Você está na página 1de 277

Ponto Urbe

Revista do núcleo de antropologia urbana da USP 

20 | 2017
Ponto Urbe 20

Edição electrónica
URL: http://journals.openedition.org/pontourbe/3355
DOI: 10.4000/pontourbe.3355
ISSN: 1981-3341

Editora
Núcleo de Antropologia Urbana da Universidade de São Paulo
 

Refêrencia eletrónica
Ponto Urbe, 20 | 2017, « Ponto Urbe 20 » [Online], posto online no dia 30 junho 2017, consultado o 27
setembro 2020. URL : http://journals.openedition.org/pontourbe/3355 ; DOI : https://doi.org/10.4000/
pontourbe.3355

Este documento foi criado de forma automática no dia 27 setembro 2020.

This work is licensed under a Creative Commons Attribution 4.0 International License.
1

SUMÁRIO

Editorial

Artigos

Pistas de um cotidiano assombrado: a saga do diagnóstico na doença de Alzheimer


Daniela Feriani

notas sobre sex shops e transações de conhecimento em joão pessoa, pb


Erotismo, mercado e sexualidades
Notas sobre sex shops e transações de conhecimento em João Pessoa, PB
Thiago de Lima Oliveira

Como praticar etnografia nas margens e fronteiras das cidades?


Caterine Reginensi

No emaranhado do Guamá: trajetos etnográficos numa feira de Belém


In the tangle of Guamá: Ethnographic paths in a fair of Belém
Marina Ramos Neves de Castro e Fábio Fonseca de Castro

Estrategias sociales de adaptación frente a las inundaciones en la metrópolis de México


Mtro. Oscar Adán Castillo Oropeza e Dr. Felipe de Alba Murrieta

Pelo bairro: um exercício descritivo da prostituição de travestis no Jardim Itatinga


Letizia Patriarca

Santos, vadias e fetos


Manipulações políticas de imagens religiosas no Brasil contemporâneo
Renata de Castro Menezes

Resenhas

Maison du Brésil – cotidiano e experiência de pesquisadores brasileiros em Paris


Leonardo Francisco de Azevedo

Resenha: “A maior zoeira” na escola – Experiências juvenis na periferia de São Paulo


Cristiane Gonçalves da Silva

Reinvenções e controvérsias: a necessidade da tradição e as disputas em torno da


regulamentação da ayahuasca
Henrique Fernandes Antunes

Tradução

Festividade: Formas moderna e tradicional de sociabilidade


Xavier Costa

Ponto Urbe, 20 | 2017


2

Cir-kula

Concretos que falam: análise comparativa de grafites sob vias suspensas nas cidades de São
Paulo e Lorena/SP
Bianca Siqueira Martins Domingos, Gabriel de Oliveira Eloy e Luiz Fernando Vargas Malerba Fernandes

Especial Ayahuasca e Saúde

Apresentação - E se um viajante numa sessão de ayahuasca: jornadas interdisciplinares de


ayahuasca e saúde
Ana Letícia de Fiori e Marcelo Simão Mercante

Fluxos e suspensões: reflexões em relação às experiências em um campo de pesquisa


Maiton Bernardelli, José Roque Junges e Marcelo Simão Mercante

Por uma abordagem ecológica dos efeitos anti-depressivos da ayahuasca


Danielli Katherine Pascoal da Silva

Ensaios fotográficos

Eu Vou de Bike: a ocupação de bicicletas nos espaços públicos de São Paulo


Carolina Cássia Conceição Abilio e Maria da Penha Vasconcellos

A atuação dos “flanelinhas” e o olhar fotografado da cidade


Francieli Muller Prado

Etnográficas

Novos agentes e novas configurações no carnaval dos blocos de rua na cidade do Rio de
Janeiro
Marina Bay Frydberg

O crack, o corpo e a rua


Analisando trajetos e andanças na cidade
Beatriz Brandão e Wellington da Silva Conceição

A cidade de Mariana pós-desastre: um relato etnográfico


Renato Augusto Passos e Maria da Penha Vasconcellos

Ponto Urbe, 20 | 2017


3

Editorial

1 É com muita alegria que lançamos a 20ª edição da Revista Ponto Urbe, a revista do
Núcleo de Antropologia Urbana da Universidade de São Paulo. Ao longo dessas vinte
edições, valorizou-se o diálogo entre a antropologia urbana e outras áreas temáticas da
antropologia além de outras disciplinas afins que se propõem a pensar práticas
culturais no contexto urbano, o que resulta em uma enorme diversidade de
procedências institucionais, temas e abordagens. Concebemos a revista como um
espaço de divulgação de trabalhos já concluídos ou em andamento e também como um
meio didático tanto para quem propõe contribuições para cada edição – recebemos
trabalhos de estudantes de graduação a pesquisadores consolidados em suas áreas –
quanto para a comissão editorial, que reúne pesquisadores de graduação, pós-
graduação e associados do NAU.
2 A 20ª edição da Ponto Urbe é exemplo dessa diversidade e do exercício de aprendizado.
Nesse número, trazemos sete Artigos. Caterine Reginensi discute as vicissitudes da
prática etnográfica em espaços de fronteira das cidades, enquanto Marina Ramos Neves
de Castro e Fábio Fonseca de Castro examinam os trajetos etnográficos em uma feira
popular em Belém. Thiago Oliveira explora o mercado das Sex Shops em João Pessoa,
Paraíba e Daniela Ferriani descreve o cotidiano de pacientes de Alzheimer no estado de
São Paulo. Oscar Oropeza e Felipe Murrieta investigam as estratégias sociais de
adaptação e questões de vulnerabilidade social em uma metrópole mexicana afetada
por uma inundação. Letizia Patriarca realiza um exercício descritivo da prostituição de
travestis no Jardim Itatinga (Campinas, SP). Renata Menezes, por sua vez, discute a
manipulação de imagens religiosas no Brasil contemporâneo a partir de uma análise de
um “evento crítico”, a Marcha das Vadias de 2013, no Rio de Janeiro.
3 Na seção Cirkula, o artigo de Bianca Siqueira Martins Domingos, Gabriel de Oliveira
Eloy e Luiz Fernando Vargas Malerba Fernandes compara grafites feitos em colunas de
viadutos nas cidades de São Paulo e Lorena, suas relações com o entorno e com seus
espectadores em um “museu a céu aberto”. Discussão que traz subsídios para pensar as
recentes políticas cinzentas que tomam a paisagem urbana.
4 A seção Etnográficas, que traz relatos etnográficos, traz a contribuição de Marina
Frydberg sobre o carnaval de rua no Rio de Janeiro; de Renato Passos e Maria da Penha
Vasconcellos sobre a tragédia de Mariana, MG, ocorrida em 2015; e de Wellinton Silva e

Ponto Urbe, 20 | 2017


4

Beatriz Brandão sobre as relações entre o crack e os corpos que transitam pelas ruas da
cidade.
5 O Especial dessa edição é fruto do Seminário Temático - Tecnologias da reflexividade e as
pesquisas sobre ritual, usos de substâncias e saúde, coordenado por Marcelo Simão
Mercante e Ana Letícia de Fiori durante a VI Reunião de Antropologia da Ciência e
Tecnologia, realizada na USP em maio de 2017. Além de um texto introdutório, que
retoma as discussões do antigo grupo NAU Consciência, o especial conta com o artigo de
Maiton Bernardelli, discutindo papéis de psicólogo e etnógrafo em uma comunidade
terapêutica no Acre e Danielli Katherine Pascoal da Silva, relacionando concepções de
saúde mental e depressão em regimes de saberes médico, psicológico e próprios da
União do Vegetal.
6 A Ayahuasca também é tema da Resenha de Henrique Antunes, do livro Reinvenções e
controvérsias: a necessidade da tradição e as disputas em torno da regulamentação da
ayahuasca. A seção traz também a resenha do livro “A maior zoeira” na escola –
Experiências juvenis na periferia de São Paulo, fruto da tese de doutorado do pesquisador
do NAU Alexandre Barbosa Pereira, realizada por Cristiane Gonçalves. E, por fim, a
resenha de Maison du Brésil – cotidiano e experiência de pesquisadores brasileiros em Paris,
por Leonardo Azevedo.
7 A 20ª edição da Ponto Urbe traz, na seção de Tradução, a análise de Xavier Costa sobre
tradição e modernidade na festa popular do Fallas, em Valencia, Espanha, traduzida por
Breno Alencar.
8 Neste número, trazemos o rol de pareceristas que contribuíram na avaliação de
propostas nos últimos 3 anos. Reiteramos os agradecimentos a todas as pessoas que
gentilmente aceitaram ler, avaliar e oferecer sugestões às contribuições submetidas à
Revista Ponto Urbe. A revista é fruto dessa generosidade acadêmica. Que a Ponto Urbe
possa ter uma vida longa e próspera.

Ponto Urbe, 20 | 2017


5

Artigos

Ponto Urbe, 20 | 2017


6

Pistas de um cotidiano assombrado:


a saga do diagnóstico na doença de
Alzheimer
Clues to a haunted daily life: the saga of the diagnosis in Alzheimer’s disease

Daniela Feriani

NOTA DO AUTOR
Este texto é parte de minha tese de doutorado, denominada Entre sopros e assombros:
estética e experiência na doença de Alzheimer, financiada pela Fundação de Amparo à
Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp). A pesquisa de campo aqui apresentada foi
feita através do acompanhamento de consultas nos ambulatórios de neurologia e
psiquiatria geriátrica de um hospital universitário e de reuniões do grupo de apoio aos
familiares da Associação Brasileira de Alzheimer (ABRAz), ambos no Estado de São
Paulo. Nesses campos, os cuidadores são familiares, principalmente cônjuges e filhos, e
as famílias pertencem, principalmente, a níveis socioeconômicos menos favorecidos.
As imagens que abrem o texto estão disponíveis na internet e são de ensaios
fotográficos sobre a doença de Alzheimer - “Mirella”, de Fausto Podavini (imagens: 1 /
linha 1 e 3 / linha 2); “La noche que me quieras”, de Alejandro Kirchuk (imagem 3 /
linha 1); “Essa luz sobre o jardim”, de Fábio Messias (imagens 1 e 2 / linha 2); “Grace”,
de Susan Falzone (imagens 1, 2 e 3 / linha 3) - e de autorretratos de William
Utermohden (imagem 2 / linha1), diagnosticado com a doença.

Ponto Urbe, 20 | 2017


7

“Quando eu uso uma palavra”, disse


Humpty Dumpty num tom bastante desdenhoso,
“ela significa exatamente o que quero
que signifique: nem mais nem menos.”
“A questão é”, disse Alice, “se pode fazer
as palavras significarem tantas coisas diferentes.”
“A questão”, disse Humpty Dumpty, “é
saber quem será o senhor — só isto.”
(Lewis Carroll. Alice através do espelho)
1 Odalina, de 54 anos, foi à consulta no ambulatório de neurologia de um hospital
universitário acompanhada pela filha, que contou ter percebido “algo errado” depois
que a mãe foi morar com ela, após a separação do padrasto, quando a percebeu mais
desleixada com as tarefas domésticas, não limpando a casa, que passou a ficar sempre
suja, com cocô no vaso sanitário e lixo no canto, além de ficar negligente com a higiene
pessoal, não colocando absorvente quando ficava menstruada. Há 5 anos, levou a mãe
ao posto de saúde e lá falaram que era doença de Alzheimer. Começou um tratamento
em 2012, já no ambulatório da neurologia. Em 2013, o tratamento foi suspenso porque o
médico teria dito não ser doença de Alzheimer, mas uma demência frontotemporal 1.
2 Na discussão de caso2, os dois médicos do ambulatório entraram, sendo um deles o que
disse não ser doença de Alzheimer, quando ela iniciou o tratamento lá. O outro médico,
que também é o chefe do ambulatório, falou em doença de Alzheimer, não achando que
há muita alteração de comportamento. O outro médico fez uma expressão de
discordância, apesar de ter ficado quieto. O residente também demonstrou dúvida
quanto ao diagnóstico de doença de Alzheimer.
3 Na terceira consulta de Odalina naquele ambulatório, a filha contou que, se deixar, a
mãe “toma banho e sai pelada na rua. Agora tá falando palavrão, estilo Dercy
Gonçalves. (paciente ri) Ela também está mais irritada”. O médico-chefe voltou a falar em

Ponto Urbe, 20 | 2017


8

doença de Alzheimer; o outro médico, em demência frontotemporal. O diagnóstico


segue em investigação.
4 Na consulta de José, de 75 anos, a hipótese diagnóstica passou de uma demência
vascular (decorrente de Acidente Vascular Cerebral ou microinfartos no cérebro em
função de pressão alta) para doença de Alzheimer. A filha disse fazer 1 ano que o pai
acompanha no ambulatório de neurologia e os médicos tinham dito que estavam na
dúvida se era comprometimento cognitivo leve ou demência3. Já chegaram a falar que
era doença de Alzheimer e o pai começou a tomar remédio para postergar o declínio da
memória, mas aí, como não estava definido, acabaram suspendendo o tratamento.
“Aqui tiraram tudo, só ficou o remédio para dormir”, contou. Ela também disse que
começou com depressão, em 2006, pouco depois da esposa falecer. 4
5 (residente): você falou que começou com depressão, em 2006, mas e o esquecimento? Já
vem desde esse tempo?
6 (filha): logo depois já ficou mais esquecido.
7 (residente): tá igual ou tá piorando?
8 (paciente): piorando.5
9 (filha): não. Antes ele se perdia, agora não. Mas esquecer, isso tá... Acho que ele se
acostumou a esquecer.
10 (residente): não tá piorando?
11 (paciente): ah tá. Passa fulano e diz “ô seu Zé” e eu não sei quem é.
12 (filha): já fiz 5 óculos para ele; ele perde, esquece onde guardou.
13 (residente): o Sr. toma banho sozinho?
14 (paciente): ô, tomo.
15 (residente): precisa de ajuda para comer, se vestir?
16 (paciente): não, faço tudo sozinho.
17 (residente): o Sr tá mais triste, chora?
18 (paciente): não, chorar não, mas fico maluco quando faço as coisas errado.
19 (residente): irritado?
20 (paciente): é, irritado.
21 (residente): ele manuseia o próprio dinheiro?
22 (filha): não.
23 (residente): por quê?
24 (filha): porque esquece, não confere troco.
25 (paciente): não entro mais em banco, não sei mais nada.
26 (residente): nem com ajuda consegue comprar roupa, comida?
27 (filha): com ajuda sim.
28 (residente): esquenta o próprio café?
29 (paciente): não gosto de café.
30 (filha): se liga o fogo, deixa aceso.
31 (residente): cozinha?
32 (paciente): ah, isso eu nunca fiz.

Ponto Urbe, 20 | 2017


9

33 (residente): sabe o que acontece com os vizinhos, em casa?


34 (paciente): em casa, sim.
35 (filha): ele não se interessa.
36 (residente): assiste TV?
37 (paciente): um pouco.
38 (residente): o que está passando na TV?
39 (paciente): jornal, roubalheira.
40 (residente, olhando para a filha): o que a sra. acha?
41 (filha): não tem interesse.
42 Após ouvir o relato do residente, o médico disse parecer mais um quadro vascular, já
que não tem tanta perda de memória (“ele lembra que esqueceu; lembrou até de uma
festa de ontem”, disse o médico, após fazer algumas perguntas ao paciente), sendo mais
perda de atenção e concentração. Ficou na dúvida se é comprometimento cognitivo leve
ou demência leve e, se for demência, se é do tipo Alzheimer ou vascular. Disse ainda,
olhando para o paciente e para a filha, que ele precisa melhorar o comportamento, já
que irritação pode explicar esse declínio cognitivo.
43 Acompanhei uma segunda consulta de José, com outro residente. Na discussão de caso,
quem entrou foi o neurologista-chefe (na consulta anterior, quem discutiu foi o outro
médico do ambulatório). Após ouvir o residente, o médico disse que os sintomas
parecem mais com doença de Alzheimer, já que “a demência vascular normalmente não
começa com queixa de memória”.
44 (filha, para o médico): ele acha que alguém tomou o remédio dele! Você acha que
alguém vai tomar o remédio dele? (paciente ri)
45 (médico): do ponto de vista dele, é isso; ele acha mesmo isso porque ele esquece. (depois
de alguns minutos) Ele tem Alzheimer!
46 Olhando para o residente, o médico disse: “nunca engula o que o outro diz, nunca
engula “ele esquece tudo!”, isso não existe!” Pediu para a acompanhante observar o que
o pai consegue e o que não consegue fazer.
47 (filha, para o médico): às vezes eu acho que ele não quer lembrar!
48 (médico): isso é interpretação! Não existe “esquece tudo”!6
49 No ambulatório de psiquiatria geriátrica, uma consulta polêmica foi a de um senhor, de
70 anos, acompanhado pela esposa. Há 7 anos, o paciente começou a ter esquecimentos
leves (deixar a torneira aberta, esquecer as chaves no carro), havendo uma piora nos
últimos três anos, não conseguindo mais finalizar uma tarefa ou uma frase. O paciente é
consciente de que não está bem, tem um discurso coerente e julgamento crítico da
situação.
50 Dois médicos entraram na sala para avaliá-lo. Eles não acharam ser doença de
Alzheimer porque há mais disfunção executiva (falha de planejamento/organização de
tarefas – por exemplo, quando foi esquentar o leite no micro-ondas, colocou a caixa ao
invés de pôr o leite numa xícara para depois esquentar). A hipótese diagnóstica foi a de
uma demência por intoxicação, já que o paciente trabalhou com fertilizantes e produtos
químicos por quase 20 anos. Os médicos perguntaram que dia é hoje, o que gosta de
fazer, o que fez ontem, onde trabalhou. O paciente respondeu sem dificuldade. Quando
um dos médicos foi fazer algumas perguntas para avaliar a função executiva,

Ponto Urbe, 20 | 2017


10

demonstrou certa dificuldade para escolher o tema. Esboçou algo como “me diz como
faz...”, parou, pensou e, um pouco receoso, completou “... como faz café?” e comentou,
olhando para a residente e para o outro médico: “pra mulher é mais fácil porque aí
pergunta como cozinha”, ao que a esposa falou “mas ele faz café!”, indicando que
poderia ser essa a pergunta. O paciente, ainda que de maneira bem devagar, respondeu
de maneira coerente.
51 A complexidade do diagnóstico, as dúvidas e nuances que o mesmo denota, acabam por
explicitar disputas entre as áreas destinadas a delineá-lo, como neurologia, psiquiatria
e geriatria. Afinal, quem pode – ou quem tem mais autoridade – para falar em nome da
doença? Graham (2006) mostra como o diagnóstico de demência, ainda que haja um
critério, encobre diversas combinações possíveis entre sintomas e sinais dependendo da
experiência profissional e de vida do médico. Nesse sentido, os diferentes tipos de
especialidades médicas interferem nos critérios de diagnóstico diferencial (especificar
qual tipo de demência) e contribuem para a pluralidade de situações que são definidas
como demência.
52 Nessas disputas em torno do que é neurológico e do que é psiquiátrico, temos a consulta
de João, de 53 anos. Quem o acompanhou foi a esposa. Foi ela quem conversou com a
residente, já que o estado do marido é muito crítico, quase não fala, ficando de braços
cruzados e olhar perdido durante toda a consulta, chegando a cochilar em alguns
momentos.
53 A acompanhante disse que João vem piorando muito desde a última consulta, em 2012
(o diagnóstico foi de demência frontotemporal). Há 2 anos, o marido ainda falava e
conseguia escrever, mas que atualmente não consegue mais formular uma frase
completa, diz coisas sem sentido e, quando alguém conversa ou pergunta algo para ele,
repete a última palavra que a pessoa disse. Não reconhece mais os filhos e os netos. Ele
não fala que quer ir ao banheiro e faz xixi na calça, não fala que quer comer, mas
quando vê comida, come compulsivamente. Contou que, outro dia, comeu um pote
inteiro de pimenta, daquelas bem ardidas, e não esboçou qualquer reação. Já chegou a
comer ração de cachorro. Se não der banho, escovar os dentes, vesti-lo, ele não faz. “E
olha que ele era uma pessoa muito preocupada com a higiene!”, afirmou.
54 A residente, apontando para a acompanhante, perguntou quem era ela. O paciente disse
o nome da esposa. “E o que ela é sua?”, perguntou a residente. “Sua mãe”, respondeu
João. A residente fez várias anotações no prontuário. Em seguida, saiu para chamar os
médicos. Aproveitei para conversar com a esposa7. Perguntei como ela percebeu o início
da doença. Ela me explicou que já estavam separados há 5 anos quando começou. Como
continuaram amigos e saíam juntos, ela começou a perceber os primeiros sinais, há 2
anos, no modo como ele estava dirigindo – falta de atenção, não dava seta, fazia
ultrapassagem arriscada. Depois começaram alguns hábitos estranhos, como guardar
“porcarias” e “coisas velhas” e ficar enchendo garrafas com água para colocá-las no
freezer. Além disso, João demonstrava tristeza, apatia e isolamento social. Ficou
desinibido, tirando a roupa e andando pelado em público.
55 A doença fez com que ela e João voltassem a morar juntos, já que ninguém da família, a
não ser a irmã dele, demonstrou alguma intenção de cuidá-lo. “Mas a situação é muito
difícil pra mim. Não tenho mais vida; não tenho mais final de semana”, desabafou.
56 Dois médicos entraram na sala. Ao saber que o paciente estava tomando antipsicótico,
receitado por um psiquiatra, o médico-chefe se exaltou. Disse ser um problema ir ao
psiquiatra antes de consultar na neurologia. Afirmou que o antipsicótico aumenta a

Ponto Urbe, 20 | 2017


11

apatia, a falta de iniciativa, a sonolência e o risco de doenças cardiovasculares e de


morte súbita. De maneira bem enfática, disse: “Essa doença é nossa, é neurológica. Nós
não somos neurologistas que não sabemos nada de psiquiatria. Nós entendemos mais
dessa doença do que os psiquiatras. Então ou vai ao psiquiatra ou fica aqui com a
gente”. A acompanhante logo respondeu querer continuar naquele ambulatório.
57 Ainda em tom repreensivo, o médico continuou:
só alteração de comportamento não basta. Muitos podem olhar para mim e achar
que tenho alteração de comportamento, que sou estranho. Porque eu fico, por
exemplo, olhando uma formiga na rua. Gosto de olhar o que acontece na rua, fico
horas vendo. Isso pode ser estranho para algumas pessoas. Então temos que saber o
que mais está sendo afetado, além do comportamento, para saber se é ou não
demência.
58 Na consulta de Walter, de 81 anos, após ouvir o relato do residente de que o paciente,
segundo a esposa, estava mais irritado e agressivo, o médico disse:
A doença é abrangente, não é só cognição, pega também personalidade,
comportamento, linguagem, a parte afetiva. O neurologista precisa entender de
neuropsiquiatria. Não é mandar para o psiquiatra, não tem motivo pra isso. Se
manda para o psiquiatra, ele vai fazer besteira, receita remédio pra jovem. É uma
doença neurológica, orgânica. A mente toda está afetada, a parte cognitiva,
emotiva, volitiva. Ao conversar e analisar os sintomas, dá pra perceber onde as
lesões estão localizadas.
59 No ambulatório da psiquiatria geriátrica, um dos médicos comentou sobre um paciente:
“ele vai no neurologista de vez em quando e aí esse neurologista dá carbamazepina e aí
mistura tudo!8”. Em outra discussão, a residente da geriatria disse, logo de início, ser
um caso tranquilo, que a paciente está bem, no melhor momento durante todo o
tratamento dela. O psiquiatra, que já acompanha o caso, interrompeu: “você não vai
querer tirar o antidepressivo dela, né?”. A residente, que já questionou, numa aula, o
uso de antidepressivo e antipsicóticos – se eles não poderiam estar sendo usados em
excesso -, respondeu, timidamente, “não”. “Ah, então podemos discutir o caso...”,
prosseguiu o professor.
60 Em outra conversa “fisgada” no ambulatório da psiquiatria geriátrica, ouvi a residente
dizer, para o médico, que “a neuro (o paciente também acompanhava no ambulatório de
neurologia) reduziu os medicamentos, mas não sei se faz muito sentido.” Também ouvi
um psiquiatra comentar que tinha visto uma entrevista de um neurologista sobre
sintomas neuropsiquiátricos9 na doença de Alzheimer, e deu a sua opinião: “acho que a
gente (os psiquiatras) transita melhor na área deles (neurologistas) do que eles na nossa.”
O colega concordou: “nós cuidamos das funções corticais superiores. Então é mais fácil
ver, cuidar das inferiores...”
61 Em um fórum sobre doença de Alzheimer, em 2013, as disputas entre as áreas também
estavam presentes. O evento, promovido pela Associação Brasileira de Alzheimer
(ABRAz) em parceria com a Sociedade de Medicina e Cirurgia de Campinas, teve a
participação de três médicos, um de cada especialidade (neurologia, psiquiatria e
geriatria). As perguntas tiveram como temas principais sintomas, diagnóstico, formas
de tratamento, fatores de risco. E as respostas passavam pelos três médicos convidados.
62 Apesar de falarem que a especialidade não importa, já que o que importa é o médico
conhecer a doença, as tentativas de estabelecer fronteiras entre as diferentes áreas
eram evidentes. Quando as perguntas passearam pela plateia – majoritariamente de
médicos e profissionais de saúde, seguida de poucos cuidadores familiares e de apenas

Ponto Urbe, 20 | 2017


12

uma antropóloga -, eu resolvi lançar a seguinte: “apesar de vocês dizerem que a


especialidade não é o mais importante, gostaria de saber como cada especialidade pode
contribuir para a compreensão da doença; como se dá o diálogo entre neurologia,
psiquiatria e geriatria; se existe esse diálogo e como vocês o veem”. O psiquiatra foi o
primeiro a tomar a fala: “quando tem mais alteração de comportamento, vai no
psiquiatra; uma alteração mais cognitiva, motora, vai no neuro...” E a geriatra logo
interrompeu: “e quando está tudo ‘estrupiado’, manda para o geriatra!”.
63 Apesar de todos reconhecerem que o diálogo é importante, e que eles mesmos o fazem,
consultando ou enviando um paciente para um colega da outra especialidade, os
médicos também reconhecem que há lacunas e falhas nesse diálogo – e que o mesmo
deveria ser maior e mais produtivo. “Isso (o diálogo) não é muito feito nem na geriatria,
nem na psiquiatria, na neuro, então, muito menos”, disse a geriatra. “Como assim na
neuro muito menos?”, retrucou o neurologista, tentando imitar o gesto e o tom de voz
da colega.

Família como medida e desmedida


64 Numa doença considerada incurável, mas tratável, o familiar-cuidador é aquele que vai
detalhar o cotidiano do doente na busca por um diagnóstico 10. As pistas são, sobretudo,
domésticas: se consegue cozinhar, fazer supermercado, tomar banho, vestir-se, pagar
conta, arrumar a casa.
65 A funcionalidade se constitui enquanto embate narrativo entre familiar-cuidador e
doente na relação entre o cotidiano/doméstico e a doença. Ao longo dessa interação, a
família aparece como medida e desmedida, e a doença de Alzheimer oscila entre doença
e velhice, normal e patológico, orgânico e inorgânico.
66 Dependendo do desdobramento da conversa, nas consultas, as perguntas são feitas ora
aos familiares, ora ao paciente, o que pode gerar conflitos entre as respostas. Em uma
consulta, a irmã acompanhava a paciente, de 74 anos, diagnosticada com
comprometimento cognitivo leve. De acordo com o prontuário médico, os familiares
começaram a perceber que algo estava “errado” quando a paciente, que fazia bolos para
vender, não mais sabia as receitas, confundindo os ingredientes, além de já ter
esquecido alimentos no fogo. Na segunda consulta no ambulatório da neurologia, a qual
eu acompanhei, a residente começou as perguntas.
67 (residente): como a senhora está?
68 (paciente): ah, o que você acha?
69 (residente): como a senhora está? O que a senhora acha?
70 (paciente): o que eu estou sentindo? Ah, às vezes tenho tontura.
71 (residente): como está a memória?
72 (paciente): minha memória ainda está boa sim!
73 (residente): ainda cozinha?
74 (paciente): cozinho!
75 (residente): direitinho? Não esquece as receitas?
76 (paciente): não; faço sempre as mesmas.
77 (residente): não está esquecendo?

Ponto Urbe, 20 | 2017


13

78 (paciente): ah, às vezes vou na despensa pegar uma coisa e esqueço o que ia pegar.
79 (residente para a irmã): tem notado mais esquecimento dela?
80 (irmã): ah sim, ela está bem esquecida, viu? Não reconhece alguns parentes. Esquece
onde almoçou no mesmo dia.
81 (residente): ela consegue cozinhar o que cozinhava antes?
82 (paciente): eu consigo!
83 (residente): ... ou você acha que as receitas estão mais simples?
84 (irmã): estão mais simples. Ela não sai mais sozinha, não vai para a cidade...
85 (residente): acha que ela conseguiria?
86 (paciente): eu consigo!
87 (irmã): não consegue.
88 (residente): pra se vestir, tomar banho, faz tudo sozinha?
89 (paciente): faço!
90 (irmã): faz, mas assim... às vezes não sabe escolher a roupa, usa sempre a mesma...
91 (residente): dorme bem?
92 (paciente): durmo.
93 (irmã para a paciente): a senhora não acorda de madrugada?
94 (paciente): é, acordo umas 5hs e não consigo dormir mais.
95 Em outra consulta, Odila, de 82 anos, disse estar ótima. As filhas se entreolharam e uma
delas disse, baixinho: “depois ela vai entrevistar a gente!”; “é, porque ela não vai dar
nenhuma queixa!”. A mãe negou problema de memória, disse que mora sozinha, faz
todos os afazeres domésticos e que já viajou o mundo inteiro sozinha, o que as filhas
confirmaram mas com a ressalva de que a última viagem foi há 5 anos. Quando a
residente se dirigiu às filhas, elas pediram para conversar a sós, o que elas fizeram no
corredor, ficando apenas eu e Odila na sala conversando. Contou-me que trabalhou
numa loja de moda e que depois foi governanta num hotel. Falou sobre as viagens, que
faz tudo sozinha e que ainda dirige. Nesse momento entrou uma das filhas na sala e
disse ser mentira, que ela não dirige mais há alguns anos. A paciente insistiu que dirige.
Quando o médico entrou, a residente relatou que as filhas notaram a mãe mais apática
(Odila olhou para mim e fez uma cara de desaprovação) e muito esquecida, contando a
mesma coisa várias vezes no mesmo dia. O diagnóstico está em investigação.
96 No ambulatório da neurologia, Luís, de 63 anos, diagnosticado com demência vascular,
discordou do relato da esposa. Segundo ela, o marido se tornou mal-humorado e
esquecido, começou a errar ao dirigir, andando no meio da faixa, chegou a confundir
dinheiro com o documento, quebrou os pratos, um dia, porque não queria comer
macarrão, começou a errar o serviço, ficando muito nervoso e querendo bater nas
pessoas, quer sair de casa, sacudindo o portão, perde-se dentro de casa, não sabendo
onde fica o banheiro e já tendo confundido a sala com o quarto, põe roupa ao contrário
e está mais triste. Um dia, no supermercado, falou para um homem que ele estava gordo
e, para uma mulher, que ela parecia homem. Após uma longa conversa com a esposa, o
residente se dirigiu ao paciente, o qual permaneceu quieto durante a consulta e parecia
não estar prestando atenção, perguntando se ele estava mais triste. De maneira

Ponto Urbe, 20 | 2017


14

exaltada, ele respondeu: “tudo o que ela falou é mentira. Não é bem assim não! Quando
ela falou do portão, foi porque eles trancaram. Eu não tô louco!”
97 (residente): a gente conversa com o familiar porque às vezes a gente não percebe. O que
o Sr. acha do que ela falou?
98 (paciente): acho que ela é ignorante! Esse negócio da comida... se eu não gosto, eu não
como mesmo.
99 (residente): e por que o Sr. está aqui?
100 (paciente): porque eu quero me curar.
101 (residente): e o que o Sr tem?
102 (paciente): dor de cabeça; quero sarar minha dor de cabeça;
103 (residente): e o Sr faz alguma coisa?
104 (paciente): tudo que eu vou fazer não posso. Eles não deixam, aí vira briga. Eu queria
trabalhar.
105 No exame físico, o residente pediu ao paciente para andar lá fora, no corredor. Ficando
só eu e a esposa na sala, ela virou para mim e disse, num sussurro: “ai, eu não quero
mais falar na frente dele. Viu como ele ficou bravo?”.
106 Um senhor de 81 anos, acompanhado pela esposa e pelo filho, também ficou nervoso
com a família. Era a sua primeira consulta no ambulatório da psiquiatria geriátrica. A
esposa contou que o marido está mais esquecido de uns 4 anos para cá e só fala do
passado, que ele está muito ansioso, não aceita a idade e às vezes diz que está com
depressão. O marido discordou: “eu só falo que tô velho, ué, e não tô?”. A residente
perguntou se ele faz alguma atividade em casa e a esposa riu, dizendo para perguntar
para ele. “Eu não! Arrumar cozinha? Cada macaco no seu galho!”, respondeu. A
conversa continuou:
107 (residente): paga conta?
108 (esposa): paga, mas está com mais dificuldade para fazer a conta. Eu vou com ele para
pegar o pagamento.
109 (residente): por quê?
110 (esposa): ah, porque ele faz confusão.
111 (paciente): confusão? Que confusão eu faço? Fala pra mim! (em tom exaltado)
112 Teodorica, de 80 anos, foi à consulta acompanhada pela cuidadora (profissional), que
está com ela há 3 anos. A senhora, bem vestida e sorridente, disse estar muito bem e
que faz ginástica 3 vezes por semana.
113 Durante a consulta, a cuidadora disse que a paciente está muito esquecida, não faz nada
em casa, mexe nas coisas, deixando uma bagunça. Teodorica, ficando de cabeça baixa na
maior parte do tempo, “bufou” e olhou brava para a cuidadora em alguns momentos,
numa clara discordância do que estava sendo dito. Às vezes soltava um “ai, meu Deus!”
e olhava para mim, mostrando indignação.
114 (residente): em casa, é a sra quem faz as coisas?
115 (cuidadora): não faz nada; eu que faço tudo. O que ela faz é esquentar o leite dela
quando não estou.
116 (residente): a sra sai sozinha?
117 (paciente): saio.

Ponto Urbe, 20 | 2017


15

118 (cuidadora): sai para pequenas coisas: comprar um pão, leite.


119 (residente): pra comer, tomar banho?
120 (cuidadora): faz sozinha. Só pra tomar banho eu preciso falar porque ela esquece.
121 (residente): esquece que comeu?
122 (paciente): isso daí não.
123 (cuidadora): já esqueceu sim.
124 (residente): o que ela faz no dia a dia?
125 (cuidadora): ela tá esquecendo muito. Acaba de falar uma coisa, ela esquece. O
cafezinho que ela toma à tarde, ela esquece que já tomou e toma várias vezes.
126 (residente): mas o que ela faz? Vê TV?
127 (cuidadora): não vê mais porque ela esquece, não consegue acompanhar.
128 (residente): ela paga contas, faz compras?
129 (cuidadora): não; eu que faço. Ela não vai mais ao banco porque fica dizendo que alguém
pegou o dinheiro dela.
130 (residente): ela arruma a casa dela?
131 (cuidadora): arruma; escova os dentes sozinha. Mas ela não lembra o que estava fazendo
e sai mexendo nas coisas, deixa a casa uma bagunça. (a paciente, que já estava com a
cabeça baixa, com a mão na testa, “bufa” e olha brava para a cuidadora)
132 (cuidadora): ela não gosta, mas eu tenho que falar.
133 (paciente): falar o quê? Bobeira?
134 (cuidadora): às vezes ela fica agressiva... tem que falar com calma. Teve um dia, na rua,
que ela chegou a me dar um tapa. Porque ela não sabe andar na rua, vai para cima dos
carros... aí ela ficou nervosa. Eu tenho que acalmá-la, explicar. (paciente “bufa”
novamente e diz “ai, meu Deus”, tampando os ouvidos com os dedos)
135 (cuidadora, vendo que a paciente estava brava): Teozinha, não fica brava, eu preciso
falar isso; é para o seu bem, não é maldade, viu? (passa a mão na cabeça dela)
136 (residente): é, a gente precisa saber pra ver se muda os remédios... não é pra ficar
brava.
137 Em outra consulta, a esposa, de 77 anos, com diagnóstico de doença de Alzheimer leve,
reclamou, com bom humor, que é o marido quem não a deixa fazer as atividades em
casa. Quando a residente perguntou se tem alguma coisa que ela não consegue mais
fazer, o marido disse “não é que ela não quer fazer; ela não tem vontade”. A residente
pediu que ele dê um exemplo. “Ah, ela manda eu arrumar a cama!”. Marido e esposa
riram.
138 (paciente): ah, ele não faz nada!
139 (marido): ela manda eu fazer o café! Não quer fazer mais nada!
140 (paciente): ele que não deixa eu fazer!
141 (marido): não faz almoço...
142 (paciente): ele que não deixa eu fazer!
143 (marido): não sei se é por causa da depressão ou se ela tá aproveitando. (marido e esposa
riem).

Ponto Urbe, 20 | 2017


16

144 Rafael, de 81 anos, disse, logo no início da consulta na neurologia, que “proibiram de eu
viajar”. E continuou: “deixa eu perguntar uma coisa para a sra. Tô morando na casa
desse filho e ele tá construindo; eu posso fazer uma massinha lá?” A residente
respondeu que pode, mas com supervisão. O filho balançou a cabeça de um lado para o
outro, discordando, e contou que, um dia, o pai teve tontura enquanto consertava uma
pia. A conversa seguiu:
145 (filho): ele anda querendo tomar umas pingas mas não deixo.
146 (paciente): que tomar pinga o que, rapaz? Eu não bebo bebida alcoólica...
147 (filho): não bebe porque eu não dou.
148 (paciente): olha, o Sr. me respeite... (filho ri)
149 (residente): come bem?
150 (filho): come que nem um touro.
151 (paciente): como um pratinho pequeno só. (filho faz uma expressão de discórdia) Que é que
é isso? (diz Rafael, percebendo a expressão do filho. Filho ri)
152 (residente): toma banho sozinho?
153 (filho): tem que brigar...
154 (paciente): mas você é um pastor na igreja...
155 (filho): tem dia que ele esquece...
156 (paciente): tem dia que tomo banho duas vezes pra não brigar...
157 Nesse embate entre acompanhante e paciente, o parentesco se constitui e se
desconstitui, instaura-se uma estranheza, redefinem-se relações e pais, filhos e
cônjuges se tornam cuidadores e narradores – e, de certa maneira, “diagnosticadores”.
Administrar a tensa coexistência entre “deixar fazer” e “fazer por ele” implica numa
negociação constante entre o enfermo e os familiares; alguns o fazem com bom humor
e brincadeiras, mas, em muitas vezes, a interação é alvo de conflitos.
158 A coexistência entre “deixar fazer” e “fazer por ele” parece se tornar ainda mais tensa e
de difícil administração quando se está diante de um velho. A doença de Alzheimer faz a
velhice oscilar entre o normal e o patológico, sendo mais uma fronteira difícil de ser
delimitada.
159 A ponderação sobre o uso de medicamentos numa doença misteriosa e incurável como
a doença de Alzheimer é recorrente entre os médicos e residentes. A velhice faz com
que a cautela seja ainda maior. Em uma conversa com a residente, o psiquiatra disse:
“muita cautela para usar antipsicótico em idoso porque aumenta risco de evento
cardiovascular. Só usar em casos graves, por exemplo, aquele paciente com demência
que ficava dando com a frigideira na cabeça da esposa”. Numa discussão de caso na
neurologia, o médico, apesar da queixa da filha de que o pai passava a noite sem
dormir, não receitou qualquer remédio, dizendo:
Nós temos que aprender a pensar nos efeitos colaterais, tentar outras coisas
primeiro. Vamos tentar mudar isso (a insônia) com atividade física, não deixar o
paciente dormir durante o dia, tem que dar atividades pra ele ocupar a cabeça, não
tomar café e refrigerante à noite, não ver novela e filme muito agitado, ter horário
para dormir. Fazendo tudo isso já é pra melhorar o sono dele.
160 Diante de duas demências graves – demência vascular e doença de Alzheimer,
respectivamente -, ouvi os médicos psiquiatras dizerem aos residentes:

Ponto Urbe, 20 | 2017


17

A gente precisa ponderar. Os principais dilemas nossos não são técnicos, mas
morais. O que é melhor? A medicina fala em defender a vida em primeiro lugar, mas
que vida? Que vida é essa? Pra mim, a medicina precisa dar conforto, aliviar o
sofrimento. Então, se ele não está mais agressivo, porque era um caso grave - fazia
xixi na roupa, tinha alucinações -, é melhor dormir mais e dar conforto à família do
que mantê-lo acordado mais agressivo, irritado. Então, se ele não está dopado e não
está incomodando a família, deixa como está.
Ela bate papo com as alucinações. Se não está incomodando a família, não está
causando sofrimento, se ela não fica agitada, tentando pegar as alucinações, acho
melhor não alterar os remédios nessa altura, porque aí mexe, às vezes tem recaída.
Aí é melhor ficar lá, quietinha com as alucinações. Precisamos ponderar os efeitos
colaterais dos remédios. Às vezes, é melhor deixá-la falando com as alucinações.
161 Em conversa comigo, um psiquiatra disse: “Sabe o que é mais difícil em demência e que
eu tive que aprender? É que às vezes não tem o que fazer! Demência grave não tem o
que fazer! A gente tenta, fica angustiado, mas não tem o que fazer.” Numa conversa
entre o psiquiatra e uma residente, ele recomendou: “quando é demência grave, a gente
tem que sentir a família, se a família está enlouquecendo, pra saber se aumenta o
remédio, deixando o paciente mais sedado. Porque senão a família não aguenta mesmo,
tranca o paciente, bate”. “Já aconteceu!”, disse a residente. “É então... e a gente vai
julgar? Não dá pra julgar!”, complementou o médico.
162 “Sentir a família” acaba por orientar muitas das decisões quanto à medicação. Se a
demanda da família é levada em conta no manejo da medicação – e o relato do
cuidador-familiar é indispensável para a investigação da doença -, alguns de seus
conflitos atravessam as paredes da sala de consulta e não podem ser resolvidos ali.
Ouvindo mais uma conversa no ambulatório da psiquiatria, o residente contava o caso
de uma filha que cuida da mãe diagnosticada com doença de Alzheimer. Segundo o
residente, a filha está esgotada, não aguenta mais, chorando na consulta. O médico
disse que “isso é o mais difícil no Alzheimer: lidar com o contexto. Mas nosso trabalho é
limitado nisso. O que vamos fazer? É uma situação que não se resolve com prescrição de
receitas”. “A gente tem que mexer no que é mexível”, ouvi outro psiquiatra sobre um
caso de depressão.
163 Numa consulta no ambulatório da neurologia, as filhas, que acompanhavam o pai,
contaram como a doença acirrou o conflito entre elas e a madrasta, numa tentativa de
pedir uma intervenção por parte do residente que atendeu o caso. Segundo as filhas, a
madrasta não cuida do pai, deixando-o “todo mijado, sem agasalho, descalço”.
“Complicado”, disse o residente. “Eu não sei o que posso fazer não. Essas coisas de
família a gente não pode interferir. Vocês podem ir atrás de entrar com uma ação de
maus tratos.”
164 O manejo da medicalização a partir das ponderações trazidas pelo familiar e a
dificuldade de lidar com o contexto parecem se encontrar na recomendação, quando
possível (normalmente para casos leves e moderados) de tratamentos não
farmacológicos, como estimulação cognitiva (oficinas de memória, musicoterapia,
arteterapia, participação em cursos e atividades para idosos) e participação em
reuniões sociais e familiares, numa tentativa de diminuir ou estabilizar os remédios e os
conflitos familiares. Porém, tal recomendação também pode ser vista como uma
maneira de não levar em conta o contexto, já que algumas famílias reclamam não ter
dinheiro para pagar profissionais que façam essas atividades e/ou tempo, pois não
podem deixar o emprego.

Ponto Urbe, 20 | 2017


18

165 A dificuldade de se lidar com o contexto também pode ser vista em falas como “não faço
nada, tô aposentado!”, quando o doente é questionado sobre as atividades que faz
durante o dia e “não há necessidade de saber o dia!”, quando é perguntando sobre isso
no teste. Outro aspecto é em relação ao gênero, já que, diante de perguntas sobre
atividades domésticas, como cozinhar, fazer supermercado, arrumar a casa, alguns
dizem não fazer tais atividades não porque não conseguem em função da doença, mas
por serem tidas como “femininas”. “Cada macaco no seu galho”, “Ah, isso eu nunca fiz
mesmo!”, “isso é ela quem faz!” são expressões que mostram como o gênero constitui
pessoa e a relação com a doença. As perguntas referem-se a um script normalmente
esperado da mulher, indicando muito mais uma hierarquia de gênero do que o
comprometimento da funcionalidade por causa da doença.11
166 Se a família é fundamental para chegar ao diagnóstico e atua como medida ou dosagem
para a indicação ou suspensão de medicamentos, ela também é um obstáculo ao levar à
consulta situações e conflitos que, apesar de relacionados ao caso que está sendo
atendido, fogem da alçada do trabalho médico. Se o familiar-cuidador contribui para
recuperar e compor os fios soltos que vão sendo deixados nas trajetórias do doente, tal
empreitada não se dá sem constrangimentos e discordâncias. Nesse entrecruzamento
de vozes, ruídos, lacunas, silêncios são ouvidos.

Percorrer rastros, recolher fios


167 Na consulta no ambulatório de neurologia, Joaquim, de 83 anos, foi acompanhado pela
filha. Desanimado e sonolento, permaneceu quieto durante a consulta, mal
respondendo às perguntas do teste12. A filha disse que o problema é o esquecimento.
Joaquim toma banho, veste-se e alimenta-se sozinho. Não faz as tarefas domésticas.
“Mas isso ele nunca fez mesmo!”, afirmou a filha. Disse ainda que o pai é muito
preguiçoso, não querendo fazer qualquer atividade física ou mental.
168 O médico, após ouvir a residente, começou uma conversa com a filha.
169 (médico): ele só esquece, não tem outro sintoma não?
170 (filha): não.
171 (médico): não tem ideias absurdas, vendo coisas?
172 (filha): não.
173 (médico): o que ele mais esquece?
174 (filha): onde ele guardou as coisas; esquece o isqueiro.
175 (médico): isso é todo dia?
176 (filha): todo dia.
177 (médico, olhando para a residente): essa é a diferença entre o envelhecimento normal,
em que o esquecimento é esporádico, e o envelhecimento com demência, em que o
esquecimento é frequente. Outra diferença é afetar a vida diária. (olhando para a filha)
Ele é independente? Pega a aposentadoria sozinho?
178 (filha): não.
179 (médico, para a residente): essa é outra diferença. (para a filha) Ele faz alguma
atividade? Chama para fazer alguma coisa?
180 (filha): ele é muito parado, não tem vontade de fazer as coisas.

Ponto Urbe, 20 | 2017


19

181 (médico): mas é importante fazer alguma coisa. (dirigindo-se ao paciente) Nós estamos
falando do Sr. O que o Sr. acha da nossa conversa?
182 (paciente): a conversa tá boa.
183 (medico): o Sr. tá esquecido?
184 (paciente): tô.
185 (médico): o Sr. acha isso ruim?
186 (paciente): não.
187 (médico): o Sr. é animado ou desanimado?
188 (paciente): animado. (filha se surpreende, comentando “ah, é...”)
189 (médico): por que o Sr. não quer fazer as coisas? É importante para o Sr. fazer...
190 (paciente): ah, tô velho, né... quero descanso; é preguiça. (ri)
191 (médico, para a residente): eu faço essas perguntas pra saber da parte emocional, não só
da memória. Apatia é um sintoma muito comum da doença de Alzheimer, mais do que
depressão. A gente tem que ver outros sintomas, não só os cognitivos. Apatia é não
querer fazer; cognição é não saber, não conseguir fazer. Toda vez tem que perguntar
não só sobre esquecimento mas também sobre funcionamento. Para casos leves, fazer
perguntas mais para se vestir, tomar banho. Para casos graves, fazer perguntas sobre
alimentação. Se a alimentação estiver comprometida, não por motivos motores mas
cognitivos, aí todo o resto também vai estar. A capacidade funcional é cognitiva.
192 Antes de ir embora, o médico se virou para Joaquim e disse: “o Sr. ouviu o que eu falei?”
E ele respondeu, rindo: “pra comer muito e dormir”. O médico, também rindo, rebateu:
“não. É pra fazer caminhada pra perder essa barriga aqui!” (apontando a barriga do
paciente). Quando o médico saiu, a residente olhou para a filha e disse: “o que tem mais é
apatia. Vamos tentar fazer com que ele participe mais, fazer atividade física”.
193 Acompanhada pelo marido, Aparecida, de 67 anos, foi à consulta na neurologia.
194 (residente): como a sra está?
195 (paciente): ah, é difícil de gravar! Eu vejo tudo e aí, quando eu vou contar, não sai.
196 (residente): me dá um exemplo.
197 (paciente não soube dar exemplo e olha para o marido)
198 (marido): esquece o dia, onde guardou a roupa...
199 (residente): esquece nomes de pessoas?
200 (marido): da família não, mas das pessoas da igreja sim... a gente vai na igreja quatro
vezes por semana. Ela era professora, é professora.
201 (paciente): deve ser mal de professora isso, viu! Conheço várias assim.
202 (residente): faz a comida?
203 (marido): faz, mas a gente tem que ficar acompanhando. Às vezes esquece de pôr açúcar
no café...
204 (residente): tá fazendo exercício físico?
205 (esposa): faço caminhada.
206 (marido): é, a gente faz caminhada três vezes por semana.
207 (residente): a memória tá piorando?

Ponto Urbe, 20 | 2017


20

208 (paciente): tá.


209 (residente): o sr também acha?
210 (marido): tá evoluindo bastante.
211 (paciente): eu não saio mais sozinha.
212 (marido): a gente não deixa mais. Minha neta casou e mora do lado. Às vezes ela fala
“mas quem tá morando aqui?” Eu falo “é a fulana, nossa neta” e ela “ah, é? Ela casou?”
Então essas coisinhas assim.
213 (residente): como tá o humor? Sente tristeza?
214 (paciente): às vezes.
215 (residente): e por quê?
216 (paciente): ah, lembro da minha família... mas não é muito não.
217 (residente): fica irritada? É pavio curto?
218 (paciente): sou, né, bem? (olhando para o marido)
219 (marido): é, às vezes fica irritada.
220 (residente): mexe com dinheiro? Faz compra?
221 (marido): a gente vai junto, ela escolhe a roupa, mas eu pago porque ela não lembra da
senha do cartão. Às vezes, eu falo pra ela comprar aquela blusa e ela diz que não quer.
Difícil uma mulher falar isso, né?
222 (residente): consegue se manter atualizada?
223 (paciente): se eu vejo uma notícia, eu não sei contar.
224 Após ouvir o relato do residente, o médico fala que o comprometimento cognitivo leve
(CCL) evoluiu para uma doença de Alzheimer leve, já que, apesar de ainda tomar banho,
vestir-se e comer sozinha, a paciente não sai mais sozinha, não consegue mais pagar as
compras e precisa de supervisão para cozinhar, além de estar mais irritada e esquecida.
225 Em uma das consultas em que a filha estava acompanhando o pai, o médico e a
residente a repreenderam pois, como ela não morava com ele, não sabia dar detalhes
para que eles chegassem a um diagnóstico. A filha se desculpou e disse que a mãe, quem
sempre o leva para a consulta, não pôde ir naquele dia.
226 A residente, olhando o prontuário médico – uma pasta com o histórico do caso -, disse
ser uma provável doença de Alzheimer - a primeira consulta no ambulatório de
neurologia foi em 2005, após Frederico ter se perdido na rua. Numa consulta em 2013, a
conversa se iniciou com a residente perguntando diretamente para o paciente.
227 (residente): como o Sr. está?
228 (paciente): melhor, né?
229 (residente): mas como está?
230 (paciente): meio gripado.
231 (residente): como tá a memória?
232 (paciente): ah, às vezes guardo um objeto e esqueço. Tem que contar a verdade, né?
233 (residente): mora com quem?
234 (paciente): com a minha esposa.
235 (residente): ela que cuida da casa?

Ponto Urbe, 20 | 2017


21

236 (paciente): cuida.


237 (residente): o Sr. cozinha?
238 (paciente): eu não! Minha esposa. Eu só como.
239 (residente): fica fazendo o que em casa?
240 (paciente): não faço nada. Já trabalhei muito, agora é descansar. De manhã, faço
caminhada. Depois, não faço nada. Já tô aposentado, vai fazer o quê? Não tem mais que
trabalhar.
241 (residente): ele sai sozinho?
242 (paciente): dá medo. A gente com a idade que tá, né? E os jovens... dá medo de sair
sozinho.
243 (filha): e ele também já se perdeu. Saiu sozinho e não sabia voltar para casa.
244 A filha disse ainda que ele fica nervoso às vezes, o que nunca foi. “Irritado por quê? Tô
aposentado! Não tem mais nada pra fazer!”, discordou Frederico. A residente perguntou
se ele escolhe a roupa e a filha disse que a esposa sempre escolheu. Perguntou se ele
manuseia dinheiro, mas isso também é a esposa quem faz.
245 Ao longo da consulta, Frederico repetiu várias vezes que está aposentado e que, por
isso, não precisa fazer nada. Após o relato da residente, o médico, percebendo a
dificuldade para a conclusão daquele diagnóstico, dirigiu-se à filha que estava
acompanhando o pai.
246 (médico): Mas ele já tentou fazer essas atividades? Tem que deixar ele fazer, escolher,
pagar... A gente não sabe se ele consegue porque ele não faz. Deixa ele fazer, tentar,
com supervisão. Porque nós vamos perguntar de novo (na próxima consulta), pra gente
saber qual é o problema dele.
247 (residente): é difícil ver a evolução do quadro porque não há atividades. Tem uma
evolução, o teste dele piorou, mas como não tem atividade em casa, é difícil de avaliar.
248 (médico): Tem que deixar ele fazer, errar. Nosso diagnóstico depende disso. Não dá pra
concluir, não dá pra avaliar a capacidade funcional. O diagnóstico de demência precisa
de detalhes, informar as atividades.
249 (filha): Minha mãe não pôde vir na consulta hoje. Mas a gente paparica muito!
250 (médico): isso prejudica ele! Essa doença gosta de analfabeto, de quem fuma, de quem
fica parado... se tira a atividade da pessoa, deixa ele paradão, só piora. 13
251 (filha): é, vou falar com a minha mãe.
252 O diagnóstico permanece em aberto. Quando filha e pai saíram, a residente comentou
comigo: “a perda da cognição é porque ele não faz nada, fica sem qualquer atividade em
casa”.
253 Na consulta de uma senhora de 76 anos, o médico, tentando estabelecer as fronteiras
entre demência e depressão, disse:
254 (médico para a residente): Deixa eu te explicar uma coisa: doença mental é a coisa mais
difícil de diagnosticar. O cérebro é muito complexo. (residente concorda).
255 (paciente): Isso não é doença, doutor! Isso é preocupação. (médico finge não ter ouvido;
filha e nora falam para ela ficar quieta).
256 (médico): É muito difícil diferenciar demência e depressão. Precisamos dos
testemunhos dos fatos para dar o diagnóstico, do que vocês viram (olhando para a filha a

Ponto Urbe, 20 | 2017


22

nora). Porque senão falamos que é depressão e pronto. Precisamos saber quais outros
domínios do cérebro são afetados, se tem esquecimento, se deixa fogão ligado, se
esquece nomes de parentes, para saber se é demência.
257 A complexidade da busca pelo diagnóstico é discutida, com frequência, pelos médicos e
residentes. Em uma das aulas, um psiquiatra falou sobre isso.
A psiquiatria geriátrica é um passo a mais do que a psiquiatria geral. Na psiquiatria
geral, se tem delírio auditivo, é esquizofrenia. Se tem depressão, é depressão. Mas
na psiquiatria geriátrica, se tem depressão, não significa que é depressão: pode ser
algo a mais, por exemplo, demência. Se tem alucinação, pode ser esquizofrenia ou
demência. Se a pessoa começa a desenvolver sintomas neuropsiquiátricos
tardiamente, devemos suspeitar de demência. É preciso ter uma visão mais
espectral.
258 As consultas mostram as nuances que envolvem a doença de Alzheimer, ora vista como
uma doença orgânica, do cérebro, neurológica, ora como um misto entre o orgânico e o
psíquico/social. As fronteiras entre depressão e demência são tênues, uma vez que há
sintomas em comum, como apatia, tristeza, perda de atenção e falta de iniciativa para
realizar atividades. Uma depressão pode levar a uma demência e uma demência pode
levar a uma depressão. Quando há o comprometimento do que médicos e residentes
chamam de funcionalidade, o caso tende a ser diagnosticado como demência, ainda que
a pessoa esteja também deprimida.14 Como um psiquiatra me disse, uma pessoa com
depressão não deixa de saber como se cozinha, toma banho ou atravessa a rua, mas
alguém com demência pode não mais conseguir fazê-los. Por isso, as consultas precisam
de longas conversas com o paciente e o acompanhante. Aqui, detalhes do cotidiano
contam e muito.15
259 Ainda que seja um fio importante para a composição da doença, a memória está
entrelaçada às atividades do dia a dia, relacionando-se a outras dimensões. Um
neurologista, após ouvir a residente dizer que a paciente esquece como cozinha e só se
lembrou de 4 nomes de animais, chamou-lhe a atenção: “viu como a gente tem mania
de achar que tudo é memória? A gente vê como problema de memória e não de
linguagem, cognição”. Ou seja, ao invés de tomar o “não mais cozinhar” e o baixo
número de nomes de animais ditos (a fluência verbal de uma pessoa considerada
saudável é de 11 ou mais) como problemas de cognição (não conseguir fazer) e de
linguagem, respectivamente, a residente teria interpretado como problemas de
memória (esquecer-se de cozinhar ou de como cozinhar; não se lembrar dos nomes).
260 Esse mesmo neurologista, numa avaliação de outro paciente, ao achar estranho que a
queixa era mais amnéstica sendo que o quadro parecia ser de demência vascular, o qual
apresenta sintomas mais motores (como marcha e movimentos lentificados), comentou
com a residente: “a questão é que o paciente ou o familiar sempre fala de memória: “ah,
ele esquece de dar descarga” (uma das queixas trazidas pelo familiar); provavelmente não é
esquecimento, mas mais alteração de comportamento, desleixo com a higiene pessoal.
Se perde o caminho, falam que ele esqueceu... mas nem sempre é isso; a confusão nem
sempre é esquecimento”. Além disso, a memória, na relação com a funcionalidade, pode
transbordar para outras dimensões possíveis, numa oscilação com a imaginação e a
alucinação – é quando o cotidiano se torna assombrado. 16

Ponto Urbe, 20 | 2017


23

Diagnóstico como nomeação-suspensão e o cotidiano


assombrado
261 A coletânea Sociology of Diagnosis mostra como o diagnóstico moderno, tomado tanto
como categoria quanto processo, ao se valer dos desenvolvimentos tecnológicos e
científicos, torna-se uma prática menos fluida. Não mais informado exclusivamente
pela narrativa subjetiva do paciente e pelo relato dos sintomas, o diagnóstico teria todo
um aparato técnico para se apoiar, como exames laboratoriais, raios-x, neuroimagens,
solidificando a autoridade dos médicos na compreensão da doença. 17
262 O diagnóstico, na doença de Alzheimer, desestabiliza o paradigma biomédico ao se
mostrar como um mistério, um nó difícil de desatar. Apesar de minuciosamente
investigado, o diagnóstico permanece fluido e não acaba com as incertezas que rondam
a doença. Ainda que os médicos continuem a deter considerável poder, a doença de
Alzheimer como mistério diagnóstico faz com que outros campos intervenham na
tentativa de compreendê-la. Além disso, o relato do familiar-cuidador e do paciente
continua sendo mais importante do que qualquer aparato tecnológico. Nesse sentido, o
diagnóstico da doença de Alzheimer jamais foi moderno. 18
263 O que significa, afinal, chegar ao diagnóstico num terreno tão sedimentoso e instável,
com experiências tão diferentes? Se ele não dissolve as incertezas que rondam a
doença, por que a insistência nele?19
264 Para Jutel (2011), o diagnóstico como expressão cultural permite-nos compreender o
que cada sociedade aceita como normal e como patológico. Nesse deslocamento,
doenças, doentes e diagnósticos são (re)criados. A doença de Alzheimer também pode
ser lida como aquilo que uma sociedade não aceita como normal, o que leva a uma
diversidade de formas de ver e lidar com a doença. Se, para o mundo dito ocidental, ela
é tida como uma epidemia, o “mal do século”, para outras sociedades tal conotação
parece não fazer sentido. Cohen (1995; 1998) mostra como, na Índia, o nome “doença de
Alzheimer” sequer existe, já que outra maneira de conceber a velhice e a senilidade está
em jogo. Para Leibing (1999; 2000; 2002), além dos sentidos de senilidade, o modo como
concebemos memória também é importante para a compreensão da doença, assim
como definimos pessoa. A noção de doença se conecta, assim, com outras num percurso
transversal no qual os nomes deslizam, desmancham-se e se compõem.
265 “Será que é mesmo doença de Alzheimer?” – ouvi essa pergunta muitas vezes nas
reuniões da Associação Brasileira de Alzheimer (ABRAz). As fronteiras entre o processo
“normal” de envelhecimento e o início e desenvolvimento da doença provocam
dúvidas, o que leva, muitas vezes, a uma procura tardia do médico e/ou uma demora do
próprio médico em diagnosticar. Um senhor de 80 anos me contou que levou a esposa,
hoje também com 80 anos, em 6 médicos – 4 psiquiatras e 2 neurologistas – e todos
disseram “não ser nada” ou ainda “ser da idade”. Foi somente no sétimo médico – um
neurologista particular – que o diagnóstico foi feito, já no grau moderado. Percebendo
os primeiros sintomas de esquecimento na esposa há 13 anos, foi há pouco mais de 8
anos que ele soube ser doença de Alzheimer.
266 David Hilfiker, médico aposentado, 68 anos e autor do blog Watching the lighs go out: a
memoir from inside Alzheimer´s disease, está vivendo o dilema de estar na fronteira
entre o “envelhecimento normal” e o “envelhecimento patológico”. Num movimento

Ponto Urbe, 20 | 2017


24

pendular de comprometimento cognitivo leve a demência, ele se mostra angustiado por


não saber o que tem – e se tem algo.
267 Diante da preocupação de ser inconveniente e da dificuldade de lavar a louça e lembrar-
se de pessoas, Hilfiker se pergunta se estaria imaginando tais situações ou se é a doença.
“Pergunto-me se estou apenas imaginando ou exagerando esse comprometimento
cognitivo”. Por ainda não ter um diagnóstico, ele não sabe o que dizer às pessoas
quando situações confusas ou constrangedoras acontecem. “Uma pequena parte de
mim quer que a doença avance para que esses momentos sejam explicáveis,
legitimados”. “Estranhamente, encontro-me quase desejando que houvesse alguns
sintomas para me ancorar”.
268 Se o diagnóstico pode fornecer sentido e organização ao caos e desordem da doença, ele
também pode trazer dissolução e ruptura. Jennifer S.Singh (2011) mostra como algumas
pessoas com Síndrome de Asperger (uma forma de autismo) se definem como
“neurodiferentes”, não se vendo como doentes ou a doença se torna um modo de vida,
um traço de personalidade que é valorizado pelas pessoas que a tem. 20 Para a doença de
Alzheimer, parece não haver espaço para abraçar a doença como traço da
personalidade, mas um esforço de demonstrar que a personalidade permanece, apesar
da doença.21
269 Também há a possibilidade de sequer ter conhecimento do diagnóstico – seja porque a
família decide não contar ou porque a pessoa não se sente doente 22. Nessa ambivalência
entre nome e suspensão, o diagnóstico da doença de Alzheimer pode levar à não
participação em atividades de lazer e trabalho23, o desligamento da esfera pública, o
apagamento das lembranças, a chamada “dissolução do self” 24. Para Kathleen
Woodward (2012), os velhos fragilizados – e seus cuidadores - se constituem como um
“segredo público” – um segredo que o público escolheu manter seguro dele mesmo: ao
mesmo tempo em que é alarmante, é uma situação invisível.
270 A tensão entre autonomia e dependência revela os limites e alcances do cuidado e de
noções como doença, pessoa, memória, velhice. Se a autonomia do doente deve ser
preservada ao máximo, ela parece encontrar um limite ao se referir às atividades de
vida diária. Quando o doente se recusa a fazer algo, dá a sua opinião, faz algum
comentário, expressa um desejo, posiciona-se, o que poderia ser visto como autonomia
se transforma em “pirraça”, velhice, “caduquice”, doença. Uma filha, que cuida da mãe
com doença de Alzheimer, desabafou numa reunião da ABRAz: “quando eu falo pra
tomar banho, minha mãe diz que já tomou, mas não sei se é a doença, se ela esqueceu,
ou se é malandragem dela, se ela está sendo esperta mentindo pra gente, isso sim!”
271 É percorrendo o dia a dia do doente através de cenas e relatos descritos por quem cuida
que residentes e médicos conseguem perceber o quanto o “não lembrar” está
relacionado ao “não conseguir fazer” da doença. Tomar banho, comer, atender o
telefone, vestir-se, cozinhar tornam-se cenas que precisam ser vistas, registradas,
dedicadas, descritas, recolhidas, como se fosse preciso retê-las, guardá-las para se
tornarem normais e possíveis. Se essas atividades podem ser banais e passar
despercebidas, elas ganham uma dimensão extraordinária para aqueles que não
conseguem realizá-las ou, ao menos, encontram dificuldades para tal: Kris, que não
consegue ligar a máquina de lavar, Joe, que não consegue escolher os alimentos da
geladeira porque acredita que eles vão atacá-lo, Odalina, que usou cal ao invés de
polvilho para fazer biscoito, Jussara, que convidou a imagem do espelho para passear,
Célia, aflita porque o macaco da novela entraria na sala, José, que entrou vestido

Ponto Urbe, 20 | 2017


25

embaixo do chuveiro para tomar banho – numa outra vez, tentou tomar banho com a
água do vaso sanitário -, Guilherme, que vestiu a camisa como se fosse calça e tentou
mudar o canal da televisão com um chinelo. Se o cotidiano pode se tornar assombrado,
a busca pelo dia a dia, na clínica, é imprescindível: é preciso recolher os rastros que
restam, ainda mais numa doença cujos fios vão se soltando aos poucos 25. As fotografias e
os relatos que vimos mostram como essas cenas domésticas se tornam também
metáforas, assombros, fantasmas da doença.
272 Entre a popularização e a incerteza, entre a epidemia e a indefinição, a doença de
Alzheimer se torna tanto um enigma quanto um termo guarda-chuva: ao mesmo tempo
em que não se sabe ao certo o que é nem o que fazer, ela abarca uma multiplicidade e
heterogeneidade de situações. O nome “doença de Alzheimer” se desloca ao longo das
notícias, diagnósticos, experiências e relatos. Comprometimento cognitivo leve,
demência, velhice, loucura podem se tornar “doença de Alzheimer”, num constante
deslize, ao mesmo tempo em que há uma investigação minuciosa para se chegar ao
diagnóstico. As dúvidas se é doença ou velhice, as oscilações entre demência e lucidez,
rotina e criatividade, terror e humor, as nuances entre neurológico e psiquiátrico,
normal e patológico, memória e alucinação, a ambiguidade do trauma como causa e não
causa indicam uma densidade de relações difícil de ser discernida.
273 O diagnóstico como um “embrolho” difícil de desatar 26, numa doença cujos fios vão se
soltando aos poucos, traz uma abertura da clínica: a classificação dos sintomas coexiste
com a necessidade de recolher os detalhes do dia a dia, imaginar cenas, ouvir relatos e
queixas de pacientes e cuidadores, ponderar medicamentos, sentir a família, lidar com
a incerteza, reconhecer quando não há o que fazer. O discurso da “dissolução do self”
coexiste com a recomendação de estimulação cognitiva, a rotina, com a criatividade e
importância das relações sociais. A busca pelo diagnóstico alarga a temporalidade
clínica ao arrastar a investigação por anos, às vezes de maneira a nunca se concluir,
num processo em contínuo movimento no qual seguir os rastros e as pistas do cotidiano
se torna tão ou mais importante do que o ponto de chegada. Nesse sentido, a doença de
Alzheimer alarga o paradigma biomédico, uma vez que a busca e dificuldade da
classificação encontram outros pontos, outras linhas ao longo do percurso, como a
narrativa, a experiência, o cotidiano, a incerteza.

BIBLIOGRAFIA
- COHEN, Lawrence. 1995. “Toward an anthropology of senility: anger, weakness, and Alzheimer´s
in Banaras, India”. Medical Anthropology Quaterly, vol.9, n.3: p.314-34.

- ________________. 1998. No aging in India: Alzheimer´s, the bad family and other modern
things. Berkeley, University of California Press.

- CUIJPERS, Yvonne & LENTE, Harro van. 2015. The meanings of early diagnostics for Alzheimer’s
disease in Dutch newspapers. A framing analysis. In Swinnen, Aagje & Schweda, Mark (eds.).
Popularizing Dementia: Public Expressions and Representations of Forgetfulness. Aging Studies,
vol.6. Germany: Transcript Verlag, Bielefeld, p. 295-314.

Ponto Urbe, 20 | 2017


26

- GRAHAM, Janice E. 2006. “Diagnosing Dementia: Epidemiological and Clinical Data as Cultural
Text”. In Annette Leibing/Lawrence Cohen (eds.), Thinking about Dementia: Culture, Loss, and the
Anthropology of Senility, New Brunswick: Rutgers University Press: p. 80-105.

- JUTEL, Annemarie. 2011. “Sociology of Diagnosis: a Preliminary Review”. In McGann, PJ &


Hutson, David J. (eds). Sociology of Diagnosis. UK: Emerald Group Publishing, vol. 12.

- KATZ, Stephen; MARSHALL, Barbara. 2004. “Is the ‘functional’normal? Agind, sexuality and the
bi-marking of successful libing”. History of the Human Sciences. Vol. 17, n.01: p.53-75.

- LATOUR, Bruno. 1994. Jamais fomos modernos: ensaio de antropologia simétrica. Rio de Janeiro:
Ed. 34.

- LEIBING, Annette. 1999. “Olhando para trás: os dois nascimentos da doença de Alzheimer e a
senilidade no Brasil.” Estudos interdisciplinares sobre o envelhecimento, v.1.

- ______________. 2000. “Velhice, doença de Alzheimer e cultura: reflexões sobre a interação


entre os campos da antropologia e da psiquiatria”. In Guita Grin Debert & Donna M, Goldstein
(orgs), Políticas do corpo e o curso da vida. São Paulo: Ed. Sumaré.

- _____________. 2002. “Flexible hips? On Alzheimer’s disease and aging in Brazil”. Journal of
Cross-Cultural Gerontology 17: 213-232.

- MARTIN, Emily. 2006. The pharmaceutical person. BioSocieties 1, p.273-288. London School of
Economics and Political Science.

- MCGANN, PJ & HUTSON, David J.(eds). 2011. Sociology of Diagnosis. UK: Emerald Group Publishing,
vol. 12.

- ROSENBERG, Charles E. 2002. The tyranny of diagnosis: specific entities and individual
experience. The Milbank Quartely, vol. 80, n.2, p. 237-259.

- SACKS, Oliver. 2006. Um antropólogo em Marte: sete histórias paradoxais. São Paulo: Companhia
das letras.

- SINGH, Jennifer S. 2011. The Vanishing Diagnosis of Asperger's Disorder. In PJ McGann, David J.
Hutson (ed.) Sociology of Diagnosis, vol. 12, Emerald Group Publishing Limited, pp.235 – 257.

- WOODWARD, Katheen. 2012. “A Public secret: assisted living, caregivers, globalization”.


International Journal of Ageing and Later Life 7 (2): 17-51.

Blogs:

http://living-with-alzhiemers.blogspot.com.br/

http://davidhilfiker.blogspot.com.br/

NOTAS
1. Se, para a doença de Alzheimer, o sintoma mais importante é a perda da memória, na
demência frontotemporal são as mudanças comportamentais o que mais chama a atenção, como
desinibição, agressividade, desleixo com a higiene pessoal etc. Tais nuances, porém, são difíceis
de serem percebidas e muitas vezes se embaralham, tornando o diagnóstico diferencial (se é
doença de Alzheimer ou outro tipo de demência) ainda mais complexo e demorado.
2. Discussão de caso é uma expressão usada por médicos e residentes e se trata de uma conversa
entre eles numa tentativa de chegar ao diagnóstico.

Ponto Urbe, 20 | 2017


27

3. O comprometimento cognitivo leve (CCL) está no limiar entre o envelhecimento tido como
normal e o envelhecimento considerado patológico. O CCL é alvo de polêmica entre os médicos:
mesmo não sendo doença, alguns defendem uma intervenção farmacológica como forma de
prevenção de uma possível demência, apesar de alguns estudos mostrarem uma baixa eficácia dos
remédios nessa “fase”.
4. Outros familiares associaram o início da doença a algum episódio traumático ou de grande
stress. O trauma como causa, porém, é polêmico para os médicos: ora eles admitem essa
possibilidade, ora a descartam em favor de uma interpretação mais orgânica, neurológica da
doença.
5. “Paciente”, “doente”, “doença” são termos em suspensão, já que o que estou propondo é
investigá-los. “Paciente” denota uma passividade que não condiz com o que observei nas
consultas. “Doente” e “doença” não podem ser tomados de antemão, já que pretendo percorrer a
composição dos mesmos. Uso tais termos dentro de contextos específicos, como as consultas
médicas.
6. Em outra consulta, esse mesmo médico disse “não se é demente o tempo todo!”, mostrando
que há flutuações na doença.
7. Durante a consulta, ficava numa cadeira, no canto da sala, observando e anotando o diálogo em
meu caderno de campo. Apesar de tentar ao máximo não interferir para não prejudicar a
investigação clínica, era comum paciente e acompanhante olharam para mim, fazer algum gesto,
falar algo. Nos vários momentos em que o residente saía, seja para pegar receitas ou para chamar
os médicos, aproveitava para conversar com eles.
8. A carbamazepina é um dos principais fármacos utilizados para o tratamento da epilepsia
9. Alterações comportamentais, como apatia, agressividade, desinibição etc.
10. Até o momento, a doença de Alzheimer é considerada incurável. Apesar disso, os médicos e a
equipe de voluntários da Associação Brasileira de Alzheimer (ABRAz) dizem que ela tem
tratamento através do manejo dos sintomas (agressividade, apatia, alucinação, tristeza etc).
11. Isso reforçou a desconfiança que vinha tendo em relação a uma explicação meramente
demográfica que normalmente é dada por médicos e profissionais da saúde para o índice de dois
a três vezes maior de incidência de doença de Alzheimer em mulheres (as mulheres, por viverem
mais, teriam mais chances de ter a doença). Será que há mais casos de doença de Alzheimer em
mulheres ou eles são mais facilmente percebidos e diagnosticados, uma vez que, como estamos
vendo, detalhes do dia a dia, principalmente no que se refere às tarefas domésticas, são
fundamentais para o diagnóstico? Se os homens não fazem tais atividades, a busca pelo
diagnóstico se torna ainda mais difícil.
12. Mini Exame do Estado Mental, com perguntas para avaliar memória, função executiva,
orientação temporal e espacial.
13. Analfabetismo – ou o pouco uso do cérebro ao longo da vida -, tabagismo e sedentarismo,
além de outras comorbidades (como diabetes, obesidade, hipertensão, depressão) são
considerados fatores de risco para o desenvolvimento da doença.
14. Para uma discussão sobre o binarismo funcional/disfuncional como substituição do par
normal/patológico na gerontologia e sexologia, ver Katz, S. & Marshall, B. (2004).
15. O diagnóstico é clínico, ou seja, baseado na investigação com paciente e acompanhante
durante a consulta. Exames de neuroimagem, como ressonância magnética, são um suporte ao
diagnóstico, indicando qual parte do cérebro está mais atingida – se for o hipocampo, região
responsável pela memória, a suspeita é de doença de Alzheimer; já a região frontal atrofiada
indicaria a demência frontotemporal. A neuroimagem, porém, não define o diagnóstico, apenas o
auxilia. Até o momento, não há um exame que detecte a patologia e o diagnóstico é sempre de
“provável doença de Alzheimer”.
16. Discuto memória em “Rastros da memória na doença de Alzheimer: entre a invenção e a
alucinação” (Revista de Antropologia USP, no prelo).

Ponto Urbe, 20 | 2017


28

17. Sobre como o diagnóstico mudou nos últimos dois séculos, tornando-se mais técnico,
especializado e burocrático, ver Rosenberg (2002).
18. Além de abalar a definição de diagnóstico moderno presente na coletânea Sociology of
Diagnosis, o diagnóstico da doença de Alzheimer, como uma sobreposição entre natureza e
cultura, orgânico e inorgânico, jamais foi moderno também no sentido de Latour (1994).
19. Como fazer um diagnóstico precoce é o principal tema das aulas e pesquisas na medicina.
Sobre como essa expectativa muda visões pessoais e respostas sociais para a doença de
Alzheimer, ver Yvonne Cuijpers e Harro Van Lente (2015).
20. Como disse Temple, em Sacks (2006): “Se pudesse estalar os dedos e deixar de ser autista, não
o faria – porque então não seria mais eu. O autismo é parte do que eu sou” (p.290).
21. Numa campanha denominada “Still”, na rede social Facebook, a Associação de Alzheimer da
Irlanda publicou fotos de pessoas com a doença segurando um cartaz escrito “still (nome da
pessoa)” ou “still (insistently) (nome da pessoa)”. Ainda que a doença de Alzheimer não seja vista
como traço da personalidade – apesar de alguns traços de personalidade serem elencados como
fatores de risco para a doença -, existe uma reivindicação de uma diferença ontológica criada pela
doença – “Bem vindo ao meu mundo”, escreve Joe, autor do blog Living with Alzheimer´s – ao
fazer dela um modo de subjetivação, um estilo de vida. Se tal reivindicação pode ser importante
para que essas pessoas sejam ouvidas e reconhecidas, ela pode criar um abismo ou uma dicotomia
entre “nós”, saudáveis, e “eles”, doentes, podendo prejudicar a comunicação e convivência.
22. Como vimos, alguns pacientes, ao serem questionados pelo residente sobre como se sentiam
ou o que tinham, respondiam estar bem ou se referiam a outras queixas, como tontura, resfriado,
dor de cabeça.
23. Na ABRAz pesquisada, os doentes/pacientes não podem participar das reuniões. Em uma
reunião, a coordenadora chamou a atenção da filha por ela ter levado o pai – já era a segunda vez
que ela o levava -, diagnosticado com doença de Alzheimer, explicando que o grupo era voltado
aos familiares. A filha não gostou, disse que o pai ficava esperando a hora de ir e que, não tendo
com quem deixá-lo, ela não poderia mais participar das reuniões – o que aconteceu. Também
entre a equipe de voluntários, isso já foi motivo de discórdia: enquanto a educadora física e a
psicóloga insistiam para que houvesse atividade voltada a eles, a coordenadora, que é
fonoaudióloga, resistia à tal possibilidade.
24. É muito comum associar a doença de Alzheimer à “dissolução do self”, expressão usada por
médicos e residentes para indicar um sintoma alucinatório, uma “perda da noção de realidade”,
quando, por exemplo, o doente não se reconhece ao se ver no espelho. Em minha pesquisa,
problematizo essa expressão ao mostrar que ela se conecta a uma determinada noção de pessoa e
interpretação da doença. Ao trazer os relatos dos próprios doentes, é possível dissolver e/ou
potencializar a dissolução, vendo outras maneiras possíveis de lidar com e compreender a doença
para além do discurso biomédico.
25. “É como se os fios fossem se soltando aos poucos”: era assim que a coordenadora da ABRAz
começava a explicar a doença nas reuniões do grupo de apoio aos familiares.
26. Numa frase de um psiquiatra, ao comentar as novas pesquisas sobre diagnóstico precoce: “o
biomarcador é importante, mas achar que ele vai desatar, acabar com o embrolho...”.

Ponto Urbe, 20 | 2017


29

RESUMOS
A partir da observação de consultas nos ambulatórios de neurologia e psiquiatria geriátrica de
um hospital universitário e de reuniões da Associação Brasileira de Alzheimer, o artigo mostra o
complexo e difícil trajeto para a composição do diagnóstico de doença de Alzheimer, com vozes
entrecruzadas de cuidadores-familiares, doentes, residentes e médicos, disputas entre as áreas da
medicina, polêmicas e revisões diagnósticas. Ao longo da tessitura da doença, a funcionalidade se
apresenta como embate narrativo e performático entre os sujeitos envolvidos e o diagnóstico se
revela um enigma que desestabiliza não só paradigmas médicos, mas também filosóficos,
políticos, sociais ao conectar a doença com outras noções, como memória, pessoa, velhice. Nesse
percurso, a família aparece como medida e desmedida: se o relato do cuidador-familiar é
fundamental para o diagnóstico, ele leva às consultas outros conflitos que transbordam a
competência médica.

From observation of consultations in the outpatient clinics of neurology and geriatric psychiatry
of a University hospital and meetings of the Brazilian Association of Alzheimer's, the article
shows the complex and difficult path to the composition of the diagnosis of Alzheimer's disease,
with voices intersecting caregivers-family members, patients, residents, and doctors, disputes
between the areas of medicine, polemics and diagnostic reviews. Along the composition of the
disease, the functionality presents itself as a collision of a narrative and the performance
between the subjects involved and the diagnosis reveals itself as a puzzle that destabilizes not
only the medical paradigms, but also philosophical, political, social, when the disease is
connected to other notions, such as memory, person and old age. On this journey, the family
appears as measured and unmeasured: if the familiar-caregiver report is critical to the diagnosis,
it leads to queries other conflicts that spill over medical competence.

ÍNDICE
Palavras-chave: doença de Alzheimer, diagnóstico, funcionalidade, cuidador-familiar, cotidiano
Keywords: Alzheimer`s disease, diagnosis, functionality, caregivers-family, everyday life

AUTOR
DANIELA FERIANI
Doutora em Antropologia na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp)
danielaferiani@yahoo.com.br

Ponto Urbe, 20 | 2017


30

notas sobre sex shops e transações de conhecimento em joão pessoa,


pb
Erotismo, mercado e sexualidades
Notas sobre sex shops e transações de conhecimento em João Pessoa, PB

Thiago de Lima Oliveira

Introdução
1.

1 João Pessoa, janeiro de 2015. Imagine-se na frente de uma vitrine. À sua frente, entre
um item decorativo e outro, apresentam-se calcinhas e sutiãs vestidos em manequins
sem qualquer expressão de vida. Essa imagem é o que na linguagem cinematográfica
poderia ser chamada de plano aberto. Uma grande angular com foco ao centro e sem
muitas camadas de informação. Agora adensemos mais um pouco e entremos nos
detalhes da vitrine: calcinhas vermelhas e outros tons que poderiam ser lidos como
“provocativos” dentro de certa gramática do sexo. Em destaque, uma lingerie preta
decorada com rendados, busto farto sustentado por uma armação em ferro e nas costas,
além dos detalhes sutilmente desenhados, inúmeras casas pelas quais um pedaço de
cetim ou seda compõe um jogo de amarração. A estética da peça convida à companhia.
Como amarrar a lingerie sem algum tipo de parceria, seja amigável, filial ou conjugal?
2 Pois então, entremos na loja a fim de conferir informações de caráter prático, como
preço e possibilidades de troca – afinal, estamos em um mundo que apesar do clima de
sensualidade e sensibilidade que tenta construir, ainda é o mundo do comércio e do
capital. A pequena loja é composta por araras nas paredes que organizam os produtos:
calcinhas, pijamas, sutiãs e meias especiais. Numa pequena porção da parede próxima à
vitrine também se percebe alguns cabides ocupados por cuecas. Poucas. Ao centro, duas
mesas expõem outros tipos de produto e mais ao fundo a loja se divide entre
provadores e um balcão que funciona como caixa para fechamento das compras e
pagamento. Na pequena loja três vendedoras se dividem entre os expositores de
produtos. A contrastar com os tons vibrantes e os códigos de sensualidade da vitrine,

Ponto Urbe, 20 | 2017


31

todas vestem calças e camisas pretas sem qualquer ilustração. Entre os expositores:
calcinhas para crianças, para idosos com incontinência urinária, para mulheres
gestantes e parturientes, cuecas, pijamas, pantufas, robes. Na diversidade de produtos
que compõem o universo das roupas íntimas, ao fundo da loja uma pequena mesa
destoa. Protegido por um vidro ali estão expostas “coisinhas”, “produtos pro casal”,
utensílios e acessórios que têm como objetivo “apimentar a relação”: óleos para
massagem – alguns esquentam, outros esfriam -, lubrificantes íntimos com promessas
de provocar sensações diversas, anéis penianos, canetas para riscar o corpo. Além disso,
espalham-se sobre a mesa outros utensílios com caráter lúdico também sugestivos:
baralhos ilustrados com posições sexuais, dados e algemas decoradas com pelúcia.
3 Pergunto se há outros produtos ‘desse tipo’ na loja. A vendedora responde: não. Sigo
em direção a outras prateleiras ao passo que minha acompanhante, curiosa e de olhos
curiosos continua a conversar com uma das vendedoras. Enquanto pergunto sobre os
benefícios anatômicos das cuecas sem costura minha companheira se inteira sobre os
efeitos provocados pelos produtos. Ao fim, uma aura de segredo nos separa.
Desconfiado, pergunto: então, o que ele disse mais? Taxativa, responde: coisas de
meninas, coisas de mulher. Finaliza com uma risada.

2.

4 Duas (outras) vitrines: uma loja física e um website. Estamos na primeira vitrine, a loja
física de um sex shop localizado em uma das avenidas mais importantes e mais
movimentadas de João Pessoa. Em uma extensa vitrine da loja, localizada no primeiro
piso de um prédio bastante simples, manequins estão enfileirados e trajando fantasias
montadas tomando como princípio de vestuário a roupa de baixo. Em contraste com o
elaborado das peças e sutileza dos materiais apresentados na primeira cena, aqui os
tecidos são simples, as roupas curtas e as lógicas que viabilizam sua produção, uso e
significação são de outra ordem: trata-se da lógica do decalque, a paródia de lugares e
posições da vida social reinseridos agora em um contexto de malícia e sedução. Em
tecidos curtos e baratos se remontam disfarces e fantasias: bombeiros, enfermeiras,
policiais, professoras e colegiais. Todavia, assim como no quadro acima, há outras
opções de fantasias que tradicionalmente serão usadas mais por mulheres do que por
homens.
5 No térreo da loja há um outro empreendimento, uma lanchonete. Meses antes
funcionava ali também uma loja de brinquedos e roupas infantis. Subimos então as
escadas laterais que dão à loja. Ao chegar ao primeiro piso, tocamos a campainha para
que o vendedor venha nos receber e a porta seja aberta. Ao adentrarmos se descortina
um outro universo de possibilidades anteriormente não previsíveis. Nada de
dissimulação ou suavização. Fantasias dividiam espaços com instrumentos e
dispositivos diversos com a finalidade de expandir as possibilidades de vivência do
sexo: algemas, cassetetes, cremes, velas, óleos, próteses penianas, inúmeros dispositivos
masturbadores, revistas, filmes, livros, bombas de sucção, ferramentas para “punição”
e para “recompensas”. Batons, óleos e gel para serem aplicados em inúmeras partes do
corpo fosse com o objetivo de esquentar, esfriar ou produzir gostos e sensações.
Instrumentos para prender partes do corpo e para expandir e esticá-las. Os materiais
eram os mais diversos: látex, couro, plástico, borracha, óleos naturais, gel, aço
cirúrgico, madeira, silicone.

