - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Disponível em < http://
cod.ibge.gov.br/234NY> Acesso em 14 jan 2016
IBGE. São Paulo. Cidades@ - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Disponível em <
http://cod.ibge.gov.br/232IH> Acesso em 14 jan 2016
PAÇO DAS ARTES. 1º museu a céu aberto de São Paulo começa atividades. Disponível em <
http://www.pacodasartes.org.br/notas/abertura_maau.aspx> Acesso em 14 jan 2016
TELLES, V. S. A cidade nas fronteiras do legal e ilegal. Caderno CRH, v. 25, n. 64, p. 161–163, 2012.
TITO, F. Artistas criam museu de grafite em avenida da zona norte de SP, G1, 2014.
Disponível em <http://g1.globo.com/sao-paulo/noticia/2014/02/artistas-criam-museu-de-
grafite-em-avenida-na-zona-norte-de-sp.html> Acesso em 14 jan 2016
NOTAS
1. A escolha pela escrita dos codinomes dos grafiteiros em caixa alta será para assemelhar-se a
forma como os próprios redigem as assinaturas dos grafites nos painéis.
2. Disponível em: < https://oglobo.globo.com/cultura/artes-visuais/museu-do-grafite-
transforma-zona-norte-de-sao-paulo-18614147#ixzz4hAERaNN1Stest>
3. Disponível em: <http://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2017/01/grafites-em-muros-de-
avenida-de-sao-paulo-sao-pintados-de-cinza.html>
4. Disponível em: <http://capital.sp.gov.br/noticia/prefeito-participa-da-primeira-acao-do-
programa-sao-paulo-cidade-linda-1>
5. Disponível em: <http://g1.globo.com/sao-paulo/noticia/jardim-vertical-substitui-grafite-da-
avenida-23-de-maio-em-sp.ghtml>
6. Disponível em: <http://g1.globo.com/sao-paulo/noticia/avenida-23-de-maio-tera-oito-
espacos-para-grafites-e-desenhos-velhos-serao-apagados-diz-doria.ghtml>
RESUMOS
O espaço urbano é constituído de múltiplos planos de referências sociais, econômicos e culturais,
em que os atores transitam e deixam suas marcas, sejam elas visíveis ou invisíveis. Nas marcas
visíveis, o grafite se reconfigura a partir de novas práticas e olhares pelo mundo todo, em que a
analogia feita no título do artigo ganha força à medida que o observador atribui às imagens
sensações, posicionamentos e percepções. O objetivo foi analisar comparativamente as
intervenções artísticas urbanas na forma de grafite sob as vias suspensas das cidades de São Paulo
(Museu Aberto de Arte Urbana – MAAU) e Lorena, no estado de São Paulo, Brasil, suas
semelhanças, divergências e como interagem com o entorno. A metodologia consistiu em analisar
os espaços por meio de fotografia e caderno de campo. Pode-se observar que o MAAU estabelece
relação clara com o entorno revitalizado, enquanto em Lorena o movimento é oposto.
The urban space is composed of multiple planes of social, economic and cultural references, in
which actors transit and leave their marks, whether visible or invisible. In the visible marks,
graffiti is reconfigured from new practices and looks around the world, where in the analogy
made in the article title gains strength as the observer gives the images sensations, perceptions
and positions. The aim was analyze urban artistic interventions in the form of graffiti under the
suspended vias of the cities of São Paulo (Museu Aberto de Arte Urbana – MAAU) and Lorena, in
the state of São Paulo, Brazil, their similarities, differences and how they interact with the
surrounding area. The methodology consists in analyze the spaces through photography and
field notebook. It can be seen that the MAAU provides clear relationship with the surrounding
area revitalized, as in Lorena movement is opposite.
ÍNDICE
Keywords: Graffiti, urban artistic interventions, urban sociology, São Paulo, Lorena
Palavras-chave: Grafite, intervenções artísticas urbanas, sociologia urbana, São Paulo, Lorena
AUTORES
BIANCA SIQUEIRA MARTINS DOMINGOS
biancasiqueira.m@gmail.com
Mestre em Desenvolvimento, Tecnologias e Sociedade pela Universidade Federal de Itajubá –
UNIFEI. Professora e pesquisadora nas Faculdades Integradas Teresa D’Ávila – FATEA.
Apresentação - E se um viajante
numa sessão de ayahuasca: jornadas
interdisciplinares de ayahuasca e
saúde
Ana Letícia de Fiori e Marcelo Simão Mercante
1 Este breve especial é, na verdade, uma pequena aventura. Registram-se aqui, nessa
apresentação e nos dois artigos que a sucedem, quatro jornadas rumo a territórios
pouco familiares, a partir de quatro pontos de partida distintos, que levaram a
encontros inesperados.
2 O chamado a esta aventura deu-se há alguns anos, em 2009, quando Marcelo Simão
Mercante propôs ao Núcleo de Antropologia Urbana (NAU) da USP o projeto de pós-
doutoramento “O uso terapêutico e ritualístico da ayahuasca no tratamento de
dependência química e alcoolismo”, continuação de outra pesquisa de pós-
doutoramento realizada na UFSC. No decorrer dessa pesquisa, que resultou entre outras
coisas no artigo “A ayahuasca e o tratamento da dependência” 1 e em um livro 2 (no
prelo), foram ministradas disciplinas na graduação e na pós-graduação (“Drogas e
Religiosidade: Consciência, Imaginação e Saúde” e “Antropologia da Saúde”), além de
debates conduzidos no grupo de pesquisas apelidado de NAU Consciência e nas reuniões
gerais, em um período em que o Núcleo debruçava-se especialmente sobre o trabalho
de Tim Ingold, cujo impacto tem se refletido em diferentes produções do NAU. Além
disso, realizou-se na USP em 2011 o Encontro: Ayahuasca e o Tratamento da
Dependência, co-organizado por pesquisadores basilares no campo, Beatriz Labate e
Edward MacRae, membros fundadores do Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre
Psicoativos (NEIP), além do coordenador do NAU e supervisor do pós-doutorado, José
Guilherme Magnani.
3 Os efeitos dos encontros produzidos por um pós-doutorado e a participação em um
núcleo de pesquisa, afortunadamente, não se exaurem quando estes se concluem. Além
dos contínuos debates fomentados pelos pesquisadores do NEIP, contatos acadêmicos e
pessoais foram mantidos com o NAU e outros espaços de reflexão acadêmica. Sendo
NOTAS
1. MERCANTE, Marcelo S.. A ayahuasca e o tratamento da dependência. Mana (UFRJ. Impresso), v.
19, p. 529-558, 2013.
2. MERCANTE, M.S., (no prelo). Reflexos: ayahuasca, espiritualidade, imaginação e
dependência. Salvador: Edufba.
3. CALVINO, Ítalo. (1979). E se um viajante numa noite de inverno. São Paulo, Cia das Letras,
1999.
AUTORES
ANA LETÍCIA DE FIORI
Doutoranda PPGAS-USP.
Introdução
1 Ainda que a passos curtos na tradição de pesquisa em saúde, a metodologia de pesquisa
qualitativa nesta área vem ganhando espaços significativos. (CAPRARA e LANDIM,
2008; BOSI, 2012). Desta forma a utilização de métodos qualitativos e seus instrumentos
têm tomado o interesse de pesquisadores nas áreas da saúde, especificamente
influenciados pelas ciências sociais e pela antropologia.
2 Nas perspectivas de pesquisa em saúde a metodologia qualitativa permite explorar o
cotidiano das pessoas e seus processos sociais. Desta forma se apresenta como recurso
para explorar relações e percepções de como os seres humanos constroem e pensam a
si mesmos diante do fluxo de suas vidas (MINAYO, 2010, 57).
3 Apresentada pela antropologia, dentre as estratégias utilizadas nas pesquisas
qualitativas em saúde (KNAUTH, 2010), desataca-se a etnografia. A etnografia, é
caracterizada como “a arte e a ciência de descrever um grupo humano – suas
instituições, seus comportamentos interpessoais, suas produções materiais e suas
crenças” (ANGROSINO, M., 2009, p. 30).
4 Como tradição antropológica, ainda que possa ser considerada, para além de um
método, uma teoria, a partir das descobertas que dela emergem (PEIRANO, 2014), a
etnografia se constitui de um procedimento científico. Magnani (2012) defende essa
perspectiva, apontando para o uso reducionista que o método etnográfico vem sendo
apresentado aos espaços urbanos, especialmente influenciados pelas pesquisas de
marketing e mercado.
5 Ribeiro (2010) destaca que as recentes demandas de pesquisa circunscrevem ao campo
da antropologia e do método etnográfico desafios quanto a um dos princípios
N (%)
Faixa etária
≥46 19 12,26
Raça/Etnia
Branca 15 9,68
Negra 13 8,39
Escolaridade
Analfabeto 6 3,90
Sozinho 5 3,23
Apenado 31 20,00
Localidade de origem
Exterior 1 0,64
Formas de Encaminhamento
ser perseguido um dia de cada vez, ainda que relacionado à abstinência. Nestes espaços,
as pessoas trocam reflexões e fazem perguntas. É onde se configuram tensionamentos e
ajustes de comportamentos e atitudes que reverberam no grupo, onde o responsável
pela condução da atividade faz explanações de cunho moral em relação ao coletivo. As
intervenções individuais são realizadas através de encontros semanais com os membros
da equipe.
ainda não compreendia. Não tive nenhuma reação de purga. Confesso que me sentia
tenso. Cheguei a me sentir confuso. Não conseguia atentar aos rezos e músicas que
conduziam o ritual. Ao passo, uma profunda paz me invadia, como que um descanso
profundo, num caminho rumo a lugares desconhecidos em mim mesmo. Durante
todo o tempo, marcadamente percebia o olhar cuidadoso de todos e para com todos.
A troca de cuidado era extrema. Haviam os que se sentiam mal e eram
carinhosamente abraçados e, os que ofereciam água e chá quente para aquecer e
amparar. Os olhares mútuos e trocas constantes fizeram com que me sentisse
seguro para viver a experiência. Fiquei refletindo tudo aquilo que experienciei por
vários dias. Provavelmente ainda esteja fazendo.”
33 Esta experiência me proporcionou o contato vivo com o de uso ritual da ayahuasca,
entretanto a experiência em campo se daria num ritual diferente. Esta diferença foi
registrada logo na primeira sessão em que participei e me trouxe importantes reflexões
na condução de minha postura como pesquisador em campo.
“(...) Me referindo á única experiência que tive com o uso ritual da ayahuasca,
percebe-se claramente a diferença entre os rituais. Me senti provocado. Talvez
tenha criado expectativas. Foram, de certa forma, superadas, porém me coloquei a
questionar: Todas as pessoas aqui poderiam fazer uso da bebida? Será que passaram
por uma avaliação prévia? Será que as pessoas compreendem tudo o que o Mestre
profere? Visualizei muitas pessoas entranto e saindo, mas o clima foi de extremo
respeito e concentração. Um silêncio, as chamadas e músicas. A palavra do Mestre é
o foco da sessão. Ainda que eu estivesse tenso, percebi uma rigidez disciplinar
durante toda a sessão. Minha ingesta da bebida não me provocou nenhuma
sensação desconfortável, ao passo que também não tive uma explosão de insight.
Talvez porque a estrutura da sessão restrinja esse tipo de situação, para que se
consiga atingir os objetivos a que ela se propõe. Talvez eu não tivesse compreendido
isso se não me submetesse a todo o ritual.”
