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AS VIVÊNCIAS TRAVESTIS E
TRANSEXUAIS NO ESPAÇO DOS
TERREIROS DE CULTOS AFRO-
BRASILEIROS E DE MATRIZ AFRICANA
Resumo: Gênero, sexualidade e religião são temáticas pouco discutidas dentro da geografia, e que estão
essencialmente ligadas aos estudos marginais da ciência. Entretanto, com a atual expansão e manifestações de
diferentes expressões de gêneros, quanto manifestações de cunho religioso no espaço, a ciência geográfica, aliada
as ciências sociais, acompanha a trajetória da sociedade nesta temporalidade, se tornando uma ciência
interdisciplinar e plural. Neste sentido, este artigo tem como objetivo geral, relacionar o espaço do terreiro de
cultos afro-brasileiros e de matriz africana, como lugar de possibilidade de vivência e expressões travestis e
transexuais. Salienta-se que a religiosidade afro em todas as suas formas de manifestação, é periférica. A
concepção de que o espaço sagrado do terreiro constitui relações de expressões de gênero diferenciadas, aparece
para a sociedade como uma forma de romper a linha contínua de padrões heteronormativos.
convivência e de interação passam a ser nele aprecem ser para alguém que está
naquele corpo. Se a outra pessoa
importantes à investigação dos rituais,
emitir certos sons ou fizer certas
indetermina e das racionalidades
caretas, podemos dizer que “lá vêm
subjacentes à vida cotidiana dos
problemas” ou “não nos abandone
indivíduos.
agora”.
As pontuações de Schutz são
importantes para a ciência geográfica,
Considera-se na fala do autor, que
quando associa experiência, interações
os elementos importantes na construção
sociais com o mundo vivido. Neste
do sujeito são visualizados dentro das
contexto, faz-se um salto na evolução do
expressões que o indivíduo apresenta em
conceito fenomenológico, atraindo para a
determinado espaço ou interação com
ligação com o espaço, que é uma das
outro indivíduo. Percebe-se desta forma,
categorias de análise da Geografia. A
que a fenomenologia em primeiro
realidade social é produto de interações,
momento está atrelada aos estudos
da adição de objetos e fatos da vida
culturais dentro da geografia. A cultura
cultural e social que o senso comum
como forma de identificação social, pode
experienciada nas interações. São esses
ser restringida apenas aos valores que
grupos sociais que produzem espaços, os
cada grupo ou etnia tem e é por essas
quais são importantes para as análises
questões que estudos envolvendo novos
geográficas.
grupos sociais vêm se desenvolvendo
As análises da fenomenologia na
dentro da geografia, com ênfase nas
geografia humana têm diferentes
interações humanas.
abordagens no que se refere ao espaço
Um grupo de fiéis de uma
vivido do indivíduo. Nesta perspectiva,
determinada religião, por exemplo,
Sokolowski (2004, p. 165) ao introduzir a
evangélica, que vem se destacando pelo
fenomenologia, diz que
crescente número de seguidores, pode ser
considerado um grupo social que produz,
A língua falada, os gestos intencionais
organiza ou reorganiza o espaço. São
e a linguagem corporal imponderável
indivíduos que possuem sua própria
são todos mais do que apenas
linguagem, modo de vestir, crenças e
movimentos corporais; sinalizam atos
intencionais, e também expressam
ESPAÇO E CULTURA, UERJ, RJ, N. 38, P.181-204, JUL./DEZ. DE 2015
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valores que os diferenciam de outro grupo
religioso. [...] é o estudo das essências: a
As travestis e as transexuais essência da percepção, essência da
de Lemos acerca da procura do homem mãe (de santo) descobre que estou
indo em uma casa que ela não gosta,
pela fé, sugere-se que se os grupos queer
depois vira fofoca. Então prefiro assim
sentem-se fora dos padrões, considerando
mesmo, sem estresse, sem problema,
que a religião possa dar sentido à vida dos
apenas curtindo os “bafos”5. [...]