Ponto Urbe, 20 | 2017


32

6 No centro da loja, comanda todo o arsenal uma vendedora de traços simples e


personalidade contida. Gosta de conversar bastante, voz firme, roupas sóbrias. Os
clientes, diz ela, são muitos, mas é pouco comum a loja estar cheia. Segundo ela, boa
parte das vendas costuma acontecer pelo website da loja. Pergunto de modo retórico, já
deduzindo a resposta, se há um website. A vendedora segue até o computador
localizando no seu centro de comando e, após entregar um cartão da loja onde se
apresentam os contatos, me mostra a tela.
7 Como um imenso catálogo de possibilidades a página reúne uma enorme amostra dos
produtos comercializados pelo estabelecimento: pilha, gel, lubrificantes, pastas e
emulsificantes; infláveis dos mais variados; calcinhas e cuecas diferenciados, alguns
com próteses anexadas, outros comestíveis; fantasias masculinas e femininas, lingeries;
dvd, livros especializados, cursos temáticos; masturbadores, compressores de escroto;
próteses penianas e bombeadores para estímulo do aumento do pênis; dildos e
vibradores1.
8 A página ricamente ilustrada aponta para possibilidades diversas de produtos, e além
disso veicula informações através de pequenos textos explicativos dos produtos e
vídeos informativos onde se apresenta a loja e o que lá se oferece. Os canais de
comunicação são expandidos ainda através dos telefones para contato e dúvidas e dos
canais de mensagem eletrônica via e-mail, onde se pode receber os informativos,
apresentar sugestões e tirar dúvidas.
9 As situações e cenários expostos acima configuram o que entendo como um circuito de
práticas constituído em torno do acesso a determinados produtos eróticos através de
sex shops em lojas físicas e virtuais. Neste sentido, o artigo busca apresentar alguns dos
tensionamentos que caracterizam o campo dos estudos da pornografia 2
contemporaneamente, em especial no que se refere às interferências produzidas pelo
mercado nas configurações do erotismo.
10 O trabalho tem como base a pesquisa etnográfica desenvolvida entre novembro de 2014
e março de 2015 em sex shops de João Pessoa e com as pessoas que frequentam tais
espaços. A partir das interseções entre mercado e erotismo procuro discutir os meios e
atores envolvidos na distribuição de informações e conhecimentos que, por sua vez,
engendram processos de docilização dos corpos e das sexualidades.
11 O cenário escolhido para tal empreendimento é João Pessoa, cidade de pouco mais de
800 mil habitantes no nordeste brasileiro. Ainda que seja a capital do estado, João
Pessoa é uma cidade marcada por complexidades e contradições no que diz respeito às
experiências eróticas. Algumas dessas características podem ser percebidas através da
emergência, nos últimos quatro anos, de uma grande quantidade de estabelecimentos
comerciais voltados para um público consumidor de produtos assim chamados de
“eróticos e sensuais” na terminologia do mercado3. Ainda que não haja dados oficiais
disponíveis até o momento para registrar tal fenômeno, através de minha observação e
de um levantamento preliminar informal pude identificar cerca de 47 estabelecimentos
comerciais funcionando na cidade utilizando-se de tal nomenclatura.
12 Adentrar o universo de relações e interações suscitados pelos sex shops na condição de
espaços de elaboração de um conhecimento sobre desejos, sexualidades, convenções de
gênero e outros marcadores da diferença social impõe, já de imediato, uma reflexão
sobre os meios de inserção e de estabelecimento de vínculos entre pesquisador,
consumidores, comerciantes e os próprios bens e saberes que são transacionados nesses

Ponto Urbe, 20 | 2017


33

espaços. Nesses termos, ao longo da pesquisa minha presença nesses espaços se


caracterizou como representativa de um pequeno nicho de consumidores: os homens
jovens e homossexuais de classes médias ou média-altas. Esse público contudo, como
me informaram algumas das pessoas que trabalhavam nas lojas físicas que constituíram
o cerne da investigação, configuravam uma espécie de “público alternativo”, de modo
que o público alvo era costumeiramente referido como de mulheres de orientações
sexuais diversas, e em sua maioria, presumidas como casadas, ou vinculadas a algum
regimes de conjugalidade (“namorando”, “mora com o marido”, “mãe de família”, entre
outras denominações e formas de apresentação desse status).
13 Ser homem e homossexual, nesse contexto, implicava um regime de inscrição outro, ou
melhor, alternativo. Ainda que fosse compreendido como um potencial consumidor
daquele espaço (comprando os produtos) e naquele espaço (trocando informações e
experiências a partir daquele mesmo espaço, de modo que o sex shop se convertia em
mais que um cenário, um espaço de construção de um determinado saber-poder-
consumo), a persistência das visitas e o pouco ou nenhum empenho no consumo
mercantil dos bens e produtos implicava se não uma desconfiança, pelo menos um
desconforto de modo que parecia ser pouco inteligível que tipo de lugar eu poderia
ocupar no contexto de relações que se estabelecia a partir dali. A alternativa adotada
então, de modo a matizar esse estranhamento por parte das pessoas que trabalhavam
nos estabelecimentos e com as quais desenvolvi a investigação foi duplo. Por um lado
constava de um exercício contínuo de tornar explícito com as interlocutoras que se
tornaram mais próximas meus propósitos como investigador, mas também, sempre que
possível, mobilizar as visitas junto a amigos e conhecidos que frequentavam os espaços
ou tinham curiosidade e que me acompanhavam. Foi assim que ao longo dos meses em
campo fui sendo reconhecido e lido não apenas como um potencial indicador dos sex
shops, mas também como um pesquisador, ainda que por razões muito variadas a
primeira estratégia de marcação parecesse ser mais eficaz e legível que a segunda.
14 Em contraste a esse quadro de expansão comercial, a cidade ainda registra altos índices
de violência doméstica e é a segunda cidade no ranking nacional de assassinatos contra
pessoas homossexuais, lésbicas, travestis e transexuais. Essas imagens quando
justapostas possibilitam a interpretação de amplas redes de práticas constituídas por
relações por vezes antagônicas; relações que tencionam e provocam as fronteiras entre
prazer e perigo.
15 Ainda que não se possa dizer que o surgimento desse mercado segmentado, os índices
de violência de gênero e contra minorias sexuais e a constituição de um panorama que
possibilite uma maior liberdade sexual não estejam diretamente implicadas, os quadros
e informações expostos acima sinalizam para o surgimento – ou pelo menos a
visibilização – de novas práticas e estratégias de significação da experiência erótica em
um contexto geográfico ainda comprometido com moralidades voltadas para o
disciplinamento de corpos, identidades e desejos. Mesmo que não seja seu objetivo
principal, ao longo da discussão pretendo interrogar as possíveis contribuições do
mercado no processo de transformação e negociação da intimidade nos contextos da
vida urbana contemporânea.

Ponto Urbe, 20 | 2017


34

Mercado, Poder e Erotismos


16 Em seu exercício de análise dos processos de constituição da sexualidade no mundo
ocidental, Foucault (2013) conclui que esse processo tem suas origens no próprio
processo de formação de uma sociedade burguesa a partir do século XVII. Ainda em sua
análise, o filósofo francês considera que na investigação de tais processos é de
fundamental importância considerar o modo como poder e saberes são construídos,
exercidos – e, poderíamos acrescentar, distribuídos4 - a partir de determinadas
instituições que na sua perspectiva seriam aquelas responsáveis pela construção de
regimes de verdade, controle e disciplinamento: clínicas psiquiátricas, tribunais,
prisões e hospitais. O poder tomando a partir de tais instâncias não é centralizado, ao
contrário, é capilar e pulverizado dentro de um amplo espectro de relações, interações
e negociações. Como diz, o poder é
multiplicidade de correlações de força imanentes ao domínio onde se exercem e
constitutivas de sua organização; jogo que, através de lutas e afrontamentos
incessantes as transforma, reforça, inverte; os apoios que tais correlações de força
encontram umas nas outras, formando cadeias ou sistemas ou ao contrário
defasagens e correlações; enfim, as estratégias em que se originam e cujo esboço ou
cristalização institucional toma corpo nos aparelhos estatais, na formulação da lei,
nas hegemonias sociais (Foucault 2013, p. 89).
17 A localização de tais espaços é central tendo em vista que, na análise de Foucault, é a
partir de uma reorganização na distribuição e exercício do poder nesse período de
transição para o século XVII da Igreja para as instituições médico-jurídicas que
produzirá intensas transformações na organização da sociedade ocidental. Tais espaços,
acredita ele, são os espaços difusores de regimes discursivos assentados como
verdadeiros dentro de uma escala ocidental de relações e interações. Esses poderes,
distribuídos de modo instável e pulverizado nas interações cotidianas dos indivíduos
entre si e destes com instituições, atuam “não pelo direito, mas pela técnica, não pela
lei, mas pela normalização, não pelo castigo, mas pelo controle” (Foucault 2013, p.98).
18 É na investigação dos processos que configuram a contemporaneidade e suas
transformações no meio urbano ocidental que o mercado deve ser pensado como
também uma instância atuante na produção dos poderes e distribuição dos indivíduos
tendo em vista seu potencial para mobilizar signos e práticas. Se como sugere Ulf
Hannerz (1992a) a cultura pode ser pensada como um fluxo de informações circulando
em escala global, e acompanhando Barth (2005) definida em termos de uma enorme
variação contínua, torna-se sumário refletir e avaliar como o mercado, junto com
outros atores, opera e organiza determinadas experiências através da canalização de
fluxos de significados. Esse processo de canalização é o que Barth (2005) chama de
propriedades da “organização social” em detrimento da variação e fluxo como
propriedades da cultura. Nesses termos, Barth considera que enquanto a cultura pode
ser percebida como um amplo acervo de materiais (materiais culturais nos termos que
emprega), a organização social produz diferenciações e fronteiras contínua e
cotidianamente na vida dos indivíduos.
19 No que diz respeito ainda às interseções entre mercado e erotismo, é preciso
reconhecer a importância que este ator desempenha na constituição de estéticas e
experiências sexuais alternativas. Considero que na dinâmica contemporânea, o
mercado e sua contraparte, o consumo, são elementos importantes na reflexão sobre a
produção de subjetividades, cartografias de socialidades e na conformação de

Ponto Urbe, 20 | 2017


35

identidades coletivas. Isso não implica contudo uma centralização na distribuição do


poder distinta daquelas diagnosticadas por Foucault mas, de modo distinto, como novas
operações e táticas de gestão da vida são arranjadas e significadas em função de um
novo espaço para negociação.
20 Na tentativa de construir instrumentos analíticos na antropologia que deem conta de
escalas de sociedade que não constituíram os objetos clássicos de investigação
antropológica até pelo menos metade do século passado, Hannerz (1992a) busca dentro
de uma corrente mais ampla de antropólogos contribuir para uma perspectiva
distributiva da cultura. Essa perspectiva é claramente crítica às análises da sociedade de
inspiração durkheimianas, principalmente no que diz respeito a suposta simplicidade
dos ‘povos primitivos’ e procura dar conta dos meios pelos quais valores,
conhecimentos e ideias são distribuídos a partir do fluxo cultural global de circulação
de informações. Esses instrumentos são os padrões de processo, ou mais
especificamente aquilo que ele chama de ‘frameworks of flow’, ou seja, molduras de
fluxo: formas de vida, mercado, estado e movimento (Hannerz 1992a, p.46).
21 No quadro exposto por Hannerz, essas quatro molduras estariam dentro de um nível de
sociologia institucional do processo cultural, ou seja, como instituições interferem na
gestão do fluxo cultural. As formas de vida dizem respeito ao modo como cotidianamente
as pessoas produzem e reproduzem informações a partir dos locais de trabalho,
vizinhança, no ambiente doméstico e outros. O mercado, por sua vez, refere-se à
mobilização de commodities, mercadorias culturais e os significados por eles portados. A
terceira moldura é o estado definido como “formas organizacionais que envolvem um
grau de controle sobre atividades de um território de base centrada, um poder
reconhecidamente público”. No plano da distribuição cultural, aponta Hannerz, a ação
do estado diz respeito frequentemente ao acesso e controle de fontes materiais que
(in)viabilizariam a distributividade de conhecimentos e ideias, ou sua canalização para
um ou outro grupo. Por fim, a quarta moldura apontada por Hannerz é o movimento e
corresponderia aos processos e atores pelos quais significados são transformados
através da mobilização de certas coletividades mais ou menos organizadas.
22 A proposição de molduras, assenta Hannerz, ainda que possa apresentar-se como uma
percepção um tanto caricatural sobre o processo em questão corresponde a um modo
de descrever os fenômenos que são bem mais complexos. É através da operação dessas
quatro molduras que se configuram boa parte dos processos de canalização e contenção
do fluxo cultural pelos modos de organização social. As molduras operam de maneira
conjunta, por vezes interferindo nos domínios uma da outra (Hannerz 1992a, p. 51). É a
partir dessas interseções que nos interessa analisar o modo como o mercado é acionado
e produz tensões e reconfigurações sobre as dinâmicas da sexualidade, não de modo
isolado e autônomo, mas nas relações, de maneira colaborativa.
23 Longe de limitarem as possibilidades de ação do indivíduo, as molduras apontam para
padrões de processo que por sua vez tendem a se conservar (como no caso daqueles
engendrados pelo estado e pelas formas de vida) ou a se transformarem (como é o caso
do mercado e dos movimentos). Através das imbricações entre essas formas e suas
tendências antagônicas ou suplementares podem ser percebidas tensões, câmbios e
ajustamentos nos modos de produzir significados e mesmo de distribuir os materiais
culturais. Na esteira desses processos, o indivíduo deve ser percebido como um sujeito
engajado na “sua própria interpretação contínua das formas que o rodeiam” (Hannerz
1992a, p.44), interpretações que por vezes produzem aproximações e deslocamentos.

Ponto Urbe, 20 | 2017


36

Nesse caso, como se verá pelos exemplos etnográficos tratados a seguir, tais
movimentos são constituídos a partir das trajetórias dos indivíduos, como sugerido por
Barth (2005), já que em última instância cada indivíduo pode ser pensado como uma
cultura.
24 No que tange ao erotismo, o mercado se configura como uma rede polimorfa de
serviços e bens oferecidos. Desde os sex shops apresentados aqui até os motéis, os
diversos espaços de prostituição, produtos como próteses vibráteis e introduzíveis no
corpo, passando por estimuladores, bares e boates, clubes privês, até materiais como
livros, filmes e revistas, e pessoas, a oferta de materiais culturais produzidos e
distribuídos com base em conhecimentos conceituais e procedimentais sobre o sexo é
imensa. Esses produtos, mais que ilustrar a vida sexual dos indivíduos
contemporaneamente “[são organizados] para explorar todas as diferenciações sociais
através de uma motivada diferenciação de bens”, conforme sugere Maria Filomena
Gregori (2012, p.59). Veja-se por exemplo as lingeries sensuais apresentadas na
primeira cena e as próteses e fantasias da segunda. Ainda segundo Gregori, a relação do
mercado com os erotismos contemporâneos
Trata-se antes de um processo de direções variadas que implica de um lado, a
articulação entre sacanagem, autoestima, ginástica e prazer, perdendo, assim, seu
sentido clandestino anterior; de outro, a constituição de etiquetas para os
praticantes a partir de convenções de gênero e de sexualidade (Gregori 2012, p.60).
25 As relações estabelecidas a partir dos sex shops, como se verá a seguir, configuram
movimentos complexos onde processos de transformação e normatização das
convenções sobre as sexualidades convergem. Por outro lado, dentro de uma certa
perspectiva, também é possível apontar para espaços de contestação daquilo que
Hannerz (1992a) sugeriu como sendo as intencionalidades embutidas nas mercadorias
culturais e que estariam como parte constituinte dessas mercadorias junto com os
apelos estéticos, informacionais, intelectual, emocional e, acrescentemos, erótico! Nos
termos desse trabalho acredito, apoiando em Barth (2005), que esse movimento de
contestação tem como princípio a própria trajetória dos indivíduos e a interação que
estabelecem com os materiais culturais a que têm acesso.

Lojas de calcinha, sex shops e boutiques: explorando


os sex shops de João Pessoa
26 De acordo com dados da Associação Brasileira das Empresas do Mercado Erótico e
Sensual, a ABEME5, atualmente o Brasil é um dos mercados nacionais com maior
potencial de crescimento no setor no mundo. A título de ilustração, no país é realizada
a quarta maior feira de produtos eróticos e sensuais do mundo e a cada ano são
introduzidos no mercado dezenas de novos produtos que prometem sofisticar e ampliar
as experiências sensoriais dos clientes nos momentos de atividade sexual. A região
sudeste abriga a maior parte das empresas nesse segmento, reunindo 70% das empresas
do setor, segundo pesquisas realizadas em 2011. Ainda segundo a ABEME, entre 2005 e
2009 o setor registrou um crescimento de 80% no faturamento, passando a movimentar
de R$ 500 milhões em 2005, para R$ 900 milhões em 2009.
27 Dentro de um contexto mais amplo, o que se chama de mercado erótico e sensual
envolve uma ampla rede de formas de comercializar materiais voltados para o sexo,
desde performers de streap tease, passando por clubes especializados em algumas

Ponto Urbe, 20 | 2017


37

modalidades de entretenimento para adultos, mas de forma efetiva parte significativa


das empresas inseridas nesse setor se configura de modo generalizado com aquilo que
se convencionou chamar de sex shop, ou seja, estabelecimentos que comercializam
produtos, acessórios e instrumentos voltados para o sexo. Esses produtos, como
descrito anteriormente, são os mais diversos, e incluem desde estimulantes, até
infláveis e próteses genitais. Ainda sobre os formatos, os nomes utilizados para definir
os estabelecimentos são diversos e acompanhados de distinções e especificidades:
consultoria e serviços, sex shop, boutique erótica e sensual, sex store, entre outras.
Essas distinções por sua vez estão ligadas a padrões de loja, produtos oferecidos,
localização, público-alvo etc. As modalidades de atuação também são diversas e incluem
desde catálogos até vendas em lojas físicas e virtuais.
28 No curso do trabalho mapeei 47 sex shops entre lojas físicas e online em João Pessoa e,
além disso, tive conhecimento de outras três pessoas que atuavam através de catálogos.
A distribuição desses estabelecimentos pela cidade é bastante heterogênea, não sendo
possível identificar, com os dados até então obtidos, grandes centros em torno dos
quais as lojas se reunissem. Pude observar de modo generalizado uma tendência a
aglutinarem-se a nichos comerciais já consolidados, a exemplo das imediações da Lagoa
do Parque Sólon de Lucena, na avenida Josefa Taveira e nas proximidades da avenida
Edson Ramalho. Principalmente na Edson Ramalho, áreas contíguas e no centro era
comum estarem localizados em edifícios comerciais. Além disso, dois dos espaços
mapeados ficavam em shoppings centers.
29 Do total de estabelecimentos físicos que pude mapear conheci apenas 13 deles. Nesses
lugares entrei e conversei com vendedoras sobre os produtos. Sempre que entendia ter
alguma abertura, tentava desenvolver algum tipo de comunicação mais efetiva e
prolongar a conversa. Essa abertura não apareceu tantas vezes quanto imaginei ser
possível, talvez em função de serem espaços frequentados majoritariamente por
mulheres, como se verá ao longo do texto. Minhas observações mais intensas foram
desenvolvidas em três sex shops, sendo um deles no bairro de Mangabeira e dois na
região das proximidades com a praia, nos bairros de Miramar e Manaíra. Os três
espaços estavam localizados em regiões caracterizadas pela circulação de um grande
número de pessoas, em avenidas importantes da cidade. Nas três havia letreiros
indicativos mais ou menos chamativos, mas que poderiam ser facilmente observados.
30 Além da frequência aos espaços, pude através de amigos que frequentam ou
frequentaram sex shops em algum período de sua vida ter acesso a informações sobre
os modos como essas pessoas se relacionavam com os produtos lá consumidos e sobre a
própria experiência de frequentar tais espaços. Nesse âmbito, pude conhecer a
trajetória de cinco pessoas, das quais três delas tratarei ao longo do trabalho: Juliana,
Matilde e Lúcio6.
31 Durante o período de realização da etnografia, mais que uma diversidade de nomes
acionados por esses estabelecimentos para atraírem seus clientes, pude observar um
processo mais amplo que diz respeito à própria ressignificação do sentido desse tipo de
estabelecimento. Entre os lugares que frequentei pude observar desde espaços que
recriam o imaginário comum sobre como deve ser um sex shop - a exemplo daquele
retratado na segunda cena, no início do trabalho - bem como outros que se utilizavam
de outras estratégias para se definirem. Sem dificuldade encontrei vários
estabelecimentos que se definiam como sex shops e vendiam apenas roupas íntimas
para um público fundamentalmente feminino. Além de calcinhas para diversas

Ponto Urbe, 20 | 2017


38

funcionalidades e tipos corporais, nesses estabelecimentos podiam ser encontradas


apenas fantasias simples que simulavam uma enfermeira, uma professora ou estudante
– todas fantasias vinculadas às ideias de cuidado e serviço para com outrem.
32 Pela principal avenida do bairro de Mangabeira, na zona sul da capital, uma região de
reconhecido comércio popular, pude encontrar, por exemplo, lado a lado dois
estabelecimentos com características bastante semelhantes. Expostas do lado de fora da
loja, manequins brancas e magras vestiam calcinhas e camisolas sensuais e, em menor
medida, fantasias. Na frente apresentavam-se bancas com itens promocionais e cartazes
que anunciavam os preços de outras peças para as possíveis clientes que por ali
passavam. Os letreiros que apresentavam ambos os estabelecimentos eram bastante
chamativos e em estilo bastante próximo aos demais estabelecimentos daquela região.
Produzidos com impressão em lona traziam ilustrações de mulheres e o título. No
primeiro, o rosto de uma mulher de cabelos negros e lisos e o fundo em tom lilás. No
segundo, uma imagem estilizada em sombreado mostra a silhueta de uma mulher
magra e de seios firmes, no centro o nome da loja e na outra extremidade uma maçã
mordida compõe o ícone da loja.
33 No pequeno espaço interno da loja se apresentavam basicamente calcinhas e fantasias.
Viam-se também alguns poucos acessórios na segunda loja: diademas que simulavam
orelhas de coelho, em referência às moças da revista Playboy; algemas recobertas com
pelúcia, canetas para escrever no corpo, gel lubrificante e bolas tailandesas utilizadas
na prática do pompoarismo7.
34 Essa configuração de espaço é a que mais se repete nos locais que pude investigar ao
longo do desenvolvimento da etnografia. Em tais lugares o termo sex shop é utilizado
como uma categoria plástica, referente de uma dimensão da intimidade que dizia
respeito quase sempre a vestimentas e estimulantes de tipo simples, como géis e
lubrificantes que prometiam sensações “picantes”, “quentes”, “refrescantes”,
“tremedeira” – todas categorias descritivas presentes nas embalagens e nas explicações
dos vendedores. Foi característico dos locais encontrados que todo o atendimento era
realizado por mulheres, sendo estas quase todas com uma performance de gênero
feminina para os padrões de normatividade de gênero construídos na sociedade
masculina.
35 Ao entrar na loja e explorar os produtos oferecidos fui logo abordado por uma
vendedora. Disse estar procurando por um presente. Ela então logo retrucou: “pra sua
namorada ou mãe? É pra alguma amiga? Qual a idade?”. Evitei responder sobre qual a
posição da pessoa e disse apenas, “assim, algo pra quem tem mais ou menos 25 anos”.
Entre as opções na loja as ofertas se distribuíam entre “esse é confortável”, “se for uma
namorada esse pode ser bom, uma noite de amor”, “também tem esse modelo, luxuoso,
confortável, o material não irrita e a armação sustenta o seio” e então ia me apontando
produtos mais ou menos adequados para o tipo de pessoa que imaginava. Entre uma
oferta e outra eu perguntava que tipo de pessoas costumavam frequentar a loja, há
quanto tempo havia aberto e que tipo de produto saía mais nas vendas. As respostas
sempre curtas eram dadas entre uma sugestão e outra: “tem muita mulher casada, às
vezes jovem”, “a loja é nova, tá cheia de novidade”, “o pessoal compra muita lingerie”.
Percebo que após alguns momentos, a insistência das minhas perguntas e o pouco
interesse nas sugestões que me são feitas começam a assustar tanto quanto a minha
presença naquele espaço.

Ponto Urbe, 20 | 2017


39

36 No pequeno espaço pude perceber que as eventuais clientes que chegavam em sua
maioria saiam logo após dar uma rápida entrada ou espiarem pela entrada. Resolvi
então ser mais efetivo e perguntei “e as fantasias da vitrine, tem mais ou só essas?”.
Surpresa e ao mesmo tempo animada, como se tivesse descoberto alguma coisa ela
então me olha enérgica e diz: “ah! Então é pra sua namorada?!”. Pergunto como ela
descobriu: “ah, desconfiei logo, e o senhor não tem aliança”. Em araras penduradas na
parede próximas ao fim da loja a vendedora me apresenta algumas das variações das
mesmas fantasias que havia previsto anteriormente: coelhas, enfermeiras, professoras,
estudantes colegiais. Além desses tipos chamava atenção pelo contraste uma única
fantasia que composta por uma pequena camisa de estampa xadrez e um tecido que
imitava o jeans tentava dar um ar de cowgirl, ou como me explicava a vendedora
“menina de rodeio”.
37 As respostas apresentadas a mim pela vendedora configuram algo que pode ser pensado
como uma transformação nas dinâmicas da sexualidade no cenário urbano
contemporâneo. Essa transformação diz respeito à participação das mulheres na
construção daquilo que vamos chamar de ‘cenários sexuais’, isso é, as situações
cotidianas que no contexto das trajetórias individuais configuram as experiências
vividas. Como observa a vendedora, a maior parte dos clientes da loja é feminina,
informação que pude constatar também nos demais lugares que etnografei. Essa
informação é sustentada também pela ABEME que em pesquisa de 2012 afirmou que
70% do público atendido pelas empresas associadas a ela eram mulheres. Se dentro de
um regime de produção da sexualidade caracterizado pela família burguesa, como
sugere Foucault (2013), há um processo de maior controle sobre o corpo da mulher e
inclusive sobre suas possibilidades de manifestação de desejos e vontades, através de
uma lógica de consumo o mercado vem provocando transformações nas convenções
possibilitando às mulheres acesso a bens, serviços e informações que produzem
mudanças nas suas próprias experiências sensoriais e uso dos prazeres.
38 Essa mudança, todavia, precisa ser vista com maior atenção e não ser confundida com
uma liberdade da mulher tomada de modo generalizado e irrefletido. Não seria
produtivo, em termos analíticos, sugerir a existência de uma estrutura em processo de
reajustamento em função da recorrência de eventos promovidos pelos indivíduos no
curso do tempo, como possivelmente sugeriria Marshal Sahlins (2008). Nesses termos,
ainda que, conforme Sahlins, seja importante considerar a intencionalidade do
indivíduo cotidianamente compondo as situações de sua vida, parece haver relações
bem mais complexas, configurando arranjos polimorfos e mutáveis, não estruturas. As
negociações entre estado e formas de vida como molduras conservadoras na
distribuição da cultura e, por outro lado, mercado e movimentos na tentativa de
distribuições transformativas e alternativas parecem estar além da definição proposta
por Sahlins de estrutura da conjuntura para explicar os processos de transformação da
vida social.
39 Aquém de uma suposta liberdade da mulher, parece haver uma redefinição das táticas
de controle e intervenção sobre o corpo que se faz agora não na instância da proibição e
da interdição, mas no adestramento e docilização. Como assinala Foucault, os processos
que caracterizam o dispositivo da sexualidade não excluem os característicos do
dispositivo da aliança. Ambos atuam de modo simultâneo, em disputa. Nesse sentido,
percebo haver aqui uma convergência entre práticas contestatórias possibilitadas
através da circulação de mercadorias culturais em uma escala global, como anteviu

Ponto Urbe, 20 | 2017


40

Hannerz (1992a) que são compensadas por um regime de controle sobre os usos do
corpo e os prazeres.
Se o dispositivo da aliança se articula fortemente com a economia devido ao papel
que pode desempenhar na transmissão ou circulação de riquezas, o dispositivo da
sexualidade se liga à economia através de articulações numerosas e sutis, sendo o
corpo a principal – corpo que produz e consome. Numa palavra, o dispositivo da
aliança está ordenado para uma homeostase do corpo social, a qual é sua função
manter. Daí seu vínculo privilegiado com o direito; daí também o fato de o
momento decisivo, para ele, ser a “reprodução”. O dispositivo da sexualidade tem,
como razão de ser, não o reproduzir, mas o proliferar, inovar, anexar, inventar,
penetrar nos corpos de maneira cada vez mais detalhada e controlar as populações
de modo cada vez mais global (Foucault 2013, p.116).
40 Essa interseção entre transformações e permanências, entre convenções e câmbios são
operadas através de categorias que presumem, como se verá mais adiante, a existência
de uma verdade sobre o sexo que pode ser aprendida, como já assinalado por Rubin
(1984). Sobre essa verdade, adverte a autora, as variações são percebidas como
negativas, ainda que possam ser negociáveis. Nesses termos, o mercado erótico como
percebido aqui, pode ser percebido como um gigantesco operador atuando na
negociação dessas fronteiras entre prazer e perigo, em especial no que concerne às
sexualidades femininas, como já percebido por Vance (1984).
41 Essas aproximações entre conversão e convenção tal como estabelecidas aproximam-se
da noção proposta por Maria Filomena Gregori (2012; 2011) de um ‘erotismo
politicamente correto’ construído nesse processo de negociação de fronteiras e baseado
na existência de uma sexualidade saudável pela qual deve-se zelar. Se no trabalho de
Gregori essas noções parecem ser acionadas principalmente em sex shops segmentados
para públicos em estratos sociais mais altos, de modo mais ou menos objetivo essa
noção parece orientar o funcionamento de quase todos os espaços que pude observar.
42 De modo mais específico, tal como operada no contexto etnografado, as táticas de
regulação e controle dizem respeito a um ordenamento monogâmico e quase sempre
heterossexual dos cenários sexuais que constituem a experiência erótica dos
indivíduos.

Domesticidade e transações de conhecimento: sobre


manuais e instruções
43 Dos espaços etnografados aquele que melhor contempla o imaginário clássico sobre sex
shops é o localizado no bairro de Miramar, já descrito na cena 2 e que pode ser
observado nas imagens abaixo.

Ponto Urbe, 20 | 2017


41

Imagem 1 e 2: apresentação do interior do sex shop localizado no bairro de Miramar.

44 Nesse estabelecimento, ainda que as fantasias ocupem um lugar importante na


dinâmica das vendas, a distribuição dos produtos é heterogênea e explícita no espaço
da loja. Nas prateleiras mais próximas da vitrine, após um tapume, constam géis,
cremes e loções que, ainda que constituam uma parte significativa das compras, estão
localizados na parte extrema da loja, próximo ao caixa. Nesse estabelecimento em
especial, o cliente é obrigado a percorrer toda a extensão da loja tendo em vista que a
porta de entrada fica numa das extremidades e o caixa onde se dá boa parte do
atendimento na outra. Nesse meio tempo, o cliente é exposto a diversidade de produtos
ricamente espalhados pelas prateleiras e manequins da loja.

Ponto Urbe, 20 | 2017


42

45 A caracterização do sex shop localizado no bairro de Miramar contrasta do último


empreendimento a ser descrito aqui, aquele localizado no bairro de Manaíra nas
imediações da avenida Edson Ramalho. A distinção aqui se faz menos em função dos
produtos oferecidos e mais em termos da estética elaborada sobre ele. Aqui há tantos
infláveis, dildos e vibradores quanto no segundo, todavia a distribuição dos produtos e
sua diversidade parece sugerir um maior refinamento. Os tons claros e a ausência de
excessivos criam um cenário que sugere tranquilidade; por vezes, a impressão que se
tem é de se estar em uma clínica de classe média. A designação que atribui para si
mesmo é diferenciada: não sex shop, sex store. A loja parece ter sido constituída de
modo a oferecer uma visão alternativa aos demais estabelecimentos existentes até sua
inauguração, há cerca de 5 anos. Os produtos eleitos para as vitrines internas do
empresarial a duas ruas da praia de Manaíra acionam símbolos e valores distintos
daqueles do sex shop no bairro de Miramar.
46 Se em Miramar a própria logomarca da loja é composta pela ´reprodução de símbolos
vinculados à ideia de macho e fêmea (♂♀) fundidos, em Manaíra a referência é a uma
iconografia clássica, reproduzindo as feições do rosto de Afrodite, a deusa grega do
amor. As distinções continuam, de modo que no primeiro sex shop a distribuição dos
produtos e o destaque que se dá a alguns (através de cartazes, vitrines especiais ou sua
localização junto a lugares estratégicos, como o balcão e a porta de entrada) parecem
simular uma ideia de transgressão, reinvenção do self (você pode ser uma enfermeira
hoje, uma dançarina do ventre amanhã) e uma plasticidade técnica (através de cursos
onde se ensina e se compartilha informações de caráter diversos) como possibilidade de
expansão da própria experiência erótica. Já no segundo se promove uma ideia de gestão
do prazer através de itens voltados para a sofisticação traduzido muitas vezes em ideias
como “conforto”, “qualidade” e “segurança”. Algumas dessas ideias estavam já
presentes no sex shop apresentado anteriormente, do bairro de Mangabeira, todavia
aqui elas aparecem como um elemento de diferenciação e enaltecimento.
47 As distinções apresentadas, acredito eu, têm a ver não apenas com uma estratégia de
diferenciação de mercado, mas também com expectativas construídas em função do
público alvo. Ainda que em Miramar haja uma grande clientela feminina, as estratégias
de vendas online e mesmo em loja física constatam uma participação de homens, em
sua maioria gays. Já em Manaíra o público majoritário é de mulheres de classe média e
média alta. É uma configuração bastante similar às boutiques eróticas, segmento do
mercado orientado para um público de maior poder aquisitivo e que se presume de
gosto mais refinado. Ainda que existam fantasias, os materiais são diferentes: máscaras
com mais detalhes e tecidos diferenciados. Todavia, o que chama a atenção é a grande
quantidade de lingeries e alguns poucos artigos masculinos, em especial perfumes,
bálsamos para barba e desodorantes importados. Guardadas as devidas restrições, em
especial na configuração do público tomado como elite, concordo com as afirmações de
Gregori no que diz respeito às especificidades desse segmento e sua atuação no
processo de negociação das normativas de gênero e sexualidade. Para a autora:
ao segmento feminino com pretensões de elite se vende produtos em ambiente
cujas referências e sinais pretendem afastar um conteúdo sexual caracterizado
como sujo. A sujeira, no caso, é inteiramente erotizada, ainda que o termo erótico
seja o sinal de distinção desses estabelecimentos em relação aos demais sex shops. O
sujo atrai os homens, o limpo – o que remete ao leve cheiro de lavanda que exala
dos espaços da loja – pretende tornar familiares produtos que são vendidos a partir

Ponto Urbe, 20 | 2017


43

de uma retórica que intenciona, além do consumo, ensinar a tornar o prazer algo
saudável. (Gregori 2012, p. 81-2).
48 Não pude perceber nos espaços etnografados a associação estabelecida pela autora
entre gênero, classe e público. De modo geral são as mulheres a maior parte do público
que se utiliza desse comércio e se há diferentes ordenamentos e padrões de loja, esses
são quase sempre estabelecidos tendo em vista as mulheres 8.
49 Um elemento recorrente em ambos os espaços é o poder de disseminar informações
atribuído às vendedoras. Em seu exercício diário de lidar com clientes, as vendedoras
são acionadas constantemente para esclarecer dúvidas sobre os produtos e a forma
correta de utilizar. Em conversa com uma dessas vendedoras, fui esclarecido que muitas
das compras que os clientes realizam têm como base a curiosidade ou desconforto. Em
outros termos, ou se compra para saber como é um determinado produto, ou com vistas
a minimizar algum tipo de situação inconveniente, a exemplo de cheiros e dores.
50 Minha segunda visita ao sex shop apresentada na cena 2 se deu no fim de dezembro,
ocasião em que após conversar por alguns dias com Lúcio fui acompanhá-lo ao sex
shop. Lúcio tem 27 anos, é estudante e trabalha como auxiliar administrativo em um
escritório imobiliário. Seu companheiro é professor da rede pública e mora no Recife,
razão pela qual o acesso de Lúcio aos sex shops de João Pessoa é contrabalanceado pelas
suas experiências em outro centro urbano do nordeste. Na ocasião, Lúcio pretendia
comprar um conjunto de bolas tailandesas, um sex toy caracterizado por um fio ao longo
do qual estão presas diversas bolas. Os tamanhos são variados, bem como os materiais e
as texturas. Além da corda, algumas versões apresentam as bolas tailandesas em
bastões rígidos ou flexíveis. Perguntei qual a razão de escolher esse brinquedo, e ele me
esclareceu que era algo recorrente nos filmes pornográficos heterossexuais que assistia
e que queria saber como era.
51 Ao chegar a loja fui reconhecido pela vendedora em função de minha primeira visita, há
pouco mais de uma semana. Recebeu-me de modo gentil e logo em seguida
cumprimentou Lúcio. Após informarmos o que procurávamos ela nos expunha os
produtos que tinha: bolas menores, de cerca de 2 cm de diâmetro, bolas em tamanho
crescente, com bastão flexível, em plástico ou silicone, com gel estimulante dentro,
entre outras. Durante a ilustração das possibilidades a vendedora discorria sobre as
vantagens e possibilidades de cada material, tamanho e as possíveis complicações
decorrentes de sua administração. Sugeria também os produtos que poderiam ser
usados de modo conciliado para melhorar a experiência e a melhor maneira de inserir o
parceiro no jogo, caso fosse de seu interesse.
52 Como se pode perceber, nesse caso a vendedora assume um importante papel na
distribuição dos saberes sobre o sexo, participando ativamente dessa economia do
conhecimento. Recobro assim a posição de Hannerz (1992b) no sentido de refletir sobre
uma teoria da cultura no seio de uma sociologia do conhecimento:
A teoria da cultura precisa estar realçada por uma sociologia do conhecimento –
aquelas estruturas de significados e formas significantes não são uniformemente,
mas problematicamente distribuídas entre as populações de modo que tanto a
cultura em si quanto a ordem das relações sociais são influenciadas por essa
complexidade distribuída (Hannerz 1992b, p.36)9.
53 A compreensão das dinâmicas em análise implica fundamentalmente uma maior
atenção aos processos pelos quais conhecimentos, valores e ideias são produzidos,
repassados, bem como canalizados e obstaculizados. Curioso e empolgado, pergunto a

Ponto Urbe, 20 | 2017


44

vendedora como ela descobre todas as informações e ela me esclarece: “é parte do


trabalho, a gente tem que estudar, se informar para que as pessoas possam usar os
produtos da melhor maneira possível”, fazendo assim referência a procedimentos
tradicionais de apropriação de informação através do estudo dos manuais de instrução
dos produtos e de outras plataformas de consulta, a exemplo de sites. Por fim,
acrescenta: “às vezes a gente também usa os produtos para saber como são e poder
explicar para o cliente o que realmente acontece... tem coisa que não dá pra explicar só
lendo, não é?”.
54 Retomando o estudo de Barth (2000) sobre as transações de conhecimento no sudeste
asiático e na Melanésia, ao que parece, no contexto aqui estudado, as vendedoras
assumem, dentro de sistema de relações estabelecido na venda, a posição de gurus
tendo em vista seu engajamento no processo de reprodução desse conhecimento
especializado. Delas espera-se um conhecimento conceitual, e as vezes procedimental,
baseado na experiência, das potencialidades e modos de uso adequado dos produtos.
55 Recobro as orientações de Barth no tocante a essa modalidade de transacionar o
conhecimento: ao guru cumpre a obrigação de falar para o público, ou seja, sua
realização ocorre no momento em que lhe é possível ensinar; o conhecimento é
trabalhado e ordenado logicamente para que possa ser retransmitido; o destaque
recebido e a autoridade reconhecida estão estritamente vinculados ao volume de
informações que o guru consegue deter, e nesse sentido são comuns estratégias de
fragmentação do fluxo de informações de modo a conservar prestígio e posição dentro
de uma cadeia de relações. De modo análogo, o reconhecimento da atividade da
vendedora como especialista é perpassado por algumas dessas condicionantes. Espera-
se que ela atue como um ator qualificado, detentora não apenas das informações
necessárias mas também portadora de habilidades comunicativas que lhe permitam a
transmissão dessas informações de forma clara e lógica.
56 É preciso esclarecer, contudo que, tal como afirma Hannerz (1992a), a distribuição da
cultural não é homogênea e sobre ela operam modos e interesses diversos de manejo do
fluxo cultural. É nesse panorama que acho possível considerar as vendedoras como
gurus apenas se levarmos em conta também as posições que assumem como portadoras
de segredos, realizadoras de distinções, agentes credenciadas a ter acesso e oferecer
determinadas informações e, eventualmente, como dotadas de expertise na área em
que atuam10. Essas características compõem um quadro maior a partir do qual se pode
perceber os processos pelos quais o fluxo cultural é canalizado na complexidade das
relações.
57 Por fim, ao escolher o produto que julgava mais adequado, iniciamos uma conversa
bastante ilustrativa sobre o modo como esses processos acima descritos operam na vida
social. Ansioso pelo novo brinquedo, Lúcio pergunta se a vendedora tem alguma dica
para quem nunca usou as bolas tailandesas. A resposta é brevemente adiada em função
de uma espécie de check-list realizado pela atendente no sentido de entender como
Lúcio desenvolvia sua vida sexual e como era sua relação com os produtos. Pergunta:
“você tem companheira?”, ao que Lúcio responde, “sim, mas é companheiro”. “Ah,
legal! Mas você vai usar ou ele vai usar em você?”. Com algum embaraço responde que é
para ser usado nele mesmo, e que talvez o namorado o ajudasse, já que caso ele gostasse
da experiência iria sugerir ao namorado que fizessem juntos. Por fim, a vendedora
pergunta se ele faz uso de outros acessórios, ao que ele responde que sim. “Quais?”.
“Dildos”, ele responde. Ela segue então a uma explicação em torno da qual se articulam

Ponto Urbe, 20 | 2017


45

informações de caráter médico-biológico (possibilidade de dilatação do ânus, cuidado


com sangramentos, evitar caso já tenha acontecido algum tipo de ferimento,
especialmente fissuras). Aqui, a adoção de termos médicos funciona não apenas como
uma forma de credencialismo que sugere a posição de autoridade da vendedora, como
também de modo simbólico reafirma sua expertise na matéria.

Considerações Finais
58 Neste trabalho procurei contemplar algumas das tensões constituintes dos erotismos
contemporâneos, com especial atenção para o lugar ocupado pelo mercado e os efeitos
por ele produzidos na configuração de dinâmicas da sexualidade entre pessoas que
frequentam sex shops em João Pessoa. A partir de uma exploração inicial desse tipo de
espaços pude identificar um amplo desenvolvimento desse mercado segmentado pela
cidade, em especial nos últimos 4 anos. Esse processo vem se distribuindo pela cidade
sem que seja possível identificar a conformação de regiões nucleares ainda.
59 O exame do material etnográfico coletado possibilitou perceber que os efeitos do
mercado enquanto ator implicado no manejo do fluxo cultural se manifestam de modo
bastante complexo, articulando a si outras estratégias e espaços de organização dos
materiais culturais em circulação. O que se pode perceber é a coexistência de
movimentos de mudança e conservação que constituem uma tensão. Nesse espaço de
tensão o mercado, aquém de possibilitar rearranjos nas lógicas de acesso a recursos e
modos de usar o corpo, acaba por corroborar na permanência e transformação de
estratégias que visam o controle do corpo através de processos de adestramento e
docilização dos corpos e prazeres: cursos, informações técnicas sobre o manuseio dos
materiais. Essa dialética está incorporada também na constituição de um erotismo
politicamente correto, como observou Maria Filomena Gregori, baseado na existência
de uma sexualidade saudável que pode ser exercida através do acesso a determinado
tipo de informação e produtos.
60 Assim, o mercado erótico assume uma posição que é não apenas de subsídio a uma
prática social, mas atua também de modo a oferecer informações, valores e ideias que
são acionados em uma economia do conhecimento sobre o sexo do qual também fazem
parte outros agentes, como escolas, estado e movimentos sociais. Nessa economia as
vendedoras desempenham um papel fundamental, tendo em vista a posição que
assumem como especialistas na matéria. Sua atuação diz respeito não apenas ao acesso
às informações, mas também ao cerceamento e canalização em função de credenciais,
interesses e manutenção de segredos e, em nível extremo, na confirmação de censuras.

BIBLIOGRAFIA
BARTH, Fredrik. “O Guru e o iniciador: transações de conhecimento e moldagem da cultura no
sudeste da Ásia e na Melanésia”. In: ______. O Guru, o iniciador e outras variações
antropológicas. Rio de Janeiro, contracapa, 2001.

Ponto Urbe, 20 | 2017


46

______. “Etnicidade e o conceito de cultura”. In: Antropolítica, vol.19, n.2. Niteroi/UFF, 2005p.
15-30.

FOUCAULT, Michel. A História da sexualidade (vol. 1) – a vontade de saber. São Paulo: Paz e
Terra, 2013.

GREGORI, Maria Filomena. “Erotismo, mercado e gênero: uma etnografia dos sex shops de São
Paulo”. In: Cadernos Pagu, vol. 38.n.2. Campinas: UNICAMP, 2012. p.53-97.

______. “Uso de sex toys: a circulação erótica entre objetos e pessoas”. In: Mana, vol. 17, n.2. Rio
de Janeiro: PPGAS/Museu Nacional, 2011a.

______. “Mercado erótico: notas conceituais e etnográficas”. In: PISCITELLI, Adriana; ASSIS,
Gláucia Oliveira de; NIETO OLIVAR, José Miguel. (Org.) Gênero, sexo, amor e dinheiro:
mobilidades transnacionais envolvendo o Brasil. Campinas: Núcleo de Estudos de Gênero Pagu/
UNICAMP, 2011b.

______. “Prazer e perigo: notas sobre feminismo, sex shop e s/m”. In: PISCITELLI, Adriana;
GREGORI, Maria Filomena; CARRARA, Sérgio. Sexualidade e saberes: convenções e fronteiras.
Rio de Janeiro: Garamond, 2004.

HANNERZ, Ulf. Cultural complexity: studies in social organization of the meaning. Nova York:
Columbia University Press, 1992a.

______. “The global ecumene as a network of networks”. In: KUPER, Adam (ed). Conceptualizing
society. Londres: Routledge, 1992b, p.34-56.

RUBIN, Gayle. “Thinking sex: notes for a radical theory of politics of the sexualities”. In: VANCE,
Carole (ed.). Pleasure and Danger: exploring female sexuality. Boston/Londres: Routledge/
Kegan Paul, 1984.

SAHLINS, Marshall. Metáforas Históricas e Realidades Míticas: estrutura nos primórdios do


reino das ilhas Sandwich. Tradução: Fraya Frehse. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008.

VANCE, Carole. “Pleasure and danger: towards a politics of sexuality”. In: ______ (ed.). Pleasure
and Danger: exploring female sexuality. Boston/Londres: Routledge/Kegan Paul, 1984.

NOTAS
1. Dildos são próteses introduzíveis com formatos variados, alguns antropomórficos, outros
diversos; já os vibradores são modalidades de dildos que reproduzem a anatomia peniana em
proporções diversas e têm como propriedade a capacidade de vibrar através de baterias. O tema
será retomado na sessão final do artigo.
2. No curso desse trabalho não estabeleço qualquer distinção entre pornografia e erotismo,
usando sempre que possível o termo pornô e erotismo como sinônimos. Acompanhando uma
tradição de estudos recentes na área, rejeito assim as construções que localizam como erótico os
materiais de produção erudita e pornográfico o que é massificado e comercial (Gregori 2012;
2004; Díaz-Benítez, 2010).
3. Por sua vez os produtos vendidos nesses estabelecimentos eram muitas vezes chamados de
“segredinhos”, “coisas para apimentar a relação”, “brinquedos” pelas pessoas com as quais pude
manter contato durante o desenvolvimento da etnografia.
4. É possível dizer que para Foucault fosse mais propício dizer que o poder é produzido e então
distribui os indivíduos. Todavia, tomando, como se verá ao longo do trabalho, o poder também
como a possibilidade de acessar e controlar o acesso a determinadas informações, é possível dizer

Ponto Urbe, 20 | 2017


47

que ele não apenas distribui os indivíduos, mas de modo complementar é distribuído por esses no
curso das ações (HANNERZ 1992a).
5. Os dados atribuídos à ABEME no corpo do texto foram retirados de sua página:
www.abeme.com.br
6. Todos os nomes aqui são fictícios. Das duas restantes uma não utilizo por não ter tido
autorização dela para apresentar sua história, e a última devido ao pouco contato que tivemos, o
que tornaria uma interpretação dessas trajetórias fragilizadas pela superficialidade das
informações que pude obter até então.
7. Pompoarismo é uma técnica, presumivelmente de origem indiana, que consiste no controle dos
músculos vaginais para fins diversos, desde o prazer durante o sexo até a facilitação do parto.
8. Pude observar uma estreita relação entre geração e acesso a esse tipo de mercado. Os poucos
homens que encontrei ou com quem pude conversar e me falaram sobre sua relação com esse
tipo de comércio eram em sua maioria jovens, entre 23 e 28 anos. Na minha rede de contatos
pude perceber também uma certa resistência de homens mais velhos irem até as lojas físicas, de
modo que quando utilizavam esse serviço quase sempre foi através de compras online.
9. Tradução minha: “culture theory needs to be enhanced by a sociology of knowledge—that
structures of meaning and meaningful form are not uniformly shared but problematically
distributed in populations and that both culture itself and the order of social relationships are
significantly influenced by this distributive complexity”.
10. As categorias de segredo, distinção, credenciais e expertise, conforme Hannerz (1992a) são
aquelas que no cenário ocidental melhor podem explicar os meios pela qual o fluxo global de
informações é canalizado ou barrado. O segredo atua através da ocultação ou negação da
existência de uma informação; a distinção com a canalização do fluxo a partir de interesses e
constituição de relações de influência; as credenciais pelo reconhecimento de atores mais ou
menos legítimos através de títulos e credenciais, por exemplo; por fim, a expertise se refere a um
caráter ou habilidade de alguém tomado como especialista.

RESUMOS
Tomando como princípio algumas das configurações dos erotismos contemporaneamente, o
artigo analisa as interseções entre mercado e sexualidades no processo de distribuição da cultura.
O artigo apresenta um mapeamento dos sex shops em João Pessoa articulando-o a um debate
sobre a posição dos agentes inseridos nessa dinâmica dentro de uma economia do conhecimento
sobre o sexo mais ampla. O mercado erótico, em especial os sex shops de João Pessoa, são usados
aqui como mote etnográfico, para refletir as tensões entre processos de transformação e
conservação de convenções sobre sexualidades.

Taking as principle some of the settings of contemporary eroticism, the article examines the
intersections between market and sexuality in the culture of the distribution process. The article
presents a preliminary mapping of sex shops in João Pessoa linking it to a debate on the position
of the agents entered this dynamic within a wider economy of knowledge about sex. The erotic
market, especially sex shops in João Pessoa, is used as ethnographic motto to reflect tensions
between the processes of shifting and conservation on sexual conventions.

Ponto Urbe, 20 | 2017


48

ÍNDICE
Keywords: contemporary eroticism, sex shop, erotic economies, sexualities
Palavras-chave: erotismos contemporâneos, sex shop, economias eróticas, sexualidades

AUTOR
THIAGO DE LIMA OLIVEIRA
Doutorando em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo
petraios@hotmail.com

Ponto Urbe, 20 | 2017


49

Como praticar etnografia nas


margens e fronteiras das cidades?
Caterine Reginensi

Introdução
1 Pouco a pouco, o conceito de margens, revisitando meus campos de pesquisas e
praticando uma nova etnografia, foi determinante. Assim, optei por partir de uma
definição ampla das margens como situações que apartam e até excluem diversos
sujeitos. As margens se constroem na relação e na tensão entre formal/ informal,
poderes/ contra-poderes e entre reconhecimento e negação.
2 As cidades brasileiras, mas também latino-americanas ou africanas, representam
figuras emblemáticas das margens: extensões urbanas, explosão demográfica,
combinadas com desigualdades e profusão de áreas fragmentadas (Sierra, Tadie, 2008).
As margens urbanas devem ser entendidas como uma construção espacial e social que
proporciona melhor compreensão do desenvolvimento urbano. As margens remetem a
outros conceitos, tais como interstícios, fronteiras, periferias. Mas não podem ser
reduzidas a um ou outro. Nas pesquisas realizadas na Guiana Francesa e no Amapá,
utilizarei mais o conceito de fronteira para mostrar como esse conceito proposto pelos
Estados, na realidade é feito de espaços porosos que os indivíduos contornam
continuamente. Nos espaços físicos e simbólicos de uma metrópole como o Rio de
Janeiro e até de uma cidade média como Campos dos Goytacazes, o conceito de margem
parece mais pertinente. De fato, as margens revelam muito mais do que o conceito de
periferia. As margens podem ser constituídas de populações em movimento, ligando
vários bairros ou trechos de cidade, como por exemplo, nas pesquisas com meninos de
rua (Morelle, 2008), com camelôs (Reginensi, 2012), com músicos ou artistas nos campos
de refugiados na Palestina (Puig, 2008, Dias, 2013). Porém, as margens não se reduzem
ao desvio ou a marginalidade, podem ser definidas como um outro mundo muitas vezes
combatido mas tolerado, porque participa de fato da existência da sociedade urbana.
3 O artigo apresenta duas etapas do meu percurso de antropóloga estudando as
fronteiras e as margens urbanas: uma compõe uma parte sobre encontros nas

Ponto Urbe, 20 | 2017


50

fronteiras e nas margens e a segunda discute a forma como venho trabalhando, ao


longo do tempo, o conceito de margens.
4 Dos momentos marcantes do trabalho que desenvolvia em vários campos de pesquisa,
devem ser destacados:
5 Uma abordagem etnográfica que une os diferentes campos de pesquisa das cidades
amazônicas até a metrópole do Rio de Janeiro e a cidade de Campos dos Goytacazes, na
região Norte Fluminense.
6 Uma hipótese retrabalhada de forma constante: a análise das fronteiras e margens é
baseada nas leituras que os moradores fazem sobre o local em que vivem, incluindo
tanto as condições de sua estrutura física como a dinâmica de organização interna do
espaço. E essas leituras estão fortemente relacionadas com suas trajetórias de vida.
7 Uma metodologia híbrida que revela a escolha da pesquisadora tentando traduzir as
necessárias adaptações para entrar no campo e construir, ao longo do tempo, um
referencial teórico metodológico que possibilitou interpretar os movimentos das
populações das margens.
8 As pesquisas nas cidades amazônicas e Recife foram realizadas entre 1995 e 2003. A
partir de 2002, a metrópole do Rio de Janeiro foi o meu principal campo de pesquisa. E
desde 2014, como pesquisadora visitante, a cidade de Campos dos Goytacazes torna-se
um lugar para aprofundar a questão das margens. Na construção do meu olhar, entre
teoria, metodologia e extensão, a influência científica de diversos grupos de pesquisa
foi determinante1. Na cidade de St. Laurent du Maroni, na Guiana Francesa, em Macapá
e Belém, cidades brasileiras amazônicas, explorei a porosidade das fronteiras, onde
migrantes foram identificados como microempreendedores, sublinhando suas práticas
de mobilidade que permitiram uma consolidação de suas redes sociais (Reginensi, 1996,
2005, 2012). Na metrópole do Rio de Janeiro, a partir da figura dos camelôs nas ruas,
praças e praias desta cidade, tentei revelar os conflitos pelo uso do espaço urbano e a
complexidade da noção de margens (Bautès e Reginensi, 2008, Reginensi, 2012). Por fim,
na última pesquisa2, a partir do estudo das trajetórias de vida de moradores de favela da
cidade de Campos dos Goytacazes, tentei analisar e interpretar uma leitura dessas
trajetórias e territórios, através do prisma das margens e a pesquisa tencionou inserir
três momentos-chaves : entrar nas margens, o significado de morar nas margens e
atuar nessas margens (Reginensi, 2015: 28-30).

Ponto Urbe, 20 | 2017


51

Encontros nas fronteiras e nas margens


St. Laurent du Maroni /Guiana Francesa, fronteira com Suriname,
1997

Figura 1. St. Laurent du Maroni, o rio /fronteira, ao fundo Albina, cidade surinamesa , créditos
CReginensi, 1997

9 Conheci Sammy em 1997, em St. Laurent du Maroni, na Guiana Francesa. Marcamos


encontro no final da tarde, na beira do rio. Ele estava com 19 anos. Acabara de ganhar a
nacionalidade francesa. Definiu-se como Djuka3. Em 1986, seus pais fugiram da guerra
civil no Suriname. Apesar de ter nascido em Albina, Suriname, Sammy sente-se em casa
em St. Laurent, onde os membros da sua família se instalaram bem antes da guerra
civil. Desde sua infância, acostumou-se a atravessar o rio de canoa, para visitar os seus
inúmeros primos. Mais tarde, quando a agitação na fronteira diminuir, ele vai retomar
a canoa para acompanhar a mãe, que vende na feira de produtos de Suriname. O rapaz
vive em uma pequena casa de madeira, barraco construído por seu pai e tios, localizado
em uma vila espontânea, que existia no período do encontro. Essas vilas, assentamentos
informais, construídas principalmente sobre palafitas ao longo do Maroni, serão
erradicadas e seus habitantes realocados em áreas já definidas, por toda a cidade.
Sammy não vai frequentar a escola, mas o suficiente para conhecer pessoas e criar, para
além da sua rede familiar, outros relacionamentos. Ele também vai saber como negociar
um dispositivo de treinamento como parte dos agentes da política da cidade. Assim, em
torno do Maroni existem várias oportunidades para desenvolver uma atividade
econômica. Sammy considerava-se um wakaman4.

Ponto Urbe, 20 | 2017


52

Laranjal do Jarí, Amapá, fronteira com o Pará,1999

Figura 2. Desde Laranjal , vista da fábrica de celulose, créditos C.Reginensi, agosto de 1998

10 Paulo, vendedor de sorvetes, me levou até o rio Jari ‘’o desastre’’, como ele chamava a
fábrica de celulose instalada na cidade vizinha, no Estado do Pará, e que polui a cidade e
o rio. Paulo chegou aos 3 anos, com a mãe e dois irmãos, no ‘‘beiradão’’, imensa favela
que hospedou muitas famílias cujos membros trabalhavam na usina. Foi o caso de o tio
materno dele. Lembrava das condições do barraco, quando criança, e da dificuldade
para circular na favela de palafitas. Também comentou as melhorias no lugar, como a
instalação de passarelas de madeira de boa qualidade, facilitando o acesso ao bairro e
melhorando a imagem do bairro. Assim, sentia-se orgulhoso de dar seu endereço e
receber amigos, embora reconhecendo que o bairro continua isolado pois mal atendido
pelo transporte ou ainda por ser um lugar onde ocorre tráfico de drogas e prostituição.

Ponto Urbe, 20 | 2017


53

Caiena, Macapá, Belém e Recife: bairros na fronteira da cidade,


1998, 2001, 2002

Figura 3. Cabassou, entrada da aldeia brasileira, créditos C.Reginensi, 2001

11 Percebi umas caixas postais na curva de uma estrada na saída do município de Rémire
Montjoly em direção a Caiena; isto foi num domingo, quando um jovem brasileiro me
pediu carona depois de ter assistido a uma festa de aniversário de amigos comuns. Não
tinha encontro marcado mas descobri a "vila brasileira", BP 134, ou Cabassou: vários
nomes para o mesmo lugar, de acordo com quem se fala: os moradores chamam o lugar
de Cabassou, me diz o rapaz, e mais tarde descobriria que o poder público chamava o
lugar de BP 134 ou vila brasileira. Entramos pela "Avenida", pequena rua de terra
batida, terra vermelha da Guiana. Uma grande variedade de casas se espalhava,
crianças brincavam e gritavam. Prometi voltar. E dois anos depois, Zélia, moradora do
local e participante de uma associação de mulheres, me convidou à sua casa. Ela foi me
esperar na entrada da avenida, e antes de chegar em casa, paramos na Suzanna, outra
mulher da associação Dynameta. As duas falaram das suas trajetórias no Brasil até
chegar à Guiana. A primeira insistiu na autoconstrução da casa, na parte mais precária
do bairro e no medo de ser removida, mais tarde falou do seu projeto de organizar um
grupo de costureiras e de criar sua empresa. A segunda, considerou que já tinha a sua
empresa montada, informalmente: fabrica salgados na sua cozinha e vende na cidade
inteira. A casa dela é grande, a cozinha organizada para preparar os salgadinhos e
outras comidas que o marido muitas vezes vai vender porque ela está aprendendo a
dirigir e vai de bicicleta, mas quando chove não dá para ir até Caiena.

Ponto Urbe, 20 | 2017


54

Macapá, bairro de Perpétuo Socorro

Figura 4. O canal, as casas, o mercado de peixe; créditos C.Reginensi, agosto de 1998

12 Eliana vendia água de coco na praça Zagury e morava no bairro de Perpétuo Socorro.
Depois de falar várias vezes com ela nos finais da tarde, aceitou me levar para visitar o
seu bairro, lá depois do canal como ela dizia, outras pessoas e muitas dificuldades: sem
água, sem luz, mas melhorou um pouco: "mas tudo demorado, tudo entupido, muitas
vezes no período da chuva, a vida é complicada, aqui !". Apesar de tudo isso, ela vendia
cada dia e quando chovia muito, ficava em casa e preparava doces e ia vender com sua
cunhada em outros bairros de Macapá. O marido era carpinteiro e tinha um bom
emprego. Os dois filhos estudavam. Esperava poder consolidar a casa, arrumar o quintal
e desenvolver uma atividade de agricultura familiar.

Recife, na favela de Caranguejo/Tabaiares

Figura 5. O canal que separa as duas favelas, créditos CReginensi, abril de 2001

Ponto Urbe, 20 | 2017


55

13 Maria marcava sempre encontro comigo na casa dela, não muito longe da entrada da
favela de Caranguejo. Depois de várias visitas, uma manhã levou-me para trás do canal.
Dizia que do outro lado do canal eram "outras pessoas", "outro lugar", invasões mais
recentes. Não conhecia ninguém lá, mas observando comigo as casas, disse que
provavelmente as pessoas fizeram como ela e o seu marido, ou seja, montaram uma
barraca e depois, juntando um dinheiro para comprar tijolos, consolidaram a casa.

Belém do Pará, avenida Barroso

Figura 6. Os trajetos do Danilo durante a semana, montagem Sarah Wickenburg com créditos das
fotos, CReginensi, 2002/2007

14 Da rua onde morei durante mais de um mês, ia todos os dias observar os vendedores
ambulantes na avenida Barroso, perto do Shopping Castanheira. Foi num desses dias
que conheci Danilo, que falou da avenida como uma fronteira. Conforme a fala dele, os
vendedores desse lado da avenida tinham barracas, negociavam com a prefeitura, do
outro lado eram vendedores mais ocasionais ou alguns que trabalhavam no meio de
trânsito. Colocou também a questão da fronteira quando me falou de onde morava:
Ananindeua, que caracterizou como bairro periférico de Belém. Danilo tomava conta de
um total de dez barracas padronizadas: quatro nessa avenida onde marcava encontros,
três perto da rodoviária e outras três, no centro de Belém, na avenida Presidente
Vargas. Todos os dias, de manhã, ia de carro da sua residência até cada barraca, e de
tarde ficava numa barraca da avenida Barroso onde vendia relógios. Às terças e/ou
quartas-feiras, o ritmo era diferente. Ao chegar perto do centro, ia pelas ruas nos
arredores do mercado Ver-o-Peso e comprava nos atacadistas para, depois, colocar a
mercadoria nas barracas. Nas nossas conversas nunca quis falar da prefeitura, das
negociações; quem cuidava dessa parte do negócio eram a mãe e o tio.

Ponto Urbe, 20 | 2017


56

Rio de Janeiro, encontros na praia de Copacabana, entre Posto 5 e


6, uma etnografia dos prestadores de serviços5.

15 Das minhas caminhadas, na Orla de Copacabana ao final do dia e de noite, observei que
vendedores de milho, tapioca, pipoca, com carrocinha e alguns barraqueiros chegavam
a pé, descendo da favela do Pavão em direção da praia. Um desses vendedor comentou:
(...) nós do morro temos a vista mais linda ...mas sempre em tensão ...entre o tráfico
e a polícia ...às vezes não consigo subir então, espero aqui embaixo...(João,vendedor
de milho).

Figura 7. Vendedor de milho no Posto 5, morador do Pavão. Créditos CReginensi, 10-01-2010

16 De dia observando o movimento intenso dos camelôs na faixa de areia e no calçadão,


entre os quiosques, percebi outras categorias em interação e fui ao encontro deles:
massagistas, guardadores de carros (flanelinhas), locadores de bicicletas, especialistas
em tatuagem, seguranças e apoio nos momentos dos eventos, passeadores de cachorros.
Todos fazem parte da economia da praia e ressignificam os espaços do calçadão e da
areia. Falaram do dia a dia do seu trabalho na Orla e das fronteiras entre os ‘‘outros’’
que podem ser os colegas da mesma profissão, os vizinhos moradores do morro, a
polícia e tantos outros sujeitos com quem interagem, na praia de Copacabana, cartão
postal da cidade....
(...) vou te contar um caso: A pessoa passa por aqui e pergunta, quanto? Trinta reais
trinta minutos vão supor o colega que tá lá na frente já viu que passou por aqui,
quando vai aquela pessoa perguntar lá, quanto a massagem? Vinte.(..) o maior
problema é colega..(Ernandez, Massagista).

Ponto Urbe, 20 | 2017


57

Figura 8. Massagista na praia, Posto 5. créditos CReginensi, 16-02-2010

17 Incluí, nas observações e entrevistas, os escultores de areia e artistas diversos como


atores que constroem a praia como cenário alternativo e de culturas híbridas (Canclini,
1997, Reginensi, 2013):
(...) porque aqui você tem que fazer a boa política da boa vizinhança.... você nem
imagina o que aconteceu aqui...(Bira, escultor de areia)

Figura 9. Bira Escultor, fotografando turistas. Créditos CReginensi, 30-05-2010

Ponto Urbe, 20 | 2017


58

18 Essas histórias recolhidas, em tempos e cidades diferenciadas, falam da fronteira.


Fronteiras físicas, geográficas que separam e unem os homens e as mulheres que as
atravessam. A fronteira no caso da Guiana desempenha um papel de espaço transicional
de trocas diversas e, na realidade do cotidiano dos habitantes, vem abolir a fronteira
estabelecida pelos Estados. Os canais ou estradas parecem dividir e separar quando, de
fato, a porosidade entre um espaço e outro é muito grande. As pessoas criam suas
rotinas e, da construção da casa às atividades de comércio (que podem ser
desenvolvidas na própria casa), organizam um território usado e vivenciado pelos
indivíduos para retomar a fala de Milton Santos (2000) sobre o território que deve ser
considerado como a base do trabalho, da casa, de trocas materiais e espirituais da vida.
Uma combinação sutil "água/urbanização" se desenvolve nas cidades da Guiana
Francesa, do Amapá, do Pará e até no Recife. À beira do rio, os mais jovens brincam,
pulam na água, outros lavam louça, pescam ou consolidam as palafitas.
19 Na metrópole do Rio de Janeiro, tentei melhor definir a relação entre economia da praia
e a proximidade dos morros e do “asfalto”, no mesmo espaço urbano. As trajetórias de
moradia e de trabalho se misturam e revelam fronteiras de diferenciação no mesmo
lugar chamado favela ou praia. As formas de morar e de trabalhar são marcadas pelo
provisório: mudanças, separações, mortes de familiares, realojamentos, remoções
perpassam a vida dos sujeitos, apesar de transformações do ponto de vista urbanístico,
"o viver em risco" perdura (Kowarick, 2009). Alguns desenvolvem trajetórias de
empreendedores do comércio da praia em um jogo sutil entre formal/informal, legal/
ilegal (Reginensi, 2012, Telles e Hirata, 2007).

Das fronteiras às margens


Como recolhi as histórias?

20 1)Uma leitura das fronteiras das cidades amazônicas até Recife.


21 Na Guiana Francesa, o ponto de partida do meu trabalho de pesquisa foi a análise das
estratégias residenciais e de trocas (materiais e simbólicas) que as populações
compartilham, deslocando-se continuamente nesta região. O conjunto de trocas insere-
se tanto nos espaços da moradia, como nas beiras dos rios: a Oeste, o rio Maroni
(fronteira com o Suriname) e a Leste, o rio Oiapoque, fronteira com o Brasil (Estado do
Amapá). Uma primeira pesquisa de campo (1995-1998) construiu-se na região Oeste da
Guiana. Trabalhei com a noção de "bricolagem"(BASTIDE, 1970) para melhor entender
como populações oriundas de fluxos migratórios tecem laços e mantêm uma coesão
como grupo social. Depois percebi que essa bricolagem que varia conforme a trajetória
do indivíduo podia ser mais ou menos interessante para aprofundar o papel e a posição
que ocupava na sociedade que lhe oferecia hospitalidade. A teoria da transação social
(Remy, 1991) inspirada da ecologia social da escola de Chicago (Grafmeyer e Joseph,
1984), foi uma perspectiva estimulante para navegar no mundo complexo da Guiana,
entre tradição e modernidade. Finalmente, as pesquisas de Clyde Mitchell (1969) que
evidenciam a forma como novas normas surgem no meio urbano e como essas normas
se propagam através das redes de relações me levaram ao interesse pela análise de
redes.
22 As estratégias de deslocamento na Guiana surgiram como recursos: das aldeias do rio
Maroni, ao assentamento espontâneo em St.Laurent du Maroni até o realojamento em

Ponto Urbe, 20 | 2017


59

um assentamento planejado em St.Laurent e na cidade de Kourou, as populações


organizam-se através das suas redes relacionais e desenvolvem uma microatividade
econômica nesses espaços. Espaços urbanos localizados frequentemente de forma mal
articulada à cidade, ou localizados nos interstícios da cidade colonial, são os espaços
"visíveis" destas trocas informais.
23 A minha preocupação foi associar o conceito de "territórios circulatórios" 6 (Tarrius,
1993) com o de redes sociais (Granovetter, 1973). Estas últimas, de certa forma,
participam de um processo de socialização da vida urbana. Neste sentido, pude
perceber que as populações instauram estratégias para ter acesso à cidade: “querem a
cidade” (Reginensi, 1996). Neste processo, que aparece como uma constante destes
atores que se chamam de businessmen ou de wakaman, o saber, aquele que determina
claramente os sucessos comerciais, é o conhecimento circular. E de certa forma, a
afirmação de que "um poder nômade sobre o poder sedentário que se manifesta pelo
conhecimento dos caminhos que atraem homens e riquezas, é o poder de ser ignorante
ou de contornar tudo que faz fronteira." (Tarrius, 1997:102).
24 Trabalhei com as redes de diálogo que eles construíram ao longo do tempo, ou seja,
para entrar no "business" faziam um pequeno estudo de mercado falando com pessoas-
chaves da sua família, da vizinhança e dos órgãos da prefeitura ou do Governo (política
da cidade).
25 Do Amapá até o Recife, passando por Belém, através de uma pergunta: "Como vejo a
minha cidade, o meu bairro, minha casa," deixei expressar-se a heterogeneidade dos
destinos, as diferentes formas de estar e viver na cidade. O jeito que permite de traduzir
pedaços de vidas e de cidades, segundo Michel Agier (1999). As observações repetidas e
o registro fotográfico foram os métodos mais utilizados. Com ajuda de colegas, foram
realizadas algumas entrevistas. Explorei temas como fios condutores da conversa:
26 A cidade, o bairro: a sua instalação no bairro onde mora no momento da entrevista e o
relato de diferentes mudanças na sua trajetória de vida, como chama o seu bairro, qual
é sua a relação com o centro da cidade, com o rio, com outras áreas do bairro e da
cidade, de que lugares gostam ou não gostam e por quê.
27 Relações: entre vizinhos, família, amigos, outros relacionamentos; frequência, tipo de
relação: quem ajuda e por quê? Onde e como acontecem as trocas?
28 Dados sobre o indivíduo: sexo, idade, nível de estudo, trabalho atual e descrição de uma
jornada de trabalho.
29 Assim, resgatei depoimentos de três grupos de migrantes: 1) Nascidos e criados na
cidade onde moram no momento da entrevista, 2) Nascidos em outro lugar e criados na
cidade atual, 3) Nascidos e criados em outro lugar e chegados na cidade atual há menos
de 5 anos.
30 2)As margens da cidade e do Estado na metrópole do Rio de Janeiro e em Campos do
Goytacazes
31 Mais recentemente, na metrópole do Rio de Janeiro e atualmente na cidade, de meio
porte, de Campos dos Goytacazes, norte fluminense, voltei a me interessar pela
construção das margens.
32 Com os colegas do Núcleo FACI (Gomes et al. 2006), antes de propor uma análise crítica
dos programas e políticas habitacionais, partimos de uma leitura das favelas como
territórios da cidade que guardam um sentido de "lugar" (De Certeau, 1994). Assim no
âmbito da cidade, o uso do espaço da favela é uma modalidade, é uma "maneira de

Ponto Urbe, 20 | 2017


60

fazer". A partir dessa conceituação, as favelas devem ser pensadas como uma porta de
entrada para os mais pobres (Abramo, 2009), e como territórios construídos nas
relações sociais, materiais e simbólicas são estabelecidas entre e pelos indivíduos/
grupos sociais. Assim, o território das favelas gera práticas sociais, a vinculação do
indivíduo e do grupo com o seu meio, operando de acordo com a cultura de cada grupo.
E, as "fronteiras" entre "nós" e os "outros" acabam não tendo limites tão marcados na
realidade cotidiana. Retomando a proposta de Frederick Barth (1999) as estruturas mais
significativas da cultura – "ou seja, aquelas que mais consequências sistemáticas têm
para os atos e relações das pessoas – talvez não estejam em suas formas, mas sim em
sua distribuição e padrões de não compartilhamento". O que ele quer dizer é que
podem ser vistos diferentes jogos de poder e desigualdades que caracterizam a cultura
– no seu desenrolar cotidiano e nas institucionalizações de suas formas. Olhei para as
favelas e a praia observando toda sorte de símbolos produzidos ali como um espaço de
trocas, não apenas econômicas como também simbólicas, onde a cultura e as práticas se
dão de maneira relacional a partir do trânsito dos indivíduos entre os diversos
universos discursivos que se interagem no território e fora dele (Reginensi, 2012).
33 Nestes anos de pesquisas etnográficas considerei que a metáfora da fronteira era
interessante como categoria analítica, como “forma privilegiada de sociabilidade”
(Sousa Santos, 2001).
34 Por fim, o conceito de fronteira implica uma luta e uma negociação com a autoridade,
com o poder público para conseguir ou afirmar sua legitimidade. A fronteira física e
simbólica deve ser relativizada, viver na fronteira deve ser experimentado como "viver
nas margens sem viver uma vida marginal" (De Sousa Santos, op.cit. p.353 e Bautes,
Reginensi, op.cit.), propósito que experimentei com vários atores da economia da praia
ou da floresta, na metrópole do Rio de Janeiro. Os moradores, encontrados a partir
dessas pesquisas etnográficas, criam um cenário que pode ser analisado como uma
arena pública (Cefai, 2007), e o estudo das suas trajetórias como ação coletiva, permite o
debate sobre as fronteiras ou margens da política contemporânea no Brasil (Feltran,
2010). Assim, os sujeitos utilizam-se, de forma seletiva, das tradições, das origens,
sabem mobilizar oportunidades e mudar de estatuto. Segundo Feltran (op.cit.) a
pressuposição da desigualdade que atravessa os espaços, obriga a se repensar
continuamente a ação política. E a política, nestes contextos (favelas ou periferias),
pressupõe um conflito anterior que tem origem no tecido social e pela definição de
quem são os grupos sociais legítimos. Isto vem retomar a proposta de Jacques Rancière
(1995) segundo quem a política é, em primeiro lugar, um cenário de conflitos 7. No texto
de Gabriel Feltran (op.cit.: 228), a noção de margem como categoria analítica deve ser
trabalhada para auxiliar a demarcação das clivagens entre periferias e política ou das
margens da política. A metáfora da fronteira é interessante porque, ao mesmo tempo, ‟
em que denota uma separação, a noção preserva a possibilidade de fluxos, controlados,
entre as parcelas separadas”.
35 Conforme Das e Poole (2004) as margens se referem a três definições: as margens da
legalidade oficial, as margens da legibilidade estatal (referência à burocracia escrita) e as
margens da normalidade como espaço entre os corpos, a lei e a disciplina (referência ao
‘’biopoder’’ de Michel Foucault).
36 Assim a partir da construção desse referencial teórico metodológico essas perguntas
foram destacadas: Quem reside hoje nas margens da cidade? Como abordar as cidades

Ponto Urbe, 20 | 2017


61

através das margens, estudando a organização, a evolução no longo do tempo, e como


interferem nas lógicas de poder?
37 Afim de trabalhar esse questionamento a utilização de uma metodologia híbrida
contemplou vários universos, usando a analogia ou/e ou desvio. A questão da escolha
dos métodos deve ser abordada em término de complementaridade. As pesquisas
etnográficas que desenvolvi e continuo desenvolvendo visam prestar um olhar mais
atento às experiências de vida dos próprios indivíduos; assim a metodologia integra
uma parte devolutiva da pesquisa. Na pesquisa visitante de 2009/2010, no Rio de
Janeiro, a prática do desvio foi no centro da etnografia: do lado a praia de Copacabana e
sua economia e do outro uma favela escondida, na floresta da Tijuca, cujos moradores
desenvolvem um projeto de cooperativa e resistem à remoção. Os meus vai e vens da
praia à floresta, e da floresta à praia, construiram a etnografia e vários dispositivos de
devolução foram organizados: vídeos, mapa da memória8 elaborados a partir das
entrevistas e de oficinas com os moradores.
38 Na pesquisa em Campos dos Goytacazes, as primeiras observações permitiram refletir
sobre as margens como representação de um mundo social, onde as pessoas podem ser
excluídas de recursos mas, ao mesmo tempo, podem tentar construir estratégias e lutar
por uma vida melhor. E a metodologia incorporou uma fase de realização de oficinas
que acabou construindo a parte devolutiva da pesquisa (Reginensi, 2015: 13-14).

Algumas considerações finais


39 Das cidades amazônicas à metrópole do Rio de Janeiro e à cidade de Campos dos
Goytacazes, estudar as margens não significa descrever periferias ou favelas mas sim,
assumir uma posição de pesquisadora "em movimento" que analisa situações de fazer e
inventar a cidade (Agier, op.cit.), experiências que revelam dinâmicas urbanas (Das,
Poole, op.cit; Hatzfeld e als, 1998).
40 Minha abordagem é tanto relacional como abrangente, com base empírica. Ela visa
desconstruir e analisar a polarização social das lógicas que estão em jogo.
41 Empiricamente, essa polarização gerou efeitos de encobrimento das realidades vividas
pelos atores das margens, ou seja, homogeneização de fato, grupo bastante disforme,
composto por aqueles que poderiam ser geralmente chamados de "indesejáveis".
42 Nas cidades brasileiras, com o desenvolvimento como pano de fundo, as parcerias
público/privado, o processo de urbanização e os dispositivos de acompanhamento dos
moradores levam à produção de um discurso que reza: nós providenciamos as
condições para a integração e a promoção do maior número de pessoas, sendo que
aqueles que ainda estão às margens devem ser considerados como responsáveis pela
sua situação. Eles se excluíram ativa ou voluntariamente. Portanto, podem ser vistos
como "inimigos de dentro" que dificultam os esforços de desenvolvimento 9. Isto leva ao
que Gabriel Feltran chama de "política de confrontação" permanente entre traficantes
e polícia, por exemplo. Essa política é uma das manifestações da polarização das
sociedades urbanas que utiliza um vocabulário específico: guerra, paz, ocupação,
pacificação.
43 De que maneira as pessoas sujeitas à lógica de discriminação ou de negação,
renegociam a sua presença e a sua visibilidade no espaço urbano? Poderia ser uma
pergunta a trabalhar melhor no futuro. Ela poderia ser tratada a partir de resistências

Ponto Urbe, 20 | 2017


62

subalternas10, insistindo sobre o sistema de valores que organizam (Roitman e Warnier,


2006). Modestamente, tento na minha última pesquisa, estudar algumas trajetórias de
vida de artistas que tentam melhorar sua vida e permitem uma abordagem da cidade e
sua produção cultural, "o social e o cultural entrelaçados" (Rizek 2011/2014).

BIBLIOGRAFIA
ABRAMO, Pedro. (org.). 2009. Favela e mercado informal: a nova porta de entrada dos pobres nas
cidades brasileiras. São Paulo: ANTAC,.v.1.

AGIER, Michel. 1999. L´invention de la ville : banlieues, townships, invasions et favelas. Paris:
Editions des Archives contemporaines.

BARTH, Frederick 1999. "Les groupes ethniques et leurs frontières" (trad. Bardolph J., Poutignat
Ph., Streiff-Fenart J.), in Poutignat Ph., Streiff-Fenart J., Théories de l’ethnicité, Paris, PUF1999, :
213.

BASTIDE, Roger.1970. "Mémoire collective et sociologie du bricolage". L’Année sociologique, vol.


21, : 65-108.

BAUTES, Nicolas., REGINENSI, Caterine. 2008. "La marge dans la métropole de Rio de Janeiro: de
l’expression du désordre à la mobilisation de ressources" , Revue Autrepart, n°47, : 149-168,

CEFAI, Daniel. 2007. Pourquoi se mobilise-t-on? Les théories de l´action collective. Paris: Revue du
MAUSS,

DAS, Veena., POOLE, Deborah. 2004. Anthropology in the margins of the state, New Delhi, Oxford
University Press.

DE CERTEAU. Michel.1994. A invenção do cotidiano. Artes de fazer. Petrópolis: Vozes.

DIAS, Amanda. 2013. Aux marges de la ville et de l’état, Paris: Karthala.

FELTRAN, Gabriel.2010. "Margens da política, fronteiras da violência: uma ação coletiva das
periferias de São Paulo". Lua Nova, São Paulo, 79: 201-233

GRAMSCI, Antonio1978. Carnets de prison. Paris, Gallimard.

HATZFELD Hélène., HATZFELD Marc., RINGART Nadja. 1998. Quand la marge est créatrice. Les
interstices urbains iniateurs d’emploi. Paris, Editon de l’Aube.

GOMES, Maria. Fatima. Cabral. Marques.; PELEGRINO, Ana, REGINENSI, Caterine. & FERNANDES,
Lenise Lima. 2006. Desigualdade e exclusão nas metrópoles brasileiras: alternativas para seu
enfrentamento nas favelas do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: HP Comunicações & Arco-Íris.

GRAFMEYER, Yves, JOSEPH, Isaac. 2004. L´Ecole de Chicago. Naissance de l´écologie urbaine.
Paris, Flammarion.

GRANOVETTER, Mark.1973. “The strength of weak ties”. American Journal of Sociology., Vol. 78, nº
6, :1360-1380.

KOWARICK, Luis. 2009. Viver em risco. Sobre a vulnerabilidade socioeconômica e civil. São Paulo:
Editora 34.

Ponto Urbe, 20 | 2017


63

MITCHELL, J. Clyde. 1969. Social networks in urban situations. Analyses of personal relationships
in Central African Towns, Manchester, University Press.

MORELLE, Marie, 2008. "Les enfants de la rue à Yaoundé (Cameroun) et Antananarivo


(Madagascar) ", In: SIERRA, Alexis., TADIE., Jérôme., La ville face à ses marges. Autrepart, 1,45, :
43-59

PETONNET, Colette.1982. "L'observation flottante : L'exemple d'un cimetière parisien ". L'Homme
XXII (4:):37-47.

PUIG, Nicolas.,2008. "Entre villes et camps: musiciens palestiniens au Liban". In: SIERRA ,Alexis.,
TADIE., Jérôme., La ville face à ses marges. Autrepart, 1,45, : 59-73

RANCIERE Jacques. 2005. A partilha do sensível. Estética e política. São Paulo, Editora 34.

_______ 2004. Aux bords du politique, Paris, Folio Gallimard.

REMY, Jean, VOYÉ Lilian., 1991. Ville. Ordre et violence. Formes spatiales et transaction sociale,
Paris, PUF.

REGINENSI, Caterine. 1996. Vouloir la ville : du business à la citoyenneté en Guyane française.


Montpellier : Editions de l´Espérou.

_______2005 "Une figure du territoire en mouvement : le vendeur ambulant transfrontalier en


Amazonie", In Capron, Guénola. Cortès, Geneviève., Guétat-Bernard Hélène.(org). Lieux et liens
de la mobilité : ces autres territoires. Capítulo 16. : 291-310, Paris: Editions Belin, collection
Mappemonde

__________2012, A la rencontre des vendeurs ambulants et autres informels. Editions


Universitaires Européennes.

__________2013, "Une ethnographie des expériences artistiques sur la plage de Copacabana (Rio
de Janeiro) ", Teoria e cultura, Revista de Pós-graduação em Ciências Sociais da UFJF, Vol8/N.1,
Dossiê-Nas cidades : antropologias em contextos urbanos contemporâneos. ISSN :2318-101X

__________2015 "Etnografia das margens da cidade: a Margem da Linha em Campos dos


Goytacazes", revista Terceiro Milênio, vol.5, num2, Julho/Dezembro 2015:19-40 e introdução do
dossiê sobre as margens: 13-19. Disponível em:<http://www.revistaterceiromilenio.com.br>

SIERRA ,Alexis., TADIE., Jérôme. 2008. La ville face à ses marges. Autrepart, 1,45.

SPIVAK, Gayatri. Chakravorty. 2010. Pode o subalterno falar? Trad. Sandra Regina Goulart
Almeida; Marcos Pereira Feitosa; André Pereira. Belo Horizonte: Editora da UFMG

RIZEK, Cibele S. Projeto de pesquisa Bolsa Produtividade CNPq, em andamento – O social e o


cultural entrelaçados –2011/2015

ROITMAN, Janet., Warnier, Jean-Pierre., 2006. "La politique de la valeur ". Journal des africanistes
[En ligne], 76-1 | 2006, acesso em junho de 2014. URL : http://africanistes.revues.org/201

SANTOS, DE SOUSA Boaventura. 2001. A Crítica da Razão Indolente: Contra o Desperdício da


Experiência. Porto, Afrontamento.

SANTOS, Milton. 2000. Por uma outra globalização, do pensamento único à consciência universal.
Rio de Janeiro: Editora Record.

TARRIUS, Alain.1993. "Territoires circulatoires et espaces urbains", Annales de la recherche urbaine,


nº59-60, :51-60.

_______ 1997. Fin de siècle incertaine, Perpignan, Editions Trabucaire.

Ponto Urbe, 20 | 2017


64

TELLES, Vera da Silva. HIRATA, Daniel. 2007. "Cidade e práticas urbanas: nas fronteiras incertas
entre o ilegal, o informal e o ilícito". In: Estudos Avançados, vol. 21, n. 61o : 173-191.

NOTAS
1. Minha integração, em 2000, num laboratório de pesquisa da Universidade Le Mirail, em
Toulouse, cujos membros trabalhavam na América Latina, me permitiu revisitar meu objeto de
estudo e ampliar a perspectiva etnográfica, compartilhando campos e reflexões com
pesquisadores da sociologia e da geografia. Um ano depois de integrar este laboratório, associei-
me como participante estrangeira ao Núcleo Favela e Cidadania da Escola de Serviço Social da
Universidade Federal do Rio de Janeiro (FACI/ESS/UFRJ), que já era parceiro do meu laboratório
de Toulouse.
2. Pesquisadora visitante (PVE) CNPq, - 2014-2016 - convidada pelo programa de Pós-Graduação
em Sociologia Política, Uenf Darcy Ribeiro.
3. Bushinengues ou Negros são de origem africana, antigos escravos que fugiram das plantações
da Guiana Holandesa antes da abolição da escravatura e se dispersaram pelo território das
Guianas. Eles são compostos de várias etnias: Bonis, Djukas, Saramakas e Paramacas.
4. O wakaman/homem que anda é um jovem, de 15 a 30 anos de origem crioula, negra, indígena ou
brasileira, que vive na região de Saint Laurent, mas também em outras cidades da Guiana, do
Suriname. Reconhecem-se através de sinais, da linguagem, mas também pela roupa: tênis (da
marca Nike), bonés, camisetas, calças, joias de ouro. Ouvem reggae, rap. As atividades deles
concentram-se no setor urbano, Não têm carteira de identidade, seja qual for a sua nacionalidade.
Sabem quem conserta um motor de carro, fabrica um barco ou onde encontrar as mercadorias as
mais diversas: álcool, cigarros, e outros objetos possíveis de serem revendidos. Trabalham em
função das oportunidades e estabelecem redes de contato. (trabalho de campo em 1997/1998)
5. Pesquisadora visitante da FAPERJ, no FACI /ESS/UFRJ, 2009-2010
6. Explorei três níveis de espaço-tempo da mobilidade: o primeiro contempla a migração ao longo
da vida do indivíduo, dos pais dele, do interior do estado ou de outro estado até a cidade atual; o
segundo é o da mobilidade residencial na mesma cidade, as diversas mudanças e, muitas vezes,
considerando a construção da casa que nunca acaba; e o terceiro momento observado é a
mobilidade do cotidiano, na procura de um trabalho ou exercendo uma atividade entre formal e
informal.
7. Mas, além das fronteiras, a política deve ser entendida como reconfiguração do sensível e o
princípio da igualdade deve ser priorizado. Esta reconfiguração, conforme Rancière (2004),
corresponde também à inclusão no comum de novos sujeitos e de objetos inéditos, de maneira a
permitir dar visibilidade àqueles que não se faziam visíveis, de modo a se fazer perceber como
seres falantes. Essa inserção não é feita nem de uma vez por todas, nem de modo definitivo. .
8. Vídeo Outro Rio, acesso . http://youtu.be/Lbq3sk1ZsE0 O mapa da memória, que tornou visíveis
as casas e o nome dos seus ocupantes. https://www.dropbox.com/s/elve5k679l6fr35/
Mapa%20da%20Memoria.pdf?dl=0
9. Tento resgatar aqui parte do debate do qual participaram Gabriel Feltran, Nicolas Bautès e
Jerôme Tadié: Jornada de estudo Informalidade e política França / Brasil, Paris, 21e 22 de maio de
2014.
10. A noção de subalterno e resistência subalterna, conforme esses autores mas também a
indiana Spivak (na tradução brasileira de Sandra Almeida e als. 2010, p.12) definem o sujeito
subalterno como aquele que pertence “às camadas mais baixas da sociedade constituídas pelos
modos específicos de exclusão dos mercados, da representação política e legal, e da possibilidade
de se tornarem membros plenos no estrato social dominante”. Por entanto, não significa que esse
subalterno não tem voz, que não resiste, conforme Jacques Rancière e a noção de ‘‘seres falantes’’.