34 Quero destacar que participei de todas as sessões realizadas na Caminho de Luz, tanto
no Templo quanto no centro de recuperação, durante meu período de campo. Enquanto
observação participante ativa, a partir da primeira experiência na sessão acima
relatada, optei por realizar a ingestão da bebida em todas as sessões. Desta forma,
busquei registrar as minhas impressões logo após as sessões, que também eram
integralmente gravadas em aúdio. Esta participação ativa aumentou a proximidade com
as pessoas no campo, que se sentiam à vontade para compartilhar de suas experiências
comigo, como alguém que se fazia presente, efetivamente, no contexto ritual.
35 Para além disso, outros acontecimentos se apresentaram no campo, os quais
entrelaçaram-se meu papel profissional ao de pesquisador. Ainda que eu soubesse que o
campo poderia apresentar diversos fenômenos que ultrapassavam o alcance de meus
objetivos de pesquisa, logo nos primeiros dias passei a refletir sobre meu papel de
pesquisador no campo. Uma das grandes observações que contribuiram para essa
reflexão se deu em função de um diálogo informal que tive com um dirigente da
instituição. Gentilmente, com um humor característico, ele me disse:
“Os indios aí, disseram assim outro dia: ‘Os antropólogo vem aqui pra conhecer nóis
e é nóis que estamos conhecendo como é a vida dos antropólogo, de tanto que já
vieram pra fazer pesquisa’. Eles querem tanto pesquisar os indios que os indios é
que estão pesquisando eles.”
36 A partir desta frase tive a certeza, uma vez que já desconfiva, de que o estranho no
campo era eu. Aliás, num primeiro momento, mais fácil um grande grupo observar um
único ser, do que este dar conta de um campo desconhecido. E assim se sucederam uma
houvesse uma suspensão entre dois universos: o mundo espiritual e o mundo material,
enquanto um corpo encarnado.
60 Em relação ao observado em campo, através da experiência de suspensão com o uso da
ayahuasca, se edificam novos fluxos reflexivos que podem conduzir as pessoas ao
cuidado de si, que ainda, aliada às regras e condutas da doutrina e apregoados pela
instituição, engendram condutas e posturas configurando meios de docilizar corpos e
reintegrá-los aos parâmetros morais da sociedade.
61 Estes breves recortes que apresentei elucidam minha experiência com a etnografia,
enquanto possibilidade na pesquisa em saúde, como um desafio ao pesquisador diante
de um campo de fluxos que se estabelecem continuamente. Movimentos,
deslocamentos, como um rio que deságua em direção ao desconhecido, ainda que seu
objetivo seja encontrar com o mar. Suspensões em que coabitam e se entrelaçam
saberes, conhecimentos e humanidades possíveis diante de caminhos e fluxos no
intangível mar da vida.
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RESUMOS
O objetivo deste trabalho é apresentar reflexões a partir da experiência de campo de uma
pesquisa etnográfica realizada na Casa de Recuperação Caminho de Luz, em Rio Branco/AC. A
instituição para tratamento de usuários de drogas tem como um de seus pilares o tratamento
espiritual através do uso ritual de ayahuasca em sessões que seguem a doutrina da União do
Vegetal (UDV). Ao estar em campo, além da preocupação com a busca pelos dados da pesquisa, o
pesquisador viu-se comprometido em questões relacionados à profissão de origem – psicólogo e
psicoterapeuta. Demandas de gênero, grupo e conflitos conjugais foram emergências que
exigiram do profissional espaços para descolamentos do papel de pesquisador ao passo que
assinalava tais fenômenos como manifestações do campo. Tais constatações fazem refletir a
prática de pesquisa, especialmente em saúde coletiva, como espaços reflexivos onde tencionam
práticas profissionais e papéis do pesquisador considerando a importância da delimitação de tais
lugares e da neutralidade em campo.
ÍNDICE
Keywords: reflexivity, ethnography, role
Palavras-chave: reflexividade, etnografia, papéis
AUTORES
MAITON BERNARDELLI
Psicólogo, Mestrando em Saúde Coletiva, Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS.
Introdução
1 As reflexões aqui esboçadas surgiram do encontro entre minha experiência de campo
na União do Vegetal, a II Conferência Mundial da Ayahuasca 1 e os comentários feitos
por Marcelo Mercante, Ana Fiori e José Magnani2. Embora já tivesse navegado, através
de leituras, por outros campos de pesquisa a respeito de rituais com a ayahuasca, ainda
não tinha constatado o protagonismo que esta bebidatêm desempenhado em pesquisas
neurocientíficas. Se por um lado, estava familiarizada com a ideia da ayahuasca como
“medicina” da floresta, utilizada por xamãs em seus rituais, por outro, não estava
suficientemente esclarecida sobre a ayahuasca como “medicine” no sentido
farmacêutico.
2 Não estava e ainda não estou, especialmente porque os temas que atravessam este
artigo são novos para mim. Dado minha condição de principiante neste terreno e o
caráter teórico-exploratório de minha pesquisa, meu intuito é oferecer mais perguntas
que respostas. Com sorte, asquestões que me ocorreramsobre este novo cenário
deestudos e usos terapêutico e farmacológico da ayahuasca poderão ensejar novos
desdobramentos.
3 Quero entender como os estudos neurocientíficos caracterizam os efeitos
antidepressivos da ayahuasca e, com isso, constrastar algumas concepções sobre a
ayahuasca, depressão e efeitos terapêuticos. Trata-se de levantar a seguinte questão:
são as substâncias presentes na ayahuasca a causa de seus efeitos antidepressivos?
4 O objetivo é perquirir em que medida a ênfase sobre a ayahuasca (e suaspropriedades
químicas) coloca como secundário os processos reflexivosde aprendizagem entre
humanos, Vegetais e ambiente. Por fim, conjecturo sobre o potencial que uma
abordagem ecológica pode ter, tanto para refletirmos a respeito da condição dos
pesquisadores, quanto para repensarmos os conceitos de propriedades químicas,
depressão, ayahausca e saúde.
17 É nesta terceira edição (DSM III), publicada em 1980, que se consolidam transformações
significativas na psiquiatria relacionadas à revolução psicofarmacológica: a depressão é
classificada dentroda categoria dos Transtornos do humor, cuja etiologia está ancorada
numa “estrutura cerebral disfuncional de origem ainda não desvendada” (FERREIRA,
2011, p. 85). Fato que marca ofortalecimento do paradigma biomédico na psiquiatria em
detrimento da psiquiatria dinâmica.
18 Ainda que frequentemente as soluções oferecidas pela farmacologia sejam consideradas
como decorrentes do conhecimento das causas e funcionamento de determinadas
patologias, isto não é uma regra:
No caso dos medicamentos psicoativos, se há a busca das explicações causais, este
aspecto está em desenvolvimento e tem oferecido apenas respostas parciais. O que
existe são hipóteses, e o uso de medicamentos baseia-se nos sucessos da clínica:
mesmo que não se tenha um diagnóstico preciso, a utilização de medicamentos
pode aliviar sintomas (BITTENCOURT et al., 2013, p. 227).
19 Entre o DSM III, o IV (1994) e a DSM IV-TR não há variaçõessubstanciais. Entre a
primeira edição de 1952 e a quinta edição de 2013 houve inclusões e exclusões de
categorias diagnósticas de transtornos mentais. Na quinta edição, por exemplo, uma
das mudanças polêmicas “foi a retirada do luto como critério de exclusão do
Transtorno Depressivo Maior. No DSM-5 é possível aplicar esse diagnóstico mesmo
àqueles que passaram pela perda de um ente querido há menos de dois anos” (ARAÚJO
& NETO, 2013, p.105). Com isso, estes sujeitos também podem receber tramentos
medicamentosos.
20 Esta breve apresentação dos debates envolvidos nas transformações da definição da
depressão e das formas de terapia recomendadas às pessoas diagnosticadas, evidencia
como a escolha de determinada nomenclatura implica uma rede de conceitos latentes
de pessoa, doença, saúde, corpo e mente. Ao sustentar a caracterização do fenômeno,
esta rede de concepções, orientaas alternativas de tratamento e “[...] influenciam as
decisões políticas, que por sua vez afetam os depressivos” (SOLOMON, 2014, p. 346).
21 A questão da definição é tão decisiva que, de acordo com a OMS, um dos maiores
obstáculos ao tratamento da depressão origina-se nos diagnósticos equivocados,
quando “pessoas com depressão frequentemente não são diagnosticadas corretamente
e outras que não têm o transtorno são muitas vezes diagnosticadas de forma
inadequada”9.
22 É curioso que o desenvolvimento e uso de medicamentos psicoativos para tratamento
da depressão não são acompanhados pela redução estatística da doença, ao contrário,
os índices crescem e as previsões não são nada otimistas. A depressão continua sendo
umproblema de saúde pública.
23 Provavelmente o aspecto positivodesse crescimento estatísticopode estar relacionado
ao rompimento, ainda mínimo einsuficiente, do estigma que envolve a depressão. Fator
que contribui para que mais pessoas procurem ajuda especializada 10 e sejam incluídas
nos dados oficiais. Por outro lado, os equívocos e abusos médicos no diagnóstico e
prescrição de anti-depressivos não sãosuposições descabidas de alguma teoria da
conspiração.Eles fazem parte do cotidianomoderno esão objeto de uma recomendação
de prudência por parte da OMS: “os antidepressivos podem ser eficazes no caso de
depressão moderada-grave, mas não são a primeira linha de tratamento para os casos
mais brandos. [...] É preciso utilizá-los com cautela 11.
não são em si mesmas a causa do vício.E aconselha arecondução de nossa atenção das
substâncias às relaçõesatravés da pergunta: o que torna algumas pessoas mais
suscetíveis aos vícios? E é esta mesma premissa que utilizo para formular a seguinte
questão: se o álcool, a maconha ou a cocaínanão são por si próprias a causa do vício,
seria a ayahuasca por si mesma a causa dos efeitos anti-depressivos?
Algumas perguntas...
60 A realização de experimentos em contextos laboratoriais com ayahuasca congelada e
encapsulada, ou mesmo com a ayahuasca líquida,responde à uma forma demapear a
ação de alguns princípios ativos sobre determinadas áreas cerebrais a serem
investigadas e sobre determinadas doenças a serem tratadas. Em sua análise Brian
Anderson (2012) observa que estas pesquisas tem transformado aquela perspectiva da
psiquiatria convencionalque considera os Estados Modificados de Consciência como
patológicos. Além de sua evidente relevância no conhecimento do organismo humano,
ou mais especificamente, das dimensões situadas no cérebro, elassão importantes na
constituição da legitimidade política do uso de psicodélicos através da comprovação
científica dos seus benefícios, principalmentepara o tratamento de vícioseda depressão.
61 No entanto, estas mesmas pesquisas mantem certos princípios da psiquiatria
convencional quase intocados. Um deles é a não menção entre os psiquiatras e
neurocientistas de suas experiências pessoais com a ayahuasca. Ou - se alegarem que a
menção anterior é cientificamente irrelevante - sobre a interação entre os
pesquisadores e os voluntários sob efeito da ayahausca durante a realização do
experimento. Esta postura corrobora com uma noção de objetividade científica baseada
na separação entre objeto e sujeito que supostamente seria ameaçada caso houvesse um
envolvimento experiencial e subjetivo do pesquisador.
62 Outra premissa é a necessidade da realização do experimento fora dos contextos
tradicionais de uso da ayahuasca. Anderson (2012, p. 54) argumenta que quanto mais
abstraído do contexto de uso tradicional o experimento é, mais fácil é a remoção
conceitualda contribuição do “Estado Modificado de Consciência 25” para os efeitos
terapêuticos.