sujeitos, talvez seria possível compreender
(Maria)
que a presença de uma religiosidade [...] eu vivia sempre sem nada, não
focada aos grupos exclusos da sociedade tinha essa coisa de acreditar em nada,
normativa, é uma tentativa do que se já tinha perdido todos os créditos,
poderia chamar de liberdade assumida da digamos assim. Ai foi quando eu
negação de um padrão dominante. reencontrei uma amiga que é trans, a
gente se reencontrou depois de muitos
Tu tens dois caminhos, ou tu segue mesma, inicia seu discurso salientando que
essa vida que tu tem, ou tu segue o não acreditava em nenhuma crença. Essa
outro caminho que é o da primeira impressão sobre a religiosidade a
religiosidade”. Então foi isso. Na qual teve Flor, foi o ponto de partida para
verdade, eu me aproximei através de que ela percebesse outras questões que
uma amiga para essa religião e ai poderiam dizer muito mais sobre ela
comecei então a frequentar aos
mesma. Os búzios, a que se referiu, foi
pouquinhos, mas sempre com aquele
uma forma de apresentação de caminhos e
olhar observador, né? De não cair
relações que Flor poderia alinhar na sua
direto, por que tu sabe, a gente fica
compreensão sobre o que seria a crença.
com o pé atrás com algumas coisas,
Isto fica evidente, quando ela diz que
né? E aí foi quando comecei a
frequentar. (Flor)
Bom, aí depois, que eu fiz o primeiro
ritual, parece que deu uma mudança, mas
Maria não entrou em muitos
também eu posso te dizer, que foi através
detalhes sobre sua inserção dentro dos dali que eu tive um pouco de
terreiros, mas salientou que prefere em ir autoconfiança, até para começar a
em todos conhecidos e não assumir o construir essa minha identidade, começar
para estabelecer relações de amizade, casa dela, lavei minha cabeça na verdade,
fiz minha primeira obrigação com ervas,
afetiva e até mesmo de diversão.
lavei com omieró5 e tal, e no dia 24 sai de
lá. Fiquei um dia lá dentro da terreira. E
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ai eu sai de lá assim pensando “bom, agora “compromissadamente” uma religião,
o que mais eu vou fazer?”, parecia que eu entrei para a Nação africana. (Rosa)
tinha, não digo que foi isso, entendeu? Amiga, metade da minha família já era
Mas aquilo me fez despertar para outras
da religião, mas nunca tinha me
questões. Isso foi em junho, e dali em
identificado, chegou um momento que
diante não parei e minha vida mudou
sei lá... Algo me chamou, sabe? E fui
totalmente. (Flor)
me identificando, então hoje sou da
Umbanda e da Nação. (Rafaela)
Para Flor, a crença referida nas
Olha... Nasci e me criei dentro da
religiões afro, foi de extrema importância
religião, meus avós eram de religião.
na construção de sua identidade e o modo Eu sou a sexta geração de minha
de como sua vida passou por diversas família herdando nosso Terreiro.
transformações. Essa intensa ligação, pode Agora tenho meu próprio Terreiro,
ser relativizada como os parâmetros mas o de meus pais ainda está aberto
hegemônicos da religiosidade afro, ajuda com direção de minha cunhada e
na construção do sujeito em seu primos. O afro é tudo pra mim, meu
norteamento enquanto ser social. Nesta orixá Oyá é a força de minha vida.
(Beta)
perspectiva, é importante ressaltar que o
desenvolvimento da identidade religiosa
Nestes três discursos, percebe-se a
está condicionado a uma determinada
semelhança de aproximação dos sujeitos
temporalidade e espacialidade e perpassa o
com a religiosidade. Os três sujeitos já
reconhecimento institucional da religião.
estavam inseridos, mesmo que não
(GIL FILHO, 2008).
assiduamente, na religião. As três
Ainda sobre esta perspectiva da
entrevistadas são filhas de adeptos, e isso
aproximação com a religiosidade afro,
facilitou, pelas palavras acima, a
destacamos outros três discursos
identificação com os cultos. É importante
diferentes no que se refere a inserção em
destacar que a Nação em que Rafaela
terreiros de cultos afros.
destaca, é um seguimento religioso de
processo de reconhecimento da
religiosidade e também esperaram o A aproximação de Lola é um caso
tempo certo de assumir os compromissos muito especial que envolve muitas das
religiões afro, uma das questões é a afro. Em sua fala, ela destaca que sofria de
desafios propostos por ela. Rosa, ao isso era resultado de sua mediunidade.
destacar a “identificação”, declara o seu por essa temática, prevíamos que nos
identidades sexuais e de gênero que a princípio, significa algo que chama atenção. Na
linguagem das travestis e transexuais, “bafo” pode
transitam entre o reconhecimento aos
representar acontecimentos divertidos em geral,
padrões normativos dominante e a sua conflitos, fofocas, brigas e extravagâncias que toda