Ponto Urbe, 20 | 2017


65

RESUMOS
O artigo visa debater a influência das margens no processo de urbanização das cidades a partir de
alguns estudos de casos na Guiana Francesa, no Norte do Brasil (Macapá e Belém do Pará) e
Nordeste (Recife-PE) colocados em perspectiva com trabalhos empíricos mais recentes
desenvolvidos na metrópole do Rio de Janeiro, e numa cidade média do estado do Rio de Janeiro:
Campos dos Goytacazes. Como abordar as cidades através das suas margens e como interferem
diferentes lógicas de poder será o fio condutor de nossa proposta.
As margens remetem a outros conceitos, tais como interstícios, fronteiras. A reflexão sobre as
margens como elaboração de um objeto de pesquisa antropológica questiona as categorias e
categorizações: margens, marginalização, fronteiras, rural/urbano, público/privado nas cidades
brasileiras, o que também sugere essa outra pergunta: com que abordagem metodológica estudar
as margens? Que significa fazer etnografia nas margens das cidades e do Estado ?

This article aims to discuss the influence of margins in the process of urbanization of cities from
some case studies in French Guiana, in northern Brazil (Macapa and Belem do Para) and
Northeast (Recife-PE) placed in perspective with empirical work more recent developed in the
metropolis of Rio de Janeiro, and an average city in the state of Rio de Janeiro: Campos dos
Goytacazes. How to approach the cities through their margins, and as interfere different logics of
power will be the main thread of our proposal. The margins refer to other concepts, such as
interstices, borders. Reflecting on the margins as drafting a anthropological research object
question categories and categorizations: margins, marginalization, border, rural / urban, public
/ private in Brazilian cities, which also suggests that other question: what methodological
approach to study the margins? That means doing ethnography on the edges of cities and the
state?

ÍNDICE
Palavras-chave: margens, fronteiras, cidade, poder, etnografia
Keywords: margins, borders, city, power, ethnography

AUTOR
CATERINE REGINENSI
creginensi@gmail.com
Doutora em sociologia pela Universidade de Paris VIII, livre-docente em Antropologia Urbana na
Universidade de Toulouse, professora titular na Universidade Estadual do Norte Fluminense
Darcy Ribeiro.

Ponto Urbe, 20 | 2017


66

No emaranhado do Guamá: trajetos


etnográficos numa feira de Belém
In the tangle of Guamá: Ethnographic paths in a fair of Belém

Marina Ramos Neves de Castro e Fábio Fonseca de Castro

NOTA DO AUTOR
Uma versão deste artigo foi apresentada, por seus autores, na V Reunião Equatorial de
Antropologia e XIV Reunião de Antropólogos do Norte e Nordeste (Rea-Abanne),
realizadas em Maceió, em 2015.

1. Introdução
1 Acompanhamos o cotidiano da feira do Guamá, em Belém, durante oito meses. Esse
período se dividiu em dois momentos, entre os anos de 2011 e 2012: cinco meses em que
a feira funcionou de forma provisória, durante a reforma do seu prédio principal – uma
reforma longa e problemática, que se estendia já há dois anos – e três meses posteriores
à conclusão dessa obra. Acompanhamos o dia a dia dos feirantes e do seu universo,
composto pelos outros tipos humanos que dividiam o espaço: os fornecedores,
fregueses, frequentadores cotidianos e os funcionários dos demais comércios da
proximidade.
2 O artigo procura fazer uma descrição fenomenológica desse espaço. Nossa perspectiva,
dialogando com os procedimentos etnográficos, parte de uma exposição compreensiva
das espacialidades da feira. Desejamos valorizar a dimensão endógena da experiência
espacial dos sujeitos sociais observados, procurando um procedimento fenomenológico
por meio do qual possamos reduzir a feira àquilo que ela expressa, enquanto lugar.
3 A noção de etnocartografia está inicialmente vinculada à de cartografia cultural, ou à
projeção visual, em mapas, de espaços étnicos. Ela foi tratada dessa maneira entre 1920
e 1970 (Bromberger 1984), sendo, desde então, gradativamente compreendida como

Ponto Urbe, 20 | 2017


67

método auxiliar da pesquisa de campo antropológica. A partir da influência da


etnometodologia, esse método se desenvolveu em trabalhos sobre a projeção
intersubjetiva do uso do espaço (Grasseni 2012) e em trabalhos sobre o comportamento
espaço-ambiental de populações tradicionais (Almeida 2005). Na abordagem que
fazemos, procuramos compreender a etnocartografia por meio de uma perspectiva
fenomenológica, como um mapear da experiência própria a partir da experiência do
outro e como a disposição em fazer o percurso dos sujeitos observados, deixar-se guiar,
no espaço deles, pelos arranjos que fazem nesse espaço ou pelos indicativos espaciais
que surgem do contato que com eles estabelecemos.
4 Empreender uma etnocartografia, ou uma fenomenologia do lugar significa, em nossa
compreensão, um duplo movimento: em primeiramente, indagar como os indivíduos
encontram o mundo na sua complexidade espacial e, em seguida, interpretar como
esses encontros são usados para dar sentido ao mundo espacial, em seus contextos e
representações (Crouch 2014).
5 Há duas maneiras opostas de pensar a relação entre a pessoa e o espaço. A primeira
delas é uma percepção que podemos identificar como “representacional”, de matiz
cartesiana, presente, por exemplo, em Bourdieu (2007), Grosz (1992) e Young (1990),
para quem o espaço constitui uma representação do lugar feita pelo indivíduo e
mediada pela cultura, pelo poder, pela ideologia etc. O indivíduo representa, a si mesmo
e ao corpo social, uma certa ideia de espaço, como se o espaço, mesmo o espaço no qual
ele se insere, fosse uma entidade completamente separada dele, desse indivíduo. Sujeito
(o indivíduo) e objeto (o espaço), são, nesse caso, entidades distintas, aproximadas por
meio de uma operação mental, compreendida como representação.
6 A segunda maneira de pensar essa relação é uma percepção “não-representacional”. Ela
possui dois referenciais teóricos fundamentais: a perspectiva fenomenológica de
Merleau-Ponty (1994) e a perspectiva interacional de Goffman (1971), aplicadas, por
exemplo, por Pile et Thrift (1995), Thrift (1996; 1997) e Csordas (1990; 1993). Essa
perspectiva compreende o espaço a partir da interação sensorial, corpórea, que o
indivíduo desenvolve, intersubjetivamente, com esse espaço. Sujeito e objeto não estão,
aqui, separados. O lugar é tal como é percebido, vivido, usado, pelo indivíduo, sem a
ocorrência dessa operação de subjetivação da realidade que é a representação.
7 A percepção “não-representacional” da relação entre sujeito e espaço tem inúmeros
desdobramentos. Radley (1995), Crossley (1996) e Thrift (1996; 1997), seguindo essas
orientações, descrevem a percepção do espaço como uma experiência intersubjetiva e
comunicativa. Nielsen (1995) investiga a maneira como a sensação de partilhar um
espaço comum lhe confere sentido. Csordas (1993) observa a ação do sujeito, em relação
ao espaço, em sua dimensão de agentividade e de expressividade. Crouch (2014) observa
como Kristeva (1996) sugere que o indivíduo, localizando-se existencialmente no
espaço, tem sua imaginação estimulada e que isso pode produzir diferentes sentimentos
e intimidades espaciais.
8 Esse duplo referencial, fenomenológico e interacional, tem produzido diversos
trabalhos que se abrigam sob o rótulo de “geografia pós-moderna” (Crouch 2014), como
por exemplo o de Crang (1996), com sua discussão sobre como os indivíduos apreendem
o mundo por meio das decodificações significantes intersubjetivamente disponíveis. Ou
os trabalhos de Lash et Urry (1994), que compreendem a reflexividade como um
processo mental; de Mac-Naghten et Urry (1998) que dizem que nosso sentido não pode
ser interpretado como a presença de uma consciência num mundo; de Game (1991)

Ponto Urbe, 20 | 2017


68

sobre a reflexividade das identidades produzidas no encontro entre o corpo e o mundo;


de Gregson et Crewe (1997), de Jackson (1999) e de Miller (1998) sobre o processo de
mobilização de redes e cadeias intersubjetivas em torno de práticas de uso de
determinados espaços e, por fim, como trabalho de Wall (2000), na sua análise de como
as referências culturais influenciam na apreensão do espaço.
9 Para todos esses autores, o espaço não é prefigurado por representações dos indivíduos,
mas vivenciado por eles. Esses trabalhos tendem a utilizar os referenciais
fenomenológicos e interacionais de maneira complementar.
10 Comungamos com eles nossa perspectiva de pensar a feira enquanto um lugar. Em
nossa experiência de campo nos propusemos menos a observar a feira de que a “fazer a
feira”, usá-la, consumi-la, varejá-la. Ocupar nossa posição de fregueses, ir e vir, trocar.
E assim é que adentramos nela, evitando toda ideia de representação. Procurando
“estar” e, estando, compreender os indivíduos na sua interação com o lugar. Pensando
uma etnografia que se desenhasse, em primeiro lugar, como cartografia.

2. A feira – uma etnocartografia


11 O que chamamos, aqui, de feira, está para além da constituição material desse velho
mercado de Belém, o Guamá. Fisicamente, ele ocupa dois prédios e, tal como muitos
mercados e feiras de qualquer lugar do mundo, igualmente as ruas próximas. O
primeiro prédio, o mais antigo, datado dos anos 1930, é hoje o espaço prioritário de
venda da farinha e o segundo, estrutura funcional contemporânea, é usado para a
venda dos demais produtos da feiras: o peixe, as carnes, as verduras, as ervas e,
também, para os muitos serviços que, na contemporaneidade, se fazem presentes nas
feiras: a venda de embalagens de plástico ou isopor, cordas, fitas, fios, grampos,
plásticos, canetas, envelopes, guardanapos e papel, e, certamente, a alimentação feita
na hora, que nunca falta nos mercados. As ruas próximas são ocupadas por ambulantes:
“aquários” montados sobre bicicletas, fazem promoções de “um salgado e um suco”;
“tias” vendem bombons e café; camelôs vendem roupas, brinquedos fabricados na
China, em Taiwan e no Paraguai, relógios, panelas, pilhas e toda sorte de artefatos, a
maioria deles de alumínio ou de plástico – duas matérias-primas que parecem
fundamentais a este mundo. Nessas ruas o trânsito caminha lento. Um sinal de três
tempos, inoportuno mas referencial, um marcador físico da temporalidade do lugar,
atrasa a vida dos que não se dirigem ao mercado e, ao mesmo tempo, agiliza a vida do
mercado. O tempo conta, ágil. As pessoas atravessam as ruas num ritmo intenso,
partilhado aos pares, aos trios, aos grupos. Há duas escolas, uma delegacia e muitos
comércios nas redondezas, mas os dois prédios dominam a cena, na sua
perpendicularidade atemporal: como dizíamos, o “mercado da farinha” é mais antigo, e
o “mercado novo”, o da carne, é recente. E foi recentemente reformado. Eles estão
perpendicularmente opostos entre si, localizados no cruzamento entre as avenidas José
Bonifácio Barão de Igarapé-Miry.
12 O Guamá é um velho mercado de Belém. Não é o Ver-o-Peso, impávido dos seus séculos
de existência e da sua centralidade na vida da cidade. É um mercado de periferia, mas
antigo. O burgo do Guamá, bairro popular de Belém, se consolidou em meados do século
XIX e ao final desse foi atendido por uma linha de bonde. Destinada a se encerrar em
Santa Isabel, espaço de um cemitério dezenoviano já então populoso, a linha se
estendeu até um pouco mais à frente e em seu ponto final se formou feira que lá hoje

Ponto Urbe, 20 | 2017


69

há. Atualmente, o Guamá, com seus 94.610 habitantes (IBGE 2013), é o bairro mais
populoso dos 48 que integram a cidade. Seu nome é uma referência ao rio que o
margeia e, com uma história popular e cultural rica – o bairro sedia variados grupos de
“pássaros”, os teatros populares de Belém – permanece sendo um dos espaços
belemenses com maiores índices de desigualdade social.
13 A feira do Guamá se localiza na junção entre a avenida José Bonifácio e a avenida Barão
de Igarapé-Miry. Esta, ao cruzar com a primeira, se estreita e toma outro nome:
travessa Mucajá – precariamente urbanizada. O maior prédio do cruzamento é o
mercado novo, também chamado de mercado de carne e na sua diagonal está o
mercado de farinha. Em frente ao primeiro, pela av. José Bonifácio, há várias lojas de
material de construção; na sua lateral, pela passagem Mucajá, sucede toda sorte de
pequenas vendas: farinha, tucupi, frango abatido na hora e “material de mercearia” –
como se conhece os diversos produtos industrializados utilizados para embalar aquilo
que é vendido na feira. Atrás do prédio da farinha, há pequenos boxes gradeados, que
vendem produtos importados tipo “Paraguai”. A calçada da av. José Bonifácio é também
tomada por vários camelôs e vendedores ambulantes, a maioria deles vendedores de
roupas usadas. Neste sentido, a feira se estende a mais ou menos cerca de 300 a 400
metros do cruzamento entre as três ruas, nas quatro direções.
14 No primeiro momento da pesquisa, e nos dois anos que a antecederam, o mercado
sofria, como dissemos, uma intervenção do poder público, uma reforma e
“revitalização” – termo usado por esse poder público e ironizado pelos feirantes,
incomodados como a demora da obra. Durante todo esse período os feirantes foram, de
maneira extremamente precária, dispostos na calçada da av. José Bonifácio e num longo
trecho da passagem Mucajá, para isso fechada ao trânsito.
15 Na instalação provisória e precária do mercado, os boxes foram montados com madeira
e pintados com cores variadas – vermelho, verde, azul e amarelo preponderavam sobre
as demais cores, secundárias e terciárias. Cada feirante apropriou-se de sua barraca/
boxe de maneira particular, arrumando-a e decorando-a de acordo com sua necessidade
e gosto.
16 O corredor dos açougueiros, no primeiro momento da pesquisa, estava situado na
calçada da av. José Bonifácio, prolongando-se quase até a esquina da passagem Mucajá.
Era o espaço de entrada na feira, corredor estreito e pouco iluminado, que mal chegava
a um metro e meio de largura. Nele, o cheiro de carne preponderava e havia muitas
moscas, pequenos insetos e um vai e vem incessante de pessoas e de animais
domésticos sem dono, principalmente cachorros. Geralmente, as pessoas tinham de se
colocar de lado para dar passagem às outras e, por vezes, o fluxo humano simplesmente
bloqueava, interrompido por atos simples de reabastecimento de mercadoria ou pelo
processo de compra de algum freguês. As manhãs de sábado eram particularmente
agitadas, considerando ser esse o dia em que a maioria das pessoas costuma fazer suas
compras na feira. Nesse espaço concentrado e com pouca circulação de ar, a balbúrdia
imperava: as vozes altas e estridentes dos feirantes a oferecer suas mercadorias, o
diálogo constante entre os feirantes e deles com os fregueses, os risos, os gracejos, as
galhofas e, por fim, os múltiplos sons de rádios, músicas gravadas, do fluxo de
automóveis e ônibus naquela esquina engarrafada pelo sinal de três tempos e do apito
dos guardas de trânsito tentando disciplinar algo daquele fluxo contínuo e caótico.
17 Seguindo esse corredor, cerca de 3 metros antes de alcançarmos a luminosidade ao
fundo, havia uma entrada à direita, perpendicular à av. José Bonifácio, já na Passagem

Ponto Urbe, 20 | 2017


70

Mucajá, ocupando parte da calçada do mercado em reforma. Nesse outro corredor,


encontrava-se uma região, por assim dizer, feminina, da feira: um espaço no qual as
barracas tendiam a ser comandadas por mulheres: o espaço das verduras, legumes,
frutas, ervas e, também, das barracas destinadas à venda de produtos alimentícios já
prontos para o consumo. Era um longo e sinuoso corredor menor ainda, em largura, ao
corredor da carne. No meio dele, encontrava-se um curioso afunilamento do espaço, o
qual aproximava ainda mais as barracas umas das outras. Nesse espaço, entre algumas
delas, mal se alcançava um metro de distância, tornando o corredor, já mal iluminado,
insalubre e sujo, quase intransponível, devido ao número de pessoas que ali circulavam.
Esse corredor iniciava com as verduras e legumes – tomates, cebolas, limões, couve,
feijão verde, batata, beterraba, pepino, repolho, cenoura, pimentão, jerimum, chuchu,
cheiro verde, salsa, alho, pimentinha, tudo isso vendido por unidade, por peso ou em
sacos de plástico, com legumes e verduras misturados em pequenas porções para a
preparação do alimento e já contendo o colorau, a pimenta preta e o cominho,
triturados na hora e ensacados.
18 Na sequência, vinha o corredor das frutas – toda sorte de frutas, das produzidas no
estado, como banana, mamão, acerola, melancia, maracujá, tangerina e kiwi – às
importadas – como maçã, uva e pera. Também o espaço da venda de mandioca e o
espaço destinado à venda de ervas para a feitura de chás e infusões. Ao final desse
trajeto, várias barracas destinavam-se à venda de alimentos preparados: espetinhos de
churrasco, frango assado, sopas, caldos, peixe frito e o PF, o “prato-feito”.
19 Como referimos, era o espaço feminino da feira, pois estimamos que cerca de 80% de
feirantes, ao longo dessa área, eram mulheres. Esse espaço também incluía algumas
barracas isoladas destinadas ao comércio de outras praticidades. Numa delas, vendiam-
se sacos plásticos e utensílios, como pratos e copos descartáveis. Em outra, podíamos
encontrar frango resfriado e congelado. Uma terceira fazia o comércio de farinha
“ensacada”, ou seja, em pequenas porções, para o consumo imediato (20g, 50g) ou em
porções maiores (200g, 300g e 500g). Isso chama atenção, porque a “área da farinha”,
onde havia maior variedade do produto e onde ele podia ser encontrado em todas as
quantidades, mas não dessa maneira, ficava no outro lado da feira, atravessando a rua,
na sua diagonal e, além disso, constituía um espaço de venda tradicionalmente
masculino, enquanto, neste, o comércio do produto era feito por mulheres.
20 Essas “praticidades” demonstram claramente o espírito sempre presenteísta, sempre
vivo, de uma feira: o processo de criação, elaboração e produção de objetos e bens para
atender às necessidades dos clientes. E se faz importante destacar que essas
“praticidades” estavam localizadas no corredor que nós aqui identificamos como
“feminino” e que, em geral, eram mantidas, cuidadas, por mulheres.
21 Também era possível perceber como, nesse setor, não se encontrava a mesma prática
de galhofa encontrada, por exemplo entre os açougueiros e peixeiros – setores
“masculinos” da feira. Isso não quer dizer, evidentemente, menor grau, variedade ou
intensidade de comunicação, mas sim, simplesmente, que lá não havia a mesma prática
social.
22 Ao final do corredor das mulheres alcançava-se o setor destinado à venda de pescados,
uma área composta por boxes mais amplos se comparados aos anteriores, localizados
no mesmo corredor e acima descritos. Alguns desses espaços se localizavam no
corredor coberto improvisado e, outros, já na área posterior, aberta, na passagem
Mucajá. Estes últimos eram boxes cobertos e igualmente improvisados, mas estavam

Ponto Urbe, 20 | 2017


71

colocados fora da estrutura dos corredores cobertos. Os peixeiros eram alegres e


brincalhões, tal como os açougueiros, e lá também se encontrava esse espírito de
galhofa. Tivemos impressão, na verdade, de que chegavam a ser mais barulhentos que
aqueles, numa troca mais intensa. Era um setor composto por homens; no entanto, lá
encontramos uma única mulher, muito simpática e atenciosa, conhecida por todos pelo
apelido carinhoso – e, curiosamente, masculino – de Pingo. Entre os açougueiros havia
também uma mulher, a Meire, mas que, ao contrário da Pingo, ocupava um papel
discreto e secundário, auxiliando o feirante, seu irmão, proprietário do boxe. Pingo, a
peixeira, desempenhava um papel de primeiro plano: muito querida por todos e muito
participante da galhofa geral, ela impunha respeito e se destacava dentre todos. Aliás, a
sua barraca de venda de peixes se situava bem na metade da linha de barracas do setor,
dividindo aquelas que se situavam no corredor e as que estavam na passagem Mucajá.
23 Na área aberta nos deparávamos com uma espécie de campo livre para todas as vendas
e produtos. Ali, uma miscelânea de mercadorias e de vendedores se apresentava; de
tudo havia um pouco: farinha, roupas, brinquedos, verduras, frutas, tripas, tucupi,
frangos vivos e abatidos na hora, material de higiene, bares, enfim, uma diversidade
aparentemente sem fim. Era uma espécie de praça da feira, mas uma praça periférica,
sem uma função estrutural mas que servia como uma referência da não especialização:
um local ocupado por ambulantes e por vendeiros dessa variedade geral de produtos.
Também aí estavam as vendas que funcionavam nas casas de família dos comerciantes,
em especial as que ficavam atrás dessas barracas de peixe, assim como em frente a essas
mesmas barracas.
24 Esse espaço formava um corredor, tal como em toda a estrutura improvisada criada ali,
mas era um corredor mais amplo. E descoberto, como dissemos, pois se situava bem no
centro da passagem Mucajá. De fato, a rua fora totalmente ocupada pela feira. Carros e
carroças já não podiam atravessar ali. Mesmo o centro da rua era ocupado por
vendedores sem barracas, que colocavam suas mercadorias em cima de mesas
improvisadas com restos de madeira ou papelão, ou mesmo no chão, sobre panos,
papelões ou jornais. Interessante observar que os vendedores desse espaço da feira
pareciam mais introspectivos e pouco simpáticos à nossa aproximação; o clima já era
diferente dos dois corredores que relatamos acima. Era o espaço da não
institucionalização. O espaço da margem, da fronteira.
25 Em relação à nossa presença, nesse espaço não institucionalizado, havia uma tensão que
não encontramos em outro lugar da feira, como se representássemos uma
institucionalidade que eles não compreendiam bem, mas que, em todo caso, sintetizava-
se como uma autoridade negativa, em vista do seu trabalho não institucionalizado.
Procuramos uma aproximação e pudemos mediá-la com o passar do tempo, mas para
vários desses indivíduos nossa presença, enquanto pesquisadores, sempre foi suspeita.
26 A partir daí, tomamos outro corredor, em nosso percurso pelo território da feira,
retornando ao seu centro, em direção à av. José Bonifácio. Era um corredor paralelo ao
dos fruteiros e peixeiros, àquele que tomamos para chegar àquela praça periférica.
Apesar de descoberto, não parecia menos insalubre do que o anterior. Uma pequena
vala se abria, nele, no seu meio-fio, acumulando alimentos já deteriorados. Estreito,
dois transeuntes precisavam se comprimir para poderem passar pelo mesmo caminho.
Esse espaço era conhecido por todos como a Mercearia.
27 Lá ficam, de um lado, as barracas de chouriço, toucinho, bacon e demais carnes
defumadas; assim como também produtos de limpeza – sabão, detergentes e

Ponto Urbe, 20 | 2017


72

desinfetantes – e, do outro lado, produtos de alimentação industrializados, como feijão,


arroz, sopas em pacotes, leite em pó, temperos processados, óleos de toda sorte e,
ainda, alguns produtos manufaturados, como lâmina de barbear, esmaltes, lixas de
unha e cosméticos.
28 Ao lado e em frente ao espaço destinado às mercearias, também se encontravam
pequenas lojas, pequenos comércios, como bares e alguns matadouros de frango. Todos
esses espaços eram realmente pequenos, não permitindo a presença simultânea de mais
de dois ou três fregueses. Porém, é interessante observar que, apesar de seu tamanho
diminuto, eram espaços construídos em alvenaria e, alguns deles eram revestidos, no
piso e até metade das paredes, ao menos, com lajotas, sempre de cor branca. Isso
parecia indicar certa preocupação com a higiene, ou, talvez, apenas um discurso sobre
higiene – afinal, a vala comum do meio-fio ainda seguia em frente a esses espaços.
Interessante destacar que esse espaço não era coberto. A aparência de o ser se deve às
janelas das barracas, que se abriam para cima, com o que ajudavam a regular a entrada
de luz. Outro fato é que algumas lojas possuíam uma puxada de telha, protegendo assim
seus produtos de um pouco de sol ou de chuva.
29 Ao final do setor da Mercearia, chegávamos à esquina da passagem Mucajá com a av.
José Bonifácio. Ali localizava-se o ponto de mototáxis e muitos outros vendedores
ambulantes, com a importante presença dos “aquários”, ou seja, as caixas de vidro
carregadas em bicicleta ou carrinhos de madeira, nas quais se expunham salgados os
mais diversos (pastéis folheados, coxinhas de galinha, rissoles etc.), vendido em
“combos”: um salgado com um suco por R$ 1,00. Uma tentação grande para toda a feira.
30 Em seguida, pelo lado direito da av. José Bonifácio, já às portas de um posto de
Segurança Pública, havia tabuleiros para a venda de roupas usadas, de jornais e
churrasquinhos. Caixas de som em volume elevado anunciando a venda de mídias
piratas e bailes de “aparelhagem”.
31 Tanto a Mercearia como esse trecho da calçada da av. José Bonifácio eram, por
excelência, o espaço dos “ficantes” da feira. No linguajar local os “ficantes” eram os
indivíduos que vinham à feira, aparentemente, para interagir, ver amigos, beber,
conversar, e simplesmente “ficar” no espaço, sem reproduzirem a forma social da
compra e da venda. Ali era um espaço de encontro. Por isso, vários espaços vendiam
bebidas alcoólicas, principalmente cerveja e cachaça, além de tira-gostos. Na esquina a
Mercearia transformava-se em barzinho e alguma mesa com cadeiras, principalmente
aos sábados, ocupavam a exígua calçada. Crianças acompanhavam os pais, que bebiam,
comiam e conversavam. Era possível também observar, nesse espaço, mais que nos
outros, a presença de crianças, brincando e interagindo.
32 Atravessando a rua, em frente ao prédio da Segurança Pública, ainda na av. José
Bonifácio, localizada na calçada, na parte externa do prédio da farinha, localizavam-se
os vendedores de camarão e de caranguejo. Como a grande maioria dos feirantes, eles
também estavam ocupando um espaço provisório, nesse primeiro momento,
aguardando a entrega do prédio em “revitalização”.
33 Já na av. Barão de Igarapé-Miry, encontramos o segundo prédio do Mercado do Guamá.
Efetivamente, é o prédio que deu origem à feira, o ponto de referência, que data,
segundo informação dos próprios feirantes, da década de 1930. Era o prédio mais
antigo, e a maioria dos entrevistados sempre fazia referência a ele, pois haviam
começado a trabalhar na feira quando somente este prédio definia todo o mercado do

Ponto Urbe, 20 | 2017


73

Guamá. Não havia saudosismo em suas falas, apenas a referência limitada à época em
que começaram a trabalhar no lugar, a maioria nos anos de 1970.
34 Na calçada em torno do prédio da farinha também se encontrava a maioria dos
marreteiros, os comerciantes informais que vendem toda a sorte de produtos, tais como
roupas novas, eletroeletrônicos, peças para fogão e utensílios domésticos, cosméticos,
pilhas e um sem fim de produtos. É importante considerar que parte significativa desses
comerciantes constituem, simplesmente, extensões das lojas localizadas na av. Barão de
Igarapé-Miry, a ocupar suas calçadas dissimulando seus produtos como se fossem
oferecidos pela economia informal.
35 No entanto, é forçoso observar que logo no início da av. Barão de Igarapé-Miry, em
frente ao prédio da farinha, os vendedores são autônomos e não vinculados às lojas que
se pronunciam em seguida do referido prédio.
36 Além dos feirantes propriamente ditos e de toda sorte de comerciantes informais, há
também, no território, lojas oferecendo os mais variados produtos e serviços, do
pequeno comércio de manufaturados aos estabelecimentos maiores, dentre os quais um
supermercado, três lojas de material de construção, duas farmácias e nove
“confecções”, ou seja, lojas de tecidos e roupas. A feira vai se prolongando ao longo da
av. Barão de Igarapé-Miry e, aos poucos, as lojas vão se tornando mais espaçadas e
raras. No entanto, observamos que, no final da referida avenida, vamos encontrar outra
feira. Ou seja, essa avenida é marcada, em suas extremidades, por duas feiras.

3. Conclusão
37 O Guamá é estrondoso. O cruzamento lento de ônibus e veículos se acompanha das
carroças e dos cavalos, mas sobretudo dos “carremãos”, carrocetes puxados a braço,
levando toda sorte de produtos: ferro velho, açaí, cimento e madeira, quase sempre,
mas igualmente terra, barro e tijolos. Há também o ruído dos cães e dos animais à
venda, quase sempre presos em paneiros. Muitas aves: galinhas e patos. Alguns
periquitos e pássaros de canto. A feira tem a forma do seu ruído: a forma da balbúrdia
indefinível na qual se destaca, de vez em quando, um grito estridente anunciando um
produto ou serviço, ou, ainda, uma gargalhada, uma provocação ou a expressão de um
negócio sendo fechado. Por vezes, os limites da feira nos pareceram ser os limites de
onde se escutava a feira.
38 Pensar sobre isso nos fez pensar em como a feira, enquanto lugar, era o lugar de nossa
sensação de estar-presente. Não um lugar fora de nós mesmos, mas um lugar que se
delimitava por nossa percepção. Essa ideia remete a Hall, para quem
“O “lugar” é específico, concreto, conhecido, familiar, delimitado: o ponto de
práticas sociais específicas que nos moldaram e nos formaram e com as quais nossas
identidades estão estreitamente ligadas [...] “(Hall 2003: 72).
39 Ou seja, pode-se compreender o lugar – um dado lugar – como uma experiência
contígua à experiência de ser. Não um jogo eventual: de um ser que percebe o espaço,
mas uma experiência intersubjetiva, com uma dimensão temporal e histórica, por meio
da qual uma feira, qualquer feira, evoca a forma-feira ancestral, sabida por todos os
povos na sua prática de trocar, dar e receber e, também, formas-feira específicas,
existentes em experiências comuns e em epocalidades. Giddens, por exemplo, discute a
experiência comum do lugar moderno:

Ponto Urbe, 20 | 2017


74

40 Nas sociedades pré-modernas, o espaço e o lugar eram amplamente coincidentes, uma


vez que as dimensões espaciais da vida social eram, para a maioria da população,
dominadas pela pressa – por uma atividade localizada... a modernidade separa, cada vez
mais, espaço do lugar, ao reforçar relações entre outros que estão “ausentes”, distantes
(em termos de local), de qualquer interação face a face. Nas condições da
modernidade..., os locais estão inteiramente penetrados e moldados por influências
sociais bastantes distantes deles. O que estrutura o local não é simplesmente aquilo que
está presente na cena; a “forma visível” do local oculta as relações distanciadas que
determinam sua natureza. (Giddens, 1990, p. 18 in Hall, 2003, p. 72)
41 Crouch et Matless (1996) descrevem a experiência de estar em um dado lugar como uma
negociação entre contextos e espacialidades. Para isso, esses autores elaboram uma
distinção entre “contextos” e “espacialidades” percebendo aqueles como “poderosos”,
mas não determinantes e, estas, como “geminadas” a um sentido, mas não pré-
constituídas. Ou seja: ocupar um espaço é mais do que, fisicamente, estar em um lugar
ou representar esse lugar. Esse ocupar de um espaço surge da dialética entre contexto e
espacialidade, como ato de mediação entre experiências sensíveis, memória e
afetividade.
42 Bachelard (1994) e De Certeau (1994) também seguem por esse caminho, ao
considerarem que o espaço – compreendido como o espaço usado, percebido, por um
indivíduo, pelo primeiro, e como o espaço da vida cotidiana, pelo segundo – nunca
constitui uma realidade ontologicamente dada, uma realidade representada e
presentificada, mas sim algo desenvolvido por meio de práticas sociais – discursivas,
experienciadas, intersubjetivas.
43 Se fôssemos desenhar a experiência geográfica da nossa etnografia da feira, poderíamos
compor uma pátina: uma superfície indefinida, manchada e superposta, que transmite a
sensação de uso – e, por extensão, de antigo, de passado, de gasto. Uma superfície
irregular, descontínua, que deixa entrever camadas de experiência, camadas de ter-
sido. Os lugares podem ser assim, cheios de termos-estado, repletos de quase-assins.
44 Nossas espacialidades se comutam com as espacialidades dos inter-sujeitos com quem
dividimos o espaço. O estar, o ocupar-o-espaço, decorre de permanentes
reconfigurações de nossas identidades em relação ao mundo – reconfigurações
instáveis, repletas de negociação e contestação, mas reconfigurações de um sentido que
não se faz sem movimento, sem, justamente, esse reconfigurar.
45 A feira da qual falamos é aquela, a do Guamá, e qualquer outra. Por trás da nossa
cartografia se esconde o rumor do tipo ideal feira, experiência intersubjetiva à qual,
talvez, possamos chamar cultura. Fazer uma etnocartografia é mais do que descrever, é
contar, contar o lugar. E começamos a contar o Guamá naquele último dia de pesquisa,
quando, caminhando, fomos nos distanciando da feira e, aos poucos, deixando de
escutar a sua balbúrdia indefinível. Sim, os limites da feira nos pareciam ser os limites
de onde se escutava a feira. E lá onde a balbúrdia se tornava um mero ruído, lá onde a
etnocartografia se fazia fronteira, ali começamos a contar o Guamá.

Ponto Urbe, 20 | 2017


75

BIBLIOGRAFIA
ALMEIDA, Regina. 2005. “Ethnocartography Applied to Environmental Issues”, in Anais da XXII
International Cartography Conference ICC. La Coruña, Espanha. pp.1-8.

BACHELARD, Gaston. 1993. A poética do espaço. São Paulo: Martins Fontes.

BAKHTIN, Mikhail. 2008. A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de


François Rabelais. Tradução de Yara Frateschi Vieira. São Paulo/Brasília: Hucitec/Universidade
de Brasília.

BOURDIEU, Pierre. 2007. A Distinção: crítica social do julgamento, Porto Alegre: Zouk.

BROMBERGER, Christian. 1984. “Des cartes ethnologiques: pourquoi faire?”, in Terrain, Revue
d’Ethnologie de l’Europe, nº 3, dossier Ethnologie urbaine. pp. 84-87.

CASTRO, Marina R.N. 2013. A arte na sua cotidianidade: Uma percepção de arte na feira do
Guamá. Dissertação de Mestrado em Arte, UFPA.

CERTEAU, Michel de. 1994. A Invenção do cotidiano. Artes de fazer. Petrópolis, Vozes.

CRANG, Philip. 1996. “Environment and planning” in Society and space, n. 14. pp. 631-633.

CROSSLEY, Nick. 1996. Intersubjectivity. The Fabric of Social Becoming. London: Sage.

CROUCH, David. 2014. “Spatialities and the feeling of doing” in Social & Cultural Geography, 2:1. pp.
61-75.

CROUCH, David e MATLESS, David. 1996. Reéguring geography: the parish maps of common
ground, Transactions of the Institute of British Geographers 2. pp. 236–255.

CSORDAS, Thomas J. 1990. “Embodiment as a paradigm for anthropology” in Ethos 18. pp. 5–47.

__________. 1993. “Introduction: the body as representation and being-in-the-world” in Csordas,


T.J. (ed.) Embodiment and Experience: The Existential Ground for Culture and the Self.
Cambridge: Studies in Medical Anthropology. pp. 1–26.

GAME, Ann. 1991. Undoing Sociology. Buckingham: Open University Press.

GOFFMAN, Erving. 1971. Interactive Ritual: Essays on Face-to-face Behaviour. London: Allen Lane.

GRASSENI, Cristina. 2012. “Community mapping as auto-ethno-cartography”, in PINK, Sara,


Advances in Visual Methodology. Londres: Sage. pp. 97-112.

GREGSON, Nicky. and CREWE, Louise. “The bargain, the knowledge, and the spectacle: making
sense of consumption in the space of the car boot sale” in Environment and Planning D: Society and
Space 15, p. 87–112, 1997.

GROSZ, Elisabeth. 1992. “Bodies-cities” in Colomina, B. (ed.) Sexuality and Space. Princeton, NJ:
Architectural Press, p. 243.

HALL, Stuart. 2003. A identidade cultural na pós-modernidade. DP&A Editora, Rio de Janeiro.

INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA (IBGE). 2013. Censo Demográfico 2013


Sistema IBGE, disponível em http://www.sidra.ibge.gov.br/, acessado em 15 março.

JACKSON, Peter. 1999. Commodity culture: the traféc in things, Transactions of the Institute of
British Geographers New Series 24, p. 95–108.

KRISTEVA, Julia. 1996. The Portable Kristeva. New York: Columbia University Press.

Ponto Urbe, 20 | 2017


76

LASH, Scott. e URRY, John. 1994. Economies of Signs and Space. London: Sage.

LE GOFF, Jacques. 2006. Em busca da Idade Média. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira.

_________. 1992. O Apogeu da Cidade Medieval. Tradução Antônio de Pádua Danesi. São Paulo:
Martins Fontes. http://groups.google.com.br/group/digitalsource, em PDF.

MACNAGHTEN, Phil. e URRY, John. 1998. Contested Natures. London: Sage.

MERLEAU-PONTY, Maurice. 1994. Fenomenologia da percepção. São Paulo: Martins Fontes.

MILLER, Daniel. 1998. Material Cultures. London: UCL Press.

NIELSEN, Niels Kayser. 1995. The stadium in the city, in BALE, J. (ed.) The Stadium and the City.
Keele: Keele University Press. pp. 21–44.

PAPILLAUD, Christian. 2002. Le don de relation. Georg Simmel – Marcel Mauss. Paris,
L’Harmattan.

PILE, Steve ; THRIFT, Nigel. 1995. Mapping the Subject. London: Routledge.


RADLEY, Alan. 1995. The elusory body and social constructionist theory, Body and Society n.12.
pp. 3–23.

SIMMEL, Georg. 1996. Sociabilidade: um exemplo de sociologia pura ou formal in Georg Simmel:
sociologia. São Paulo, Ática, org. [da coletânea] Evaristo de Morais Filho, 1983.

THRIFT, Nigel. Spatial Formations. London: Sage.

_________ . 1997. The still point: resistance, expressive embodiment and dance, in Keith, M. and
Pile, K. (ed.) Geographies of Resistance. London: Routledge, p. 124–154.

WALL, Michel. 2000. The popular and geography: music and racialised identities in Aoterora/New
Zealand, in Cook, I., Crouch, D., Naylor, S. and Ryan, J. (eds) Cultural Turns/Geographical Turns.
Londres: Longman, p. 75– 87.

YOUNG, Iris M. 1990. “Throwing Like a Girl and Other Essays” in Feminist Philosophy and Social
Theory. Indiana: Indiana University Press.

RESUMOS
O artigo procura fazer uma descrição fenomenológica da feira do Guamá, situada no bairro de
mesmo nome, em Belém-PA. Dialogando com procedimentos etnocartográficos, parte-se de uma
exposição compreensiva das espacialidades da feira. Deseja-se valorizar a dimensão endógena da
experiência espacial dos sujeitos sociais observados. Empreender uma fenomenologia do lugar
significa, em nossa compreensão, um duplo movimento: primeiramente, indagar como os
indivíduos encontram o mundo na sua complexidade espacial e, em seguida, interpretar como
esses encontros são usados para dar sentido ao mundo espacial. Percebe-se o espaço como uma
dimensão vivenciada pelos indivíduos, e não como algo prefigurado por meio de representações.
Dessa maneira, a feira que descrevemos corresponde a um espaço na sua dimensão
intersubjetiva: não como algo pré-ontologicamente dado, mas sim como uma construção em
curso de sentidos.

This seeks a phenomenological description of Guamá’s market, located in a neighborhood of


Belém, Brazil. Dialoguing with ethnocartography procedures, we start with a comprehensive
exposition of the spatiality of the market. We hope to enhance endogenous dimension of local
spatial experience. Undertaking a phenomenology of the place means, in our understanding, a

Ponto Urbe, 20 | 2017


77

double movement: First, to ask how the social subjects find the world in its spatial complexity
and, then, to interpret how these encouters are used to make sense to spatial world. One sees the
space as a dimension experienced by individuals, and not as something foreshadowed by
representations. Thus, the market we describe corresponds a space in its intersubjective
dimension: not as something pre-ontologically given, but rather as an ongoing construction of
meaning.

ÍNDICE
Keywords: market, ethnocartography, phenomenology
Palavras-chave: feira, etnocartografia, fenomenologia

AUTORES
MARINA RAMOS NEVES DE CASTRO
Email: mrndecastro@gmail.com
Doutoranda em Antropologia PPGA-UFPA
Mestre em Artes PPGArtes-UFPA
Mestre em Estudos das Sociedades Latino-Americanas pelo Instituto de Altos Estudos sobre a
América Latina (Iheal) - Université de La Sorbonne-Nouvelle - Paris 3

FÁBIO FONSECA DE CASTRO


Email: fabio.fonsecadecastro@gmail.com
Pós-doutor em Etnometodologia pela Université de Montreal.
Doutor em Sociologia pela Université René Descarte – Paris 3
Mestre em Antropologia pelo Instituto de Altos Estudos sobre a América Latina (Iheal) -
Université de La Sorbonne-Nouvelle – Paris 3
Mestre em Comunicação pela Universidade de Brasília (UnB)

Ponto Urbe, 20 | 2017


78

Estrategias sociales de adaptación


frente a las inundaciones en la
metrópolis de México
Estratégias de adaptação social contra inundações na metrópole do México
Social adaptation strategies against flooding in the metropolis of Mexico

Mtro. Oscar Adán Castillo Oropeza y Dr. Felipe de Alba Murrieta

Introducción
1 Los desastres en el mundo contemporáneo representan un desafío epistemológico dado
que implican problemas complejos y temporalidades múltiples, ahora en cuestión en la
práctica de los científicos sociales.
2 El desastre es producto de la manipulación del hombre sobre la naturaleza y forma
progresivamente las condiciones de vulnerabilidad social y el riesgo. Como evento que
se materializa en un determinado tiempo y espacio, el desastre supone la emergencia
de actores sociopolíticos con percepciones, discursos y acciones propias. Aquí
entendemos al desastre como un proceso socioambiental y no exclusivamente natural
(Swyngedouw 2006: 11).
3 En los estudios sociales sobre los desastres existen de manera general dos perspectivas
de análisis. La primera, una perspectiva “objetiva” o “macro”, que discute el problema
en términos de la construcción social del riesgo, o sea, asociándolo a la vulnerabilidad
como condición y exposición (pobreza, marginación, ubicación) de una población
específica (los afectados). Desde esta perspectiva, los autores que manejan esta
perspectiva hacen una crítica al desarrollo, al que vinculan con los efectos ocasionados
por acciones humanas sobre el ambiente. Por ejemplo, en las metrópolis, los impactos
negativos que ocasiona la industrialización y los procesos de poblamiento (véase De
Alba y Castillo 2014; García 2005).
4 La segunda perspectiva es “subjetiva” o “micro”. En ella se discute el desastre en
términos de la percepción social del riesgo, es decir, cómo los actores sociales definen,

Ponto Urbe, 20 | 2017


79

perciben y viven el riesgo ante algún tipo de emergencia, como las inundaciones (véase
De Alba y Castillo 2014; García 2005).
5 Sin embargo, aquí parece necesario conocer las causas de los desastres y explicarlas con
datos estadísticos específicos. Hoy resulta relevante analizar las acciones individuales o
colectivas de los afectados, con la finalidad de tener un acercamiento detallado de este
tipo de fenómenos socioambientales y sus implicaciones en las emociones, o en su
carácter político. Luego volveremos sobre este aspecto.
6 El análisis del comportamiento social frente a los desastres durante largos períodos, no
sólo permite distinguir sus adaptaciones al ambiente natural, sino que también puede
representar adaptaciones ideológicas observadas a través de la innovación, con la
construcción de visiones del mundo (Oliver-Smith y Hoffman 2002: 10), o a partir de
prácticas específicas.
7 Una gran variedad de autores discute la utilidad del concepto “estrategias sociales de
prevención y adaptación”, a partir del análisis de casos concretos, en diferentes partes
del mundo (Allen 2006; Angulo 2006; Audefroy 2012, Audefroy y Cabrera 2012; Briones
2012; Cuevas 2010; 2012; García 2006; 2009; 2012; Gentle y Maraseni 2012; Ishaya y Abaje
2008; Mertz et. al. 2009; Norton y Chantry 2012; Nyong et. al. 2007; Osbahr, et. al. 2010;
Pelling 2002; Quesada 2012; Rashid 2000; Warner, 2012).
8 Esos autores subrayan la importancia de problematizar el conocimiento ancestral y
socioculturalmente construido, que es comúnmente asociado a la prevención de riesgos
ante amenazas naturales. Desde varias escalas, dichos textos contribuyen a la
deconstrucción de riesgos y a la construcción de culturas de prevención, así como a la
tipificación de esas estrategias (García 2012: 10-11).
9 ¿Cómo se han definido dichas estrategias? Por ejemplo, Jimena Cuevas (2010: 22-26)
menciona que las estrategias se dividen en: a) estrategias y prácticas institucionales y;
b) prácticas espaciales individuales y colectivas. Las primeras son disposiciones
institucionales (programas, decretos, etc.) generadas históricamente y diseñadas para
resolver problemas específicos y repetitivos, por eso las prácticas institucionales se
derivan directamente de las estrategias. Las segundas se caracterizan por responder de
manera individual o colectiva a las situaciones vividas, son formas de actuar que
responden a las necesidades que el mismo espacio social plantea en situaciones de
calamidad.
10 En cambio, para Virginia García (García 2006: 39-40) las estrategias adaptativas son
construcciones culturales que un grupo, una comunidad o una sociedad adopta y
adapta para enfrentarse a las amenazas y, en términos generales, para dar la cara a los
desastres. Dependen del manejo y conocimiento culturales del ambiente y de los
recursos disponibles. Son hábitos, costumbres, comportamientos, tradiciones y
prácticas que con frecuencia son desarrolladas a escala local o regional. Estas
estrategias adaptativas son:
Parte de la adaptación que las sociedades han llevado a cabo con el medio que les
rodea y del tipo de relaciones que han desarrollado tras haber vivido en condiciones
de riesgo a lo largo de generaciones. Como cualquier adaptación ecológica–cultural,
las estrategias adaptativas en condiciones de riesgo constituyen procesos creativos
(García 2006: 40).
11 Además, en este tipo de estrategias se reconstruyen distintas memorias colectivas que
son una herramienta aplicada para combatir situaciones de calamidad (Altez 2016: 23).
Para el análisis del desastre urbano por inundación, aquí se aportan otros elementos

Ponto Urbe, 20 | 2017


80

conceptuales y empíricos. De un modo diferente, se consideran a las estrategias sociales


de adaptación como prácticas socioambientales que transforman el territorio y que son
socioculturalmente construidas por actores no estatales (Davis 2012: 15). Aquí los
denominamos los “borrados” del desastre (población afectada), 1 los cuales le hacen frente,
con posibilidades limitadas.
12 Estas acciones pueden ser familiares, y manifestarse en la colonia, la manzana o incluso
en la construcción material de las viviendas; pueden ser espontáneas o planeadas.
Todas ellas derivan de la experiencia, de las múltiples formas de vivir en el desastre
(Cuevas 2010; García 2006).
13 Es decir, son producto de un proceso de agenciamiento, de sentido y reconocimiento
simbólico y práctico, en el cual resaltan sobre el territorio el uso de los recursos
materiales (objetos, dinero, etc.) y los recursos no materiales (vínculos familiares, entre
vecinos y actores privados) que disponen los afectados.
14 Los afectados son sujetos políticos emergentes, con acciones propias que pese a
limitantes estructurales, no se muestran como entes pasivos “lo cual no quiere decir
que todas sus prácticas y saberes tradicionales sean siempre convenientes, pero pone
en el centro del debate la adaptación proactiva de las comunidades frente a la lentitud
de las políticas públicas limitadas hasta el momento en protocolos internacionales”
(Briones 2012: 112) nacionales, estatales o locales.
15 Así, la noción de estrategias sociales de adaptación de los “borrados” por el desastre 2 se
entenderá aquí como:
a. Acciones que transforman el territorio (colonia, calle o casa) adaptándolo por la experiencia
de enfrentar algún tipo de calamidad.
b. Acciones desarrolladas ‘desde abajo’ por medio de la construcción de un capital social
determinado (García 2009:115), así como de la creación de recursos materiales.
c. Acciones con un sentido sociopolítico de empoderamiento ante las respuestas insuficientes
de la autoridad, las cuales no previenen el desastre, sino que actúan una vez que acontece.
d. Acciones no reconocidas por el Estado como una oportunidad o alternativa para la
prevención de las inundaciones; por lo tanto, son “borradas” o consideradas poco
relevantes.

16 Para comprobar empíricamente el valor heurístico de nuestro enfoque, nos


enfocaremos en analizar cómo los “borrados” por el desastre construyen dichas
estrategias sociales de adaptación ante las inundaciones en la colonia Pedro Ojeda
Paullada, en el municipio de Ecatepec de Morelos, metrópolis de México. 3
17 A continuación, analizaremos los elementos que definen la producción social del
espacio urbano local y su relación con la construcción social del desastre por
inundación en este lugar.

La construcción social del desastre por inundación a


escala municipal
18 Las causas del crecimiento urbano y con ello, del deterioro ambiental en la zona
metropolitana del valle de México (que comprende al Distrito Federal, el Estado de
México y una parte mínima del estado de Hidalgo) son varias, entre otras, los procesos
de poblamiento y la actividad industrial son los más recurrentes, según diversos

Ponto Urbe, 20 | 2017


81

autores (véase Bassols 1983; Márquez y Pradilla 2008; Olivera y Guadarrama 2002;
Ramírez 2006).
19 En cada municipio (Estado de México) o delegación (ciudad de México) dichas
dinámicas se han presentado de forma distinta. En el caso del municipio de Ecatepec,
son estas variables importantes para analizar las inundaciones como fenómenos
socioambientales.
20 El municipio de Ecatepec se localiza al oriente de la ciudad de México, colinda con los
municipios de Acolman, Atenco, Coacalco, Nezahualcóyotl, Tecámac, Tlalnepantla,
Texcoco y con la delegación Gustavo A. Madero, perteneciente al Distrito Federal (Ver
Mapa 1).
21 Según el último Censo de Población y Vivienda 2010, en este municipio se concentran
1,658,806 habitantes, lo que lo sitúa como el más poblado de la metrópolis de México. El
perfil de esta población presenta fuertes desigualdades.4 Del mismo modo, es de los
municipios más pobres de Latinoamérica (PMDU 2009: 55).

Mapa 1. Ubicación de la colonia “Pedro Ojeda Paullada” en el municipio de Ecatepec.

Ponto Urbe, 20 | 2017


82

Fuente: Elaboración propia con información cartográfica del INEGI.

Una secuencia negativa: la dinámica industrial, el


poblamiento y la vulnerabilidad
22 El proceso de industrialización en Ecatepec, según Espinoza y Bassols (2011: 45-47),
puede dividirse en cuatro etapas: a) de 1943 a 1950, cuando se crean los primeros
parques industriales en la zona; b) de 1951 a 1982, en que se conforman las primeras
colonias de habitación popular por invasión-ocupación, se incentiva la creación de
fraccionamientos habitacionales y se consolida la concentración industrial; c) de 1982 a
2000, que se caracteriza por la pérdida de la centralidad del proceso de
industrialización en el municipio y; d) de 2000 en adelante, cuando este municipio se
integra a los procesos de la economía global, sin que desaparezca la actividad industrial
y habitacional que lo ha caracterizado durante varias décadas.
23 En un principio, el proceso de industrialización en el municipio tuvo como principal eje
espacial la zona de Xalostoc, después se extendió a orillas de la autopista México-
Pachuca y al sur colindando con Nezahualcóyotl. Así, posterior a la década de 1980 la
actividad industrial tomó mayor revuelo, en esa época se instalaron nuevas industrias
como Jumex, La Costeña, Bayer, entre otras (PMDU 2009: 25-27).
24 En cuanto a la vivienda, de 1964 en adelante proliferaron las autorizaciones estatales de
fraccionamientos populares, solicitadas por empresas inmobiliarias como
Fraccionadora Ecatepec S.A., Incobusa, Instituto de Acción Urbana e Integración Social,
el Instituto Nacional para el Desarrollo de la Comunidad, entre otras (Arzaluz 2002: 34).
25 Entre la década de 1970 y 1990 se incrementó la población en casi seis veces y como
consecuencia el área urbana también se expandió. En estas épocas se desarrollaron las
zonas IV y V,5 Ciudad Azteca y Jardines de Morelos; aparecieron los primeros grandes

Ponto Urbe, 20 | 2017


83

conjuntos urbanos de “Los Héroes” y “La Guadalupana”. Por igual, los asentamientos
irregulares se extendieron hacia el perímetro del municipio, en la zona de Guadalupe
Victoria, Llano de los Báez, La Laguna y las faldas de la Sierra de Guadalupe (PMDU
2009: 45-53).
26 Después de la década de los noventa hasta la actualidad las inmobiliarias privadas son
ejes promotores de la oferta de vivienda y del poblamiento formal, entre ellas: Grupo
SADASI, HOGARES UNIÓN, CASAS ARA y GEO (PMDU 2009).
27 A la par de ello persiste un tipo de poblamiento informal. Estos otros pobladores
ocuparon terrenos no regulados por las autoridades locales, ubicados a las orillas de los
cerros o cerca de los canales de aguas residuales. Por lo general sus casas habitación
fueron construidas con materiales que van desde cartón hasta concreto.

Condiciones ambientales en Ecatepec


28 Actualmente el municipio presenta serios contrastes socioespaciales. Por un lado,
existen sitios de progreso y estabilidad socioeconómica y, por el otro, predominan los
barrios populares y la inequidad en cuanto al acceso a los servicios, como el agua. En
algunas áreas se erigen centros comerciales y continúa la actividad industrial, mientras
que en otras aumentan los asentamientos irregulares, las unidades habitacionales
populares, o áreas de insuficiencia de servicios, etc. (Caravaca y Méndez 2003: 28-29). 6
Esto cambia el paisaje ambiental del municipio. Lo que antes eran áreas naturales se
transmutan en espacios invadidos por la industria y la población. El ecosistema ha
sufrido una mutación radical, se ha desarrollado una ocupación urbana poco más del
50% del territorio municipal para usos industriales y habitacionales (véase PMDU,
2009).
29 Las áreas verdes son escasas y no existen programas formales de forestación urbana,
por lo que se estima un fuerte rezago en áreas verdes. Según los datos calculados en el
Plan Municipal de Desarrollo Urbano, para el año 2015 se tendrá un déficit de 56,353M 2
de superficie verde, que para el 2017 podría llegar a los 62,102M 2 y, para el año 2020,
habría una carencia de áreas verdes equivalente a 66,934M2 (PMDU 2009: 56-65).
30 Por otra parte, Ecatepec es atravesado por cuatro grandes canales de aguas negras a
cielo abierto: el Drenaje General del Valle México, el Gran Canal, el Canal de Sales y el
Río de los Remedios, todos ellos ayudan al desalojo de aguas residuales, domésticas e
industriales del valle de México. Estos canales cruzan zonas habitacionales e
industriales, representan una amenaza en términos de salubridad además de
inundaciones constantes.
31 El territorio en el que se instalaron las industrias, las unidades habitacionales o los
asentamientos irregulares son antiguas fracciones del lago de Texcoco, es decir, poco
apropiados para la construcción. La composición del terreno es porosa y, por lo tanto,
susceptible a cambios morfológicos que modifican físicamente el lugar y alteran su
regeneración natural.
32 Esto es evidente en el uso de los recursos hídricos, la sobreexplotación de los mantos
acuíferos y el mantenimiento de la infraestructura de abasto. Por un lado, la
perforación de pozos por parte de las industrias y las unidades habitacionales,
quebrantan el ciclo hidrológico impidiendo la filtración del agua y su constante
renovación. Por otro lado, el peso de las construcciones de acero de las grandes

Ponto Urbe, 20 | 2017


84

fábricas, el concreto y otros materiales con los que se construyen las viviendas de todo
tipo, generan hundimientos y modifican la red hidráulica y del drenaje. En
consecuencia, la población registra condiciones de vulnerabilidad socioambiental. El
proceso de industrialización y los asentamientos humanos coadyuvan a la formación de
dicha vulnerabilidad.
33 Un tipo específico de vulnerabilidad son las inundaciones, fenómenos frecuentes en la
época de lluvias. Según una estimación gubernamental, en un lapso de once años (2002
a 2013), los afectados por las inundaciones fueron alrededor 75,191 mil personas (CAEM
2011: 11).7 Esta vulnerabilidad repetida se convierte en una condición de desastre. La
población tiene que hacer frente a ello de manera sistemática. Este es el objeto del
artículo presente.
34 A continuación, analizaremos cómo los afectados por el desastre implementan distintas
estrategias de prevención y adaptación, para contener los efectos negativos de las
inundaciones. En específico, nuestro análisis se centra en la colonia Pedro Ojeda
Paullada, ubicada en la periferia de Ecatepec.
35 ¿Cómo sobreviven los habitantes de una colonia popular a las inundaciones?
36 La colonia Pedro Ojeda Paullada ha sido afectada frecuentemente por las inundaciones
por desbordamiento del Río de los Remedios, un antiguo río y ahora un canal de aguas
residuales que atraviesa gran parte del municipio de Ecatepec (Mapa 2).

Mapa 2. Características sociodemográficas de la colonia "Pedro Ojeda Paullada” del municipio de


Ecatepec (2010).

Población con discapacidad

Sin derechohabiencia

Ponto Urbe, 20 | 2017


85

Analfabetas de 15 años o más

Hablantes de lengua indígena

Ponto Urbe, 20 | 2017


86

Fuente: Elaboración propia con datos INEGI (2010).

37 En junio de 2011 las intensas lluvias provocaron otro desbordamiento y la inundación


de esa colonia. El lugar quedó bajo el agua y fue declarado zona de desastre por la
Secretaría de Gobernación.8
38 Esta colonia es un asentamiento urbano popular. Fue fundada poco antes de la década
de 1970, en plena expansión industrial y poblacional. Los primeros pobladores llegaron
de otros lugares del país e invadían los terrenos periféricos a las industrias, algunos
trataban de emplearse y otros definitivamente no lo conseguían debido a su origen
rural, con poca capacitación para el trabajo industrial.
39 Los problemas por la regularización de la vivienda en algunos casos aún siguen
presentes, ya que el municipio no reconoce legalmente su existencia debido a que son
espacios ilegalmente ocupados.
40 La colonia no tiene áreas verdes amplias, solo algunos árboles y arbustos que rodean las
avenidas y las industrias cercanas y, algún otro tipo de vegetación que se visualiza a las
orillas del Río de los Remedios (ver imágenes 1 y 2). Todo lo demás es asfalto y casas de
distintos tamaños.

Ponto Urbe, 20 | 2017


87

Imagen 1. Vista lateral del Río de los Remedios.

Fuente: Acervo personal (Castillo 2015).

Imagen 2. Calle paralela al Río de los Remedios.

Fuente: Acervo personal (Castillo 2015).

41 Las últimas inundaciones (2011) hicieron evidente la precariedad socioeconómica de los


colonos, agudizada por los daños a sus inmuebles y pérdida de pertenencias. En las
entrevistas, algunos afectados mencionaban:
Hemos pasado inundaciones, pero nunca como la del año pasado (junio de 2011) [en
esa ocasión] perdimos todo, no tenemos como componer la casa, necesitamos

Ponto Urbe, 20 | 2017


88

dinero para que recuperemos nuestras cosas (la mayoría son muebles,
electrodomésticos, etc.), muchos hemos perdido varias (Grupo focal con personas
afectadas, Ecatepec, 21/09/2012).
42 Aunque hay un esfuerzo por parte de las autoridades locales, éstos no son suficientes.
Las autoridades hacen frente a este tipo de desastres mediante la creación (o
reparación) de la infraestructura y la concientización de los afectados, sobre qué hacer
en caso de alguna inundación. De ahí que los afectados, a partir de vivir el desastre en
este lugar, han creado y aplicado determinadas estrategias sociales de adaptación. Las
estrategias de atención gubernamental no son suficientes para ellos:
[…] luego vienen los de Protección Civil que disque pa’ que sepamos qué hacer en la
inundación, ¡ya sabemos que tenemos que prevenir papeles importantes, buscar
ayuda, guardar nuestras cosas! […] así le hemos hecho siempre (Grupo focal con
personas afectadas, Ecatepec, 21/09/2012).
43 En cambio, las acciones que desarrollan los afectados son de carácter inmediato, e
improvisadas, buscan lugares de refugio (iglesias, escuelas, casas de vecinos, etc.) fuera
de su casa para protegerse del agua y busca espacios en donde asegurar sus
pertenencias, ya sea en las azoteas de sus viviendas o en la de cualquier vecino. Una vez
más, las autoridades evidencian regularmente una respuesta tardía y la improvisación:
[De nuevo, las autoridades] llegaron tarde. [Cuando llegaron] ya estábamos sacando
nuestras cosas […] algunos subimos nuestras cosas a las azoteas, otros se las
llevaron a las casas de los de a lado. [las autoridades] No nos avisaron de que el río
[Río de los Remedios se fuera a desbordar [aunque nosotros] ya nos habíamos
percatado de la salida del agua [por ello] salimos buscando un lugar a donde
refugiarnos (Grupo focal con personas afectadas, Ecatepec, 21/09/2012).
No nos organizamos de manera más formal porque prácticamente no coincidimos.
Hay un consejo de participación ciudadana y pues cada tres años, pues éste, se
someten a votación, los eligen y pues prácticamente, después no los demos. A veces
cuando vamos con el presidente del Consejo para pues tratar de meter un oficio, o
que ellos metan un oficio a las autoridades para que nos escuchen… es mucho
embrollo. En lugar de eso prácticamente les hemos dicho, mientras no entuben el
río siempre vamos a tener el agua cerca (Grupo focal con personas afectadas,
Ecatepec de Morelos, 21/09/2012).
44 Los afectados desarrollan acciones de mayor especialización técnica, o de mayor
organización y de tiempo. Transforman el territorio y lo adaptan para proteger sus
hogares ante el advenimiento del agua. Por ejemplo, construyen paredes de tierra o
concreto en la entrada de sus viviendas, como se muestra en las imágenes 3 y 4:
[…] hemos aprendido hacerle frente al agua, algunos reforzamos las entradas de
nuestras casas, unos hacen paredes de tierra o hacemos bardas de concreto (Grupo
focal con personas afectadas, Ecatepec, 21/09/2012).

Ponto Urbe, 20 | 2017


89

Imagen 3. Pared de tierra en la entrada de una vivienda.

Fuente: Acervo personal (Castillo, 2015).

Imagen 4. Pared de concreto en la entrada de una vivienda.

Fuente: Acervo personal (Castillo, 2015).

Ponto Urbe, 20 | 2017


90

45 En ese sentido, las estrategias cotidianas de adaptación se expresan como una


minuciosa lucha por estar “mejor preparado” a un desastre que parece irremediable,
repetible:
[…] cuando vemos que empieza a llover tenemos ya unos costales con arena y es lo
que ponemos. Todos los vecinos lo hacen, a su manera. Pues casi todos tratamos de
tener costales con arena y en la puerta unos trapeadores. Tratamos de no dejar sola
la casa por si empieza a llover de un momento a otro, en lugar de estar al pendiente
de las cosas y que no podamos salirnos (Grupo focal con personas afectadas,
Ecatepec, 21/09/2012).
46 No se trata únicamente de práctica de sobrevivencia sino de adaptación. A veces el
peligro de muerte es menos importante que la creatividad desarrollada frente a la
posible pérdida de sus bienes. Otra práctica común es la construcción de diques con
plástico sobre el perímetro del Río de Los Remedios, sobre todo en aquellas zonas donde
se ha desbordado o se filtra en mayor cantidad el agua en tiempos de lluvia (ver
imágenes 5, 6 y 7).

Imagen 5. Diques con discos de plástico en el perímetro del Río de los Remedios.

Fuente: Acervo personal (Castillo, 2015).

Ponto Urbe, 20 | 2017


91

Imagen 6. Diques con discos de plástico en el perímetro del Río de los Remedios.

Fuente: Acervo personal (Castillo, 2015).

Imagen 7. Diques con discos de plástico en el perímetro del Río de los Remedios.

Fuente: Acervo personal (Castillo, 2015).

47 Al respecto, algunos de los afectados sugieren un ‘estar en alerta’ permanente, que


buscan evitar al máximo cualquier descuido que magnifique las consecuencias del
desastre:
También hacemos paredes con discos de plástico a las orillas del río y en las partes
donde está más baja la colonia, porque por allí si se desborda otra vez, corre más
rápido el agua (Grupo focal con personas afectadas, Ecatepec de Morelos,
21/09/2012).
[…] los discos de plástico son muy fuertes, nos lo consiguió un vecino. Platicamos
con la gente de la CAEM (Comisión de Agua del Estado de México) que íbamos a
estar enterrando [los discos de plástico] a orillas del río, para que precisamente, sí
se llega fracturar la pared del río ya no se mueva la tierra. Los hemos ido
sembrando poco a poco (Grupo focal con personas afectadas, Ecatepec, 21/09/2012).

Ponto Urbe, 20 | 2017


92

48 De diferente forma, los afectados también tratan de adaptarse aun con los pocos
recursos que les deja su precariedad económica, a través de otras prácticas que no
necesariamente transforman su espacio de existencia (casa, calle o colonia), pero que
nacen de la improvisación, del ‘vivir al instante’ en la inundación. Esa otra práctica es el
endeudamiento. Solicitan préstamos monetarios a pequeñas microfinanciadoras 9 y
entre los mismos familiares o vecinos, para reconstruir su vivienda:
[…] los vecinos nos hacemos el favor de prestarnos cosas y dinero […] en la cuadra
hay gente que tiene negocios de tienda, peluquerías […] ellos han pedido prestado a
Compartamos o a CAME (microfinanciadoras) para recuperar su negocio […] si
tuviéramos dinero sí nos cambiaríamos de casa, pero la verdad, es que nos hemos
acostumbrado a vivir con el agua en nuestras casas (Grupo focal con personas
afectadas, Ecatepec, 21/09/2012).
49 Las estrategias que construyen las personas afectadas, son en gran parte fruto del
aprendizaje que les ha dejado ‘vivir al instante’ en el desastre. Es decir, de un
conocimiento tradicional, socioculturalmente construido (García, 2014: 10-11), a otro
conocimiento en constante renovación y transmisión. Éste último es posible por la
interacción social entre los afectados y lo que implica vivir en un ambiente de
vulnerabilidad.
50 Por ejemplo, frente a las formas institucionales de comunicación del desastre, que los
inundan de panfletos o folletos, lo afectados construyen nuevas formas de
comunicación en el desastre:
Hemos tenido un poquito más de comunicación entre vecinos porque muchas veces
a lo mejor la grieta no es enfrente a nuestras casas, pero en la de otros vecinos sí y
de allí se expande a toda la colonia. Entre los vecinos pusimos una especie como de
una bocina y cada vez que hay problema con el río, que vemos que sube el nivel, le
hablamos al vecino que toca la bocina para ver qué es lo que está pasando y a salir a
ver si efectivamente hay alguna fractura en el canal (Grupo focal con personas
afectadas, Ecatepec de Morelos, 21/09/2012).
51 Dichas acciones transforman su territorio inmediato, vivido (Porto, 2009: 23-25). El
apego socioterritorial al lugar representa un vínculo simbólico o patrimonial (Giménez
2000: 30-32).
52 Estas acciones o estrategias son elementales para que los “borrados” por el desastre
prevengan y se adapten a las inundaciones, reduzcan el riesgo de pérdidas
socioeconómicas o se recuperen más rápido de ellas. En algunos casos, se puede
observar que estas acciones son acompañadas de una serie de dispositivos materiales y
no materiales como facilitadores para la adaptación.
53 En este caso, los recursos no materiales se definirían en la ayuda mutua, los favores; o
sea, el capital social que se teje entre los familiares, los vecinos o el vínculo con las
microfinanciadoras. De distinta manera, se observa que los recursos materiales son,
tanto los objetos utilizados para hacer diques a las orillas del Río de Los Remedios,
como las paredes de tierra y concreto en la entrada de los hogares.
54 La utilidad de ambos tipos de recursos representa un reconocimiento entre iguales
(afectados) y un apego socio emocional al espacio que habitan. No hay una
preponderancia de uno sobre otro, tienen igual importancia en la consolidación de las
estrategias de adaptación.

Ponto Urbe, 20 | 2017


93

55 Asimismo, dichas prácticas improvisadas, no sólo se presentan en el antes de la


inundación, sino también en el durante y el después. Son acciones en el ámbito familiar
y/o entre vecinos.
56 En ese sentido, los “borrados” por el desastre combaten, con sus posibilidades, su
situación de vulnerabilidad y sobreviven a las inundaciones. “Saben que hacer”
(KnowHow) ante el riesgo y la inundación. De esa forma, activan sus capacidades para
volver a la “normalidad”, como lo dejan ver las respuestas de nuestros entrevistados.
57 En esas acciones de se manifiestan actores como las microfinanciadoras, las cuales
usufructúan la carencia económica de la población afectada y utilizan la situación de
desastre, para acrecentar sus ganancias.
58 Las autoridades sólo intentan evitar las acciones de saqueo, instalar albergues o
indemnizar las pérdidas, provocando un sentimiento paternalista en los afectados.
Estas acciones no logran prevenir el desastre, dado que se actúa primordialmente
durante y después de la inundación, nunca en el antes.
59 Por ejemplo, después de la inundación en el año de 2011, a fin de apoyar a las familias
afectadas, el entonces presidente municipal de Ecatepec, Indalecio Ríos Velásquez
(2011-2012) entregó 366 tarjetas de apoyo con un valor de diez mil pesos y un vale
efectivo por un aparato electrodoméstico a unas cuantas familias, según él, las más
afectadas. El personal de la Secretaría de Desarrollo Social (SEDESOL) y del Ejército
Mexicano distribuyó agua, paquetes de limpieza y despensas con productos enlatados.
Asimismo, realizaron un censo para ver quiénes y cuántos eran los afectados, después
les entregaban un certificado con un número de folio que debían conservar para que
tramitaran su indemnización, cuando fuera pertinente. Finalmente, se colocó un cerco
sanitario de brigadistas de diversas dependencias que repartieron medicamentos y
aplicaron vacunas (La Jornada, 24 de agosto de 2012).
60 No obstante, los colonos coincidieron que la cobertura de las autoridades
correspondientes ha sido focalizada e insuficiente en la atención del desastre:
El río (Río de los Remedios) sigue igual, no le han hecho reparación […] desde que
nos reunieron (después de la inundación en 2011) para darnos despensas,
medicinas, cubetas y jabón, nunca los hemos vuelto a ver (Grupo focal con personas
afectadas, Ecatepec, 21/09/2012).
61 En ocasiones esas acciones inmediatas que ejecutan las autoridades correspondientes,
están esporádicamente vinculadas con las personas afectadas, pero no con sus
estrategias sociales de sobrevivencia. Las autoridades intentan organizarlos para
repartir víveres, vales de despensa, aplicar vacunas, recoger la basura de las calles o
destapar las coladeras, entre otras cosas.
62 De igual modo, las autoridades siguen experimentando si las inundaciones pueden
evitarse mediante acciones técnicas como la construcción de más infraestructura de
drenaje, las cuales ocasionan una sobrecarga en el territorio posibilitan la presencia del
riesgo al desastre.
63 A un año del desastre, en agosto de 2012, el edil Indalecio Ríos Velásquez (2011-2012)
informó, a través de a distintos medios de comunicación, que el programa de
construcción y limpieza de drenajes en el municipio, tuvo una inversión de más de 50
millones de pesos y que la meta inicial que era de 36 colonias (entre ellas la colonia
Pedro Ojeda Paullada), cubriría hasta ese momento 74 colonias. El programa preventivo
de las autoridades municipales y estatales en aquellas colonias susceptibles a

Ponto Urbe, 20 | 2017


94

inundaciones, alcanzó 780 kilómetros, “que equivale a la distancia entre Guadalajara y


Monterrey”, se afirmaba. Por lo que, según las autoridades, hacía casi imposible otra
inundación como la de 2011 (La Jornada, 24 de agosto de 2012).
64 Desde la perspectiva de las autoridades, el desastre constituye un evento que no es
resultado de un proceso sociohistórico. Más bien, es algo esporádico y ocasionado por
los embates de la naturaleza. Para las autoridades, es un efecto natural del exceso de
lluvia, de ahí que sólo se construya, remodele o limpie los conductos del drenaje para
desalojar el exceso de agua.
65 Por el contrario, para los “borrados” por el desastre las inundaciones son el resultado de
la negligencia de las autoridades. En este caso, el desbordamiento del Río de los
Remedios nunca se les anticipa. Se actúa en el momento y posterior a la inundación.
Ante eso, las respuestas de los afectados emanan de vivir su condición de precariedad
social, lo que ha impedido que se desplacen hacia otros lugares de la metrópolis, de tal
modo que deben crear estrategias para adaptarse y prevenir las inundaciones.
66 En las controversias entre los actores involucrados en el desastre, se interrelacionan un
serie de discursos, acciones y recursos. Las autoridades se empeñan en legitimar sus
acciones y los afectados cuestionan, deslegitiman y evidencian la focalización e
ineficacia de las mismas.
67 Las acciones de los afectados muestran que existen formas diferentes de gestión del
riesgo y del desastre por inundación. Por una parte, las respuestas de las autoridades
(locales, estatales y federales) son centralizadas, de arriba hacia abajo. Las distintas
instancias gubernamentales como protección civil, el ejército, las agencias policiacas,
los funcionarios del sistema de salud, etc., actúan una vez que acontece la inundación y,
en muchos de los casos, de forma separada a la población afectada. Por otra parte, las
acciones de los afectados son ‘de abajo’ hacia arriba, nacen de la necesidad de prevenir
los efectos negativos de las anegaciones y su probable reincidencia.
68 La población afectada es “borrada” porque el Estado no los reconoce como actores
sociopolíticos clave para el conocimiento y la prevención del riesgo por inundación. Las
estrategias sociales que desarrollan se minimizan y fragmentan ante las respuestas
convencionales de las autoridades.

Conclusiones
69 En este texto se evidencia cómo los “borrados” del desastre construyen estrategias
sociales de prevención y adaptación, a partir de las inundaciones recurrentes en el
municipio de Ecatepec de Morelos, en la metrópolis de México. Esto ocurre en
particular en la colonia Pedro Ojeda Paullada, un asentamiento urbano-popular ubicado
en las inmediaciones del Río de Los Remedios, un canal de aguas residuales.
70 Las inundaciones en este lugar son la consecuencia de un proceso sociohistórico en la
producción del espacio urbano local, en el cual la actividad industrial y el proceso de
poblamiento han generado condiciones de vulnerabilidad socioambiental, que junto a
las lluvias, incrementan el riesgo y el posible desastre.
71 Hemos analizado las acciones de adaptación y prevención que los “borrados” del desastre
generan de manera creativa. Éstas son producto de su interacción social y del proceso
de agenciamiento y de sentido, que desarrollan en un espacio-tiempo específico, en el
cual se reflejan una serie de recursos materiales y no materiales.

Ponto Urbe, 20 | 2017


95

72 Los afectados por el desastre, a través de la acumulación de sus experiencias


calamitosas, se apegan al territorio y por tanto, modifican (“protegen”) su espacio
inmediato (casa, calle o colonia). A partir de crear lazos de solidaridad y de
reconocimiento entre los afectados, las prácticas familiares o la relación entre vecinos
de la cuadra o colonia, estructuran aprendizajes de defensa ante el desastre algunas
veces de manera improvisada, otras planeadas. Estas experiencias se consolidan como
una vía diferente, inmediata, de apegos al territorio y por tanto, intima ante las
inundaciones. El cuerpo social urbano sufre emocionalmente el desastre y por tanto,
aprende.
73 Sin embargo, las autoridades gubernamentales no reconocen como tal dicha
experiencia. Al contrario, las consideran poco relevantes y las contrastan con las
decisiones planeadas y centralizadas, en el marco de su acción institucional.
74 En suma, en la discusión del espacio urbano local y metropolitano de México, hay que
incorporar el debate sobre las inundaciones y sus efectos en la acción intima, cotidiana
de los afectados. En general, como esas estrategias sociales de prevención y adaptación,
se construyen ‘desde abajo’, por tanto, es necesario comprenderlas, ampliar su
conocimiento.
75 Ese debate sobre las acciones socioemocionales y socioespaciales frente al desastre, se
hace necesario porque con ello, se podrían cambiar los términos de la implementación
de políticas públicas para la ciudad y la metrópolis. Se precisa de una política inclusiva,
ciudadana, holística, que permita desde todos los ángulos, hacer una ciudad vivible en
momentos de su estabilidad o cuando la pierde, por la presencia de desastres.
76 Incluir la dimensión socioemocional y socioespacial de los afectados en la toma de las
decisiones, significa reflexionar sobre una gestión integral del riesgo por inundación,
que completarían algunas insuficiencias evidentes en las respuestas técnicas al desastre
por parte de las autoridades.
77 El análisis de los “borrados” por el desastre, dejaría de hacerlos invisibles, entes pasivos o
marginales. De esa forma ocuparían un lugar indispensable en el proceso de
negociación, el establecimiento de los acuerdos y la ejecución de los programas y las
políticas institucionales sobre la prevención de desastres en la metrópolis de México,
en particular en los espacios urbano-locales. Ese es el mayor reto.

BIBLIOGRAFÍA
ALLEN, K. M. 2006. “Community-based disaster preparedness and climate adaptation: local
capacity-building in the Philippines” Disasters n.30: 81–101. doi:10.1111/j.1467-9523.2006. 00308.x

ALTEZ, Rogelio. 2016. “Nacionalización de las memorias colectivas y reproducción de riesgos en


regiones fronterizas latinoamericanas” Anuarios de Estudios Americanos n. 73: 319-350.

ANGULO, Fercia. 2006. Construcción social del riesgo y estrategias adaptativas frente a El Niño. El caso de
Tlacotalpan y Cosamaloapan en la cuenca baja del Papaloapan, Veracruz. México: Tesis de Maestría en
Ciencias Sociales, Universidad Autónoma de la Ciudad de México.

Ponto Urbe, 20 | 2017


96

ARZALUZ, Socorro 2002. Participación ciudadana en la gestión urbana de Ecatepec, Tlalnepantla y


Nezahualcóyotl (1997-2000). México: Instituto de Administración Pública del Estado de México.

AUDEFROY, Joel F. 2012. “Adaptación de la vivienda vernácula a los climas en México”. En:
GARCÍA, Virginia Acosta et.al. (coords.), Estrategias sociales de prevención y adaptación. México:
CIESAS/CONACYT/FONCICYT, p. 95-106.

AUDEFROY, Joel F; CABRERA, Nelly. 2012. “Las sequías en el área maya: estrategias tecnológicas y
adaptativas”. En: Virginia García Acosta et.al. (coords.), Estrategias sociales de prevención y
adaptación. México: CIESAS/CONACYT/FONCICYT, p. 113-122.

BASSOLS, Mario 1983. Concentración industrial y expansión urbana en el municipio de Ecatepec,


un estudio de caso en el contexto de la Zona Metropolitana de la Ciudad de México. México:
Multicopias.

BRIONES, Fernando. 2012. “Saberes climáticos en la agricultura de los ch’oles de Chiapas”. En:
Virginia García Acosta et.al. (coords.), Estrategias sociales de prevención y adaptación. México:
CIESAS/CONACYT/FONCICYT, p. 107-112.

CALDERÓN, Aragón Georgina. 2011. “Lo ideológico de los términos en los desastres” Revista
Geográfica de América Central n. especial EGAL: 1-16.

CARAVACA, Inmaculada y Ricardo MÉNDEZ. 2003. “Trayectorias industriales metropolitanas:


nuevos procesos, nuevos contrastes” Eure n. 87: 37-50.

COMISIÓN DEL AGUA DEL ESTADO DE MÉXICO (CAEM) 2011. Tabla de Reincidencias de
Inundaciones en los Municipios del Estado de México. México.

CUEVAS, Jimena. 2010a. Aquí no pasa nada. Estrategias y prácticas espaciales para hacer frente a
fenómenos hidrometeorológicos en la ciudad de San Francisco de Campeche. México: Maestría en
Antropología Social, CIESAS-DF.

CUEVAS, Jimena. 2012b. “Cuando el agua corre... Estrategias y prácticas espaciales para convivir
con fenómenos hidrometeorológicos. El caso de la ciudad de Campeche, México”. En: GARCÌA,
Virginia Acosta et.al. (coords.), Estrategias sociales de prevención y adaptación. México: CIESAS/
CONACYT/FONCICYT, p. 123-134.

DAVIS, Diane. 2012. “Fundamentos analíticos para el estudio de la informalidad: una breve
introducción”. En: DE ALBA, Felipe; LESEMANN, Frédéric (coords.), Informalidad urbana e
incertidumbre: ¿Cómo estudiar la informalización en las metrópolis? México: UNAM, pp. 9-11.

DE ALBA, Felipe; OROPEZA, Oscar Castillo. 2014. “Después del Desastre…Viene La Informalidad:
una reflexión sobre las inundaciones en la metrópolis de México” Revista Iberoamericana de
Urbanismo n.11: 3-23.

ESPINOSA, Maribel; BASSOLS, Mario. 2011. “Construcción social del espacio urbano: Ecatepec y
Nezahualcóyotl” Polis n. 2: 81-112.

GARCÍA, Acosta Virginia. 2005a. “El riesgo como construcción social y la construcción social de
riesgos” Desacatos n. 19: 11-24.

GARCÍA, Acosta Virginia. 2006b. “Estrategias adaptativas y amenazas climáticas.” En: URBINA,
Javier; MARTÍNEZ, Julia (coords), Más allá del cambio climático. Las dimensiones psicosociales del
cambio ambiental global, México: Instituto Nacional de Ecología (SEMARNAT)/Facultad de
Psicología (UNAM), pp. 29-46.

Ponto Urbe, 20 | 2017


97

GARCÍA, Virginia Acosta. 2009c. “Prevención de desastres, estrategias adaptativas y capital


social”. En: KOFF, Harlan et. al. (ed.), Social Cohesion in Europe and the Americans: Power, Time and
Space. Germany: Peter Lang-Editions Scientifiques Internationales, pp. 115-130.

GARCÍA, Acosta Virginia et. al. (eds.). 2012. Estrategias sociales de prevención y adaptación. México:
CIESAS/CONACYT/FONCICYT.

GENTLE, Popular; MARASENI, Tek. 2012. “Climate change, poverty and livelihoods: adaptation
practices by rural mountain communities in Nepal” Environmental Science and Policy n. 21: 24-34.

ISHAYA, S.; Abaje I. 2008. “Indigenous people’s perception on climate change and adaptation
strategies in Jema'a local government area of Kaduna State, Nigeria” Journal of Geography and
Regional Planning n. 8: 138-143.

NYONG A, et al. 2007. “The value of indigenous knowledge in climate change mitigation and
adaptation strategies in the African Sahel” Mitigation and Adaptation Strategies for Global Change n.
12: 787–797.

GIMÉNEZ, Gilberto. 1999. “Territorio, cultura e identidades” Estudios sobre las Culturas
Contemporáneas n. 9: 25-57.

Gobierno del Estado de México. 2009. Plan Municipal de Desarrollo Urbano (PMDU) de Ecatepec
de Morelos. México: Gobierno del Estado de México/ Secretaria de Desarrollo Urbano y Vivienda.

MÁRQUEZ, Lisett; Emilio PRADILLA. 2008. “Desindustrialización, terciarización y estructura


metropolitana: un debate conceptual necesario” Cuadernos del cendes n. 69: 21-45.

MERTZ, O., et al 2009. “Farmers’ perceptions of climate change and agricultural adaptation
strategies in rural Sahel” Environmental Management n.43: 804.

NORTON, John and Guillaume CHANTRY. 2012. “More to Lose: Reducing Family Vulnerability to
Flood and Storm Damage in central Vietnam, 1989-2010”. En: GARCÌA, Virginia ACOSTA et.al.
(coords.), Estrategias sociales de prevención y adaptación. México: CIESAS/CONACYT/FONCICYT, pp.
71-74.

OLIVERA, Guillermo y Julio GUADARRAMA. 2002. “El ciclo de reestructuración industrial y


territorial de la región centro de México”. En: DELGADILLO, Javier; CENOCORTA, Alfonso Iracheta
(Coords.) Actualidad de la investigación regional en el México central. México: Universidad Nacional
Autónoma de México/Centro Regional de Investigaciones Multidisciplinarias/El Colegio
Mexiquense/El Colegio de Tlaxcala/Plaza y Valdés, pp. 141-194.

OLIVER-SMITH, Anthony y Susanna HOFFMAN. 2002. “Why Antropologist Should Study


Disasters?”. En: HOFFMAN, Susanna; OLIVER-SMITH, Anthony (edits.) Catastrophe and Culture. the
antropology of disaster. Oxford, Santa Fe: School of American Research Press y James Currey.

OSBAHR, H., et al. 2010. “Evaluating successful livelihood adaptation to climate variability and
change in southern Africa” Ecology and Society n. 2: 27.

PELLING, M. 2002. “Assessing urban vulnerability and social adaptation to risk: evidence from
Santo Domingo” International Development Planning Review n.1: 59-76.

PORTO, Carlos Walter. 2009. “De Saberes y de Territorios: diversidad y emancipación a partir de
la experiencia latino-americana” Polis Revista de la Universidad Bolivariana n. 22: 121-136.

QUESADA, Florencia. 2012. “Floods in Matina, Caribbean Coast of Costa Rica: Social Strategies for
Prevention and Adaptation”. En: GARCÍA, Virginia Acosta et.al. (coords.), Estrategias sociales de
prevención y adaptación. México: CIESAS/CONACYT/FONCICYT, pp. 91-94.

Ponto Urbe, 20 | 2017


98

RAMÍREZ, Blanca. 2006. “Del funcionalismo industrial al funcionalismo de servicios: ¿la nueva
utopía de la metrópoli postindustrial del Valle de México?” EURE n. 95: 61-74.

RASHID, S. F. 2000. “The Urban Poor in Dhaka City: their struggles and coping strategies during
the floods of 1998” Disasters n. 24: 240–253.

SWYNGEDOUW, E. 2006. “Circulations and metabolisms: (hybrid) natures and (cyborg) cities”
Science as Culture n.15: 105-121.

WARNER, Jeroen 2012. “The Shadow of the Past in Dutch Flood Management: The Rediscovery
and Politicisation of “Best Practices.” En: GARCÍA, Virginia Acosta et.al. (coords.), Estrategias
sociales de prevención y adaptación. México: CIESAS/CONACYT/FONCICYT, pp. 25-46.

Periódicos

La Jornada, "SG declara desastre natural en Ecatepec una Nezahualcóyotl”, 12 de julio de 2011.

La Jornada, “Ecatepec: afectados por las inundaciones piden a las autoridades ayuda financiera”,
24 de agosto de 2012.

Entrevistas grupales

Grupo focal con personas afectadas, municipio de Ecatepec de Morelos (Estado de México), 21 de
septiembre de 2012.

Páginas de internet

www.inegi.org.mx

http://www3.inegi.org.mx/sistemas/biblioteca/ficha.aspx?upc=702825003884

Consultado el 23/06/2015.

NOTAS
1. En este caso, nos enfocaremos en la población afectada que habita cerca o a orillas del Río de
los Remedios un afluente de aguas residuales.
2. Cabe mencionar que el concepto de estrategias sociales de adaptación o estrategias adaptativas
se encuentra en construcción. En la definición que proponemos se considera que en estas
acciones hay un contenido sociopolítico de la sobrevivencia por explorar, el cual no puede ser
problematizado a partir del uso de conceptos como resiliencia. De acuerdo con Georgina Calderón,
en el análisis de los riesgos y los desastres, el concepto de resiliencia intenta desplazar al de
vulnerabilidad y ha llevado a (…) desorientar el foco de atención, desde los análisis sociales y de
funcionamiento general del sistema económico y político, hacia la escala individual. Como si los
individuos pudieran resolver por ellos mismos las problemáticas en las que están sumidos
(Calderón 2011:14). Hablar de estrategias sociales de adaptación o estrategias adaptativas, nos
permite reconocer la capacidad de los afectados como sujetos que transforman y se adaptan al
desastre.
3. Aquí nos referimos de igual manera a la metrópolis de México y a la Zona Metropolitana del
Valle de México (ZMVM), la cual actualmente cuenta con más de 21 millones de habitantes y se
integra por las 16 delegaciones del Distrito Federal, 59 municipios del Estado de México y 29
municipios del Estado de Hidalgo (INEGI, 2010).
4. El ingreso predominante en el municipio es de 1 a 5 veces el salario mínimo mensual. El 68.52
% de la población cuenta con educación primaria, el 37. 90 % con educación media superior, el
3.77% con estudios universitarios y, solo el 0.44 % con posgrado (INEGI 2010).