63 Nas pesquisas experimentaismencionadas,o controle laboratorial serve para
diferenciar, por exemplo, se os efeitos terapêuticos são uma consequência das
propriedades químicas da ayahuasca ou da vivência comunitária no contexto religioso
(SANTOS et al, 2016, p. 70). Esta questão parece ter sido parcialmente respondida pela
pesquisa de Soler et al. (2015, p. 6), para quem a ayahuasca tem efeitos terapêuticos por
si independentes do componente religioso.
64 A observação de que os sujeitos que participaram da pesquisa não são afiliados a
nenhuma religião ayahuasqueira é utilizado paraendossar o argumento anterior.Dizer
queo não-pertencimento a determinadas religiões comprova a independência dos
efeitos do contexto religiosoé diferente de generalizar essaconclusão para presumir que
sejam independentes de quaisquer contextos. Suporque as habilidades de atenção plena
(mindfulness) e suas características de abertura, não julgamento e aceitação possam ser
adquiridas através da ayahuasca por si (SOLER et al. 2015, p. 6), suscita algumas
dúvidas.
65 Note que assim como a depressão é atribuída à deficiência no funcionamento do
sistema serotoninérgico, a experiência com a ayahuasca é caracterizada como
intervenção farmacológica. Pergunto-me: esta qualidade metacognitiva de ter uma
visão distanciada das próprias emoções e pensamentos é um efeito psicológico
automático e universal da ayahuasca? Se sim, os indivíduos experimentam uma
abertura em relação à quê? O não julgamento e a aceitação do quê? Parece-me aqui que
as traduções entre linguagens, a do mindfulness ligada ao Budismo e a da neurociência
ligada a perspectiva biomédica, precisam ser repensadas.
66 Curiosamente Soler et al menciona (2015, p. 6) que os usuários da ayahuasca
apresentam traços de personalidade tais como religiosidade, espiritualidade,
sentimentos transpessoais inversamente relacionados aos sintomas
depressivos.Todavia a correlação entre os relatos dos participantes sobre o que
perceberam e sentiram durante o Estado Modificado de Consciência, (elementos que
escapam aos questionários aplicados) e as ações neuroquímicas das substâncias,
permanecem secundários e quaseinexplorados.
67 A aposta científica nas propriedades anti-depressivas da ayahuasca é explicitamente
justificadapela necessidade de novas drogas antidepressivas que tenham menos efeitos
colaterais e sejam mais eficazes na redução da sintomatologia da ansiedade e da
depressão (SANTOS et al. 2016; OSÓRIO et al. 2015). Embora o motivo seja nobre, dado os
indíces crescentes da depressão e dos prejuízos humanos causados, ainda não está claro
para mim: em que consistiria o uso farmacológico da ayahuasca?
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NOTAS
1. II World Ayahuasca Conference, realizada em outubro de 2016 em Rio Branco, Acre.
2. As conversas realizadas durante o Simpósio Temático “Tecnologias da reflexividade e as
pesquisas sobre ritual, usos de substâncias e saúde” - coordenado por Marcelo Mercante e Ana
Fiori na VI Reunião de Antropologia da Ciência e Tecnologia – motivaram a reescrita de algumas
partes deste artigo. Recebemos a especial participação do Profº Magnani cujas observações
instigaram-me a aprofundar esta pesquisa.A todas essas pessoas minha gratidão pela
oportunidade.
3. Mais informações sobre a depressão ver site da OMS: http://www.paho.org/bra/index.php?
option=com_content&view=article&id=5321:depressao-e-tema-de-campanha-da-oms-para-o-dia-
mundial-da-saude-de-2017&Itemid=839 Acesso em: 15 de março de 2017.
4. Evidentemente tais termos se reconfiguraram sob novos contornos para constituir, com as
devidas diferenças, os sintomas classificados no Diagnostic and statistical Manual of Mental
disorders (DSM-V).
5. Nosologia é um ramo da ciência médica que investiga as características distintivas entre
doenças com o intuito de estabelecer classificações úteis ao diagnóstico.
6. A teoria psicanálitica de Freud é, evidentemente, mais complexa do que esta versão resumida
que apresento. Para entendê-lo mais profundamente e sua influência na psiquiatria, veja: FREUD,
1996; 2011 e COSER, 2011.
7. Ao todo foram 11 edições analisadas (período de 1941 a 2006) do seguinte compilado de
psicofarmacologia referência internacional para os profissionais da área: Goodman and Gilman’s:
the pharmacological basis of therapeutics.
8. Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders – DSM foi criado pela American
Psychiatric Association que apresenta uma lista de transtornos mentais e critérios para
diagnóstico com o intuito de padronizar e guiar a prática clínica e terapêutica.Há também a
Classificação Internacional das Doenças, produzido pela Organização Mundial de Saúde
(International Classification of Diseases - ICD) que não incluo não obstante seja relevante
inclusive por sua abordagem multidisciplinar das doenças.
23. Tradução do seguinte trecho: “The present results obtained in a lay setting support the
notion that ayahuasca may have therapeutic potential per se in the absence of the religion
confound”(SOLER et al. 2015, p. 6).
24. Tradução do seguinte trecho: “the complex multifaceted nature of depression is made up of a
variety of emotional, behavioral and cognitive elements”(KHARADE et al. 2010, p. 4).
25. Este é o termo utilizado pelo autor que opõe-se ao termo Estado Alterado de Consciência.
26. Tradução do seguinte trecho:“I stayed huddled and crying softly, I was completely huddled
and I could not answer because I felt as if the devil and Our Lady were battling for my soul and I
could not interfere. After a long battle, Our Lady won and pulled me to her side and I felt intense
joy” (PALHANO-FONTES et al. 2014, p. 33-34)
27. Tradução do seguinte trecho: “(…) point less to a technique than to an itinerary: what had
been broken, fragmented, partial, separated, and alienated becomes somehow reintegrated into a
whole” (2012, p. 28-29).
28. “(…)before the influence of foreign medical models and expectations, ayahuasca was not itself
a healing medicine but rather a diagnostic tool” (BEYER, 2012, p. 3).
29. As considerações de Jordan Sloshower sobre a constituição do “critical paradigm integration”
entre a psiquiatria e a medicina indígena: <http://chacruna.net/is-psychiatry-ready-for-
psychedelic-healing/> Acesso em: 12/04/2017. Ou os trabalhos da organização multidisciplinar
dedicada à pesquisa e educação sobre os psicodélicos chamada “Plantando Consciência”:<http://
plantandoconsciencia.org/novoblog/sobre/> Acesso em: 13/04/2017. As reflexões de Michael
Winkelman (2007) que classifica a ayahuasca como psicointegrador. A análise de Marcelo
Mercante (2012) que realiza um enfoque interdisciplinar que articula as dimensões rituais,
psicológicas e neurofisiológicas da ayahuasca no contexto religioso da Barquinha. E muitos
outros...
30. Reportagem da revista Rolling Stone “The Psychedelic Miracle” Disponível em: http://
www.rollingstone.com/culture/features/how-doctors-treat-mental-illness-with-psychedelic-
drugs-w470673>. Acesso em: 7/04/2017.
31. Reportagem no site Motherboard “Ayahuasca: da magia à possível cura para o alcoolismo e
depressão. Disponível em: https://motherboard.vice.com/pt_br/article/ayahuasca-contra-
alcoolismo-e-depressao. Acesso em: 7/04/2017.
32. 7 ways to optimize your Ayahuasca Experience. Disponível em: http://chacruna.net/tips-for-
your-ayahuasca-experience/. Acesso em: 14/04/2017.
RESUMOS
A partir de pesquisa de campo em preparos de Vegetal na UDV,notei que os efeitos da Hoasca não
são atribuídos exclusivamente à Dimetiltriptamina (DMT) presente na Psychotria Viridis e nas
betacarbolinas do Banisteriopsis Caapi, mas à mútua aprendizagem entre inteligências humana e
Vegetal. Esta concepção assemelha-se com outras indígenas, nas quais a ayahuasca é vista como
um Ser cuja ação terapêutica depende de relações entre seres humanos e destes com outros seres.
Os recentes estudos em neurociências, por sua vez, apontam a ayahuasca como um promissor
antidepressivo da nova geração de tratamentos farmacológicos. A depressão é caracterizada
principalmente como um desequilíbrio nas monoaminas cerebrais e os efeitos antidepressivos
são avaliados com base nas alterações provocadas pela interação entre a DMT/Betacarbolinas e
três neurotransmissores: a serotonina, a norepirefrina e a dopamina. Pretendo traçar diferenças
entre tais concepções sobre a ayahuasca, substância e saúde, refletindo com Ingold e Matthew
Ratcliffe, no intuito de esboçar uma abordagem ecológica dos efeitos anti-depressivos
experimentados com a ayahuasca. No caso da ayahuasca enquanto antidepressivo levanto as
seguintes questões: quais os limites desta caracterização bioquímica da ayahuasca e da
depressão? Quais as possíveis consequências da dissociação dos efeitos da ayahuasca de seus
contextos espirituais/terapêuticos? Em que medida esta dissociação abrevia processos reflexivos
de aprendizagem entre humanos e plantas ao privilegiar a interação entre substâncias como
causa dos benefícios terapêuticos?
Based on a fieldwork at Vegetal feitios [preparations] at UDV, I’ve noticed that the effects of the
Hoasca are not exclusively attributed to Dimethyltryptamine (DMT) present in psychotria Viridis
and in the β-Carboline of Banisteriopsis Caapi, but to the mutual learning between human and
Vegetal intelligences. This conception is close to indigenous ones, to whom ayahuasca is seen as a
Being whose therapeutic action depends on relations among human beings and between them
and other beings. Recent studies in neurosciences, on the other hand, indicates that ayahuasca is
a prominent antidepressant of the new generation of cerebral monoamines and its
antidepressant effects are evaluated based in the alterations caused by the interaction of DMT/
betacarboline and three neurotransmitters: serotonin, norepinephrine and dopamine. The aim is
to trace differences between those notions of ayahuasca, substance and health, reflecting with
Ingold’s and Matthew Ratcliffe’s works, in order to outline an ecological approach of
antidepressant effects experienced with ayahuasca. Concerning ayahuasca as an antidepressant, I
raise the following questions: What are the limits of this biochemical characterizationof
ayahuasca and depression? What are the possible consequences of the dissociation of the
ayahuasca effects of its spiritual/therapeutic contexts? To what extent this dissociation shortens
reflexive effects of learning among humans and plants as it privileges the interaction between
substances as the cause of therapeutic benefits?
ÍNDICE
Palavras-chave: ayahuasca, neurociências, depressão, aprendizagem
Keywords: Ayahuasca, neurosciences, depression, learning
AUTOR
DANIELLI KATHERINE PASCOAL DA SILVA
Mestre em Antropologia Social pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
Ensaios fotográficos
NOTA DO AUTOR
Todas as fotos registradas por Carolina Abilio, na cidade de São Paulo, durante o ano de
2016.
1 Desde 2012 na cidade de São Paulo observamos o aumento da mobilidade por meio de
bicicletas. Ciclistas a passeio, individualmente ou em grupos, competidores esportivos,
e aqueles que fazem uso da bicicleta para trajetos de origem e destino no deslocamento
ao trabalho, tomaram as ruas da cidade e podem ser facilmente vistos cruzando suas
vias e avenidas.
2 A incorporação desses atores na dinâmica da cidade foi acompanhada de tensão e
agressividade por parte de outros seguimentos da população, particularmente, usuários
de outras formas de transporte. Os espaços urbanos pareciam já “ocupados” o
suficiente na disputa pelo ir e vir, em circunstancias e entraves que vão desde pouca
mobilidade para alguns até mobilidade em excesso de outros. Nesse cenário, a magrela
passou a ser vista como intrusa no contexto do espaço da cidade e na disputa por
circulação (Urry 2007:12).
3 A introdução da bicicleta como protagonista e peça-chave da narrativa sobre
mobilidade urbana em âmbito municipal ocorre na gestão Fernando Haddad (Partido
dos Trabalhadores, 2012-2016), com ampla repercussão nacional e internacionalmente.
Um conjunto de ações de políticas públicas drasticamente alteraram a realidade da
bicicleta na cidade, mais do que dobrando a quilometragem de ciclovias e ciclofaixas,
assim como a abertura de bicicletários públicos e viabilização do transporte de
Foto 1: Senhor atravessa a rua com sua bicicleta, em bairro da zona norte. Apesar de a bicicleta ser
popularmente associada à juventude, 42% de ciclistas tem mais de 35 anos de idade1.
Foto 2: Placa anunciando bicicletário para clientes de uma loja de varejo na região central da cidade.
Com o aumento do número de ciclistas, muitos comércios passaram a disponibilizar paraciclos ou
bicicletários e integram o circuito desse novo design de mobiliário urbano.
Foto 4: Rapaz conversa com jovem sentado em sua bicicleta em frente ao edifício nº 911 da Av.
Prestes Maia, a maior ocupação vertical da América Latina. A bicicleta está presente em diferentes
camadas populacionais e políticas que democratizam seu uso e acesso tem impacto direto na
segregação socioespacial.
Foto 5: Bicicleta com suporte para carregamento de cargas contendo placa com a indicação ‘menos
um carro’, avistada no bairro de Pinheiros, região oeste da cidade.
Foto 6: Grupo de moradores de rua expõe bicicleta com o anúncio “Aceitamos Doações”, próximo ao
terminal de ônibus de Santana, zona norte da cidade.
Foto 7: Grupo de ciclistas realiza pausa em uma manhã de sábado, durante trajeto próximo à estação
Vila Prudente do metrô, zona leste. Conhecidos como ‘grupos de pedal’, estão presentes em todas as
regiões da cidade e organizam-se predominantemente online.
Foto 8: Vendedor utiliza bicicleta para expor seus produtos em região comercial da zona norte da
cidade. Com poucas adaptações necessárias para sua utilização comercial, a bicicleta é uma
possibilidade prática e barata para o transporte tanto do vendedor quanto de seus produtos.
Foto 9: Juliana, barista, posa ao lado de sua bicicleta adaptada, o bike café ‘Café com Calma’. De
modo similar aos food trucks, food bikes se espalharam pelo cenário da cidade e estão presentes em
vários locais, alcançando clientes além da comunidade de ciclistas.
Foto 10: Alguns serviços públicos também adotaram a bicicleta no seu dia-a-dia, como agentes de
trânsito e lixeiros. Na foto, bicicletas customizadas utilizadas por policiais em uma base móvel
localizada na entrada do parque Trianon, na Av. Paulista.
BIBLIOGRAFIA
HOLLANDA, Carolina de. 2012. “A fotografia como instrumento de observação urbana: uma
questão convergente em pesquisa sobre as cidades”. V!RUS, São Carlos, n. 7.
CICLOCIDADE. 2015. Pesquisa: Perfil de Quem Usa Bicicleta na Cidade de São Paulo - Arquivo de
Apresentação. Disponível em http://www.ciclocidade.org.br/noticias/773-pesquisa-perfil-de-
quem-usa-bicicleta-na-cidade-de-sao-paulo-arquivo-de-apresentacao.
PRZYBORSKI, Aglaja; SLUNECKO, Thomas. 2012. “Learning to think iconically in the human and
social sciences”. Integrative Psychological & Behavioral Science, n 46(1): 39-56.
NOTAS
1. Vide pesquisa de perfil de pessoas que usam a bicicleta em São Paulo, realizada pela Associação
dos Ciclistas Urbanos (Ciclocidade): http://www.ciclocidade.org.br/noticias/773-pesquisa-perfil-
de-quem-usa-bicicleta-na-cidade-de-sao-paulo-arquivo-de-apresentacao
AUTORES
CAROLINA CÁSSIA CONCEIÇÃO ABILIO
Mestranda do programa de Mestrado Profissional em Ambiente, Saúde e Sustentabilidade da
Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo | carol.abilio@usp.br
5 Para os guardadores de carros a atuação é uma alternativa preferível por uma série de
razões, variando entre a possibilidade de melhor salário, um senso de independência,
por não exigir formação profissional e educacional. Assim mesmo, no âmbito da
informalidade, encaram a atividade como uma “boa ocupação”, quando comparado com
outros trabalhos. Porém a ideia de “boa ocupação” é controvertida no meio social,
especialmente do ponto de vista dos clientes, para os quais a prática de guardador de
carros é tida como desnecessária e abusiva, uma vez que esse serviço de cuidar do
automóvel é um direito que deveria ser garantido pela segurança pública, já que se
trata de um espaço público.
6 Deste modo, ao mesmo tempo em que a atividade é capaz de integrar os sujeitos, já que
a rua viabiliza a construção dos mais diversos vínculos, ela também se apresenta como
um fator discriminatório, constituído, sobretudo pelo estigma próprio da atividade de
guardador de carros. Assim, os sujeitos sentem a marginalidade, instituída por meio da
discriminação e vivem a invisibilidade, pela falta de atenção dos municípios na
regulamentação da atividade.
BIBLIOGRAFIA
MALINOWSKI, Bronislaw. Argonautas do Pacífico Ocidental. São Paulo: Editora Abril, 1984.
AUTOR
FRANCIELI MULLER PRADO
Mestre em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Maringá – UEM.
francimullerp@gmail.com
Etnográficas
1 O século XXI trouxe consigo a expansão do carnaval dos blocos de rua na cidade do Rio
de Janeiro. Em proporções cada vez mais expressivas, tanto no número de blocos
quanto de foliões, o carnaval de rua expandiu o calendário anual da festa na cidade e
impulsionou uma nova organização da celebração carnavalesca, tanto por parte do
poder público quanto dos blocos. Inserida nesta recente valorização de brincar o
carnaval, os blocos de rua na cidade do Rio de Janeiro se veem em meio a uma discussão
sobre o aumento da rentabilidade econômica através da mercantilização da/na festa,
associada à sua profissionalização, e a valorização de práticas tradicionais de se brincar
o carnaval através da discussão da sua patrimonialização. Tendo como base a pesquisa
etnográfica, buscou-se compreender neste artigo o processo pelo qual vêm passando os
blocos de rua na cidade do Rio de Janeiro, problematizando os múltiplos significados
para a noção de tradição carnavalesca e como os diferentes agentes envolvidos na festa
estão compreendendo e organizando o carnaval. Este artigo1 propõe, assim, pensar a
configuração atual do carnaval dos blocos de rua na cidade do Rio de Janeiro a partir
dos três principais agentes organizadores da festa: os blocos, as ligas e associações e o
poder público, buscando mostrar os diferentes significados que a festa possui para cada
agente.
2 Começaremos com o significado do carnaval para os principais mobilizadores da festa:
os blocos. No ano de 2016, 505 blocos foram autorizados a desfilar no carnaval do Rio de
Janeiro, totalizando 587 desfiles. Número expressivo e que representa uma
multiplicidade de formatos e enfoques, impossíveis de serem pensados como um grupo
homogêneo. Assim, não temos a pretensão de dar conta do todo, mas de apresentar
algumas visões dos blocos sobre o carnaval. Entendendo que existem quatro momentos
históricos de criação dos blocos de carnaval (Frydberg, Eiras 2015), pensaremos o
significado do carnaval de rua para três representantes de três momentos históricos
distintos.
3 As ligas e associaçõ es fazem parte do segundo grupo a ser apresentado e se
caracterizam como formas de organização coletiva dos blocos. Cada liga congrega um
número específico de blocos que auxilia na organização da festa, além de servir como
mediadora entre os blocos e o poder público ou patrocinadores. Identificamos sete
organizações de blocos em intensa atividade no carnaval de rua do Rio de Janeiro:
Sebastiana, Associação Folia Carioca, Liga Carnavalesca Amigos do Zé Pereira, Liga dos
Blocos e Bandas da Zona Portuária, Liga Rio Afro, Coreto e Desliga dos Blocos
Carnavalescos. Cada liga congrega de dez a quinze blocos. Pensamos a reconfiguração
do carnaval atual a partir de três delas: a mais antiga das ligas, chamada Sebastiana; a
Liga do Zé Pereira, de modelo parecido com a Sebastiana; e a associação com
posicionamento mais radical, a Desliga dos Blocos.
4 Por fim, chegaremos ao significado e as potencialidades da festa carnavalesca a partir
da visão do poder público sobre os blocos. Nosso principal objetivo aqui é entender o
papel da prefeitura, na figura institucional da Riotur, para a organização, gestão e
valorização da tradição dos blocos de rua e de seu carnaval.
Os Blocos
5 Podemos pensar em quatro momentos distintos na história dos blocos de carnaval de
rua na cidade do Rio de Janeiro (Frydberg, Eiras 2015). Um primeiro momento, que vai
do final do século XIX ao início do século XX e que representou o surgimento dos
primeiros blocos, cordões e ranchos que se espalharam na cidade principalmente na
região central. Um segundo momento entre as décadas de 1950 e 1960, em que os
festejos foram diminuindo a partir do golpe de 1964. Foram criados, neste período, um
grande número de blocos, atualmente considerados tradicionais., como o bloco Bafo de
Onça, fundado em 1956, e seu maior rival, o bloco Cacique de Ramos, em 1961. Neste
mesmo período temos a criação da Banda de Ipanema em 1965 por intelectuais que
viram no carnaval um espaço ainda possível de falar de política.
6 Um terceiro momento da história dos blocos de carnaval de rua se iniciou no final da
década de 1970 e permaneceu em crescimento na década de 1980, período da abertura
política da ditadura militar e posterior redemocratização do Estado brasileiro. Podemos
pensar neste período como uma primeira retomada do carnaval de rua, que vai
perdendo a sua força na década de 1990 com o aumento dos casos de violência nos
blocos. E por fim, um quarto momento, chamada por Herschmann (2013) do boom do
carnaval de rua, que se iniciou na primeira década do século XXI. A partir do ano 2000
temos o surgimento de 467 novos blocos de carnaval de rua na cidade do Rio de Janeiro.
7 O Cordão da Bola Preta, fundado em 1918, é um dos poucos representantes iniciais, o
mais antigo ainda em funcionamento e o maior bloco em termos de público. A maioria
dos blocos do primeiro momento desfilavam na região central da cidade do Rio de
Janeiro. Atualmente alguns blocos deste momento foram refundados - como o Fala meu
louro -, criado em 1938 e recriado em 2013, que desfila na região portuária, território
tradicional do samba no Rio de Janeiro.
interrompido porque tinham 20 mil pessoas no nosso bloco. E o que você faz com 20
mil pessoas se você não tem alguém pra organizar o trânsito, pra apitar? Entendeu?
Então vira um caos, com carro parado no meio do bloco, gente querendo andar,
gente querendo sair. Começamos a ver que sozinhos não daríamos conta pelo
tamanho e proporção que aquilo tava ganhando.