Ponto Urbe, 20 | 2017


99

5. Estas zonas son demarcaciones jurídico-administrativas en la periferia del municipio, en las


cuales se localizan distintas colonias populares.
6. Por ejemplo, la reestructuración territorial que acompañó el cambio de modelo económico,
trajo como consecuencia el surgimiento de los primeros centros comerciales en Ecatepec a finales
del siglo XX. Durante el gobierno estatal de Arturo Montiel (1999-2005), se anunció la creación de
la Plaza Las Américas. La nueva plaza comercial fue paralela a otras obras de inversión público-
privada, una autopista de cuota (Circuito Exterior Texcoco-Jorobas), la construcción de un
hospital general de zona y un nuevo desarrollo habitacional para sectores medios de la población
metropolitana (impulsado por Inmobiliaria Ara). El mall y el espacio urbano construido no tienen
paralelo, ni en el municipio ni en todo el oriente de la ZMVM. La obra se encuentra en su fase de
consolidación comercial, con tiendas de marca como Liverpool, Sam’s Club, Sears, Sanborn’s,
Vip’s, además de un Hotel Fiesta Inn, entre otros establecimientos comerciales de ese tipo
(Espinosa y Bassols 2011: 190).
7. Para combatir las inundaciones el gobierno local ha implementado soluciones técnicas que no
logran prevenirlas. Se ha construido infraestructura de drenaje con la finalidad de desalojar el
agua, pero las obras realizadas han sido superadas por la presencia cada vez mayor de las
anegaciones. Las obras que se han construido en los últimos años son: Túnel semiprofundo Gran
Canal, Rectificación del Drenaje General del Valle Cuautitlán-Texcoco, tramo Ecatepec, Sistema
de colectores y plantas de bombeo en la Zona V, Sistema de colectores y plantas de bombeo en
Zona La Laguna y Sistema de colectores en la Zona poniente del municipio (PMDU, 2009: 32).
8. El 30 de junio de 2011, seis horas de lluvia provocaron el desbordamiento del Dren General del
Valle de México y el Río de Los Remedios, en las inmediaciones del kilómetro 47 del Circuito
Exterior Mexiquense, colindando con el municipio de Nezahualcóyotl. El agua invadió más de 400
viviendas y causó congestiones viales en la Avenida Central y Vía Morelos. El nivel del agua en
algunas partes de la zona alcanzó hasta 50 centímetros de profundidad. Se registraron
precipitaciones pro 67 milímetros de agua, prácticamente el doble de la cantidad desde hace 23
años (La Jornada, 12 de julio de 2011).
9. Las microfinancidoras son actores privados que facilitan créditos financieros a personas de
bajos ingresos.

RESÚMENES
En el texto se usa el concepto estrategias sociales de adaptación para el caso de los afectados por las
inundaciones en la colonia Pedro Ojeda Paullada en Ecatepec de Morelos, metrópolis de México.
Con ello, se analizan las causas de la vulnerabilidad socioambiental, que constituyen la condición
de riesgo en ese lugar. Se pone especial énfasis en cómo los afectados, sobre todo aquellos
ubicados a las orillas de los canales de aguas residuales, responden y se adaptan a eventos
socioambientales, con base en distintas acciones emergentes y a un conocimiento construido en
su interacción con el espacio que habitan. Para dar cuenta de ello se utilizan entrevistas tipo focus
group, fotografías, notas de periódico, documentos y datos oficiales. Todo esto con la finalidad de
presentar otros elementos de análisis sobre el riesgo de desastre por inundación, que permitan
ampliar su conocimiento desde las experiencias de los afectados.

O texto utiliza o conceito de estratégias de adaptação social para o caso das pessoas atingidas por
inundações na colônia Pedro Ojeda Paullada em Ecatepec de Morelos, metrópole do México.

Ponto Urbe, 20 | 2017


100

Assim, foram analisadas as causas de vulnerabilidade socioambiental que constituem estado de


risco nessa localidade. Enfatiza-se a forma como as pessoas afetadas, especialmente aquelas
localizadas nas margens de canais de esgoto, respondem e se adaptam a eventos sociais e
ambientais com base em diversas ações emergentes e um conhecimento construído em sua
interação com o espaço em que habitam. Os dados foram coletados através de entrevistas com
grupos focais, e fotografias, notas de jornal, documentos e dados oficiais foram usados com o
objetivo de introduzir outros elementos de análise de risco de inundações, que irá expandir o seu
conhecimento a partir das experiências das pessoas atingidas.

In the text uses the concept social adaptation strategies for the case of those affected by floods in
the colony Pedro Ojeda Paullada in Ecatepec de Morelos, Mexico metropolis. With this, the causes
of social and environmental vulnerability, which constitute risk status at that location are
analyzed. Special emphasis is placed on how those affected, especially those located on the banks
of canals sewage, respond and adapt to social and environmental events, based on various
emerging equities and a built knowledge in their interaction with the space they inhabit. To
account for this type focus group interviews, photographs, newspaper notes, documents and
official data are used. All this in order to introduce other elements of risk analysis on flood
disaster, that expand their knowledge from the experiences of those affected.

ÍNDICE
Keywords: social adaptation strategies, risk, disaster, Pedro Ojeda Paullada colony, Ecatepec de
Morelos
Palavras-chave: Estratégias de adaptação social, risco, desastre, Colonia Pedro Ojeda Paullada,
Ecatepec de Morelos
Palabras claves: Estrategias sociales de adaptación, riesgo, desastre, colonia Pedro Ojeda
Paullada, Ecatepec de Morelos

AUTORES
MTRO. OSCAR ADÁN CASTILLO OROPEZA
Universidad Autónoma del Estado de México, México
oscaradan68@hotmail.com

DR. FELIPE DE ALBA MURRIETA


Centro de Estudios Sociales y Opinión Pública (CESOP), México
fdealbam@gmail.com

Ponto Urbe, 20 | 2017


101

Pelo bairro: um exercício descritivo


da prostituição de travestis no
Jardim Itatinga
Letizia Patriarca

Da rodovia dos Bandeirantes, pego o acesso para outra estrada, que dista ainda
cerca de 10 km do centro da cidade de Campinas e no outro sentido conduz ao
Aeroporto Internacional de Viracopos e a outras cidades do interior paulista.
Seguindo as placas, chega-se facilmente ao bairro Jardim Itatinga, com um limite
geográfico demarcado, por ser entrecruzado por essas rodovias.
Antes de atravessar o viaduto, de um lado, há um grande motel. Do outro, avisto que
o drive-in está repintado e agora possui um nome/marca. Ao lado, galpões de
grande extensão, sendo um ferro-velho, uma borracharia, uma mecânica, uma loja
de autopeças e outro grande motel. Sigo com meu carro pela rua vicinal à estrada
que ladeia o bairro, passo por postos de gasolina, um ponto de táxi e pontos de
ônibus. Dentro do bairro estes ônibus não circulam, mas como não é muito extenso,
o Jardim Itatinga pode ser percorrido a pé. Há ruas esburacadas, uma ou outra sem
asfalto, calçadas craqueladas, salpicadas de cacos de vidro e pacotes de camisinhas.
Quando ando com alguém de salto alto, fico pensando na arte de manejá-lo nesse
piso.
Estou voltando ao bairro após o recesso do final do ano de 2014 e avisto novos
estabelecimentos, reformas em casas de prostituição, em botecos e um novo salão
de cabeleireiro. Uma casa reformada me chama particularmente atenção, pois
estava funcionando no esquema que costuma ser usado de noite no bairro, mas
observo que ainda está claro. É um modelo que parece exigir maior investimento,
pois havia profissionais do sexo e homens “laçadores”, chamando clientes para
entrar no estabelecimento. Perfiladas/os no meio da rua (e não nas calçadas),
conseguem abordar os veículos que transitam pelos dois sentidos. Três homens com
camisa branca, gravata e calça azul escura de terno ao lado de mulheres com
vestidos curtos. Não deixo de pensar que o calor, com sensação térmica de quase 40
graus, não devia ser fácil para estes homens que gesticulavam incessantemente
para que os carros estacionassem na casa diante da qual estavam e para qual
trabalhavam.
Passo pelo CEPROMM, a sede do Centro de Estudos e Promoção da Mulher
Marginalizada que atua no Jardim Itatinga e como é começo de janeiro, estava
fechado para as férias, de forma que as vagas de estacionamento que oferece

Ponto Urbe, 20 | 2017


102

estavam barradas por correntes. Penso nas correntes desta sede, protegendo vagas
esvaziadas. Simbólica e ironicamente diz muito sobre a atuação salvacionista desta
instituição, contrastada pela atuação de Bianca, travesti e puta, que há anos atua
nesta instituição e fora dela, fazendo questão de levar o debate da “profissional do
sexo que não é coitadinha”.
Percorro ainda um portão com uma madeira e seu escrito improvisado de tinta
alertando: “residência familiar”. Dentre diversos e inúmeros estabelecimentos com
banners e letreiros que indicam que ali funcionam casas de prostituição, há alguns
poucos portões no bairro com essa indicação. Estaciono com a atenção de sempre,
para que o carro não atrapalhe a visibilidade das profissionais que estão nas
calçadas e performam seu trato com os clientes, que passam quase que
exclusivamente de carro, moto e caminhão.
Nesse dia, havia mais carros estacionados na rua que de costume; sendo que os
veículos de clientes não costumam ficar nas ruas, estacionando nos
estabelecimentos nos quais as profissionais alugam os quartos para o programa. Há
também a possibilidade de realizar programas dentro do carro ou em um
estacionamento, de forma que não pagam o valor do aluguel do quarto para a dona
da casa de prostituição.
Já na frente de uma dessas casas, avisto Márcia sentada em uma cadeira de balanço,
Miriam em pé e sempre com seu iPhone na mão e Cintia, sentada em uma mureta.
São as travestis que vejo há três anos pelo bairro, de costume, fazendo ponto juntas,
sempre com maquiagem, suas roupas de marca e apresentação impecável. Elas
aproveitam a sombra debaixo de uma árvore, na qual também penduram suas
bolsas, sendo pegas de forma quase que ritual quando vão em direção a um carro ou
a um quarto para realizar um programa.
Contam-me que estava ocorrendo uma reunião da Associação Mulheres Guerreiras,
que atua em prol do reconhecimento e melhores condições para profissionais do
sexo de Campinas e região. Daí descubro o motivo dos carros na rua. Passo pela
reunião, na qual se discute um caso de violência policial que acometeu o bairro em
outubro de 2013, quando policiais militares sitiaram o Jardim Itatinga por um final
de semana inteiro.
Encerrada a reunião, falo com Lígia, sentada diante da manicure que atende as
profissionais do sexo, que ficam nas calçadas do Jardim Itatinga. Ambas negras,
Lígia travesti sorridente com seus vinte e poucos e Virgínia mulher vivida com seus
quarenta e muitos e a determinação de arrastar seu carrinho com os apetrechos de
manicure por todo o bairro. Converso também com Silvia, uma travesti negra, que
conta ser de Cuiabá e começa a me falar de sua relação com seu namorado, que é
ciumento a ponto de tê-la agredido fisicamente. Eu já me contorcia com a história
dele ter apertado seu pescoço em uma festa, até que Silvia conta que um dia lhe
revidou com um soco na cara e desde então nunca mais ele “se meteu a besta” com
ela.
Depois acompanho Bianca em suas atividades diárias de manutenção dentro de um
pensionato. Além de inúmeros quartos onde as travestis dormem em beliches, há
uma quantidade infindável de orquídeas, paixão de Bianca. Nada em pouca
quantidade, há também quase tantos pequenos cachorros quanto a quantidade de
travestis que dormem nos quartos. As que ficam mais tempo no bairro - pois muitas
passam somente dias ou temporadas, retornando para suas cidades para visitar suas
famílias ou circulando por outras cidades para realizar programas - acabam
cuidando de um cachorro em especial. Um outro dia, fui com Márcia, em seu carro
zero km, levar um cachorro que estava doente. Márcia aproveitou para comprar um
xampu de quase 50 reais – o mesmo preço médio que cobra por meia hora de
programa - para o seu cachorro, do qual ela cuida tão bem quanto de sua
apresentação pessoal.
Vou ainda até outra casa de travestis no bairro. Aproveito para colecionar os vários
nomes dos diversos estabelecimentos do Jardim Itatinga. Há categorizações como
drink bar, show bar, boate, nomes que acionam fetiches como “As cariocas”;

Ponto Urbe, 20 | 2017


103

banners com closes de bundas e mulheres seminuas em poses sensuais. Mesmo


quando não estou acompanhada de alguém do bairro, minhas andanças são
estranhamente tranquilas, não sendo assediada por nenhum homem de carro -
ironicamente oposto ao meu movimento diário a pé pelas ruas de qualquer outro
local.
Chegamos na ampla e reformada casa de Jéssica, uma travesti negra, com cerca de
30 anos, que já morou na Europa. Em seu estabelecimento há somente duas vagas
para carros, mas um longo corredor com cerca de 8 quartos para realização de
programas. Noto pela primeira vez que há máquina para passar cartão, o que pode
facilitar o pagamento e parcelamento do programa por parte do cliente. Na entrada
há um sofá e nada que indique venda de bebidas ou espaço para socializar antes do
programa.
Acompanho uma conversa sobre os preparativos para o evento do 29 de janeiro, Dia
Nacional da Visibilidade de Travestis e Transexuais, que seria realizado no Jardim
Itatinga. Chega um amigo de Jéssica de carro que, meio acanhado, nos
cumprimenta: beijos nas outras e comigo faz questão de apertar a mão, me olha
firme nos olhos e diz se chamar Carlos. Em uma troca de frases muito rápida e
decidida, Bianca lhe pede que chame seus amigos para o evento, “porque é assim,
acontece que muitas não são lésbicas, e com o tempo vão descobrindo que são
transgênero mesmo”. Carlos ainda meio constrangido, mas simpaticamente sorri e
diz que avisará, completando “é, eu sei, tô pensando, na verdade é a Jéssica que fica
me ensinando essas coisas”. Num outro dia, pergunto para Jéssica de seu amigo
Carlos e ela diz que ele é homem trans, que o acha uma graça também, mas que ele
namora e é só seu amigo.
Já está escuro, são cerca de 20h e algumas ainda estão se arrumando para começar o
trabalho, abordando clientes. Por fim, volto para meu carro e no ponto na rodovia
avisto um grupo de travestis que espera o ônibus para ir trabalhar em outra cidade.
1 Esta longa descrição, adaptada do meu diário de campo do início de janeiro de 2015,
pretende ilustrar a imbricação entre o bairro e a prática da prostituição que é ali
realizada, com foco nas experiências de travestis com donas e suas casas de
prostituição1. Longe de somente situar a leitura, a descrição aparece como uma forma
de análise, fundamental para compreensão de como o Jardim Itatinga se estrutura e, ao
mesmo tempo, como possibilita determinadas relações na prostituição e nas vivências
das travestis profissionais do sexo que por ali moram, circulam e trabalham. Como
aponta Michel Agier “a localidade jamais é uma questão evidente, ou seja, o espaço constitui
um desafio simultaneamente prático e teórico” (2011, p. 10).
2 Com esse trecho inicial também pretendo compartilhar minha exasperação em relação
à intensa dinâmica das relações, pessoas, associações e acontecimentos no bairro.
Sempre que voltava do Jardim Itatinga, ficava com a cabeça cheia de coisas, sem saber
ao certo o que focar na escrita. Nesse sentido, explicito a ineficácia de uma
generalização ou tentativa de abarcar uma totalidade na análise do bairro, das trocas na
prostituição e das vivências de travestis ali realizadas. Marilyn Strathern, ao explorar o
efeito etnográfico, afirma que a escrita etnográfica cria um segundo campo, que deve
fazer sentido para outro público, mas mantendo uma “recriação imaginativa de alguns dos
efeitos da própria pesquisa de campo” (2014, p.346). Dessa relação complexa entre estes
dois campos, a/o etnógrafa/o não sabe de antemão o que vai ser significativo e também
não pode abarcar todos os elementos, de forma que Strathern define o trabalho
antropológico permeado por uma espécie de premonição da perda.
3 Sendo assim, no recorte deste artigo argumento que o bairro Jardim Itatinga e as
experiências de travestis na prostituição possuem uma relação inextricável e não há
como analisá-los como duas esferas separadas ou como se uma fosse somente o plano

Ponto Urbe, 20 | 2017


104

de fundo analítico da outra. Seguindo a atenção de Michel Agier para construções


identitárias, de como as pessoas fazem a cidade, “não é a identidade num sentido
substancial, abstrato, mas sim em seu sentido situacional: com que tipo de lugar, de situação, de
configuração, em dado momento, eu me identifico.” (2011, p.52). Nesse sentido, as vivências
enquanto travestis e profissionais do sexo são analisadas aqui, a partir especificamente
do bairro Jardim Itatinga e da atuação da organização política da Associação Mulheres
Guerreiras, trazida na descrição inicial. Contudo, pela movimentação das interlocutoras
e pelas suas falas, fica latente que tais vivências não são somente enquanto travestis e
profissionais do sexo, ou melhor, que nem sempre são assim categorizáveis.
4 Para tal, neste artigo será melhor detalhada a especificidade do bairro Jardim Itatinga,
que vai aparecendo como sinônimo para prostituição. Percorro um argumento circular:
partindo dos elementos da descrição inicial, trago a configuração característica do
bairro, atentando para como possibilita determinadas vivências de travestis na
prostituição; ao mesmo tempo, evidencio algumas experiências de travestis nas ruas e
nas casas de prostituição do bairro, pois estas conformam a especificidade do Jardim
Itatinga. Trata-se de um bairro periférico com uma relativa autonomia, no qual as
trocas e negociações de programas podem ser mais livremente realizadas nas ruas do
bairro, por meio da concentração de inúmeras casas de prostituição. Para melhor
esboçar esta característica, trabalho detidamente com a noção de heterotopia de Michel
Foucault. Por fim, através do caso de violência policial ocorrido no bairro em 2013,
frequente em contextos de prostituição de rua, concluo argumentando a importância
da dinâmica da prostituição para o Jardim Itatinga e para as vivências de travestis que
ali trabalham.

Heterotopia
5 A localização do bairro, entrecortado por grandes rodovias e distante do centro da
cidade de Campinas, caracteriza-o tanto com um limite geográfico relativamente
demarcado, quanto como periférico. Somam-se a isso, as descrições das calçadas, nem
sempre asfaltadas, e dos galpões de grandes extensões. Pela centralidade da
prostituição para o Jardim Itatinga, os motéis de grande extensão também contribuem
para sua especificidade. Penso sobretudo em oposição a pequenos hotéis/motéis de
centros de cidades, frequentemente usados para programas, que costumam ser visíveis
por uma escada e um letreiro luminoso, mais do que por esbanjar espaço.
6 Contudo, considerar o Jardim Itatinga como bairro periférico não necessariamente
implica que haja uma vivência de periferia por parte de suas/seus moradoras/es e
trabalhadoras/es. É justamente através da prática da prostituição ali realizada, que as
travestis conseguem juntar dinheiro para suas transformações corporais e/ou para suas
aspirações a bens e viagens. Silvana de Souza Nascimento, em seus trabalhos com
travestis no interior da Paraíba também constatou que “a prostituição atua como um
vetor, econômico e simbólico, para a transformação corporal e facilita a aquisição de variados
objetos e substâncias” (2014, p.82). No caso relatado, Márcia com o dinheiro obtido na
prostituição, conseguiu comprar em dois anos um carro 0km, no valor de cerca de 60
mil reais2 e com ele levava seu cachorro de estimação ao pet
7 shop. Márcia também já foi europeia (TEIXEIRA, 2008), tendo vivido alguns anos em
Portugal, o que lhe conferia determinado prestígio e respeito, tanto entre as outras
travestis que circulam pelo bairro, quanto pelos clientes.

Ponto Urbe, 20 | 2017


105

8 No Jardim Itatinga, os variados estabelecimentos do bairro variam em arranjos,


podendo apresentar banners ilustrativos, cobrar a entrada para shows, somente locar
quartos para programas, abrigar as profissionais como moradoras ou ainda oferecer um
espaço de socialização, com venda de bebidas. Por conta dessa variação, a centralidade
da prostituição no bairro Jardim Itatinga torna-o referência/centralidade no que
concerne essa prática. Isto também fica explícito nos discursos das travestis que
buscam moradia em casas do bairro, vindas de vários locais do país – por exemplo,
somente das citadas nessa descrição inicial, com relação aos Estados de nascimento:
Márcia e Cintia são de Goiás, Bianca de Tocantins, Miriam de São Paulo, Jéssica do
Maranhão, Lígia do Rio de Janeiro e Silvia de Mato Grosso. Em seus relatos, muitas
afirmam nem sequer conhecer o restante da cidade de Campinas, frequentando
somente o Jardim Itatinga por temporadas com objetivo de juntar dinheiro com os
programas.
9 Assim como pontua Heitor Frúgoli Jr., interessa pensar o desenvolvimento de
metrópoles a partir de centralidades, na medida em que ativam uma configuração
multipolar:
a realidade metropolitana é hoje marcada por centros ou pólos em competição, cuja
força de cada um – seja o antigo centro, sejam os subcentros posteriores – difere a
partir do dinamismo econômico, do conjunto de empresas que abarcam, das
políticas do poder público quanto ao desenvolvimento metropolitano e dos grupos
sociais que, com diferentes intuitos, situam-se nessas áreas. (2001, p.52)
10 Nesse sentido, o polo do bairro Jardim Itatinga possui um dinamismo econômico
centrado na prostituição, que impulsiona todas as outras atividades do bairro, como o
exemplo da manicure, do novo salão de cabeleireiros, do ponto de táxi e de outros
comerciantes ambulantes que percorrem as ruas do bairro. Além destas atividades, a
centralidade das casas, dos banners chamativos que indicam que são casas de
prostituição que funcionam no bairro, apontam para uma relativa autonomia deste, em
relação a outras localidades, sendo frequente o espanto de quem vai ao bairro pela
primeira vez devido a uma certa liberalidade e com a quantidade da prática.
11 Dessa relativa autonomia do bairro, o conceito de heterotopia esboçado por Michel
Foucault, se apresenta como uma profícua ferramenta analítica para pensar o bairro
com sua especificidade, mas também em relação com outros lugares e códigos. A noção
de heterotopia é fruto de uma conferência realizada em 1967 no âmbito do Círculo de
Estudos Arquiteturais de Paris, no qual discutia-se a renovação e reunificação da cidade
de Berlim (FOUCAULT: 2013a, p.33). Nesse contexto, Foucault profere “Des espaces autres
”, que será autorizado para publicação em um curto texto somente em 1984, pouco
antes de seu falecimento. Desde então, há inúmeras versões de tradução, mas
centralmente estas reverberam a proposta do autor de proceder a uma heterotopologia,
ou seja, uma análise, uma descrição sistemática “(d)esses espaços diferentes, esses outros
lugares, uma espécie de contestação simultaneamente mítica e real do espaço onde vivemos.”
(FOUCAULT, 2013b, p.116).
12 Segundo Foucault, não estamos em um vácuo onde alocamos indivíduos e coisas, mas
vivemos no meio de uma série de relações que delineiam lugares e nenhum desses é
redutível ou sobrepujado por outro. Seu interesse recai na exploração daqueles lugares
que estão em relação com outros, mas que suspendem, neutralizam, invertem e
contradizem o conjunto das relações destes (Ibid, p.115). Nesta classificação estariam:
as utopias, que não correspondem a nenhuma localização real, e as heterotopias,

Ponto Urbe, 20 | 2017


106

descritas em contraste às primeiras, correspondendo a lugares que existem e são


formados pela sociedade. Heterotopias seriam então contra-lugares, pois ao mesmo
tempo que são localizáveis, nelas se encontram representados, contestados ou
invertidos outros lugares existentes.
13 Foucault cita um espelho como exemplificação de uma experiência mista, entre utopia
e heterotopia. O espelho representaria tanto utopia, pois traz um reflexo, uma imagem
de algo que não está lá onde se vê; ao mesmo tempo que é também uma heterotopia,
porque há uma existência do espelho que torna possível o espaço que está nele
refletido, sendo que também esta existência conecta o reflexo com o restante dos
espaços, tornando-o real. (Ibid, p.115).
14 Partindo então da descrição de aspectos do bairro Jardim Itatinga, pretendo pensá-lo
como uma heterotopia e seguindo o convite acerca de realizar uma heterotopologia,
percorro os seis princípios que Foucault delineia junto a um esforço analítico de
descrição do bairro. A construção desta descrição é ao mesmo tempo a exploração e
delimitação da prática de prostituição que é realizada no bairro, uma vez que desde sua
configuração histórica, o Jardim Itatinga é considerado e buscado para tal.
15 Como primeiro e segundo princípios, Foucault aponta para capacidade de criação de
heterotopias, sendo que todas as culturas as elaborariam, de formas variadas e com um
funcionamento preciso e determinado. Os tipos variariam entre: heterotopias de crise e
heterotopias de desvio. As de crise seriam lugares privilegiados, sagrados ou proibidos,
para indivíduos em estado de crise e seriam típicos das “sociedades ditas ‘primitivas’”,
embora o autor também traga exemplos considerados atuais, como o serviço militar
para rapazes e a noite de núpcias para uma mulher recém-casada 3. Estas de crise,
estariam sendo substituídas pelas heterotopias de desvio - como casas de repouso,
clínicas psiquiátricas e prisões – nas quais seriam alocados indivíduos com
comportamento considerado desviante em relação à norma exigida.
16 Nesse sentido, o Jardim Itatinga poderia ser considerado uma localidade desse tipo de
heterotopia de desvio, por conta da prática da prostituição ter sido considerada
desviante. Foi desta consideração, que se deu a consolidação histórica do Jardim
Itatinga, bairro periférico, consolidado a partir de um articulado projeto do poder
público de Campinas, que visava confinar a prostituição fora dos limites da cidade. A
noção de desvio, revelada na criação do bairro, permeia comentários preconceituosos
que ainda ouço com relação ao Jardim Itatinga e às pessoas que nele moram e
trabalham.
17 Regina Mazzariol realizou um trabalho histórico-etnográfico que percorre a criação do
Jardim Itatinga. “Mal necessário: ensaio sobre o confinamento da prostituição na cidade de
Campinas” traz uma riqueza de dados sobre este processo que ocorreu no período de
1966 a 1968. A autora demonstra como a articulação entre polícia, imprensa e justiça
possibilitaram o confinamento da prostituição no bairro. Havia pontos de prostituição -
entendidos como lugares que possibilitam o encontro que objetiva a realização de um
programa -, espalhados por toda a cidade de Campinas.
18 Com o crescimento populacional, foi alegado um rearranjo do espaço urbano, forçando
a saída da prostituição do perímetro original da cidade. Segundo Mazzariol, a polícia,
enquanto instituição autorizada pelo Estado, ficou encarregada de contatar imobiliárias
para localizar um loteamento afastado da cidade, com cerca de 30 lotes ainda não
vendidos e sem residências fixadas. Uma vez escolhida a região do Jardim Itatinga, a
força da polícia foi acionada e por mais que fosse ilegal manter uma casa de

Ponto Urbe, 20 | 2017


107

prostituição, os policiais se encarregaram de convencer as donas das casas a adquirir os


lotes e transferir seus negócios para lá4.
19 O convencimento era incrementado pelo poder judiciário, que diante da recusa à
transferência agia com a instauração de inquérito policial por lenocínio. Esta atuação
do poder público serviu a um projeto campineiro denominado emblematicamente de
Operação Limpeza, em prol do qual bares e cortiços também foram varridos do centro
da cidade. Nesse sentido de estabelecer a alegada ordem e moral, cabe salientar que este
procedimento se deu nos primeiros anos da ditadura militar no Brasil. Segundo Diana
Helene, “o Estado utilizou o planejamento urbano como suporte burocrático do terror para
introjetar a disciplinarização no cotidiano das cidades.” (HELENE, 2012, p.2)
20 Em poucos anos o bairro Jardim Itatinga passou a ser ocupado por 70 casas de
prostituição (MAZZARIOL, 1976, p.105). Interessa aqui notar como já neste trabalho os
termos dona de casa e casa de prostituição eram adotados. De fato, neste primeiro
levantamento empírico e documental, por volta de 1973, a autora não encontra
registros de donos. Embora houvesse registros de proprietários de imóveis, central é a
figura das donas, pois são elas que atuam no gerenciamento e na relação direta com as
prostitutas.
21 Além dessa configuração histórica, o trabalho contemporâneo de Helene, na área do
urbanismo, pontua que “dados do Centro de Saúde do Jardim Itatinga indicam que trabalham
cerca de 2 mil profissionais do sexo no local, distribuídas em cerca de 200 casas de prostituição,
de pequeno, médio e grande porte” (HELENE, 2012, p.6). Como já foi apontado, variam os
arranjos dos estabelecimentos, assim como variam as negociações com as donas de
casas de prostituição.
22 Em virtude desta consolidação histórica e urbanística, em eventos públicos decorrentes
da Associação Mulheres Guerreiras, as profissionais do sexo costumam dizer: o bairro foi
feito para nós. O acionamento deste argumento da criação do bairro serve para se opor
ao estigma negativo que recai sobre o Jardim Itatinga. Nesse sentido, há uma
equiparação e parece que Itatinga é sinônimo de prostituição, ambos considerados
negativamente. Há relatos de muito preconceito, inclusive das vezes que me propus a
acessá-lo de ônibus interurbano; na volta, à noite, foram raros os que paravam no ponto
do Jardim Itatinga. Somam-se a isso as reclamações de que serviços de recapeamento
das ruas esburacadas demoram meses para se efetivar e que serviços não são
concluidos, quando o CEP do bairro é revelado para uma entrega. Cabe notar que
existem bairros mais distantes do centro da cidade de Campinas que não passam pelas
mesmas situações.
23 Sugiro então que o preconceito em relação ao bairro tem motivações que devem ser
buscadas na articulação de alguns fatores: pelo Jardim Itatinga ser um bairro afastado
da cidade, por envolver a prática da prostituição e por abrigar profissionais do sexo,
que inclui travestis, que não são consideradas de luxo. Isto porque há uma vasta gama
de serviços sexuais considerados “mais chiques e discretos”, mas que não caracterizam
o Jardim Itatinga, com suas trocas negociadas parte na rua e parte dentro dos
estabelecimentos.
24 A visão negativa sobre o bairro é também fruto de uma moralidade que desde o que
fica explícito no trabalho de Mazzariol, perpassa o imaginário, acerca da
(hetero)sexualidade de mulheres e homens. A noção da prostituição como mal necessário
parece estar fundamentada em princípios tais como: a complementaridade e o
necessário binarismo homem- mulher, a compulsão e naturalidade atribuída ao homem

Ponto Urbe, 20 | 2017


108

na sua satisfação sexual e a (im)pensabilidade de uma mulher de explorar este mesmo


aspecto de sua sexualidade.
25 Monique Wittig, ao elaborar sobre The Straight Mind (1992), explicita o poder dos
discursos e especificamente do discurso da heterossexualidade, afirmando que o
problema está nas consequências tirânicas de não se poder pensar para além dele,
resultando em violências nas mentes e corpos (p.53). A heterossexualidade então
aparece como norma e natural, “uma relação cuja característica está intrínseca na cultura,
assim como na natureza, que é a relação heterossexual. Eu a chamarei de relação obrigatória
entre ‘homem’ e ‘mulher’”. (Tradução livre, p.54)
26 Quanto a esta obrigatoriedade do par homem-mulher, cito somente dois episódios
ocorridos no Jardim Itatinga que foram marcantes nesse sentido. Na segunda vez que
fui ao bairro, sem conhecer ninguém de lá, eu estava ainda muito nervosa mas decidida
a negociar um programa, para saber como funcionavam a negociação e os valores.
Estando de carro com uma amiga e seu amigo, decidi perguntar a uma mulher quanto
ela faria o programa comigo, para depois perguntar quanto seria com o homem que nos
acompanhava. Para minha surpresa, ela corou e timidamente balbuciou olha, eu não faço
isso, mas se quiserem entrar, tem umas meninas, sei que tem umas que lá dentro fazem. Dessa
forma, vendo sua vergonha, maior que a minha, também fiquei pensando nas
moralidades e preferências desta mulher, que mesmo estando ali disposta a trabalhar,
podia manejar não fazer programas com outras mulheres.
27 Já na outra cena, também ocorrida à noite, só que mais de um ano depois desta
primeira, eu estava preparada para negociar a entrada em uma casa, das raras do bairro
que são fechadas e só se entra com carro, após negociação com os laçadores. Fui com
uma amiga e desde o começo os laçadores nos trataram de forma cordial, gesticulando e
oferecendo que entrássemos com o carro na casa. Mas ao perguntarmos quanto
cobravam, disseram que para homens seria R$10, ganhando uma cerveja, mas para nós,
podia fazer R$30, ganhando também uma cerveja. Ao indagar porque a diferença do
preço, a obviedade no tom da resposta: porque vocês são mulheres.
28 Contudo, se há essa dimensão da heterossexualidade que molda algumas relações no
bairro, há também variantes. Dentre as travestis, comentam que quase não há mulheres
que buscam programas, mas Fafá contava que quando apareciam, costumava ser por
vontade de seus maridos, e em seu caso, ela não se importaria de fazer o programa com
o casal – embora fizesse caretas ao pensar na possibilidade de fazer programa só com
uma mulher5.
29 Quanto ao segundo princípio elaborado por Foucault, intimamente conectado com o
primeiro, alega que cada heterotopia possui uma precisa e determinada função na
sociedade. Nesse sentido, a leitura que negativiza e ao mesmo tempo funda a prática da
prostituição liga-se com a noção de mantê-la das famílias. A própria ideia de mal
necessário implica no paradoxo de considerar a prostituição como um mal, mas cuja
existência deve ser garantida e manejada, pois é fundamental para produção e
reprodução da sociedade.

Ponto Urbe, 20 | 2017


109

30 A seguir, trago dois relatos de jornal com discursos semelhantes, que foram acionados
em prol do afastamento de prostitutas mulheres e travestis do mesmo espaço físico que
famílias:

(MAZZARIOL, 1976, p.16)

31 Este primeiro, publicado no Diário do Povo de Campinas em 1972, exemplifica a


indignação de uma moradora diante do trottoir de prostitutas no centro da cidade de
Campinas, no contexto da consolidação do bairro Jardim Itatinga. A separação entre
famílias, senhoras e senhoritas da mulher prostituta é tão latente que se afirma que seu
trânsito estaria proibido na presença destas últimas. Não resta dúvidas da
desqualificação moral: as prostitutas são denominadas como decaídas. Nesta reclamação
aparece também uma condescendência e naturalização dos cavalheiros à caça de
aventuras, uma vez que não são eles que constituem ameaça às famílias, mas o problema
é a confusão que fariam ao trocar prostitutas com senhoritas. Ou melhor, o problema
são as prostitutas desfilando e não (ou não também) os cavalheiros. Claramente pedindo

Ponto Urbe, 20 | 2017


110

uma intervenção policial para resolução desse problema, o relato evidencia uma
moralidade ainda bastante presente6.

(SANTOS, 2008, p.26)

32 Já esta segunda reclamação, é de abril de 2004 e foi publicada no jornal Interbairros,


com relação à presença de travestis profissionais do sexo em um valorizado bairro da
cidade de Campinas. Esse período foi marcado pelo movimento de moradoras/es do
tradicional bairro Bosque, que promoveram uma série de rechaços contra a presença de
travestis. Estas foram consideradas uma ameça às famílias do bairro e este embate
aparece cuidadosamente relatado na dissertação de Paulo Reis dos Santos (2008). Assim
como sugere Hélio Silva, há uma “potencialidade corrosiva na simples presença” (2003,
grifos do autor - p.57) das travestis nas ruas, que inclusive são referidas no masculino
neste relato do jornal.
33 O intuito da notícia era alertar para o fato de que este é um bairro onde moram famílias
com crianças e não local para prática libidinosa que se vê atualmente. Contudo, nesta notícia
aparece uma dimensão nova, em relação à anterior publicação de jornal. Há uma crítica
direta aos frequentadores ou chamados clientes, referidos também como fregueses,
marcadamente entre aspas, que tornam-se inclusive alvo de ameaça. Por serem pessoas
de alta cúpula, suas fotos poderão ser divulgadas na internet, causando assim vergonha.
Essa mudança de alvo da crítica, pode ser explicada pelo fato de que são travestis que se
prostituem. Ainda pensando em padrões idealizados de sexualidade, parece legítimo
que homens busquem o que consideram mulheres para prostituição, mas não travestis.
Como se ao buscá-las sua masculinidade fosse afetada e a prática que é considerada
corrosiva (também ou mais) para travestis, contaminasse também os homens que as
procuram; além, é claro, de afetar as famílias e crianças.
34 De qualquer forma, trazer estes dois relatos tem o objetivo de mostrar como a prática
da prostituição é considerada incompatível, mas não algo a ser completamente

Ponto Urbe, 20 | 2017


111

eliminada. Aparece incompatível com os bairros e pessoas em questão, todas alocadas e


protegidas sob a identidade de famílias, mas de alguma forma fica autorizada a prática
da prostituição, contanto que seja separada dessas famílias. Embora com uma diferença
de cerca de 30 anos, o discurso em prol da família é acionado e colocado como polo
oposto e excludente da vivência de prostitutas mulheres e travestis, indicando ideais
normativos acerca do comportamento (hetero)sexual de homens e mulheres e só estes
enquanto pares necessariamente complementares. Ademais, as duas notícias publicadas
em jornais de Campinas, tiveram consequências que levaram e reforçaram a prática da
prostituição no bairro Jardim Itatinga por parte de mulheres e de travestis.
35 O terceiro aspecto de uma heterotopia é a possibilidade de justapor em um mesmo
lugar real, espaços que por si só seriam contrastantes. Exemplos como um palco de
teatro e uma tela de cinema são acionados por Foucault, pois ilustram a possibilidade de
condensar múltiplos e incompatíveis espaços. Com relação ao que foi dito
anteriormente, da separação família-prostituição, pode-se pensar nos exemplos das
placas com os escritos “residência familiar” do Jardim Itatinga. São residências no
bairro, mas marcam uma diferença, de que são casas onde residem famílias e não são
locais onde se realizam programas, como é o caso da maioria das outras construções do
bairro.
36 A própria noção êmica de casa para um local onde se realiza um programa da
prostituição parece ser um elemento interessante para reunir a noção de família e
prostituição, sobretudo no caso das travestis, que costumam morar nessas mesmas
casas onde fazem programas.
37 Nesse sentido, há profissionais do sexo que se vangloriam de sua profissão e afirmam
que é por meio desta que conseguem criar e pagar estudos para si e para suas filhas.
Com frequência eu ouvia argumentos que indicavam a prostituição como uma forma
para mulheres de obter renda e sustentar seus filhos. Uma vez conheci Renata no ponto
de ônibus. Uma mulher negra e jovem que vinha duas vezes por semana para o bairro,
enquanto deixava seu filho com sua mãe em São Paulo. Contou de um marido francês
que teve por anos e disse que até gostava dele, mas que era uma situação cômoda,
vendo-o somente duas vezes ao ano. Ela se organizava para se deslocar e ir trabalhar no
Jardim Itatinga, no horário das 8 às 18h dizendo que preferia não morar lá, pois ficar
sempre no bairro era prejudicial e acomodante, pelo dinheiro ganho, de forma que
muitas de suas amigas nem pensavam em sair. Conheci também Lurdes, mulher branca,
que após ter se divorciado do marido, já com seus quase quarenta anos, encontrou na
prostituição uma forma de sustento. Com o mesmo perfil, Mirtes me contou que era
casada e seu marido não a deixava trabalhar fora. Com o falecimento dele, ela se viu
diante de filhos para criar e sem saber fazer nada, começou assim a trabalhar no Jardim
Itatinga.
38 No caso destas poucas mulheres que pude conhecer no Jardim Itatinga, esta relação
com a família, especificamente (com o fim do) casamento com homens, parecia ser um
motivador do início na prostituição. Assim como são comuns casos nos quais, ao se
casar, elas deixam de realizar programas ou reduzem a frequência. Mais do que
excludentes, arranjos matrimoniais e trabalho na prostituição constituem um
“continuum”, sobretudo considerando quando as parcerias afetivo-sexuais são também
donas ou donos de casas de prostituição. Dessa forma, no Jardim Itatinga a justaposição
de arranjos familiares, matrimoniais e arranjos de trocas na prostituição se combinam,

Ponto Urbe, 20 | 2017


112

de forma a questionar esta separação, aproximando os polos do construído binarismo


“santa X puta”7.
39 Outro exemplo de coexistência de valores contrastantes no mesmo lugar, que
apontaria para o Jardim Itatinga como heterotopia, pode ser expresso pelos espaços do
CEPROMM. Esse Centro é uma ONG criada em 1993, ligada à Pastoral da Mulher
Marginalizada, com sede no bairro e que tem uma perspectiva de salvação das
profissionais do sexo8. A existência e atuação desta instituição no bairro é curiosa, pois
com o intuito de salvar as pessoas em situação de prostituição, acaba proporcionando um
serviço de creche para filhas/os das profissionais e possibilitando eventos que
dinamizam as vidas das pessoas nesta prática. Tais serviços e eventos são apropriados
pelas profissionais do sexo do bairro, que se aproximam do espaço, mas não dos
objetivos do CEPROMM.
40 Complementar a este movimento de ressignificação que valoriza a prostituição, há a
luta de Betania Santos, e mantenho seu nome por reconhecimento e admiração pela sua
militância pública. Sua trajetória é interessante, tendo começado seus estudos por
conta desta Pastoral e brincando com o jogo de palavras, diz que é filha da Pastoral. De
início, fazia trabalhos alinhados com a ideia de tirar as mulheres em situação de
prostituição. Mas continuando a realizar programas e alegando que possui mestrado e
doutorado em putaria, Betania é hoje uma fundamental impulsionadora da Associação
Mulheres Guerreiras. Seus anseios são diferentes: enquanto o CEPROMM pretende
combater a prostituição – equiparada com exploração sexual; Betania reivindica
melhores condições para realização de seu trabalho – exigindo por exemplo:
diminuição da burocracia na retirada de preservativos, distribuição efetiva de
lubrificantes e facilitação da administração do coquetel, quando estouram camisinhas.
São serviços parcialmente efetivados no Posto de Saúde, que foi criado no bairro e é
uma das conquistas da Associação. Quanto a estes objetivos diferentes, Laura Agustín
afirma que o impulso de quem quer ajudar, pode ser controlador e incompatível com os
desejos de quem migra e/ou se dedica ao trabalho sexual (2005, p.121)
41 O quarto princípio esboçado por Foucault assegura que as heterotopias também
estariam em relação com recortes do tempo, chamados de heterocronias, como se um
espaço heterótopo também apresentasse uma passagem do tempo mais característica,
numa articulação complexa entre espaço e tempo. Bibliotecas e museus seriam
exemplos, por refletirem uma acumulação de tempo em um mesmo espaço, ao passo
que festas também são citadas, de forma oposta, nas quais em um curto período de
tempo haveria acúmulo de lugares.
42 Diante deste aspecto com relação a um tempo particular, Foucault cita também casas
de prostituição. Esse exemplo se encontra na versão traduzida pela Editora n-1,
argumentando que “casas de tolerância” seriam heterotopias, uma vez que o horário de
início de trabalho seria às seis horas da tarde (2013a, p. 26), contrastando com a lógica
do usual horário comercial.
43 O Jardim Itatinga, enquanto uma condensação de casas de prostituição, pode muito
bem ser pensado com uma passagem do tempo característica, já que seu movimento
funciona 24 horas, com alternância de profissionais do sexo e clientela. O movimento
intenso mesmo durante o dia, aponta para uma especificidade da passagem do tempo
no bairro. De dia e à tarde, os clientes costumam ir de forma mais pontual, com pouco
tempo e com a intenção da realização de um programa. Não raro, enquanto eu ficava

Ponto Urbe, 20 | 2017


113

conversando, uma ou outra logo negociava com um carro e rapidamente voltava, depois
de um programa encerrado em 20 minutos.
44 Desde a primeira vez que fui ao bairro, fiquei impressionada com a quantidade de
carros de empresas, daqueles com escadas em cima, que entregam e realizam serviços,
frequentes pelas ruas do bairro no período de manhã e tarde. Além de carros de
manutenção de serviços, caminhões, motos e homens quase sempre sozinhos. É comum
ouvir que elas preferem fazer programas de tarde, pois são mais garantidos, mas nem
todas, sobretudo as travestis, se sentem à vontade para circular durante o dia – embora
o bairro garanta mais segurança do que outros pontos de rua. Isto porque é recorrente
em etnografias junto a travestis apontar para sua circulação noturna, por receio de
violências recorrentes à luz do. Esta vivência da e na noite é tão marcante que o
trabalho de Hélio Silva o reproduz na organização de seu livro (2003), trazendo
primeiro as cenas de tarde, depois de noite e só por fim, durante o dia, apontando para
especificidade das vivências travestis na prostituição.
45 A noite do Jardim Itatinga, ao contrário do dia, é mais atrativa para grupos de jovens,
para beber, flertar, ouvir música e não necessariamente realizar um programa. De
qualquer forma, independente de período de férias e feriado o Jardim Itatinga não tem
seu movimento muito alterado, sendo sempre bastante buscado para realização de
programas. Em um dia de frio e chuva, perguntei a uma comerciante de um bar se o
movimento caía por isso, mas ela categoricamente afirmou que não mudava nada.
Segundo ela, a variação do movimento tem a ver com final de semana, sempre mais
cheio, e sobretudo com o dia de pagamento. Isto aponta para uma determinada
clientela de trabalhadores assalariados - embora carros luxuosos de clientes também
transitem pelo bairro. Trabalhadores assalariados que recebem no começo do mês
compõem a maioria dos carros de clientes, fazendo com que o bairro fique mais
frequentado quando recebem salário e isto conforma uma lógica de funcionamento que
aproxima a passagem de tempo no bairro com as lógicas de fora dele.
46 Outro exemplo dessa conexão com o tempo fora do bairro pode ser lida pela fraca
movimentação durante os jogos do Brasil na Copa do Mundo de 2014. Durante o jogo
que assisti no Jardim Itatinga, quase não passaram veículos e ao perguntar para Fafá se
ela já havia visto o bairro tão deserto, ela alegou que isso só havia ocorrido no final de
semana de violência policial. Somente o jogo de estreia da Copa foi considerado um
sucesso pelas profissionais do sexo, comentando que tinha até fila na porta. Mas os
seguintes ficaram somente como promessa de muitos clientes. Algumas alegaram que
iriam para São Paulo, em busca de alguns programas, já que Campinas não estava
atraindo estrangeiros.
47 Toda a movimentação anterior e durante os jogos da Copa do Mundo não parecia
destoar do restante dos lugares, havendo uma proliferação de venda de camisetas da
seleção e itens com as cores verde e amarela. Em sua apresentação nas ruas do bairro,
muitas aderiram a algum item – sandália, blusa, calcinha, corneta – agenciando seu
capital corporal na negociação do programa. Durante o jogo que assisti no bairro, nos
reunimos em um boteco, e Marcia e as demais postavam na internet uma infinidade de
fotos tiradas ao longo dos minutos do jogo. Ficamos reunidas diante de uma tv de tela
média e imagem chuviscada, participando de um bolão (do qual não acertei o resultado
da vitória de 4x1 da seleção brasileira sobre Camarões). Enquanto uma ou outra ficava
meio à espera de clientes, dos raros carros que passaram durante o jogo, nenhum
parou. Houve quem me dissesse que haveria clientes em busca de companhia para

Ponto Urbe, 20 | 2017


114

assistir aos jogos, o que não parece incomum pelos relatos de que além do prazer
encontrado nas mais diversas formas de fetiche, muitos homens procuram um
programa, querendo simplesmente companhia e nesse sentido as profissionais
atribuem a si mesmas a função de psicólogas do amor (SOUSA, 1998, p. 118 – 119).
48 Quanto ao quinto princípio das heterotopias, Foucault afirma que apresentam um
sistema de abertura e fechamento, tornando-se lugares igualmente isolados e
penetráveis. Um exemplo trazido pelo autor é o9 de motel, no qual pode-se entrar de
carro com a amante, realizando um sexo considerado ilícito, mas de forma garantida e
consentida (2013b, p.120). Em outra versão de tradução, há explicitamente o exemplo
de uma casa de tolerância, pois justamente enseja o paradoxo de ser um local onde fervor
se emana e um sexo igualmente considerado ilícito pode se concretizar (2013a, p.28).
49 Esta característica de uma certa liberalidade própria de um determinado espaço, pode
ser pensada no Jardim Itatinga através da proliferação de estabelecimentos
visivelmente destinados à prostituição, uma vez que ainda constam criminalizados
perante a legislação brasileira. De fato, a expressão unânime de todas as pessoas que
passam pelo bairro pela primeira vez é de espanto, perante a normalidade com a qual as
mulheres e travestis ficam nas calçadas em seu trato com clientes. A enorme
quantidade, variabilidade e visibilidade dos estabelecimentos também proporciona esse
aspecto de uma realidade apartada do restante.
50 O sexto e último princípio esboçado por Foucault quanto à heterotopia situa esta como
local que se relaciona com o espaço restante, apresentando determinada função. Ou
trata-se de uma heterotopia de compensação, que cria um lugar extremamente
meticuloso, para apontar como os demais são caóticos, ou pode ser uma heterotopia de
ilusão, que cria um espaço de contestação de outros espaços reais – quanto a este tipo,
novamente citam-se casas de tolerância.
51 A própria denominação enquanto casas de tolerância remete à ideia de mal necessário, já
argumentada, acerca da prostituição ser estigmatizada. A separação do bairro Jardim
Itatinga em relação à cidade de Campinas e a demarcação das “residências familiares”
são exemplos disto e apontam para as oposições entre espaço público X privado, família
X social. Nesse sentido, Foucault sugere que nossa noção de espaço talvez não tenha
sido completamente dessacralizada:
talvez, nossa vida ainda seja comandada por um certo número de oposições nas
quais não se pode tocar, e que a instituição e a prática até agora não ousaram
atacar: oposições que admitimos como inteiramente dadas – por exemplo, entre o
espaço privado e o espaço público, entre o espaço da família e o espaço social, entre
o espaço cultural e o espaço útil, entre o espaço de lazeres e o espaço de trabalho;
todas elas são animadas ainda por uma surda sacralização. (2013b, p.114)
52 São estas oposições que ao mesmo tempo apartam e aproximam o bairro do restante de
lógicas e códigos. Não só as casas de prostituição, mas todo o bairro Jardim Itatinga
apresenta esta relação com o entorno, de relativa autonomia.

Violência policial
53 Se por um lado há esta lógica própria do Jardim Itatinga, também há essa constante
relação com o entorno, que ficou mais evidente para mim, sobretudo por conta da já
mencionada violência policial que ocorreu no bairro em outubro de 2013 10. A reunião
que ocorria no relato inicial, impulsionada pela Associação Mulheres Guerreiras, tinha

Ponto Urbe, 20 | 2017


115

o objetivo de continuar o diálogo sobre as ações legais tomadas contra este episódio
ocorrido no bairro por um final de semana inteiro. Após a morte de um sargento no
bairro vizinho, policiais militares foram ao Jardim Itatntiga na sexta-feira à noite e
abordaram de forma violenta moradoras/es e trabalhadoras/es, impedindo que
circulassem pelas ruas do bairro. Dentre relatos de cárcere privado e toque de recolher,
policiais militares também sitiaram o bairro por três dias, impedindo que serviços
fossem entregues no bairro e que clientes acedessem a ele 11.
54 De acordo com o que já foi descrito, as ruas do bairro figuram como locais importantes
para negociação do programa, sobretudo porque os clientes chegam quase que
exclusivamente em veículos. A importância econômica das casas e da prostituição
realizada em parte nestas e em parte nas ruas do bairro é tamanha, que interromper
esta movimentação foi alegado como modo de fazer com que as pessoas falassem o que
sabiam sobre a morte do sargento.
55 Segundo Márcia:
Márcia: Nunca tinha visto, nunca tinha nem presenciado, de você ser presa dentro
de casa, de não deixar você sair e ser agredida verbalmente e até fisicamente.
Entraram nos quartos, reviraram tudo. Tinham assassinado um sargento. [...] Eu não
fui agredida porque eu O- BE-DE-CI, né.
L: Qual era a ordem?
Márcia: De entrar pra dentro e não sair pra nada, de não ir pra lugar nenhum, então
eu assim, eu não fui agredida fisicamente, mas verbalmente eu fui, porque eu tava
saindo pra comprar coisas no mercado e eles falaram pra mim entrar pra dentro,
que se não ia enfiar o cassetete no meu cu, já que é o que eu tava querendo e não sei
o que... Então pra mim isso é agressão. Que ia enfiar na minha boca, não só pra mim,
pra todas as outras aqui de casa.
56 Márcia, ao contar da ameaça do cassetete no seu cu, não só pra ela, mas também pras
outras travestis, demonstra que a abordagem policial com elas pode ser ainda mais
carregada de preconceitos e possui uma especificidade caracterizada como transfobia.
Na continuação da entrevista, ela revela uma noção aguçada do (des)serviço policial,
quando trata-se de travestis na prostituição de ruas:
L: E o que você acha da polícia?
Márcia: Acho eles uns idiotas, uns fdp. Assim, sabe o que que eu acho ruim? Que a
gente tem medo de pessoas que tão ali na sociedade pra poder proteger a gente.
Então eu vou ter medo de uma pessoa, eu tenho medo da lei.. não da lei, mas das
pessoas que servem à lei. Eu não, a gente tem... (Entrevista realizada dia
22/04/2014)
57 Luana, que também estava presente durante o ocorrido, contou que o bairro ficou
sombrio, só com a circulação de policiais e as luzes dos postes, referindo-se à ausência
do rotineiro movimento de carros de clientes, que iluminam e enchem as ruas. Dentre
os resultados da violenta abordagem policial, ocorreram ofensas verbais, xingamentos
contra um casal de lésbicas que gerencia um bar, quebra dos braços de uma prostituta
estrangeira e um tiro disparado. O toque de recolher configurou uma situação de cárcere
privado, bem como foi relatado por uma moradora, que alegou não poder nem sair nas
ruas, ao aviso dos policiais dizendo que enquanto não achassem o culpado, ninguém
poderia trabalhar.
58 Isto se refere à enorme quantidade de comércios variados que coexistem no bairro e
segundo esta moradora isso aqui é uma pirâmide, um depende do outro. Em seu caso, ela e
seu marido possuem barraquinhas que vendem comidas e sua mãe cuida de crianças das
meninas que trabalham e também lava suas roupas. Reafirmando essa dependência entre

Ponto Urbe, 20 | 2017


116

as/os moradoras/es do bairro, ela comentou que estas meninas teriam ficado também
sem comer, uma vez que entregadores não podiam adentrar o bairro e nas ruas onde
elas geralmente comem nessas barraquinhas, não se podia ficar. Por este motivo, ela e
sua mãe, que moram numa dessas casas com escrito “residência familiar” também
participaram da manifestação de protesto ocorrida na rodovia.
59 Na segunda-feira, terceiro dia no qual o Jardim Itatinga amanheceria com as pessoas
sem poder circular, ocorreu a decisiva atuação das pessoas do bairro, que ocupando as
pistas da Rodovia Santos Dumont, interromperam o trânsito de veículos. Com o objetivo
de chamar atenção para violência em curso essa atuação fez com que aos poucos o
movimento e as atividades fossem retomadas no bairro.
60 A ideia de pirâmide relatada revela-se na quantidade de serviços que existem no bairro,
que funcionam em relação direta com as pessoas e com os estabelecimentos envolvidos
com a prostituição. As profissionais do sexo são também consumidoras de comida,
oferecidas em estabelecimentos ou em barraquinhas e são também ávidas compradoras
de roupa e produtos de beleza. Aparece então, outro lado do negócio que movimenta o
bairro: além dos estabelecimentos para realização de programas, há o Posto de Saúde,
salões de beleza, postos de gasolina, ponto de táxi, mercados, lojas de roupa, estúdio de
tatuagem, consultório de dentista, consultório de psicanalista e ambulantes que
prestam diversos serviços - como aqueles que possuem um ponto mais ou menos fixo
em uma esquina ou aqueles que percorrem as ruas vendendo algo. Há a venda de
produtos tanto para os clientes quanto para as profissionais do bairro, para as quais já
presenciei a venda de dvds piratas, roupas, calçados, doces, salgados e produtos de
beleza e farmácia.
61 Estes últimos merecem especial atenção uma vez que no bairro não há uma farmácia e
todos os produtos são revendidos a preços absurdamente mais caros. Já constatei carros
de marcas de produtos de beleza, com suas revendedoras que paravam na frente de
cada casa de prostituição, oferecendo-os para as profissionais do sexo. É a dinâmica de
trabalho das profissionais do sexo que faz com que produtos e serviços sejam
negociados nas ruas, de porta em porta e talvez isso justifique os preços abusivos. Um
maço de cigarros que é normalmente vendido a cerca de R$ 6,00 é lá revendido a
R$10,00. Márcia diz saber que os preços dos produtos que compram no bairro, como
hidratantes, são muito mais caros, mas alega que é mais prático do que se deslocar para
comprá-los.
62 Outro serviço frequente nas calçadas, em frente às casas de prostituição é o de
manicure. Uma vez participei de uma conversa interessante com uma manicure, uma
senhora branca, com seus cabelos curtos também brancos e óculos de grau. Enquanto
fazia as unhas de Betania, falavam sobre valores de seus lucros. Betania comentava
sobre sua tentativa de abrir um salão de beleza, mas que fazer uma escova demorava 2
horas e só valia R$ 40,00, ao passo que um programinha de meia hora lhe rendia R$ 50,00.
Afirmava que enquanto profissional do sexo ganhava muito mais e a manicure também
aproveitou para dizer que só trabalhava no Jardim Itatinga e isso lhe rendia muito
dinheiro – sendo que ao levantarem os valores, o da manicure correspondia à metade
do lucro da profissional do sexo. Esta senhora também alegou que por seu trabalho no
bairro ela via cada coisa que lhe fazia pensar que homem não presta mesmo e por isso ela
contava não ter se casado.
63 Outra manicure, Virgínia, que apareceu na descrição inicial, costumava fazer as unhas
de muitas travestis do bairro. Ela me contou que foi trabalhar no Jardim Itatinga pois

Ponto Urbe, 20 | 2017


117

não queria mais ficar com seu marido. A única alternativa era sair de sua cidade de
origem e já em Campinas apareceu a oportunidade de trabalhar no bairro, o que ela
dizia ter sido assustador no começo. Há 17 anos Virgínia trabalhava ali como manicure
e vendedora de produtos rendados, alegando que passou a gostar muito do bairro e de seu
trabalho, até porque por meio disto havia conseguido comprar seu carro. Negra e
evangélica, enfatizava que havia justificado para seu pastor o fato de trabalhar no
Jardim Itatinga. Em sua conversa aparecia constantemente essa forma de se justificar,
jogando com o estigma e preconceito associados ao bairro, assim como uma certa culpa
por sua filha ter trabalhado lá como profissional do sexo. Virgínia se culpava, pois havia
largado seu marido, trazendo sua filha para morar com ela no bairro. No começo, sem
nada, dormiam em um colchão no chão, e aos poucos ela foi juntando dinheiro, até
conseguir morar do outro lado da rodovia, no bairro vizinho. Sua história contada em
tom de superação se combinava com uma progressiva aceitação das pessoas do bairro,
afinal relatadas como amigas, e pelas quais se dizia agradecida, fazendo entender melhor
a profissão da filha. Enfaticamente contou que sua filha escolheu ser profissional do sexo,
embora tenha se casado, largando a profissão e o bairro.
64 Portanto, a análise aqui proposta pretendeu descrever e analisar a prática da
prostituição, realizada especificamente por travestis, sugerindo seu caráter laboral por
ser realizado em estabelecimentos comerciais próprios ao bairro. As vivências de
travestis, de profissionais do sexo e no Jardim Itatinga se equiparam, demonstrando a
necessidade de uma análise que não foque somente uma dessas dimensões, mas que as
considere em relação. O caráter relacional foi também esboçado para o bairro, pela sua
relativa autonomia na qual trocas sexuais são aberta e diariamente realizadas em suas
ruas. Considerando então a violência ocorrida no Jardim Itatinga, o movimento deste
artigo pretendeu perpassar e extrapolar a noção do bairro, abordando vivências que
remetem (mas não só) ao trabalho na prostituição e abordando trocas econômico-
sexuais engendradas na prática da prostituição.

BIBLIOGRAFIA
AGIER, Michel. Antropologia da cidade: lugares, situações, movimentos. São Paulo: Editora Terceiro
Nome, 2011.

AGUSTÍN, Laura M. La industria del sexo, los migrantes y la familia europea. In:

Cadernos Pagu (25), 2005.

FOUCAULT, Michel. O corpo utópico; As heterotopias. São Paulo: n-1 Edições, 2013a.

. De espaços outros. Revista Estudos Avançados vol.27, n79. 2013b.

FRÚGOLI JR, Heitor. A questão da centralidade em São Paulo: o papel das associações de caráter
empresarial. Rev. Sociol. Polít., Curitiba, 16, 2001.

HELENE, Diana. “A invenção do Jardim Itatinga: o planejamento urbano e a Prostituição”. 28 a


Reunião Brasileira de Antropologia, 2012, São Paulo.

Ponto Urbe, 20 | 2017


118

MAZZARIOL, Regina Maria. Mal necessário: ensaio sobre o confinamento da prostituição na cidade de
Campinas. Dissertação de mestrado, Unicamp, 1976.

MCCLINTOCK, Anne. Couro Imperial; raça, gênero e sexualidade no embate colonial. Campinas, Editora
da Unicamp, 2010.

NASCIMENTO, Silvana de S. “Corpo-afeto, corpo-violência: experiências na prostituição de


estrada na Paraíba”. Revista Ártemis, Vol. XVIII nº 1; jul-dez, 2014.

PELÚCIO, Larissa. Abjeção e desejo: uma etnografia travesti sobre o modelo preventivo de aids.
2009

SANTOS, Paulo Reis dos. Entre necas, peitos e picumãs: subjetividade e construção identitária das
travestis do Jardim Itatinga. Unicamp, 2008.

SILVA, Hélio. Travesti: a invenção do feminino. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1993.

SKACKAUSKAS, Andreia. Prostituição, gênero e direitos: noções e tensões nas relações entre
prostitutas e Pastoral da Mulher Marginalizada. UNICAMP, 2014.

SOUSA, Francisca Ilnar. O Cliente: o outro lado da prostituição. Fortaleza, AnnaBlume, 1998.

STRATHERN, Marilyn. O efeito etnográfico e outros ensaios. São Paulo: CosacNaify, 2014.

TAVARES, Aline G. C. A organização da Zona: notas etnográficas sobre relações de poder na zona
de prostituição Jardim Itatinga, Campinas –SP. Unicamp, 2014.

TEIXEIRA, Flávia B. L’italia dei divieti: entre o sonho de ser europeia e o babado da prostituição. In:
Cadernos Pagu (31), 2008.

WITTIG, Monique. The Straight Mind: and other essays. 1992.

ZANZOTTI, Maria Isabel. Nas margens do corpo, da cidade e do estado: educação, saúde e
violência contra travestis. Usp, 2015.

NOTAS
1. Este artigo é um recorte, adaptado de um capítulo da minha dissertação de mestrado As
corajosas: etnografando experiências travestis na prostituição (2015).
2. Saliento que os valores correspondem a janeiro de 2015 e que todos os nomes das pessoas
foram aqui transmutados, tanto para preservá-las, quanto pelo entendimento do caráter ficcional
dos textos antropológicos.
3. Neste curto texto, as noções de cultura, sociedades ditas ‘primitivas’ não aparecem bem pontuadas
e são contrastantes com a abordagem antropológica deste artigo, mas a conceitualização de
heterotopia parece válida para o exercício aqui proposto.
4. Não será possível aprofundar aqui o debate e a situação paradoxal de semilegalidade da
prostituição, mas cabe indicar que o trabalho de profissional do sexo é garantido pela
Classificação Brasileira de Ocupações, ao passo que há ainda a criminalização de casas de
prostituição e de quem as gerencie.
5. Há uma grande discussão quanto à heterossexualidade das travestis e dos clientes que as
buscam, como traz com atenção Larissa Pelúcio, ao analisar os T-lovers (2009). Contudo, muitas
vezes ouvia delas que quanto à sexualidade, consideravam-se gays mesmo. Luana uma vez foi
categórica ao dizer: sou gay ué, gay é mais geral, já dá pra entender e depois vem que sou travesti.
6. Esta moralidade que perpetua a separação entre mulheres de família e mulheres prostitutas,
liga-se com uma ideia de degeneração atribuída a mulheres que trocam serviços sexuais por

Ponto Urbe, 20 | 2017


119

retribuições financeiras. Um exemplo disto encontra-se no PL377/2011 – que tipifica o crime de


contratação de serviço sexual. Proposto pelo deputado federal, pastor evangélico e delegado de
polícia João Campos do PSDB/GO, a justificativa alegada neste projeto centra-se na ideia da
prostituição como contrária à “integridade sexual”. http://www.joaocampos.com.br/
pl-3772011/
7. Contudo, a noção de puta, com toda essa carga negativa e distante da noção de família pode e é
muitas vezes reproduzida mesmo pelas que realizam programas, sugerindo uma distinção ente
puta e profisisonal do sexo. Lembro-me sobretudo de uma mulher que contava do seu trabalho no
Jardim Itatinga, recebendo 90% dos homens que eram casados, mas que fora dali, ela não se
relacionava assim. Transparecia de alguma forma a recriminação moral do comportamento
sexual de mulheres que se envolveriam com homens casados.
8. Parte da visão desta instituição consiste em “ser um centro de excelência e referência de
prevenção à prostituição e combate a violência, ao abuso e à exploração sexual”. Ver mais em:
http://www.cepromm.com.br/quem-somos/. Para uma análise detalhada dos discursos e da
atuação da Pastoral da Mulher Marginalizada junto às prostitutas ver (SKACKAUSKAS, 2014)
9. parece improvável entrar de carro num quarto.
10. Para mais informações sobre este ocorrido, ver também TAVARES, 2014 e ZANZOTTI, 2015.
11. Na época do ocorrido, os policiais abordaram violentamente também outros dois bairros
periféricos e próximos de onde ocorreu a morte do sargento - DIC I e Ocupação Joana D’arc – mas
a abordagem que durou pelo final de semana inteiro ocorreu somente no Jardim Itatinga. A
Câmara Municipal de Campinas, ao chamado do vereador Carlão do PT e de Paulo Mariante (PT)
do Conselho de Direitos Humanos de Campinas, reuniu relatos dessa violência policial ocorrida
nestes três bairros e levou adiante uma ação no Ministério Público - http://
cartacampinas.com.br/2013/11/vitimas-da-violencia-policial- relatam-casos-na-camara-
municipal-de-campinas/. Foi ter participado desta reunião, ouvindo variados relatos da atuação
violenta e preconceituosa dos policiais em todos os níveis – contra prostitutas, travestis, negros,
pobres - que ficou clara para mim uma dimensão do bairro a ser pensada de maneira semelhante
a outros bairros, podendo entendê-lo como periférico. Ficou latente também a necessidade de
fazer esta análise de maneira interseccional, por meio da articulação de marcadores sociais da
diferença, tais como raça, classe, gênero e sexualidade (MCCLINTOCK, 2010).

RESUMOS
Neste artigo o exercício descritivo é também abordagem metodológica e objetivo analítico. Em
diálogo direto com a noção de heterotopia de Michel Foucault, o bairro vai se apresentando como
tal, em uma particular relação de autonomia e ligação com outros espaços. Desse exercício, vai se
delineando a conformação do bairro relacionada à prática da prostituição, em arranjos de
estabelecimentos diversos e focando na prática de travestis que lá realizam programas. A
centralidade da prostituição para o bairro fica evidente também pelo relato de violência policial
ocorrida em 2013 como forma de retaliação, suspendendo as atividades econômicas. O argumento
percorrido é da indissociabilidade analítica quanto às vivências de travestis, enquanto
profissionais do sexo e especificamente no bairro Jardim Itatinga (Campinas -SP).

In this article the descriptive exercise is also the methodological approach and the analytical
objective. In direct dialogue with Michel Foucault's notion of heterotopia, the neighborhood

Ponto Urbe, 20 | 2017


120

presents itself as such, in a particular relationship of autonomy and connection with other
spaces. From this exercise, the conformation of the neighborhood related to the practice of
prostitution in varied business arrangements is outlined and focusing on the practice of travestis
who conduct sex work there. The centrality of prostitution in the neighborhood is also evident by
the report of police violence in 2013 as a form of retaliation, suspending economic activities. The
argument is based on the analytical indissociability regarding the experiences of travestis, as sex
workers and specifically in the neighborhood of Jardim Itatinga (Campinas -SP).

ÍNDICE
Keywords: Urban Anthropology, Prostitution; Travesti, Heterotopia, Police Violence
Palavras-chave: Antropologia Urbana, Prostituição, Travestis, Heterotopia, Violência Policial

AUTOR
LETIZIA PATRIARCA
Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade de São Paulo
(PPGAS/USP).
e-mail: patr.letizia@gmail.com

Ponto Urbe, 20 | 2017


121

Santos, vadias e fetos


Manipulações políticas de imagens religiosas no Brasil contemporâneo

Renata de Castro Menezes

NOTA DO AUTOR
Este trabalho foi sistematizado durante um estágio sênior como Visiting Scholar no
Center for Religion and Media, NYU, de 2015 a 2016, com financiamento de uma bolsa
da Capes, a quem agradeço.

O que foi separado ritualmente pode ser restituído, mediante o rito, à esfera profana
(...). Há um contágio profano, um tocar que desencanta e devolve ao uso aquilo que o
sagrado havia separado e petrificado (...). Profanar não significa simplesmente abolir e
cancelar as separações mas aprender a fazer delas um uso novo, a brincar com elas (...).
A profanação do improfanável é a tarefa política da geração que vem (Agamben, 2007,
p. 66, 75, 79)

Preâmbulo
Este artigo passou por um longo processo de fermentação, no qual seus contornos e
propósitos foram se redefinindo em uma sucessão de apresentações 1, apesar de manter
as características de um ensaio. O evento em que ele se baseia – a performance
iconoclasta realizada por um coletivo porno-terrorista, o Coletivo Coiote, na Marcha das
Vadias, em 27 de julho de 2013, no Rio de Janeiro, e suas repercussões – passou, no
percurso, por diferentes apropriações. Inicialmente ele foi apresentado em diálogo com
outro evento, a VI Caminhada pela Diversidade Religiosa (realizada também no Rio de
Janeiro, em 08 de setembro do mesmo ano), para demonstrar como, nesses dois rituais
políticos, a categoria intolerância religiosa (uma forma relativamente recente de
qualificar conflitos de cunho religioso, cuja gênese precisa ser melhor compreendida),
era posta em operação, sendo incorporada como mais um tema na pauta da luta por

Ponto Urbe, 20 | 2017


122

direitos. Tratava-se então de pensar os processos sociais pelos quais uma categoria
política seria performada e adquiriria força e concretude.
Mas o caso dos santos e das vadias foi tornando-se autônomo ao ser associado a
reflexões anteriormente desenvolvidas sobre o tema das materialidades religiosas
(Menezes, 2011; 2013). Trata-se de tomá-lo quanto aos efeitos das manipulações
políticas de imagens religiosas, principalmente aquelas de caráter transgressivo;
manuseios que pretendam de alguma forma atacar o poder dessas imagens, mas que
esbarrem em sua força. Portanto, é sobre a complexidade da transgressão à imagem
religiosa com fins políticos que o artigo versa.
A ideia de manipulação assume aqui seu sentido menos maquiavélico, isto é,
“manipular” é entendido como sinônimo de “mexer com as mãos”, “manusear”, numa
aproximação à noção de técnica manual, afastando-se de outros sentidos
dicionarizados, como os de “um condicionamento em proveito próprio”, ou de “uma
adulteração”. Já a noção de evento aproxima-se das abordagens manchesterianas de
situação social, ou, como proposto por Bruce Kapferer, de evento crítico:
The approach to the event discussed here is one that goes beyond conventional
perspectives of the event as representational of the social or of society and, instead,
as a moment or moments of immanence and the affirmation and realization of
potential. (…) The social or society in this perspective is not a closed totality
representable in the event that if it expresses its world, it is also a force in its
making, going beyond what it might be said to represent. (Kapferer, 2010, p. 2).
Concordando largamente com autores próximos à Escola de Manchester como Max
Gluckman, Clyde Mitchel, Jaap Van Velsen e Victor Turner, embora revisitando-os a
partir de abordagens pós-estruturalistas, como as de Gilles Deleuze e Félix Guattari e
Alan Badiou, Kapferer reforça a utilidade da análise calcada em uma situação de crise
por seu caráter revelador de forças em interação no mundo social:
That is, they were moments in which the intransigencies and irresolvable tensions
ingrained in social and personal life (the two being inseparable) boiled to the
surface and became, if only momentarily, part of public awareness for the
participants as well as for the anthropologist.
The methodological value that the Manchester group placed on events—
specifically, events of conflict and contestation and not just any event or act or
practice—was that they revealed what ordinary and routine social practices of a
repeated, ongoing kind tend to obscure (Kapferer, 2010, p. 3).
Como nos lembra ainda o autor, eventos críticos não apenas revelam forças e padrões já
existentes, mas são também momentos que permitem a irrupção do novo, do até então
impensável, do surpreendente, do desestabilizador. É sob essa perspectiva de eventos a
partir dos quais o novo pode irromper, ou nos quais podemos justamente testemunhar
a dificuldade dessa irrupção, que se justifica essa análise.
A apropriação do evento das vadias será um exercício do que foi chamado em outro
trabalho de um jogo de percurso (Menezes, 2013), parafraseando a ideia de Jacques Revel
de jogos de escala. Revel, na introdução de seu livro de 1996, enfatiza que a opção por
escalas de análise mais ou menos amplas produzem resultados diferentes. Não apenas
mais ou menos restritos, mas bastante diferentes:
A escolha de uma escala particular de observação produz efeitos de conhecimento, e
pode ser posta a serviço de estratégias de conhecimentos. Variar a objetiva não
significa apenas aumentar (ou diminuir) o tamanho do objeto, significa modificar
sua forma e sua trama. (REVEL,1996: 20).

Ponto Urbe, 20 | 2017


123

Diante dessa proposta de jogos de escala que reconstroem um objeto de estudo, defende-se a
existência de efeitos de conhecimento e de reconstrução do objeto produzido por jogos
de percurso. Um percurso de pesquisa geralmente produz uma sequência de questões,
junto à incorporação das problemáticas e de um léxico contidos na literatura de um
determinado campo de discussões, provocando uma espécie de encadeamento, que se
desenvolve num sentido específico. Se esse encadeamento por um lado facilita a
discussão, por outro pode condicioná-la. O diálogo entre pessoas com trajetórias de
pesquisa diferentes, em espécies de jogos de percurso, tornaria possível, a meu ver, obter
um rendimento peculiar, num processo que contribuiria para desmontar doxas, para
encontrar novas maneiras de perguntar, para estabelecer ângulos inéditos de
abordagem. Uma experiência de estranhamento, tão cara à Antropologia, gerada entre
os próprios pares.
Como a autora desse artigo não é uma estudiosa de gênero, nem uma militante
feminista (embora se sinta bastante contemplada pelas pautas do feminismo), sua
abordagem da Marcha das Vadias se dá a partir de um encadeamento de percurso na
área da religião. Acredita-se que há uma diferença entre chegar à Marcha das Vadias
pela discussão do feminismo e da luta por direitos, e chegar a ela pelas discussões da
religião, do culto aos santos, dos limites entre objetos religiosos e objetos artísticos, e
das transformações do campo religioso brasileiro contemporâneo, mas é justamente
uma tentativa de tomar essas diferenças como um efeito de conhecimento produtivo
que se estará buscando produzir neste artigo.

A performance iconoclasta e suas repercussões


Montada a perspectiva inicial da análise, caberia agora apresentar o caso. A Marcha das
Vadias é um dos ramos do movimento internacional Slut Walk, que surgiu em Toronto,
no Canadá, em abril de 2011, em resposta à declaração de um policial que sugeriu a
estudantes de uma universidade que não se vestissem como “vadias”, ou seja, que não
usassem roupas muito curtas, decotadas ou provocativas, para não serem estupradas. A
declaração foi divulgada por todo o mundo e interpretada como culpabilização da
vítima e isenção do agressor, e as mulheres foram às ruas para protestar pelo fim da
violência sexual, bem como pela liberdade e a autonomia sobre seus corpos. Marchas
semelhantes se espalharam por cidades de vários países, como México, Estados Unidos,
Austrália, Nova Zelândia, Grã-Bretanha, Holanda, Suécia, Argentina e Índia. O
movimento se estendeu por todas as capitais brasileiras, e no Rio de Janeiro, ocorre
desde 2011, reunindo milhares de pessoas na orla da praia de Copacabana 2.
A escolha do nome “Vadias” não é uma mera tradução de Slut (se é que alguma
tradução é uma mera tradução...). No resto da América Latina, a Slut Walk é traduzida
como “La Marcha de las Putas”, PUTAS podendo ser entendido também como um
acrônimo de “Por una transformación Auténtica y Social”. Em português do Brasil, o
termo vadia tanto pode referir-se a uma forma de tratamento dada às mulheres, como
pode remeter à histórica repressão à vadiagem dos anos 1930, em que as leis
procuravam garantir a conversão de “malandros” em trabalhadores. A ideia é
transformar categorias acusatórias em palavras de ordem, revertendo estigmas, mas
também considerando especificidades locais. Tentando implementar novas
modalidades de fazer política, a Marcha é marcada por um clima festivo, música, dança,
performances artísticas, slogans de protesto. Sua organização privilegia a autonomia

Ponto Urbe, 20 | 2017


124

dos participantes e as decisões descentralizadas. Segundo auto-apresentações no blogue


da própria marcha,
A (MdV) é um ato pacífico e apartidário que tem como propósito lutar pelo fim de
toda violência sexual e de gênero, A marcha, (...) defende a não violência de gênero
em geral, porque a violência afeta também as transsexuais, lésbicas, os negros e
homossexuais. (http://marchadasvadiasrio.blogspot.com.br/, acessado em
19/04/2017)
Em 2013, como estratégia política para visibilizar o movimento, a Marcha das Vadias foi
marcada para 27 de julho a fim de coincidir com a estadia do papa Francisco no Rio de
Janeiro, para participar da Jornada Mundial da Juventude (JMJ), de 23 a 28 do mesmo
mês. Nesse ano, ocorria no Brasil uma série de protestos e mobilizações populares, que,
iniciados em junho, com manifestações contra o aumento da passagem de ônibus em
São Paulo, espalharam-se por todo o país, ampliando a pauta de reivindicações para
além do tema do preço da tarifa. Os protestos demandavam direito a melhor qualidade
de transporte, educação, moradia, uso do espaço público; eram contra a gentrificação,
contra o uso de dinheiro público para megaeventos (o país sediaria a JMJ em 2013, a
Copa do Mundo de Futebol da Fifa, em 2014, os Jogos Olímpicos de Verão de 2016 e os
Jogos Paraolímpicos do mesmo ano), contra a violência policial (simbolizada pela
campanha “Onde está Amarildo?”, em busca de um pedreiro da Rocinha desaparecido
após ter sido levado por policiais), entre outros temas candentes. A primeira onda de
protesto ganhou tamanha força e visibilidade a ponto de ser chamada de “Jornadas de
Junho”, e comparada a situações semelhantes em outras partes do globo, como a
Primavera Árabe, o Movimento dos Indignados/M-15 na Espanha, e o Occupy Wall Street,
dos EUA (Maia & Rocha, 2014; Bringel & Pleyers, 2015).

Jornadas de Junho no Rio de Janeiro: Avenida Presidente Vargas.


Fonte: http://marxismo21.org/junho-2013-2/#prettyPhoto, capturada em 16/06/2017. Autoria não
registrada. Uso não comercial, acadêmico, da imagem.

Foi nesse contexto efervescente, no mês seguinte às Jornadas de Junho, que a Marcha das
Vadias aconteceu, simultaneamente à JMJ e à visita papal. Aproveitando a conjuntura
de 2013, além de suas bandeiras tradicionais, o movimento decidiu abordar também a
garantia do Estado laico. Sabia-se que no encontro do papa com os Jovens a condenação
do aborto estaria na pauta (ver as análises de Luna, 2016; Mariz & Carranza, 2015),

Ponto Urbe, 20 | 2017


125

então ênfase seria dada à pauta feminista de descriminalizar esse ato, pois, como
ressaltou uma das organizadoras:
(...) A não legalização do aborto que ocorre no Brasil é uma questão muito cara para
as mulheres. E tem acirrado cada vez mais, com o estatuto do nascituro, com a
criminalidade de movimentos sociais que falam sobre a legalização do aborto, entre
outras coisas que a gente tem visto no Congresso Nacional.
http://www.vermelho.org.br/noticia_print.php?id_noticia=218822&id_secao=8,
acessado em 19/04/2017.
Portanto, a Marcha estava marcada há meses para julho, numa estratégia política de
contraponto à agenda religiosa que tomaria conta da cidade nesse período, mas não
havia intenção de um confronto aberto:
Não teria por que um movimento que faz uma marcha contra a violência buscar um
confronto que possa gerar um ato de violência”, ressaltou Nataraj, uma das
organizadoras. O momento é propício ao diálogo. A ideia é fazer um contraponto
pacífico à visita do papa, onde serão colocadas as pautas da marcha, “que vão de
encontro [sic] ao Estado laico. http://www.vermelho.org.br/noticia_print.php?
id_noticia=218822&id_secao=8 , acessado em 19/04/2017
No entanto, deslocamentos espaciais foram ocorrendo e configuraram uma outra
situação. O previsto era que a Marcha acontecesse ao mesmo tempo que a JMJ, mas não
no mesmo lugar, pois enquanto a primeira seria em seu espaço habitual, na orla de
Copacabana, a Jornada ocorreria em Guaratiba, zona oeste da cidade. Mas, poucos dias
antes do dia 27, em consequência de fortes chuvas que caíram durante a semana, o
terreno de Guaratiba se tornou um lamaçal e a organização da JMJ, constatando a
impossibilidade de realizar as atividades previstas no local, transferiu-as justamente
para a Praia de Copacabana3, o mesmo lugar da Marcha. O compartilhamento, mesmo
involuntário, do espaço, poderia subir o tom do contraponto. Ciente disso, o coletivo
que organiza a Marcha das Vadias solicitou a grupos e participantes que repensassem
suas formas de manifestação, considerando o novo cenário. No entanto, dado o caráter
democrático e descentralizado desse movimento, os conteúdos não foram, como nunca
são, regulados, nem previamente conhecidos, ou seja, havia autonomia para se fazer o
que quisesse.
No dia 27 de julho de 2013, a Marcha das Vadias começou às 13h e durou até o final da
tarde, segundo participantes divulgaram nas redes sociais, com muita alegria e sucesso.
Apesar de não ter estado lá presencialmente, acompanhei as repercussões na timeline
de amigas militantes e vi suas fotos e postagens a respeito 4. A grande mídia também
divulgou matérias a respeito, enfatizando a oposição Vadias X Igreja Católica, como por
exemplo na cobertura da Folha de São Paulo: https://www.youtube.com/watch?
v=9Ti_UWpurpE
Porém, comentários sobre os excessos da performance de um coletivo artístico, a qual
envolvera sexo com crucifixos e imagens de santos e quebra de estátuas, começaram a
pipocar no Facebook. As pessoas que chegavam em casa vindas do ato foram
surpreendidas ao ver que a mídia e as redes sociais haviam se concentrado naquele fato,
que muitas não tinham sequer testemunhado, porque na marcha ocorrem muitos
eventos simultâneos e não há um só foco de atenção. Os rumores crescentes levaram-
me a buscar a cena da performance no YouTube: https://goo.gl/aOCava, acessado em
16/06/2017.

Ponto Urbe, 20 | 2017


126

O vídeo foi descrito por Luna (2016), que tratou da simbologia da performance na
perspectiva da luta pela legalização do aborto:
A filmagem mostra um homem e uma mulher no centro de uma roda formada por
integrantes da Marcha das Vadias. Algumas pessoas dão as mãos, segurando um
barbante à moda de um cordão de isolamento. O homem e a mulher vestem um tipo
de tapa-sexo feito de um cordão e na frente, ele tem um quadro em formato de
círculo com uma imagem religiosa e ela tem um crucifixo grande. Na parte de trás
do tapa-sexo, entre os glúteos, ele insere um crucifixo menor. Ele calça botas de
marcha e ela porta botinas pretas. Ambos têm os rostos cobertos com panos pretos,
provavelmente camisetas amarradas, que deixam apenas os olhos à vista. O resto
[dos corpos tatuados] está despido. No chão, encontram-se ícones religiosos: uma
imagem de Nossa Senhora Aparecida e uma segunda de outra Nossa Senhora. A
mulher posiciona crucifixos e cruzes de vários tamanhos, arrastando-os com os pés,
de modo a formar uma pilha entre as duas imagens. Ouve-se uma batucada de fundo
e palmas ritmadas. Um homem do público usa um contêiner de coleta de lixo como
se fosse um tambor e batuca. Uma mulher do público canta “solta a revolta. Revolta
santa” no ritmo do batuque e continua “A policia não te protege, só se vigia”. A
mulher da performance dobra os joelhos e mexe os quadris se requebrando sobre a
imagem de nossa Senhora Aparecida, até encostar a região genital, de modo que a
cabeça da santa fica entre suas pernas. Ela faz um movimento de fletir os joelhos e
contrair os quadris como se estivesse socando a cabeça da imagem em sua vulva [ela
faz movimentos de penetração com a imagem]. Ele dança em torno das imagens.
Nesse momento, o círculo se aperta e algumas pessoas (da organização da marcha?)
se dão as mãos fazendo uma corrente possivelmente para isolar a área da
performance. O homem então passa rapidamente a fazer o mesmo tipo de dança
sobre a imagem da outra santa. Ele tem palavras escritas em marrom logo abaixo do
peito: “dar o cu é uma delícia”. Ele levanta um braço enquanto requebra sobre a
imagem. A mulher se levanta, pega a imagem de Nossa Senhora Aparecida, ergue e
arremessa no chão, e depois anda em torno. O crucifixo tapa-sexo está quase solto e
balança. O homem também ergue e quebra a outra imagem, pega o pedaço maior e
atira no chão novamente. Ela ergue uma imagem menor de Nossa Senhora
Aparecida e a exibe para a audiência, arremessando-a no chão em seguida. Os dois
caminham e gingam em torno das imagens. Um homem do público bate palmas
ritmadas e a atriz da performance acompanha. Ela arrasta os crucifixos com os pés,
juntando-os com a pilha de cacos de louça. Ele passa um pequeno crucifixo para a
mão dela. Nesse momento, o homem se deita com seus ombros e a parte superior
das costas no chão, apoiado sobre seus braços flexionados, mantendo as pernas
erguidas na posição de vela e abre suas pernas, expondo a região do períneo.
O vídeo termina após o homem, na posição de vela, ser penetrado no ânus pelo
crucifixo manuseado por sua colega de performance, que antes teve o cuidado de cobri-

Ponto Urbe, 20 | 2017


127

lo com um preservativo. Fazer sexo com a imagem de santos, quebrá-las, fazer sexo com
o crucifixo ao som de um funk, sob os aplausos da plateia. Trata-se da estratégia
político-artística do Coletivo Coiote, que, como já dito, identifica-se como “pornô-
terrorista”. Alguns sinais distintivos desse grupo podem ser vistos no vídeo: os rostos
cobertos por camisetas negras, típicos da estratégia Black Blocs; o uso de botinas, dando
um certo tom militar, em contraponto aos corpos nus e tatuados; o uso da música do
coletivo Anarkofunk, que, como o próprio nome indica, combina funk a perspectivas
anarquistas, a própria música escolhida, que se chama “Toca a revolta”, e cujo refrão
defende a “ação direta”, e principalmente o uso da nudez, sexo e da profanação do
próprio corpo como armas políticas. Segundo Vergara (2015):
O Coletivo Coiote existe desde 2012 e realizam intervenções em espaços públicos,
bares, festas e manifestações (...) sua crítica é dirigida à heterossexualidade
compulsória, à normalização e colonização dos corpos e à homofobia institucional.
(p. 108) Ele é um grupo nômade de performance que se utiliza da prática
escatológica, da modificação corporal e do improviso na construção de um
“terrorismo com o cu” ou “pornô-terrorismo (p. 110).
As performances realizadas pelo Coletivo Coiote lançam mão o tempo todo de
estratégias autoimunizadoras quando expõem seus corpos violentados. Porém ao
expor essa vulnerabilidade, não o fazem buscando comoção do Estado ou de uma
“opinião pública” genérica, mas no intuito de catalisar uma revolta. As
performances estão voltadas aos marginalizados extreme, aos vulneráveis e
precarizados como abertura para uma aliança coletiva.
A sua estética vincula artefatos da religião afro, modificações corporais, como
costura da boca e das genitais, o uso do nu e da máscara negra e a musicalidade do
“AnarkoFunk”. O nu tem uma relação muito forte com as extensões do corpo ao
espaço. (Vergara, 2015: 120)
Minha intenção ao trazer esses dados sobre o grupo é mostrar sua perspectiva de
organização, e relacioná-lo com as formas de fazer política e com os movimentos sociais
que vinham ganhando visibilidade desde as Jornadas de Junho. Assim como a própria
Marcha das Vadias, o Coletivo Coiote seria um dos grupos envolvidos nas novas
modalidades de protesto que estavam em jogo, muito diferentes das mobilizações de
partidos políticos, sindicatos e movimentos sociais que até então haviam marcado o
período de resistência à ditadura e de construção da Nova República.
Nos dias que seguiram, através da minha página do Facebook, que, por força do nó da
rede constituído por meu perfil, ou minha persona pública, intersecta frades
franciscanos especialistas em agroecologia, monges beneditinos dedicados à
restauração, sambistas, ativistas do movimento de cultura popular, filhos e mães de
santo, feministas, anarquistas, jovens dos coletivos suburbanos, militantes Lgbtt,
familiares de espectro político e comportamental variado etc (junto a outras tantas
formas contemporâneas de estar no mundo...), foi possível observar a série de
comentários críticos se aquecendo.
Os primeiros deles vieram, como talvez fosse esperado, de redes católicas mais
tradicionais, chocadas com uma atitude que consideravam extremamente agressiva e
violenta, porque se tratava de um ataque a imagens religiosas acontecido durante a
visita do papa ao Rio de Janeiro. Já segmentos católicos vinculados à igreja progressista
– que talvez pudessem ser definidos como uma “esquerda católica” - manifestaram seu
descontentamento com a performance, não tanto pela questão do desrespeito, mas pelo
que seria “uma inabilidade política”. Afinal, a JMC, cujas liturgias estavam nas mãos da
Renovação Carismática Católica, acontecia com o papa Francisco recém-empossado, e

Ponto Urbe, 20 | 2017


128

para os católicos, havia uma disputa entre as correntes internas por uma maior
aproximação do papado. Francisco, um papa argentino, parecia recolocar na pauta,
ainda que em termos diferentes dos anos 1960 e 1970, a questão da opção da Igreja
Católica pelos pobres e pela pobreza, e havia a expectativa por sua guinada mais à
esquerda (Mariz & Carranza, 2015). Essa disputa poderia ser emblematizada pela foto
abaixo, que circulou por diversos blogues da internet, e que mostra “peregrinos da
JMC”, facilmente identificáveis pelas mochilas do evento, aos pés do Cristo Redentor,
um dos símbolos da cidade do Rio de Janeiro (e do catolicismo na cidade), segurando
uma faixa pela busca do pedreiro Amarildo.