Rita Fernandes, Presidente do Imprensa que eu gamo e da Sebastiana, entrevista
para pesquisa6
14 Enquanto a relação com o poder público se dá a partir da organização da cidade para
receber o carnaval dos blocos de rua, a relação destes blocos com o patrocínio privado
está pautada no reconhecimento por parte dos blocos do seu potencial na divulgação
das marcas dos patrocinadores. Assim Rita Fernandes defende que se o patrocínio
respeitar a identidade e a performance do bloco ele só pode ser considerado benéfico
para a realização da festa carnavalesca.
15 Os limites para que o bloco não perca a sua identidade e tradição são fundamentais de
serem estabelecidos para que sirvam de categoria distintiva para com outros blocos,
principalmente os fundados no quarto momento, e tamb ém com patrocinadores e
poder público. Os blocos fundados no terceiro momento, em especial os associados à
Sebastiana, buscam se diferenciar dos blocos fundados no quarto momento através da
valorização de uma tradição mais longa (embora também inventada), de um
conhecimento mais profundo sobre carnaval e, consequentemente, de uma maior
legitimação da sua autenticidade como bloco. No discurso de Rita Fernandes a diferença
do boom do carnaval dos blocos nos anos 80 e nos anos 2000 pode ser estabelecida entre
uma maior ou menor tradição, uma maior ou menor autenticidade. Na década de 80 o
entendimento dos blocos como manifestação cultural e nos anos 2000 a criação dos
blocos por influência da mídia e, principalmente, pelo efeito moda.
Aos poucos, o movimento dos blocos vai crescendo, de pouquinho em pouquinho,
nada como que acontece na década de 2000. Na década de 2000, a gente tem um
boom, mas aí é um boom diferente. É um boom motivado pela mídia, é um boom do
modismo, da mídia, do excesso de exposição. Primeiro, vem um crescimento pouco
a pouco, porque mais gente de fato vai entrando nesse movimento cultural como
movimento cultural.
Rita Fernandes, Presidente da Sebastiana e do bloco Imprensa que eu gamo,
entrevista para pesquisa7
16 Essa nova retomada do carnaval dos blocos de rua na cidade do Rio de Janeiro no século
XXI se caracteriza por uma mobilização de jovens de classe média, que ocupam de
forma mais significativa o centro e a zona sul da cidade com a sua festa carnavalesca.
Este fenômeno pode estar associado ao surgimento de blocos com perfis mais jovens,
como Monobloco e Bangalafumenga, e com estilos musicais mais diversificados, como
Sargento Pimenta e Orquestra Voadora (Herschmann, 2013). O carnaval dos blocos de
rua na cidade do Rio de Janeiro hoje possui como característica específica a criação de
blocos associada às oficinas de percussão, que ao mesmo tempo que produzem músicos
para tocar no carnaval, também criam um gosto por essa expressão musical. Desta
forma, podemos pensar estes novos blocos de carnaval criados pós-anos 2000 como
expressões dos prosumidores proposto por Canclini (2012), ou seja, brincar o carnaval do
Rio hoje é ser, ao mesmo tempo, produtor e consumidor da festa. E são com essas
características que os blocos são criados e que toda uma juventude ingressa no universo
do carnaval de rua atual.
Do Quizomba, depois eu fui para o Monobloco. E aí eu tenho, por exemplo, o Desliga
da Justiça, que é todo mundo da oficina do Quizomba. O Fogo e Paixão, que eu
também participei no primeiro ano da criação, Bangalafumenga, Monobloco e
E paralelo a isso, por influência da internet, a gente começou a ver que lá fora nos
EUA e na Europa as bandas de fanfarras, as bass bands, elas não ficavam restritas só
ao repertório tradicional de marchinhas, de dobrados, de músicas marciais. (...)
Então aliado a isso a gente começou a ver que podia com essa formação de fanfarra
podia tocar qualquer coisa que ficava legal. A gente começou a puxar uma música
do Michael Jackson e ficou maneiro. Começou a fazer um Tim Maia e ficou legal.
Então a gente começou a ver que da brincadeira tinha muito pano para manga.
Então depois do carnaval de 2008 a gente ficou o ano de 2008 quase que todo,
ensaiando todo o domingo! (...) Então a Orquestra Voadora surgiu assim! Surgiu de
uma galera que tocava carnaval, tocava só marchinha e samba no carnaval de rua.
De tanto se encontrar, resolvemos montar uma banda que tocasse outras coisas
além de marchinhas. (…) É o seguinte, a Orquestra Voadora nasceu como uma banda
e não como um bloco! Só que obviamente uma banda que nasceu do carnaval.
Quando chegou o carnaval de 2009, um ano depois, a gente: - Vamos fazer um cortejo
de carnaval! (…) E a cada ano cresce mais o nosso bloco. Então o que aconteceu, a
Orquestra Voadora é uma banda que já nasceu com um bloco, mas é uma banda. É
uma banda que ensaia para se apresentar como banda, os arranjos pensados como
banda.
Tiago Rodrigues, músico da Orquestra Voadora, em entrevista para pesquisa 9
19 Os blocos desse novo período já nascem com espírito empreendedor, associando o
carnaval à festa, mas também às possibilidades de profissionalização. Esses blocos
fundados por prosumidores possuem algumas características próprias como:
institucionalização e organização dos blocos de carnaval através de escritórios e
administração; criação de bloco show ou banda para realização de apresentações
durante todo o ano e não somente no período carnavalesco; disseminação de oficinas de
carnaval que ao mesmo tempo que ensinam a linguagem da música carnavalesca,
também possuem um produto de venda; ampliação da noção de música de carnaval
para além do samba e das marchinhas através da carnavalização de outros gêneros
musicais, possibilitando uma ampliação do público dos blocos. Constrói-se com esses
novos blocos de carnaval de rua uma nova configuração da festa.
As Ligas e Associações
20 As ligas e associações são formas coletivas e colaborativas de reunião de blocos com o
objetivo de ampliar seu poder de negociação, tanto para com o poder público como
para com possíveis patrocinadores. Uma das principais funções das ligas é a busca por
financiamento através de empresas privadas e a posterior redistribuição do dinheiro
conseguido entre os blocos que fazem parte da associação. Assim funcionam as ligas
como a Sebastiana, mais antiga e reconhecida, e a Liga do Zé Pereira.
21 A Sebastiana10 foi fundada em 2000 por organizadores de alguns dos blocos tradicionais
que haviam sido criados na retomada do carnaval na década de 1980. Ao verem a forma
grandiosa que o carnaval dos blocos de rua estava tomando, associado a um aumento da
violência na festa, esses organizadores decidiram se reunir em uma associação para
poder ter uma voz mais ativa perante o poder público e a reivindicação da necessidade
de organização que a festa requeria. Atualmente a Sebastiana é a liga mais consolidada
e reconhecida no universo do carnaval dos blocos de rua do Rio de Janeiro, e,
consequentemente, a com maior interlocução tanto com o poder público quanto com
empresas privadas interessadas em investir no carnaval.
A Sebastiana é um movimento associativo. Isso tudo foi sendo desenvolvido,
construído, o papel foi mudando. Primeiro foi uma interface com o poder público, a
primeira coisa. Precisa de um agente pra conversar com o poder público e não pode
ser bloco a bloco. É melhor que tenha um porta-voz, um agente, que fala em nome
de todo mundo. Na época e ainda agora a gente continua falando em nome de 12,
mas são 12 blocos muito representativos porque são blocos dessa retomada. São
blocos com 30 anos. Não são blocos que acabaram de acontecer nesse movimento
emergente.
Rita Fernandes, Presidente da Sebastiana e do bloco Imprensa que eu gamo,
entrevista para pesquisa11
22 A busca por patrocínio de empresas privadas é um dos pontos centrais da atuação da
Sebastiana com relação aos blocos que a compõem, construindo a possibilidade de uma
negociação mais efetiva com os patrocinadores que garanta o financiamento do bloco.
Ao mesmo tempo que o patrocínio é fundamental para financiar a festa, ele pode tornar
os blocos um negócio, considerado por muitos como um desenvolvimento da
comercialização/mercantilização do carnaval. Rita Fernandes salienta que este
processo pelo qual a carnaval carioca vem passando possui relação com o boom atual
dos blocos, influência do efeito moda, que fez com que fossem criados novos blocos
exclusivamente com intuito comercial.
23 A Sebastiana se coloca contra o processo denominado de “baianização” do carnaval do
Rio de Janeiro, ou seja, a venda de camisetas ou abadás e o uso de cordas isolando quem
as possui. O modelo do carnaval baiano é construído no discurso desses agentes como o
outro que deve ser evitado, aquele carnaval que já sucumbiu à lógica do mercado
sofrendo um processo de comercialização/mercantilização. Esta é a dicotomia central
presente no discurso carnavalesco, o carnaval dos blocos de rua na cidade do Rio de
Janeiro pensado como manifestação cultural em oposição a uma comercialização/
mercantilização apontada no carnaval baiano. A “baianização”, ou melhor a luta para
que ela não aconteça, é uma ação central da entidade.
No momento em que você coloca um bloco na rua, ele é pra quem quiser entrar.
Afinal, a rua é pública. Se você e os seus amigos querem festejar daquela forma, é
uma festa pública. Naturalmente, você está obrigado a receber quem chega. Então
você não pode colocar uma corda ou delimitar um território. Se você quer delimitar
um território, você vai fazer uma festa fechada num lugar fechado.
Rita Fernandes, Presidente da Sebastiana e do bloco Imprensa que eu gamo,
entrevista para pesquisa12
24 Para dar conta da “baianização” do carnaval carioca a Sebastiana entrou com um
pedido junto ao IPHAN (Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) para
reconhecer o modo tradicional de brincar o carnaval dos blocos de rua no Rio de
Janeiro como patrimônio imaterial do Brasil. Assim através do reconhecimento de uma
tradição e de seu valor histórico e simbólico o carnaval dos blocos de rua se protegeria
do desgaste possível gerado pelo efeito moda e, principalmente, de uma possível
descaracterização das suas tradições. Com essa ação a Sebastiana oficializa o
entendimento de que existem modos mais ou menos autênticos e tradicionais de
brincar o carnaval dos blocos e, desta forma, blocos mais ou menos legítimos da
tradição desta festa.
Nosso segundo movimento, foi esse de levar a ideia pro IPHAN pelo seguinte:
quando começa este momento de comercialização do carnaval e de certa
banalização do tema porque o tema está banalizado. Nós não estamos gostando
disso. Está banalizado na mídia, na própria ação dos blocos. A gente começou a
achar que precisávamos fazer um movimento ideológico pra que a gente
preservasse o carnaval na sua essência e nas suas características originais. Daí
surgiu a ideia do IPHAN. “Vamos pedir pra transformar em patrimônio, em
O Poder Público
29 Embora os blocos e as ligas e associações possam se relacionar com o poder público em
diferentes níveis, é, sem dúvida, a Prefeitura Municipal do Rio de Janeiro a principal
instância organizadora da festa ao pensarmos no carnaval dos blocos de rua na cidade.
A prefeitura é a responsável pela garantia da infraestrutura da festa e da manutenção
de serviços básicos como controle do trânsito e limpeza urbana. Vários são os órgãos da
prefeitura que ajudam na organização da festa, como a Secretaria de Ordem Pública,
por exemplo, mas atualmente a gestão do carnaval, seja dos blocos ou das escolas de
samba, está centralizada no órgão de turismo da prefeitura, a Riotur.