Foto encontrável em diversos blogues da internet, sem que a autoria fosse determinada. Capturada
em 16/07/2017. Uso não comercial, acadêmico da imagem.

Apesar da repercussão negativa, alguns segmentos feministas, inclusive com feministas


católicas, mantiveram-se na defesa da adequação política da performance: “é difícil
sentir pena de figuras de barro quando tantas pessoas morrem por conta das posições da Igreja”.
E afinal, como se livrar de uma dominação tão fina, que se instaura no próprio corpo,
senão através de abortos, exorcismos e transgressões sexuais, que a performance
parecia promover?
Não condeno a performance porque não me importo com a destruição de um
símbolo opressor. Digam o que quiserem, mas, para mim, aquelas estátuas não
passam de símbolos de uma instituição responsável por oprimir mulheres,
indígenas e negros durante milênios. Aquelas estátuas simbolizam as pessoas que
torturaram e queimaram vivas milhares de mulheres na inquisição. São o símbolo
da instituição que condena a autonomia das mulheres. São o símbolo de uma
instituição misógina. Nada mais justo que fossem destruídos numa marcha política.
Afinal, não podemos esquecer que a Igreja Católica é uma grande instituição política
com grande influência no estado brasileiro – que deveria ser laico, mas nunca se
livrou deste ranço que vem desde os tempos da Colônia.
Condenar esta performance artística, pra mim, é uma hipocrisia tão grande quanto
chorar pelas vitrines quebradas da Toulon e dar de ombros aos 13 mortos na Maré,
ou ignorar o pedreiro Amarildo, que desapareceu na Rocinha após ser levado de
casa por policiais da UPP. Não consigo me compadecer por pedaços de gesso quando
tantas mulheres são despedaçadas todos os dias fazendo abortos clandestinos,

Ponto Urbe, 20 | 2017


129

quando são despedaçadas pela violência doméstica, por estupros; quando tantos
LGBTs são agredidos e mortos todos os dias. A Igreja Católica também carrega
responsabilidade por todo este sangue derramado quando fomenta intolerância e
misoginia.
Karla T, Blogue Escritos Feministas, escrito em 28/07/2013, acessado em
16/06/2017, https://escritosfeministas.wordpress.com/2013/07/28/sobre-santas-
quebradas-e-violencia/
Outras feministas se colocaram contra a performance, por questões estratégicas, pois
consideraram que ela afastara mais pessoas do movimento do que aproximara.
Ontem, quando escrevi sobre a depredação de estátuas religiosas na Marcha das
Vadias do Rio, peguei leve, pisei em ovos. (...) Mas foram chegando outras imagens e
detalhes do que foi o ato. Primeiro que foi uma performance de duas pessoas de um
grupo que costuma fazer intervenções como essa, o Coletivo Coiote. Segundo que
não foi só fazer picadinho de santa que o tal coletivo fez. Teve crucifixo sendo
enfiado na vagina e no ânus. Essa imagem que eu ponho ao lado é de uma página
que apoia o ato. Mas pode apostar que esta imagem e outras mais gráficas estão
circulando entre reaças que neste exato momento denunciam a Marcha das Vadias
ao Ministério Público.
Porque de repente depredar símbolos religiosos pode configurar crime segundo o
Código Penal, neste artigo aqui: "Art. 208 - vilipendiar publicamente ato ou objeto
de culto religioso: Pena - detenção, de 1 (um) mês a 1 (um) ano, ou multa." Eu ser
contra ou a favor dessa lei não muda nada (sou contra). Não quero que o casal do
coletivo seja punido, e muito menos a organização da Marcha, que nem viu a
performance e não teve nada a ver com ela. Mas num momento em que todxs nós
deveríamos estar comemorando o sucesso que foi a Marcha, aqui estamos nós na
defensiva, brigando entre nós, com as organizadoras precisando consultar
advogados e sendo ameaçadas de estupro e morte.
Minha pergunta é: precisava mesmo disso tudo? O que a gente ganha com o ódio de
quem viu seus símbolos desrespeitados? O que essa performance acrescentou ao
feminismo? À Marcha das Vadias? (Aronvich, 2013)
Outras reações, no entanto, me soaram um tanto inesperadas.
Primeiro, assustou-me o grau de violência, um tom um tanto “fascista” dos comentários
contra a performance – uma agressividade que vinha se agravando nas redes sociais
desde as manifestações de junho de 2013, com episódios de protesto e alguns ataques
Black Blocs interpretados como vandalismo, e combatidos com uma desmedida
violência repressiva do Estado. Mas ver escritas despudoramente uma série de
expressões de ódio era assustador, embora hoje, depois das eleições presidenciais de
2014, e do impeachment de 2016, isso não surpreenda mais ninguém.
A agressividade do Facebook, crescente, correspondeu a ameaças de morte, pela
internet ou por telefone, a algumas das organizadoras e/ou porta-vozes da marcha, que
tiveram seus nomes e números vazados na imprensa, ou que, ao fazerem o cordão de
isolamento em torno do coletivo durante a performance, mantiveram seus rostos
descobertos e puderam ser reconhecidas (os performers, com maior domínio do uso de
estratégias de provocação no espaço público, atuaram com o rosto coberto com
camisetas, como os Black Blocs, mas também eles acabaram sendo identificados e
ameaçados). Mesmo que não tivessem sido responsáveis pela performance, dado o
caráter autônomo da marcha; essas mulheres foram bastante assediadas e tiveram que
sair de circulação por algum tempo, correndo risco de vida (no caso de uma militante
na faixa dos 30 anos, que entrevistei meses depois, ela estava inclusive revendo sua
participação no movimento diante do grau de exposição pelo qual passou e da
fragilidade das redes de proteção feministas que pode experimentar). Essa experiência

Ponto Urbe, 20 | 2017


130

abre a possibilidade de discussão do que significa fazer política em tempo de redes


sociais. Se as capacidades de articulação e de veiculação de informações alternativas
estão entre os ganhos das redes, a dificuldade de convivência com pensamentos
divergentes e a facilidade de expressar violência pode estar entre suas características
negativas.
No entanto, para mim, uma outra surpresa esteve no fato de uma grande parte das
manifestações contrárias à performance vir, rápida e fortemente, do interior da própria
Marcha, de grupos de feministas negras/pretas (cada uma das nomenclaturas é
utilizada por segmentos diferentes do movimento), incomodadas com a quebra das
imagens de santo – Nós não queremos uma manifestação que reproduza o que os evangélicos
estão fazendo nos terreiros, quebrando imagens. A performance foi de extrema violência não
apenas com o catolicismo, mas com todas as religiões. Se essa luta política não é capaz de
contemplar a religião, se ela é baseada na intolerância religiosa, então ela não nos representa. As
conversas das feministas negras/pretas continuaram nos meses a seguir, inclusive
marcando a especificidade de sua pauta antirracismo, a qual consideravam não estar
sendo contemplada na luta feminista mais geral, acabando por se produzir uma
separação de facções da Marcha. Nota-se que a pauta feminista foi tensionada pela
questão religiosa e por uma nova categoria política acusatória, “intolerância religiosa”,
aí colocada em operação.
Sobre a repercussão do episódio, a organização da Marcha assim se posicionou numa
nota:
(...) A polêmica performance com cruzes de madeira e estátuas de gesso, que vem
sendo debatida na mídia não foi construída pela MdV, que sequer sabia de sua
realização e conteúdo, bem como desconhece seus realizadores. A MdV apenas agiu
para garantir a segurança daquelas pessoas, o que foi igualmente feito para TODAS
as performances realizadas e para TODOS os presentes na Marcha. Esta
performance durou apenas alguns minutos e a Marcha prosseguiu por seis horas de
muita música, pluralidade, alegria e politização, tanto pelo direito das mulheres
como pelo fim do racismo, homofobia e outras violências institucionais.
A Marcha das Vadias não tem uma postura autoritária ou de enfrentamento em
relação à fé e à existência de religiões. Muitas de suas organizadoras e parceiras
diretas são pessoas religiosas, dentre as quais algumas professam a religião católica,
a umbanda e outras religiões cristãs. (...)
Criticamos veementemente a cobertura mais uma vez tendenciosa da grande mídia
(...) Esta postura tem, inclusive, incitado pessoas a fazerem graves ameaças às
organizadoras e participantes da Marcha e tem levado à criminalização da MdV
enquanto movimento. (...) Rio de Janeiro, 07 de agosto de 2013.
Anos depois, segundo Vergara (2015), apesar de continuarem sofrendo ameaças e
perseguições, os “agentes do coletivo continuaram a julgar a performance como
necessária ao momento”:
A performance que rolou na Marcha das Vadias em 2013, enquanto o Papa Francisco
veio ao Brasil, foi uma ação necessária. A Igreja é castradora, colonizadora,
assassina. Nos impressionou muito que nada estivesse sendo feito, em termos de
ação direta ou algum protesto durante as marchas do JMJ ou a fala do Papa. Enfim
decidimos fazer a mulher santificada, a castração dos nossos desejos, a caça às
bruxas, o massacre aos povos originários. (Membro do coletivo coiote, abril de 2015,
entrevista em Vergara, 2015: 110).
Note-se no entanto, que a performance iconoclasta na Marcha das Vadias ocorreu em
paralelo a outros usos intensos e extraordinários de imagens religiosas católicas, sem
que esses adquirissem a mesma visibilidade ou provocassem polêmica. A visita papal foi

Ponto Urbe, 20 | 2017


131

ocasião para uma série de exibições, organizadas ou estimuladas por essa grande e
milenar organização transnacional especializada em práticas simbólicas, que é a Igreja
Católica Apostólica Romana. Esta, em parceria com governos municipal, estadual e
federal, e com empresas públicas e privadas manipulou imagens religiosas em prédios e
outros espaços públicos, através de exposições de relíquias e arte sacra, procissões,
missas campais, vigílias etc. Como exemplos, teríamos a exposição de obras do
Vaticano, A Herança do Sagrado, no Museu Nacional de Belas Artes; de fotos e objetos de
romarias e devoções populares no Museu do Folclore, de objetos, textos e imagens
referentes a Odetinha, uma menina em processo de canonização, na Basílica e Colégio
Nossa Senhora da Imaculada Conceição, na Praia de Botafogo; de cruzes e peças de arte
sacra e religiosa no Centro Cultural do Banco do Brasil, no centro da cidade; de textos,
fotos e objetos referente ao Santo Sudário no Galpão das Artes do Jardim Botânico, além
de celebrações e shows religiosos ligados ao Festival da Juventude (católica), uma Feira
Vocacional na Quinta da Boa Vista e eventos de massa com a presença do papa, como a
missa de encerramento das Jornadas, para três milhões e meio de pessoas na Praia de
Copacabana.
As imagens religiosas apareceram em todas essas ocasiões explorando sua ambiguidade
como “obras de arte” (sacra, popular ou erudita), condições que as legitimavam como
objeto de atenção do poder público em um estado laico preocupado com arte e cultura;
e/ou na condição de exibição de objetos sagrados, condição que as aproximava de seus
usos em rituais religiosos.
Portanto, se havia lutas simbólicas passando pela mobilização de imagens religiosas em
espaços públicos, é preciso constatar que ela não era unilateral. Mas para além de sua
manipulação enquanto cultura e enquanto parte de cultos católicos, outras formas mais
sutis aconteceram. Vários movimentos pro-life de todo o mundo vieram à cidade para a
JMJ, equipados para fazer campanha de sensibilização pela proibição do aborto. Com
essa finalidade, uma das formas encontradas de proselitismo foi a distribuição nas ruas,
igrejas e meios de transportes, de imagens de fetos e embriões de cera e de plástico, em
tamanho natural ou em miniaturas, compondo terços, ou autônomas, junto a folhetos
de propaganda pela vida e orações.
Gostaria de solicitar a atenção de todos para a iniciativa abaixo. Trata-se de um
projeto – idealizado por alguns jovens voluntários da JMJ 2013 – de confeccionar um
pequeno “kit” pró-vida a ser colocado nas mochilas dos peregrinos que virão ao Rio
de Janeiro para a próxima Jornada Mundial da Juventude. (...)
O kit é muito simples, e consiste apenas em uma réplica (em plástico) de um ser
humano às 12 semanas de gestação e um folheto explicativo (em três idiomas) sobre
o início da vida humana e a importância de que ela seja defendida desde a
concepção. Cada kit (réplica + embalagem + folder + mão de obra) custa R$ 0,91 –
isto mesmo, noventa e um centavos. Queremos confeccionar um milhão de kits.
Como os idealizadores infelizmente não dispõem de recursos financeiros para tanto,

Ponto Urbe, 20 | 2017


132

precisam contar com a generosidade dos católicos para transformar este projeto em
realidade.

http://www.deuslovult.org/
2013/02/15/promocao-da-cultura-da-vida-na-jmj-2013/acessado em 17/04/2016.

Essa distribuição de imagens, no entanto, não foi considerada violenta, desrespeitosa ou


de mau gosto na mídia e nas redes sociais, quando muito foi tratada no campo das
efemérides. Pesos e medidas diferentes para atores sociais diferenciados.

A complexidade da transgressão às imagens


Desdobrando esse evento crítico com o apoio do patrimônio antropológico, seria
preciso refletir sobre as forças que ele foi capaz de mobilizar ou visibilizar, as posições
que se demarcaram diante dele e, finalmente, compreender a complexidade da
manipulação transgressiva das imagens religiosas como forma de luta política. Note-se
que o objetivo não é analisar apenas a performance, mas tomá-la junto às reações que
provocou.
Para entender o peso da situação, é preciso reconhecer que a religião, ou o lugar do
religioso na esfera pública, é um dos temas mais candentes da sociedade brasileira
atual. Por um lado, pelas intensas mudanças que se aceleraram a partir dos anos 1980, e
que reconfiguraram a composição religiosa do país: o crescimento expressivo dos
evangélicos e dos sem religião, a diminuição do número de católicos, o surgimento de
novas opções religiosas, a troca de religião ao longo da vida em um país que era de
tradição secular católica, mesmo que por inércia. A essas transformações associaram-se
mudanças nos domínios da família e da vizinhança, das representações de povo e nação,
da política partidária, da luta por direitos, das concepções de cultura nacional etc. Sem
querer estabelecer uma relação de causalidade entre esse conjunto de mudanças, mas
pensando em mútuas afetações e em afinidades eletivas, as relações religiosas no Brasil
contemporâneo se tornaram bastante dinâmicas e intensas, associando-se a alterações
em vários aspectos da vida nacional (Teixeira e Menezes, 2006).
Por outro lado, acontecem também movimentos de politização do religioso, e de
politização da cultura, e de imbricamento entre cultura, religião e política 5. Assim, as

Ponto Urbe, 20 | 2017


133

concepções em torno do religioso e de seu lugar na vida nacional – seja dos que têm
religião, seja dos que a rejeitam, ou dos que ocupam posições intermediárias entre os
dois polos – constituem uma arena de debates extremamente potente no Brasil atual. As
reações diversas à performance iconoclasta parecem revelar algumas dessas posições e
concepções diferenciadas.
A concepção de imagem religiosa apresentada pelo Coletivo Coiote e por alguns
segmentos que defenderam sua atuação parece marcada por um viés senão
“iluminista”, ao menos monofônico de concepção da imagem. Elas são tratadas como
objetos que simbolizam dominação, e por isso quebrá-las seria um ato ‘libertador”,
desestabilizador do senso comum. Mas essa forma de tratamento opera uma dupla
redução. Primeiro, se as imagens são tratadas como símbolos, elas precisam ser
entendidas como passíveis de múltiplas interpretações: elas simbolizam a opressão e a
violência que a ICAR exerceu sobre pessoas e corpos por milênios, mas elas também são
capazes de simbolizar resistência, esperança, libertação e fonte de poder para inúmeros
grupos sociais, que veem nos santos não o castigo e a repressão, mas o carinho, o
refúgio, a amizade e a intimidade. Assim, há um confronto entre interpretações
simbólicas antagônicas.
Uma segunda redução está no conceito de símbolo que está sendo posto em operação: a
ideia da imagem como “mero símbolo”, mantendo relações de exterioridade com os
universos que simbolizam, isto é, apenas como apenas estátuas de gesso, como objetos
passíveis de ser destruídos porque não são comparáveis a pessoas reais. Como os
estudos antropológicos das últimas décadas têm mostrado, as ontologias são múltiplas,
operam com lógicas diversas, e a relação coisa-pessoa muitas vezes não é passível de
uma demarcação nítida. Do ponto de vista de certas ontologias religiosas, imagens
religiosas não apenas simbolizam, ou simbolizam reapresentando a coisa simbolizada,
tornando-a presente, e não apenas evocando-a (Engelke,) . Assim, elas comem, falam,
pulsam, são coisas vivas. Quebrá-las é, num certo sentido, matá-las ou ao menos atentar
contra sua vitalidade e potência.
A escolha por profanar justamente imagens de Nossa Senhora denota, senão o
desconhecimento da situação religiosa do país, ao menos a aposta arriscada em jogo em
um ato terrorista. Trata-se da santa mais popular do Brasil, em muitas regiões, mais
acionada até que o próprio filho (Menezes, 1996), e aquela que foi chutada em cadeia
televisiva por um bispo da Igreja Universal em 1995, no episódio conhecido como
“chute na santa”, que causou uma polêmica nacional (Almeida, 2007). Imitando,
propositalmente ou não, o ato do bispo, os performers do Coletivo Coiote tocaram numa
tecla sensível, pois um problema vivido cotidianamente por centenas de pessoas em
seus bairros, trabalhos, colégios é o ataque, físico ou moral, pelo porte de objetos
religiosos, majoritariamente aquelas das religiões afro-brasileiras e, em escala muito
menor, dos católicos; um ataque que envolve recorrentemente a quebra das imagens de
santo.
Grande energia social e política tem sido despendida contra esses ataques, procurando
tipificá-los como intolerância religiosa, o que, pela legislação brasileira, é considerado um
crime6 (Miranda, 2012; 2014). Há todo um esforço feito, pelos movimentos negro e dos
povos de terreiro, para evidenciar conexões entre os ataques às religiões afro-
brasileiras e o racismo (embora, obviamente, não apenas negros sejam adeptos dessa
religião), associando a garantia à liberdade religiosa à luta pela igualdade racial. Nesse
sentindo, é interessante que a acusação de intolerância tenha sido acionada para

Ponto Urbe, 20 | 2017


134

qualificar a performance, e que alguns segmentos feministas tenham se posto a debater


sua adequação ou não ao caso.
Se de um lado o evento crítico coloca a questão da eficácia política de atos terroristas,
por outro lado, ele mostra a complexidade de fazer política identitária em sociedades
com identidades múltiplas, e de como a identidade religiosa pode colocar em questão
determinados pressupostos políticos (Araújo, 2013). Se a Marcha das Vadias enfatiza a
identidade de gênero, as pessoas que dela participam possuem outras identidades, de
classe, étnicas, profissionais... e religiosas. A pessoa religiosa não é um outro: ela está
dentro da própria Marcha, dentro do feminismo (Novaes, 2012, já chamara a atenção
para a presença de feministas evangélicas na marcha daquele ano). Política e religião,
objetos e pessoas, não são entidades dissociadas ou dissociáveis a partir de uma razão
única (para um mapeamento dos debates antropológicos contemporâneos sobre
materialidades, ver Tilley et al., 2006; Miller, 2005)
A ambiguidade das imagens religiosas: seu peso (simbólico?) faz com que profaná-las
seja uma atividade política necessária, como nos lembra Agamben na epígrafe desse
texto, mas ao mesmo tempo, sua quebra provoca incômodos, abre feridas, cessa o
diálogo, divide a luta. Concepções diferentes de matérias, de coisas, de política,
cosmologias e ontologias entram em choque. A manipulação de símbolos religiosos na
luta política revela-se mais complexa do que parecia: se os símbolos religiosos são
‘poderosos, e por isso é uma tarefa política dele dessacralizá-los, isso não se revela coisa
tão simples assim. Sua eficácia se faz sentir de muitas formas.
Podemos pensar no evento como um ato detonador de críticas, debates, apoios, ataques,
enfim, de outros atos, políticos e de violência, o que permitiria sua interpretação como
“um iconoclash”, que Bruno Latour definiu, da seguinte forma:
Iconoclasmo é quando sabemos o que está acontecendo no ato de quebrar [uma
obra de arte] e quais são as motivações para o que se apresenta como um claro
projeto de destruição; iconoclash, por outro lado, é quando não se sabe, quando se
hesita, quando se é perturbado por uma ação para a qual não há maneira de saber,
sem uma investigação maior, se é destrutiva ou construtiva. (Latour, 2008: 112-113).
Os iconoclashes, como situações ambíguas ou ambivalentes, podem ser entendidos
como eventos críticos envolvendo objetos, em que vários sistemas classificatórios ou
perspectivas interpretativas nativas entram em confronto e se evidenciam, podem ser
ocasiões privilegiadas para recompor a totalidade dos fatos sociais, à medida em que
estes vão se desencaixando de determinados consensos, ou naturalizações,
classificatórios. A performance do Coletivo Coiote produziu uma espécie de arena em
que categorias, como arte, política, religião, gênero, direitos, sexo, símbolo, moral,
blasfêmia, entraram em choque, e a dificuldade, ou disputa classificatória, aí gerada
permite-nos ver uma série de princípios taxionômicos do mundo social tentando ser
aplicados e tendo seu conteúdo redefinido e disputado.
Mas se tomarmos a imagem religiosa como um fato social total, no sentido maussiano,
vemos que transgredi-la embarra justamente em sua ambivalência, pois ela é, ao
mesmo tempo, religião, economia, estética, política etc. etc. (Mauss, 2003). E se a
transgressão faz muito sentido em processos políticos nos quais entram em jogo a
emancipação das identidades sexuais e de gênero, ou faz muito sentido no domínio da
arte performática, em que as vanguardas são valorizadas, no domínio do religioso as
coisas se tornam um pouco mais complicadas. Pois nesses domínios as imagens não são
coisas inertes.

Ponto Urbe, 20 | 2017


135

Uma saída invocada por militantes com os quais debati o episódio, é de que seria
preciso haver respeito, uma espécie de plataforma pré-estabelecida de acordos mútuos,
com o estabelecimento de uma certa de moralidade no trato de temas religiosos. Mas
como ter essa moralidade baseando a luta, se a aposta da Marcha vai no sentido de usar
a amoralidade como arma política de alargamento de fronteiras e de denúncia da moral
convencional? Fica a questão se é possível fazer política de provocação em tempos de
moralização (Kapferer, 2015).
Michael Taussig dá uma pista importante ao falar de transgressão. Ele lembra que (...)
the barrier crossed by transgression does not so much exist in its own right as erupt into being
on account of its being transgressed” (Taussig, 1998, p. 350). Se a transgressão é uma
irrupção, a produção de uma barreira que passa a existir ao ser transgredida, ou seja,
que não é pré-existente, a passagem do respeito ao desrespeito não pode ser definida de
forma absoluta ou prévia, mas sim emerge quando já aconteceu. Respeito e desrespeito
são termos definíveis relacionalmente, em episódios concretos, muitas vezes em
disputas e acusações cruzadas.
De igual forma, se tomamos a definição durkheimiana de religião como uma oposição
entre sagrado e profano, isto é, como uma forma relacional classificatória e
hierarquizante, mas vazia de conteúdo, podemos entender que atos que objetivam a
profanação são capazes de produzir o efeito inverso do desejado, isto é, mais
sacralização. Ao atacar a imagem religiosa, gestos profanadores colocam-se em
oposição a ela, e ao invés de degradá-la, mesmo fazendo-a em pedaços e revelando sua
fragilidade, a sacralizam, pois reproduzem a oposição sagrado / profano e fazem com
que a barreira da transgressão irrompa. Num aparente paradoxo, cercá-la de
profanações pode fazer com que sua sacralidade seja ressaltada.

BIBLIOGRAFIA
AGAMBEN, Giorgio. 2007. Elogio à Profanação. In: ______. Profanações. São Paulo: Boitempo. pp.
65—80.

ALMEIDA, Ronaldo de. 2007. Dez anos do “chute na santa”: a intolerância com a diferença”. In: V.
G. da SILVA (org) Intolerância religiosa. Impactos do Neo-pentecostalismo no campo religioso
brasileiro. São Paulo: EDUSP. pp. 171-189.

ARAÚJO, Luiz Bernardo Leite. 2013. “O nexo entre política do reconhecimento e secularização”.
IHU on-line, ano VIII, no. 426; 18-22.

BANDEIRA, Olívia. 2017. O mundo da música gospel entre o sagrado e o secular: disputas e negociações em
torno da identidade evangélica. Rio de Janeiro : tese de doutorado em Sociologia e Antropologia,
UFRJ.

BELTING, Hans. 1988 Image et culte. Une histoire de l'art avant l'époque de l'art. Paris: Cerf.

BRINGEL, Breno ; PLEYERS, Geoffrey. 2015. « Les mobilisations de 2013 au Brésil: vers une
reconfiguration de la contestation ». Brésil(s), v. 7 : 7-18.

Ponto Urbe, 20 | 2017


136

FAVRET-SAADA, Jeanne. 2007. “Affaire des dessins de Mahomet / 2” Varcarme, 2007, no. 38,
disponível em http://www.vacarme.org/article1246.htm, capturado em 16/01/2013.

FAVRET-SAADA, Jeanne. 1994 “Le blasphème et sa mise en affaire: notes de séminaire”. Gradhiva,
no 15: 26-33.

GOMES, Carla, SORJ, Bila. 2014. "Corpo, geração e identidade: a Marcha das vadias no Brasil."
Sociedade e Estado 29.2 : 433-447.

KAPFERER, Bruce. 2010. "In the event: Toward an anthropology of generic moments." Social
Analysis 54.3: 1-27.

KAPFERER, Bruce. 2015. « When a Joke is not a Joke ? The Paradox of Egalitarianism ». In :
ZAGATO, Alessandro (Ed.). The Event of Charlie Hebdo. New York : Bergham Books. pp. 93-114.

LATOUR, Bruno. 2008. O que é iconoclash? Ou, há um mundo além das guerras de imagem?»
Horizontes antropológicos. [online]. 14 (29).

LUNA, Naara. 2016. “Marcha das Vadias e a Jornada Mundial da Juventude: uma performance de
protesto pela legalização do aborto”. In: M. ARAÚJO; C. Vital da CUNHA, Christina Vital (orgs).
Religião e Conflito. Curitiba: Prismas. pp. 235-255.

MAFRA, Clara. 2011. "A" arma da cultura" e os" universalismos parciais"." Mana, 17.3 :607-624.

MAIA, João Marcelo E. ; ROCHA, Lia M. 2014. « Protests, protests, everywhere”. The Cairo Review of
Global Affairs, v. 1: 79-85.

MARIZ, Cecília; CARRANZA, Brenda. 2015. “O papa Francisco na JMJ do Rio de Janeiro”. Rio de
Janeiro, m.s. (no prelo)

MARTIN, John Levi. 2003. “What is field theory?” American Journal of Sociology v. 109. 1 : 1-49.

MAUSS, Marcel. 2003. "Ensaio sobre a Dádiva. in : _____. Sociologia e Antropologia. São Paulo:
Cosac & Naify. pp. 183-314.

MENEZES, Renata de Castro. 1996. « Devoção, Diversão e Poder: um estudo antropológico sobre a
Festa da Penha ». Rio de Janeiro, dissertação de mestrado em Antropologi Social, UFRJ.

MENEZES, Renata de Castro. 2011. « A imagem sagrada na era da reprodutibilidade técnica: sobre
santinhos :. Horizontes Antropológicos (UFRGS. Impresso), v. 17 : 43-65.

MENEZES, Renata de Castro. 2013. « Reflexões sobre a imagem sagrada a partir do « Cristo de
Borja » ». In: Patrícia Reinheimer; Sabrina Parracho Sant’Anna.. (Org.). Reflexões sobre arte e cultura
material. Rio de Janeiro: Folha Seca. pp. 235-263.

MILLER, Daniel. 2005. Materiality. Duke University Press.

MIRANDA, Ana Paula Mendes de. 2012. “A força de uma expressão: intolerância religiosa,
conflitos e demandas por reconhecimento de direitos no Rio de Janeiro”. Comunicações do ISER, v.
66: 60-73.

MIRANDA, Ana Paula Mendes de. “Como se discute Religião e Política? Controvérsias em torno da
“luta contra a intolerância religiosa” no Rio de Janeiro”. Com. Iser, no. 69, ano 33, 2014 ****

NOVAES, Regina. 2012. Juventude, religião e espaço público: exemplos “bons para pensar” tempos
e sinais. Religião e Sociedade, vol 32, nº 1:

REVEL, Jacques. 1998. “Apresentação”. In: ______. (ed.) Jogos de Escalas: A experiência da
microanálise. Rio de Janeiro: FGV. pp. 7-14.

Ponto Urbe, 20 | 2017


137

SANT’ANA, Raquel. 2017. A nação cujo Deus é o senhor: a imaginação de uma coletividade
evangélica. Rio de Janeiro, tese de doutorado em Antropologia Social, UFRJ.

SMITH, Jonathan Z. 1998. “Religion, Religions, Religious". In: Mark C. Taylor (ed.) Critical Terms for
Religious Studies. Chicago, London: University of Chicago Press, p. 269-284.

SMITH, Jonathan Z. 2004. To Take Place. "The Topography of the Sacred. In:______. "Relating
Religion. Essays in the Study of Religion , pp. 101-116.

TAUSSIG, Michael. 1998. "Transgression". In: Mark C. Taylor (ed.) Critical Terms for Religious
Studies. Chicago, London: University of Chicago Press, pp. 349-364.

TEIXEIRA, Faustino; MENEZES, Renata. 2006 (Org.) As Religiões no Brasil: continuidades e rupturas.
Petrópolis: Vozes.

TILLEY, Chris et al. (eds.) 2206. Handbook of Material Culture. London: Sage.

VERGARA, Camile. 2015. « Corpo, transgressão: a violência traduzida nas performances do


Coletivo Coiote, Bloco Reciclato e Black Blocs. Cadernos de Arte e Antropologia, Vol. 4, n° 2 : 105-123.

WRIGHT, Susan. 1998. "The politicization of 'culture'." Anthropology today 14.1 : 7-15.

Sites:

http://marchadasvadiasrio.blogspot.com.br/, acessado em 19/04/2017.

http://marxismo21.org/junho-2013-2/#prettyPhoto, acessado em 19/04/2017

http://www.vermelho.org.br/noticia_print.php?id_noticia=218822&id_secao=8 , acessado em 19/04/2017

http://www.escolheavida.com.br/ acessado em 19/04/2017

http://www.deuslovult.org/2013/08/13/a-jornada-da-juventude-pro-vida/ ( acessado em
19/04/2017).

https://oglobo.globo.com/rio/casamento-de-neta-de-jacob-barata-marcado-por-
protesto-9027497, acessado em 16/06/2017.

https://www.youtube.com/watch?v=9Ti_UWpurpE acesssado em 19/04/2017

https://goo.gl/aOCava, acessado em 16/06/2017.

A dimensão do estrago, texto do blog Escreva Lola Escreva, http://


escrevalolaescreva.blogspot.com.br/2013/07/a-dimensao-do-estrago.html, escrito em
29/07/2013, capturado em 10/04/2017.

NOTAS
1. Versões diferentes deste trabalho foram apresentadas no II Encontro Mexicano e Brasileiro de
Antropologia (Brasília, UnB, novembro de 2013), na II Jornada de Antropologia da Devoção (Rio
de Janeiro, MN/UFRJ, dezembro de 2013), na Mesa-Redonda Movimentos do Religioso na
Contemporaneidade (Rio de Janeiro, MN/UFRJ, abril de 2014), no Seminário do Nau (São Paulo, USP,
agosto de 2014); em uma palestra no PPGA da UFPE, Recife, em março de 2015: em um workshop
sobre Antropologia, Arte e Imagem na New York University, Nova York, em fevereiro de 2016 e
no Seminário Power, Politics, and Religion in Brazil: Ruptures, Continuities, and Crisis, em
Edimburgo, na University of Edimburgh em abril de 2017. Nesses eventos, pude me beneficiar dos
debates com o público e com diversos colegas, em especial com Christina Vital da Cunha, que me
estimulou a concluir o trabalho.

Ponto Urbe, 20 | 2017


138

2. “A rapidez com que a marcha se disseminou pelo país e mobilizou a juventude é indissociável
das possibilidades que as novas tecnologias de comunicação oferecem ao ativismo político. Já em
2012, no segundo ano do advento da Marcha das Vadias, 23 cidades, de todas as regiões do Brasil
organizaram protestos usando ferramentas como Facebook, Twitter, YouTube, blogues e emails”
(Gomes & Sorj, 2014: 437).
3. A inviabilização do uso do terreno em Guaratiba foi outro ponto de aquecimento do debate.
Com alto investimento de recursos da Igreja e da Prefeitura do Rio, ele não pode ser utilizado. A
notícia de que um dos donos do terreno era Jacob Barata, um dos maiores empresários de ônibus
do Rio, intensificou as críticas à participação pública na JMJ. Poucos dias antes, em 13 de julho de
2013, o casamento da neta de Barata, chamada nos protestos de “Dona Baratinha”, personagem
infantil, foi alvo de manifestações contra o setor de transportes no Rio, que seria controlado por
uma máfia associada ao governo do prefeito Eduardo Paes, o qual mediara o caro aluguel do
terreno. Sobre as manifestações no casamento, ver https://oglobo.globo.com/rio/casamento-de-
neta-de-jacob-barata-marcado-por-protesto-9027497, acessado em 16/06/2017.
4. Para analisar a performance e suas repercussões, procurei recompor o evento através de
imagens do YouTube, das redes sociais e de notas da mídia, além de ter conversado com colegas
que estiveram lá e de ter entrevistado duas mulheres ligadas à sua organização. Para a montagem
deste trabalho, houve ainda uma reflexão metodológica sobre a internet como campo de
pesquisas antropológicas (cf. Martin, 2003)
5. A chegada a essa temática é devedora dos trabalhos de Mafra (2011) e Wright (1998). Duas
excelentes demonstrações desses imbricamentos estão nas teses de Sant’Anna (2017) e Bandeira
(2017), sobre, respectivamente, a Marcha para Jesus e a música gospel, que foram defendidas na
UFRJ no início do primeiro semestre.
6. A lei Caó (7.716/89), aprovada em janeiro de 1989, definia como crime o ato de praticar
preconceitos de raça ou de cor, sendo ampliada em maio de 1997 para incluir “discriminação ou
preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional” (redação dada pela lei
9.459/97).

RESUMOS
O artigo analisa uma performance envolvendo quebra de imagens religiosas, ocorrida na Marcha
das Vadias de 2013, no Rio de Janeiro, bem como as repercussões que teve. Através da noção de
evento crítico, de Bruce Kapferer, pretende discutir as implicações dos usos de imagens religiosas
em lutas políticas que envolvam identidades.

The article analyzes a performance involving the breakdown of religious images, which took
place at the Slut Walk of 2013, in Rio de Janeiro, as well as the repercussions it had. Through
Bruce Kapferer's notion of a critical event, the intention is to discuss the implications of the use
of religious images in political struggles involving identities.

Ponto Urbe, 20 | 2017


139

ÍNDICE
Keywords: rituals and performance, materialities, religion and politics, religion and identity
politics, religious objects
Palavras-chave: rituais e performance, materialidades, religião e política, religião e política de
identidade, objetos religiosos

AUTOR
RENATA DE CASTRO MENEZES
Professora associada do Departamento de Antropologia do Museu Nacional, Universidade Federal
do Rio de Janeiro.
Doutora em Antropologia Social, 2004, UFRJ; com pós-doutorado na NYU, 2016.
Pesquisadora do CNPq
Email: renata.menezes@pq.cnpq.br

Ponto Urbe, 20 | 2017


140

Resenhas

Ponto Urbe, 20 | 2017


141

Maison du Brésil – cotidiano e


experiência de pesquisadores
brasileiros em Paris
Leonardo Francisco de Azevedo

REFERÊNCIA
BRUM, Ceres Karam. Maison du Brésil – um território brasileiro em Paris. Porto Alegre:
Evangraf, 2014, 231pp.

1 A antropologia brasileira, concebida a partir de referenciais externos, sobretudo


europeus, construiu-se principalmente a partir de uma reflexão sobre nós próprios. Nos
termos de Stocking Jr. (1982), seríamos tradicionalmente uma “antropologia da
construção da nação”, focados em trabalhar “em casa”, em oposição a uma
“antropologia da construção de impérios”, que caracterizou as investigações dos países
do norte global que por muito tempo realizavam suas investigações apenas em terras
estrangeiras. Entretanto, cada vez mais antropólogos brasileiros têm realizado
pesquisas e reflexões sobre a realidade internacional, fazendo etnografia em termos
transnacionais.
2 É neste contexto que se insere o livro “Maison du Brésil – um território brasileiro em
Paris”, publicado em 2014 pela editora gaúcha Evangraf. Este livro foi resultado da
pesquisa de pós-doutorado realizada por Ceres Karam Brumem 2010. A autora, já
conhecedora do cotidiano da Maison desde 2003, quando lá habitou em razão de seu
doutorado sanduiche, retornou àquela casa para torná-la lócus de sua reflexão. O
antropólogo, ao buscar “lugares antropológicos” (AUGÉ, 1994) para realizar sua
etnografia, raramente olha ao seu redor, para o lugar onde ele próprio se encontra.
Brum, nesse livro, nos atenta para esse fato, ao enfatizar que aquela casa, criada
especificamente para receber pesquisadores brasileiros em Paris, era ela própria um
lugar antropológico por excelência.

Ponto Urbe, 20 | 2017


142

3 Esse detalhe é fundamental para compreender a relevância da pesquisa realizada pela


antropóloga. Se há décadas o papel do pesquisador é colocado em questão pela teoria
antropológica, nessa pesquisa a autora não apenas se apresenta no campo, mas tensiona
radicalmente seu lugar, pois ela própria é moradora e pesquisadora da Maison, como
todos os seus interlocutores. O grande desafio apresentado pela pesquisa, portanto, é
como manter o estranhamento necessário para garantir uma reflexão sobre a
alteridade naquele contexto, estando ela mesma dividida entre a condição de “nativa” e
“pesquisadora’.
4 Frente a esse desafio, Brum organiza o livro a partir de três grandes capítulos,
conduzindo o leitor por uma análise multidimensional sobre a Maison du Brésil. Nestes
capítulos a autora apresenta, conforme apontou Ruben Oliven no prefácio do livro, uma
densa etnografia da vida na Maison - ou uma descrição densa, em termos geertzianos
(GEERTZ, 1989).
5 No primeiro capítulo, a autora faz uma reflexão mais ampla, sobre os sentidos e
significados acerca da cidade universitária francesa, especificamente a casa brasileira,
tensionando e revisitando conceitos caros para esse tipo de reflexão – como
cosmopolitismo, internacionalismo e nação – evitando certos tipos de essencialização e
naturalização em torno dessas palavras que, por serem utilizadas em demasia, muitas
vezes acabam por perder a potência de suas definições.
6 A autora nos mostra como o ideal civilizatório francês foi corporificado na Cité
Internationale Universitaire de Paris (CIUP). Essa cidade abriga uma série de casas de
diferentes países – dentre elas a Maison du Brésil. A CIUP foi criada na França com o
objetivo de formar uma pretensa “elite intelectual mundial”, tendo como sustentação a
ideia de uma civilização universalista de formação. O emprego do termo “elite”, que
inclusive era recorrentemente utilizado pelos interlocutores da pesquisadora, servia à
pretensão da Cité em fazer com que “os agentes possuidores de certa distinção social (os
membros da elite) fossem socializados para retornarem a seus países e se tornarem
disseminadores”(BRUM, 2014:29).
7 Já no segundo capítulo, a Maison, até então vista por “fora”, nos é apresentada em seu
íntimo. Brum nos mostra o cotidiano da casa, as interações nos quartos, cozinhas e nos
diferentes andares do edifício. Além disso, nos apresenta como os laços sociais e
acadêmicos são estabelecidos e desenvolvidos ali dentro, bem como os significados
morais produzidos nessas relações.
8 De acordo com a autora, o processo de aprendizagem da convivência, de compartilhar
um mesmo espaço, é uma experiência ao mesmo tempo partilhada, mas
individualmente vivida, pois cada pesquisador ali residente possui seus objetivos e suas
trajetórias, mas estabelece, concomitantemente, laços sociais e acadêmicos, de
identificação e solidariedade, convertidos em laços afetivos. Mesmo que a
individualidade e a vida privada de cada residente ali estejam presentes pelas “portas
fechadas de seus quartos”, há o estabelecimento de grupos na Maison, que por vezes
chegam a se autodesignar como famílias. A autora destaca que sua análise corrobora
com uma intencionalidade existente, nas residências estudantis, de regramento e
promoção da vivência e do coletivismo.
9 Por fim, no terceiro capítulo, a autora nos permite compreender as potencialidades de
se pensar antropologicamente aquele lugar. Longe de ser apenas um espaço de
passagem, a Maison brasileira é constituída de toda a pluralidade, tensões e

Ponto Urbe, 20 | 2017


143

descontinuidades que formam a própria realidade brasileira. A partir dos discursos de


diferentes moradores, Brum nos mostra as dificuldades enfrentadas individualmente –
como a questão da língua, as produções das teses e pesquisas daqueles sujeitos, as
mudanças subjetivas ocorridas – bem como as “imagens do Brasil” constantemente
negociadas e redimensionadas por aqueles moradores.
10 Neste capítulo nos é apresentado, por exemplo, que ao mesmo tempo em que aqueles
estudantes negavam algumas representações acerca do Brasil - como a ideia de um país
idílico e erotizado, representado naquele estabelecimento pela existência de dois
‘manequins’ de índios na entrada do local – buscavam outras categorias para se
reafirmarem enquanto brasileiros, como fazer feijoada e jogar futebol. Nesse processo,
há uma manipulação de imagens partilhadas do Brasil, sendo que estes estudantes,
mesmo estando em um cenário francês, discursado como cosmopolita e multicultural,
selecionam elementos que “alude ao nacional brasileiro e a vivência da diferença tem
como um de seus objetivos suportar as contradições em que se encerram estes
processos educacionais” (BRUM, 2014:159)
11 Desta forma, por mais que a casa e sua própria arquitetura – projetada por Lucio Costa e
Le Corbusier – sejam reflexo do imaginário moderno e civilizado sobre o Brasil, em voga
no período de sua inauguração (1959), o ideal universalista ali pretendido encontra suas
limitações, existindo uma série de práticas e interações que reafirmam as
representações sobre “ser brasileiro”, permitindo àqueles indivíduos se reconhecerem
e de gerar reconhecimento nas interações lá estabelecidas.
12 Fazer uma “antropologia da academia”, nos termos de Lima (1997), exige do
pesquisador um esforço considerável para garantir o estranhamento necessário para a
compreensão da alteridade. Esse desafio esteve presente de forma permanente para
Brum, considerando que seus interlocutores eram todos pesquisadores e/ou estudantes
de pós-graduação, conhecedores e pertencentes ao “mundo” do qual a pesquisadora
vinha. Ficam claros estes dilemas ao perceber que ela encontrava ali uma série de
categorias que a tornava mais “nativa” do que “estrangeira” daquele local: brasileira,
universitária,falante do francês. Entretanto, ao se colocar enquanto uma pesquisadora,
cujo objetivo era apreender a realidade daqueles moradores brasileiros que
vivenciavam uma experiência “privilegiada” no exterior, a autora conseguiu apresentar
para o leitor o esforço antropológico de reflexão em torno daquele lugar, mostrando-o
também como um “lugar antropológico” por excelência.
13 A grande contribuição de Brum, com esse livro, é nos apresentar as casas universitárias
em geral, e a Maison du Brésil em particular, “em sua diversidade como pedra de toque
das particularidades culturais das experiências de sociabilidade, intimidade e educação
dos grupos”. (BRUM, 2014:18), lembrando De Certau, em que “o espaço é um lugar
praticado” (DE CERTAU, 1998:202 apud BRUM, 2014). A partir da etnografia da Maison, a
autora nos mostra como a casa tem um papel fundamental na produção de uma
distinção de certo grupo privilegiado, que tem como pretensão ser a elite intelectual
brasileira. Logo, estar nesse lugar passa consequentemente por incorporar determinado
ethos, que os diferencia dos brasileiros que ficaram em sua terra natal ou mesmo de
outros brasileiros que possam estar em Paris como turistas ou imigrantes.
14 A autora, por fim, nos apresenta no posfácio do livro o seu próprio retorno ao Brasil.
Experiência vivenciada por todos aqueles que se tornaram seus interlocutores de
pesquisa, Brum optou por apresentar sua própria experiência de retorno como
encerramento da obra. Num misto de nostalgia e síntese, nos é apresentada a trajetória

Ponto Urbe, 20 | 2017


144

da própria pesquisadora em sua investigação na casa. Recorrendo a Wacquant (2002),


em que redefine a observação participante como “participação observante”, Brum
destaca que tal opção não se deu apenas como um recurso metodológico, “mas
especialmente do ponto de vista do desejo do pesquisador, de seu processo de
subjetivação em relação à aceitação do grupo e a si mesmo” (BRUM, 2014:178).
15 Considerando a reflexão constantemente acionada na antropologia sobre o lugar do
pesquisador na realização da etnografia, talvez a grande contribuição de Brum seja a
disposição e sinceridade em pensar seu próprio papel naquele contexto, em que muitas
vezes ela era mais atriz do que observadora da Maison.
[...] é necessário admitir que vivi uma contradição latente no processo de
observação participante. Por vezes fui mais residente que pesquisadora (mais ator
que observador), sem que, no entanto, tenha sentido minha capacidade de
estranhamento prejudicada. [...]Viver na Maison du Brésil foi um desafio diário de
relativização de meus objetivos e desejos acadêmicos e pessoais, em que fui também
uma residente em trabalho de campo como tantos outros que lá residiram e que
estabeleceram um conjunto de laços sociais temporários, mas muito marcantes e
por isso perenes. Eles (sem exagero) nos fazem suportar e levar a termo um séjour
de pesquisa em Paris. (BRUM, 2014:184)
16 O dilema apresentado por Brum certamente é o dilema vivido por grande parte dos
antropólogos e antropólogas em campo, que, em diferentes graus, são constantemente
afetados, requerendo dos interlocutores a cumplicidade necessária para conseguirem
vivenciar aquele lugar e, sobretudo, terem a capacidade de objetivar a experiência em
sua totalidade para então produzir a tão sonhada etnografia. Brum, longe de deixar
acobertada essa dimensão tão pessoal e íntima do pesquisador, faz de sua própria
experiência o fio condutor de uma reflexão mais ampla e pertinente sobre o que
significa ser um pesquisador, em terras estrangeiras, de um país tão contraditório e
desigual como o Brasil. Dessa forma, mostra que a antropologia brasileira,
tradicionalmente uma “antropologia da construção da nação” (STOCKING JR.,1982), tem
acúmulo suficiente para reflexões além das fronteiras nacionais, com contribuições à
teoria antropológica.

BIBLIOGRAFIA
AUGÉ, Marc. 1994.Não-lugares: Introdução a uma antropologia da sobremodernidade.Lisboa:
Bertrand Editora.

BRUM, Ceres Karam. 2014.Maison duBrésil – um território brasileiro em Paris. Porto Alegre:
Evangraf.

GEERTZ, Clifford. 1989. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC.

LIMA, Roberto Kant de. 1997.Antropologia da academia: quando os índios somos nós. Niterói:
EDUFF.

STOCKING JR., George W. 1982. “Afterword: a view from the center”. Ethnos, v. 47, n. 1-2:172-186.

Ponto Urbe, 20 | 2017


145

WACQUANT, Loïc. 2002.Corpo e alma: Notas etnográficas de um aprendiz de boxe. Rio de Janeiro:
Relume Dumará.

AUTOR
LEONARDO FRANCISCO DE AZEVEDO
Doutorando em Ciências Sociais - PPGCSO/UFJF
leonardoazevedof@gmail.com

Ponto Urbe, 20 | 2017


146

Resenha: “A maior zoeira” na escola


– Experiências juvenis na periferia
de São Paulo
Cristiane Gonçalves da Silva

REFERÊNCIA
PEREIRA, Alexandre Barbosa. “A maior zoeira” na escola – Experiências juvenis na
periferia de São Paulo. São Paulo: Editora UNIFESP, 2016, 235pp.

1 O livro é resultado de tese de doutorado em Antropologia Social de Alexandre Barbosa


Pereira, concluída em 2010 na Universidade de São Paulo, que, nos termos do próprio
autor, se configura na interface entre antropologia, estudos culturais e educação. A condição
juvenil, interesse central da obra, é apreendida em múltiplas experiências,
caracterizando a etnografia como multissituada, interessada em temas e não em objetos
delimitados. Juventude e cidade são categorias orientadoras da etnografia realizada em
cinco escolas; quatro públicas, em bairros da zona Sul e Norte de São Paulo e uma escola
privada em bairro de classe média no centro-leste, onde o autor assumiu a condição de
professor durante a realização da pesquisa. Nesse processo, identificou elementos
comparativos e singulares em cada escola, além da observação realizada em outros
espaços: lan houses, bailes funk, eventos culturais e de lazer, salas de discussão na
internet. A leitura nos convida a dar atenção às inquietações do autor geradas nos
encontros com jovens nos bairros periféricos e ao amplo debate teórico que estabelece
com pesquisadores interessados, como ele, na condição juvenil e na escola,
privilegiando o debate sobre as relações lúdicas e jocosas. Pereira reafirma, do começo
ao fim do trabalho, interesse pelas experiências juvenis periféricas que pautam as
experiências escolares e são por elas pautadas e pelos nexos existentes entre a noção de
juventude, categoria relacional e contextualizada, e a cidade. A escrita é organizada em
três capítulos que descrevem, na ordem, as experiências juvenis na periferia, na escola
e na zoeira de modo intercambiado. A experiência etnográfica é descrita como tensa e

Ponto Urbe, 20 | 2017


147

conflituosa e orientada pela definição de escola como uma das agências responsáveis
pela definição de juventude, como detentora de estruturas globais configuradas por
dispositivo disciplinar, no sentido foucaultiano, e de uma realidade específica.
Destacam-se as tecnologias que alteram as relações sociais na contemporaneidade e a
zoeira como categoria central na compreensão das práticas lúdicas e jocosas que
podem, não raramente, utilizar agentes tecnológicos. É desestabilizadora da rotina e
regras escolares, é agonística. Carrega também doses de machismo, racismo e outros
preconceitos, além de flertar com a criminalidade. Pela experiência juvenil, o autor
apreende a forma como se constitui a experiência escolar na desestabilização da
disciplina, tomada na dissonância em relação aos discursos e práticas de controle da
escola. As zoeiras questionam a eficácia disciplinar e, ao mesmo tempo, reafirmam
preconceitos. Ao final da introdução, inspirado pelas reflexões dos estudos culturais,
destaca a forma como a periferia se define pela condição subalterna do jovem periférico
sem desembocar numa condição de passividade.
2 As experiências juvenis periféricas, multifacetadas e contextuais, são discutidas a partir
dos múltiplos usos da categoria periferia pelos moradores e por pesquisadores do tema.
O capítulo um é organizado em torno de binarismos que emergem do campo, pensados
como conceitos relacionais: funk/rap; centro/periferia; masculinidade/feminilidade, de
modo a romper com visões reducionistas, ao empreender análise relacional das
distintas dimensões constitutivas da condição juvenil, para além das dicotomias já
exaustivamente discutidas pelas ciências sociais. Ao privilegiar o modo como os jovens
atribuem sentidos múltiplos e paradoxais às dicotomias, o autor escapa de definições
rígidas. Problematiza a dicotomia centro/periferia e sua disputa de sentidos, a partir
dos bairros Cidade Ademar e Jardim Elisa Maria, descritos no livro também pelos
indicadores de vulnerabilidade social, como parte de distritos específicos. A estratégia
argumentativa lança mão da ideia de quebrada, tomada como ilustrativa da
multiplicidade de sentidos que, tal como periferia, pode adquirir. Pensar em quebrada é
pensar, ao mesmo tempo, tanto em relações comunitárias como em criminalidade.
Ruas, escolas, lan houses e comunidades do Orkut deram visibilidade às tecnologias e ao
funk (nos carros, nos celulares na sala de aula) como relevantes para a experiência
juvenil. Nos bailes funks de rua que acompanhou, as dinâmicas de sociabilidade juvenil
revelaram performatividades de gênero, nos convocando a pensar na subalternidade e
centralidade dos corpos atravessados pelo gênero e pela raça, relevantes para
compreender a atual geração de jovens. Funk, motos, carros, celulares e outras
tecnologias são elementos importantes das relações, denominadas pelo autor de lúdico-
agonísticas nas dinâmicas juvenis, interferindo nas dinâmicas escolares e vice-versa.
Repertórios de violência e criminalidade são acionados nas práticas juvenis
estabelecidas na escola e apresentam conteúdos ambivalentes. As discussões sobre as
questões de gênero são reconhecidas como relevantes pelo autor, mas o livro não tem
fôlego para maiores desdobramentos teóricos em torno das masculinidades que se
destacam no campo e de seu aspecto relacional com feminilidades, entre outras
questões de gênero que aparecem do começo ao fim do texto. Utiliza o recurso
comparativo na discussão e, como exemplo, destaco a narrativa em torno do funk e hip-
hop, movimentos que estabelecem um ponto de vista sobre a periferia a partir dela
mesma. O livro debate sobre a possibilidade de um novo tipo de centralidade para a
performatividade feminina oferecida pelo funk, a partir de relação mais explícita com a
sexualidade. Conta que para o hip-hop a centralidade se dá politicamente, pela inserção
de pautas políticas e na crítica social. No funk, a centralidade se dá no consumo de bens,

Ponto Urbe, 20 | 2017


148

como no estilo funk ostentação (do consumo), e/ou exaltando a criminalidade, inclusive
como via de acesso ao consumo. Periferia e centro são categorias relacionais, abordadas
deste modo pois, se tomadas isoladamente, esvaziam-se de sentido, argumenta o autor
inspirado pelas discussões de Stuart Hall.
3 A escola é reinventada pelos jovens no jogo cotidiano das sociabilidades juvenis e, ao
mesmo tempo, contribui para a noção de juventude. As experiências escolares, tratadas
no capítulo dois, são potencializadas no cuidadoso diálogo com autores da sociologia e
antropologia da educação. Escola é tomada de forma ampla, como invenção cultural que
se caracteriza pela organização e utilização padronizada do tempo; como aparelho
tecnológico compondo dispositivo educacional. O autor esteve nas escolas durante
período suficiente para identificar muitas dificuldades do cotidiano, além dos desafios
próprios da posição liminar do antropólogo. Em campo, despertou desconfiança nos
alunos e professores e teve um percurso etnográfico autoqualificado como extenuante e
angustiante. Viveu a rigidez da escola no cumprimento das regras, o que reforçou sua
função de disciplinamento, apesar do processo de desinstitucionalização em curso
anunciado por vários autores. Na sala de aula pôde observar as dinâmicas das
interações juvenis de forma mais intensa, mas também participou de rodas, jogos e
conversas no pátio, considerado pelos estudantes como o espaço mais importante da
escola. Observou a circulação nos diferentes ambientes e o modo como muros e trancas
tentavam impedir a comunicação entre áreas internas da escola e o mundo externo.
Aproximou-se do descontentamento em relação à condição docente e do esforço dos
professores (incluindo ele próprio) em recuperar algum lugar de autoridade, enquanto
via como estudantes, num movimento resistente, assumiam postura desafiadora da
autoridade docente, além de protagonizarem gozações. O interesse do pesquisador pelo
modo como jovens se apropriavam da escola era justamente o que o corpo docente
achava que devia ser eliminado. Observou tensão constante na relação entre
professores e estudantes. Muitas vezes, professores referiam-se aos estudantes como
marginais e/ou vítimas de desestruturações familiares, perspectivas que os
subalternizam e tidas como determinante para abandono da escola. Temporalidade
apareceu como importante marcador da experiência escolar, ao apresentar-se de forma
múltipla. Estudantes experimentam o tempo de maneira cíclica, pelos elementos que
organizam o cotidiano escolar, e de forma linear na seriação dos anos letivos.
Temporalidades institucionais eram contrapostas pelas temporalidades das
brincadeiras juvenis, baseadas na vivência entre pares, permitindo libertação da rotina
e do tempo da escola. Uma potência do trabalho é atribuir relevância para situações que
colocaram em xeque o caráter disciplinador e de autoridade (do professor). Zoar é
zombar da ordem escolar, mas geralmente é bem mais que isso, quando revelam as
insistentes tentativas de retomar o controle sobre os alunos que, quase sempre,
fracassam. O livro mostra reinvenção do espaço e da instituição escolar a partir de
condições impostas pelos estudantes, por suas temporalidades e ludicidades, ainda que
perpetuando desigualdades sociais nas formas de se expressar, revelando um
movimento reverso na reprodução social efetivada pela escola. Mostra descompasso
entre repertórios juvenis e escolar e rechaço dos símbolos juvenis pelos profissionais da
educação. Debate como a insistência institucional disciplinadora choca-se com os
modos de expressão juvenil, nas disjunções e conjunções construídas socialmente e que
articulam a experiência juvenil a outras experiências nas relações do cotidiano escolar.
Na condição de etnógrafo-docente, o autor pode discutir autoridade, categoria central
no trabalho, valendo-se da compreensão sobre o atravessamento geracional sentido na

Ponto Urbe, 20 | 2017


149

própria pele e que deu acesso a uma outra dimensão distante de sua experiência como
pesquisador a quem foi permitido, como observador, aproximar-se dos estudantes. Na
condição de pesquisador-docente, apreende o caráter relacional das experiências de
estudante e experiência de professor, em confronto. Diante de sua turma se deu conta
do quanto seus alunos não estavam preocupados com o que ele tinha a dizer e do
quanto tentavam burlar as regras, tornando mais nítida a disputa entre ludicidade e a
seriedade encarnada na temporalidade oficial da escola e nas tentativas de aplicação
das normas encarnadas pelos professores.
4 A sociabilidade performática estudantil, que provoca desestabilização das normas,
disjunção e conjunção, é central no capítulo três. Estão presentes nas relações de
amizade ou agressividade, incluindo nas zoeiras com o pesquisador, apelidado de “Bin
Laden”, e marcaram a própria etnografia pela experiência e peculiaridade das zoeiras
entre homens, dos meninos com o pesquisador. Na leitura, lida-se com uma certa
expectativa (frustrada) por um debate ampliado sobre masculinidades nessa relação, o
que não atrapalha o curso potente da obra em mostrar os caminhos etnográficos
encontrados nas brincadeiras que traduziram uma dimensão importante da condição
escolar e juvenil. O ato de zoar é ambíguo e mobiliza, na articulação de elementos
jocosos e agonísticos, dinâmicas relacionais integrativas e disruptivas. O riso que a
zoeira provoca pode ser amistoso e cruel, desestabiliza a dinâmica escolar que se
pretende regrada e controlada e é visto como desrespeito. A zoeira é elemento
relevante na escola, encarna o lúdico nas sociabilidades juvenis, apresentando aspectos
de socialidade e conflito. O autor aponta para profundas alterações nos modos de ser
jovem na atualidade a partir das relações estabelecidas com as novas tecnologias de
comunicação e com a presença delas nas sociabilidades da escola, particularmente
celulares e aparelhos sonoros que ajudam no rompimento com regras escolares ao
mesmo tempo que articulam espaço de convivência juvenil e lazer, permitindo fuga
subjetiva de lá, apesar das trancas. Aproximar-se das meninas no campo foi
condicionado às limitações de gênero, deixando o pesquisador mais próximo dos
rapazes para realizar a etnografia que, nessas condições, revelou predomínio masculino
nas dinâmicas das zoeiras e uma participação feminina menos performática e
agonística, demarcando fronteiras de gênero. As performances centrais são masculinas,
mesmo quando reforçavam uma condição de subalternidade, como era o caso das
brincadeiras homofóbicas. Discute acerca da jocosidade heteronormativa das
brincadeiras que subalternizavam sexualidades não heterossexuais, inclusive em
expressões utilizadas pelo professor ao se permitir zoar com estudante, zombando de
sua (possível) homossexualidade. Zoeiras mais agressivas ou até violentas
materializavam um modo de masculinidade hegemônica que se define relacionalmente.
No jogo de forças, a escola parece permissiva com as performances lúdicas
protagonizadas pelos meninos. O livro assume uma genereficação da zoeira, dando
pistas interessantes, apesar de usar algumas vezes, a palavra sexo como sinônimo de
gênero. Indica necessidade de trabalhos etnográficos sobre as especificidades da
participação das meninas nas zoeiras inclusive para entender melhor expressões de
feminilidade em corpos lidos como pertencentes a homens e vice-versa. Narra situações
onde meninas empreenderam atitudes que desestabilizaram a ordem e autoridade de
forma, inclusive, beligerante. Tipo de ocorrência que, justamente por escapar dos
referenciais de feminilidade esperados, ganhavam visibilidade institucional e eram
enquadradas por julgamentos morais. A centralidade do corpo na escola é discutida a
partir das sociabilidades performáticas juvenis das zoeiras que continham, elas

Ponto Urbe, 20 | 2017


150

próprias, pretensos elementos para controlar os corpos. Ressalta maior participação


das mídias do que de instituições tradicionais na constituição das subjetividades juvenis
contemporâneas. Destaca o modo dialético de operar das regras e reiterações
normativas e das reações contra-hegemônicas dos estudantes. O componente racial das
relações de ludicidade se entrelaçavam a outros marcadores como gênero e classe social
o que, para o autor, revelou no cotidiano escolar das zoeiras a complexidade específica
das questões raciais no Brasil. Em análise atenta, alerta para o risco reducionista de
tomar as zoeiras somente como reações contra-hegemônicas à imposição de controle e
disciplinamento quando, de fato, também concentram doses elevadas de elementos que
reforçam a subalternização e a discriminação. Mesmo tendo em conta o caráter
ofensivo da zoeira, toma-a como importante empreendimento estudantil, que expõe a
engrenagem disciplinar rigorosa operada pela escola assim como os sinais de sua
saturação. Na discussão sobre a centralidade dos corpos, aponta a oscilação entre
padrões hegemônicos de corporeidade ditados por outras agências, o que inclui
comportamentos de resistência ou pela afirmação da violência e criminalidade. Na
discussão, reitera Judith Butler e suas considerações acerca do modo como os corpos se
constituem em atos contínuos de reiteração de permorfatividades masculinas e
femininas, produzindo uma superfície política de relevância observada pelo autor nas
performances lúdico-agonísticas empreendidas nos corpos dos estudantes.
5 A finalização do livro é tecida em reafirmações acerca do interesse do autor em
compreender e descrever respostas criativas dos agentes jovens nos espaços escolares e
em outros pedaços relevantes para constituição da condição juvenil. Reitera a
relevância das novas configurações de subjetividades juvenis e tecnologias de
entretenimento que subvertem a organização do cotidiano escolar. Rediscute o modo
como alteridade e autoridade (ou suas ausências) marcam as experiências cotidianas dos
estudantes e professores, e a própria experiência etnográfica, e constituem-se como
chaves de compreensão da condição juvenil na escola. O livro é potente na discussão
metodológica-conceitual sobre a zoeira como categoria capaz de escancarar questões
nevrálgicas do cotidiano escolar, como o encontro intergeracional e os conflitos por ele
gerados. Aponta lacunas, em termos de pesquisas e da própria prática educacional,
além de indicar a necessidade de considerar a experiência educativa como constitutiva
da crise da sociedade disciplinar. Mostrou como atitudes de acirramento da rigidez e do
confinamento escolar têm se mostrado inócuas. Por fim, destaca a importância de
ampliação do repertório escolar para que jovens tenham melhores condições de
aprender a lidar com as diferenças. Com este vigoroso debate, o livro é recomendado
para pesquisadores e interessados pela escola em geral, por apresentar novas
perspectivas acerca das negociações e agenciamentos dos atores na escola e porque
ajuda a problematização dos currículos, das relações escolares e da formação de
educadores.

Ponto Urbe, 20 | 2017


151

AUTOR
CRISTIANE GONÇALVES DA SILVA
email: cristiane.goncalves.silva@gmail.com
Pós-doutoranda do Departamento de Antropologia da Universidade de São Paulo e do Programa
de Pós-Doutorado da Faculdade de Ciências Sociais da Universidade de Buenos Aires
Docente da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP)/ Instituto de Saúde e Sociedade -
Campus Baixada Santista

Ponto Urbe, 20 | 2017


152

Reinvenções e controvérsias: a
necessidade da tradição e as
disputas em torno da
regulamentação da ayahuasca
Henrique Fernandes Antunes

REFERÊNCIA
LABATE, Beatriz Caiuby; CAVNAR, Clancy; GEARIN, Alex K.. The world ayahuasca diaspora:
reinventions and controversies. New York: Routledge, 2016, 270 pp.

1 Ayahuasca, um ser divino, uma planta mestra, enteógeno, alucinógeno, remédio,


terapia, droga, ferramenta cognitiva, commodity, chá. As definições associadas à
ayahuasca são quase tão diversas quanto seus usos. De fato, o uso da ayahuasca em todo
o mundo é composto de diversas práticas - xamanismo indígena, grupos religiosos, uso
terapêutico, grupos neoxamânicos associados ao movimento da nova era, formas
particulares de turismo e empreendedorismo, etc. Tal variedade de práticas, usos e
grupos, fazem parte do que os autores intitularam de “diáspora mundial da ayahuasca”,
ou o boom da ayahuasca. Assim, este volume apresenta uma tarefa importante: tentar
compreender as complexidades das formas de consumo da ayahuasca, à medida que seu
uso se expande em todo o mundo, dando margem à reinvenções e controvérsias.
Questões como tradição, identidade, legitimidade, estigmatização, disputas entre
grupos, processos judiciais, políticas de drogas, ganham uma nova perspectiva através
da lente da diáspora da ayahuasca. À luz da complexidade destas questões, um tema
chama particularmente a atenção dos leitores: as controvérsias. Sejam as controvérsias
internas do meio ayahuasqueiro, que surgem na medida que seu uso se dissemina pelo
mundo, se diversificando e criando novas práticas em torno da bebida. Sejam as
controvérsias legais que alguns grupos e praticantes enfrentam quando se tornam o
foco de repressão ou regulamentação governamental.

Ponto Urbe, 20 | 2017


153

2 Neste volume, Dawson (2016) fornece uma análise importante para abordar o primeiro
problema, investigando o que ele denominou de processos de retradicionalização
associados à diáspora mundial da ayahuasca. Segundo o autor, trata-se de uma
reconfiguração que envolve a recapitulação de crenças e práticas tradicionais de uma
maneira que não só leva a reinvenções através de um processo de hibridização, mas
também pode criar novas tradições, com a introdução de novos rituais, crenças e
valores anteriormente ausentes do imaginário amazônico. Frequentemente, esses
processos não ocorrem sem tensões, e o surgimento de controvérsias coloca novos
problemas e apresenta novos desafios. Por exemplo, Labate e Assis ressaltam que a
difusão do Santo Daime pelo ICEFLU em todo o Brasil e em muitas partes do mundo
conduziu a instituição a uma dinâmica social inteiramente diferente que a transformou
em uma religião global, capaz de se adaptar a concepções mais plurais, subjetivas e
individuais. Ao mesmo tempo, a capacidade de adaptação da instituição não é ilimitada
e algumas tensões tornaram-se visíveis à medida que o grupo se expandiu. Uma das
mais recentes controvérsias refere-se às disputas sobre a possibilidade de traduzir os
hinos Santo Daime atestados por Labate, Assis e Cavnar (2016). Em um lado da disputa,
os “tradicionalistas” insistem em manter a letra dos hinos em português, mantendo-se
o mais próximo possível da forma como são tocados e cantados no Brasil. Por outro
lado, “tradutores” argumentam que a tradução de hinos é uma forma positiva de
adaptação cultural (Labate, Assis, Cavnar, 2016: 112). Uma vez que não existe uma
política ou orientação institucional clara para esse assunto, essas visões tendem a
coexistir e colidir, resultando no que os autores chamam de “guerras de tradução”
(Labate, Assis, Cavnar, 2016: 115). Neste contexto, as disputas sobre noções de
identidade e legitimidade são postas em movimento para construir noções particulares
de tradição e ortodoxia.
3 Algumas controvérsias mais específicas também podem surgir dependendo do contexto
nacional em que o grupo está inserido. Como Eli Sheiner (2016: 89) demonstrou,
algumas preocupações foram levantadas sobre a adaptabilidade de algumas das práticas
do Santo Daime à cultura canadense, como a espiritualização de comportamentos
potencialmente patológicos. Outro exemplo pode ser visto na abordagem das relações
de gênero. O Céu do Montreal, uma das poucas igrejas de Santo Daime lideradas por
uma mulher, abordou frequentemente a questão da desigualdade de gênero, buscando o
mesmo tipo de responsabilidades e deveres entre homens e mulheres, como o direito de
liderar rituais e servir o chá. Como resultado, a igreja teria enfrentado resistências
institucionais no Brasil (Sheiner, 2016: 91). No entanto, este não é um fenômeno
localizado e individual. Labate, Assis e Cavnar ressaltam que, à medida em que há uma
expansão para um novo contexto geográfico, social e cultural, alguns aspectos do grupo
considerados problemáticos ou incongruentes com o contexto local, neste caso, práticas
entendidas como sexistas e reacionárias, podem ser suprimidas ou ganhar uma nova
roupagem, em um processo de negociação entre autenticidade e adaptabilidade local
(Labate et al, 2016: 107).
4 Deixando as religiões ayahuasqueiras de lado e focando nos impactos locais do boom da
ayahuasca na Amazônia peruana, Joshua Homan (2016) tenta entender como a diáspora
ayahuasca criou novas controvérsias na Amazônia urbana e nas comunidades rurais.
Homan argumenta que a ayahuasca é crucial para uma indústria multimilionária nos
centros urbanos da Amazônia, em parte devido ao aumento do turismo xamânico na
região nas décadas anteriores. Esta nova indústria estaria afetando a vida social e

Ponto Urbe, 20 | 2017


154

econômica de muitos indivíduos. Por exemplo, o turismo xamânico teria desencadeado


o surgimento de uma diferença de renda entre aqueles que trabalham com turistas e
aqueles que trabalham principalmente dentro das comunidades locais. Nesse contexto,
o acesso da comunidade local aos vegetalistas pode sofrer, na medida em que alguns
deles tendem a expandir suas redes, privilegiando novos clientes.
5 Este fenômeno é parte do que Daniela Peluzo (2016: 205) descreveu como
“empreendedorismo da ayahuasca”. Como Homan, Peluso argumenta que este novo
sistema empresarial tem acarretado diversos impactos negativos sobre as populações
locais que dependem de ayahuasqueiros por razões de saúde, pois estes teriam se
tornado cada vez mais inacessíveis ao priorizarem suas obrigações junto aos turistas.
Paralelamente a esse processo, este novo desenvolvimento teria dado margem a
disputas entre os xamãs, as quais se desdobraram em acusações de falta de
conhecimento, de estarem mais interessados em fornecer um alucinógeno para
estrangeiros do que se concentrar na cura, de práticas de feitiçaria, ou mesmo
acusações criminais como tráfico de drogas e assédio sexual (Homan, 2016: 173).
6 Outro aspecto desse processo, de acordo com Homan, é que “o xamanismo ayahuasca
em si foi deslocado de suas raízes amazônicas por meio da mercantilização de seus
componentes centrais” (Homan, 2016: 166, tradução nossa). Assim, as práticas de
vegetalismo associadas diretamente ao turismo xamânico e à diáspora ayahuasca
teriam desencadeado uma versão sanitizada do xamanismo ayahuasca, desvinculada
dos aspectos ambivalentes e negativos da feitiçaria e mais associada ao imaginário da
Nova Era e aos elementos curativos. Estas mudanças estruturais nas práticas e nos
valores culminam em questões relativas à autenticidade, provenientes não apenas da
população local, mas de turistas e estudiosos. Nesse cenário, a autenticidade, como
argumenta Dawson, está profundamente ligada à noção de identidade, de modo que a
maioria dos xamãs apresenta algum tipo de alegação de que possui alguma herança
indígena ou passou por alguma forma de treinamento com grupos indígenas (Homan,
2016: 176-177).
7 De fato, quando analisamos a complexidade das religiões ayahuasqueiras e suas
diferentes manifestações, as controvérsias sobre o turismo xamânico e as novas formas
de associação com o movimento new age, é cada vez mais difícil delinear quaisquer
tradições originais e afiliações duradouras. No entanto, é possível afirmar que, no
interior dessa construção de práticas e tradições, é frequente ver construções
genealógicas que sempre parecem estar ligadas a práticas imemoriais indígenas. Assim,
é necessário levar a consideração de Dawson a sério quando este conclui que: “se a
tradição não existisse, teria que ser inventada”. Esta inevitabilidade da “tradição”, quer
seja indígena, vegetalista, neoxamânica, parece ser fruto de uma necessidade
recorrente em criar legitimidade e autoridade em um contexto em que as práticas e os
limites do uso da ayahuasca se expandem em novas direções. Nesse panorama de
incessantes reinvenções e controvérsias, o uso da ayahuasca parece cada vez mais
inseparável da noção de “tradição”, enquanto a ayahuasca passa por sua diáspora
mundial.
8 Outro conjunto de controvérsias emerge quando grupos ayahuasqueiros ou praticantes
independentes enfrentam desafios legais junto aos governos locais. Um caso
interessante apresentado no livro diz respeito aos trâmites legais da ayahuasca nos
tribunais ingleses. Charlotte Walsh (2016) explora o caso de Peter Aziz, que forneceu
ayahuasca para um grupo de clientes como parte de rituais xamânicos baseados na

Ponto Urbe, 20 | 2017


155

busca da iluminação e desenvolvimento pessoal. Segundo Walsh, Aziz foi preso após
uma cerimônia realizada em um hotel. Mais tarde, ele foi processado e condenado por
um júri por produzir uma droga Classe A - dimetiltriptamina (DMT) - e fornecê-la a
outros, o que resultou em uma pena de prisão de quinze meses. A defesa de Aziz
baseou-se em dois argumentos principais: em primeiro lugar, que a queixa contra ele
consistia num abuso processual. Na perspectiva da defesa, a exigência de segurança
jurídica consagrada no artigo 7º da Convenção Europeia de Direitos Humanos (CEDH)
não foi cumprida, uma vez que o estatuto jurídico da ayahuasca não era claro. Segundo,
mesmo se a ayahuasca fosse contemplada pela legislação britânica sobre drogas, Aziz
deveria ter recebido uma isenção da proibição por motivos religiosos, de acordo com o
artigo 9 da CEDH (Walsh, 2016: 243-244).
9 Um dos aspectos interessantes que Walsh destacou sobre o caso diz respeito ao choque
de narrativas. De um lado, a defesa retratou a ayahuasca como uma poção de cura
xamânica com propriedades espirituais e Aziz como praticante de uma tradição cultural
e religiosa baseada no xamanismo amazônico. Em contrapartida, o tribunal tratou Aziz
como um químico que produzía uma droga ilícita. Neste confronto, a narrativa de
defesa perdeu e a ayahuasca foi considerada pelo tribunal inglês como uma substância
proibida, rejeitando as alegações de Aziz baseadas na CEDH. Este é apenas um dos
muitos casos legais em todo o mundo envolvendo o uso da ayahuasca que gira em torno
de questões como o uso e tráfico de drogas, saúde pública, segurança pública, liberdade
religiosa, políticas de reconhecimento. Esse tipo de controvérsia legal está se tornando
cada vez mais frequente em um contexto em que a diáspora da ayahuasca ganha força.
Nesse sentido, não só os governos nacionais desempenham um papel fundamental,
como também os conselhos internacionais, ONGs e atores sociais como juristas,
pesquisadores, acadêmicos, os quais se inserem progressivamente neste debate,
disputando as maneiras pelas quais as narrativas sobre ayahuasca são construídas.
10 Outro exemplo importante apresentado no livro refere-se o papel da Junta
Internacional de Fiscalização de Entorpecentes (JIFE) da ONU e sua posição em relação à
ayahuasca, mobilizada ao mesmo tempo por governos e por aqueles que defendem o
seu uso ritual. Inicialmente, o conselho concluiu em 2001 que a ayahuasca não estava
sob controle internacional, não estando sujeita a nenhum dos artigos da Convenção das
Nações Unidas sobre Substâncias Psicotrópicas de 1971. No entanto, uma década mais
tarde, a JIFE propôs que os governos nacionais deveriam considerar o controle de certas
plantas psicoativas, transferindo para os estados o poder de decidir se a ayahuasca
deveria ser proibida ou regulamentada. Outro exemplo interessante é o papel cada vez
mais ativo desempenhado pelo International Center for Ethnobotanical Education,
Research and Service (ICEERS). O ICEERS apresenta-se como uma organização sem fins
lucrativos, comprometida com a luta contra a criminalização da ayahuasca e com a
promoção da regulamentação da bebida. Além de prestar assistência jurídica aos
usuários e grupos de ayahuasca, o ICEERS ajudou a desenvolver os Critérios de Apoio ao
Fundo de Defesa da Ayahuasca, compostos de treze princípios baseados em incidentes
ocorridos no passado recente (Loenen, Franquero, Avilés, 2016).
11 A título de conclusão, gostaria de destacar a contribuição do volume para compreender
essas questões e seus desdobramentos, visto que o avanço da diáspora mundial da
ayahuasca inevitavelmente levará a novas reinvenções e controvérsias. Estes processos
estão geralmente associados a disputas em relação aos usos e apropriações de certas
categorias e práticas, e frequentemente colidem com a estrutura legal de muitos

Ponto Urbe, 20 | 2017


156

estados nacionais. Deste modo, novas concepções de tradição serão criadas e novas
formas de estabelecer legitimidade entre grupos e entre governos nacionais serão
mobilizadas, abalando a paisagem já instável dessa diáspora. Este esforço coletivo nos
propõe, portanto, uma abordagem audaciosa para enfrentar esses desenvolvimentos,
evitando respostas simples para questões complexas e tentando colocar em perspectiva
as questões em jogo. Assim, este volume não é apenas uma contribuição importante
para a compreensão dos novos desafios que nos são apresentados, mas também abre
caminho para uma melhor compreensão dos novos desafios.

BIBLIOGRAFIA
DAWSON, Andrew. 2016. “If tradition did not exist, it would have to be invented:
retraditionalization and the world ayahuasca diaspora”. In: LABATE, Beatriz Caiuby; CAVNAR,
Clancy; GEARIN, Alex K.. The world ayahuasca diaspora: reinventions and controversies. New York:
Routledge. pp. 19-38.

HOMAN, Joshua. 2016. “Disentangling the ayahuasca boom: local impacts in Western Peruvian
Amazonia”. In: LABATE, Beatriz Caiuby; CAVNAR, Clancy; GEARIN, Alex K.. The world ayahuasca
diaspora: reinventions and controversies. New York: Routledge. pp. 165-182.

LABATE, Beatriz Caiuby; ASSIS, Glauber Loures de; CAVNAR, Clancy. 2016. “A religious battle:
musical dimensions of the Santo Daime diaspora”. In: LABATE, Beatriz Caiuby; CAVNAR, Clancy;
GEARIN, Alex K.. The world ayahuasca diaspora: reinventions and controversies. New York: Routledge.
pp. 99-122.

LOENEN, Benjamin K. de; FRANQUERO, Òscar Parés; AVILÉS, Constanza Sánchez. 2016. “A climate
for change: ICEERS and the challenges of the globalization of ayahuasca”. In: LABATE, Beatriz
Caiuby; CAVNAR, Clancy; GEARIN, Alex K.. The world ayahuasca diaspora: reinventions and
controversies. New York: Routledge. pp. 223-242.

PELUSO, Daniela M.. 2016. “Global ayahuasca: an entrepreneurial ecosystem”. In: LABATE, Beatriz
Caiuby; CAVNAR, Clancy; GEARIN, Alex K.. The world ayahuasca diaspora: reinventions and
controversies. New York: Routledge. pp. 203-222.

SHEINER, Eli Oda. 2016. “Culling the spirits: an exploration of Santo Daime’s adaptation in
Canada”. In: LABATE, Beatriz Caiuby; CAVNAR, Clancy; GEARIN, Alex K.. The world ayahuasca
diaspora: reinventions and controversies. New York: Routledge. pp. 79-98.

WALSH, Charlotte. 2016. “Ayahuasca in the English courts: legal entanglements with the jungle
vine”. In: LABATE, Beatriz Caiuby et al., The world ayahuasca diaspora: reinventions and controversies.
New York: Routledge. pp. 243-262.

AUTOR
HENRIQUE FERNANDES ANTUNES
Doutorando PPGAS/USP

Ponto Urbe, 20 | 2017


157

Pesquisador Associado do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (CEBRAP)


hictune@yahoo.com

Ponto Urbe, 20 | 2017


158

Tradução

Ponto Urbe, 20 | 2017


159

Festividade: Formas moderna e


tradicional de sociabilidade
Festivity: Traditional and Modern Forms of Sociability

Xavier Costa
Tradução : Breno Alencar

1 Este artigo se preocupa em discutir a sociabilidade e a esfera pública do Festival do Fogo


"Fallas". Argumenta-se que a sociabilidade festiva distintiva do fallas, que é básica para
a transmissão da tradição, é o lugar da interação entre a tradição festiva e as
experiências modernas e contemporâneas. Essa convivência tem uma reflexividade que
é a base da esfera pública do fallas. Por tanto, o fallas propõe uma maneira específica de
interpretar a modernidade. Além disso, o texto procura criticar um tipo de visão
"modernista" dominante que ignora a questão da transmissão da tradição e ressalta a
dicotomia entre a modernidade e a tradição.

Dias festivos: Os ingredientes


2 Todos os anos a cidade de Valência, situada na zona central da costa mediterrânea da
Espanha, celebra uma espécie muito particular de Festival: o "fallas" de São José, em 19
de março. A noite de São José é comemorada como um festival de fogo porque à meia-
noite as construções artísticas e satíricas de madeira e papel (Las Fallas) são queimadas,
acompanhadas por fogos de artifício. É o momento em que a massa de participantes,
visitantes e turistas que foram enchendo as ruas de Valência durante os dias
precedentes, em multidões de até 2 milhões de pessoas, tomam completamente as ruas
e quarteirões principais para experimentar a queima destas construções.
3 A Falla é tanto o objeto quanto os sujeitos da celebração. Como um objeto, é a parte
mais visível da festividade em toda a cidade; consiste na elaboração de uma construção
em madeira, papelão e fibra de vidro com cerca de 5 a 30 metros de altura. Fallas são
monumentos efêmeros que se constituem como críticas complexas, satíricas e
independentes que incluem muitas das figuras míticas, bem como personagens fictícios
e celebridades selecionadas a partir de diversas situações e cenas da vida. Eles

Ponto Urbe, 20 | 2017


160

constituem uma espécie de tableau vivant ou teatro estático, descrevendo temas


populares ou tópicos. Os bastidores de cada falla são compostos por uma associação de
participantes. As associações de Fallas são um fenômeno social importante, em
Valência, cidade de cerca de 750000 habitantes. Eles são uma rede de associações
voluntárias de longa data que contam com mais de 200.000 membros na região
Valenciana. A unidade organizacional básica é a Comissão de Falla, que compreende
normalmente 200-300 membros. Cada associação tem as suas raízes num bairro de
Valência ou mesmo em uma área menor. Toda a zona urbana da cidade está
completamente dividida em relação aos centros (Casals) em torno da qual se baseia cada
Falla. O Casal é a base física para a larga escala de atividades sociais que está no coração
da sociabilidade permanente das Fallas.
4 O Festival ocorre durante o mês de março, mas o clímax é entre os dias 14 e 19 do mês.
Este período é organizado como um programa de eventos e festividades, como a criação
das bandas de metais, os fogos de artifício, procissões religiosas como o oferecimento
das flores à Virgem L'Ofrena, paradas satíricas e uma grande variedade de brincadeiras
ao ar livre que culminam com o plantà, o estabelecimento do monumento de falla e seu
cremà (queima durante a noite do fogo). Esta noite traz ao fim de um ano de atividades
dedicadas à concepção e a construção da escultura, monumentos satíricos que são
chamados Fallas. Ao fim deste esforço enorme, que exige enorme quantidade de energia
e de dinheiro, é paradoxal a destruição desse mesmo monumento. O festival mostra
também que a tradição e a modernidade não são necessariamente dois opostos
irreconciliáveis. A sociabilidade festiva pode produzir um “diálogo” com as
experiências modernas e uma interpretação distintiva da modernidade.

Pesquisa empírica
5 Os participantes (Costa 1999: 104-122, 215-223) mostram sua grande habilidade em
produzir uma síntese entre o festivo e o moderno por meio de seu (personificado)
exercício prático das atividades centrais da sociabilidade festiva: humor, jogo,
banquete, trabalho social, desaprovações satíricas, desfile, etc. Além disso, a
organização das Fallas também inclui um sentido moderno da democracia e da
administração em seu contexto social festivo. Estes elementos modernos são
seletivamente incluídos a partir da perspectiva dos princípios de democracia e de
igualdade pessoal que são característicos da sociabilidade (Costa 1999: 176-185).
6 A esfera pública do Fallas apresenta igualmente uma interação entre a tradição festiva e
a vida moderna e contemporânea. Esta esfera pública popular se fundamenta nos
encontros e em reuniões sociais regulares. Nestas situações os atores se encontram,
falam e põem a sociabilidade festiva em prática (Costa 1999: 245). Por exemplo, o jogo
de cartas ou o dominó envolvem igualmente uma mistura sociável de temas que trazem
observações irônicas e satíricas amparadas em eventos locais ou gerais da vida
contemporânea. As conversas incluem brincar, provocar, gabar-se e sutis mudanças de
linguagem para fazer observações sobre política, o estado dos serviços de saúde, etc. A
substância lúdica da sociabilidade é o campo desta interação com o presente.
Geralmente a atitude das Fallas diante da televisão (Costa 1999: 247) poderia ser
qualificada como ambígua em relação a sua “aura”, mas seletiva com relação à
sociabilidade. Por um lado, os membros têm um certo respeito pelos novos meios de
comunicação social em razão de sua autoridade e sua “aura”. Por outro lado, eles fazem

Ponto Urbe, 20 | 2017


161

da televisão o principal objeto de sua sátira, aumentando assim o “poder” da televisão


apenas para se aproximar da mesma, para mais tarde coloca-la por terra. Mas as
comunidades festivas igualmente têm um critério seletivo, originado na sociabilidade,
para proteger e multiplicar a própria sociabilidade com relação às decisões a respeito
da inclusão dos meios modernos nos contextos dominados pela sociabilidade festiva.
7 As diferentes paradas satíricas das Fallas (Costa 1999: 165) podem sintetizar conteúdos
modernos e a crítica contemporânea através de uma sátira alegre centrada no corpo. As
Fallas intensificam o ritmo da sociabilidade festiva durante os dias do festival,
produzindo uma mudança na família, no espaço e no tempo. As paradas estão no
contexto desta transformação, que ajuda a comunidade a atualizar a tradição por meio
de um diálogo entre as formas contemporâneos de espaço-tempo e as relações
familiares e uma reapropriação da comunidade-centrada no espaço-tempo. Finalmente,
a crítica satírica do monumento (Costa 1999:245 - 264) pode gerar uma interação entre
os antigos mitos e o corpo grotesco, por um lado, e os eventos atuais da sociedade, por
outro. Consequentemente as Fallas são uma conversação permanente entre o moderno
e o antigo.

Elementos de uma teoria das tradições festivas


8 Sociólogos devotaram muito trabalho às expressões institucionais e culturais da
modernidade, mas uma “Sociologia da Tradição” ainda não foi devidamente
desenvolvida. Em particular, as formas específicas da transmissão da tradição não
foram o objeto de muita atenção dos sociólogos. Edward Shils é uma exceção, pois
constatou que “os modos e os mecanismos de reprodução de crenças tradicionais são
deixados de lado” (Shils 1971: 124). Parece-me que esta negligência se associa à outra
omissão: estudos da sociabilidade e da esfera pública específicos às tradições. As Fallas,
entretanto, têm uma sociabilidade distintiva e uma esfera pública popular que inclui o
moderno e as experiências do contemporâneo como um produto do “diálogo” da
tradição com a vida moderna.
9 Esta ausência de preocupação com a transmissão eficaz da tradição é uma consequência
da maneira que a tradição é retratada nos discursos modernistas predominantes. Como
tenho mostrado em outros trabalhos (Costa 1998, 1999: 37-39), estes discursos
dominantes comumente assumem que existe uma oposição entre “tradição” e
“modernidade” no plano conceitual. Além disso, essa oposição é transferida para a
dimensão histórico-empírica, e, em seguida, são apresentados como algo que está se
“perdendo”, “corroendo”, “declinando”, “sobrevivendo”, etc. Este tipo de pensamento
olha as tradições como uma espécie de categoria residual, representando apenas a
repetição contínua e irracional em oposição à modernidade, que se caracteriza pelo
“raciocínio” e a “reflexividade”. Claro que, a partir dessa perspectiva as tradições não
são capazes de gerar uma esfera pública própria. Este privilégio é concedido somente à
modernidade e à sua classe política. Além disso, os discursos modernistas dominantes
apresentam sua esfera pública (normalmente ligados ao Estado) como única.
10 A ideia de que o foco sobre a transmissão pode ajudar a compreender a forma como as
tradições estão ligadas com o presente é fundamental. Argumento que os mecanismos
centrais da transmissão da tradição se encontram na “sociabilidade” da comunidade
que a sustenta e, ao mesmo tempo, renova-o reflexivamente mediante à incorporação
de características modernas e contemporâneas na estrutura sociável da tradição. O

Ponto Urbe, 20 | 2017


162

núcleo central da minha abordagem sobre as tradições festivas é constituído pela teoria
da festa de Heidegger (1982), mas seus conceitos são traduzidos por outros mais
“operatórios” na pesquisa com a ajuda da teoria da sociabilidade de Simmel (1971). No
entanto, também recorri a outros autores para caracterizar as atividades específicas a
que chamo “sociabilidade festiva” e a sua reflexividade (Costa, 1998, 1999: 37-62). Essa
perspectiva é iluminada por uma ideia central e duas derivadas:
11 1. O caráter lúdico e artístico de sociabilidade pode ser interpretado como uma
“sociabilidade festiva” quando ele ocorre em uma comunidade que reflexivamente
“cuida da festa” como uma tradição;
12 2. A sociabilidade festiva é mostrada como tendo a sua própria esfera pública na qual a
sua reflexividade pode ser expressa através da arte e do jogo;
13 3. Discute-se que as tradições festivas, como “tradições substanciais”, não se opõem
necessariamente às formas modernas e contemporâneas de experiência e de
reflexividade, mas que elas possam ser incorporadas como parte do diálogo que a
tradição estabelece com experiência atual (Costa 1999: 40).
14 Na hermenêutica fenomenológica, a tradição está sempre entrelaçada com o presente,
integrando muitas de suas características em sua própria estrutura, algumas das quais
são tipicamente modernas. Além disso, as propriedades e formas de transmissão da
tradição são mais flexíveis e mais maleáveis do que são retratadas frequentemente. Este
entrecruzamento entre o passado e o presente corresponde a uma “tradução”
(Gadamer 1991: 116). Quero ressaltar aqui que esta “tradução” é produzida no próprio
seio de atividades sociáveis como nos termos de uma tradição como experiência atual.
A memória é conectada aos ritmos deste movimento social festivo que se tornam mais
intensos durante os dias da celebração. Produz o que Heidegger (1995: 243; 1982:71, 77)
chama de “Evento de Apropriação” (Ereignis). O evento festivo reúne os laços que se
ligam “quatro vezes mais” (céu, terra, o sagrado e a comunidade), constituindo um
sentido particular de “proximidade” com relação ao Mundo, que, entretanto, mantém
um misterioso lado vendado. Eu interpreto o reino lúdico e o artístico de sociabilidade
(Simmel 1971), como parte dessa “influência delicada”, operada através da arte e do
jogo, que o “quádruplo” exercita na comunidade festiva através dos laços que a ligam.
Esta interpretação contribui para a pesquisa tornando mais operacional os conceitos
heideggerianos, porque fundam-se na sociabilidade da interação gerada pela vida
concreta dos indivíduos. A sociabilidade transforma a “sociabilidade festiva” na
comunidade festiva. É expressa, e reproduzida, por meio de atividades centrais, como a
“sociabilização de conversas”, uma variedade de formas de brincar, humor, banquetes,
trabalho festivo e alegre desfile. O evento festivo é traduzido em termos sociológicos
como uma intensificação da sociabilidade festiva.
15 A reflexibilidade da sociabilidade festiva é caracterizada pela criação de uma distância
existencial (e de proximidade, ao mesmo tempo), um “re-mover” na minha
terminologia, paralela ao da arte e do jogo, em relação à vida e ao Mundo (Costa 1999:
42-45, 50). A reflexividade destas atividades centrais da sociabilidade festiva incluem o
corpo e as emoções que fazem parte deste existencial “re-movido” o que ajuda a manter
um sentimento de proximidade em relação ao Mundo. Por exemplo, as desaprovações
satíricas nas Fallas – que são paradigmáticas em conversas casuais, paradas e no
monumento efêmero – são sociáveis; são expressados com o corpo e geram uma
“realidade festiva” peculiar que ajuda os participantes a se re-mover em relação ao
Mundo.

Ponto Urbe, 20 | 2017


163

16 Todas as características da esfera pública nas Fallas são fundamentadas na


característica da sociabilidade festiva e na sua reflexividade. Mostram que há uma
esfera pública popular distintiva que retém o sentido da “coisa pública” que se usou
para caracterizar a cultura popular europeia, principalmente em relação à cultura do
carnaval. Esta esfera pública, que tem o corpo como central, é capaz de fazer uma ponte
entre a tradição e as experiências da vida moderna. Os participantes mobilizam seus
corpos na música e apresentam-nos nos trajes e no vestido extravagante em uma
manifestação alegre das emoções que indicam sua identidade festiva e uma tradição
profundamente enraizada. A declaração desta mobilização paradigmática nas Fallas é o
desfile satírico de crítica popular. Eu chamo esta mobilização do corpo durante o tempo
do festival de “corpo em remoção”. Além disso, as Fallas, tais como as esculturas
monumentais que são queimadas ritualmente no fim do festival, são uma manifestação
nova, urbana do inferno popular carnavalesco. Elas continuam com a tradição de
descrever o corpo com o mesmo tipo de metamorfose grotesca que, de acordo com
Bakhtin (1987), era comum na cultura popular europeia tradicional e é combinada
agora com os mitos e outras apresentações contemporâneas do corpo. Sua veia satírica
preserva o poder da tragédia para transmitir críticas e manifestar renovação. A crítica à
esfera pública nas Fallas, portanto, não perdeu suas raízes populares e, portanto, a sua
capacidade de trazer ao presente às tradições, incluindo experiências atuais.
17 Eu compreendo a modernidade como um “ideal social” (Durkheim 1987 [1912]: 426) que
tem dimensões conceituais e históricas. Mas um excesso de fé no “ideal moderno” pode
gerar uma divergência entre estas duas dimensões. Esta divergência torna difícil
observar uma pluralidade de maneiras de experimentar a modernidade com relação às
tradições particulares e às esferas públicas alternativas. Wagner (2000: 1-15) tem
proposto um esclarecimento útil. Ele caracteriza a modernidade como
... uma situação em que um certo imaginário de dupla significação prevalece. Os
dois componentes desta significação… são a ideia da autonomia do ser humano como
saber e objeto ativo, de um lado, e a ideia da racionalidade do mundo, isto é, sua
inteligibilidade íntegra, por outro.
18 Ele reserva o termo “modernista” de abordagens conceituais que combinam esta
significação conceitual, imaginária com as realidades efetivas do mundo social. Neste
sentido, a ciência social tende a ser modernista. O termo “moderno” é usado em sentido
lato para as perspectivas que consideram a modernidade como um “problema” e pode
refletir nas limitações e nas condições da possibilidade do ideal moderno. Esta
abordagem moderna é capaz de olhar para a pluralidade de interpretações sócio-
históricas da dupla significação imaginária da modernidade. Neste sentido, as Fallas
podem colaborar para uma interpretação da modernidade, que é um produto da
capacidade da tradição de interagir com o presente por meio das atividades de
sociabilidade.

Ciências sociais modernistas: Habermas e Giddens


19 As abordagens “modernistas” veem a modernidade como uma, e sua dupla significação
imaginária é usada como a torre de vigília “superior” capaz de julgar e legitimar tudo
(incluindo a tradição e a festividade). Esta tendência está ainda presente em Habermas
e Giddens: eles têm uma visão limitada da esfera pública que está ligada a uma
compreensão empobrecida de reflexividade.

Ponto Urbe, 20 | 2017


164

20 Habermas (1992) reconhece que seu estudo se preocupa somente com a esfera pública
liberal. Os outros espaços públicos, incluindo o popular, parecem ter desaparecido.
Nenhum lugar é deixado para o satírico e a esfera popular pública (Habermas 1992:
xviii). Os protagonistas daquela “esfera pública emergente da sociedade civil” serão os
burgueses (Habermas 1992: 23). Sua opinião empobrecida da esfera pública se associa a
uma compreensão restrita da reflexividade, que é limitada à língua - na imanente
estrutura dupla da fala (Costa 1994; 1999: 73-77). Além disso, o modo de
“questionamento” desta reflexividade, na argumentação racional, restringe o potencial
dos participantes para “questionar” maneiras diferentes. Por exemplo, a concentração
de Habermas na argumentação divide as atitudes das pessoas em dois extremos, com
uma grande lacuna no meio: ou focalizam em uma tematização racional para resolver
um problema (argumentação crítica como a maneira de questionar) ou tomam como
rotineiras a existência de regras, conhecimentos etc., que são a vida depositada no
mundo. Não há nenhum lugar para uma questão mais ampla, uma “tematização
sociável”, que possa reter seu índice, mas uma forma subordinada da sociabilidade,
piadas, arte ou jogo.
21 A concepção de Giddens sobre reflexividade é restringida somente às dimensões
cognitivas, informativas, éticas e políticas. A arte e o festivo não têm nenhuma
relevância para ele no relacionamento com a reflexividade. Além disso, Giddens (1994b:
197) diz claramente que não “existe tal coisa como reflexividade artística”.
Corresponde a esta visão limitada de reflexividade uma visão empobrecida das
tradições na esfera pública. Para ele tradições têm que passar no teste de um modelo
dialógico de verdade que se baseia "no envolvimento dialógico de ideias em um espaço
público” (Giddens 1994a: 6). Ele supõe então que as tradições têm que se adaptar aos
cânones da justificação racional como uma condição de suas persistência e legitimação.
Em uma “sociedade pós-tradicional” supõe-se que a tradição dissolve-se em sua “forma
tradicional”, enquanto a reflexividade social dos indivíduos em uma “sociedade
destradicionalizada” torna possível à eles que decidam sobre a tradição. O predomínio
do decisionismo cognitivo é também evidente quando Giddens (1994a: 49) justapõe
tradição e natureza:
Tradição, como a natureza, usada para ser, no caso, uma estrutura externa para a
atividade humana “toma” muitas decisões por nós. Mas agora nós temos que decidir
sobre a tradição: o devemos sustentar ou o que devemos rejeitar. E tradição em si,
embora muitas vezes importante e valiosa, pode ser de muito pouca ajuda nesse
processo.
22 O racionalismo processual de Habermas e de Giddens tem uma tensão ambivalente
entre o “moderno” e o “modernista”. Eles não são modernistas dogmáticos porque
veem a modernidade como um problema e estão cientes das muitas limitações do
projeto moderno. No entanto, dividem-se em uma divergência modernista, porque (a)
tendem a ver uma forma simples de modernidade e esfera pública - talvez uma
“herança” visão grosseira do modernismo pelas ciências sociais, mas “amaciado” com
uma racionalidade processual minimalista - e (b) sua forma de racionalidade (e
reflexividade) é vista como critério legítimo “superior” em relação a outras práticas,
formas de experiências e tradições. Fazendo assim perdem a perspectiva dos limites de
seu “ideal de racionalidade”, que é igualmente uma fé que considera o debate racional
como sagrado (Durkheim 1987 [1912]: 231). Existe um eventual excesso nesta fé que se
recusa a reconhecer as reivindicações e “direitos” de outros ideais sociais existentes,

Ponto Urbe, 20 | 2017


165

tais como as Fallas e o carnaval, que, no entanto, são capazes de interagir com a
experiência moderna.

NOTA
23 Este trabalho baseia-se em dados de uma pesquisa qualitativa realizada sobre as Fallas,
como parte da minha tese de doutorado (Costa 1999). Eu sou muito grato a James A.
Beckford (Universidade de Warwick, Reino Unido) por sua supervisão.

BIBLIOGRAFIA
Bakhtin, M. 1987. La cultura popular en la Edad Media y en el Renacimiento. Madrid: Alianza
Editorial.

Costa, X. 1994. “La fluidificació comunicativa del ritual en Habermas”, Revista d’Esdudis Fallers
1:47–65.

Costa, X. 1998. El lugar de la tradición en la sociología contemporánea. Valencia: Ed. Universidad


de Valencia.

Costa, X. 1999. “Sociability and the Public Sphere in the Festival of the Fallas in Costa: Festivity
547 Valencia” (unpublished PhD dissertation, University of Warwick, UK).

Durkheim, E. 1987 [1912]. Les formes elementals de la vida religiosa. Barcelona: Ediciones. 62.

Gadamer, H.-G. 1991. La actualidad de lo bello. Barcelona: Piados.

Giddens, A. 1994a. Beyond Left and Right: The Future of Radical Politics. Cambridge: Polity.

Giddens, A. 1994b. “Living in a Post-Traditional Society”, in U. Beck, A. Giddens and S. Lash (eds)
Reflexive Modernization:Politics,Tradition and Aesthetics in the Modern Social Order.
Cambridge: Polity.

Habermas, J. 1992. The Structural Transformation of the Public Sphere: An Inquiry into a
Category of Bourgeois Society. Cambridge: Polity.

Heidegger, M. 1982. Gesamtausgabe, 52. Frankfurt am Main: Klostermann.

Heidegger, M. 1995. El origen de la obra de arte, Caminos del bosque. Madrid: Alianza.

Shils, E. 1971. “Tradition”, Comparative Studies in Society and History 13:122–159.

Simmel, G. 1971. “Sociability”, in Georg Simmel on Individuality and Social Forms, ed. Donald M.
Levine. Chicago: University of Chicago Press.

Wagner, P. 2000. Theorizing Modernity: Inescapability and Attainability in Social Theory.


London: Sage Publications.

Ponto Urbe, 20 | 2017


166

RESUMOS
A sociabilidade festiva é central para a transmissão da tradição e é um campo fundamental da
interação entre a tradição e a modernidade festivas. Esta sociabilidade tem um reflexividade e
uma esfera pública própria. A oposição modernista dominante entre a tradição e a modernidade é
questionada com a ajuda de um estudo recente do festival do fogo do “fallas” (Valência, Espanha).

Festive sociability is central for the transmission of tradition and is a fundamental field of
interaction between the festive tradition and modernity. This sociability has a reflexivity and a
public sphere of its own. The dominant modernist opposition between tradition and modernity is
questioned with the help of a recent study of the Fire Festival of the “Fallas” (Valencia, Spain).

AUTORES
XAVIER COSTA
Contato: xavier.costa@uv.es
Doutor em Sociologia, Universidade de Warnick.
Professor de Sociologia do Conhecimento e Cultura e Teoria Sociológica, Universidade de
Valencia

Ponto Urbe, 20 | 2017


167

Cir-kula

Ponto Urbe, 20 | 2017


168

Concretos que falam: análise


comparativa de grafites sob vias
suspensas nas cidades de São Paulo
e Lorena/SP
Concrets that speak: comparative analysis of graffiti under suspended roads in
cities of São Paulo and Lorena / São Paulo, Brazil

Bianca Siqueira Martins Domingos, Gabriel de Oliveira Eloy e Luiz


Fernando Vargas Malerba Fernandes

Introdução
1 Como desassociar a cor cinza do espaço urbano? Essa foi uma das muitas questões que
motivaram o início dessa pesquisa. Concreto, prédios, ruas, viadutos, muros, estações,
postes e poluição. A predominância do cinza é inegável no cenário urbano, dando nome
a documentários, músicas e poesias que frequentemente retratam as grandes cidades.
2 Um espaço cinza, tintas coloridas e criatividade têm empoderado cidadãos a se
apropriarem de espaços já há muitos anos. O grafite é apenas uma das diversas
modalidades de intervenções artísticas em espaços urbanos visando promover
acolhimento e maior aproximação entre cidadãos e a cidade, possibilitando novas
sociabilidades, releituras e, sobretudo, criando espaços colaborativos em detrimento
dos individuais. Neste contexto, um prisma de intencionalidades se faz presente no
efêmero mundo do grafite e da pixação.
3 Esse artigo é parte de um projeto de pesquisa do Programa Institucional de Bolsas de
Iniciação Científica para o Ensino Médio – PIBIC-EM – CNPq e tem como palco as
colunas de sustentação de duas vias elevadas de duas cidades: Lorena, no interior do
estado de São Paulo, e o Museu Aberto de Arte Urbana da cidade de São Paulo, o MAAU.
Aproximadamente 190 km separam essas cidades tão diferentes, mas com iniciativas
similares de intervenções artísticas em um espaço comum. Essa linguagem visual

Ponto Urbe, 20 | 2017


169

mostra como é possível revitalizar e vencer a desatenção e abandono dos poderes


públicos, baixa luminosidade e violência (a sequência dos problemas são as
consequências) sob viadutos, problemas recorrentes em muitas cidades brasileiras.
4 O objetivo geral da pesquisa é comparar criticamente as similaridades e diferenças em
dois espaços sob vias elevadas: um no viaduto da cidade de Lorena e na linha suspensa
do metrô de São Paulo, e paralelo a este movimento, como as intervenções interagem
com o entorno e um olhar sobre a relação entre as intervenções urbanas e a
modificação dos espaços. Os contrastes foram registrados em todas as suas
significações. O método escolhido foi a pesquisa de campo, com registros fotográficos e
gravação de vídeos, bem como a produção de um caderno de campo com as impressões
e percepções desses ambientes. O pano de fundo das tessituras será a sociologia urbana,
em que o empírico será alinhavado ao teórico nas leituras das interações sociais na
produção dos espaços na cidade e mobilidades.

Estado da Arte
Imbricações entre intervenções artísticas urbanas e a sociologia
urbana

5 Assim como obras edilícias, a cidade é uma construção no espaço, porém em grande
escala. A todo instante, os olhos observam mais do que pode ser visto, captam um
cenário ou uma paisagem que estão prontos para serem explorados. Nada é vivenciado
por si só, mas sempre estão interligados com os seus arredores, às cadências de
elementos que a ele conduzem, às nostálgicas experiências. Cada um de nós possui
vastas relações com alguma parte de sua cidade, e a imagem criada por cada um está
carregada de lembranças e significados. Não somos só observadores desse espaço, mas
fazemos parte dele; compartilhamos o mesmo palco com os outros. Na maioria das
vezes, nossa visão de cidade não é abrangente, mas antes parcial, fragmentada,
mesclada com considerações de outra natureza (LYNCH 2006).
6 A produção de espaços urbanos é fruto da sua constituição histórica e da relação
intrínseca entre o corpo e a cidade. Essa relação pode ser experienciada individual e
coletivamente, de forma transgressora ou não, em uma via de mão dupla em que o
espaço nos afeta e de como afetamos os espaços. A arte está no seio destas experiências,
em que o subjetivo se materializa, refletindo posicionamentos políticos, sentimentos,
poder e simbolismos. Desta forma, o campo foi lido considerando seus tempos e ritmos
“definidos nas binaridades bem estabelecidas entre centro e periferia, produção e
reprodução” (TELLES 2012: 15), em que a pesquisa busca refletir o “eco fiel da
realidade” fazendo-se porta-voz “de suas necessidades e de suas aspirações” (TOPALOV
1991: 35).
7 A apropriação de espaços da cidade por seus habitantes é um movimento que se
reconfigura com o passar dos anos. Além do picho e do grafite, outras formas de
intervenção em construções privadas e públicas dominam a cena urbana, como estêncil
(forma vazada por meio da qual é usado o spray de tinta), lambe-lambe (um tipo de
cartaz), ovo de tinta “borroco”, canetão (ou giz de cera), spray, extintor de incêndio
carregado com tinta, e látex, bomb (grafite rápido ou ilegal) ou grapixo (híbrido das
duas técnicas) usando látex como base e preenchimento (FILARDO 2015)¹.

Ponto Urbe, 20 | 2017


170

8 Sob o enfoque deste estudo, discutir sobre grafite e pichação é, sobretudo, considerar a
cidade como um espaço vivo, em constante mutação. São as “formas de escrita do social
no corpo da cidade” (MARIANI e MEDEIROS 2013: 6) sob intencionalidade de resistência,
protesto, identificação de grupos e demarcações que produzem alteridades no urbano.
Essas inscrições podem ser anônimas ou identificadas por nomes, codinomes e siglas.
9 Pensar o grafite e a pichação nos leva a associar os atos artísticos à mobilidade no viés
das práticas e jogos circunscritos nos espaços da cidade. O estudo das mobilidades
urbanas surge justamente para “superar muitas das limitações das noções, categorias e
parâmetros estabelecidos para medir e caracterizar a segregação urbana”, permeados
por “complexidades inéditas das realidades que estavam a exigir abordagens aptas a
captar movimentos e deslocamentos, práticas e jogos redefinidos de atores” (TELLES
2012: 15). Nesses jogos, na visão de Appadurai (1996: 35), “o movimento humano
costuma ser decisivo na vida social”. No trânsito de indivíduos, novas valorações e
leituras de espaços surgem, por vezes produzindo e se materializando em demarcações
que são fruto desses movimentos, sendo essas demarcações o objeto de estudo desta
pesquisa.

Grafite e Pichação na Teoria

10 A reflexão proposta perpassa também pela fácil acessibilidade às artes urbanas devido a
sua gratuidade e presença nas ruas e sobre o aspecto de como estes espaços vêm sendo
produzidos continuamente e as maneiras possíveis de resgatar e ou instituir valores
que possibilitam outras formas de existência, embasadas na produção do coletivo e do
bem comum. Consideram-se o grafite e a pichação como manifestações emergentes de
grupos e pessoas que, ao intervirem na cidade, produzem uma nova. (FURTADO e
ZANELLA 2009)
11 O grafite, enfoque deste estudo, é frequentemente posto em dualidade com a pichação,
em que o primeiro se caracteriza por um tipo de intervenção geralmente não
autorizada, porém com uma maior preocupação estética em relação à pichação,
marcada por cores e formas pictóricas, enquanto a pichação investe mais em formas de
escrita monocromática e é fruto de preconceito social. Filardo (2015)¹ associa a
pichação à periferia da cidade, enquanto o grafite se concentra em áreas centrais,
realizado por pessoas de classe média. No campo das regulamentações, a Lei de Crimes
Ambientais prevê pena de até um ano de prisão para quem "pichar, grafitar ou por
outro meio conspurcar edificação ou monumento urbano” (ALBUQUERQUE 2011).
12 Observa-se que o grafite está presente em cidades do mundo inteiro, enquanto o picho é
brasileiro. Essas intervenções criam um intenso diálogo com a cidade e propõe outra
relação com o entorno urbano, questionando, a partir de um olhar estético, os
territórios, as regulamentações do espaço e estrutura da cidade, assim como os
problemas coletivos subsistentes.
13 O termo grafite, na área da arqueologia, refere-se aos riscos, desenhos e sulcos nas
paredes de pedra na região da Pompeia, Itália, e que com o passar dos anos foi se
diferenciando, e na contemporaneidade apareceu inicialmente na Europa e no Brasil na
década de 60, no auge do movimento estudantil e como forma de inscrição política e
crítica à repressão imposta pela ditadura militar dos anos 60 do século XX. Em São
Paulo, surgiu na década de 70 (FURTADO e ZANELLA 2009). No Brasil, a grafia da prática
é “grafite”, enquanto na língua inglesa é “graffiti”.

Ponto Urbe, 20 | 2017


171

14 Ao longo dos anos, a atividade de grafitar elementos construídos apresentou-se como


forma de comunicação e expressão em diversos locais, em diferentes contextos e com
vários propósitos (SOUZA 2007). Filardo (2015)¹ cita que muitos pichadores
enveredaram para o ramo das artes plásticas, na intenção de tornar a cidade mais
bonita e de se comunicar com o passante na rua.
15 Quanto à aceitabilidade das práticas, Ramos (2015: 1) afirma que
Pichar, por se tratar de rabiscos, frases, letras e sinais, é considerado uma conduta
mais agressiva para a população urbana, enquanto grafitar, que se define como
desenhos artísticos, embora, em tese, constitua crime, não causa, às vezes, tanto
incômodo.
16 A pichação, além de delito, pode ser vista como sujeira nos muros e monumentos ou
como marcas de delimitação de território, escrevendo “histórias de grupos socialmente
discriminados ou que reivindicam um espaço de fala”. Para os que não estão inseridos
no meio da pichação, as letras podem ser incompreensíveis, porém, “podemos nos
perguntar: indistinção gráfica para quem?”. Com a alteridade, produz-se exclusão social
e urbana. “Pichar tem esse aspecto de produzir singularidades, ou melhor, uma forma
de subjetivação de referências sobre o mundo e, também, de delimitação de territórios
e pertencimento a lugares ou grupos” (MARIANI e MEDEIROS 2013: 10).
17 O pichador Djan Cripta, de São Paulo, afirmou em entrevista ao O Globo que há
rivalidade entre a pichação e o grafite, “Mas a gente não quer acabar como os
grafiteiros, que passaram a trabalhar com dinheiro da elite. A pichação vai ser sempre
agressiva, marginal” (ALBUQUERQUE 2011).

Metodologia
18 A pesquisa é marcada por contrastes na amplitude da significação da palavra.
Contrastes entre as cidades, nas cores dos grafites, nas dimensões das colunas de
sustentação das vias elevadas, nas técnicas de grafitagem utilizadas e na quantidade de
grafites. A pesquisa de campo aplicou abordagem exploratória e comparativa, em que
se teve a intenção de lançar olhar sobre as intervenções artísticas urbanas como
produções culturais, manifesto e fantasia nas cidades em questão.
19 Os locais de estudo foram definidos por meio de duas vias, partindo do fato de que o
Museu Aberto de Arte Urbana – MAAU de São Paulo foi referência para nós desde a
concepção do projeto de pesquisa, e por encontrar nas pilastras do viaduto da nossa
cidade, Lorena, uma série de conexões. A via de Lorena é considerada viaduto por conta
do trânsito rodoviário, e a de São Paulo é linha elevada pela função metroviária.
20 Sob uma abordagem macro, a cidade de São Paulo possui atualmente 11.967.825
habitantes e 1.521,110 km² de área territorial, e Lorena com 87.178 habitantes e área
territorial de 414,160 km² (IBGE, 2016), Figura 1.

Ponto Urbe, 20 | 2017


172

Figura 1 – Mapa de posicionamento das cidades de Lorena e São Paulo

Fonte: Google Mapas (2016)

21 Por uma perspectiva micro, o Museu Aberto de Arte Urbana, “um dos primeiros museus
de arte aberta do mundo” (COSTA 2015) está localizado nas vigas do metrô da linha 1 –
azul, no canteiro central da Avenida Cruzeiro do Sul, no distrito de Santana, zona norte
de São Paulo. O Museu inicia-se na estação Santana, passa pela estação Carandiru e
termina na estação Portuguesa-Tietê, Figura 2 (b).
22 Essa galeria a céu aberto teve início em setembro de 2011 e conta com o apoio da
Secretaria de Estado da Cultura, do Metrô, da SP-Urbanismo, do setor Educativo da
Galeria Choque Cultural e do Paço das Artes, em que a proposta
“surgiu após a interrupção do trabalho de um grupo de artistas que grafitava este
mesmo local no começo de 2011. Sem autorização legal para pintar as colunas, o
grupo foi detido. Depois do ocorrido, iniciou-se um movimento para transformar a
detenção em projeto artístico” (PAÇO DAS ARTES 2016).

Ponto Urbe, 20 | 2017


173

Figuras 2 – (a) Viaduto de Lorena, São Paulo e (b) visão do Museu Aberto de Arte Urbana de São
Paulo

Fonte: Os autores (2015)

23 Em Lorena a pesquisa foi feita no viaduto da Avenida Papa João XXIII, Figura 2 (b). O
viaduto foi construído por conta da linha férrea, e sob ele há residências e comércios
em ambos os lados e demarcações de estacionamento no chão, de bloquetes de cimento.
Próximo ao viaduto há uma importante e extensa via, muito utilizada para exercícios
físicos, a Avenida Mal. Teixeira Lott, que acompanha a extensão da linha do trem e

Ponto Urbe, 20 | 2017


174

pontos de comércio, como: clínica veterinária, padarias, açougue, academia,


restaurante, escolas e farmácia.

Concreto e Tinta
24 Nesta pesquisa voltamos nossos olhares em especial para as colunas coloridas de duas
vias elevadas. No vai e vem do metrô em São Paulo, no fluxo de carros em Lorena, eles
representavam antes apenas seu papel na mobilidade urbana e, agora, recebem as
múltiplas significações dos que passam por eles. Traçar paralelos comparativos e
analíticos entre a maior cidade da América Latina e uma cidade de médio porte do Vale
do Paraíba constituiu um grande desafio.
25 Foram usadas ao todo 3 mil latas de spray especial e 40 latas de 18 litros de látex
(HYPENESS 2011) nos 66 painéis de 4 metros de altura cada. Para muitos, essa região é
considerada o “berço do grafite paulistano” desde os anos 80 e 90, e entre os artistas
estão “Speto, Binho Ribeiro, Chivitz, Presto, Anjo, Markone, Zezão, Onesto, Akeni,
Minhau, Dalata, Caps, Magrela, Enivo, Mauro, Pqueno, Alopem, Dask, ZN Lovers, Sliks,
Desp, Coletivo ZN, Feik, Crânio, Inea, Biofa, Caze, Zéis e Alex Sena e Highraff” (COSTA
2015; PAÇO DAS ARTES 2016; TITO 2014). Binho Ribeiro, grafiteiro desde 1984 e um dos
curadores do MAAU junto com Chivitz (também curador da Bienal do Grafite), conta
que os moradores do bairro de Santana cobravam a transformação do canteiro central
em espaço de lazer pela prefeitura: "Antes isso aqui era muito descuidado, esse meio
era todo ocupado por barracos e não tinha segurança. Com o MAAU, a gente fez uma
proposta de revitalização e os moradores então começaram a apoiar", afirma. (TITO
2014)
26 Um dos pontos em comum nos grafites de Lorena e São Paulo é o uso da tipografia como
plano principal. Na Figura 3 (a) observou-se a predominância de cores fortes e
contrastantes no trabalho dos grafiteiros ADM e ELOC1, e na Figura 3 (b) o uso de cores
mais suaves dos grafiteiros DASK e ALOPZ. Ambos colocaram seus nomes como a
centralidade da intervenção.

Figuras 3 - Grafites com a tipografia como plano principal: (a) autoria de ADM em Lorena e (b) e de
DASK ALOPZ São Paulo

Fonte: Os autores (2015)

Ponto Urbe, 20 | 2017


175

27 Uma das temáticas abordadas em painéis de ambas as cidades foi o urbano e o


território. Na Figura 4 (a) são retratados, na base da intervenção, prédios e em
praticamente toda a extensão do grafite, torres de energia. A intencionalidade de
colocar em dualidade a cidade “escura” e o céu e a tipografia com o nome dos autores
do grafite em tons mais claros e vivos fica em evidência pelos grafiteiros ADM e SMOP.

Ponto Urbe, 20 | 2017


176

No topo da intervenção é possível observar uma lata de spray na forma de um anjo,


possivelmente uma homenagem a algum colega falecido.
28 Na Figura 4 (b) o estado de São Paulo é ilustrado em grafismos e contrastes nas cores
preta, cinza, azul, roxo, verde e rosa no grafite datado de 2014 pelo grafiteiro KEP.
Assim como em diversos painéis no MAAU, houve a colagem de lambe-lambe (cartaz)
com a propaganda sobre a regularização de Carteiras Nacionais de Habilitação (CNH) e
os números de telefones. Comparando as duas propostas, o micro e o macro, o local e o
estadual são evidenciados.
29 A abrangência das marcas na cidade de São Paulo está por toda a mancha urbana
(aproximadamente 80 km no sentido leste-oeste e 35km no norte-sul), e se estende a
municípios vizinhos (FILARDO, 2015)¹, enquanto que a concentração de grafites na
cidade de Lorena se restringe ao espaço do viaduto.

Figuras 4 - Grafites com temática ligada ao território e a cidade: (a) Lorena e (b) São Paulo

Fonte: Os autores (2015)

Ponto Urbe, 20 | 2017


177

30 O sombrio marca presença nos painéis de Lorena e São Paulo. Na Figura 5 (a), a
visualização do grafite foi comprometida por uma placa de sinalização de trânsito.
Assim como nas Figuras 3 (a) e 4(a), os autores incluíram em suas intervenções a
tipografia com os seus nomes (ADM, SMOP e ELOC), desta vez, na base e centro do
painel. O cinza e o preto predominam no desenho na parte superior, em que um homem
está sobre uma ponte cercado por caules e raízes de árvores.
31 Na Figura 5 (b), o painel está próximo à estação de metrô e rodoviária do Tietê, e um
monstro é o tema central do painel em tons de vermelho, preto e branco. Analisando-os
transversalmente, estes podem ser discutidos e interpretados como conectores entre o
mundo atual e temas ligados à violência e crises sociais.

Figuras 5 - Grafites com temática sombria: (a) Lorena e (b) São Paulo

Fonte: Os autores (2015)

Ponto Urbe, 20 | 2017


178

32 Os animais também são tema dos grafites, em que na Figura 6 (a) ilustra um grapixo
(misto de grafite e pichação) de um rato em tons de preto e vermelho, sendo que a
segunda cor está presente nos olhos e nariz. O animal é frequentemente associado à
sujeira nas ruas, e neste grafite elaborado pela PADS, está combinado com algumas
pichações na base, já gasta pela exposição ao tempo. Assim como a Figura 5 (a), há uma
placa de sinalização de trânsito colocada diante do painel. Na Figura 6 (b), uma coruja

Ponto Urbe, 20 | 2017


179

em um galho é retratada em um degradê de azul e roxo. Em segundo plano, há a figura


de uma pequena casa. A autoria do grafite ficou escondida sob um lambe-lambe da
mesma propaganda citada na discussão da Figura 4 (b). A coruja é símbolo da sabedoria
em diferentes culturas e não dorme durante a noite, possibilitando a analogia com a
cidade de São Paulo que possui uma vida noturna bastante agitada.
No graffiti palavras desenham palavras, imagens usam e abusam do espaço urbano e
o corpo se enlaça em uma coreografia diferente. Reencantam-se os espaços,
recriam-se sujeitos e as possibilidades do diálogo entre expressões artísticas, cidade
e vivência cotidiana (FURTADO; ZANELLA, 2009, p. 1284).

Figuras 6 - Grafites com temática ligada a animais: (a) Lorena e (b) São Paulo

Ponto Urbe, 20 | 2017


180

33 As cores, contrastes e ilustrações atraem os olhares de quem passa, sendo que nos dois
settings urbanos os pedestres podem contemplar as obras, e apenas em São Paulo
ocupantes de veículos motorizados também podem observar. As experiências
proporcionadas pela disposição sequencial dos grafites podem provocar o imaginário
do espectador no sentido de questionamentos e projeções acerca dos grafites,
intencionalidades dos grafiteiros ou se há ou não uma sequência lógica dos painéis que
produzem algum tipo de história. A velocidade do passo ou, no caso dos ocupantes de
veículos motorizados, da direção, é influenciada conforme o espectador tem sua
atenção capturada pelos grafites. Alguns transeuntes param para observar, fotografam,
buscam a assinatura do grafiteiro e estabelecem assim uma relação de vínculo com as
obras e aqueles espaços urbanos.
34 Para os que diariamente os veem, podem ser assimilados e naturalizados como parte do
espaço e entorno urbano, independente do posicionamento a favor ou contra as obras.
Para os que ocasionalmente circulam no MAAU ou sob o viaduto de Lorena, as reações
são produzidas com base no entendimento prévio que possuem sobre grafites,
impactando na velocidade de aceitação desses grafites como arte/obra artística.
35 Iniciativas como estas, além de levar arte de forma gratuita e acessível à população,
transformam espaços antes escuros e inseguros em grandes galerias a céu aberto,
interagindo com pedestres, ciclistas e motoristas, democratizando o acesso a
intervenções artísticas.
36 Em São Paulo, com a legalização do Museu, houve a participação de órgãos municipais e
de diversas organizações na revitalização do entorno, movimento este que não ocorreu
no município de Lorena, descontextualizando os grafites do ambiente em que está
inserido.

Ponto Urbe, 20 | 2017


181

E o entorno? Relação das artes com o espaço

37 Os painéis multicoloridos descritos no capítulo anterior podem estabelecer ou não


vínculo com as vias, equipamentos urbanos, estabelecimentos comerciais e casas,
influenciando na experiência do observador. Se nas temáticas e nas cores as iniciativas
entre Lorena e São Paulo se assemelham, na relação com o entorno, não. Vale ressaltar
que o entorno será abordado sob enfoque empírico, fruto dos registros desta pesquisa.
38 Em São Paulo o entorno foi revitalizado, modificando o espaço das pilastras de
sustentação do Metrô linha 1 após a confecção dos painéis. A iniciativa partiu da
mobilização dos integrantes do Movimento Santana Viva, bairro onde está instalado o
MAAU, formado por um grupo de moradores e comerciantes da região e que buscavam
trazer o desenvolvimento local e a qualidade de vida, propondo uma revitalização total
da área.
39 Na primeira das iniciativas, a Prefeitura de SP colocou diante das pilastras pedras
semelhantes a paralelepípedos, dispostas de maneira irregular, e em outras criaram
canteiros como escadas, intituladas de “antimendigos”, com a finalidade de proteger as
pilastras de sustentação do Metrô e afastar os moradores de rua, muito frequentes na
região, evitando que ocultem os painéis com as suas barracas, e que sejam acesas
fogueiras nesses locais, oferecendo riscos à estrutura dos pilares. Apesar destas ações,
há ainda famílias e grupos de pessoas em situação de rua morando nos canteiros
centrais, bem como lixo espalhado em alguns trechos.
40 A segunda iniciativa tomada pelo Poder Público foi o novo paisagismo do canteiro
central, que recebeu um gramado em toda sua extensão e flores em alguns trechos.
Houve também reforço na iluminação, faixa de passeio e a implantação de ciclovia
¹(MAAU 2016). No diálogo direto com a população, os envolvidos com o Museu
promovem ações educativas com crianças e adolescentes, orientando sobre a
importância do grafite e como este impacta os jovens ²(MAAU 2016), Figura 7 (b).
41 Em Lorena, Figura 7 (a), o espaço sob o viaduto onde estão instaladas as intervenções
possuem pouca relação com o entorno, constituído majoritariamente por casas,
comércios em ramos diversificados e estacionamento com demarcações em tinta
amarela no chão, de bloquetes de cimento. À noite, a baixa luminosidade do local traz
insegurança para moradores e transeuntes.

Figuras 7- Os painéis e o entorno: (a) Lorena e (b) MAAU, São Paulo

Fonte: Os autores (2015)

Ponto Urbe, 20 | 2017


182

42 A iluminação, além de tornar possível a visualização dos grafites no período noturno,


traz a sensação aos transeuntes de segurança, o que estimula os pedestres e motoristas
a trafegarem por essas vias. A falta de investimento e de ações que valorizem as colunas
grafitadas descontextualizam a obra do entorno, influenciando na experiência do
espaço e até mesmo na percepção artística do observador.
43 No momento em que os espaços sob as vias suspensas se tornam galerias e os grafites as
obras expostas, existem dois movimentos de ressignificação: sobre o espaço urbano e

Ponto Urbe, 20 | 2017


183

sobre o espaço do museu. O grafite exposto nas ruas transformam-nas em uma galeria
de exibição a céu aberto, em que a rua deixa de assumir apenas a função de trânsito de
carros e pessoas e passa a fornecer para o espectador subsídios para reflexões,
desencadeando sentimentos e o redimensionamento do olhar sobre o que vê.
44 Há também a ressignificação sobre a institucionalização do espaço de museu ou galeria
de arte, tendo em vista que as obras acessam as pessoas no seu ir e vir diário, sem que
haja o deslocamento do espectador até um espaço de museu, ao passo que isto pode
aproximá-lo do mundo das artes. Nesse ponto de inflexão, o espectador associa grafite à
arte, influenciando nas representações sociais dos grafiteiros (que podem passar a
serem aceitos por quem antes condenava as práticas) e desencadear interpretações
construídas a partir do imaginário de cada um.
45 Iniciativa semelhante ao MAAU ocorre sob a via elevada Presidente Artur da Costa e
Silva, o Minhocão, na região central da cidade de São Paulo já há alguns anos.
Construído em 1968, será transformado em um parque suspenso (http://
minhocao.org/), e que também teve suas colunas grafitadas e recebeu exposição
fotográfica. Teve, pois a subprefeitura da Sé decidiu neste ano cobrir as intervenções
com tinta cinza sob a alegação de que as obras estavam degradadas.
46 Artistas e Poder Público, atuando em conjunto e com iniciativas semelhantes, podem
transformar espaços na cidade, ampliando o campo de experiências da população.
Nestes dois casos estudados por esta pesquisa, a transformação veio com criatividade,
talento, latas de tintas, sprays e pincéis. O empoderamento social veste cores e traços,
não custa milhões e está ao alcance de todas as classes sociais, profissões e perfis.
47 De acordo com entrevistas realizadas com alguns dos grafiteiros autores das obras
expostas nesse artigo, as relações entre obra e cidade são indissociáveis. Pode-se
observar intencionalidades semelhantes dos curadores de São Paulo e Lorena. Binho,
um dos curadores do MAAU, falou em entrevista que o
“Projeto tem a arte como cunho social. Há espaço para artistas renomados que já
têm uma história, mas também abrimos para jovens grafiteiros da região, em início
de carreira, para que tenham uma troca de experiências, como se fosse uma escola
mesmo”2.
48 A fala do MAAU como “escola” cunha a intenção de continuidade dessa prática,
replicando para outros espaços e contextos. Ambas as propostas contaram com a
revitalização da área por meio de iluminação, calçadas e ciclovias, o que aconteceu em
São Paulo e não em Lorena.

Considerações Finais
49 As semelhanças entre os painéis sob as vias nas cidades de Lorena e São Paulo são
demarcadas pela intenção de estabelecer um espaço de exposição de grafites inseridos
nos espaços urbanos e comuns de vias públicas, bem com a revitalização por meio de
intervenções artísticas urbanas. Levar a arte ao público gratuitamente e revitalizar os
locais de exposição são formas de interações não somente com os cidadãos, mas
também com a materialidade das cidades.
50 O segundo ponto em comum são as similaridades das temáticas centrais das
intervenções e a intenção de estabelecer contrastes com as cores empregadas.

Ponto Urbe, 20 | 2017


184

51 As principais características observadas nos grafites de Lorena são o trabalho em


conjunto de dois ou mais grafiteiros e em todas as intervenções há o trabalho
tipográfico com os seus nomes. Já em São Paulo, os trabalhos são predominantemente
individuais nos painéis, com a arte e os desenhos em destaque, sendo que a
identificação dos grafiteiros fica restrita apenas à assinatura.
52 No MAAU, a relação com o entorno é clara, em que parte do trecho do Museu se localiza
diante do Parque da Juventude, possui ciclovias, iluminação e calçadas, e no município
de Lorena, não há iluminação adequada e o devido destaque às intervenções,
disponíveis ao olhar apenas dos que transitam a pé, dos que estacionam seus carros ou
motos e dos moradores.
53 A discussão sobre o cinza parece ter ganhando ainda maior peso político e estético nos
últimos meses. Atualmente, a efervescência das discussões sobre grafite e pixação tem
tomado as páginas de jornais, redes sociais e telejornais por conta do posicionamento
contrário à essas práticas tomado pela nova gestão da Prefeitura de São Paulo (2017 –
2020). Em uma sequência de idas e vindas nas tomadas de decisão pela Prefeitura de São
Paulo, a história se inicia com a realização da cobertura do painel de aproximadamente
6 km do artista Eduardo Kobra na Avenida 23 de maio 3, até então o maior da América
Latina, sob a alegação de que “estavam sujos ou pixados” e que eram “áreas
degradadas”.
54 Ações isoladas de cobertura de grafites e pixações com tinta cinza se espalharam por
toda a cidade desde o dia 2 de janeiro de 2017 sob a denominação de “Operação Cidade
Linda”4 (alguns grafites apagados pessoalmente pelo prefeito), resultando até mesmo
na detenção de pichadores. A decisão por apagar as artes de rua foi tomada de forma
unilateral, sem consulta à opinião popular. No espaço do antigo painel, o plano é
instalar um jardim vertical e oito espaços para grafites 5. Anunciou-se também a criação
do “Museu de Arte de Rua” (MAR), com objetivo de monetização e inspirado em um
espaço de cultura e comércio de Miami.6
55 Em suma, pode-se afirmar que, por meio dos grafites, há a ressignificação da percepção
material da cidade, pois não são mais somente simples estruturas de concreto, não é
mais um simples viaduto ou uma linha suspensa, é um espaço onde cidadãos puderam
exprimir o que imaginaram e sentiam com tintas e sprays, empregando suas cores e
linhas.

Agradecimentos
56 Os autores agradecem ao CNPq pela concessão da bolsa na categoria PIBIC-EM -
Processo: 800763/2014-9 (Cota 2015-2016).

Ponto Urbe, 20 | 2017


185

BIBLIOGRAFIA
ALBUQUERQUE, C. Pichação é alvo de três novos documentários, que discutem seu lugar
entre o vandalismo e a arte, O Globo, 2011. Disponível em <http://oglobo.globo.com/cultura/
pichacao-alvo-de-tres-novos-documentarios-que-discutem-seu-lugar-entre-vandalismo-a-
arte-2718533#ixzz3yAfjIAFD> Acesso em 24 jan 2016

APPADURAI, A. Soberania sem territorialidade. Publicado originalmente em Yeager, P. (ed.). The


geography of identity. Ann Arbor: University of Michigan Press, 1996, pp. 40-58

COSTA, T. Museu Aberto de Arte Urbana de São Paulo, 2015. Site oficial de turismo da cidade
de São Paulo. Disponível em <http://www.cidadedesaopaulo.com/sp/br/museus/4992-museu-
aberto-de-arte-urbana-de-sao-paulo-> Acesso em 14 jan 2016

¹ FILARDO, P. R. Pichação (pixo). Histórico (tags), práticas e a paisagem urbana. Arquitextos,


São Paulo, ano 16, n. 187.00, Vitruvius, dez. 2015 <http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/
arquitextos/16.187/5881>

² FILARDO, P. R. A Pichação (tags) em São Paulo: dinâmica dos agentes e do espaço. 2015. 84 f.
Dissertação (Mestrado) - Curso de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, São
Paulo, 2015.

FURTADO, J. R; ZANELLA, A. V. Graffiti e cidade: sentidos da intervenção urbana e o processo de


constituição dos sujeitos. Revista Mal-estar e Subjetividade, Fortaleza, n. 4, p.1279-1302, dez.
2009.

HYPENESS. 1º museu aberto de arte urbana do mundo, 2011. Disponível em < http://
www.hypeness.com.br/2011/10/1-museu-aberto/> Acesso em 14 jan 2016

IBGE. Lorena. Cidades@ - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Disponível em < http://
cod.ibge.gov.br/234NY> Acesso em 14 jan 2016
IBGE. São Paulo. Cidades@ - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Disponível em <
http://cod.ibge.gov.br/232IH> Acesso em 14 jan 2016

MARIANI, B; MEDEIROS, V. E quando a pichação é da prefeitura? Pichar, proscrever,


dessubjetivizar. Revista Rua, n. 19, v.1. Campinas, jun. 2013.

¹MUSEU ABERTO DE ARTE URBANA. Revitalização do MAAU. Disponível em <https://


museuabertodearteurbana.wordpress.com/2015/06/07/revitalizacao-do-maau/ > Acesso em 21
mar 2016.

²MUSEU ABERTO DE ARTE URBANA. Sua Importância. Disponível em <https://


museuabertodearteurbana.wordpress.com/2015/06/08/sua-importancia/> Acesso em 21 mar
2016.

PAÇO DAS ARTES. 1º museu a céu aberto de São Paulo começa atividades. Disponível em <
http://www.pacodasartes.org.br/notas/abertura_maau.aspx> Acesso em 14 jan 2016

RAMOS, C. Urbanismo: pequena abordagem do crime de pichação. Disponível em: <https://


aplicacao.mp.mg.gov.br/xmlui/bitstream/handle/123456789/1056/2%20R%20MP%20-
%20Urbanismo%20-%20Cristovam.pdf?sequence=1> Acesso em: 08 jan 2015

SOUZA, D. C. A. Pichação carioca: etnografia e uma proposta de entendimento. - Rio de


Janeiro: UFRJ / IFCS, 2007. Dissertação (mestrado) – UFRJ / PPGSA / Programa de pós-graduação

Ponto Urbe, 20 | 2017


186

em Sociologia e Antropologia, 2007. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de Filosofia


e Ciências Sociais, Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia.

TELLES, V. S. A cidade nas fronteiras do legal e ilegal. Caderno CRH, v. 25, n. 64, p. 161–163, 2012.

TITO, F. Artistas criam museu de grafite em avenida da zona norte de SP, G1, 2014.
Disponível em <http://g1.globo.com/sao-paulo/noticia/2014/02/artistas-criam-museu-de-
grafite-em-avenida-na-zona-norte-de-sp.html> Acesso em 14 jan 2016

NOTAS
1. A escolha pela escrita dos codinomes dos grafiteiros em caixa alta será para assemelhar-se a
forma como os próprios redigem as assinaturas dos grafites nos painéis.
2. Disponível em: < https://oglobo.globo.com/cultura/artes-visuais/museu-do-grafite-
transforma-zona-norte-de-sao-paulo-18614147#ixzz4hAERaNN1Stest>
3. Disponível em: <http://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2017/01/grafites-em-muros-de-
avenida-de-sao-paulo-sao-pintados-de-cinza.html>
4. Disponível em: <http://capital.sp.gov.br/noticia/prefeito-participa-da-primeira-acao-do-
programa-sao-paulo-cidade-linda-1>
5. Disponível em: <http://g1.globo.com/sao-paulo/noticia/jardim-vertical-substitui-grafite-da-
avenida-23-de-maio-em-sp.ghtml>
6. Disponível em: <http://g1.globo.com/sao-paulo/noticia/avenida-23-de-maio-tera-oito-
espacos-para-grafites-e-desenhos-velhos-serao-apagados-diz-doria.ghtml>

RESUMOS
O espaço urbano é constituído de múltiplos planos de referências sociais, econômicos e culturais,
em que os atores transitam e deixam suas marcas, sejam elas visíveis ou invisíveis. Nas marcas
visíveis, o grafite se reconfigura a partir de novas práticas e olhares pelo mundo todo, em que a
analogia feita no título do artigo ganha força à medida que o observador atribui às imagens
sensações, posicionamentos e percepções. O objetivo foi analisar comparativamente as
intervenções artísticas urbanas na forma de grafite sob as vias suspensas das cidades de São Paulo
(Museu Aberto de Arte Urbana – MAAU) e Lorena, no estado de São Paulo, Brasil, suas
semelhanças, divergências e como interagem com o entorno. A metodologia consistiu em analisar
os espaços por meio de fotografia e caderno de campo. Pode-se observar que o MAAU estabelece
relação clara com o entorno revitalizado, enquanto em Lorena o movimento é oposto.

The urban space is composed of multiple planes of social, economic and cultural references, in
which actors transit and leave their marks, whether visible or invisible. In the visible marks,
graffiti is reconfigured from new practices and looks around the world, where in the analogy
made in the article title gains strength as the observer gives the images sensations, perceptions
and positions. The aim was analyze urban artistic interventions in the form of graffiti under the
suspended vias of the cities of São Paulo (Museu Aberto de Arte Urbana – MAAU) and Lorena, in
the state of São Paulo, Brazil, their similarities, differences and how they interact with the
surrounding area. The methodology consists in analyze the spaces through photography and

Ponto Urbe, 20 | 2017


187

field notebook. It can be seen that the MAAU provides clear relationship with the surrounding
area revitalized, as in Lorena movement is opposite.

ÍNDICE
Keywords: Graffiti, urban artistic interventions, urban sociology, São Paulo, Lorena
Palavras-chave: Grafite, intervenções artísticas urbanas, sociologia urbana, São Paulo, Lorena

AUTORES
BIANCA SIQUEIRA MARTINS DOMINGOS
biancasiqueira.m@gmail.com
Mestre em Desenvolvimento, Tecnologias e Sociedade pela Universidade Federal de Itajubá –
UNIFEI. Professora e pesquisadora nas Faculdades Integradas Teresa D’Ávila – FATEA.

GABRIEL DE OLIVEIRA ELOY


gabrieloeloy@gmail.com
Bolsista do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica para o Ensino Médio – PIBIC-
EM – CNPq. Estudante de Ensino Médio na Escola Estadual Professor Luiz de Castro Pinto –
Lorena, São Paulo.

LUIZ FERNANDO VARGAS MALERBA FERNANDES


fatea_ispic@fatea.br
Graduando em Arquitetura e Urbanismo nas Faculdades Integradas Teresa D’Ávila – FATEA e
colaborador no Instituto Superior de Pesquisa e Iniciação Científica – ISPIC.

Ponto Urbe, 20 | 2017


188

Especial Ayahuasca e Saúde

Ponto Urbe, 20 | 2017


189

Apresentação - E se um viajante
numa sessão de ayahuasca: jornadas
interdisciplinares de ayahuasca e
saúde
Ana Letícia de Fiori e Marcelo Simão Mercante

1 Este breve especial é, na verdade, uma pequena aventura. Registram-se aqui, nessa
apresentação e nos dois artigos que a sucedem, quatro jornadas rumo a territórios
pouco familiares, a partir de quatro pontos de partida distintos, que levaram a
encontros inesperados.
2 O chamado a esta aventura deu-se há alguns anos, em 2009, quando Marcelo Simão
Mercante propôs ao Núcleo de Antropologia Urbana (NAU) da USP o projeto de pós-
doutoramento “O uso terapêutico e ritualístico da ayahuasca no tratamento de
dependência química e alcoolismo”, continuação de outra pesquisa de pós-
doutoramento realizada na UFSC. No decorrer dessa pesquisa, que resultou entre outras
coisas no artigo “A ayahuasca e o tratamento da dependência” 1 e em um livro 2 (no
prelo), foram ministradas disciplinas na graduação e na pós-graduação (“Drogas e
Religiosidade: Consciência, Imaginação e Saúde” e “Antropologia da Saúde”), além de
debates conduzidos no grupo de pesquisas apelidado de NAU Consciência e nas reuniões
gerais, em um período em que o Núcleo debruçava-se especialmente sobre o trabalho
de Tim Ingold, cujo impacto tem se refletido em diferentes produções do NAU. Além
disso, realizou-se na USP em 2011 o Encontro: Ayahuasca e o Tratamento da
Dependência, co-organizado por pesquisadores basilares no campo, Beatriz Labate e
Edward MacRae, membros fundadores do Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre
Psicoativos (NEIP), além do coordenador do NAU e supervisor do pós-doutorado, José
Guilherme Magnani.
3 Os efeitos dos encontros produzidos por um pós-doutorado e a participação em um
núcleo de pesquisa, afortunadamente, não se exaurem quando estes se concluem. Além
dos contínuos debates fomentados pelos pesquisadores do NEIP, contatos acadêmicos e
pessoais foram mantidos com o NAU e outros espaços de reflexão acadêmica. Sendo

Ponto Urbe, 20 | 2017


190

assim, Marcelo Mercante e Ana Letícia de Fiori, integrante do NAU e do Núcleo de


Antropologia do Direito (NADIR) da USP, realizam em 2015 o GT “Drogas – interfaces
entre Antropologia, Direitos, Políticas Públicas e Saúde”, no IV Encontro Nacional de
Antropologia do Direito, que reuniu trabalhos debatendo políticas públicas de
tratamento de dependentes químicos, etnografias com usuários de crack e maconha, e
discussões sobre legalização e regulamentação de maconha e ayahuasca em diferentes
contextos. Este GT foi reeditado para a VI Reunião de Antropologia da Ciência e
Tecnologia (REACT), sediada na USP em maio de 2017, com outro enfoque:“Seminário
Temático - Tecnologias da reflexividade e as pesquisas sobre ritual, usos de substâncias
e saúde”.
4 Nesse seminário é que os caminhos das outras jornadas acima mencionadas se
encontram.Para os dois coordenadores do GT, configurou-se a tarefa de debater
trabalhos cuja temática era, respectivamente, tema de especialização e um assunto
menos examinado academicamente do que na esfera privada. Para este especial, não foi
possível apresentar a integralidade dos trabalhos e debates, todavia trazemos os
trabalhos de Danielli Katherine Pascoal da Silva, “Por uma abordagem ecológica dos
efeitos anti-depressivos da ayahuasca”, e Maiton Bernardelli, “Fluxos e Suspensões:
reflexões em relação às experiências em um campo de pesquisa”, revisados após os
comentários dos participantes do seminário, incluindo o professor José Guilherme
Magnani.
5 O trabalho de Danielli, a partir de uma perspectiva antropológica, busca realizar uma
abordagem ecológica das relações estabelecidas entre ayahuasca, bebida psicoativa de
origem amazônica, e depressão a partir da discussão de dois sistemas de conhecimento,
o neuropsiquiátrico, que concebe esta como uma relação entre substâncias da bebida e
substâncias do sistema nervoso central, e a União do Vegetal e outros coletivos que
tomam o vegetal (outro nome para a ayahuasca)como um ser com quem se estabelece
uma relação de aprendizado mútuo. Trata-se, portanto, de uma jornada de uma
antropóloga para outros campos de saberes, outras epistemes e, ao mesmo tempo, de
uma hoasqueira para outros contextos de consumo e reflexão sobre a substância.
6 Maiton, por sua vez, reflete sobre os desafios de realizar uma etnografia em um centro
de recuperação de dependentes no Acre que utiliza ayahuasca, sendo psicólogo de
formação. Sua jornada envolve o aprendizado do ofício etnográfico – a observação
participante, o registro em diário de campo e a metodologia qualitativa no campo da
saúde pública -, do primeiro contato com a ayahuasca e seus efeitos subjetivos e
intersubjetivos, e das possibilidades e desafios na negociação de papéis em campo. Ou
seja, uma jornada rumo a um novo contexto terapêutico, mas também uma jornada
rumo à antropologia.
7 Nenhum dos trabalhos apresentados tinha o caráter de uma síntese final das
respectivas pesquisas. Danieli, através deste texto, está iniciando um processo de
exploração que pode resultar em um projeto de doutorado; Maiton, por outro lado, se
encontra em fase de conclusão de um mestrado em Saúde Coletiva, e este texto inclui
parte das reflexões que estão para ser ampliadas. O que nos leva de volta ao título deste
artigo de apresentação: "E se um viajante numa sessão de ayahuasca...", um viajante
que tanto pode estar em uma viagem espiritual quanto acadêmica (ou em ambas), uma
viagem que invariavelmente leva ao conhecimento -- de si e de tantas cosmologias -- ou
seja, uma viagem para sempre infinita. Esperamos, assim, que este especial estimule
suas jornadas e aventuras ainda inconclusas, bem como a dos Leitores, tal como as

Ponto Urbe, 20 | 2017


191

histórias inacabadas de “Se um viajante numa noite de inverno...” de Ítalo Calvino


(1979)3.

NOTAS
1. MERCANTE, Marcelo S.. A ayahuasca e o tratamento da dependência. Mana (UFRJ. Impresso), v.
19, p. 529-558, 2013.
2. MERCANTE, M.S., (no prelo). Reflexos: ayahuasca, espiritualidade, imaginação e
dependência. Salvador: Edufba.
3. CALVINO, Ítalo. (1979). E se um viajante numa noite de inverno. São Paulo, Cia das Letras,
1999.

AUTORES
ANA LETÍCIA DE FIORI
Doutoranda PPGAS-USP.

MARCELO SIMÃO MERCANTE


Professor substituto, Departamento de Ciências Sociais, UFSCAR.

Ponto Urbe, 20 | 2017


192

Fluxos e suspensões: reflexões em


relação às experiências em um
campo de pesquisa
Maiton Bernardelli, José Roque Junges e Marcelo Simão Mercante

Introdução
1 Ainda que a passos curtos na tradição de pesquisa em saúde, a metodologia de pesquisa
qualitativa nesta área vem ganhando espaços significativos. (CAPRARA e LANDIM,
2008; BOSI, 2012). Desta forma a utilização de métodos qualitativos e seus instrumentos
têm tomado o interesse de pesquisadores nas áreas da saúde, especificamente
influenciados pelas ciências sociais e pela antropologia.
2 Nas perspectivas de pesquisa em saúde a metodologia qualitativa permite explorar o
cotidiano das pessoas e seus processos sociais. Desta forma se apresenta como recurso
para explorar relações e percepções de como os seres humanos constroem e pensam a
si mesmos diante do fluxo de suas vidas (MINAYO, 2010, 57).
3 Apresentada pela antropologia, dentre as estratégias utilizadas nas pesquisas
qualitativas em saúde (KNAUTH, 2010), desataca-se a etnografia. A etnografia, é
caracterizada como “a arte e a ciência de descrever um grupo humano – suas
instituições, seus comportamentos interpessoais, suas produções materiais e suas
crenças” (ANGROSINO, M., 2009, p. 30).
4 Como tradição antropológica, ainda que possa ser considerada, para além de um
método, uma teoria, a partir das descobertas que dela emergem (PEIRANO, 2014), a
etnografia se constitui de um procedimento científico. Magnani (2012) defende essa
perspectiva, apontando para o uso reducionista que o método etnográfico vem sendo
apresentado aos espaços urbanos, especialmente influenciados pelas pesquisas de
marketing e mercado.
5 Ribeiro (2010) destaca que as recentes demandas de pesquisa circunscrevem ao campo
da antropologia e do método etnográfico desafios quanto a um dos princípios

Ponto Urbe, 20 | 2017


193

fundamentais da produção deste conhecimento, o tempo. Para a pesquisadora, as


demandas externas, provenientes dos desdobramentos entre sociedade civil e
universidades desdobra a metodologia etnográfica em uma experiência “a jato”, ainda
que deva preservar suas características mesmo que as circunstâncias não sejam as
ideais (RIBEIRO, 2010).
6 A questão do tempo de campo nas etnografias em saúde coletiva foi apontada por
Knauth (2010) como um desafio para que seus resultados consigam refletir a qualidade
dos dados coletados. A este aspecto, a pesquisadora aponta que a etnografia não deve
servir como simples técnica de coleta de dados, “mas enquanto uma forma de olhar,
apreender e interpretar a realidade” (KNAUTH, 2010, p. 110).
7 A este aspecto, pretendo apresentar situações desafiadoras vivenciadas em uma
“experiência etnográfica à jato”. A experiência se deu numa pesquisa de campo em um
centro de recuperação para dependência no estado do Acre. O pesquisador não
conhecia o campo fisicamente, sendo sua inserção inaugurada com sua instalação em
uma casa da comunidade. O tempo de campo foi breve, totalizando pouco mais de trinta
dias, com vivencias intensas em toda a rotina da instituição.
8 Primeiramente apresento algumas características do campo, como enquadre para
compreensão das reflexões posteriores. Em seguida, apresento recortes do diário de
campo, em que o fluxo das vivências é metáfora como problematização da experiência e
também da própria pesquisa à medida que ela se desenvolve, movendo-se em direção a
um caminho previsível, mas incógnito. Como o fluxo de um rio que deságua em destinos
desconhecidos, ainda que se pretenda alcançar objetivos, como tradição de pesquisa na
área da saúde coletiva.
9 Neste sentido, antes da pretensão de chegar a conclusões, este recorte busca apresentar
reflexões a partir da experiência etnográfica enquanto metodologia de pesquisa e as
demandas externas aos objetivos de pesquisa que insurgiram, instigando
engendramentos de papéis. Essa necessidade reflexiva nos permite a manutenção dos
fluxos do aprender rumo à novos conhecimentos.

O campo: A Associação Beneficente Caminho de Luz


10 Com sede em Rio Branco, a Associação Beneficente Caminho de Luz foi fundada em 2001
e atende na modalidade de internação indivíduos para tratamento em função de
dependência química. O ingresso na instituição se dá por meio de internação voluntária
e ou por encaminhamentos através da rede de saúde da cidade de Rio Branco. As
instituições também mantêm vínculos com a promotoria do estado, via Secretaria de
Segurança do Estado do Acre (SESACRE) que encaminham pessoas para cumprir algum
regime de pena através do tratamento, dentre eles: regime semiaberto, regime fechado
ou pena alternativa.
11 As pessoas que cumprem estas medidas não recebem tratamentos diferenciais, à
exceção de serem acompanhadas em suas audiências quando solicitado pela justiça.
Durante o trabalho de campo pude observar diversas situações em que as pessoas
chegavam de escolta policial e algemas e eram liberadas assim que a responsável pela
instituição assinasse o termo judicial que acompanhava sua inclusão no tratamento.
Essa possibilidade de encontrar-se com uma “pseudo-liberdade”, era vista por muitos
internos que se encontravam nestas situações, como forma de reestabelecer vínculos e,

Ponto Urbe, 20 | 2017


194

também, a proximidade com a violência e o contato com as drogas no contexto


prisional.
12 O projeto terapêutico, além do tratamento espiritual, comtempla atividades de
laborterapia, reuniões de grupo, acompanhamentos individuais e se divide em duas
etapas. Ainda que a temporalidade dos eventos não se manifeste desta forma,
preconiza-se que na primeira os indivíduos sejam acolhidos e orientados até os seis
meses de tratamento. Nesta etapa são destacados o enfrentamento da abstinência, a
prevenção de recaída e o resgate com vínculos familiares. A segunda etapa compreende
o período final de tratamento que vai do sétimo ao nono mês de internação. Nesse
período o interno inicia o processo de reinserção social, podendo participar de
atividades e cursos fora da instituição, visando resgatar os vínculos sociais e
desenvolver perspectivas para o futuro após a internação.
13 No campo, estas temporalidades se manifestam de maneira subjetiva em relação aos
comportamentos apresentados pelas pessoas durante o tratamento. A exemplo,
algumas recaíam nas idas à penitenciária, especialmente quando cumpriam semiaberto,
acabando por retomarem o tratamento em seu estágio inicial. Outras, que mantinham
bons relacionamentos com a equipe e com os demais internos, assumiam atividades
junto à equipe terapêutica auxiliando em atividades de maior prestígio, por exemplo no
escritório ou em atividades administrativas do centro de recuperação, sendo inseridos
em cursos e eventos promovidos pela Central de Articulação das Entidades de Saúde
(CADES) do Estado do Acre.
14 Conforme a avaliação inicial realizada pela equipe de atendimento, as pessoas são
conduzidas a diferentes unidades de internação administradas pela Associação
Beneficente Caminho de Luz, sendo elas: Centro de Recuperação Caminho de Luz (Rio
Branco); Casa de Acolhimento Mestre Gabriel (Rio Branco), Casa de Acolhimento Rei
Salomão (Senador Guiomard), Casa de Acolhimento Luz Divina (Bujarí), Casa de
Acolhimento Luz na Floresta (Acrelândia), Casa de Acolhimento Luz da Restauração
(Epitaciolândia) e Casa de Acolhimento Caminho de Luz (Ouro Preto/RO).
15 Ainda que não vinculada à sua federação oficial, Centro Espírita Beneficente União do
Vegetal (CEDIBV), na Caminho de Luz os trabalhos espirituais realizados seguem a
doutrina da União do Vegetal, que cultiva a ingestão da ayahuasca em suas sessões. A
origem da palavra Ayahuasca vem do quéchua e significa “cipó das almas” (LABATE,
2004). Bebida de origem amazônica, a ayahuasca, consiste, em geral, da combinação do
cipó Banisteriopsis caapi, com a folha do arbusto Psychotria viridis, podendo ainda ser
acrescida de diversas outras plantas dependendo da comunidade religiosa ou do
contexto ritual de seu uso, sendo a NN-dimetiltriptamina (DMT), presente nas folhas de
Psychotria, o agente psicoativo principal (ASSIS e LABATE, 2014).
16 A União do Vegetal (UDV) é a mais recente das religiões ayahuasqueiras brasileiras e a
que mantem maior número de associados (MACRAE, 2004). Foi a terceira religião
desenvolvida no Brasil, em 1961, fundada por João Gabriel da Costa (Mestre Gabriel),
tem influências cristãs, porém a cerimônia se assemelha mais aos rituais xamânicos
sendo, este, conduzido pelo “Mestre”, que fica responsável por conduzir toda a sessão
do ritual. O cristianismo é a base da doutrina, mas trabalha com elementos de culturas
africanas e indígenas, aproximando-se também de linhas espíritas por ter a
reencarnação como um de seus pilares (GENTIL e GENTIL, 2002).
17 Conforme MacRae (2004), o chá é conhecido pelos seguidores da UDV como “Hoasca”,
ou “Vegetal" (origem da denominação religiosa), sendo sua ingestão considerada

Ponto Urbe, 20 | 2017


195

beberagem, em função de se considerar que o chá deve ser “bebido” ao invés de


“tomado”. O efeito da bebida é conhecido pelos seguidores da UDV como 'burracheira',
sendo considerada por Mestre Gabriel como uma “força estranha", ou a presença da
"Força" e a "Luz" do Vegetal na consciência daqueles utilizam a bebida (BRISSAC, 2002;
MACRAE, 2004).
18 A Associação Beneficente Caminho de Luz, que tem por origem o Centro Espírita
Templo da Ordem Universal de Salomão, realiza trabalhos espirituais em sua sede
quinzenalmente, onde participam todos os sócios da doutrina. Em cada uma das
unidades de tratamento das quais a Associação administra existem os denominados
“pré-núcleos”, nos quais são realizadas sessões espirituais com a ingestão do chá aos
internos, nas quartas-feiras e sábados.
19 O tratamento tem por base a espiritualidade e o uso do chá, sendo rotina o consumo da
bebida em períodos do dia para além das sessões espirituais. Mercante (2013), destaca
que, no modelo de tratamento baseado no uso da ayahuasca, a dependência é
compreendida como reflexo de um problema espiritual que o indivíduo vive, sendo as
práticas espirituais/religiosas a base do processo de recuperação.
20 Conforme levantamento realizado pela instituição entre o período de janeiro à
setembro de 2016, observa-se na Tabela I algumas características dos usuários do centro
de recuperação Casa Caminho de Luz, campo principal da pesquisa.

Tabela I: Atendimentos ABCL – janeiro à setembro 2016.

Tabela de atendimentos ABCL de janeiro à setembro 2016.*(n=155)

N (%)

Faixa etária

18-25 anos 48 31,00

26-35 anos 52 33,55

36 -45 anos 39 25,16

≥46 19 12,26

Raça/Etnia

Branca 15 9,68

Negra 13 8,39

Parda 127 82,00

Escolaridade

Analfabeto 6 3,90

Ensino Fundamental Incompleto 79 51,00

Ensino Fundamental Completo 27 17,44

Ensino Médio Incompleto 20 12,90

Ensino Médio Completo 17 11,00

Ponto Urbe, 20 | 2017


196

Superior Incompleto 3 1,93

Superior Completo 3 1,93

Histórico residencial (com quem morava?)

Com familiar 91 58,71

Sozinho 5 3,23

Em situação de rua 28 18,06

Apenado 31 20,00

Localidade de origem

Rio Branco 116 74,84

Interior do Acre 21 13,55

Outros estados 17 10,98

Exterior 1 0,64

Formas de Encaminhamento

Acompanhado por familiar 91 58,71

Sem acompanhante 48 31,00

Situação de rua (CRAS ou rede de serviço) 11 7,10

Encaminhamento judicial 5 3,22

*Dados levantados e oferecidos gentilmente pela Associação Beneficente Caminho de


Luz.
21 Entre o período de janeiro à setembro de 2016, foram registradas 155 internações no
Centro de Recuperação Casa Caminho de Luz. Em relação à faixa etária, mais de 33% dos
internos do sexo masculino se encontra entre os 26 a 35 anos de idade, sendo as pessoas
com mais de 46 anos as que menos acessam o serviço (12,26%). Quanto à etnia 82% das
pessoas foram identificadas como pardas. O nível de escolaridade, aferido em períodos
escolares, indica que 51% das pessoas têm ensino fundamental incompleto. Conforme os
dados da tabela, a maioria, 74,84% dos internos eram da capital do estado do Acre, Rio
Branco. A maioria, ainda, declarou-se morando com um familiar (58,71%). Esse dado
corrobora com o fato da maioria dos encaminhamentos de internação serem realizados
na presença de um familiar (58,71%). O encaminhamento judicial representa pouco
mais de 3%. Esse dado é influenciado por dificuldades da instituição em envolver-se em
convênios e projetos públicos, tendo em vista algumas adequações necessárias exigidas
pelo ministério público para que a instiuição possa acolher maior demanda judicial.

Ponto Urbe, 20 | 2017


197

As rotinas da Caminho de Luz


22 O centro de recuperação tem rotinas orientadas por um calendário de atividades que
contempla laborterapia, reuniões de gurpo, atendimentos individuais, sessões
espirituais, atividades de lazer, entre outros.
23 Assim que chegam no centro de recuperação, todos os internos recebem instruções
quanto á regras de conduta e convivência na insituição. Todos assinam um termo de
compromisso com relação a estas informações, que incluem: “manter-se limpo e vestido
descentemente”; “é proibida a permanência na cozinha e refeitório sem que este esteja
vestido de camisa, podendo sofrer falta considerada grave”; “não poderá nenhum
residente ter ou manter consigo celulares, dinheiro, cartão de transportes, aparelhos de
som, gravadores ou caixa de música e remédios”.
24 Embora o uso de celulares seja proibido, observei vários internos portando aparelhos.
Segundo os monitores, estes internos assumiram responsabilidades e ou demonstraram
confiança para manterem porte de celular. Muitos deles se utilizam dos aparelhos para
se comunicar com a equipe durante atividades que assumem, por exemplo na venda de
produtos da agroindústria. Ao passo que isso acontece, a possibilidade de
ressocialização se dá também por esta via, evitando que o excesso de proibições limite
as possibilidades das pessoas em desenvolverem seus novos projetos de vida.
25 Novamente, percebe-se que a questão do projeto terapêutico é processual e não
somente determinado pelo tempo. Quem confere estes graus de confiança aos internos
geralmente é o Mestre Muniz, fundador da instituição. A este aspecto, a atividade do
Mestre e seus desígnios assumem uma dimensão espiritual quando, por vezes, os
internos identificam suas atitudes e tomadas de decisão como orientadas por Mestre
Gabriel, fundador da doutrina, em relação à suas vidas.
26 A estrutura do espaço é delimitada apenas por uma cerca simples que separa o espaço
físico da Caminho de Luz e a separa da Casa de Acolhimento Mestre Gabriel. Na
realidade, a Mestre Gabriel se estabelece fisicamente nos arredores do Templo num
conjunto de casas construídas no objetivo de ressocialização das pessoas que estão em
estágios avançados na recuperação e estabelecem relações de rotina e trabalho fora da
Associação. A Caminho de Luz estava concluindo uma obra onde ficariam os novos
alojamentos, os quais, à época, estavam prejudicados pelos efeitos do tempo de
construção. Uma ampla cozinha, banheiros individuais e uma lavanderia fazem parte
do espaço físico da Caminho de Luz.
27 Quanto às atividades do centro, a maioria é organizada pelos próprios internos,
seguindo o modelo de comunidades terapêuticas tradicionais. As atividades de
laborterapia incluíam, além dos preparos de alimentação e cuidados de higiene com o
centro, os afazeres de castanhas cristalizadas e doces de frutas, produzidos e vendidos
como fonte de geração de renda para a instituição. Os internos aproveitam os
momentos em que estas atividades acontecem para compartilhar suas histórias e
familiarizar-se com os novatos. As atividades de lazer acontecem diariamente nos finais
de tarde e se fundamentam em jogos de futebol ou voleibol. Pode-se optar por assistir
televisão ou descansar nos quartos.
28 As reuniões matinais e noturnas acontecem diariamente e seguem princípios da
filosofia Day Top, especialmente relacionados ao respeito mútuo e ao contrato positivo
apregoado pela metodologia que considera o processo de recuperação um processo a

Ponto Urbe, 20 | 2017


198

ser perseguido um dia de cada vez, ainda que relacionado à abstinência. Nestes espaços,
as pessoas trocam reflexões e fazem perguntas. É onde se configuram tensionamentos e
ajustes de comportamentos e atitudes que reverberam no grupo, onde o responsável
pela condução da atividade faz explanações de cunho moral em relação ao coletivo. As
intervenções individuais são realizadas através de encontros semanais com os membros
da equipe.

Fluxos e suspensões na “experiência etnográfica”


29 Magnani (2009) destaca a “experiência etnográfica” como aquela marcada pela
imprevisibilidade. Conforme o pesquisador, a experiência etnográfica se caracteriza em
duas circunstâncias: como “primeira impressão”, no contato com um tema e campo
desconhecidos; e como “experiência reveladora” com a pesquisa em andamento
(MAGNANI, 2009). Nesse caso, a etnografia se configura como prática e experiência a
partir da sensibilidade do pesquisador em conduzir sua pesquisa a partir de sua própria
relação com o campo. São os “afetamentos” (FAVRET-SAADA, 2005), ou seja, aquilo que
se estabelece na relação entre o campo e o pesquisador como fenômeno de um fluxo
contínuo de aprendizagens e trocas.
30 Ainda antes da pesquisa de campo, junto à Caminho de Luz, minha “experiência
etnográfica” (MAGNANI, 2009) se inciava. Minha experiência em estudos relacionados
ao tratamento para dependência se traduzia por práticas de profissionais como
psicólogo em comunidades terapêuticas e atendimentos clínicos. Pouco, ou quase nada,
conhecia sobre o uso da ayahuasca, especialmente no que se relaciona ao uso
terapêutico. Confesso que a influência da mídia e de situações mal apresentadas me
mantinham na racionalidade científica de minha formação. Com a inserção no
programa de mestrado conheci, influenciado por meu orientador Marcelo Simão
Mercante, novas perspectivas em relação à espiritualidade e ao uso da ayahuasca no
tratamento para dependência.
31 Assim que o projeto de mestrado finalizava, me sentia distante do que eu escrevia.
Tinha a sensação de estar cometendo o erro de desrespeitar as pessoas que realizavam a
prática do uso religioso da ayahuasca por desconhecer a bebida através da experiência.
Ora, se pesquiso em igrejas católicas, evangélicas, espiritas etc., minha inserção nestes
locais me faz emergir em seus rezos e rituais, estaria eu próximo deste contexto sem ter
uma experiência com o uso do chá? Estaria próximo destas pessoas que pretenderia
conhecer? Levei em consideração o fato de nunca ter frequentado nenhum centro
religioso que pratica o uso da bebida em suas sessões.
32 Me dispus a fazer uma inserção em um grupo “neo-ayahuasqueiro” (terminologia usada
para identificar pequenos grupos urbanos), por indicação de uma colega do grupo de
pesquisas do programa de mestrado. O grupo se define como “xâmanico tântrico” e tem
sede no interior do estado de São Paulo, com um núcleo em uma cidade da serra gaúcha
vizinha à minha. Esta experiência trouxe a oportunidade de reconfigurar a escrita de
meu projeto, principalmente na definição das questões de pesquisa e no delineamento
das entrevistas. Eis parte do registro da experiência:
“(...) Esta, dentre outras experiências vividas durante o processo me permitiram um
encontro profundo comigo mesmo. Tive a sensação de que minha história inteira
passasse diante de mim. Algo como experimentar anos de terapia em uma única
sessão. Os insights eram intensos. Meu corpo parecia responder ao que minha razão

Ponto Urbe, 20 | 2017


199

ainda não compreendia. Não tive nenhuma reação de purga. Confesso que me sentia
tenso. Cheguei a me sentir confuso. Não conseguia atentar aos rezos e músicas que
conduziam o ritual. Ao passo, uma profunda paz me invadia, como que um descanso
profundo, num caminho rumo a lugares desconhecidos em mim mesmo. Durante
todo o tempo, marcadamente percebia o olhar cuidadoso de todos e para com todos.
A troca de cuidado era extrema. Haviam os que se sentiam mal e eram
carinhosamente abraçados e, os que ofereciam água e chá quente para aquecer e
amparar. Os olhares mútuos e trocas constantes fizeram com que me sentisse
seguro para viver a experiência. Fiquei refletindo tudo aquilo que experienciei por
vários dias. Provavelmente ainda esteja fazendo.”
33 Esta experiência me proporcionou o contato vivo com o de uso ritual da ayahuasca,
entretanto a experiência em campo se daria num ritual diferente. Esta diferença foi
registrada logo na primeira sessão em que participei e me trouxe importantes reflexões
na condução de minha postura como pesquisador em campo.
“(...) Me referindo á única experiência que tive com o uso ritual da ayahuasca,
percebe-se claramente a diferença entre os rituais. Me senti provocado. Talvez
tenha criado expectativas. Foram, de certa forma, superadas, porém me coloquei a
questionar: Todas as pessoas aqui poderiam fazer uso da bebida? Será que passaram
por uma avaliação prévia? Será que as pessoas compreendem tudo o que o Mestre
profere? Visualizei muitas pessoas entranto e saindo, mas o clima foi de extremo
respeito e concentração. Um silêncio, as chamadas e músicas. A palavra do Mestre é
o foco da sessão. Ainda que eu estivesse tenso, percebi uma rigidez disciplinar
durante toda a sessão. Minha ingesta da bebida não me provocou nenhuma
sensação desconfortável, ao passo que também não tive uma explosão de insight.
Talvez porque a estrutura da sessão restrinja esse tipo de situação, para que se
consiga atingir os objetivos a que ela se propõe. Talvez eu não tivesse compreendido
isso se não me submetesse a todo o ritual.”
34 Quero destacar que participei de todas as sessões realizadas na Caminho de Luz, tanto
no Templo quanto no centro de recuperação, durante meu período de campo. Enquanto
observação participante ativa, a partir da primeira experiência na sessão acima
relatada, optei por realizar a ingestão da bebida em todas as sessões. Desta forma,
busquei registrar as minhas impressões logo após as sessões, que também eram
integralmente gravadas em aúdio. Esta participação ativa aumentou a proximidade com
as pessoas no campo, que se sentiam à vontade para compartilhar de suas experiências
comigo, como alguém que se fazia presente, efetivamente, no contexto ritual.
35 Para além disso, outros acontecimentos se apresentaram no campo, os quais
entrelaçaram-se meu papel profissional ao de pesquisador. Ainda que eu soubesse que o
campo poderia apresentar diversos fenômenos que ultrapassavam o alcance de meus
objetivos de pesquisa, logo nos primeiros dias passei a refletir sobre meu papel de
pesquisador no campo. Uma das grandes observações que contribuiram para essa
reflexão se deu em função de um diálogo informal que tive com um dirigente da
instituição. Gentilmente, com um humor característico, ele me disse:
“Os indios aí, disseram assim outro dia: ‘Os antropólogo vem aqui pra conhecer nóis
e é nóis que estamos conhecendo como é a vida dos antropólogo, de tanto que já
vieram pra fazer pesquisa’. Eles querem tanto pesquisar os indios que os indios é
que estão pesquisando eles.”
36 A partir desta frase tive a certeza, uma vez que já desconfiva, de que o estranho no
campo era eu. Aliás, num primeiro momento, mais fácil um grande grupo observar um
único ser, do que este dar conta de um campo desconhecido. E assim se sucederam uma

Ponto Urbe, 20 | 2017


200

série de movimentos que demandavam flexibilidade para absorver o fluxo do


inesperado.
37 Roberto Kant de Lima (2004) apresenta questões relacionadas à próprias experiências
como pesquisador, onde a identidade profissional ganhava novos contornos conforme
os fluxos do campo. O pesquisador apresenta dois modelos reflexivos o qual considera
plausíveis tanto na produção jurídica, quanto na produção acadêmica, sendo eles: o
modelo paralelepípedo e o modelo pirâmide. O primeiro, refere-se à questão da
autonomia, do individualismo e do consentimento. No modelo paralelepípedo busca-se
o consenso através da verdade. Já o modelo da pirâmide pressupõe uma desigualdade
de conhecimentos prevalecendo o silêncio em detrimento de outras manifestações. Sua
conclusão, e o que cabe aqui, é esses sistemas favorecem uma ambiguidade ética, no
qual é necessário que saibamos em qual dos sistemas estamos “naquele momento,
referidos, em cada contexto específico, para que não haja má interpretação de nossas
atitudes” (KANT DE LIMA, 2004).
38 Dalmolim, Lopes e Vasconcelos (2002), realizaram um escrito sobre sua experiência
etnográfica em que descrevem o fluxo de sua pesquisa e experiência enquanto
profissionais de saúde. Desta forma, podemos considerar que a viagem etnográfica,
enquanto experiência, é subjetiva, e a consolidação dos dados, bem como as análises,
dizem respeito á experiencia e á criatividade do pesquisador (DALMOLIM, LOPES E
VASONCELOS, 2002).
39 Enquanto “viagem etnográfica” (SALGADO, 2015), cada pesquisador experiencia um
fluxo diverso, influenciado pela sua formação. Como método tradicional da
antropologia, a etnografia pressupõe o contato direto com a população de estudo
através da observação participante, caracterizando uma “relação social particular que é
a relação pesquisador/pesquisado” (BEAUD & WEBER, 2007) Aos antopólogos, a
etnografia se concentra na ida ao campo e no registro de informações como papel
identificador de sua profissão. Isso caracteriza seus esforços em prol da boa pesquisa e
da qualificação de seus dados, afinal é da antropologia o legado da pesquisa etnográfica.
(BEAUD & WEBER, 2007)
40 Salgado (2015) destaca que a etnografia implica um sentido de presença uma vez que
pressupõe o contato social direto e continuado com os agentes da investigação. A este
aspecto, estar presente, presentificar-se como sujeito/pesquisador, imbuído de uma
trajetória e um repertório de conhecimentos que compõem o papel profissional do
pesquisador é, de fato, impactante durante o campo, uma vez que
“Estudiar como la gente responde a la presencia del investigador puede ser tan
informativo como analisar la forma como ellos reaccionam frente a otras
situaciones.” (HAMMERSLEY y ATKINSON, 1994, p.29)
41 Fato é, que quando em campo, o antropólogo se defronta com demandas que, muitas
vezes, lhe conferem o caráter de observador participante sem que, neste sentido,
insurjam demandas de intervenção. A experiência em si se configura como uma relação
promotora de resultados etnográficos. (MAGNANI, 2002). A profissionais de saúde,
inseridos em campos característicos e afins ao trabalho cotidiano, como um psicólogo
em um centro de recuperação, o campo de pesquisa se mistura ao papel profissional por
identificação ao “fazer interventivo”, ainda que este não seja o propósito de seu
trabalho em campo.
42 Conforme destaquei, no artigo de Dalmolim, Lopes e Vasconcelos (2002), apresentam
seus dilemas e saídas para os desafios do campo enquanto profissionais da saúde. As

Ponto Urbe, 20 | 2017


201

pesquisadoras discutem a própria implicação na pesquisa a partir de um “olhar de fora”


na busca por uma reflexividade no processo de pesquisa. É o que proponho com este
trabalho, apresentar questões reflexivas acerca de minhas experiências de campo.
43 Inicialmente busquei não me identificar como psicólogo, o que logo foi revelado pela
equipe que me recebeu, uma vez que conheciam meu projeto. O termo de
consentimento livre e informado, exigido pelo programa de mestrado, me apresentava
como psicólogo. Logo nas primeiras reuniões e contatos, meu papel profissional era
destacado pelos meus informantes. Vale ressaltar que a instituição não dispunha de
nenhum psicólogo no momento da pesquisa de campo. Isso gerou dupla expectativa aos
membros da comunidade: quanto aos objetivos da pesquisa em si; e quanto à suprir
uma lacuna institucional por “escuta qualificada”.
44 Minha experiência de campo estava relacionada ao fato de conviver na comunidade
durante todo o período da pesquisa, participando de todas as atividades oferecidas,
especialmente às práticas espirituais/religiosas. Fiquei alojado em uma das residências
da Mestre Gabriel, de onde observava e experienciava o fluxo do campo, ao passo que ia
sendo “absorvido” por ele. Me refiro à absorção enquanto experiência de “afetamento”
(FAVRET-SAADA, 2005) diante dos fluxos que o campo demandava. Essa reflexão se
confirmava á medida que os dias passaram enquanto a experiência de afetamento se
efetivava em mim como experiência.
45 O fluxo da escrita do caderno de campo, inicialemnte, se manteve no registro de
contextos do cotidiano e na estrutura física do local, como se elementos concretos
pudessem me conduzir para caminhos a seguir, diante de um rio que corria livremente.
O processo de “andar e ver” (SILVA, 2009) era constante enquanto me sentia deslocado
e tatendando contatos, buscando proximidade.
“Escuto do quarto risadas soltas e livres. Crianças brincando na terra ou com
qualquer objeto que encontram por onde passam. Brincam em meio a cajueiros,
folhas e cajus caídos de maduro das altas árvores que sombreiam as singelas casas
de tábuas e janelas sem vidraças que coloridas são. Uma calmaria parece conviver
livremente com a rotina de trabalho e tarefas que cada um desempenha na
instituição, ou mesmo fora dela, já que os moradores da Mestre Gabriel também
podem seguir sua vida para além da instituição”.
46 Nos primeiros contatos, iniciei um processo reflexivo em relação ao fluxo que se
constituia entre meu papel de pesquisador “etnográfico” em campo e, de psicólogo e
psicoterapeuta, como profissão de origem, ainda que os objetivos com relação ao
trabalho de campo estivessem bem definidos. A primeira situação que me levou a
observar esse fluxo de papéis foi no terceiro dia no campo. Eu estava sozinho na casa
que me foi disponibilizada, aproveitando para colocar as idéias em ordem, quando fui
supreendido por uma visita. Em meu caderno de campo destaco as seguintes
observações:
“É costume local que, do meio dia às quatorze horas, as pessoas descansem em suas
casas ou em redes espalhadas embaixo das altas mangueiras a produzir lindos frutos
que caem de maduros. Estranhamente, batem à porta. Meio confuso do ligeiro
cochilo que fiz, vou atender. Era E., 38 anos, ex-namorada de J.. Relatou que se sente
triste e chorosa. Perguntou se eu poderia escutá-la um pouco, ao que confuso em
relação ao meu papel, consenti. Verbalizou sobre a separação. (...) O que a mim
pareceu confuso e ambivalente. Não sei se minha experiência clínica tem se
expresso de forma intensa, já que trabalho com questões conjugais, ou se é mera
coincidência. De todo modo, considero manter atenção aos dados que me afetam ou
à minha sensibilidade clínica que me conecta ao conhecido de minha profissão.”