30 Foi a partir de 2009 que a Prefeitura do Rio de Janeiro passou a se envolver oficialmente
nos desfiles dos blocos de rua do carnaval, passando a entender-se como agente
fundamental na organização e gestão da festa. O carnaval de rua carioca é organizado
através de licitação para estruturação da folia e da possibilidade de quatro
patrocinadores oficiais, uma financiadora master e tr ês financiadoras de apoio. Essa
licitação é, desde a sua primeira edição em 2011, vencida pela mesma empresa,
conhecida por produzir um megaevento ligado à música, e os patrocinadores são,
geralmente, empresas de bebidas alcoólicas e/ou bancos, com previsão de investimento
em torno de 20 milhões de reais.
31 Em 2013 foi instaurado também um processo de avaliação dos blocos com o objetivo de
organizar os desfiles. As avaliações são realizadas pela Comissão Especial dos Blocos de
Rua, criada através do Decreto 37182/13, que tem como objetivo avaliar, a partir de
critérios como a tradição das agremiações, o local do desfile, a estimativa de público, as
características do bloco em relação ao carnaval de rua carioca e ao bairro onde
pretende desfilar e os impactos causados no dia a dia da localidade 15, autorizando ou
não o seu desfile. Essa aprovação é vista por alguns blocos e ligas como benéfica, pois
ajuda na organização e gestão da festa, impedindo assim, por exemplo, que dois blocos
saiam no mesmo dia, no mesmo horário e com a intenção de fazerem o mesmo
percurso. Esta mesma ação é vista por outros blocos e ligas, como a Desliga dos Blocos,
como a burocratização da festa carnavalesca. Com este argumento associado ao direito
a cidade, muitos blocos não pedem autorização da prefeitura e saem de forma não
oficial.
32 Apesar dessa aproximação do poder público municipal com a festa, esta participação
permanece se dando apenas no âmbito estrutural e institucional da organização, pois a
preocupação da Prefeitura é garantir que o carnaval de rua aconteça na cidade do Rio
BIBLIOGRAFIA
CANCLINI, Néstor Garcia et al. (orgs.). 2012. Jóvenes, culturas urbanas y redes digitales. Madrid:
Fundación Telefónica.
FRYDBERG, Marina Bay, EIRAS, Rebeca Eler de Carvalho. 2015. "Contribuições para pensar a
economia da festa através dos blocos de rua na cidade do Rio de Janeiro". In:, F. L. Castro, M. F. P.
Telles (orgs.). Dimensões econômicas da cultura: Experiência no campo da economia criativa no Rio de
Janeiro. Rio de Janeiro: Lumen Juris, pp. 195 - 224.
HOBSBAWM, Eric & RANGER, Terence. 1984. A Invenção das Tradições. Rio de Janeiro: Paz e Terra.
Entrevistas
Pedro Ernesto, Presidente do Cordão da Bola Preta, entrevista para pesquisa em 23 de setembro
de 2014.
Rita Fernandes, Presidente do Imprensa que eu gamo e da Sebastiana, entrevista para pesquisa
em 22 de junho de 2014.
Decretos e Leis
NOTAS
1. Uma parte desta discussão foi apresentada no grupo de trabalho Actores sociales, políticas
culturales y performances en ciudades contemporáneas, na XI Reunión de Antropología del
Mercosur. Agradeço a contribuição de todos sobre o trabalho.
2. Fundado em 1867 como sociedade carnavalesca, atua hoje em dia como clube recreativo. Mais
informações sobre o clube em http://www.clubedosdemocraticos.com.br/.
3. Entrevista realizada em 23 de setembro de 2014.
4. Entrevista realizada em 23 de setembro de 2014.
5. Entrevista realizada em 22 de junho de 2014.
6. Entrevista realizada em 22 de junho de 2014.
AUTOR
MARINA BAY FRYDBERG
Professora do Departamento de Arte e do Programa em Pós-Graduação em Cultura e
Territorialidades da Universidade Federal Fluminense.
Doutora em Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
marinafrydberg@gmail.com
Introdução
Em mim
eu vejo o outro
e outro
e outro
enfim dezenas
trens passando
vagões cheios de gente
centenas
O outro
que há em mim
é você
você
e você
Assim como
eu estou em você
eu estou nele
em nós
e só quando
estamos em nós
estamos em paz
mesmo que estejamos a sós
Contranarciso - Paulo Leminski
1 Todos os dias somos colocados frente a frente com milhares de estímulos, visuais,
linguísticos, gestuais, que por serem tantos, nosso olhar e atitude se tornam blasé a
muitos deles, como bem analisou Simmel (1987). Mas, mesmo diante de tantos
estímulos, é difícil olhar com neutralidade e ter um comportamento asséptico a certas
cenas que se comunicam de forma gritante. Diante de uma situação de comunicação
corporal intensa, nos defrontamos com Simmel, Bourdieu, Le Breton e tantos outros,
nos confrontamos conosco e com o pensamento hegemônico da sociedade. O
acontecimento foi na Avenida chamada Brasil, que só pelo nome já carrega o ethos da
diversidade. A avenida que liga a cidade do Rio de Janeiro de ponta a ponta, que deu
nome e fama à teledramartugia brasileira, que recebe milhares de carros que passam no
asfalto cinza e concreto, que tem um espaço aberto às pessoas que se “abrigam” nessa
via urbana que tudo parece abraçar. Já se tornou habitual ver nas manchetes de jornais,
moradores de rua, usuários de crack (reconhecido pela população como cracudos)
invadirem as estradas da avenida se colocando em frente aos carros em alta velocidade,
numa cena que parece conter a total abnegação de seus corpos. O fato de colocarem o
corpo em evidência no cotidiano da rua e exibi-los a cenas de perigo, para muitos põe
em cheque suas concepções de vida, pois o resguardo do corpo atua como ação
simbólica da blindagem e prevenção à vida. É o corpo como vetor de diálogo constante,
como assinalado por Bourdieu:
o corpo funciona como uma linguagem pela qual mais se é falado do que
propriamente se fala, uma linguagem da natureza, onde se trai o mais escondido e o
mais verdadeiro simultaneamente, porque o menos conscientemente controlado e
controlável, e que contamina e sobredetermina com suas mensagens percebidas e
não percebidas todas as expressões intencionais, a começar pela palavra (Bourdieu
1977: 01)
2 Observamos, porém, que as formas e usos da corporalidade nunca são uniformes. Elas
geralmente estão inscritas nos sistemas simbólicos e sociais que se inserem,
participando de um universo de significados e práticas. Neste texto, queremos explorar
essa questão por meio da análise de um episódio particular: a defecação de um cracudo
(e a sua higienização) a luz do dia diante dos muitos carros que passavam pela avenida
Brasil. Se, à primeira vista, o episódio aparentaria para muitos uma prática
“animalesca”1, uma análise mais pormenorizada do mesmo nos revelou códigos de
interação social marcados pelos usos diferenciados do corpo no urbano.
droga. O que o diferencia dos demais usuários é que este é ser um drogado – a droga
está como que entranhada na sua natureza - que traz problemas à sociedade. Sobre ele,
pesa uma acusação social que constrói uma sujeição sobre suas práticas, valores e
comportamentos. Por vezes, a condição de exclusão é tão impactante que o sujeito não
vê outra solução a não ser assumir o papel de outsider (Becker, 2009) e abraçar as
representações já existentes sobre si, o que acaba reafirmando as convicções
socialmente construídas em uma espécie de círculo vicioso.
5 Acreditamos que a adesão a condição de “usuário problema”, no nosso caso o cracudo,
se coaduna com as desigualdades e preconceitos já existentes na sociedade brasileira.
No geral, a diferenciação real entre o usuário recreativo e o usuário problema muitas
vezes passa pela condição de cor ou de classe. Tal processo ficou evidente diante da
comoção pública causada pelo episódio do “mendigato”4, como assim foi apelidado o
morador de rua em Curitiba e usuário de crack Rafael Nunes. Em outubro de 2010, uma
foto do ex-modelo, de olhos claros e aparência nordica - , nas ruas, vestido como um
mendigo, chocou o Brasil inteiro. Rapidamente, sua foto foi compartilhada 40 mil vezes
nas redes sociais. O impacto se deu pelo fato de um rapaz de tamanha beleza estar nas
ruas. Todos os meios de comunicação, inclusive os internacionais 5 -, correram logo
para descobrir a sua história e origem, e o comentário era geral e incessante, e essa
repercusão descomunal se deu já que Rafael não correspondia ao perfil étnico, estético
e social dos demais cracudos e moradores de rua. Se trata com normalidade que os mais
pobres e negros tenham uma carreira moral de envolvimento com as drogas ou com a
vida nas ruas e a rejeição à existencia de um mendigo/cracudo sem as expressões que
representam essa camada só alarga a dimensão e profundidade do estereótipo
fundante, que é reificado de tal modo que “restam poucos espaços para negociar,
manipular ou abandonar a identidade pública estigmatizada (...) engloba processos de
rotulação, estigmatização e tipificação numa única identidade social (...) e não como um
caso particular de desvio”. (Misse 2010: 23).
6 Ao observar as relações entre esses usuários de crack e seus territórios por excelência,
que são apelidados de cracolândias, é possível desconstruir facilmente essa
representação generalizada dos cracudos como pessoas associáveis, perigosas ou
essencialmente problemáticas. Percebemos as cracolândias como comunidades morais,
como espaços com seus ordenamentos formulados e pensadas por seus moradores,
observando “a vida precária como criadora de fronteiras de construções morais no
espaço público” (Das e Pooole 2004). Partimos do princípio que há sim reflexividade
entre eles, que rompem com o contrato social hegemônico no qual estão submetidos e
dentro dos seus territórios constroem outro contrato próprio deles e para a
sociabilidade deles, com seus próprios valores e moralidades. Nessa sociabilidade se
constituem a formação no cotidiano de suas redes de solidariedade, a dimensão do
outro nas relações e como se dá a opção de diálogo por meio de sua corporalidade, onde
apresentam sinais de capacidades reflexivas e comunicativas, como vemos no caso
relatado a seguir.
não há uma autopreservação no meio de moradores de rua, que façam ou não uso de
drogas. Uma cena ocorrida na Avenida Brasil apresentou a união da consciência
corporal com questões morais, sociais e afetivas. No horário do rush, com trânsito
intenso, um dos homens que lá habita fazia as suas necessidades na rua, defecando
perto de onde estava seu grupo. O que chamou a atenção era que ao se limpar virou de
costas para a avenida e para os carros que estavam a passar, deixando as partes mais
reclusas do corpo humano à mostra, se limpando naturalmente. No entanto, era notório
que havia uma tensão ali, pois enquanto se limpava olhava incessantemente para o seu
grupo tentando se esconder, à medida que se escondia dos companheiros conhecidos se
mostrava ainda mais para toda a avenida Brasil. Esse jogo de representações mostra que
o homem tinha a exata noção de que esse era um momento de intimidade, que
pertencia ao espaço privado e, também, sabia do poder de comunicação que seu corpo
possuía, já que:
Desprovidos de bens materiais, sem casa, absolutamente fora das práticas de
consumo, envelhecendo na rua, o corpo é o único suporte que lhes resta e que lhes é
irredutível. Nesse sentido, a trajetória do morador de rua é eminentemente
corporal: o corpo traz a visibilidade dos processos que marcam a homogeneização
política desta categoria e as suas distintas formas de se relacionar com o espaço
urbano; é sobre ele que se projetam as contínuas e sucessivas intervenções e
manifestações de violência que atualizam cotidianamente as tentativas de exclusão
desse segmento; mas é também a partir do corpo que surgem as possibilidades de
resistência do morador de rua à exclusão. [...] o corpo atua como uma atividade
simultaneamente física, simbólica, política e social, que se constrói na relação com
outros corpos e na interface com a dimensão espacial e social das ruas da cidade.