Ponto Urbe, 20 | 2017


202

47 Magnani (2009) aponta que a pesquisa etnográfica provoca uma atitude de


estranhamento por parte do pesquisador, levando-se em consideração sua origem e sua
cultura enquanto esquemas conceituais constituídos. Estes não são descartados frente
ao campo, mas produzem o que o pesquisador considera ‘copresença’, onde se pode
encontrar saídas inesperadas em meio ás possibilidades que se estabelecem (MAGNANI,
2009) Neste sentido, a experiência do pesquisador e sua habilidade teórica pode
favorecer saídas criativas em meio às manifestações do campo.
48 Daquele momento em diante passei a observar minha prórpia relação com o campo,
evitando intervenções que caracerizassem meu papel profissional buscando manter o
foco nos obejtivos e na metodologia de minha pesquisa. Esse fluxo de papéis que o
investigador experiencia definem o tipo de participação que vai se configurar no
campo, permitindo processos de criação e conhecimento favoráveis à construção
etnográfica (SALGADO, 2015).
49 Como proposta metodológica, entrevistas em profundidade faziam parte da coleta de
dados. A entrevista semi-estruturada se caracterizava como um diálogo extenso, o qual
minha experiência profissional inevitavelmente se faria presente, ainda que mantendo-
se os objetivos da pesquisa em mente.
50 Uma entrevista já havia sido realizada. Numa escuta breve do áudio, eu havia
encontrado alguns pontos a desenvolver, mas considerei-me distanciado do campo das
intervenções, característico das entrevistas que costumeiramente conduzo em
psicoterapia. Uma segunda entrevista, com outro participante foi combinada
despretenciosamente, e quando ele estava disponível fui solicitado.
“J.R. é reincidente na instituição. Negro, delgado, com inúmeras tatuagens pelo
corpo, incluindo o pescoço e a face, muitas delas de cunho religioso. Eu havia
dialogado com J. por pequenos períodos enquanto ele trabalhava na obra da casa de
preparo. Ele sabia que eu realizava uma pesquisa. Imaginei que gostaria de
contribuir com a pesquisa. J. parecia inquieto e angustiado. E eu tinha realmente
interesse em uma entrevista com ele, pelo histórico de aprisionamento e relação
com a justiça. J. havia demonstrado muita empatia nos momentos em que havíamos
conversado. J. tinha ficado preso por 10 anos em função de envolvimentos com o
crime. Mas esse não era o objetivo de seu diálogo comigo. Sentamos junto ao pré-
núcleo. Ele parecia ansioso como se algo o estivesse incomodando. Logo fez a
seguinte solicitação: ‘Não tá gravando nada ainda, né? Espera, quero falar outras
coisa’. Novamente meu papel profissional foi chamado ao contexto. Seu conflito
dizia respeito à uma relação afetiva rompida a mais ou menos um mês. J. solicitou
sigilo e reforçou que eu não gravasse. Fato que respeitei. Registro em meu diário, a
título de ponderações futuras relacionadas ao estudo que venho fazer. Não anotei
nada no momento do diálogo. Os registros foram realizados á noite, quando me
reservei a meus singelos alfarrábios. (...) Para além de pesquisador, naquele
momento J. me requisitou como psicólogo. Cedi à escuta sensível, considerando a
necessidade técnica profissional da instituição. Ainda assim, dados sobre as relações
internas entre as pessoas da comunidade indicam padrões de convivência social que
refletem aspectos éticos, morais e conflitos de normas que caracterizam o campo de
investigação”.
51 A psicologia enquanto profissão e em relação aos seus objetos sociais, se traduz em
julgamentos valorativos, que, ao serem incorporadas ao cotidiano de algumas camadas
populacionais, “convertem-se, quase sempre, numa visão de mundo altamente
subjetivista e individualista” (FIGUEIREDO e SANTI, 2002, p.87). A este aspecto, a
profissão de psicólogo é vista como interventiva e individual, onde a escuta assume seu

Ponto Urbe, 20 | 2017


203

principal domínio, em detrimento ás condições sociais, históricas e culturais presentes


nas experiências subjetivas (PRAÇA e NOVAES, 2004).
52 Em outro momento, durante a observação de uma das reuniões noturnas que ocorriam
na comunidade terapêutica, o coordenador conduzia sua fala até ser interrompido por
um monitor que lhe solicitou a ida ao portão. Novamente fui solicitado a redirecionar o
fluxo da pesquisa ao encontro de meu papel profissional. Eis o registro de meu diário de
campo:
“A reunião havia começado a pouco. Eu havia observado que algumas pessoas se
dirigiram até o portão, parecendo apreensivas com alguma situação. O residente
responsável foi verificar e solicitou a presença de E. que teve que se ausentar da
reunião. Prontamente E. me solicitou a prosseguir com a atividade que ele conduzia
dizendo: ‘Você é psicólogo, pode seguir aqui pra nós!” Eu não sabia o que fazer.
Aliás nem sabia do que se tratava o conteúdo do material. Meu papel profissional de
psicólogo se confundia novamente com o objetivo de pesquisador naquele lugar.
Assumi a atividade mesmo tensionado a não o fazer. Me senti desconfortável em
convidar R. (educadora) a assumir seu papel institucional frente aos internos. Ainda
sem saber o que ia fazer e o que estava escrito nas folhas iniciei, apreensivo. Fiz
algumas colocações enquanto me desenrolava a ler “dinamicamente” trechos do
texto. (...) O diálogo se desenvolveu em relação a uma série de dúvidas dos internos,
desde as questões neurológicas e neuroquímicas da dependência química até
questões emocionais e relacionais envolvidas no processo de recuperação. A
conversa se estendeu por quase uma hora. Muitos participaram e eu me sentia
sendo “consumido” pela demanda. Este fenômeno demonstrou a mim a intensa
necessidade da instituição por profissionais técnicos e qualificação da equipe,
diante do desafio do tratamento. E. retornou, aparentando certa apreensão e deu
continuidade, finalizando a reunião. Fiquei me perguntando se pesquisadores de
outras áreas, ou antropólogos teriam esta mesma demanda?”
53 Como de costume, mensalmente aos domingos, a comunidade recebe os familiares dos
internos para visitas. Antes de acessarem às dependências da instituição, a família deve
participar de uma reunião oferecida pela equipe com o objetivo de solucionar dúvidas e
amparar às famílias quanto ás suas angustias em relação ao tratamento. Numa destas
oportunidades, resolvi observar, ao que uma nova situação me conduziu a um fluxo
difuso aos objetivos que eu tinha planejado.
“Eu estava sentado junto às pessoas que chegavam, tentando não furtar a atenção.
Assim que expõe sua fala, o coordenador da reunião me apresenta e me solicita a
falar um pouco sobre as famílias nos contextos de dependência química. À esta
altura ele sabia de minhas experiências nesses contextos de intervenção. Não havia
como me ausentar desta tarefa diante de pessoas que eu não conhecia. Não quis ser
grosseiro. Fiquei confuso sobre meu posicionamento e meu papel nesta reunião.
(Pensando agora, esta pode ser uma troca positiva quanto ao que posso oferecer
enquanto sujeito-pesquisador ao campo que demanda por profissionais técnicos,
mas este não é meu objetivo). Me ative a fazer uma breve interlocução que não
perdurou mais de cinco minutos me apresentando e falando sobre minha pesquisa e
porque eu estava ali. Reforcei a todos a importância da família no tratamento e da
necessidade de apoio e segurança para a manutenção da abstinência, bem como
para que atentassem para as palavras de E. e R., devolvendo a palavra”.
54 A única situação previsível ao fluxo de papéis pesquisador/profissional a que me ative a
ponderar, havia sido as entrevistas. Como espaço de escuta, era inevitável que minha
experiência carregaria em si o espaço de acolhimento ás necessidades dos internos.
Como possibilidade, esta experiência se qualificou como espaço em busca de resgate das

Ponto Urbe, 20 | 2017


204

histórias de vida, através da escuta de si, e enquanto espaço de diálogo, quiçá


terapêutico:
“Hoje realizei três entrevistas. Lembro-me da forma com que todos me agradeciam
ao final. ‘Eu acho que tudo que eu falei foi de coração. Tudo que eu falei foi uma...
foi a minha vida, foi a minha vida.’ ‘Obrigado eu digo também pra você, por ter me
escutado.’ Mas A. foi quem mais me impactou. Ao final da entrevista, depois de ter
me contado sua trajetória de vida, agradeceu e se colocou a chorar. Depois solicitou
a mim a informação sobre se outras pessoas também tinham tido ‘isso’, a forma
como classificou o que sentira. Ele me relatou que há muito tempo não
compartilhava com ninguém sua história e que a entrevista o colocara de volta ao
passado, fazendo com que sentisse vontade de chorar. Ele demonstrou
tranquilidade ao falar sobre esse sentimento, ao que agradeci pela compreensão e
por compartilhar sua história comigo. Tenho a impressão que as demonstrações
afetivas são constrangedoras a muitas pessoas daqui, mas me passa a ideia de que
esta situação decorre de sentimentos de vergonha e culpa diante do caminho
percorrido”.
55 Considerando os recortes apresentados, acredito que as saídas possíveis foram
alcançadas, por meio de habilidade e criatividade para que o papel profissional não se
sobressaísse ao de pesquisador, minha principal tarefa em campo. O que destaco é a
capacidade e a necessidade reflexiva diante das demandas que se apresentam. É nesse
exercício que as pesquisas se efetivam e os resultados se consolidam.
56 Necessário se faz, levar em conta os momentos de interação, diferenciação e
reciprocidade entre o pesquisador e os atores sociais participantes no trabalho de
campo (GUBER, 2011). A este aspecto, através da experiência pessoal do uso da
ayahuasca, nas sessões espirituais consegui adentrar intensamente na cultura da
comunidade. Essa lógica configurou possibilidades de entendimento quanto aos
conceitos báscios da doutrina, como quanto ás narrativas pessoais produzidas a partir
da ingestão do chá, quando tive a oporutnidade de realizar entrevistas em
profundidade.
57 Minhas reflexões, em constante construção, se fortaleceram ainda mais quando
participei da VI- React – Reunião de Antropologia da Ciência e da Tecnologia, realizado
na Universidade de São Paulo em maio de 2017. Especialmente a apresentação de
Cristiàn Simonetti, da Pontifícia Universidade do Chile, o qual trazia o conceito de
“suspensão” como forma de problematizar sua pesquisa sobre arqueologia e formas de
determinação de tempo e espaço.
58 Sem adentrar ao contexto de sua pesquisa, mas exemplificando minha reflexão, como
um estalo passageiro enquanto estava apreciando sua apresentação, passei a refletir
sobre o conceito. Quanto a este, buscando sua significação literal no dicionário da
língua portuguesa, “suspensão” está relacionado à ação de suspender, de estar
suspenso. Simonetti se utilizava da metáfora para apresentar dados sobre as
experiências de mergulhadores e astronautas que adentram universos em profundidade
para alcançar seus objetivos.
59 Sobre minha própria experiência com o uso da ayahuasca, passei a considerar algo
muito próximo ao conceito apontado pelo pesquisador. A suspensão como um processo
que acompanha o ritual. O uso ritual da ayahuasca pode proporcionar experiências com
imagens mentais espontâneas (as “mirações”), as quais colocam em relação mundo
interno e externo destas pessoas no processo de produção de autotransformação
(MERCANTE, 2013). Desta forma é como se durante as sessões com a ayahuasca,

Ponto Urbe, 20 | 2017


205

houvesse uma suspensão entre dois universos: o mundo espiritual e o mundo material,
enquanto um corpo encarnado.
60 Em relação ao observado em campo, através da experiência de suspensão com o uso da
ayahuasca, se edificam novos fluxos reflexivos que podem conduzir as pessoas ao
cuidado de si, que ainda, aliada às regras e condutas da doutrina e apregoados pela
instituição, engendram condutas e posturas configurando meios de docilizar corpos e
reintegrá-los aos parâmetros morais da sociedade.
61 Estes breves recortes que apresentei elucidam minha experiência com a etnografia,
enquanto possibilidade na pesquisa em saúde, como um desafio ao pesquisador diante
de um campo de fluxos que se estabelecem continuamente. Movimentos,
deslocamentos, como um rio que deságua em direção ao desconhecido, ainda que seu
objetivo seja encontrar com o mar. Suspensões em que coabitam e se entrelaçam
saberes, conhecimentos e humanidades possíveis diante de caminhos e fluxos no
intangível mar da vida.

BIBLIOGRAFIA
ANGROSINO, M. Etnografia e observação participante. Porto Alegre: Artmed: 2009.

ASSIS, G.L. e LABATE, B.C. Dos igarapés da Amazônia para o outro lado do Atlântico: a expansão e
internacionalização do Santo Daime no contexto religioso global. Religião e Sociedade, Rio de
Janeiro, v.34, n.2, p.11-35, 2014.

BEAUD, S. e WEBER, F. Guia para a pesquisa de campo: produzir e analisar dados


etnográficos. Petrópolis: Vozes, 2007.

BOSI. M.L.M. Pesquisa qualitativa em saúde coletiva: panorama e desafios. Revista Ciência &
Saúde Coletiva, 17(3):575-586, 2012.

BRISSAC, S. José Gabriel da Costa: trajetória de um brasileiro, mestre e autor da União do vegetal.
In: LABATE, B.C. e ARAÚJO, W.S. (orgs.) O uso ritual da ayahuasca. Campinas, SP: Mercado das
Letras; São Paulo: Fapesp, 2002.

CAPRARA, A.; LANDIM, L.P. Ethnography: its uses, potentials and limits within health research.
Interface - Comunic., Saúde, Educ., v.12, n.25, p.363-76, abr./jun. 2008.

DALMOLIM, M.B., LOPES, S.M.B E VASONCELOS, M.P.C. A construção metodológica do campo:


etnografia, criatividade e sensibilidade na investigação. Revista Saúde e Sociedade 11(2): 19-34,
2002.

FAVRET-SAADA, J. Ser afetado. Revista Cadernos de Campo. Nº 13, pp.155-161, 2005.

FIGUEIREDO, L.C.M; SANTI, P. L. R. Psicologia: uma (nova) introdução. São Paulo: Educ, 2002.

GENTIL, L.R.B. e GENTIL, H.S. O uso de psicoativos em um contexto religioso: a União do Vegetal.
In: LABATE, B.C. e ARAÚJO, W.S. (orgs.) O uso ritual da ayahuasca. Campinas, SP: Mercado das
Letras; São Paulo: Fapesp, 2002.

Ponto Urbe, 20 | 2017


206

GUBER, R. La etnografia: método, campo e reflexividad. 1ª ed., Buenos Aires: Siglo Veintiuno
Editores, 2011.

HAMMERSLEY, M. y ATKINSON, P. Etnografía: Métodos de Invetigación. 1ª ed., Barcelona:


Ediciones Paidós, 1994.

KNAUTH, D. A etnografia na saúde coletiva: desafios e perspectivas. In: SCHUCH, P.; VIERIA, M.S.
E PETERS, R. (orgs.) Experiências, dilemas e desafios do fazer etnográfico contemporâneo.
Porto Alegre: Ed. da UFRGS, 2010.

LABATE, B. C. A reinvenção do uso da ayahuasca nos centros urbanos. S. Paulo: Mercado das
Letras / FAPESP, 2004.

LIMA, R. K. de. Éticas e identidades profissionais em uma perspectiva comparada. In: VICTORA, C.;
OLIVEN, R.G.; MACIEL, M.E.; ORO, A.P. (organizadores) Antropologia e Ética. O debate atual no
Brasil. Niterói: EdUFF, 2004.

MACRAE, E. The ritual use of ayahuasca by three Brazilian religions. In: COOMBER,R. & SOUTH, N.
Drug Use and Cultural Contexts Beyond the West. London, Free Association Books, p. 27-45,
2004.

MAGNANI, J.G.C. De perto e de dentro: nota para uma etnografia urbana. Revista Brasileira de
Ciências Sociais, v. 17, n. 49, p. 11-29, 2002

MAGNANI, J.G.C. Entrevista: A etnografia é um método, não uma mera ferramenta de


pesquisa...que se pode usar de qualquer maneira. Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 43, n.
2, jul/dez, 2012, p. 169 - 178

MAGNANI, J.G.C. Etnografia como prática e experiência. Horizontes Antropológicos, Porto


Alegre, ano 15, n. 32, p. 129-156, jul./dez. 2009

MERCANTE, M.S. A ayahuasca e o tratamento da dependência. Revista Mana. Rio de Janeiro vol.
19, n.3, 2013.

MERCANTE, M.S. Imagens de cura: imaginação, saúde, doença e cura e na Barquinha, uma religião
ayahuasqueira brasileira. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz. 2012.

MINAYO, M.C.S. O desafio do conhecimento: Pesquisa Qualitativa em Saúde. (12ª edição). São
Paulo: Hucitec-Abrasco, 2010.

PEIRANO, M. Etnografia não é método. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 20, n. 42,
p. 377-391, jul./dez., 2014

PRAÇA, D.B.K. & NOVAES. H.G.V. A Representação Social do Trabalho do Psicológo. Revista
Psicologia Ciência e Profissão, 24 (2), 32-47, 2004.

RIBEIRO, F.B. Etnografias a jato. In: SCHUCH, P.; VIERIA, M.S. E PETERS, R. (orgs.) Experiências,
dilemas e desafios do fazer etnográfico contemporâneo. Porto Alegre: Ed. da UFRGS, 2010.

SALGADO, R.S. A Performance da Etnografia como Método da Antropologia. Rev.


ANTROPOlógicas, nº 13, 27-38, 2015.

SILVA, H.R.S. A situação etnográfica: andar e ver. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano
15, n. 32, p. 171-188, jul./dez. 2009

Ponto Urbe, 20 | 2017


207

RESUMOS
O objetivo deste trabalho é apresentar reflexões a partir da experiência de campo de uma
pesquisa etnográfica realizada na Casa de Recuperação Caminho de Luz, em Rio Branco/AC. A
instituição para tratamento de usuários de drogas tem como um de seus pilares o tratamento
espiritual através do uso ritual de ayahuasca em sessões que seguem a doutrina da União do
Vegetal (UDV). Ao estar em campo, além da preocupação com a busca pelos dados da pesquisa, o
pesquisador viu-se comprometido em questões relacionados à profissão de origem – psicólogo e
psicoterapeuta. Demandas de gênero, grupo e conflitos conjugais foram emergências que
exigiram do profissional espaços para descolamentos do papel de pesquisador ao passo que
assinalava tais fenômenos como manifestações do campo. Tais constatações fazem refletir a
prática de pesquisa, especialmente em saúde coletiva, como espaços reflexivos onde tencionam
práticas profissionais e papéis do pesquisador considerando a importância da delimitação de tais
lugares e da neutralidade em campo.

This work aims to present some considerations based on a fieldwork experience of na


ethnographic research carried out at Caminho de Luz Recovery Center, in Rio Branco/AC. The
drug user’s treatment institution has as one of its principles the spiritual treatment through the
ritual use of ayahuasca in sessions guided by União do Vegetal (UDV) doctrine. While in field,
beyond the concerns with data gathering, the researcher was committed in questions related to
his original profession – psychologist and psychotherapist. Gender, group and conflict demands
arouse, requiring of the professional spaces to detach himself from the researcher role while
marked those phenomena as field manifestations. Such findings set the research practice,
especially in public health, as reflexive spaces that stresses professional practices and researcher
roles, considering the importance of the delimitation of such places and the neutrality in field.

ÍNDICE
Keywords: reflexivity, ethnography, role
Palavras-chave: reflexividade, etnografia, papéis

AUTORES
MAITON BERNARDELLI
Psicólogo, Mestrando em Saúde Coletiva, Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS.

JOSÉ ROQUE JUNGES


Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS.

MARCELO SIMÃO MERCANTE


Departamento de Ciências Sociais, Universidade Federal de São Carlos -- Ufscar.

Ponto Urbe, 20 | 2017


208

Por uma abordagem ecológica dos


efeitos anti-depressivos da
ayahuasca
Danielli Katherine Pascoal da Silva

Introdução
1 As reflexões aqui esboçadas surgiram do encontro entre minha experiência de campo
na União do Vegetal, a II Conferência Mundial da Ayahuasca 1 e os comentários feitos
por Marcelo Mercante, Ana Fiori e José Magnani2. Embora já tivesse navegado, através
de leituras, por outros campos de pesquisa a respeito de rituais com a ayahuasca, ainda
não tinha constatado o protagonismo que esta bebidatêm desempenhado em pesquisas
neurocientíficas. Se por um lado, estava familiarizada com a ideia da ayahuasca como
“medicina” da floresta, utilizada por xamãs em seus rituais, por outro, não estava
suficientemente esclarecida sobre a ayahuasca como “medicine” no sentido
farmacêutico.
2 Não estava e ainda não estou, especialmente porque os temas que atravessam este
artigo são novos para mim. Dado minha condição de principiante neste terreno e o
caráter teórico-exploratório de minha pesquisa, meu intuito é oferecer mais perguntas
que respostas. Com sorte, asquestões que me ocorreramsobre este novo cenário
deestudos e usos terapêutico e farmacológico da ayahuasca poderão ensejar novos
desdobramentos.
3 Quero entender como os estudos neurocientíficos caracterizam os efeitos
antidepressivos da ayahuasca e, com isso, constrastar algumas concepções sobre a
ayahuasca, depressão e efeitos terapêuticos. Trata-se de levantar a seguinte questão:
são as substâncias presentes na ayahuasca a causa de seus efeitos antidepressivos?
4 O objetivo é perquirir em que medida a ênfase sobre a ayahuasca (e suaspropriedades
químicas) coloca como secundário os processos reflexivosde aprendizagem entre
humanos, Vegetais e ambiente. Por fim, conjecturo sobre o potencial que uma

Ponto Urbe, 20 | 2017


209

abordagem ecológica pode ter, tanto para refletirmos a respeito da condição dos
pesquisadores, quanto para repensarmos os conceitos de propriedades químicas,
depressão, ayahausca e saúde.

Depressão: breve incursãonas definições do


fenômeno
5 Embora a depressão seja considerada pela Organização Mundial de Saúde (OMS, 2017) a
principal causa de incapacidade em todo o mundo, afetando a saúde de cerca de 350
milhões de pessoas3, ela não é um fenômeno recente (CANALE & FURLAN, 2006). Aquilo
que hoje denominamos depressãojá foi caracterizado sob um espectro muito difuso de
nomes, não sendo definido como doença até o século XIX.
6 Os sintomas corporais e mentais que estavam dispersos sob diferentes denominações
(melancolia, tristeza, apatia, sonolência, solidão, etc) hoje estão condensadas sob o
termo depressão4. Não obstante a depressão seja apresentada nos como entidade
nosológica5singular, ela continua a referir-se a um universo de experiências
heterogêneas, sendo classificada como um “complexo sindrômico caracterizado por
alterações de humor, de psicomotricidade e por variedade de distúrbios somáticos e
neurovegetativos” (CANALE & FURLAN, 2006, p. 24).
7 Desde a antiguidade grega discute-se sobre quais seriam as causas dos “estados
melancólicos”. As teorias defendidas por Hipócrates, Platão e Aristóteles anunciavam
premissas e questões que ainda hoje subjazem as reflexões e práticasda psiquiatria
moderna (SIMON, 1980, p. 225). Enquanto Hipócrates defendia a hipótese de uma
origem uterina, Platão sustentava que a melancolia resultava de experiências
vivenciadas na infância. Aristóteles por sua vez, “não aceitava nem a diminuição da
importância da alma e de seus filósofos por parte de Hipócrates, nem o descarte do
médico como mero artesão por parte de Platão” (SOLOMON, 2014, p. 275). Para ele havia
uma mútua influência entre “alma e corpo”.
8 Considerada um pecado na Idade Média, uma característica de personalidades
profundamente filosóficas no Renascimento, ou ainda, numa perspectiva cartesiana,a
manifestação de uma racionalidade frágil, as definições sobre tal condição e o
tratamento dado às pessoas que a vivenciavam, transformou-se ao longo da história do
Ocidente. Embora estas definições não sejam sucessivas, visto que há uma coexistência
entre diversos conceitos, as disputas políticas em torno da prevalência de determinada
caracterização do fenômeno colocam-se frequentemente numa encruzilhada: seguir
por uma via explicativa sugere o abandono da outra.
9 De certa maneira, as reflexões contemporâneas reverberam essas antigas discussões.
Mas é nos embates entre a a psicanálise de Freud (1996; 2011), a psicobiologia de Emil
Kraepelin (1921) e a psicofarmacologia (FERREIRA, 2011, p. 80) que a atual definição do
fenômeno “depressão” encontra suas raízes.
10 Embora o termo depressão não apareça enquanto categoria clínica na obra de Freud, a
descrição que ele faz da sintomatologia da melancolia é semelhante àquela que leva
diversos psiquiatras a diagnosticarem alguém com depressão. As doenças mentais eram
classificadas como melancolia, psicoses e neuroses e recebiam uma abordagem
sistematicamente psicológica (COSER, 2003, p. 107).

Ponto Urbe, 20 | 2017


210

11 Ao comparar a experiência de luto e a experiência de melancolia, Freud afirmava que


em ambos há um esvaziamento do ego gerado pela perda de um objeto de
amor.Mas,enquanto no luto a experiência de perda resulta dofatoinconteste da morte
de quem se amava, namelancolia o objeto de amor perdido que alimenta o conflito
psíquico é de natureza inconsciente e o algoz culpado pela perda é o próprio eu (COSER,
2011, p. 111)6. De acordo com Solomon, ainda que críticas pertinentes possam ser feitas
à Freud e à psicanálise, não devemos ignorar “[...] a verdade fundamental do seu texto,
a sua grande humildade: a de que frequentemente não conhecemos nossas próprias
motivações e somos prisioneiros do que não compreendemos” (SOLOMON, 2014, p. 98).
12 Outra perspectiva influente foi a de Kraepelin (1921), para quem todas as doenças
mentais tinham uma base bioquímica(FERREIRA, 2011, p. 80). Nesta perspectiva, a
essência das doenças mentais “residiria num dano orgânico” que o autor definia como
“fator interno não precisamente definido, que (...) radicava no corpo” (COSER, 2003, p.
59)
13 A partir da década de 1950, os avanços nos estudos físico-químicos com o
aprimoramento detécnicas de isolamento de princípios ativos, favoreceram a atividade
experimental de controle e, consequentemente, aconsolidação e expansão das terapias
medicamentosas. A premissa básica da abordagem farmacológica é que as patologias
possuem causas fisiológicas, e por isso, deve-se investir na descoberta de tratamentos
químicos eficazes (LAMB, 2008, p. 50).
14 Segundo a análise histórico-etnográfica feita por Bittencourt et al. (2013, p. 223) dos
livros-textos de farmacologia7, o termo “depressão” ou “sintoma depressivo” enquanto
condição clínica quase não aparecenas duas primeiras edições (1941 e 1955). E, embora
não houvesse àquela época uma categoria bem definida, tanto de medicamentos
psicoativos quanto de depressão, os termos já circulavam na linguagem médica e
farmacológica.
15 Em 1952 a Associação Americana de Psiquiatria publica o primeiro Manual Diagnóstico
e Estatístico8 (DMS) resultado de um esforço classificatório das doenças mentais. Tanto
na primeira quanto na segunda edição (DSM II) publicada em 1968, nota-se expressiva
influência da psicanálise no campo psiquiátrico. Os DSM’s (I e II) orientavam-sepor uma
concepção holística do ser humano,tratando os eventos da vida do indivíduo, como
fatores relevantes ao diagnóstico clínico (FERREIRA, 2011, p. 82). Ambas foram
influenciadas porAdolf Meyer, cuja abordagem poderia ser hoje definida como
biopsicossocial. Para Meyer, os“pacientes poderiam muito bem ter predisposições
hereditárias, mas que algo fosse herdado não significava que fosse imutável”
(SOLOMON, 2014, p. 315).
16 Os DSM’s anteriores passaram a ser objeto de crítica e revisão no campo
psiquiátricotanto por não caracterizarem especificamente os sintomas dos transtornos
mentais, quanto por suporem a existência de transtornos mentais orgânicos e não-
orgânicos. Com a sua revisão, eliminou-se terminologias sustentadas no paradigma
psicanalítico, como por exemplo, psicose, neurose e perversão.Estas foram substituídas
por distúrbio/transtorno (em inglês disorder) (LAMB, 2008, p. 56) baseada na concepção
da doença como entidade exterior ao sujeito, assim “o adágio sujeito em sofrimento
psíquico” foi substituído por “paciente portador de transtorno mental” (FERREIRA,
2011, p. 85).

Ponto Urbe, 20 | 2017


211

17 É nesta terceira edição (DSM III), publicada em 1980, que se consolidam transformações
significativas na psiquiatria relacionadas à revolução psicofarmacológica: a depressão é
classificada dentroda categoria dos Transtornos do humor, cuja etiologia está ancorada
numa “estrutura cerebral disfuncional de origem ainda não desvendada” (FERREIRA,
2011, p. 85). Fato que marca ofortalecimento do paradigma biomédico na psiquiatria em
detrimento da psiquiatria dinâmica.
18 Ainda que frequentemente as soluções oferecidas pela farmacologia sejam consideradas
como decorrentes do conhecimento das causas e funcionamento de determinadas
patologias, isto não é uma regra:
No caso dos medicamentos psicoativos, se há a busca das explicações causais, este
aspecto está em desenvolvimento e tem oferecido apenas respostas parciais. O que
existe são hipóteses, e o uso de medicamentos baseia-se nos sucessos da clínica:
mesmo que não se tenha um diagnóstico preciso, a utilização de medicamentos
pode aliviar sintomas (BITTENCOURT et al., 2013, p. 227).
19 Entre o DSM III, o IV (1994) e a DSM IV-TR não há variaçõessubstanciais. Entre a
primeira edição de 1952 e a quinta edição de 2013 houve inclusões e exclusões de
categorias diagnósticas de transtornos mentais. Na quinta edição, por exemplo, uma
das mudanças polêmicas “foi a retirada do luto como critério de exclusão do
Transtorno Depressivo Maior. No DSM-5 é possível aplicar esse diagnóstico mesmo
àqueles que passaram pela perda de um ente querido há menos de dois anos” (ARAÚJO
& NETO, 2013, p.105). Com isso, estes sujeitos também podem receber tramentos
medicamentosos.
20 Esta breve apresentação dos debates envolvidos nas transformações da definição da
depressão e das formas de terapia recomendadas às pessoas diagnosticadas, evidencia
como a escolha de determinada nomenclatura implica uma rede de conceitos latentes
de pessoa, doença, saúde, corpo e mente. Ao sustentar a caracterização do fenômeno,
esta rede de concepções, orientaas alternativas de tratamento e “[...] influenciam as
decisões políticas, que por sua vez afetam os depressivos” (SOLOMON, 2014, p. 346).
21 A questão da definição é tão decisiva que, de acordo com a OMS, um dos maiores
obstáculos ao tratamento da depressão origina-se nos diagnósticos equivocados,
quando “pessoas com depressão frequentemente não são diagnosticadas corretamente
e outras que não têm o transtorno são muitas vezes diagnosticadas de forma
inadequada”9.
22 É curioso que o desenvolvimento e uso de medicamentos psicoativos para tratamento
da depressão não são acompanhados pela redução estatística da doença, ao contrário,
os índices crescem e as previsões não são nada otimistas. A depressão continua sendo
umproblema de saúde pública.
23 Provavelmente o aspecto positivodesse crescimento estatísticopode estar relacionado
ao rompimento, ainda mínimo einsuficiente, do estigma que envolve a depressão. Fator
que contribui para que mais pessoas procurem ajuda especializada 10 e sejam incluídas
nos dados oficiais. Por outro lado, os equívocos e abusos médicos no diagnóstico e
prescrição de anti-depressivos não sãosuposições descabidas de alguma teoria da
conspiração.Eles fazem parte do cotidianomoderno esão objeto de uma recomendação
de prudência por parte da OMS: “os antidepressivos podem ser eficazes no caso de
depressão moderada-grave, mas não são a primeira linha de tratamento para os casos
mais brandos. [...] É preciso utilizá-los com cautela 11.

Ponto Urbe, 20 | 2017


212

24 Essa ambientação é um ponto de partida para sugerir que o ponto central do


tratamento dado à depressão e às pessoas diagnosticadasestá relacionadoà
conceituação que se faz do fenômeno. Ciente dos limites do conhecimento socialmente
compartilhado sobre a depressão, e de que o aprofundamento analítico não se faz nas
encruzilhadas explicativas, considero que o desenvolvimento de métodos mais eficazes
de tratamento não surgirão daoposição entre terapias medicamentosas e terapias
psicossociais. Parece-me que a questão a ser problematizadasãoas relações que nosso
modelo ocidental de pessoa - ancorado principalmente na perspectiva biomédica de um
corpo desconectado da existência no ambiente - constitui com ambas terapias. E o mais
importante: problematizar as relações que as pessoas estabelecem consigo mesmas.
Afinal, se “entender a história da depressão é entender a invenção do ser humano como
agora o conhecemos e somos” (2014, p. 273), que ser humano é esse para quem:
[...] alegrar-se, emagrecer, parar de fumar, aprender mais facilmente, tudo isso
pode ser atingido sem esforço pessoal, sem demandar ‘força de vontade’, reflexão
ou outras categorias antiquadas, visto que, atualmente foram substituídas por
antidepressivos, cirurgia bariátrica, bupropiona, metilfenidato e outros (FERREIRA,
2011, p. 85)? [interrogação minha].

Ayahuasca no mundo: da propriedade fixaà


inteligência emergente nas interações
25 Foi participando do ritual de preparo da Hoasca12 na União do Vegetal (UDV) que me
ocorreu indagar tão básica pergunta: o que é a Hoasca? Saber que se trata de uma
bebida psicoativa feita do cozimento em água do cipó, cujo nome científico é
Banisteriopsis caapi, e das folhas de um arbusto, cujo nome científico é Psychotria viridisé
uma resposta muito precáriaà pergunta. Alucinógeno, enteógeno, psicodélico,
ecodélico, psicoativo, Rainha, medicina, Hoasca... Entre categorias êmicas e éticas, entre
os diversos nomes existentes para defini-la, podemos ver que ela continua a desafiar
nossos esforços classificatórios.
26 A caracterização mais generalizada é daayahuasca enquanto psicoativo ou alucinógeno.
Esta definição médico-químicaatribui os efeitosneurofisiológicos experimentadoscom a
sua ingestão à atuação desubstâncias químicas isoláveis (GAUJAC, 2013). Ainda que as
substâncias existam e aqueles que a bebem sintam uma transformação em suas
sensações e sentimentos, devemos lembrar que “essa bebida é apenas parcialmente
responsável por abrir as portas da consciência e da percepção” (MERCANTE, 2012, p.
27).
27 Mesmo que intuisse que eu não encontraria“a” resposta àquela pergunta, fazê-la
redirecionou minha visão. Eu não apresentarei os detalhes sobre aprendizagem
envolvidano preparo da bebida devidoaos limites deste artigo, mas quero registrar
quena UDV a qualidade do chá13 preparado não depende apenas de fatores relacionados
ao plantio, colheita e cozimento das plantas. Os efeitosdo cháestão ligados aos
procedimentos de plantio e cozimento, dos usos misteriosos das palavras 14 e da vivência
prática e comunitária com ensinos do Mestre Gabriel15. Os efeitos são processos
dinâmicos de interação entre os seres humanos, o Vegetal e outros seres chamados a
participar nos rituais.
28 Durante minhas vivências na UDV, notei que o Vegetal era denotado tanto como Luz ou
Ser Divino,quanto como “instrumento” ou“chave que abre qualquer porta”. Essa dupla

Ponto Urbe, 20 | 2017


213

caracterização me incomodava: de que forma Hoasca, a materialização de um Ser


Divino de inteligência superior à nossa, poderia ser ao mesmo tempo caracterizada
como instrumento e objeto suscetível à ação humana? O caráter essencialmente divino
e instrumental da bebida parecia-me um paradoxo.
29 Esta dúvida me levou a repensar à teorização de Roy Wagner (2010), que identifica e
contrastadois modos de simbolização constitutivos das culturas humanas.Para elucidar
sua teoria, compara os modos de simbolização ocidental e melanésio: o que definimos
como natureza e associamos ao inato, eles identificam como o domínio das convenções
e da ação humana; o que definimos como socialidade e associamos à ação humana, eles
identificam como inato e não-convencionalizado.
30 Talvez a aparência paradoxal seja oriunda da incompatibilidade com uma perspectiva
que suponha o reino do inato e o da ação humana como pólos alternativos e
excludentes, como se algo inato não pudesse ser também constituído por meio da
experiência e ação humana. O que nos colocaria diante da armadilhade considerar a
ayahuasca um Ser Divino que nos ensina ou um instrumento neutro utilizado que
obedece nossas ações e intenções.
31 Compreendi que a distinção entre o dado eo feito, o inato ea ação humana não era assim
tão imperativa. No que concerne ao Vegetal, o inato não está fora do alcance da ação
humana. O Vegetal é consideradoum divino instrumento sensível à ação humana. Aqui,
sua ontologiacatalisa uma espécie de “dialética sem síntese” situando-se no reino do
inato e da ação humana (GOLDMAN, 2012, p. 284).
32 Se realizarmos uma analogia entre a dimensão inata do Vegetal que chamamos Divina,
e seus princípios ativos denominados “alcalóides betacarbolínicos (...) e
dimetiltriptamina” (MERCANTE, 2012, p. 25), parecerá óbvio porque a ayahuasca
desfruta de certo protagonismo nas pesquisas.
33 Uma das abordagensna qual esse protagonismo pode ser notado é aquela quedefine a
ayahuasca como “planta professora”. Este termo é usado principalmente nas pesquisas
feitas com as tradições vinculadas ao Santo Daime. Em seu estudo sobre a religião
daimista, Albuquerque reconhece que tão importante quanto as dimensões terapêuticas
de cura,são as dimensões epistemológica e pedagógica da experiência religiosa com a
ayahuasca. O argumento central é que “a ayahuasca configura-se como uma
experiência educativa na qual o mestre não é um humano, mas uma planta considerada
professora e cujos critérios de inteligibilidade encontram-se ancorados na visão de
mundo xamânica” (ALBUQUERQUE, 2009, p. 8).
34 De acordo com a autora, as premissas implicadas na definição da ayahuasca, sejano
universo ameríndio seja no religioso, expressam uma incompatibilidade com um dos
pressupostos da racionalidade científica moderna: a separação entre natureza e cultura.
Reconhecer a ayahuasca como sujeito de saber “configura-se como uma heresia
epistemológica na medida em que viola as clássicas distinções entre natureza e cultura
que transformou as plantas em meros objetos do saber e nunca em sujeitos do saber”
(ALBUQUERQUE, 2009, p. 30).
35 A epistemologia da ayahuasca serviria como contra-exemplo crítico (WAGNER, 2010) da
epistemologia ocidental. Nesse quesito, há um avanço teórico-político em reconhecer
que a inteligência e o conhecimento não são propriedades exclusivas dos humanos.
Contudo, deve-se ter cuidado para que esta perspectiva não tenha um efeito contrário
ao pretendido. Pois, dizer que as aprendizagens são possibilitadas pela ayahuasca é

Ponto Urbe, 20 | 2017


214

diferente de dizer que o conhecimento em questão “não é produzido pelos humanos,


mas produzido pela ação das plantas (ou das substâncias)” (ALBUQUERQUE, 2009, p. 30).
No primeiro, a ayahuasca é um dos sujeitos da relação de conhecimento, no segundo ela
é a fonte produtora do conhecimento. Sendo que nesta última, os humanos aparecem
como receptores deste conhecimento. Ou seja, o vetor permanece unidirecional mesmo
que a direção tenha se alterado.
36 É este último sentido que considero problemático, porque tende a abreviar complexas
relações de aprendizagem na essencialização da planta como fonte principal e em
alguns casos exclusiva do conhecimento e das transformações vivenciadas pelos
sujeitos. Neste caso, o esforço em traduzir a inteligência da Ayahuasca assemelharia-se
à epistemológica ocidental mais do que gostaríamos: denominada “planta professora”
ou “psicoativo com efeitos anti-depressivos e anti-ansioliticos” os efeitos continuariam
sendo atributosfixos das plantas (seja na ideia de uma inteligência intrínseca ou
naquela depropriedades químicas).
37 As reflexões desenvolvidas por Marc Lenaerts (2006) vêm ao encontro de minhas
impressões.Em sua comparação entre a perspectiva Ashaninka de medicina e a
perspectiva etnobotânica ocidental, nota que enquanto a última centra-se na
efetividade química das plantas, a primeira prestamais atenção aos aspectos relacionais
dosefeitos(LENAERTS, 2006, p. 2).
38 Lenaerts afirma queum mal-entendidotem se perpetuado em algumas traduções dos
nomes de determinadas plantas e animais que se manifestam em aparências
humanasnos rituais com a ayahuasca. A sua tradução como “espíritos visitantes” ecoa
muito mais a oposição ocidental entre corpos materiais e almas imateriais do que os
conceitos Ashaninka de interioridade e exterioridade. O problema é que para os
Ashaninkanão há separação entre a dimensão espiritual e corporal da experiência e da
cura com a ayahuasca, visto que “materialidade corpórea e interioridade subjetiva
passam a interagir de outra forma16”(LENAERTS, 2006, p. 10).
39 Se para os cientistas ocidentais uma planta medicinal é um objeto material cuja eficácia
terapêutica é mensurável pelo conhecimento da ação de suas substâncias químicas
sobre o organismo, para os Ashaninka uma planta é um ser cuja eficácia terapêutica
deriva de determinadas relações que são estabelecidas com grupos humanos e outros
seres.
40 Ainda que hajam significativas diferenças entre as cosmologias Ashaninka e Udevista,
em ambas a eficácia das plantasé entendida mais como fruto de determinadas
relaçõesdo que de propriedades independentes das relações. Assim, compreendo que o
foco desproporcional no chá enquanto psicoativo ou mesmo planta-professora, em
comparação ao chá enquanto um dos agentes dentro de um conjunto de práticas, pode
levar-nos ao equívoco de atribuir-lhe a responsabilidade das transformações
vivenciadas pelos sujeitos.
41 O encontro entre cosmologias e epistemologias ocidentais e não ocidentais têm gerado
notáveis transformações em nossas perspectivas. Um exemplo é a própria abordagem
que se dá ao abuso de substâncias e, consequentemente, às alternativas de
enfrentamento a este problema de saúde pública. O caso da ayahuasca como promissor
anti-depressivo é um desses recentes produtos.
42 Inspirado por encontros desta natureza, é que Gabor Maté17, psiquiatra canadense
reformula o problemada dependência ao insistir que o álcool, a maconha ou a cocaína

Ponto Urbe, 20 | 2017


215

não são em si mesmas a causa do vício.E aconselha arecondução de nossa atenção das
substâncias às relaçõesatravés da pergunta: o que torna algumas pessoas mais
suscetíveis aos vícios? E é esta mesma premissa que utilizo para formular a seguinte
questão: se o álcool, a maconha ou a cocaínanão são por si próprias a causa do vício,
seria a ayahuasca por si mesma a causa dos efeitos anti-depressivos?

Ayahuasca, depressão e neurociência


43 A consolidação do paradigma biomédico que privilegia explicações fisiológicas
dissociando-as “do contexto psicossocial dos significados” (DE MARCO, 2005, p. 65) têm
sido fundamental no desenvolvimento de procedimentos diagnósticos e na proposição
de novos tratamentos farmacológicos para diversas doenças. A neurobiologia é uma de
suassignatárias, na medida em que visa investigar a fisiologia e a anatomia do sistema
nervoso e consequentemente, apresentar explicações e sugerir terapiaspara as
patologias que implicam processos neuroquímicos.
44 E é neste campo da ciência ocidental que a depressão e a ayahuasca se encontram, na
medida em que a ayahuasca revela-se como “ (...) uma candidata em potencial para essa
nova geração de pesquisa em antidepressivos focada em novos tratamentos
farmacológicos18” (OSÓRIO et al. 2015, p. 13).
45 Alguns estudos têm sido realizados com o objetivo de entender os mecanismos
neurológicos que transcorremna vida da pessoa diagnosticada com depressão.Elessão
úteis para identificar os processos envolvidos na manifestação dos sintomas:
Psicólogos só podem investigar as manifestações físicas do que é observável em
forma de comportamento. O conhecimento das funções das regiões cerebrais em
condições normais sugere em quais aspectos eles são capazes de contribuir. Ainda
assim, ninguém sabe ao certo o mecanismo que desencadeia a depressão
clínica19(Kharade et al. 2010, p. 3).
46 É necessário frisar que a etiologia da depressão é desconhecida e que os tratamentos
farmacológicos existentes baseiam-se no conhecimento que se tem dos fatores
neurofisiológicosimplicados (OSÓRIO et al. 2015). Talvez o limite da precisão etiológica
resida justamente na dificuldade em compreender como os aspectos neurofisiológicos e
psicossociais se correlacionam na constituição do quadro depressivo.
47 Dentre as teorias que tentam explicar a causa da depressão, a mais aceita no campo
neurocientífico é a hipótese das monoaminas. De acordo com esta hipótese, a depressão
é o resultado de níveis reduzidos de monoaminas na fenda sináptica. As principais
monoaminas são a dopamina, a norepinefrina e serotonina(PALHANO-FONTES et al.
2014, p. 24-25).
48 Através da investigação do processo de síntese e regulação da serotonina no organismo,
encontrou-se evidências que mostram que a recaptação deste neurotransmissor pela
monoamina oxidase (MAO) provocaria a redução da neurotransmissão monoamínica
colaborandopara odesenvolvimentodeste transtorno dehumor (TURNER et al. 2009, p.
192-93).
49 A depressão, seria portanto, decorrentede uma deficiência na neurotransmissão
mediada pela serotonina (KHARADE et al. 2010, p. 4).O sistema serotoninérgico cujas
funções são a modulação do humor, da percepção da dor, da pulsão sexual edo sistema
neuroendócrino, é “considerado o principal sistema envolvido na neurobiologia da
depressão” (MOURA BASTOS, 2011) responsável por sua sintomatologia: mudanças no

Ponto Urbe, 20 | 2017


216

peso ou perda de apetite, distúrbios de sono, mudanças de atividades cotidianas, fatiga,


sentimento de inutilidade e/ou culpa, perda de concentração,pensamentos de morte ou
suícidio.
50 As pesquisas neurocientíficaspartem desta premissa para analisar os efeitos
antidepressivos da ayahuasca. Esta bebida,classificada como alucinógeno, possui
alcalóides betacarbolínicos, tetrahidroarmina e harmalina (presentes no cipó) e a
dimetiltriptamina (presente nas folhas do arbusto)que somadas intervêmimpedindo a
ação da MAO. Com a inibição da recaptação da serotonina pela MAO gera-se o aumento
da serotonina no cérebro.
51 Com o intuito de verificar esta hipótese, relizou-se uma pesquisa para avaliar os efeitos
de uma única dose da ayahuasca em seis pacientes com depressão. Os voluntários que
participaram do experimento responderam as escalas psicométricas 20 10 minutos antes
da ingestão; 40 minutos, 80 minutos, 140minutos e 180 minutos depois da ingestão; e
também nos dias 1, 7, 14 e 21 após a sessão experimental (OSÓRIO et al. 2015).
52 Os resultados apontam que enquanto o tempo médio para o início da ação terapêutica
dos antidepressivos comercialmente disponíveis é de duas semanas, a ayahuasca
demonstrou ação antidepressiva imediata, com redução de 62% do índice médio da
Escala Hamilton para Depressão (HAM-D). A diminuição se intensificou no sétimo dia
após o procedimento, com redução de 72%. No décimo quarto dia após o experiemento
o nível dos sintomas aumentou em relação ao primeiro dia mas permaneceu abaixou do
índice anterior a ingestão. E no vigésimo primeiro dia houve redução novamente 21.
53 Os efeitos antidepressivos da ayahuasca são também correlacionados a alteração da
conectividade da Default Mode Network (DMN)22.Quando uma pessoa vivencia um
quadro depressivo verifica-se um aumento da atividade da DMN, que sob a
administração da ayahuasca apresenta redução significativa (SANTOS et al. 2016, p. 69).
54 As práticas de meditação mindfulnessteriam efeitos sobre a DMN, semelhantes
aquelesprovocados pela ayahuasca. Ambas reduzem a atividade nas regiões mediais do
cérebro que é excessiva em pessoas com depressão (SOLER et al. 2015, p. 6). Mediante
isso, uma pesquisa investigou se os mecanismos psicológicos que subjazem os efeitos
terapêuticos da ayahuasca devem-seao desenvolvimento de capacidades de atenção
plena (mindfulness)similares aquelas adquiridas através da meditação.
55 Avaliou-se um grupo de 25 indivíduos, através de dois instrumentos aplicados antes e
24h após a ingestão da ayahuasca. Os intrumentos utilizados foram dois questionários:
o primeiro é denominado The Five Facets Mindfulness Questionnaire (FFMQ) e o
segundo Experiences Questionnaire (EQ) (SOLER et al. 2015, p. 2).
56 A conclusão é que o potencial terapêutico da ayahuasca se deve ao aumento da
qualidade de consciência, presença, não-reatividade, aceitação, não-julgamento e à
habilidade de assumir uma visão distanciada do seus próprios pensamentos e emoções
vistos como eventos impermanentes da mente (SOLER et al. 2015, p. 4).
57 Afirmam que o aperfeiçoamento das capacidades de atenção plena não é exclusivo da
prática meditativa. Elas podem ser obtidas através de intervenção farmacológica
(SOLER et al. 2015, p. 6), no caso, a ingestão da ayahuasca. De acordo com o artigo, as
modificações psicológicas verificadasa partir da sua ingestão fornecem
comprovaçãorazoável que assegura seu uso como eficazno tratamento de vícios e da
depressão, visto que assumir uma perspectiva distanciada das próprias emoções é

Ponto Urbe, 20 | 2017


217

clinicamente útil no processo de ressignificação


desituaçõesafetivamenteproblemáticas.
58 Por fim, concluem que seu experimento contradizuma antiga confusão de que os
benefícios terapêuticos estejam associados ou dependam do contexto religioso: “Os
resultados obtidos em contexto laico apoiam a noção que ayahuasca pode ter um
potencial terapêutico por si, mesmo na ausência do componente religioso” 23(SOLER et
al. 2015, p. 6).
59 Ainda que se pronuncie ainsuficiência de evidências para que a deficiência da
neurotransmissão serotoninérgica seja apontada como causa etiológica da depressão,
cuja “(...) complexa e multifacetada natureza (...) é feita de uma sorte de elementos
emocionais, comportamentais e cognitivos24”(KHARADE et al. 2010, p. 4), estas
pesquisas que apostam na ayahuasca como novo fármaco antidepressivo, tendem a
privilegiar hipóteses e abordagens que dissociam os aspectos neurofisiológicosdos
demais elementos que participam na vida do organismo humano no ambiente. É quase
como se o tratamento dos sintomas fosse suficiente para o tratamento da depressão.
Será?

Algumas perguntas...
60 A realização de experimentos em contextos laboratoriais com ayahuasca congelada e
encapsulada, ou mesmo com a ayahuasca líquida,responde à uma forma demapear a
ação de alguns princípios ativos sobre determinadas áreas cerebrais a serem
investigadas e sobre determinadas doenças a serem tratadas. Em sua análise Brian
Anderson (2012) observa que estas pesquisas tem transformado aquela perspectiva da
psiquiatria convencionalque considera os Estados Modificados de Consciência como
patológicos. Além de sua evidente relevância no conhecimento do organismo humano,
ou mais especificamente, das dimensões situadas no cérebro, elassão importantes na
constituição da legitimidade política do uso de psicodélicos através da comprovação
científica dos seus benefícios, principalmentepara o tratamento de vícioseda depressão.
61 No entanto, estas mesmas pesquisas mantem certos princípios da psiquiatria
convencional quase intocados. Um deles é a não menção entre os psiquiatras e
neurocientistas de suas experiências pessoais com a ayahuasca. Ou - se alegarem que a
menção anterior é cientificamente irrelevante - sobre a interação entre os
pesquisadores e os voluntários sob efeito da ayahausca durante a realização do
experimento. Esta postura corrobora com uma noção de objetividade científica baseada
na separação entre objeto e sujeito que supostamente seria ameaçada caso houvesse um
envolvimento experiencial e subjetivo do pesquisador.
62 Outra premissa é a necessidade da realização do experimento fora dos contextos
tradicionais de uso da ayahuasca. Anderson (2012, p. 54) argumenta que quanto mais
abstraído do contexto de uso tradicional o experimento é, mais fácil é a remoção
conceitualda contribuição do “Estado Modificado de Consciência 25” para os efeitos
terapêuticos.
63 Nas pesquisas experimentaismencionadas,o controle laboratorial serve para
diferenciar, por exemplo, se os efeitos terapêuticos são uma consequência das
propriedades químicas da ayahuasca ou da vivência comunitária no contexto religioso
(SANTOS et al, 2016, p. 70). Esta questão parece ter sido parcialmente respondida pela

Ponto Urbe, 20 | 2017


218

pesquisa de Soler et al. (2015, p. 6), para quem a ayahuasca tem efeitos terapêuticos por
si independentes do componente religioso.
64 A observação de que os sujeitos que participaram da pesquisa não são afiliados a
nenhuma religião ayahuasqueira é utilizado paraendossar o argumento anterior.Dizer
queo não-pertencimento a determinadas religiões comprova a independência dos
efeitos do contexto religiosoé diferente de generalizar essaconclusão para presumir que
sejam independentes de quaisquer contextos. Suporque as habilidades de atenção plena
(mindfulness) e suas características de abertura, não julgamento e aceitação possam ser
adquiridas através da ayahuasca por si (SOLER et al. 2015, p. 6), suscita algumas
dúvidas.
65 Note que assim como a depressão é atribuída à deficiência no funcionamento do
sistema serotoninérgico, a experiência com a ayahuasca é caracterizada como
intervenção farmacológica. Pergunto-me: esta qualidade metacognitiva de ter uma
visão distanciada das próprias emoções e pensamentos é um efeito psicológico
automático e universal da ayahuasca? Se sim, os indivíduos experimentam uma
abertura em relação à quê? O não julgamento e a aceitação do quê? Parece-me aqui que
as traduções entre linguagens, a do mindfulness ligada ao Budismo e a da neurociência
ligada a perspectiva biomédica, precisam ser repensadas.
66 Curiosamente Soler et al menciona (2015, p. 6) que os usuários da ayahuasca
apresentam traços de personalidade tais como religiosidade, espiritualidade,
sentimentos transpessoais inversamente relacionados aos sintomas
depressivos.Todavia a correlação entre os relatos dos participantes sobre o que
perceberam e sentiram durante o Estado Modificado de Consciência, (elementos que
escapam aos questionários aplicados) e as ações neuroquímicas das substâncias,
permanecem secundários e quaseinexplorados.
67 A aposta científica nas propriedades anti-depressivas da ayahuasca é explicitamente
justificadapela necessidade de novas drogas antidepressivas que tenham menos efeitos
colaterais e sejam mais eficazes na redução da sintomatologia da ansiedade e da
depressão (SANTOS et al. 2016; OSÓRIO et al. 2015). Embora o motivo seja nobre, dado os
indíces crescentes da depressão e dos prejuízos humanos causados, ainda não está claro
para mim: em que consistiria o uso farmacológico da ayahuasca?

O que seria uma abordagem ecológica dos efeitos


anti-depressivos da ayahuasca?
68 Os termos ecologia ou ecológico fazem parte de um espectro teórico-filosófico amplo e
heterogêneosobre o qual não me detenhoaqui (CARVALHO & STEIL, 2014). Mas dele
quero retomar uma postura metodológicana qual“a participação não se opõe a
observação, mas é uma condição para isso, assim como a luz é uma condição para se ver
as coisas, o som para ouvi-las e a sensação para senti-las” (INGOLD, 2015, p. 197).
69 Esta forma de perceber a realidade é uma crítica àquela concepção na qual o
conhecimento é uma “representação do real que se processa por meio da operação
lógica de abstração e distanciamento do seu objeto empírico” (CARVALHO& STEIL, 2014,
p. 166). Embora as pesquisas neurocientíficas não neguem totalmente a relevância do
ambiente e das experiênciasdos participantes monitorados, isso permanece tão
secundário que parece não ter importância na geração dos efeitos anti-depressivos.

Ponto Urbe, 20 | 2017


219

Uma abordagem ecológica implicaria no reconhecimento desta condição participativa


dos pesquisadores, assim como a reintegração das dimensões experienciais e
ambientais na produção dos efeitos em questão.
70 Quando Palhano-Fontes et al. (2014, p. 33-34) reduz os testemunhos dos pacientes à
confirmação dos efeitos neuroquímicos anti-depressivos do chá, as reflexões e mirações
são reduzidas à posição de consequência e não de causas co-participante de um
processo de transformação da pessoa com depressão.
71 Contudo, o fragmento de um relato recupera aquilo que o contexto laboratorial tenta
separar: “Eu permaneci encolhido e chorando suavemente, eu estava completamente
retraído e não podia responder porque senti como se o Diabo e a Nossa Senhora
estivessem lutando por minha alma e eu não poderia interferir. Depois de uma longa
batalha, Nossa Senhora venceu e puxou-me para o seu lado e eu senti uma intensa
alegria”26. Dentre tudo o que essa narrativa evoca, destaco o fato de que ainda queesta
pessoa não estivesse em contexto espiritual/religioso, o ambiente espiritual/religioso
estava nela.
72 Assim, ao invés de tratar os relatos dos pacientes sobre suas experiências como uma
confirmação subjetiva dos efeitos neurofisiológicosobjetivos da ayahuasca no cérebro,
poderíamos tratá-los como “processuais e relacionais. Elas não são nem objetivamente
determinadas nem subjetivamente imaginadas, mas praticamente experimentadas”
(INGOLD, 2015, p. 65).
73 Isto implicariaem outra forma de caracterizar a ayahuasca e a depressão, assim como
emoutras concepções de propriedade/substância, humano, doença e saúde que não
sejam fragmentadas.Sobre a saúde Richard Doyle (2012, p. 28-29) nos dá uma pista ao
examinar a etimologia do gerúndio healing, cujas raízes linguísticas estão ligadas à
noçãoto make a whole(fazer um todo). Este conceito “aponta menos para uma técnica
que para um itinerário: o que tinha sido quebrado, fragmentado, separado, e
distanciado, torna-se de alguma maneira reintegrado no todo 27”.
74 Nesse movimento, seria válido considerar que a relação estabelecida entre ayahuasca,
pessoas e ambiente não é de natureza mecânica.Todos interagem em contínua
elaboração criativa e social no sentido dado por Ingold: “invoco a palavra ‘social’ para
denotar este entendimento da interpenetrabilidade essencial ou fusão do espírito e
mundo” (2015, p. 337).
75 Articular as dimensões neurofisiológicas e psicológicas não é suficiente para
aprendermos com a ayahuasca que a materialidade e a interioridade interagem de uma
forma que desafia nossa ideia de mente/cérebro como algo confinado no corpo
(HALLOWELL, 1955, p. 88).E a perspectiva ecológica em diálogo com os xamanismos
indígenas e as religiosidades ayahuasqueira poderá contribuir à compreensão da mente
como algo “imanente a todo o sistema das relações organismo-ambiente dentro do qual
todos os seres estão necessariamente emaranhados” (INGOLD, 2015, p. 337).
76 Em sua abordagem fenomenológica sobre a depressão, Ratcliffe (2015) observa que
embora este seja um fenômeno heterogêneo, há uma característica que perpassa a
maioria das experiências que analisou: a sensação de desconexão, de não
pertencimento ao mundo (RATCLIFFE, 2015, p. 32). Contrariamente uma das
características comuns entre as diversas experiências com a ayahuasca são as sensações
de “identidade pessoal, conexão com o mundo exterior, temporalidade e os sentimentos
de significação e noese” (SHANON, 2003, p. 109).

Ponto Urbe, 20 | 2017


220

77 Portanto, caso a ayahuasca fosse considerada um fármaco anti-depressivo, teria de ser


constituindo uma nova categoria, a das tecnologias da reflexividade. Um novo e potente
agente no processo terapêutico que colabora à abertura da pessoa com depressão as
dimensões de sua vida que precisam ser reorientadas. Mas esta reorientação não é
inteiramente dada pela ayahuasca, ela demanda condução e reflexão durante e depois
da experiência (ANDERSON, 2012, p. 55).
78 As pesquisas neurocientíficas com a ayahuasca em pessoas com depressão tem
transformado significativamente a psiquiatria e as posibilidades terapêuticas com
psicodélicos, mas tem um potencial ainda maior caso assumam metodologicamente essa
indissociabilidade entre seres humanos, não-humanos e ambiente.
79 Caberia aqui refletirmais seriamente sobre a questão de saber “qual o lugar que nós
humanos ocupamos no mundo dos demais seres e organismos não humanos que
compartilham o mesmo ambiente”? (CARVALHO& STEIL, 2014, p. 167). Qual o lugar que
ocupamos no mundo da ayahuasca?
80 Considerá-la como planta professora sem transformar nossa concepção de propriedade
poderia gerar o mal-entendido de que elapor si é responsável pelas transformações
identificadas. A noção de propriedade como atributo fixo das coisas pode ser
modificada pelo reconhecimento de “que as propriedades não são das coisas em si, nem
estão nelas; são apenas diferenças, e só existem em relação” (VELHO, 2001, p. 137).
81 Vale lembrar que “antes da influência dos modelos e expectativas da medicina
estrangeira, a ayahuasca não era ela própria considerada um remédio curativo mas sim
uma ferramenta diagnóstica28” (BEYER, 2012, p. 3). Tratar as propriedades químicas da
ayahausca como causa dos efeitos antidepressivos poderia levar-nos ao equívoco ético
de tentar transformá-la num fármaco como outros já existentes, justificada pela
urgente necessidade de ter remédios com menos efeitos colaterais e eficácia mais
rápida.
82 Essa escolha reforçaria uma antiga oposição entre terapias medicamentosas e terapias
psicossociais da depressão. Se por um lado, a ayahuasca aparece quase como um
fármaco revolucionário que atua em níveis bioquímicos e psicológicos
simultaneamente, por outro, separá-la da existência dos seres humanos envolvidos na
experiência da vida, poderia manter-nos na superfície do fenômeno terapêutico
realizado com a ayahuasca.
83 Se a experiência com a ayahuasca é profundamente transformadora, ela não é um fim
em si mesma. É apenas o começo de uma relação de aprendizagem que continua quando
este ser humano retorna a sua dinâmica cotidiana e é capaz de transformar as
informações que acessou com a ayahuasca – tanto de sua realidade psiquíca quanto de
outras realidades além de si mesmo - em conhecimento. E eu não conheço outro meio
de fazê-lo senão através de práticas de vida.
84 Há um caminho sendo construído entre as pesquisas neurocientíficas e as práticas
terapêuticas com psicodélicos.Existem diversas outras análises que não foram incluídas
aqui seja por ignorância ou por dificuldade em articular tantas questõesa riqueza e
profundidade de diversas abordagens em construção29.
85 As repercussões sociais deste novo cenário científico com psicodélicos em sites e
revistas, já podem ser percebidas sob manchetes tais como “ o milagre psicodélico 30” ou
outros como “Ayahuasca: da magia à possível cura para alcoolismo e depressão 31”. Há
também aquelas que ensinam como otimizar a experiência com a ayahausca 32.

Ponto Urbe, 20 | 2017


221

86 Se há algo que estou aprendendo como hoasqueira é que a vulnerabilidade às sensações


corporais e pensamentos proporcionadas com a Hoasca, não poderiam ser previstas
nem suavizadas por nenhum manual de “como fazer viagens psicodélicas seguras” ou
por “maneiras de otimizar a experiência”. Até porque a vulnerabilidade vivenciada no
espanto causado pelo mistério da Hoasca tem um valor que nenhuma escala
psicométrica pode mensurar. O espanto que foi banido em nossa sociedade é “o outro
lado da moeda para a própria abertura para o mundo (...) um sentimento de admiração
oriundo de se montar na crista docontínuo nascimento do mundo”. Por isso mesmo “é
uma fonte de força, resistência e sabedoria”(INGOLD, 2015, p. 125).
87 Evidentemente tais ressonânciaspúblicas revelam um avanço notável de abertura ao
uso de substâncias até então taxadas preconceituosamente como drogas. E por isso são
importantes recursos de legitimação política, abertura científica e investigação do
cérebro humano. Mas ao mesmo tempo criam uma demanda que pode ter impactos
negativos sobre a ayahuasca, que como sabemos é um chá feito de duas plantas nativas
da floresta amazônica. Assim, entre a floresta e o copo de chá há muitas histórias e
trabalho envolvido. Mas isso é tema para outras conversas.

BIBLIOGRAFIA
ALBUQUERQUE, Maria B. B. 2009. Uma heresia epistemológica: as plantas como sujeitos do saber.
In: Oficina do CES- Centro de Estudos Sociais. Laboratório Associado, Faculdade de Economia.
Universidade de Coimbra.

ANDERSON, Brian T. 2012. Ayahuasca as Antidepressant? Psychedelics and styles of reasoning in


psychiatry. Anthropology of Consciousness, Vol. 23, Issue 1, pp. 44–59.

ARAÚJO, Álvaro C. NETO, Francisco L. A nova classificação americana para os transtornos mentais
– o DSM- 5. Jornal de Psicanálise. Vol.46 (85). pp. 99-116. 2013.

BEYER, Stephan V. Special Ayahuasca Issue Introduction: Toward a Multidisciplinary Approach to


Ayahausca Studies. Anthropology of Consciousness, Vol. 23, pp. 1–5. 2012.

BITTENCOURT, Silvana C. CAPONI, Sandra, MALUF, Sônia. Medicamentos Antidepressivos:


inserção na prática biomédica (1941 a 2006) a partir da divulgação em um livro-texto de
farmacologia. Revista Mana. Estudos de Antropologia Social. Vol. 19 (2). pp. 219-247. 2013.

CANALE, Alaíse. FURLAN, Maria M. D. Pedrosa. Depressão. Depressão. Arq Mudi. 2006, Vol.10 (2).
pp. 23-31.

COSER, Orlando. Depressão: clínica, crítica e ética. [online]. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 2003.

CARVALHO, Isabel C. De Moura, STEIL, Carlos A. Epistemologias ecológicas: delimitando um


conceito. Revista Mana. Estudos de Antropologia Social. Vol. 20 (1). pp. 163-189. 2014.

DE MARCO, Mario A. Do modelo biomédico ao modelo biopsicossocial: um projeto de educação


permanente. Revista Brasileira de Educação Médica. Vol. 30 (1). pp. 60-72. 2006.

Ponto Urbe, 20 | 2017


222

DOYLE, Richard. Healing with Plant Intelligence: A report from ayahuasca. Anthropology of
Consciousness, Vol. 23, pp. 28-43. 2012.

FERREIRA, Silvana A. T. A evolução do conceito de depressão no século XX: Uma análise da


classificação da depressão nas diferentes edições do Manuel Diagnóstico e Estatístico da
Associação Americana de Psiquiatria (DSMs) e possíveis repercussões destas mudanças na visão
de mundo moderna. Revista Hospital Universitário Pedro Ernesto, UERJ, 2011.

FREUD, S. Hereditariedade e etiologia das neuroses. In S. Freud, Edição standard brasileira das
obras psicológicas completas de Sigmund Freud(J. Salomão, trad., Vol. 3). Rio de Janeiro: Imago.
1996. (Trabalho original publicado em 1896).

_____________. Luto e melancolia. Trad. Marilene Carone. São Paulo: Cosac Naify, 2011.

GAUJAC, Alain. Estudos sobre o psicoativo N,N-dimetiltriptamina (DMT) em Mimosa tenuiflora


(Willd.) Poiret e em bebidas consumidas em contexto religioso.Tese de doutorado em
Química.Salvador:Universidade Federal da Bahia.2013.

GOLDMAN, Marcio. O dom e a iniciação revisitados: o dado e o feito em religiões de matriz


africana no Brasil. Revista Mana, Vol. 18 (2). pp. 269-288. 2012.

INGOLD, Tim. Estar vivo: Ensaios sobre movimento, conhecimento e descrição. Editora Vozes.
2015.

KHARADE, S. M. GUMATE, D. S. NAIKWADE, N.S. A review: hypothesis of depression and role of


antidepressant drugs. International Journal of Pharmacy and Pharmaceutical Sciences. Vol. 2 (4).
pp. 3-6. 2010.

LAMB, Ieda G. Macedo. A prescrição de psicofármacos em uma refião de saúde do Estado de São
Paulo: análise e reflexão sobre uma prática. Dissertação de mestrado em psicologia. Universidade
Estadual Paulista. 2008.

LENAERTS, Marc. Substances, relationships and the omnipresence of the body: an overview of
Ashéninka ethnomedcine (Western Amazonia). Journal of Ethnomedicine. Acesso em: <http://
www.ethnobiomed.com/content/2/1/49>. 2006.

MERCANTE, Marcelo S. Imagens de cura: Ayahuasca, imaginação, saúde e doença na barquinha.


Rio de Janeiro: Editora Fiocruz. 2012.

OSÓRIO F. L, SANCHES RF, MACEDO LR, DOS SANTOS RG, MAIADE-OLIVEIRA JP, WICHERT-ANA L,
et al. Antidepressant effects of a single dose of ayahuasca in patients with recurrent depression: a
preliminaryreport. Revista Brasileira de Psiquiatria. Vol.37, pp. 13-20. 2015.

PALHANO-FONTES F, ALCHIERI JC, OLIVEIRA JPM, SOARES BL, HALLAK JEC, GALVAO-COELHO N,
et al. The therapeutic potentials of ayahuasca in the treatment of depression. In: Labate BC,
Cavnar C, editors. The therapeutic use of ayahuasca. Berlin/Heidelberg: Springer-Verlag. pp.
23-39. 2014.

RATCLIFFE, Matthew. 2015. Experiences of depression. Oxford University Press.

DOS SANTOS, R. G, OSÓRIO, F. L, CRIPPA, J. A. HALLAK, J. Antidepressive and axiolytic effects of


ayahuasca: a systematic literature review of animal and human studies. Revista Brasileira de
Psiquiatria. pp. 65-72. 2016.

SHANON, Benny. Os conteúdos das visões da ayahuasca. Revista Mana. Estudos de Antropologia
Socialv. 2, n. 9. pp. 109-152. 2003.

SIMON, Bennett. Mind and Madness in Ancient Greece: The classical roots of Modern Psychiatry.
Ithaca, NY: Cornell University Press, 1980.

Ponto Urbe, 20 | 2017


223

SOLER, J., ELICES, M., FRANQUESA, A., BARKER, S., FRIEDLANDER, P., FEILDING, A., PASCUAL, J.
M., and RIBA, J. Exploring the therapeutic potential of Ayahausca: Acute intake increases
mindfulness related capacities. Psychopharmacology. doi: 10.1007/s00213-015-4162-0. 2016.

SOLOMON, Andrew. O demônio do meio dia: uma anatomia da depressão. São Paulo: Companhia
das Letras, 2014.

TURNER ET AL. Capitulo 13: Farmacologia da Neurotransmissão Serotoninérgica e Adrenérgica


Central. In: Golan, D.E., Tashjian, A.H., Armstrong, E.J., Armstrong, A.W. Princípios de
Farmacologia: A Base Fisiopatológica da Farmacoterapia. 2ª ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan,
2009.

VELHO, Otávio. De Bateson aIngold: passos na constituição de umparadigma ecológico. Revista


Mana. Estudos de Antropologia Social.7(2). pp.133-140. 2001.

WAGNER, Roy. A invenção da cultura. São Paulo: Cosac Naify. 2010.

WINKELMAN, M. Therapeutic bases of psychedelic medicines: psychointegrative effects. In: M.


Winkelman and T. Roberts (Eds). Psychedelic medicine: new evidence for hallucinogenic
substances and treatments. Westport, CT: Praeger Perspectives.

NOTAS
1. II World Ayahuasca Conference, realizada em outubro de 2016 em Rio Branco, Acre.
2. As conversas realizadas durante o Simpósio Temático “Tecnologias da reflexividade e as
pesquisas sobre ritual, usos de substâncias e saúde” - coordenado por Marcelo Mercante e Ana
Fiori na VI Reunião de Antropologia da Ciência e Tecnologia – motivaram a reescrita de algumas
partes deste artigo. Recebemos a especial participação do Profº Magnani cujas observações
instigaram-me a aprofundar esta pesquisa.A todas essas pessoas minha gratidão pela
oportunidade.
3. Mais informações sobre a depressão ver site da OMS: http://www.paho.org/bra/index.php?
option=com_content&view=article&id=5321:depressao-e-tema-de-campanha-da-oms-para-o-dia-
mundial-da-saude-de-2017&Itemid=839 Acesso em: 15 de março de 2017.
4. Evidentemente tais termos se reconfiguraram sob novos contornos para constituir, com as
devidas diferenças, os sintomas classificados no Diagnostic and statistical Manual of Mental
disorders (DSM-V).
5. Nosologia é um ramo da ciência médica que investiga as características distintivas entre
doenças com o intuito de estabelecer classificações úteis ao diagnóstico.
6. A teoria psicanálitica de Freud é, evidentemente, mais complexa do que esta versão resumida
que apresento. Para entendê-lo mais profundamente e sua influência na psiquiatria, veja: FREUD,
1996; 2011 e COSER, 2011.
7. Ao todo foram 11 edições analisadas (período de 1941 a 2006) do seguinte compilado de
psicofarmacologia referência internacional para os profissionais da área: Goodman and Gilman’s:
the pharmacological basis of therapeutics.
8. Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders – DSM foi criado pela American
Psychiatric Association que apresenta uma lista de transtornos mentais e critérios para
diagnóstico com o intuito de padronizar e guiar a prática clínica e terapêutica.Há também a
Classificação Internacional das Doenças, produzido pela Organização Mundial de Saúde
(International Classification of Diseases - ICD) que não incluo não obstante seja relevante
inclusive por sua abordagem multidisciplinar das doenças.

Ponto Urbe, 20 | 2017


224

9. Disponível em: <http://www.paho.org/bra/index.php?


option=com_content&view=article&id=5320:depressao&catid=1257:bra-04a-saude-
mental&Itemid=822> Acesso em: 22/03/2017.
10. A depressão foitema da campanha da OMS para o Dia Mundial da Saúde de 2017. Disponível
em: <http://www.paho.org/bra/index.php?
option=com_content&view=article&id=5321:depressao-e-tema-de-campanha-da-oms-para-o-dia-
mundial-da-saude-de-2017&Itemid=839> Acesso em: 22/03/2017.
11. Disponível em: <http://www.paho.org/bra/index.php?
option=com_content&view=article&id=5320:depressao&catid=1257:bra-04a-saude-
mental&Itemid=822> Acesso em: 22/03/ 2017
12. Utilizarei os termos Hoasca ou Vegetal quando tratar das experiências no âmbito da União do
Vegetal, pois estes são as categorias nativas para denominar o chá.
13. Na UDV a qualidade do chá édenominada de “grau do Vegetal”. O “grau” é mensurado pela
intensidade e clareza com que a força se apresenta e por sua capacidade de ser guiado pelos
cantos e palavras rituais, conduzindo os participantes a um estado de concentração mental.
Lembrando que esta é uma definição simplificada só para informar minimamente o leitor.
14. Este foi o tema da minha dissertação de Mestrado: “Experiências com a “(pá)lavra na União
do Vegetal: um estudo antropológico do conhecer caianinho”. No capitulo 4, apresento uma
descrição detalhada do Preparo de Vegetal na UDV.
15. Mestre Gabriel é o guia espiritual e fundador da União do Vegetal.
16. Tradução do seguinte trecho: “bodily materiality and subjective innerness are felt to interact
in another way” (LENAERTS, 2006, p. 10).
17. Esta questão é debatida resumidamente em uma entrevista de Gabor Maté à Huffing Post cujo
título é “The Likely Cause of Addiction Has Been Discovered, and It Is Not What You Think”.
Disponível em: <http://www.huffingtonpost.com/johann-hari/the-real-cause-of-
addicti_b_6506936.html>. Acesso em: 11/04/2017.
18. Tradução do seguinte trecho: “(...) is a potential candidate for this new generation of
antidepressantresearch focusing on new pharmacological treatments (OSÓRIO et al. 2015, p. 13).
19. Tradução do seguinte trecho: Psychologists can only investigate the physical manifestations
that we can observe in the form of behavior. Knowledge of the function of brain regions under
normal conditions suggests the aspects of depression to which they may contribute. But no one
knows the precise mechanism that triggers clinical depression” (KHARADE et al. 2010, p. 3).
20. As escalas psicométricas utilizadas foram as seguintes: 1. Escala breve de avaliação
psiquiátrica (Brief Psychiatric Rating Scale) usado para avaliar mudanças na sintomatologia dos
pacientes psiquiátricos; 2. A Escala de Mania de Young (Young Mania Rating Scale) para
identificar sintomas maníacos; 3. A Escala de avaliação de depressão Hamilton (Hamilton Rating
Scale for Depression) para identificar e quantificar sintomas de depressão em pacientes com um
diagnóstico prévio de transtorno de humor; 4. Escala de avaliação de depressão de Montgomery &
Asberg (Montgomery-Asberg Depression Rating Scale) usada para medir a severidade dos
sintomas da depressão.
21. Trata-se de um estudo complexo cujos detalhes não descreverei. Para saber em profundidade
a relação entre os índices e as escalas psicométricas utilizadas ler artigo, verOSÓRIO et al. 2015, p.
17-18.
22. A DMN pode ser, resumidamente definida, como uma rede cerebral associada à memória
episódica, processos de auto-reflexão e aqueles ligados às relações sociais, pensamentos
independentes de estímulos e não relacionados ao ambiente. Por isso, sua função tem sido
associada à atividades mentais introspectivas. Regiões mediais do cérebro, como córtex pré-
frontal medial, cíngulo posterior e parietal inferior, fazem parte do DMN.

Ponto Urbe, 20 | 2017


225

23. Tradução do seguinte trecho: “The present results obtained in a lay setting support the
notion that ayahuasca may have therapeutic potential per se in the absence of the religion
confound”(SOLER et al. 2015, p. 6).
24. Tradução do seguinte trecho: “the complex multifaceted nature of depression is made up of a
variety of emotional, behavioral and cognitive elements”(KHARADE et al. 2010, p. 4).
25. Este é o termo utilizado pelo autor que opõe-se ao termo Estado Alterado de Consciência.
26. Tradução do seguinte trecho:“I stayed huddled and crying softly, I was completely huddled
and I could not answer because I felt as if the devil and Our Lady were battling for my soul and I
could not interfere. After a long battle, Our Lady won and pulled me to her side and I felt intense
joy” (PALHANO-FONTES et al. 2014, p. 33-34)
27. Tradução do seguinte trecho: “(…) point less to a technique than to an itinerary: what had
been broken, fragmented, partial, separated, and alienated becomes somehow reintegrated into a
whole” (2012, p. 28-29).
28. “(…)before the influence of foreign medical models and expectations, ayahuasca was not itself
a healing medicine but rather a diagnostic tool” (BEYER, 2012, p. 3).
29. As considerações de Jordan Sloshower sobre a constituição do “critical paradigm integration”
entre a psiquiatria e a medicina indígena: <http://chacruna.net/is-psychiatry-ready-for-
psychedelic-healing/> Acesso em: 12/04/2017. Ou os trabalhos da organização multidisciplinar
dedicada à pesquisa e educação sobre os psicodélicos chamada “Plantando Consciência”:<http://
plantandoconsciencia.org/novoblog/sobre/> Acesso em: 13/04/2017. As reflexões de Michael
Winkelman (2007) que classifica a ayahuasca como psicointegrador. A análise de Marcelo
Mercante (2012) que realiza um enfoque interdisciplinar que articula as dimensões rituais,
psicológicas e neurofisiológicas da ayahuasca no contexto religioso da Barquinha. E muitos
outros...
30. Reportagem da revista Rolling Stone “The Psychedelic Miracle” Disponível em: http://
www.rollingstone.com/culture/features/how-doctors-treat-mental-illness-with-psychedelic-
drugs-w470673>. Acesso em: 7/04/2017.
31. Reportagem no site Motherboard “Ayahuasca: da magia à possível cura para o alcoolismo e
depressão. Disponível em: https://motherboard.vice.com/pt_br/article/ayahuasca-contra-
alcoolismo-e-depressao. Acesso em: 7/04/2017.
32. 7 ways to optimize your Ayahuasca Experience. Disponível em: http://chacruna.net/tips-for-
your-ayahuasca-experience/. Acesso em: 14/04/2017.

RESUMOS
A partir de pesquisa de campo em preparos de Vegetal na UDV,notei que os efeitos da Hoasca não
são atribuídos exclusivamente à Dimetiltriptamina (DMT) presente na Psychotria Viridis e nas
betacarbolinas do Banisteriopsis Caapi, mas à mútua aprendizagem entre inteligências humana e
Vegetal. Esta concepção assemelha-se com outras indígenas, nas quais a ayahuasca é vista como
um Ser cuja ação terapêutica depende de relações entre seres humanos e destes com outros seres.
Os recentes estudos em neurociências, por sua vez, apontam a ayahuasca como um promissor
antidepressivo da nova geração de tratamentos farmacológicos. A depressão é caracterizada
principalmente como um desequilíbrio nas monoaminas cerebrais e os efeitos antidepressivos
são avaliados com base nas alterações provocadas pela interação entre a DMT/Betacarbolinas e
três neurotransmissores: a serotonina, a norepirefrina e a dopamina. Pretendo traçar diferenças

Ponto Urbe, 20 | 2017


226

entre tais concepções sobre a ayahuasca, substância e saúde, refletindo com Ingold e Matthew
Ratcliffe, no intuito de esboçar uma abordagem ecológica dos efeitos anti-depressivos
experimentados com a ayahuasca. No caso da ayahuasca enquanto antidepressivo levanto as
seguintes questões: quais os limites desta caracterização bioquímica da ayahuasca e da
depressão? Quais as possíveis consequências da dissociação dos efeitos da ayahuasca de seus
contextos espirituais/terapêuticos? Em que medida esta dissociação abrevia processos reflexivos
de aprendizagem entre humanos e plantas ao privilegiar a interação entre substâncias como
causa dos benefícios terapêuticos?

Based on a fieldwork at Vegetal feitios [preparations] at UDV, I’ve noticed that the effects of the
Hoasca are not exclusively attributed to Dimethyltryptamine (DMT) present in psychotria Viridis
and in the β-Carboline of Banisteriopsis Caapi, but to the mutual learning between human and
Vegetal intelligences. This conception is close to indigenous ones, to whom ayahuasca is seen as a
Being whose therapeutic action depends on relations among human beings and between them
and other beings. Recent studies in neurosciences, on the other hand, indicates that ayahuasca is
a prominent antidepressant of the new generation of cerebral monoamines and its
antidepressant effects are evaluated based in the alterations caused by the interaction of DMT/
betacarboline and three neurotransmitters: serotonin, norepinephrine and dopamine. The aim is
to trace differences between those notions of ayahuasca, substance and health, reflecting with
Ingold’s and Matthew Ratcliffe’s works, in order to outline an ecological approach of
antidepressant effects experienced with ayahuasca. Concerning ayahuasca as an antidepressant, I
raise the following questions: What are the limits of this biochemical characterizationof
ayahuasca and depression? What are the possible consequences of the dissociation of the
ayahuasca effects of its spiritual/therapeutic contexts? To what extent this dissociation shortens
reflexive effects of learning among humans and plants as it privileges the interaction between
substances as the cause of therapeutic benefits?

ÍNDICE
Palavras-chave: ayahuasca, neurociências, depressão, aprendizagem
Keywords: Ayahuasca, neurosciences, depression, learning

AUTOR
DANIELLI KATHERINE PASCOAL DA SILVA
Mestre em Antropologia Social pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).

Ponto Urbe, 20 | 2017


227

Ensaios fotográficos

Ponto Urbe, 20 | 2017


228

Eu Vou de Bike: a ocupação de


bicicletas nos espaços públicos de
São Paulo
I Go By Bike: the bicycle occupation of public spaces in São Paulo

Carolina Cássia Conceição Abilio e Maria da Penha Vasconcellos

NOTA DO AUTOR
Todas as fotos registradas por Carolina Abilio, na cidade de São Paulo, durante o ano de
2016.

1 Desde 2012 na cidade de São Paulo observamos o aumento da mobilidade por meio de
bicicletas. Ciclistas a passeio, individualmente ou em grupos, competidores esportivos,
e aqueles que fazem uso da bicicleta para trajetos de origem e destino no deslocamento
ao trabalho, tomaram as ruas da cidade e podem ser facilmente vistos cruzando suas
vias e avenidas.
2 A incorporação desses atores na dinâmica da cidade foi acompanhada de tensão e
agressividade por parte de outros seguimentos da população, particularmente, usuários
de outras formas de transporte. Os espaços urbanos pareciam já “ocupados” o
suficiente na disputa pelo ir e vir, em circunstancias e entraves que vão desde pouca
mobilidade para alguns até mobilidade em excesso de outros. Nesse cenário, a magrela
passou a ser vista como intrusa no contexto do espaço da cidade e na disputa por
circulação (Urry 2007:12).
3 A introdução da bicicleta como protagonista e peça-chave da narrativa sobre
mobilidade urbana em âmbito municipal ocorre na gestão Fernando Haddad (Partido
dos Trabalhadores, 2012-2016), com ampla repercussão nacional e internacionalmente.
Um conjunto de ações de políticas públicas drasticamente alteraram a realidade da
bicicleta na cidade, mais do que dobrando a quilometragem de ciclovias e ciclofaixas,
assim como a abertura de bicicletários públicos e viabilização do transporte de

Ponto Urbe, 20 | 2017


229

bicicletas em algumas linhas de ônibus da cidade. Frente a isso, o número de ciclistas no


meio urbano cresceu exponencialmente e a bicicleta tomou lugar de destaque como
ícone de uma mudança de paradigma no campo da mobilidade urbana.
4 Este ensaio fotográfico tem como objetivo apresentar a inserção da bicicleta e seus
diferentes usos encontradas na cidade de São Paulo, no lazer, mobilidade, como
instrumento de trabalho e como valor de distinção, modernidade e pertencimento.
5 As imagens foram registradas ao longo de 12 meses como observação de campo do
projeto de mestrado “Subjetividade sobre Duas Rodas”, realizado no Programa de
Mestrado Profissional em Ambiente, Saúde e Sustentabilidade da Faculdade de Saúde
Pública da USP. As observações foram realizadas em diversas regiões da cidade e
integra-se sob o enquadre teórico de métodos em movimento e na dinâmica crescente
que caracteriza o que alguns autores descrevem como uma virada imagética no campo
das ciências humanas e sociais (Hollanda 2012:2-5; Przyborski, Slunecko 2012:41; Urry
2007:17).
6 Para além das transformações digitais, a profusão das imagens nos mais diversos
espaços sociais enfatiza que o nosso acesso ao mundo é igualmente mediado por
imagens quanto pela linguagem. As imagens, assim como a linguagem, não são
estruturas dadas sobre determinados objetos ou fatos, mas sim construções sociais que
abarcam significados ao mesmo tempo mediados e construídos por elas. Contudo, se
considerarmos que a imagem é regida por uma lógica outra, não-verbal, devemos nos
distanciarmos da ideia de que o sentido social é apenas apreendido pela linguagem e
considerar ambas as formas de compreensão, discursiva e imagética, como sendo de
igual importância para o entendimento social e psicológico dos indivíduos e da
sociedade (Przyborski, Slunecko 2012:40).

Foto 1: Senhor atravessa a rua com sua bicicleta, em bairro da zona norte. Apesar de a bicicleta ser
popularmente associada à juventude, 42% de ciclistas tem mais de 35 anos de idade1.

Ponto Urbe, 20 | 2017


230

Foto 2: Placa anunciando bicicletário para clientes de uma loja de varejo na região central da cidade.
Com o aumento do número de ciclistas, muitos comércios passaram a disponibilizar paraciclos ou
bicicletários e integram o circuito desse novo design de mobiliário urbano.

Foto 3: Folheto de divulgação de empreendimento imobiliário no bairro de Pinheiros, zona oeste. A


indicação de distância através do tempo por caminhada e bicicleta indica uma possível mudança
cultural com relação à opções de mobilidade.

Ponto Urbe, 20 | 2017


231

Foto 4: Rapaz conversa com jovem sentado em sua bicicleta em frente ao edifício nº 911 da Av.
Prestes Maia, a maior ocupação vertical da América Latina. A bicicleta está presente em diferentes
camadas populacionais e políticas que democratizam seu uso e acesso tem impacto direto na
segregação socioespacial.