(Rui, 2010: 804).
8 O fato de deixar-se completamente visível para toda a estrada e apenas de preservar
sua intimidade dos seus conhecidos levanta algumas hipóteses, pois “compreender a
comunicação é também compreender a maneira como o sujeito, de corpo inteiro, nela
participa” (Le Breton 2009: p. 40). Sabendo que a corporalidade dessa categoria
(morador de rua e/ou usuário de droga) é, simultaneamente, social e individual, vemos
que ele está sempre resistindo, material e simbolicamente, a diversas atitudes, como à
sua extinção na cidade. Isso pode se mostrar por meio de um processo reflexivo, onde
ele é o ator que subverte, de forma radical, o sentido homogeneizador do espaço da rua,
ao condensar em sua figura a dimensão pública e privada de sua vida.
9 O entrelaçamento entre público e privado é externalizado por ações no qual o corpo
opera como elemento principal, catalisador e propulsor do que eles são, é o corpo como
discurso, mas, como todo discurso, está aberto às interpretações subjetivas de quem os
lê (vê). E nessa situação citada é possível dimensionar a reflexão por duas óticas. O fato
do homem se preocupar apenas com seu grupo durante o momento de intimidade e se
colocar alheio a todos que passavam e o viam, pode representar uma reação consciente,
de expurgar e colocar o espetro e a excreção para fora como ato simbólico do que ele
representa para a sociedade e o que a sociedade representa para ele, esse seria um
revés da invisibilidade da qual sofrem por aqueles os tolhem do olhar sem
discriminação. O fato de mostrar, a sol aberto, o tabu da sujeira, da imundície corpórea,
pode agir também como um protesto racional, revelando sentidos argutos para
perceber a abjeção e objeção a esses “corpos-espécies”. Ou então pode ser lido como a
indiferença natural vinda dele próprio, pois tendo já recebido todo grau de exclusão,
passa a ter o mesmo olhar de torpor e abnegação, na qual, a sociedade para ele também
é invisível. Seja qualquer uma das hipóteses, é expressa a consciente valoração que dá a
sua sociabilidade particular, pois tendo a exata noção de intimidade, do tabu corporal
escolhe se importar somente com o grupo o qual pertence. Tudo isso se dá apenas na
relação com o seu meio e não há espaço para qualquer tipo de vergonha de exposição
para quem “não o interessa”.
10 Essa hipótese dialoga com a tese central de Frangella (2009) de que “no momento
mesmo em que parecem inclinados a permanecer reclusos em seus limites de sujeira, de
marginalidade e de não posse, acabam por construir uma retórica pedestre resistente
que só pode ser entendida em relação a ideologias políticas e econômicas oficiais de
ordenação do espaço”. (Rui 2010: 804). O ato de se limpar publicamente, mostrando suas
“impurezas” denota uma metonímia do todo exemplificado por Frangella, pois é
através do corpo que eles criam possibilidades de agência. Essa corporeidade deles
“reside no avesso daquilo que o imaginário urbano cria e formata” (Rui 2010: 804),
porque realçar e colocar com limpidez seu atributo corporal mais destacável – a sujeira –
faz com que ignore o que é motivador de vergonha e isolamento para transformar em
símbolo de proteção.
A simbólica corporal traduz a especificidade da relação com o mundo de certo
grupo num vínculo singular e impalpável, mas eminentemente coagente [...] O
individuo habita seu corpo em consonância com as orientações sociais e culturais
que se impõem, mas ele as remaneja de acordo com seu temperamento e histórias
pessoais. (Le Breton 2009: 41).
11 Le Breton (2009) constrói um plexo entre corpo, natureza e cultura articulando-os com
questões que vão do orgânico ao simbólico, da razão a emoção. A partir de sua obra
podemos alargar os pensamentos acerca dessa ilustração, que representa tantas outras,
na qual se reconhece o corpo como carne no mundo capaz de se transformar
constantemente, mostrando a elasticidade corpórea e sua simbiose com o meio social.
Como apontado no exemplo acima, o corpo produz conhecimento através de suas
experiências sensíveis, dando pistas abertas sobre quem é ao se relacionar com quem
está a sua volta, visto que “existe uma inteligência do corpo da mesma forma que existe
uma corporeidade do pensamento; entretanto, isso apenas demonstra a existência de
um sujeito, o qual pertence a sua carne da mesma forma que essa lhe pertence numa
relação ambígua que é a própria relação humana” (p. 44).
12 Ao seguir a trilha desse autor, vemos uma linha teórica que enfatiza o papel do outro
na relação do ser humano com o mundo, mostrando que um só se constrói na
perspectiva do outro, pois a construção e metamorfose corporal estão imbricadas na
social e cultural, “o outro é condição do simbolismo que o configura e do qual ele se
serve para comunicar-se com os outros”.
Os inúmeros movimentos corporais empregados nas interações enraízam-se na
afetividade individual. Da mesma forma que a pronúncia de uma palavra ou o
silêncio numa conversa, eles nunca são neutros ou indiferentes, manifestando uma
atitude moral em relação ao mundo e oferecendo ao discurso ou ao encontro uma
corporeidade que lhes acrescenta ulteriores significações. (Le Breton 2009: 39).
13 Para abalizar a importância do papel do outro nas relações, Le Breton usa o caso dos
meninos selvagens, em que um deles é retratado no filme “Garoto Selvagem”. O
exemplo dos meninos selvagens, criados apartados de qualquer civilização é um
modelo, por excelência, da capacidade de elasticidade do corpo, até que ponto ele pode
ser desenhado pelo outro. No filme, um menino, ainda criança, é encontrado numa
floresta da França e levado para se socializar numa instituição para surdos e mudos, já
que não falava e, aparentemente, não respondia aos sons altamente perceptíveis.
Observando seu andamento, um pedagogo solicita levar o menino para a sua casa para
ali fazer pesquisas e tentar socializá-lo. No relato do pedagogo, as emoções do menino
não parecem afetadas mesmo tendo sido abandonado, pois ninguém o viu chorar na
instituição. Ele só demonstrava satisfação nos passeios do parque, pois ali estava a
alegria de voltar ao conhecido, ao que lhe dava estabilidade, um retorno às raízes de
onde seu corpo fora completamente moldado. Já não podia mais viver distante da vida
que se adaptou, era movido por uma memória afetiva de plena liberdade.
14 O método utilizado pelo professor era transformar o prazer em forma de obrigação,
assim o menino recebia a recompensa do prazer após realizar os exercícios. E nesse
ponto o “garoto selvagem” nos mostra como a relação linguagem e prazer é filigranar,
pois ele não se comunicava quando pretendia ou tinha o desejo de fazer algo, só
conseguia estabelecer comunicação após o prazer, falava, apenas, com o desejo
alcançado. Como o caso do leite, no qual ele conseguia falar a palavra lait depois que
recebia o copo cheio, a linguagem operava como agradecimento pelo prazer dado. Tal
comportamento leva o professor a pensar que a obediência ocorre somente por medo
ou pela recompensa e não por compreender a ordem moral. Para ele, ainda não havia
sido possível ensiná-lo o sentido de justiça, assim, decide fazer um teste, punindo-o
quando ele acerta um exercício e vê que prontamente ele se revolta, mostrando um
sentido de justiça eminentemente humano, remetendo assim para o sentido ontológico
que esse significado assume.
15 Essa digressão com o filme foi feita para refletir que há questões inatas que irão se
mostrar frente aos acontecimentos. A partir dessas duas cenas assistidas – a da Avenida
Brasil e a do “garoto selvagem” – podemos inferir o poder de transformação do corpo e
do comportamento, o sentido de justo e injusto que parece ser, no humano, colocado
nos momentos propícios, sendo esse ensinado, ou não, sobre a ordem justa e moral das
coisas. Ainda que se encontrem em pólos distintos, o exemplo do menino selvagem
pode se articular com a atitude do morador de rua e/ou cracudo, no sentido de
atribuírem suas questões morais através da corporeidade. No caso contemporâneo,
observa-se o valor e domínio do corpo do homem, ao se esconder dos membros de sua
comunidade e mostrar-se em plena Avenida Brasil, assim como a relação dele com seu
próprio corpo e com o que é constituído como tabu. Segundo Le Breton, eles estão
“inseridos numa interação, [onde] os locutores acordam sobre uma trama de regras.
Uma gramática dos comportamentos indica os atores à maneira conveniente de situar-
se frente ao outro” (Le Breton 2009: 53), mas ao dialogar com Maurice Merleau-Ponty,
“pode-se dizer que, no homem, tudo é ao mesmo tempo fabricado e natural.” (Merleau-
Ponty 1945 apud Le Breton 2009: 5). Nessa teia entre o fabricado e o natural vemos uma
moral própria do humano que se molda àquele que a expressa, o que se encaixa com o
“paradoxo do ator” de Le Breton, cujo ator é o criador das significações que ordenam a
sua existência, assim como aquilo que deseja expressar para a plateia.
O laboratório das paixões ordinárias, ou seja, o palco teatral é um espaço que revela
a contingência social, no qual o conteúdo representado é reconhecido pela platéia.
Considerado como um profissional da duplicidade, o ator altera seus sentimentos
pessoais e constrói emoções adequadas ao que cada cena lhe exige. Inventor de
emoções e de identidades provisórias, o corpo do ator configura-se como uma
narrativa que sofre nuanças, articulando o orgânico com o simbólico e
problematizando os esquemas inatos. (Mendes e Porpino 2011: 544)
Conclusão
16 Voltando a problemática da corporalidade para a questão contemporânea da
população de rua e dos usuários de droga, a crítica vai ao encontro de visões que voltam
seu foco, apenas, para resoluções pessoais que tendem a reduzir um debate complexo. O
perigo de tais concepções é considerar o uso de soluções extremas, das quais ignoram o
poder reflexivo deles, já que, ao mesmo tempo em que se encontram num estado de
vulnerabilidade, pode-se acrescentar um estigma, que é o da droga. Entretanto, a
despeito da mudança de comportamento na vida social, de uma nova sociabilidade, da
maculação do caráter ou até mesmo da alma, a hipótese é de que os chamados cracudos e
aqueles que vivem na rua, não só racionalizam sobre a sua própria condição, como
também fazem planos, sonham e vivem o mundo no mesmo plano de expectativas que
os “cidadãos comuns” e essas são abertamente sinalizados a partir de suas práticas
corporais.
17 Portanto, tais territórios, não podem ser definidos somente por cenas emolduradas, há
muito mais além de um quadro de pessoas com olhos vermelhos, olhar perdido, corpo
franzino, cachimbo na mão, roupas velhas e pés descalços. Essas cenas mostram que, da
cabeça aos pés, eles estão marcados por uma diferenciação, por uma condição de
subalternidade social. A imagem, ao contrário do que se mostra, não é estática, mostra
nuances, que nos move a uma reflexão acerca dos motivos que os levou a essa fotografia
em preto e branco; da posição em relação ao mundo social; sobre quais categorias
sociológicas podemos analisá-lo e quais engrenagens políticas que se articulam. Afinal,
uma figura encena uma multiplicidade de indagações, que não podem cessar em
simples suposições ou juízos de valor. Numa perspectiva de voltar num processo
cultural, histórico e político, não podemos incorrer no equívoco de diminuir algumas
trajetórias pessoais e situações isoladas a uma conjuntura descontextualizada que por
vezes retira do outro o que o faz e o torna sujeito do mundo e absolve, levianamente, o
tornando alienado de suas ações.
BIBLIOGRAFIA
BECKER, Howard. 2008. Outsiders: Estudos de sociologia do desvio. Rio de Janeiro: Zahar.
BOURDIEU, Pierre. 1977. “Remarques Provisoires sur la Perception Sociale Du Corps”. Actes de Le
Recherche em Scienses Sociales nº14: 51-54.
DAS, V.; POOLE, D. 2004. Anthropology in the Margins of the State. Santa Fe: SAR Press.
FRANGELLA, Simone M. 2009. Corpos urbanos errantes: uma etnografia da corporalidade de moradores
de rua em São Paulo. São Paulo: Anablume, Fapesp.
LE BRETON, David. 2009. As paixões ordinárias: antropologia das emoções. Petrópolis: Vozes.
MENDES, M. I. B.; PORPINO, K. O. 2011. “Resenha da obra As paixões ordinárias”. Rev. Bras. Ciênc.
Esporte v. 33 nº. 2: 541-544.
MISSE, Michel. 2010. “Crime, sujeito e sujeição criminal: aspectos sobre uma contribuição
analítica sobre a categoria de bandido”. Lua Nova n. 79: 15-38.
RUI, Taniele. 2010. “Resenha do livro Corpos urbanos errantes: uma etnografia da corporalidade
de moradores de rua em São Paulo”. Revista de Antropologia v. 53 nº 2: 800-808.
SIMMEL. George. 1987. “A Metrópole e a Vida Mental”. In: VELHO, Otávio G (org.). O Fenômeno
Urbano. Rio de Janeiro: Ed. Guanabara. Pp. 11-25.
NOTAS
1. Usamos a palavra “animalesca” apoiados na representação geral que aponta o cracudo como
alguém em processo de desumanização. Prova tal afirmação as caracterizações comumente
dirigidas pela população aos usuários de crack que circulam pela cidade: parasitas, animais e
zumbis.
2. O Crack é uma droga que inicialmente era feita com o refugo da cocaína e, de tão potente, os
traficantes acabavam perdendo a clientela, pois viciava rapidamente, o que causava um grande
número de morte dos consumidores. O efeito é mais intenso que o da cocaína porque a presença
da substância ativa excitante é muito maior que o da droga inalável. Como estratégia de venda,
acrescentaram outras substâncias, passando não mais a ser somente a sobra da cocaína mas uma
mistura da pasta base de coca concentrada com bicarbonato de sódio. Atualmente, o crack pode
ser obtido de duas formas: pelo cloridrato, onde sua confecção é caseira e de pequena escala, e a
partir da pasta-base, onde sua confecção é mais industrializada. Só no final da década de 1980 o
crack chegou ao Brasil, na cidade de São Paulo.
3. No Brasil eles podem ser identificados por outros nomes como nóias, craqueiros e zumbis.
4. A tamanha ressonância do personagem fez com que fosse criado até uma página no facebook
com tiras sarcásticas com o fato de ser um mengigo bonito: https://www.facebook.com/
Mendigato
5. Reportagem do site G1 sobre matéria do jornal britânico Daily Mail citando caso do mendigo
gato: http://g1.globo.com/pr/parana/noticia/2012/10/jornal-britanico-repercute-caso-do-
mendigo-gato-de-curitiba.html
AUTORES
BEATRIZ BRANDÃO
Doutoranda em Ciências Sociais – PUC-Rio
E-mail: bia.brandao18@hotmail.com
4 Deste ponto, avistava-se toda a cidade de Mariana sem nada demonstrar de diferente de
outras localidades mineiras, a não ser pelo número de igrejas a destacar-se dos demais
telhados das construções. Seguimos até um ponto turístico ao lado, a igreja de São
Pedro dos Clérigos (Fig. 2), uma das três únicas barrocas de Minas, construída em 1731.
que, para os moradores, gerava empregos e renda. A lama, segundo ele, ficava a mais ou
menos 47 km de lá, mas a cidade mesmo, em nada foi prejudicada pelos rejeitos.
Enquanto conversávamos, o caderno de esportes aguardava a volta da leitura em cima
da pequena mesa onde o caderno de visitas ficava exposto.
6 Saindo desta que era a primeira das dezenas de igrejas espalhadas pela cidade,
descemos por uma rua de paralelepípedos, observando as residências e moradores em
seu cotidiano até a praça das “igrejas gêmeas” (Fig. 3).
Figura 5 – Reportagem de capa do jornal “O Espeto”, em sua edição de número 393, da primeira
semana de junho de 2017
8 Neste local, um guia turístico explicava aos visitantes, reunidos em pequenos grupos, a
maioria de idosos, a história da cidade e seu monumentos. Após sua explicação, em um
momento de descontração do mesmo, pudemos conversar um pouco sobre a atual
situação da cidade. Para o profissional, que também é morador local, é um “pecado” o
que fizeram com Mariana na mídia. Nada do que mostraram é visto por ali. Nada de
tragédia. A cidade só foi prejudicada com o fechamento da empresa, gerando muito
desemprego. Segundo ele, centenas de trabalhadores mudaram de estado ou de cidade
em busca de trabalho. Para ele, a fundação Renova tem buscado retomar as atividades.
9 Acompanhando o fluxo de moradores e turistas, com carros emplacados com as mais
diversas cidades e estados do país, seguimos até uma típica praça de cidades do interior
(Fig. 6). Arborizada, com um coreto central, um pequeno lago, vendedores ambulantes,
crianças brincando e diversas famílias aproveitando o clima agradável e a rotina
aparentemente inalterada de uma cidade histórica. O local em nada lembrava as capas
de jornal e revistas com fotos da tragédia ocorrida em 2015. Tudo muito diferente do
que imaginávamos encontrar. Ali, sentamos para um sorvete, enquanto observávamos a
rotina.
11 Caminhamos por certo tempo entre as ruas de comércio de artesanatos, descendo rumo
aos estabelecimentos comerciais típicos de qualquer outra cidade, um pouco afastada
do centro histórico. Nesta parte, percebemos uma igreja em restauração. Diversos
outros monumentos arquitetônicos da cidade encontravam-se em processo de
deterioração bastante avançado.
12 Procurando um local para um lanche, chegamos a uma pequena praça, próxima ao
Terminal Turístico Manoel da Costa Atayde, ao lado de dois pontos de ônibus (Fig. 8),
onde uma faixa chamava atenção. Fixada na parte de cima de um comércio, local de
grande circulação de moradores e principalmente de turistas, no que aparentemente
era uma residência familiar, a mensagem exibida era: “A cidade de Mariana é a favor da
retomada das atividades da SAMARCO” (Fig.9 e 10). Ao lado da frase, no canto superior
direito da faixa, o logotipo da empresa local que apoia a afirmativa foi estampado.
Outras empresas locais, aparentemente de médio porte, cartazes menores e menos
visíveis também continham frases de apoio à retomada das atividades da empresa
Samarco na cidade.
Figura 8 – Ponto de ônibus próximo à faixa de apoio a empresa mineradora. Local de maior
concentração de moradores e turistas
Figura 9 – Comércio local, no centro da cidade, com faixa em apoio a empresa mineradora
Samarco
13 Ao final do dia, após novas caminhadas pelas ruas da cidade e visitas a pontos turísticos,
seguimos para o hotel local. Os moradores, ao notar a presença dos turistas, lidavam de
maneira natural, mas a sensação de ser observado é comum a todos nós. Não
encontramos moradores em situação de rua pelos locais que passamos.
14 No dia seguinte, domingo, ao passar novamente pelo terminal turístico, pedimos
material informativo sobre a cidade. O senhor, muito atencioso, informou que não
possuia nenhum tipo de material naquele dia. O possível foi ceder um pequeno mapa,
xerocado, preto e branco, com os pontos turísticos indicados (Fig. 11). Diferente dos
jornais impressos espalhados na cidade, geralmente com referências a notícias vinculas
à empresa Samarco, este mapa da cidade era uma cópia ilegível. Diversos panfletos de
hotéis, pousadas e restaurantes estavam disponíveis.
15 Ao sair, percebi um outro jornal local disponível no canto da sala. Após permissão,
consegui uma edição. Intitulado Jornal Panfletu’s (Fig. 12), a edição disponível era a de
número 653, ano 16, do período de 08/06/17 a 15/06/17. A capa não trazia nenhuma
referência ao desastre ou à empresa envolvida. No entanto, a página quatro desta
edição, em reportagem com pouco destaque, trazia o seguinte assunto: “Comissão de
obras públicas e meio ambiente, Secretaria de Meio Ambiente, fundação RENOVA,
Samarco Mineração e Vale discutem novo código ambiental”. Também a página cinco
desta mesma edição, com texto em página completa, apresentava a reportagem: “STF
concede liminar favorável ao município de Santa Bárbara, Samarco pode não voltar esse
ano”. A página doze, mais uma vez, discutia assuntos ligados à empresa: “Banco de
emprego on-line de Catas Altas será utilizado pelo Sine de Mariana e por empresas
como Vale e Samarco”. A página quinze, em destaque, chamava a atenção dos
moradores de Mariana com um convite para o conhecimento da minuta da Lei
Complementar que visa instituir o código ambiental da cidade.
16 Neste mesmo local, percebemos que existia uma faixa, já rasgada, divulgando o contato
da Secretaria Municipal de Defesa Social (Fig. 13), possivelmente fixada no pós-desastre
ocorrido na cidade.
17 Ao conversar com outros moradores, sentados ali por perto, conversas do cotidiano
sobre o tempo e turismo na cidade, aproveitamos mais uma vez para saber sobre o
rompimento da barragem de Fundão. Nenhum morador disse ter visto lama ou ido a
algum lugar onde o desastre ocorreu. Além disso, mostravam um pequeno rio que corre
na parte de trás do terminal turístico, geralmente referindo ao estado “normal” do
curso d’água em Mariana (Fig. 14).
Figura 14 – Rio que corta da cidade de Mariana, utilizado como referência por alguns moradores
18 O final do dia foi dedicado à visita a outros pontos turísticos e alimentação, antes do
nosso retorno, numa viagem de oito horas.
19 Desta forma, pudemos observar que a cidade de Mariana em nada lembra as capas de
jornais ou reportagens veiculadas na mídia, o que aparentemente demonstra certo grau
de “normalidade”, ou seja, sem rastros visíveis da lama pelas ruas ou no discurso de
seus moradores. No entanto, sabemos que diversos ribeirinhos ao longo de todo o Rio
Doce, e mesmo em regiões próximas à cidade, ainda sofrem inúmeras consequências
desta que foi considerada a maior tragédia ambiental ocorrida em nosso país.
BIBLIOGRAFIA
GEERTZ, C. 1999. “Os usos da diversidade”. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, v. 10, p.
13-34, 1999.
MAGNANI, José Guilherme Cantor. 2009. “Etnografia como prática e experiência”. Horizontes
Antropológicos, n. 32, pp. 129-156.
MAGNANI, José Guilherme Cantor. 2012. Da periferia ao centro: trajetórias de pesquisa em Antropologia
Urbana. São Paulo: Editora Terceiro Nome.
LOMEU, Rafael. I Festival Internacional do Dia do Refugiado. Ponto Urbe [Online], 18 | 2016, posto
online no dia 31 Julho 2016, consultado o 26 Junho 2017. URL: http://pontourbe.revues.org/3181 ;
DOI : 10.4000/pontourbe.3181
AUTORES
RENATO AUGUSTO PASSOS
renatoapassos@usp.br
Biólogo. Doutorando em Saúde Global e Sustentabilidade pela Faculdade de Saúde Pública da
Universidade de São Paulo (USP)