Foto 5: Bicicleta com suporte para carregamento de cargas contendo placa com a indicação ‘menos
um carro’, avistada no bairro de Pinheiros, região oeste da cidade.

Ponto Urbe, 20 | 2017


232

Foto 6: Grupo de moradores de rua expõe bicicleta com o anúncio “Aceitamos Doações”, próximo ao
terminal de ônibus de Santana, zona norte da cidade.

Foto 7: Grupo de ciclistas realiza pausa em uma manhã de sábado, durante trajeto próximo à estação
Vila Prudente do metrô, zona leste. Conhecidos como ‘grupos de pedal’, estão presentes em todas as
regiões da cidade e organizam-se predominantemente online.

Ponto Urbe, 20 | 2017


233

Foto 8: Vendedor utiliza bicicleta para expor seus produtos em região comercial da zona norte da
cidade. Com poucas adaptações necessárias para sua utilização comercial, a bicicleta é uma
possibilidade prática e barata para o transporte tanto do vendedor quanto de seus produtos.

Foto 9: Juliana, barista, posa ao lado de sua bicicleta adaptada, o bike café ‘Café com Calma’. De
modo similar aos food trucks, food bikes se espalharam pelo cenário da cidade e estão presentes em
vários locais, alcançando clientes além da comunidade de ciclistas.

Ponto Urbe, 20 | 2017


234

Foto 10: Alguns serviços públicos também adotaram a bicicleta no seu dia-a-dia, como agentes de
trânsito e lixeiros. Na foto, bicicletas customizadas utilizadas por policiais em uma base móvel
localizada na entrada do parque Trianon, na Av. Paulista.

BIBLIOGRAFIA
HOLLANDA, Carolina de. 2012. “A fotografia como instrumento de observação urbana: uma
questão convergente em pesquisa sobre as cidades”. V!RUS, São Carlos, n. 7.

CICLOCIDADE. 2015. Pesquisa: Perfil de Quem Usa Bicicleta na Cidade de São Paulo - Arquivo de
Apresentação. Disponível em http://www.ciclocidade.org.br/noticias/773-pesquisa-perfil-de-
quem-usa-bicicleta-na-cidade-de-sao-paulo-arquivo-de-apresentacao.

PRZYBORSKI, Aglaja; SLUNECKO, Thomas. 2012. “Learning to think iconically in the human and
social sciences”. Integrative Psychological & Behavioral Science, n 46(1): 39-56.

URRY, John. 2007. Mobilities. Cambridge: Polity Press.

NOTAS
1. Vide pesquisa de perfil de pessoas que usam a bicicleta em São Paulo, realizada pela Associação
dos Ciclistas Urbanos (Ciclocidade): http://www.ciclocidade.org.br/noticias/773-pesquisa-perfil-
de-quem-usa-bicicleta-na-cidade-de-sao-paulo-arquivo-de-apresentacao

Ponto Urbe, 20 | 2017


235

AUTORES
CAROLINA CÁSSIA CONCEIÇÃO ABILIO
Mestranda do programa de Mestrado Profissional em Ambiente, Saúde e Sustentabilidade da
Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo | carol.abilio@usp.br

MARIA DA PENHA VASCONCELLOS


Professora Doutora vinculada a Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo |
mpvascon@usp.br

Ponto Urbe, 20 | 2017


236

A atuação dos “flanelinhas” e o


olhar fotografado da cidade
The performance of " keepers " and look town photographed

Francieli Muller Prado

1 O potencial descritivo da fotografia sempre foi de suma importância para os estudos


etnográficos. Na Antropologia as fotografias podem ser encontradas em alguns
clássicos, como no livro “Argonautas do Pacífico Ocidental” de Bronislaw Malinowski
(1922), no qual o autor além da descrição textual apresenta as imagens, inaugurando
assim a fotografia como um instrumento descritivo potencial. Porém, após 90 anos da
obra de Malinowski, percebe-se certa resistência ao uso da fotografia no campo da
Antropologia, especificamente na etnografia.
2 Pensar no uso das imagens nas pesquisas antropológicas implica em compreender a
imagem como mais uma forma de linguagem, de narrativa visual que reproduz um
“texto vivido”, capaz de ir além do registro da experiência material em si, mas trazer à
tona o sentido das relações sociais estabelecidas e possíveis de serem analisadas pela
Antropologia.
3 Na Antropologia Urbana a fotografia se apresenta como um instrumento importante no
processo de compreensão das dinâmicas urbanas, uma vez que embrear-se em uma
prática de etnografia na rua, traz o exercício da observação aliada a descrição
etnográfica das histórias dos grupos urbanos na cidade; neste sentido a fotografia é
capaz de revelar a cidade, a rua, o urbano e como ocorrem as dinâmicas que são
construídas e reinventadas no cotidiano da vida nas cidades.
4 Nesta perspectiva, através das fotografias capturadas dos guardadores de carros de
Maringá –PR, foi possível vislumbrar suas experiências no espaço urbano, na qual a rua
se faz sempre presente e representa múltiplos significados : além do lugar de trabalho,
ainda se apresenta como local do encontro, de sociabilidade em que as experiências
sobrevêm. E, por detrás do aparente desarranjo da atividade é possível perceber o
aparelhamento do grupo e as regularidades das suas performances, que são formuladas
e organizadas de acordo com as normas estabelecidas, socialmente, entre seus
membros.

Ponto Urbe, 20 | 2017


237

5 Para os guardadores de carros a atuação é uma alternativa preferível por uma série de
razões, variando entre a possibilidade de melhor salário, um senso de independência,
por não exigir formação profissional e educacional. Assim mesmo, no âmbito da
informalidade, encaram a atividade como uma “boa ocupação”, quando comparado com
outros trabalhos. Porém a ideia de “boa ocupação” é controvertida no meio social,
especialmente do ponto de vista dos clientes, para os quais a prática de guardador de
carros é tida como desnecessária e abusiva, uma vez que esse serviço de cuidar do
automóvel é um direito que deveria ser garantido pela segurança pública, já que se
trata de um espaço público.
6 Deste modo, ao mesmo tempo em que a atividade é capaz de integrar os sujeitos, já que
a rua viabiliza a construção dos mais diversos vínculos, ela também se apresenta como
um fator discriminatório, constituído, sobretudo pelo estigma próprio da atividade de
guardador de carros. Assim, os sujeitos sentem a marginalidade, instituída por meio da
discriminação e vivem a invisibilidade, pela falta de atenção dos municípios na
regulamentação da atividade.

Vendedores ambulantes atuando em Maringá-PR:

Francieli Muller Prado (2015)

Ponto Urbe, 20 | 2017


238

Vendedores ambulantes atuando em Maringá-PR:

Francieli Muller Prado (2015)

Ponto de “flanelinha” identificado com a mochila:

Francieli Muller Prado (2015)

Ponto Urbe, 20 | 2017


239

“Flanelinha” fazendo a segurança do seu ponto:

Francieli Muller Prado (2015)

“Flanelinha” vigiando os carros:

Francieli Muller Prado (2015)

Ponto Urbe, 20 | 2017


240

“Flanelinha” recebendo a contribuição:

Francieli Muller Prado (2015)

“Flanelinha” vigiando os automóveis:

Francieli Muller Prado (2015)

Ponto Urbe, 20 | 2017


241

Organização do estacionamento de uma “flanelinha”:

Francieli Muller Prado (2015)

“Flanelinha” trabalhando em dia de chuva:

Francieli Muller Prado (2015)

Ponto Urbe, 20 | 2017


242

“Flanelinha” vigiando seu estacionamento:

Francieli Muller Prado (2015)

BIBLIOGRAFIA
MALINOWSKI, Bronislaw. Argonautas do Pacífico Ocidental. São Paulo: Editora Abril, 1984.

AUTOR
FRANCIELI MULLER PRADO
Mestre em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Maringá – UEM.
francimullerp@gmail.com

Ponto Urbe, 20 | 2017


243

Etnográficas

Ponto Urbe, 20 | 2017


244

Novos agentes e novas


configurações no carnaval dos
blocos de rua na cidade do Rio de
Janeiro
New agents and new settings in the street carnival of Rio de Janeiro

Marina Bay Frydberg

1 O século XXI trouxe consigo a expansão do carnaval dos blocos de rua na cidade do Rio
de Janeiro. Em proporções cada vez mais expressivas, tanto no número de blocos
quanto de foliões, o carnaval de rua expandiu o calendário anual da festa na cidade e
impulsionou uma nova organização da celebração carnavalesca, tanto por parte do
poder público quanto dos blocos. Inserida nesta recente valorização de brincar o
carnaval, os blocos de rua na cidade do Rio de Janeiro se veem em meio a uma discussão
sobre o aumento da rentabilidade econômica através da mercantilização da/na festa,
associada à sua profissionalização, e a valorização de práticas tradicionais de se brincar
o carnaval através da discussão da sua patrimonialização. Tendo como base a pesquisa
etnográfica, buscou-se compreender neste artigo o processo pelo qual vêm passando os
blocos de rua na cidade do Rio de Janeiro, problematizando os múltiplos significados
para a noção de tradição carnavalesca e como os diferentes agentes envolvidos na festa
estão compreendendo e organizando o carnaval. Este artigo1 propõe, assim, pensar a
configuração atual do carnaval dos blocos de rua na cidade do Rio de Janeiro a partir
dos três principais agentes organizadores da festa: os blocos, as ligas e associações e o
poder público, buscando mostrar os diferentes significados que a festa possui para cada
agente.
2 Começaremos com o significado do carnaval para os principais mobilizadores da festa:
os blocos. No ano de 2016, 505 blocos foram autorizados a desfilar no carnaval do Rio de
Janeiro, totalizando 587 desfiles. Número expressivo e que representa uma
multiplicidade de formatos e enfoques, impossíveis de serem pensados como um grupo
homogêneo. Assim, não temos a pretensão de dar conta do todo, mas de apresentar

Ponto Urbe, 20 | 2017


245

algumas visões dos blocos sobre o carnaval. Entendendo que existem quatro momentos
históricos de criação dos blocos de carnaval (Frydberg, Eiras 2015), pensaremos o
significado do carnaval de rua para três representantes de três momentos históricos
distintos.
3 As ligas e associaçõ es fazem parte do segundo grupo a ser apresentado e se
caracterizam como formas de organização coletiva dos blocos. Cada liga congrega um
número específico de blocos que auxilia na organização da festa, além de servir como
mediadora entre os blocos e o poder público ou patrocinadores. Identificamos sete
organizações de blocos em intensa atividade no carnaval de rua do Rio de Janeiro:
Sebastiana, Associação Folia Carioca, Liga Carnavalesca Amigos do Zé Pereira, Liga dos
Blocos e Bandas da Zona Portuária, Liga Rio Afro, Coreto e Desliga dos Blocos
Carnavalescos. Cada liga congrega de dez a quinze blocos. Pensamos a reconfiguração
do carnaval atual a partir de três delas: a mais antiga das ligas, chamada Sebastiana; a
Liga do Zé Pereira, de modelo parecido com a Sebastiana; e a associação com
posicionamento mais radical, a Desliga dos Blocos.
4 Por fim, chegaremos ao significado e as potencialidades da festa carnavalesca a partir
da visão do poder público sobre os blocos. Nosso principal objetivo aqui é entender o
papel da prefeitura, na figura institucional da Riotur, para a organização, gestão e
valorização da tradição dos blocos de rua e de seu carnaval.

Os Blocos
5 Podemos pensar em quatro momentos distintos na história dos blocos de carnaval de
rua na cidade do Rio de Janeiro (Frydberg, Eiras 2015). Um primeiro momento, que vai
do final do século XIX ao início do século XX e que representou o surgimento dos
primeiros blocos, cordões e ranchos que se espalharam na cidade principalmente na
região central. Um segundo momento entre as décadas de 1950 e 1960, em que os
festejos foram diminuindo a partir do golpe de 1964. Foram criados, neste período, um
grande número de blocos, atualmente considerados tradicionais., como o bloco Bafo de
Onça, fundado em 1956, e seu maior rival, o bloco Cacique de Ramos, em 1961. Neste
mesmo período temos a criação da Banda de Ipanema em 1965 por intelectuais que
viram no carnaval um espaço ainda possível de falar de política.
6 Um terceiro momento da história dos blocos de carnaval de rua se iniciou no final da
década de 1970 e permaneceu em crescimento na década de 1980, período da abertura
política da ditadura militar e posterior redemocratização do Estado brasileiro. Podemos
pensar neste período como uma primeira retomada do carnaval de rua, que vai
perdendo a sua força na década de 1990 com o aumento dos casos de violência nos
blocos. E por fim, um quarto momento, chamada por Herschmann (2013) do boom do
carnaval de rua, que se iniciou na primeira década do século XXI. A partir do ano 2000
temos o surgimento de 467 novos blocos de carnaval de rua na cidade do Rio de Janeiro.
7 O Cordão da Bola Preta, fundado em 1918, é um dos poucos representantes iniciais, o
mais antigo ainda em funcionamento e o maior bloco em termos de público. A maioria
dos blocos do primeiro momento desfilavam na região central da cidade do Rio de
Janeiro. Atualmente alguns blocos deste momento foram refundados - como o Fala meu
louro -, criado em 1938 e recriado em 2013, que desfila na região portuária, território
tradicional do samba no Rio de Janeiro.

Ponto Urbe, 20 | 2017


246

8 O Cordão da Bola Preta nasceu como uma sociedade carnavalesca a partir da


dissidência de 18 participantes do Clube dos Democráticos 2. O Bola Preta possui desde a
sua fundação a figura do sócio que contribui mensalmente com o Cordão. O carnaval do
Bola acontece de duas maneiras: bailes nos dias do carnaval e desfiles na rua. Embora
não haja certeza, o discurso da diretoria é de que desde a fundação do Bola, em 1918,
sempre houve desfile de rua. Atualmente o Cordão da Bola Preta possui uma sede na
Lapa, região central do Rio de Janeiro, mantida através de comodato com o Governo do
Estado. O bloco faz atualmente a abertura oficial do carnaval carioca no sábado pela
manhã e atrai mais de um milhão pessoas pelo centro da cidade. É o maior bloco em
termos de público e conta com três trios elétricos. Pedro Ernesto, presidente atual do
Cordão da Bola Preta, justifica o potencial agregador do Bola por conta das sua história
e tradição.
Eu acho que isso foi uma coisa proporcional à idade do Bola Preta e sua importância.
Como Bola Preta vamos dizer assim continuou firme e forte mesmo depois de tudo
que aconteceu com o carnaval. Então automaticamente esse mesmo Carnaval, que
passou aí por um momento de retração que voltou com força total, o mais antigo,
mais tradicional, a tendência era ter mais gente que os demais! Então realmente foi
assim! Para nós foi espetacular! Porque eu acho que é muito gostoso você chegar
num lugar e falar assim: O Bola Preta é o maioral dos maiorais! Nós já chegamos no
carnaval do ano retrasado a carregar dois milhões e meio de foliões! Porque essa
questão de previsão de público é uma coisa muito furada!
Pedro Ernesto, Presidente do Cordão da Bola Preta, entrevista para pesquisa 3
9 O Cordão da Bola Preta é um dos blocos que conta com patrocínio público, auxílio
financeiro por parte da prefeitura, e também privado, variando entre a maior rede de
televisão e a maior empresa de produção de bebida alcoólica, que possibilitam o bloco
de sair para a rua. A patrocinadora televisiva não permite outro patrocínio que apareça
na sua transmissão, impossibilitando a concomit ância dos patrocinadores. Todavia,
para o presidente do Bola Preta o patrocinador não pode interferir na realização da
festa e tem que respeitar as tradições carnavalescas.
Você não pode permitir por exemplo que o estandarte do Bola Preta, não vou falar
do estandarte de outras instituições, isso aqui é uma coisa sagrada! Nós não
podemos permitir por exemplo que alguém chega aqui e atravesse uma garrafa de
cerveja. Entendeu? Mas você poderia falar se o cara que ofereceu um milhão de
reais ou dois milhões de reais, a gente teria que estudar, mas eu acho que não seria
correto. Eu acho que isso seria desmoralização da instituição. Porque esse
estandarte existe desde 1918, desde a fundação do Bola Preta, sempre foi isso aí
reconhecido pelo povo no Brasil e no mundo, então não tem como deturpar essa
marca! O Rio de Janeiro, por exemplo, tem uma coisa de não querer copiar Salvador,
o carnaval do Rio tem que ser um carnaval diferente. O carnaval do Rio é um
carnaval diferente pra quem, por exemplo, já foi em Salvador, fala que o carnaval
do Rio é diferente, é um carnaval mais participativo. O carnaval de Salvador tem
aquela questão dos corredores, né. Porque quem não comprou aquele abadá milioná
rio não entra ali dentro, vai na tal da pipoca que não é mesma coisa.
Pedro Ernesto, Presidente do Cordão da Bola Preta, entrevista para pesquisa 4
10 É aqui que se estabelecem os limites entre o que é permitido no carnaval de rua do Rio
de Janeiro e o que é considerado uma descaracterização da festa. Essas fronteiras entre
o carnaval considerado tradicional e o descaracterizado variam de bloco para bloco,
cada um determinando os limites do que se classifica como autêntico. E construindo,
cada um a seu modo, a invenção das suas tradições, que representam uma continuidade
artificial com um passado histórico (Hobsbawm e Ranger, 1984).

Ponto Urbe, 20 | 2017


247

11 Podemos pensar em dois momentos de expansão do carnaval dos blocos de rua na


cidade do Rio de Janeiro. Um primeiro na década de 1980, terceiro momento da criação
dos blocos, um segundo nos anos 2000, quarto momento da criação dos blocos. Estas
duas expansões da festa carnavalesca tiveram significados diferentes, nos anos 80
representaram um deslocamento espacial da festa do centro para a zona sul da cidade
do Rio de Janeiro. O crescimento nos anos 2000 representou um vertiginoso aumento no
número de blocos e de público no carnaval de rua na cidade do Rio de Janeiro. Mas
ambos se aproximam nas características dos seus organizadores e público: jovens de
classe média.
12 Os blocos do terceiro momento são organizados por jovens de classe média e
intelectualizados e músicos consagrados do cenário nacional, que começaram a ver no
novo panorama político a possibilidade de saírem novamente às ruas e de se
expressarem. Esta primeira retomada do carnaval dos blocos de rua do Rio de Janeiro
começou com o bloco Clube do Samba, em 1979, e blocos que foram se desdobrando
como o Bloco dos Barbas, fundado em 1981, o bloco Simpatia é quase amor, de 1985, o
Bloco de Segunda e o Suvaco do Cristo, ambos fundados em 1986. Estes blocos foram
criados na zona sul carioca e deslocaram a centralidade dos festejos para esta região da
cidade. São blocos que continuam, ainda nos dias de hoje, mobilizando um número cada
vez maior de pessoas : o bloco Simpatia é quase amor reuniu cerca de 250 mil pessoas
em dois dias de desfile.
Aí em 85, não exatamente em 85, no final da década de 80 eu vou parar no Simpatia
é quase amor, que foi o primeiro bloco de rua do Rio que eu de fato fui e que eu
assim me encantei, fiquei enlouquecida, falei: “Meu Deus o que que isso?”. Tive total
identificação com a música, com a sonoridade, com as pessoas, com os objetivos,
com a anarquia, com o que acontecia ali. Os amigos do Rio, que já eram amigos da
zona sul, por que o carnaval era um carnaval da zona sul, hoje não mais, ele se
espalha pela cidade, mas a gênese desse carnaval de blocos de rua na sua segunda
fase, quer dizer, nessa fase pós ditadura, ele é um carnaval de zona sul, de uma certa
intelectualidade que se junta pra voltar pra rua, o povo da militância política, o
povo da esquerda que volta pra rua, que é o Simpatia e o Barbas. Então eu tô
contando o que eu sei hoje porque naquela época eu não sabia de nada disso, eu ia
no carnaval pelo carnaval. Aí, naturalmente, quem é do Simpatia, por frequentar,
acabava indo no Suvaco, acabava indo ao Bloco de Segunda, que já existia, e ao
Carmelitas, os primeiros blocos que vêm. Porque era a mesma tribo, eram as
mesmas pessoas, era o pessoal que frequentava o posto nove na praia de Ipanema, e
ali estavam os artistas, jornalistas, escritores, os músicos.
Rita Fernandes, Presidente do Imprensa que eu gamo e da Sebastiana, entrevista
para pesquisa5
13 Este carnaval que surge como uma brincadeira entre amigos passa com os anos a
mobilizar cada vez um público maior, fazendo com que fosse necessário buscar apoio do
poder público para que a festa continuasse acontecendo, em termos de estrutura da
cidade e de patrocinadores que possibilitassem a saída do bloco, com relação a
estrutura do bloco. Rita Fernandes nos conta um pouco do contexto social, associado a
um aumento da violência, que gerou a aproximação desses blocos com o poder público.
A gente se organiza pra buscar a ajuda do poder público, primeiro, pelas questões
de segurança. A gente estava apavorado. Achando que não íamos dar conta, que o
carnaval do ano seguinte seria pior, não conseguiríamos controlar a multidão. E a
gente não tem poder de polícia, a gente tinha que pedir ajuda porque não
estávamos aguentando. Não era nenhuma intenção de organizar e nem normatizar,
era um pedido de socorro, um pedido de ajuda, sabe. E a questão do trânsito. A
gente não sabia o que fazia com aquele trânsito que, de repente, ficava

Ponto Urbe, 20 | 2017


248

interrompido porque tinham 20 mil pessoas no nosso bloco. E o que você faz com 20
mil pessoas se você não tem alguém pra organizar o trânsito, pra apitar? Entendeu?
Então vira um caos, com carro parado no meio do bloco, gente querendo andar,
gente querendo sair. Começamos a ver que sozinhos não daríamos conta pelo
tamanho e proporção que aquilo tava ganhando.
Rita Fernandes, Presidente do Imprensa que eu gamo e da Sebastiana, entrevista
para pesquisa6
14 Enquanto a relação com o poder público se dá a partir da organização da cidade para
receber o carnaval dos blocos de rua, a relação destes blocos com o patrocínio privado
está pautada no reconhecimento por parte dos blocos do seu potencial na divulgação
das marcas dos patrocinadores. Assim Rita Fernandes defende que se o patrocínio
respeitar a identidade e a performance do bloco ele só pode ser considerado benéfico
para a realização da festa carnavalesca.
15 Os limites para que o bloco não perca a sua identidade e tradição são fundamentais de
serem estabelecidos para que sirvam de categoria distintiva para com outros blocos,
principalmente os fundados no quarto momento, e tamb ém com patrocinadores e
poder público. Os blocos fundados no terceiro momento, em especial os associados à
Sebastiana, buscam se diferenciar dos blocos fundados no quarto momento através da
valorização de uma tradição mais longa (embora também inventada), de um
conhecimento mais profundo sobre carnaval e, consequentemente, de uma maior
legitimação da sua autenticidade como bloco. No discurso de Rita Fernandes a diferença
do boom do carnaval dos blocos nos anos 80 e nos anos 2000 pode ser estabelecida entre
uma maior ou menor tradição, uma maior ou menor autenticidade. Na década de 80 o
entendimento dos blocos como manifestação cultural e nos anos 2000 a criação dos
blocos por influência da mídia e, principalmente, pelo efeito moda.
Aos poucos, o movimento dos blocos vai crescendo, de pouquinho em pouquinho,
nada como que acontece na década de 2000. Na década de 2000, a gente tem um
boom, mas aí é um boom diferente. É um boom motivado pela mídia, é um boom do
modismo, da mídia, do excesso de exposição. Primeiro, vem um crescimento pouco
a pouco, porque mais gente de fato vai entrando nesse movimento cultural como
movimento cultural.
Rita Fernandes, Presidente da Sebastiana e do bloco Imprensa que eu gamo,
entrevista para pesquisa7
16 Essa nova retomada do carnaval dos blocos de rua na cidade do Rio de Janeiro no século
XXI se caracteriza por uma mobilização de jovens de classe média, que ocupam de
forma mais significativa o centro e a zona sul da cidade com a sua festa carnavalesca.
Este fenômeno pode estar associado ao surgimento de blocos com perfis mais jovens,
como Monobloco e Bangalafumenga, e com estilos musicais mais diversificados, como
Sargento Pimenta e Orquestra Voadora (Herschmann, 2013). O carnaval dos blocos de
rua na cidade do Rio de Janeiro hoje possui como característica específica a criação de
blocos associada às oficinas de percussão, que ao mesmo tempo que produzem músicos
para tocar no carnaval, também criam um gosto por essa expressão musical. Desta
forma, podemos pensar estes novos blocos de carnaval criados pós-anos 2000 como
expressões dos prosumidores proposto por Canclini (2012), ou seja, brincar o carnaval do
Rio hoje é ser, ao mesmo tempo, produtor e consumidor da festa. E são com essas
características que os blocos são criados e que toda uma juventude ingressa no universo
do carnaval de rua atual.
Do Quizomba, depois eu fui para o Monobloco. E aí eu tenho, por exemplo, o Desliga
da Justiça, que é todo mundo da oficina do Quizomba. O Fogo e Paixão, que eu
também participei no primeiro ano da criação, Bangalafumenga, Monobloco e

Ponto Urbe, 20 | 2017


249

Quizomba. São as principais oficinas. Empolga as 9 do Monobloco, Turbilhão do


Monobloco, Mulheres de Chico do Monobloco. Têm “n” casos de blocos que
nasceram de oficinas. Já sei tocar e posso fazer meu bloco. Isso ajudou na
multiplicação e na revitalização do carnaval. Nesse momento de agora é o momento
mais da entrada dos blocos temáticos, que tocam outros ritmos, como rock, o
Sargento Pimenta que é Beatles. Já tem os temáticos que eram o Exalta Rei e o
Mulheres de Chico antes, mas agora tá mais forte. O Quizomba, o Monobloco, o Toca
Raul. São blocos que começaram a pegar nichos, que talvez antes não participassem
do carnaval. É minha opinião sobre o Sargento Pimenta, por exemplo. Tem muita
gente que não gosta de carnaval, mas vai pro Sargento Pimenta porque toda Beatles.
Eu acho que aí foi pegando mais pessoas. Por exemplo, eu gosto de música brega,
então ali tem o Toca Raul e vou lá. Isso ampliou também o consumo pelo carnaval.
Acho que foi um pouco o desdobramento disso também.
Cristina Couri, Presidente do Desliga da Justiça e participante do Coreto, em
entrevista para a pesquisa8
17 Desde 2006, com a criação do bloco Mulheres de Chico, surgiram outros tantos blocos
que homenageiam artistas ou grupos. Podemos citar Toca Raul, que toca músicas do
Raul Seixas; Exalta Rei, com músicas de Roberto Carlos; Timoneiros da Viola, com
músicas do sambista Paulinho da Viola; Mulheres de Zeca, inspirado no primeiro bloco
temático só que homenageando o repertório de Zeca Pagodinho; Dinossauros Nacionais,
com música do grupo Titãs; Bloco pra Iaiá, com repertório do grupo Los Hermanos; New
Kids on the Bloco, em homenagem a boy band americana New Kids on the Block; entre
outros. Outro modelo de bloco são os que hibridizam não somente gêneros musicais,
mas elementos da indústria cultural. É o caso do bloco Desliga da Justiça, em
homenagem aos heróis/vilões de desenhos animados e histórias em quadrinhos; Mário
Bloco, que brinca com um ícone da indústria dos videogames Mario Bros.; e o Cinebloco,
fanfarra especializada em releituras de trilhas sonoras do cinema.
18 Outra expressão dessa nova maneira de brincar o carnaval de rua no Rio de Janeiro são
as neo-fanfarras, ou seja, novas versões das tradicionais fanfarras, formas de expressão
musical de rua (Herschmann, Fernandes 2014). Uma das mais conhecidas neo-fanfarras
carnavalescas no Rio de Janeiro é a Orquestra Voadora, que fundada em 2008, ensaia e
desfila no Aterro do Flamengo, zona sul do Rio de Janeiro. Essas neo-fanfarras tomaram
conta das ruas a partir de 2010 e têm na performance uma das suas maiores
preocupações. A performance das neo-fanfarras associadas ao universo carnavalesco
representam uma valorização também do visual através do uso de fantasias e de pernas
de pau e uma grande valorização da interação com o público, geralmente com o uso de
algum tipo de coreografia.
A orquestra na verdade surgiu justamente de uma sequência de carnavais. Aí eu
comecei a tocar nos carnavais no Céu na terra, no Boitatá, no Boitolo. Aí todo
carnaval comecei a encontrar esses músicos que tinham o mesmo espírito do que eu
de chegar para contribuir sem serem músicos profissionais. Então a gente acabou
formando um grupo de músicos que só se encontravam durante o carnaval! O
carnaval de 2006 tocamos juntos, o carnaval de 2007 tocamos juntos. No final do
carnaval de 2008, eu já tinha intimidade praticamente com essa galera que eu só via
uma vez por ano e pelo fato de estar ali tocando com eles, ai a gente virou e falou
assim: - Poxa, porque a gente vai esperar mais um ano para se encontrar?! Vamos continuar
essa brincadeira aí ao longo do ano, cara! Vamos combinar de ensaiar. Também era aquele
negócio, a gente tocava sem se conhecer, tocava muito na vontade, sem ensaiar. Era
muito assim, um clima muito festivo mas se você for ter um apuro técnico, um
apuro de ouvir, era uma coisa ainda meio amadora. (...) Aí a gente meio que trocou
os e-mails, trocamos os contatos e por e-mail, começamos a marcar os ensaios lá em
Santa Teresa na pracinha do Curvelo, uma coisa muito despretensiosa.

Ponto Urbe, 20 | 2017


250

E paralelo a isso, por influência da internet, a gente começou a ver que lá fora nos
EUA e na Europa as bandas de fanfarras, as bass bands, elas não ficavam restritas só
ao repertório tradicional de marchinhas, de dobrados, de músicas marciais. (...)
Então aliado a isso a gente começou a ver que podia com essa formação de fanfarra
podia tocar qualquer coisa que ficava legal. A gente começou a puxar uma música
do Michael Jackson e ficou maneiro. Começou a fazer um Tim Maia e ficou legal.
Então a gente começou a ver que da brincadeira tinha muito pano para manga.
Então depois do carnaval de 2008 a gente ficou o ano de 2008 quase que todo,
ensaiando todo o domingo! (...) Então a Orquestra Voadora surgiu assim! Surgiu de
uma galera que tocava carnaval, tocava só marchinha e samba no carnaval de rua.
De tanto se encontrar, resolvemos montar uma banda que tocasse outras coisas
além de marchinhas. (…) É o seguinte, a Orquestra Voadora nasceu como uma banda
e não como um bloco! Só que obviamente uma banda que nasceu do carnaval.
Quando chegou o carnaval de 2009, um ano depois, a gente: - Vamos fazer um cortejo
de carnaval! (…) E a cada ano cresce mais o nosso bloco. Então o que aconteceu, a
Orquestra Voadora é uma banda que já nasceu com um bloco, mas é uma banda. É
uma banda que ensaia para se apresentar como banda, os arranjos pensados como
banda.
Tiago Rodrigues, músico da Orquestra Voadora, em entrevista para pesquisa 9
19 Os blocos desse novo período já nascem com espírito empreendedor, associando o
carnaval à festa, mas também às possibilidades de profissionalização. Esses blocos
fundados por prosumidores possuem algumas características próprias como:
institucionalização e organização dos blocos de carnaval através de escritórios e
administração; criação de bloco show ou banda para realização de apresentações
durante todo o ano e não somente no período carnavalesco; disseminação de oficinas de
carnaval que ao mesmo tempo que ensinam a linguagem da música carnavalesca,
também possuem um produto de venda; ampliação da noção de música de carnaval
para além do samba e das marchinhas através da carnavalização de outros gêneros
musicais, possibilitando uma ampliação do público dos blocos. Constrói-se com esses
novos blocos de carnaval de rua uma nova configuração da festa.

As Ligas e Associações
20 As ligas e associações são formas coletivas e colaborativas de reunião de blocos com o
objetivo de ampliar seu poder de negociação, tanto para com o poder público como
para com possíveis patrocinadores. Uma das principais funções das ligas é a busca por
financiamento através de empresas privadas e a posterior redistribuição do dinheiro
conseguido entre os blocos que fazem parte da associação. Assim funcionam as ligas
como a Sebastiana, mais antiga e reconhecida, e a Liga do Zé Pereira.
21 A Sebastiana10 foi fundada em 2000 por organizadores de alguns dos blocos tradicionais
que haviam sido criados na retomada do carnaval na década de 1980. Ao verem a forma
grandiosa que o carnaval dos blocos de rua estava tomando, associado a um aumento da
violência na festa, esses organizadores decidiram se reunir em uma associação para
poder ter uma voz mais ativa perante o poder público e a reivindicação da necessidade
de organização que a festa requeria. Atualmente a Sebastiana é a liga mais consolidada
e reconhecida no universo do carnaval dos blocos de rua do Rio de Janeiro, e,
consequentemente, a com maior interlocução tanto com o poder público quanto com
empresas privadas interessadas em investir no carnaval.
A Sebastiana é um movimento associativo. Isso tudo foi sendo desenvolvido,
construído, o papel foi mudando. Primeiro foi uma interface com o poder público, a

Ponto Urbe, 20 | 2017


251

primeira coisa. Precisa de um agente pra conversar com o poder público e não pode
ser bloco a bloco. É melhor que tenha um porta-voz, um agente, que fala em nome
de todo mundo. Na época e ainda agora a gente continua falando em nome de 12,
mas são 12 blocos muito representativos porque são blocos dessa retomada. São
blocos com 30 anos. Não são blocos que acabaram de acontecer nesse movimento
emergente.
Rita Fernandes, Presidente da Sebastiana e do bloco Imprensa que eu gamo,
entrevista para pesquisa11
22 A busca por patrocínio de empresas privadas é um dos pontos centrais da atuação da
Sebastiana com relação aos blocos que a compõem, construindo a possibilidade de uma
negociação mais efetiva com os patrocinadores que garanta o financiamento do bloco.
Ao mesmo tempo que o patrocínio é fundamental para financiar a festa, ele pode tornar
os blocos um negócio, considerado por muitos como um desenvolvimento da
comercialização/mercantilização do carnaval. Rita Fernandes salienta que este
processo pelo qual a carnaval carioca vem passando possui relação com o boom atual
dos blocos, influência do efeito moda, que fez com que fossem criados novos blocos
exclusivamente com intuito comercial.
23 A Sebastiana se coloca contra o processo denominado de “baianização” do carnaval do
Rio de Janeiro, ou seja, a venda de camisetas ou abadás e o uso de cordas isolando quem
as possui. O modelo do carnaval baiano é construído no discurso desses agentes como o
outro que deve ser evitado, aquele carnaval que já sucumbiu à lógica do mercado
sofrendo um processo de comercialização/mercantilização. Esta é a dicotomia central
presente no discurso carnavalesco, o carnaval dos blocos de rua na cidade do Rio de
Janeiro pensado como manifestação cultural em oposição a uma comercialização/
mercantilização apontada no carnaval baiano. A “baianização”, ou melhor a luta para
que ela não aconteça, é uma ação central da entidade.
No momento em que você coloca um bloco na rua, ele é pra quem quiser entrar.
Afinal, a rua é pública. Se você e os seus amigos querem festejar daquela forma, é
uma festa pública. Naturalmente, você está obrigado a receber quem chega. Então
você não pode colocar uma corda ou delimitar um território. Se você quer delimitar
um território, você vai fazer uma festa fechada num lugar fechado.
Rita Fernandes, Presidente da Sebastiana e do bloco Imprensa que eu gamo,
entrevista para pesquisa12
24 Para dar conta da “baianização” do carnaval carioca a Sebastiana entrou com um
pedido junto ao IPHAN (Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) para
reconhecer o modo tradicional de brincar o carnaval dos blocos de rua no Rio de
Janeiro como patrimônio imaterial do Brasil. Assim através do reconhecimento de uma
tradição e de seu valor histórico e simbólico o carnaval dos blocos de rua se protegeria
do desgaste possível gerado pelo efeito moda e, principalmente, de uma possível
descaracterização das suas tradições. Com essa ação a Sebastiana oficializa o
entendimento de que existem modos mais ou menos autênticos e tradicionais de
brincar o carnaval dos blocos e, desta forma, blocos mais ou menos legítimos da
tradição desta festa.
Nosso segundo movimento, foi esse de levar a ideia pro IPHAN pelo seguinte:
quando começa este momento de comercialização do carnaval e de certa
banalização do tema porque o tema está banalizado. Nós não estamos gostando
disso. Está banalizado na mídia, na própria ação dos blocos. A gente começou a
achar que precisávamos fazer um movimento ideológico pra que a gente
preservasse o carnaval na sua essência e nas suas características originais. Daí
surgiu a ideia do IPHAN. “Vamos pedir pra transformar em patrimônio, em

Ponto Urbe, 20 | 2017


252

patrimônio imaterial do Rio e depois do Brasil”. Como a gente já (es)tava juntando


material pra memória, vimos que era o mesmo caminho.
Rita Fernandes, Presidente da Sebastiana e do bloco Imprensa que eu gamo,
entrevista para pesquisa13
25 O caminho trilhado pela Desliga dos Blocos é distinto da opção escolhida pela
Sebastiana, embora seus objetivos possam ser semelhantes, com relação a uma
preservação do modo tradicional de brincar o carnaval. A Desliga foca suas ações em
um embate mais direto com o Estado, principalmente através do questionamento com
relação a exigência, por parte da prefeitura, de autorização para que os blocos possam
desfilar. Com um discurso de valorização da tradição esse grupo defende a ocupação da
cidade, e consequentemente do espaço público, de forma espontânea sem normas e
legislações. A maioria dos blocos associados à Desliga dos Blocos sai no carnaval sem
pedir autorização para a prefeitura e sem seguir o calendário e a organização do poder
público. Eles defenderam em manifesto publicado no blog da organização em 2010 que:
O carnaval de rua é festa do povo. É feito pelo povo e para o povo. Manifestação de
espontaneidade, criatividade genuína e espírito livre. Nos dias de folia devemos
respeito à Sua Majestade, o Momo. Não ao personagem raquítico que ultimamente
tenta nos ensinar a brincar, como se ele próprio soubesse, mas ao mitológico, roliço,
guloso, amante dos prazeres da carne e da alma, àquele que nos mostra que, ao
contrário do que muitos pensam, no carnaval é quando se tiram as máscaras. Assim,
há uma troca de ordem. Sai de cena a ordem careta, elitista e monetarizada e, em
seu lugar, entra a ordem de Momo e a ordem do Rei é sambar quatro dias sem parar.
[...]
O decreto 32664 da Prefeitura aprofunda o ataque à liberdade criativa e à
espontaneidade do carnaval do Rio e ao processo de "bahianização" da festa, ao
obrigar os blocos a pedir autorizações com seis meses de antecedência e a cumprir
inúmeras exigências, que arrepiariam até mesmo uma empresa estabelecida, ainda
mais os pequenos blocos. A essência está sendo sufocada pelo dinheiro.
Manifestamos aqui que não reconhecemos esse decreto que, além de tratar
desiguais como iguais, fere a Constituição e a tradição e cultura do povo carioca.
Desliga dos Blocos do Rio de Janeiro – Manifesto Momesco 14
26 Essa apropriação da cidade pela festa é defendida pela Desliga dos Blocos como um
direito, o único durante o ano, em que o povo pode vivenciar a cidade de outra forma.
Compartilhando, assim, com Lefebvre (1991) o argumento de que todos possuímos
direito à cidade e a vida urbana. Para a Desliga a cidade, que durante o tempo do
cotidiano se mostra excludente e segregadora, no tempo da festa, ou seja, durante o
carnaval de rua, transforma-se em um espaço que tem novas formas de apropriação e
de uso. É na defesa dessa espacialidade e temporalidade, próprias do carnaval de rua,
que a Desliga dos Blocos constrói seu argumento contra a comercialização/
mercantilização do carnaval carioca de blocos.
27 O manifesto de 2014 distribuído nos blocos da Desliga dos Blocos, novamente defende a
ocupação da cidade e do espaço público pela festa e pelos foliões, associando essa
atitude a uma visão crítica com relação à comercialização/mercantilização do carnaval.
O carnaval é o mais belo grito do povo! Ocupamos as ruas com estandartes, confetes
e serpentinas mostrando que o Rio é nosso: suas colombinas e pierrôs estão vivos e
pulsam. Abaixo as catracas que transformam a cidade em um grande negócio, onde
o lucro prevalece sobre a vida, onde o dinheiro é mais livre que as pessoas.
Enquanto capitalizarem a realidade, nós socializaremos o sonho. Viva a energia da
rebeldia! Viva a criatividade das fantasias! Viva o Zé Pereira e o Saci Pererê! As
cidades não estão à venda e nossos direitos não são mercadoria. Foliões, uni-vos!
Ocupa eles, ocupa eu, ocupa tu, ocupa geral. OCUPA CARNAVAL!

Ponto Urbe, 20 | 2017


253

Desliga do Blocos - Manifesto da Desliga entregue durante o carnaval de 2014


28 As ligas e associações ocupam um espaço importante no carnaval dos blocos de rua do
Rio de Janeiro hoje, pois elas funcionam como mediadoras entre blocos e empresas
privadas com potencial de financiar a festa. Realizam também a mediação com o poder
público quanto a organização do carnaval e as disputas com relação aos significados
possíveis para a festa. Estas mediações com o poder público podem acontecer nos
diferentes níveis: federal, com a relação ao IPHAN; estadual, através da Secretaria de
Cultura e de um edital de financiamento que inclui os blocos; e municipal, através da
Riotur, local da gestão da festa na prefeitura do Rio de Janeiro.

O Poder Público
29 Embora os blocos e as ligas e associações possam se relacionar com o poder público em
diferentes níveis, é, sem dúvida, a Prefeitura Municipal do Rio de Janeiro a principal
instância organizadora da festa ao pensarmos no carnaval dos blocos de rua na cidade.
A prefeitura é a responsável pela garantia da infraestrutura da festa e da manutenção
de serviços básicos como controle do trânsito e limpeza urbana. Vários são os órgãos da
prefeitura que ajudam na organização da festa, como a Secretaria de Ordem Pública,
por exemplo, mas atualmente a gestão do carnaval, seja dos blocos ou das escolas de
samba, está centralizada no órgão de turismo da prefeitura, a Riotur.
30 Foi a partir de 2009 que a Prefeitura do Rio de Janeiro passou a se envolver oficialmente
nos desfiles dos blocos de rua do carnaval, passando a entender-se como agente
fundamental na organização e gestão da festa. O carnaval de rua carioca é organizado
através de licitação para estruturação da folia e da possibilidade de quatro
patrocinadores oficiais, uma financiadora master e tr ês financiadoras de apoio. Essa
licitação é, desde a sua primeira edição em 2011, vencida pela mesma empresa,
conhecida por produzir um megaevento ligado à música, e os patrocinadores são,
geralmente, empresas de bebidas alcoólicas e/ou bancos, com previsão de investimento
em torno de 20 milhões de reais.
31 Em 2013 foi instaurado também um processo de avaliação dos blocos com o objetivo de
organizar os desfiles. As avaliações são realizadas pela Comissão Especial dos Blocos de
Rua, criada através do Decreto 37182/13, que tem como objetivo avaliar, a partir de
critérios como a tradição das agremiações, o local do desfile, a estimativa de público, as
características do bloco em relação ao carnaval de rua carioca e ao bairro onde
pretende desfilar e os impactos causados no dia a dia da localidade 15, autorizando ou
não o seu desfile. Essa aprovação é vista por alguns blocos e ligas como benéfica, pois
ajuda na organização e gestão da festa, impedindo assim, por exemplo, que dois blocos
saiam no mesmo dia, no mesmo horário e com a intenção de fazerem o mesmo
percurso. Esta mesma ação é vista por outros blocos e ligas, como a Desliga dos Blocos,
como a burocratização da festa carnavalesca. Com este argumento associado ao direito
a cidade, muitos blocos não pedem autorização da prefeitura e saem de forma não
oficial.
32 Apesar dessa aproximação do poder público municipal com a festa, esta participação
permanece se dando apenas no âmbito estrutural e institucional da organização, pois a
preocupação da Prefeitura é garantir que o carnaval de rua aconteça na cidade do Rio

Ponto Urbe, 20 | 2017


254

de Janeiro. A prefeitura passou, a partir de 2009, a identificar as potencialidades do


carnaval de rua e descobriu que existe carnaval para além das escolas de samba.
33 Mas o poder público, especificamente a prefeitura, também tem a preocupação da
permanência da festa com suas características tradicionais. Essa almejada tradição dos
blocos de rua é valorizada e preservada através de duas ações de preservação no âmbito
municipal. A primeira é o reconhecimento de alguns blocos como Patrimônio Cultural
Carioca. São eles: a Banda de Ipanema, declarada patrimônio em 2004 16; o bloco Cacique
de Ramos, declarado patrimônio em 200517; e o Cordão da Bola Preta, declarado
patrimônio em 200718. A segunda é o posicionamento contrário ao uso de cordas e à
comercialização de abadás nos blocos de rua, visível a partir das ações do seguinte
decreto:
Art. 1o. Fica proibida, na Cidade do Rio de Janeiro, a delimitação de espaços, por
meio de cordas e/ou seguranças ("áreas privadas"), pagos ou não, nos desfiles de
blocos ou bandas de rua e nos ensaios carnavalescos de rua, no período de que trata
o art. 1o do Decreto no 30.453/2009.
Parágrafo único. Excepcionalmente, poderá ser delimitado espaço, por meio de
cordas e/ou seguranças, para uso exclusivo dos integrantes da bateria e/ou da
banda, bem como daqueles diretamente envolvidos na organização do desfile.
Art. 2o. Ficam automaticamente cassadas as autorizações já concedidas para os
desfiles de blocos, bandas e ensaios carnavalescos que não respeitem o disposto
neste Decreto.
§ 2o A RIOTUR, com o apoio da Guarda Municipal, adotará as medidas necessárias
para coibir desfiles que contrariem o disposto neste Decreto.
Art. 3o. O não cumprimento do disposto no art. 1o implicará no indeferimento do
pedido de autorização para desfile nos períodos carnavalesco e pré-carnavalesco do
ano subsequente, nos termos do art. 14 do Decreto no 30.453/2009. 19
34 Desta forma a prefeitura se posiciona contra a "baianização" do carnaval carioca e,
através de decreto do então prefeito Eduardo Paes, estabelece os limites do que pode ou
não acontecer no carnaval de rua da cidade. O desrespeito dessas determinações é
punido pelo não reconhecimento oficial do bloco através da autorização para o desfile
no ano subsequente. Assim, por meio de ações legalizantes, a Prefeitura Municipal do
Rio de Janeiro adentra o debate sobre os limites da prática carnavalesca tradicional e
autêntica nos blocos de rua, legitimando e oficializando a distinção entre eles.
35 Apresentando as novas configurações do carnaval dos blocos de rua na cidade do Rio de
Janeiro através do olhar e posicionamento político dos blocos, das ligas e associações, e
do próprio poder público, tem como base noções como tradição, autenticidade e
espontaneidade. Percebemos que estas caracter ísticas não são as mesmas para os
diferentes agentes, mas constroem algumas fronteiras próximas como, por exemplo, a
relação com o carnaval de Salvador a partir de uma visão negativa sobre o mesmo.
Vemos, portanto, que seja pela regulamentação, pela profissionalização, ou pelo
enfrentamento o carnaval dos blocos de rua vem sofrendo alterações e apresentando
novas estruturações.

Ponto Urbe, 20 | 2017


255

BIBLIOGRAFIA
CANCLINI, Néstor Garcia et al. (orgs.). 2012. Jóvenes, culturas urbanas y redes digitales. Madrid:
Fundación Telefónica.

FRYDBERG, Marina Bay, EIRAS, Rebeca Eler de Carvalho. 2015. "Contribuições para pensar a
economia da festa através dos blocos de rua na cidade do Rio de Janeiro". In:, F. L. Castro, M. F. P.
Telles (orgs.). Dimensões econômicas da cultura: Experiência no campo da economia criativa no Rio de
Janeiro. Rio de Janeiro: Lumen Juris, pp. 195 - 224.

HERSCHMANN, Micael, FERNANDES, Cíntia Sanmartín. 2014. "Nomadismo e inovação das


fanfarras na cidade do Rio". In: Música nas ruas do Rio de Janeiro. São Paulo: Itercom.

HERSCHMANN, Micael. 2013. "Apontamentos sobre o crescimento do Carnaval de rua no Rio de


Janeiro no início do século 21". Intercom – RBCC. São Paulo, v. 36, nº. 2, jul./dez.

HOBSBAWM, Eric & RANGER, Terence. 1984. A Invenção das Tradições. Rio de Janeiro: Paz e Terra.

LEFEBVRE, Henry. 1991. O direito à cidade. São Paulo: Editora Moraes.

Entrevistas

Cristina Couri, Presidente do Desliga da Justiça e participante do Coreto, em entrevista para a


pesquisa em 07 de outubro de 2014.

Pedro Ernesto, Presidente do Cordão da Bola Preta, entrevista para pesquisa em 23 de setembro
de 2014.

Rita Fernandes, Presidente do Imprensa que eu gamo e da Sebastiana, entrevista para pesquisa
em 22 de junho de 2014.

Tiago Rodrigues, músico da Orquestra Voadora, em entrevista para pesquisa em 14 de outubro de


2014.

Decretos e Leis

DECRETO nº 36760 de 05/02/2013.

DECRETO n° 23926 de 23/01/2004 – D.O.M.: 26/01/2004.

DECRETO n° 27594 de 14/02/2007 – D.O.M.: 15/02/2007.

LEI nº 4068 de 24/05/2005 – D.O.M.: 06/06/2005.

NOTAS
1. Uma parte desta discussão foi apresentada no grupo de trabalho Actores sociales, políticas
culturales y performances en ciudades contemporáneas, na XI Reunión de Antropología del
Mercosur. Agradeço a contribuição de todos sobre o trabalho.
2. Fundado em 1867 como sociedade carnavalesca, atua hoje em dia como clube recreativo. Mais
informações sobre o clube em http://www.clubedosdemocraticos.com.br/.
3. Entrevista realizada em 23 de setembro de 2014.
4. Entrevista realizada em 23 de setembro de 2014.
5. Entrevista realizada em 22 de junho de 2014.
6. Entrevista realizada em 22 de junho de 2014.

Ponto Urbe, 20 | 2017


256

7. Entrevista realizada em 22 de junho de 2014


8. Entrevista realizada em 07 de outubro de 2014.
9. Entrevista realizada em 14 de outubro de 2014.
10. A Sebastiana reúne os blocos: Bloco da Ansiedade, Bloco dos Barbas, Bloco das Carmelitas,
Bloco de Segunda, Bloco Virtual, Escravos da Mauá, Gigantes da Lira, Imprensa que eu Gamo, Meu
bem, volto já!, Que merda é essa, Simpatia é quase amor e Suvaco do Cristo.
11. Entrevista realizada em 22 de junho de 2014.
12. Entrevista realizada em 22 de junho de 2014.
13. Entrevista realizada em 22 de junho de 2014.
14. Disponível em http://desligadosblocos.blogspot.com.br/2010/09/manifesto-momesco.html.
15. Informações disponíveis em http://www.rio.rj.gov.br/web/guest/exibeconteudo?id=4321955.
16. DECRETO n° 23926 de 23/01/2004 – D.O.M.: 26/01/2004.
17. LEI nº 4068 de 24/05/2005 – D.O.M.: 06/06/2005.
18. DECRETO n° 27594 de 14/02/2007 – D.O.M.: 15/02/2007.
19. DECRETO nº 36760 de 05/02/2013.

AUTOR
MARINA BAY FRYDBERG
Professora do Departamento de Arte e do Programa em Pós-Graduação em Cultura e
Territorialidades da Universidade Federal Fluminense.
Doutora em Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
marinafrydberg@gmail.com

Ponto Urbe, 20 | 2017


257

O crack, o corpo e a rua


Analisando trajetos e andanças na cidade

Beatriz Brandão e Wellington da Silva Conceição

Introdução
Em mim
eu vejo o outro
e outro
e outro
enfim dezenas
trens passando
vagões cheios de gente
centenas
O outro
que há em mim
é você
você
e você
Assim como
eu estou em você
eu estou nele
em nós
e só quando
estamos em nós
estamos em paz
mesmo que estejamos a sós
Contranarciso - Paulo Leminski
1 Todos os dias somos colocados frente a frente com milhares de estímulos, visuais,
linguísticos, gestuais, que por serem tantos, nosso olhar e atitude se tornam blasé a
muitos deles, como bem analisou Simmel (1987). Mas, mesmo diante de tantos
estímulos, é difícil olhar com neutralidade e ter um comportamento asséptico a certas
cenas que se comunicam de forma gritante. Diante de uma situação de comunicação
corporal intensa, nos defrontamos com Simmel, Bourdieu, Le Breton e tantos outros,
nos confrontamos conosco e com o pensamento hegemônico da sociedade. O

Ponto Urbe, 20 | 2017


258

acontecimento foi na Avenida chamada Brasil, que só pelo nome já carrega o ethos da
diversidade. A avenida que liga a cidade do Rio de Janeiro de ponta a ponta, que deu
nome e fama à teledramartugia brasileira, que recebe milhares de carros que passam no
asfalto cinza e concreto, que tem um espaço aberto às pessoas que se “abrigam” nessa
via urbana que tudo parece abraçar. Já se tornou habitual ver nas manchetes de jornais,
moradores de rua, usuários de crack (reconhecido pela população como cracudos)
invadirem as estradas da avenida se colocando em frente aos carros em alta velocidade,
numa cena que parece conter a total abnegação de seus corpos. O fato de colocarem o
corpo em evidência no cotidiano da rua e exibi-los a cenas de perigo, para muitos põe
em cheque suas concepções de vida, pois o resguardo do corpo atua como ação
simbólica da blindagem e prevenção à vida. É o corpo como vetor de diálogo constante,
como assinalado por Bourdieu:
o corpo funciona como uma linguagem pela qual mais se é falado do que
propriamente se fala, uma linguagem da natureza, onde se trai o mais escondido e o
mais verdadeiro simultaneamente, porque o menos conscientemente controlado e
controlável, e que contamina e sobredetermina com suas mensagens percebidas e
não percebidas todas as expressões intencionais, a começar pela palavra (Bourdieu
1977: 01)
2 Observamos, porém, que as formas e usos da corporalidade nunca são uniformes. Elas
geralmente estão inscritas nos sistemas simbólicos e sociais que se inserem,
participando de um universo de significados e práticas. Neste texto, queremos explorar
essa questão por meio da análise de um episódio particular: a defecação de um cracudo
(e a sua higienização) a luz do dia diante dos muitos carros que passavam pela avenida
Brasil. Se, à primeira vista, o episódio aparentaria para muitos uma prática
“animalesca”1, uma análise mais pormenorizada do mesmo nos revelou códigos de
interação social marcados pelos usos diferenciados do corpo no urbano.

O cracudo: sobre o personagem urbano e suas


interações
3 “Cracudo” é um dos nomes pelos quais são chamados os usuários da droga crack 2 no
Rio de Janeiro3. Tal categoria deve ser analisada de modo pormenorizado devido ao alto
grau simbólico e subjetivo que traz consigo. Cracudo é a forma estigmatizante como são
chamados os moradores de rua que fazem uso da droga ou aqueles que ficam várias
horas do dia na rua em função do vício. A diferenciação entre o usuário recreativo (ou
seja, faz uso, mas não tem a rua como moradia e mantém uma vida sem romper com
seus laços originais) e o cracudo é que este último faz uso da droga, mora na rua e
“atrapalha o fluxo natural da cidade”.
4 O cracudo se insere na dinâmica urbana como um novo tipo de “usuário problema”.
Utilizamos essa categoria “usuário problema” para aqueles que, além de dependentes
ou usuários das drogas, sofrem um tipo de estigmatização e caracterização moral que
não é imputada, por exemplo, ao usuário recreativo. Esse usuário transgressor em
evidência na década de 1980 era o maconheiro (usuário de maconha) e o chincheiro
(usuário de cocaína) na década de 1990. Hoje o cracudo assume esse papel. A esses três
tipos de “usuários problemas” e as substâncias que utilizam pesaram acusações muito
semelhantes, como um possível caráter agressivo por conta do uso constante (o que faz
do mesmo um sujeito perigoso) e a condição rápida e irremediável de dependência da

Ponto Urbe, 20 | 2017


259

droga. O que o diferencia dos demais usuários é que este é ser um drogado – a droga
está como que entranhada na sua natureza - que traz problemas à sociedade. Sobre ele,
pesa uma acusação social que constrói uma sujeição sobre suas práticas, valores e
comportamentos. Por vezes, a condição de exclusão é tão impactante que o sujeito não
vê outra solução a não ser assumir o papel de outsider (Becker, 2009) e abraçar as
representações já existentes sobre si, o que acaba reafirmando as convicções
socialmente construídas em uma espécie de círculo vicioso.
5 Acreditamos que a adesão a condição de “usuário problema”, no nosso caso o cracudo,
se coaduna com as desigualdades e preconceitos já existentes na sociedade brasileira.
No geral, a diferenciação real entre o usuário recreativo e o usuário problema muitas
vezes passa pela condição de cor ou de classe. Tal processo ficou evidente diante da
comoção pública causada pelo episódio do “mendigato”4, como assim foi apelidado o
morador de rua em Curitiba e usuário de crack Rafael Nunes. Em outubro de 2010, uma
foto do ex-modelo, de olhos claros e aparência nordica - , nas ruas, vestido como um
mendigo, chocou o Brasil inteiro. Rapidamente, sua foto foi compartilhada 40 mil vezes
nas redes sociais. O impacto se deu pelo fato de um rapaz de tamanha beleza estar nas
ruas. Todos os meios de comunicação, inclusive os internacionais 5 -, correram logo
para descobrir a sua história e origem, e o comentário era geral e incessante, e essa
repercusão descomunal se deu já que Rafael não correspondia ao perfil étnico, estético
e social dos demais cracudos e moradores de rua. Se trata com normalidade que os mais
pobres e negros tenham uma carreira moral de envolvimento com as drogas ou com a
vida nas ruas e a rejeição à existencia de um mendigo/cracudo sem as expressões que
representam essa camada só alarga a dimensão e profundidade do estereótipo
fundante, que é reificado de tal modo que “restam poucos espaços para negociar,
manipular ou abandonar a identidade pública estigmatizada (...) engloba processos de
rotulação, estigmatização e tipificação numa única identidade social (...) e não como um
caso particular de desvio”. (Misse 2010: 23).
6 Ao observar as relações entre esses usuários de crack e seus territórios por excelência,
que são apelidados de cracolândias, é possível desconstruir facilmente essa
representação generalizada dos cracudos como pessoas associáveis, perigosas ou
essencialmente problemáticas. Percebemos as cracolândias como comunidades morais,
como espaços com seus ordenamentos formulados e pensadas por seus moradores,
observando “a vida precária como criadora de fronteiras de construções morais no
espaço público” (Das e Pooole 2004). Partimos do princípio que há sim reflexividade
entre eles, que rompem com o contrato social hegemônico no qual estão submetidos e
dentro dos seus territórios constroem outro contrato próprio deles e para a
sociabilidade deles, com seus próprios valores e moralidades. Nessa sociabilidade se
constituem a formação no cotidiano de suas redes de solidariedade, a dimensão do
outro nas relações e como se dá a opção de diálogo por meio de sua corporalidade, onde
apresentam sinais de capacidades reflexivas e comunicativas, como vemos no caso
relatado a seguir.

Sinais corpóreos e linguagem: um recado para os seus


e outro para a cidade
7 Muitos filtram suas leituras por momentos episódicos para compor seus julgamentos,
entretanto, algumas situações mostram um sentido oposto desse pensamento de que

Ponto Urbe, 20 | 2017


260

não há uma autopreservação no meio de moradores de rua, que façam ou não uso de
drogas. Uma cena ocorrida na Avenida Brasil apresentou a união da consciência
corporal com questões morais, sociais e afetivas. No horário do rush, com trânsito
intenso, um dos homens que lá habita fazia as suas necessidades na rua, defecando
perto de onde estava seu grupo. O que chamou a atenção era que ao se limpar virou de
costas para a avenida e para os carros que estavam a passar, deixando as partes mais
reclusas do corpo humano à mostra, se limpando naturalmente. No entanto, era notório
que havia uma tensão ali, pois enquanto se limpava olhava incessantemente para o seu
grupo tentando se esconder, à medida que se escondia dos companheiros conhecidos se
mostrava ainda mais para toda a avenida Brasil. Esse jogo de representações mostra que
o homem tinha a exata noção de que esse era um momento de intimidade, que
pertencia ao espaço privado e, também, sabia do poder de comunicação que seu corpo
possuía, já que:
Desprovidos de bens materiais, sem casa, absolutamente fora das práticas de
consumo, envelhecendo na rua, o corpo é o único suporte que lhes resta e que lhes é
irredutível. Nesse sentido, a trajetória do morador de rua é eminentemente
corporal: o corpo traz a visibilidade dos processos que marcam a homogeneização
política desta categoria e as suas distintas formas de se relacionar com o espaço
urbano; é sobre ele que se projetam as contínuas e sucessivas intervenções e
manifestações de violência que atualizam cotidianamente as tentativas de exclusão
desse segmento; mas é também a partir do corpo que surgem as possibilidades de
resistência do morador de rua à exclusão. [...] o corpo atua como uma atividade
simultaneamente física, simbólica, política e social, que se constrói na relação com
outros corpos e na interface com a dimensão espacial e social das ruas da cidade.
(Rui, 2010: 804).
8 O fato de deixar-se completamente visível para toda a estrada e apenas de preservar
sua intimidade dos seus conhecidos levanta algumas hipóteses, pois “compreender a
comunicação é também compreender a maneira como o sujeito, de corpo inteiro, nela
participa” (Le Breton 2009: p. 40). Sabendo que a corporalidade dessa categoria
(morador de rua e/ou usuário de droga) é, simultaneamente, social e individual, vemos
que ele está sempre resistindo, material e simbolicamente, a diversas atitudes, como à
sua extinção na cidade. Isso pode se mostrar por meio de um processo reflexivo, onde
ele é o ator que subverte, de forma radical, o sentido homogeneizador do espaço da rua,
ao condensar em sua figura a dimensão pública e privada de sua vida.
9 O entrelaçamento entre público e privado é externalizado por ações no qual o corpo
opera como elemento principal, catalisador e propulsor do que eles são, é o corpo como
discurso, mas, como todo discurso, está aberto às interpretações subjetivas de quem os
lê (vê). E nessa situação citada é possível dimensionar a reflexão por duas óticas. O fato
do homem se preocupar apenas com seu grupo durante o momento de intimidade e se
colocar alheio a todos que passavam e o viam, pode representar uma reação consciente,
de expurgar e colocar o espetro e a excreção para fora como ato simbólico do que ele
representa para a sociedade e o que a sociedade representa para ele, esse seria um
revés da invisibilidade da qual sofrem por aqueles os tolhem do olhar sem
discriminação. O fato de mostrar, a sol aberto, o tabu da sujeira, da imundície corpórea,
pode agir também como um protesto racional, revelando sentidos argutos para
perceber a abjeção e objeção a esses “corpos-espécies”. Ou então pode ser lido como a
indiferença natural vinda dele próprio, pois tendo já recebido todo grau de exclusão,
passa a ter o mesmo olhar de torpor e abnegação, na qual, a sociedade para ele também
é invisível. Seja qualquer uma das hipóteses, é expressa a consciente valoração que dá a

Ponto Urbe, 20 | 2017


261

sua sociabilidade particular, pois tendo a exata noção de intimidade, do tabu corporal
escolhe se importar somente com o grupo o qual pertence. Tudo isso se dá apenas na
relação com o seu meio e não há espaço para qualquer tipo de vergonha de exposição
para quem “não o interessa”.
10 Essa hipótese dialoga com a tese central de Frangella (2009) de que “no momento
mesmo em que parecem inclinados a permanecer reclusos em seus limites de sujeira, de
marginalidade e de não posse, acabam por construir uma retórica pedestre resistente
que só pode ser entendida em relação a ideologias políticas e econômicas oficiais de
ordenação do espaço”. (Rui 2010: 804). O ato de se limpar publicamente, mostrando suas
“impurezas” denota uma metonímia do todo exemplificado por Frangella, pois é
através do corpo que eles criam possibilidades de agência. Essa corporeidade deles
“reside no avesso daquilo que o imaginário urbano cria e formata” (Rui 2010: 804),
porque realçar e colocar com limpidez seu atributo corporal mais destacável – a sujeira –
faz com que ignore o que é motivador de vergonha e isolamento para transformar em
símbolo de proteção.
A simbólica corporal traduz a especificidade da relação com o mundo de certo
grupo num vínculo singular e impalpável, mas eminentemente coagente [...] O
individuo habita seu corpo em consonância com as orientações sociais e culturais
que se impõem, mas ele as remaneja de acordo com seu temperamento e histórias
pessoais. (Le Breton 2009: 41).
11 Le Breton (2009) constrói um plexo entre corpo, natureza e cultura articulando-os com
questões que vão do orgânico ao simbólico, da razão a emoção. A partir de sua obra
podemos alargar os pensamentos acerca dessa ilustração, que representa tantas outras,
na qual se reconhece o corpo como carne no mundo capaz de se transformar
constantemente, mostrando a elasticidade corpórea e sua simbiose com o meio social.
Como apontado no exemplo acima, o corpo produz conhecimento através de suas
experiências sensíveis, dando pistas abertas sobre quem é ao se relacionar com quem
está a sua volta, visto que “existe uma inteligência do corpo da mesma forma que existe
uma corporeidade do pensamento; entretanto, isso apenas demonstra a existência de
um sujeito, o qual pertence a sua carne da mesma forma que essa lhe pertence numa
relação ambígua que é a própria relação humana” (p. 44).
12 Ao seguir a trilha desse autor, vemos uma linha teórica que enfatiza o papel do outro
na relação do ser humano com o mundo, mostrando que um só se constrói na
perspectiva do outro, pois a construção e metamorfose corporal estão imbricadas na
social e cultural, “o outro é condição do simbolismo que o configura e do qual ele se
serve para comunicar-se com os outros”.
Os inúmeros movimentos corporais empregados nas interações enraízam-se na
afetividade individual. Da mesma forma que a pronúncia de uma palavra ou o
silêncio numa conversa, eles nunca são neutros ou indiferentes, manifestando uma
atitude moral em relação ao mundo e oferecendo ao discurso ou ao encontro uma
corporeidade que lhes acrescenta ulteriores significações. (Le Breton 2009: 39).
13 Para abalizar a importância do papel do outro nas relações, Le Breton usa o caso dos
meninos selvagens, em que um deles é retratado no filme “Garoto Selvagem”. O
exemplo dos meninos selvagens, criados apartados de qualquer civilização é um
modelo, por excelência, da capacidade de elasticidade do corpo, até que ponto ele pode
ser desenhado pelo outro. No filme, um menino, ainda criança, é encontrado numa
floresta da França e levado para se socializar numa instituição para surdos e mudos, já
que não falava e, aparentemente, não respondia aos sons altamente perceptíveis.

Ponto Urbe, 20 | 2017


262

Observando seu andamento, um pedagogo solicita levar o menino para a sua casa para
ali fazer pesquisas e tentar socializá-lo. No relato do pedagogo, as emoções do menino
não parecem afetadas mesmo tendo sido abandonado, pois ninguém o viu chorar na
instituição. Ele só demonstrava satisfação nos passeios do parque, pois ali estava a
alegria de voltar ao conhecido, ao que lhe dava estabilidade, um retorno às raízes de
onde seu corpo fora completamente moldado. Já não podia mais viver distante da vida
que se adaptou, era movido por uma memória afetiva de plena liberdade.
14 O método utilizado pelo professor era transformar o prazer em forma de obrigação,
assim o menino recebia a recompensa do prazer após realizar os exercícios. E nesse
ponto o “garoto selvagem” nos mostra como a relação linguagem e prazer é filigranar,
pois ele não se comunicava quando pretendia ou tinha o desejo de fazer algo, só
conseguia estabelecer comunicação após o prazer, falava, apenas, com o desejo
alcançado. Como o caso do leite, no qual ele conseguia falar a palavra lait depois que
recebia o copo cheio, a linguagem operava como agradecimento pelo prazer dado. Tal
comportamento leva o professor a pensar que a obediência ocorre somente por medo
ou pela recompensa e não por compreender a ordem moral. Para ele, ainda não havia
sido possível ensiná-lo o sentido de justiça, assim, decide fazer um teste, punindo-o
quando ele acerta um exercício e vê que prontamente ele se revolta, mostrando um
sentido de justiça eminentemente humano, remetendo assim para o sentido ontológico
que esse significado assume.
15 Essa digressão com o filme foi feita para refletir que há questões inatas que irão se
mostrar frente aos acontecimentos. A partir dessas duas cenas assistidas – a da Avenida
Brasil e a do “garoto selvagem” – podemos inferir o poder de transformação do corpo e
do comportamento, o sentido de justo e injusto que parece ser, no humano, colocado
nos momentos propícios, sendo esse ensinado, ou não, sobre a ordem justa e moral das
coisas. Ainda que se encontrem em pólos distintos, o exemplo do menino selvagem
pode se articular com a atitude do morador de rua e/ou cracudo, no sentido de
atribuírem suas questões morais através da corporeidade. No caso contemporâneo,
observa-se o valor e domínio do corpo do homem, ao se esconder dos membros de sua
comunidade e mostrar-se em plena Avenida Brasil, assim como a relação dele com seu
próprio corpo e com o que é constituído como tabu. Segundo Le Breton, eles estão
“inseridos numa interação, [onde] os locutores acordam sobre uma trama de regras.
Uma gramática dos comportamentos indica os atores à maneira conveniente de situar-
se frente ao outro” (Le Breton 2009: 53), mas ao dialogar com Maurice Merleau-Ponty,
“pode-se dizer que, no homem, tudo é ao mesmo tempo fabricado e natural.” (Merleau-
Ponty 1945 apud Le Breton 2009: 5). Nessa teia entre o fabricado e o natural vemos uma
moral própria do humano que se molda àquele que a expressa, o que se encaixa com o
“paradoxo do ator” de Le Breton, cujo ator é o criador das significações que ordenam a
sua existência, assim como aquilo que deseja expressar para a plateia.
O laboratório das paixões ordinárias, ou seja, o palco teatral é um espaço que revela
a contingência social, no qual o conteúdo representado é reconhecido pela platéia.
Considerado como um profissional da duplicidade, o ator altera seus sentimentos
pessoais e constrói emoções adequadas ao que cada cena lhe exige. Inventor de
emoções e de identidades provisórias, o corpo do ator configura-se como uma
narrativa que sofre nuanças, articulando o orgânico com o simbólico e
problematizando os esquemas inatos. (Mendes e Porpino 2011: 544)

Ponto Urbe, 20 | 2017


263

Conclusão
16 Voltando a problemática da corporalidade para a questão contemporânea da
população de rua e dos usuários de droga, a crítica vai ao encontro de visões que voltam
seu foco, apenas, para resoluções pessoais que tendem a reduzir um debate complexo. O
perigo de tais concepções é considerar o uso de soluções extremas, das quais ignoram o
poder reflexivo deles, já que, ao mesmo tempo em que se encontram num estado de
vulnerabilidade, pode-se acrescentar um estigma, que é o da droga. Entretanto, a
despeito da mudança de comportamento na vida social, de uma nova sociabilidade, da
maculação do caráter ou até mesmo da alma, a hipótese é de que os chamados cracudos e
aqueles que vivem na rua, não só racionalizam sobre a sua própria condição, como
também fazem planos, sonham e vivem o mundo no mesmo plano de expectativas que
os “cidadãos comuns” e essas são abertamente sinalizados a partir de suas práticas
corporais.
17 Portanto, tais territórios, não podem ser definidos somente por cenas emolduradas, há
muito mais além de um quadro de pessoas com olhos vermelhos, olhar perdido, corpo
franzino, cachimbo na mão, roupas velhas e pés descalços. Essas cenas mostram que, da
cabeça aos pés, eles estão marcados por uma diferenciação, por uma condição de
subalternidade social. A imagem, ao contrário do que se mostra, não é estática, mostra
nuances, que nos move a uma reflexão acerca dos motivos que os levou a essa fotografia
em preto e branco; da posição em relação ao mundo social; sobre quais categorias
sociológicas podemos analisá-lo e quais engrenagens políticas que se articulam. Afinal,
uma figura encena uma multiplicidade de indagações, que não podem cessar em
simples suposições ou juízos de valor. Numa perspectiva de voltar num processo
cultural, histórico e político, não podemos incorrer no equívoco de diminuir algumas
trajetórias pessoais e situações isoladas a uma conjuntura descontextualizada que por
vezes retira do outro o que o faz e o torna sujeito do mundo e absolve, levianamente, o
tornando alienado de suas ações.

BIBLIOGRAFIA
BECKER, Howard. 2008. Outsiders: Estudos de sociologia do desvio. Rio de Janeiro: Zahar.

BOURDIEU, Pierre. 1977. “Remarques Provisoires sur la Perception Sociale Du Corps”. Actes de Le
Recherche em Scienses Sociales nº14: 51-54.

DAS, V.; POOLE, D. 2004. Anthropology in the Margins of the State. Santa Fe: SAR Press.

FRANGELLA, Simone M. 2009. Corpos urbanos errantes: uma etnografia da corporalidade de moradores
de rua em São Paulo. São Paulo: Anablume, Fapesp.

LE BRETON, David. 2009. As paixões ordinárias: antropologia das emoções. Petrópolis: Vozes.

MENDES, M. I. B.; PORPINO, K. O. 2011. “Resenha da obra As paixões ordinárias”. Rev. Bras. Ciênc.
Esporte v. 33 nº. 2: 541-544.

Ponto Urbe, 20 | 2017


264

MISSE, Michel. 2010. “Crime, sujeito e sujeição criminal: aspectos sobre uma contribuição
analítica sobre a categoria de bandido”. Lua Nova n. 79: 15-38.

RUI, Taniele. 2010. “Resenha do livro Corpos urbanos errantes: uma etnografia da corporalidade
de moradores de rua em São Paulo”. Revista de Antropologia v. 53 nº 2: 800-808.

SIMMEL. George. 1987. “A Metrópole e a Vida Mental”. In: VELHO, Otávio G (org.). O Fenômeno
Urbano. Rio de Janeiro: Ed. Guanabara. Pp. 11-25.

NOTAS
1. Usamos a palavra “animalesca” apoiados na representação geral que aponta o cracudo como
alguém em processo de desumanização. Prova tal afirmação as caracterizações comumente
dirigidas pela população aos usuários de crack que circulam pela cidade: parasitas, animais e
zumbis.
2. O Crack é uma droga que inicialmente era feita com o refugo da cocaína e, de tão potente, os
traficantes acabavam perdendo a clientela, pois viciava rapidamente, o que causava um grande
número de morte dos consumidores. O efeito é mais intenso que o da cocaína porque a presença
da substância ativa excitante é muito maior que o da droga inalável. Como estratégia de venda,
acrescentaram outras substâncias, passando não mais a ser somente a sobra da cocaína mas uma
mistura da pasta base de coca concentrada com bicarbonato de sódio. Atualmente, o crack pode
ser obtido de duas formas: pelo cloridrato, onde sua confecção é caseira e de pequena escala, e a
partir da pasta-base, onde sua confecção é mais industrializada. Só no final da década de 1980 o
crack chegou ao Brasil, na cidade de São Paulo.
3. No Brasil eles podem ser identificados por outros nomes como nóias, craqueiros e zumbis.
4. A tamanha ressonância do personagem fez com que fosse criado até uma página no facebook
com tiras sarcásticas com o fato de ser um mengigo bonito: https://www.facebook.com/
Mendigato
5. Reportagem do site G1 sobre matéria do jornal britânico Daily Mail citando caso do mendigo
gato: http://g1.globo.com/pr/parana/noticia/2012/10/jornal-britanico-repercute-caso-do-
mendigo-gato-de-curitiba.html

AUTORES
BEATRIZ BRANDÃO
Doutoranda em Ciências Sociais – PUC-Rio
E-mail: bia.brandao18@hotmail.com

WELLINGTON DA SILVA CONCEIÇÃO


Doutor em Ciências Sociais (UERJ) e professor da Universidade Federal do Tocantins
E-mail: Wellingtoncs@uft.edu.br

Ponto Urbe, 20 | 2017


265

A cidade de Mariana pós-desastre:


um relato etnográfico
Renato Augusto Passos e Maria da Penha Vasconcellos

1 Este relato etnográfico é resultado de uma incursão etnográfica na cidade de Mariana/


MG, por ocasião da tragédia ocorrida no final do ano de 2015. A visita ocorreu entre nos
dias 10 e 11/06/2017, para atividade da disciplina de pós-graduação “A dimensão
cultural das práticas urbanas”, ministrada pelo Prof. Dr. José Guilherme Cantor
Magnani.
2 O encontro estava marcado a 01h00 na praça da matriz da cidade de São Sebastião do
Rio Verde/MG de onde partimos em direção à cidade de Mariana/MG a 01h20, em uma
van de turismo com capacidade para 22 pessoas. Eu e mais cinco amigos, com diferentes
formações, aproveitamos uma excursão para a histórica Mariana, para visitar e saber
mais sobre o estado da cidade após a tragédia ocorrida no final do ano de 2015, em
decorrência do rompimento da barragem de Fundão. Alguns trechos da estrada ainda
encontravam-se sem pavimentação, aumentando o risco e a duração da viagem. O
percurso durou cerca de oito horas, com três paradas ao longo do caminho em postos
de gasolina e restaurantes à margem da rodovia para lanches e idas ao sanitário.
3 Nenhum de nós conhecia o local, o que criou uma grande expectativa. Quando
chegamos, por volta de 9h30, no sábado, a cidade ainda abria algumas bancas de
artesanato e pontos turísticos. Os comércios, farmácias, supermercados, açougues etc.
já encontravam-se abertos. Seguimos até o mirante da cidade, de onde podíamos ter
uma visão ampla do local (Fig. 1).

Ponto Urbe, 20 | 2017


266

Figura 1 – Panorâmica da cidade de Mariana vista do mirante local

4 Deste ponto, avistava-se toda a cidade de Mariana sem nada demonstrar de diferente de
outras localidades mineiras, a não ser pelo número de igrejas a destacar-se dos demais
telhados das construções. Seguimos até um ponto turístico ao lado, a igreja de São
Pedro dos Clérigos (Fig. 2), uma das três únicas barrocas de Minas, construída em 1731.

Figura 2 – Igreja de São Pedro dos Clérigos, próxima ao mirante da cidade

5 Enquanto todos visitavam o interior da igreja, pude conversar com o porteiro,


trabalhador e morador local. Segundo relatos deste senhor, já de idade, a cidade de
Mariana em nada foi atingida pela tragédia. Os relatos da mídia nacional e
internacional serviram apenas para diminuir o turismo da cidade e fechar a empresa

Ponto Urbe, 20 | 2017


267

que, para os moradores, gerava empregos e renda. A lama, segundo ele, ficava a mais ou
menos 47 km de lá, mas a cidade mesmo, em nada foi prejudicada pelos rejeitos.
Enquanto conversávamos, o caderno de esportes aguardava a volta da leitura em cima
da pequena mesa onde o caderno de visitas ficava exposto.
6 Saindo desta que era a primeira das dezenas de igrejas espalhadas pela cidade,
descemos por uma rua de paralelepípedos, observando as residências e moradores em
seu cotidiano até a praça das “igrejas gêmeas” (Fig. 3).

Figura 3 – Praça das igrejas gêmeas

7 Em frente a estas obras da arquitetura mineira, encontramos a Casa de Câmara e Cadeia


de Mariana (Fig. 4), datada com início de sua construção no ano de 1768. Ao visitar este
local, encontramos disponível aos visitantes, em uma mesa ao lado da entrada
principal, um dos jornais de circulação local distribuído gratuitamente à população e
visitantes, chamado “O Espeto” (Fig. 5). Sua reportagem de capa apresentava a seguinte
chamada: “Samarco suspende 800 contratos de trabalho”. No decorrer de suas páginas
outras reportagens tratavam de assuntos da empresa. Vários visitantes pegavam
exemplares do jornal. Alguns guardavam em suas bolsas, enquanto outros devolviam
sem maior atenção.

Ponto Urbe, 20 | 2017


268

Figura 4 – Casa de Câmara e Cadeia de Mariana, onde o jornal “O Espeto” é distribuído

Figura 5 – Reportagem de capa do jornal “O Espeto”, em sua edição de número 393, da primeira
semana de junho de 2017

Ponto Urbe, 20 | 2017


269

8 Neste local, um guia turístico explicava aos visitantes, reunidos em pequenos grupos, a
maioria de idosos, a história da cidade e seu monumentos. Após sua explicação, em um
momento de descontração do mesmo, pudemos conversar um pouco sobre a atual
situação da cidade. Para o profissional, que também é morador local, é um “pecado” o
que fizeram com Mariana na mídia. Nada do que mostraram é visto por ali. Nada de
tragédia. A cidade só foi prejudicada com o fechamento da empresa, gerando muito
desemprego. Segundo ele, centenas de trabalhadores mudaram de estado ou de cidade
em busca de trabalho. Para ele, a fundação Renova tem buscado retomar as atividades.
9 Acompanhando o fluxo de moradores e turistas, com carros emplacados com as mais
diversas cidades e estados do país, seguimos até uma típica praça de cidades do interior
(Fig. 6). Arborizada, com um coreto central, um pequeno lago, vendedores ambulantes,
crianças brincando e diversas famílias aproveitando o clima agradável e a rotina
aparentemente inalterada de uma cidade histórica. O local em nada lembrava as capas
de jornal e revistas com fotos da tragédia ocorrida em 2015. Tudo muito diferente do
que imaginávamos encontrar. Ali, sentamos para um sorvete, enquanto observávamos a
rotina.

Ponto Urbe, 20 | 2017


270

Figura 6 – Praça central com seus turistas e moradores locais

10 Casas e comércios intercalavam em diferentes formatos arquitetônicos e cores,


formando longos e unidos imóveis. Assim como outras cidades turísticas, as lojas de
artesanatos estavam presentes por todo local (Fig. 7). As vendas incluíam desde
camisetas, bonés, bolsas, ímãs etc. estampados com o nome da cidade, como pinturas e
miniaturas de igrejas e casarões, bonecas de pano, entre outras variedades. As ruas
estavam sempre ocupadas por carros estacionados e visitantes com seus óculos de sol,
garrafas de água, celulares e máquinas fotográficas. Estudantes de ensino fundamental
de uma escola pública da Belo Horizonte, organizados em grupos uniformizados e
acompanhados por suas professoras visitavam igrejas e lojas, sem grande atenção às
orientações recebidas. Grupos menores de escolas de línguas, também uniformizados,
porém sem identificação da cidade de origem e acompanhados com guia exclusivo,
também conheciam os pontos turísticos.

Ponto Urbe, 20 | 2017


271

Figura 7 – Rua de comércio local, com pequenas placas de identificação

11 Caminhamos por certo tempo entre as ruas de comércio de artesanatos, descendo rumo
aos estabelecimentos comerciais típicos de qualquer outra cidade, um pouco afastada
do centro histórico. Nesta parte, percebemos uma igreja em restauração. Diversos
outros monumentos arquitetônicos da cidade encontravam-se em processo de
deterioração bastante avançado.
12 Procurando um local para um lanche, chegamos a uma pequena praça, próxima ao
Terminal Turístico Manoel da Costa Atayde, ao lado de dois pontos de ônibus (Fig. 8),
onde uma faixa chamava atenção. Fixada na parte de cima de um comércio, local de
grande circulação de moradores e principalmente de turistas, no que aparentemente
era uma residência familiar, a mensagem exibida era: “A cidade de Mariana é a favor da
retomada das atividades da SAMARCO” (Fig.9 e 10). Ao lado da frase, no canto superior
direito da faixa, o logotipo da empresa local que apoia a afirmativa foi estampado.
Outras empresas locais, aparentemente de médio porte, cartazes menores e menos
visíveis também continham frases de apoio à retomada das atividades da empresa
Samarco na cidade.

Ponto Urbe, 20 | 2017


272

Figura 8 – Ponto de ônibus próximo à faixa de apoio a empresa mineradora. Local de maior
concentração de moradores e turistas

Figura 9 – Comércio local, no centro da cidade, com faixa em apoio a empresa mineradora
Samarco

Ponto Urbe, 20 | 2017


273

Figura 10 – Mensagem da faixa fixada no comércio

13 Ao final do dia, após novas caminhadas pelas ruas da cidade e visitas a pontos turísticos,
seguimos para o hotel local. Os moradores, ao notar a presença dos turistas, lidavam de
maneira natural, mas a sensação de ser observado é comum a todos nós. Não
encontramos moradores em situação de rua pelos locais que passamos.
14 No dia seguinte, domingo, ao passar novamente pelo terminal turístico, pedimos
material informativo sobre a cidade. O senhor, muito atencioso, informou que não
possuia nenhum tipo de material naquele dia. O possível foi ceder um pequeno mapa,
xerocado, preto e branco, com os pontos turísticos indicados (Fig. 11). Diferente dos
jornais impressos espalhados na cidade, geralmente com referências a notícias vinculas
à empresa Samarco, este mapa da cidade era uma cópia ilegível. Diversos panfletos de
hotéis, pousadas e restaurantes estavam disponíveis.

Figura 11 – Mapa da cidade de Mariana distribuído aos turistas no terminal turístico

15 Ao sair, percebi um outro jornal local disponível no canto da sala. Após permissão,
consegui uma edição. Intitulado Jornal Panfletu’s (Fig. 12), a edição disponível era a de

Ponto Urbe, 20 | 2017


274

número 653, ano 16, do período de 08/06/17 a 15/06/17. A capa não trazia nenhuma
referência ao desastre ou à empresa envolvida. No entanto, a página quatro desta
edição, em reportagem com pouco destaque, trazia o seguinte assunto: “Comissão de
obras públicas e meio ambiente, Secretaria de Meio Ambiente, fundação RENOVA,
Samarco Mineração e Vale discutem novo código ambiental”. Também a página cinco
desta mesma edição, com texto em página completa, apresentava a reportagem: “STF
concede liminar favorável ao município de Santa Bárbara, Samarco pode não voltar esse
ano”. A página doze, mais uma vez, discutia assuntos ligados à empresa: “Banco de
emprego on-line de Catas Altas será utilizado pelo Sine de Mariana e por empresas
como Vale e Samarco”. A página quinze, em destaque, chamava a atenção dos
moradores de Mariana com um convite para o conhecimento da minuta da Lei
Complementar que visa instituir o código ambiental da cidade.

Figura 12 – Imagens do Jornal Panfletu’s distribuído na cidade de Mariana, com reportagens


ligadas às empresas Samarco e Vale

Ponto Urbe, 20 | 2017


275

16 Neste mesmo local, percebemos que existia uma faixa, já rasgada, divulgando o contato
da Secretaria Municipal de Defesa Social (Fig. 13), possivelmente fixada no pós-desastre
ocorrido na cidade.

Figura 13 – Faixa de divulgação do contato da Secretaria Municipal de Defesa Social

17 Ao conversar com outros moradores, sentados ali por perto, conversas do cotidiano
sobre o tempo e turismo na cidade, aproveitamos mais uma vez para saber sobre o
rompimento da barragem de Fundão. Nenhum morador disse ter visto lama ou ido a
algum lugar onde o desastre ocorreu. Além disso, mostravam um pequeno rio que corre
na parte de trás do terminal turístico, geralmente referindo ao estado “normal” do
curso d’água em Mariana (Fig. 14).

Figura 14 – Rio que corta da cidade de Mariana, utilizado como referência por alguns moradores

18 O final do dia foi dedicado à visita a outros pontos turísticos e alimentação, antes do
nosso retorno, numa viagem de oito horas.

Ponto Urbe, 20 | 2017


276

19 Desta forma, pudemos observar que a cidade de Mariana em nada lembra as capas de
jornais ou reportagens veiculadas na mídia, o que aparentemente demonstra certo grau
de “normalidade”, ou seja, sem rastros visíveis da lama pelas ruas ou no discurso de
seus moradores. No entanto, sabemos que diversos ribeirinhos ao longo de todo o Rio
Doce, e mesmo em regiões próximas à cidade, ainda sofrem inúmeras consequências
desta que foi considerada a maior tragédia ambiental ocorrida em nosso país.

BIBLIOGRAFIA
GEERTZ, C. 1999. “Os usos da diversidade”. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, v. 10, p.
13-34, 1999.

MAGNANI, José Guilherme Cantor. 2009. “Etnografia como prática e experiência”. Horizontes
Antropológicos, n. 32, pp. 129-156.

MAGNANI, José Guilherme Cantor. 2012. Da periferia ao centro: trajetórias de pesquisa em Antropologia
Urbana. São Paulo: Editora Terceiro Nome.

LOMEU, Rafael. I Festival Internacional do Dia do Refugiado. Ponto Urbe [Online], 18 | 2016, posto
online no dia 31 Julho 2016, consultado o 26 Junho 2017. URL: http://pontourbe.revues.org/3181 ;
DOI : 10.4000/pontourbe.3181

AUTORES
RENATO AUGUSTO PASSOS
renatoapassos@usp.br
Biólogo. Doutorando em Saúde Global e Sustentabilidade pela Faculdade de Saúde Pública da
Universidade de São Paulo (USP)

MARIA DA PENHA VASCONCELLOS


mpvascon@usp.br
Psicóloga social. Doutora em Saúde Pública e Professora da Faculdade de Saúde Pública da
Universidade de São Paulo (USP)

Ponto Urbe, 20 | 2017

Você também pode gostar