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Interseccionando discursos sobre travestis e mulheres

transexuais no candomblé à luz da filosofia ancestral africana


MIGUEL MELO IFADIREÓ*
ISAAC DE OLIVEIRA MAGALHÃES E SILVA**

Resumo: O presente artigo tem como foco explorar as questões de gênero dentro dos terreiros
de candomblé brasileiros sob a perspectiva da etnofilosofia, ou seja, da filosofia da
encruzilhada e do encantamento. O recorte temporal da pesquisa foi construído entre os anos
de 2015 e de 2017. A metodologia utilizada foi eminentemente etnográfica, tomando por
fundamento os métodos de etnografia virtual de Christine Hine (2008) e a pesquisa
qualitativa online com utilização da internet de Uwe Flick (2009). Buscou-se assim,
promover a intersecção entre o legado da filosofia religiosa africana com as questões de
gênero – sexualidade e identidade de gênero – dentro dos terreiros de candomblé em
contextos socioculturais encantados que findam por reproduzir as hostilidades, as abjeções,
os estigmas e os mesmos rótulos da cultura judaico-cristã em relação às travestis e às
mulheres transexuais.
Palavras-chave: Etnofilosofia; Filosofia do Encantamento; Filosofia do Encruzilhada;
Etnoqueer; Exclusão Religiosa.
Intersecting discussions on travestites and transexual women in the candomblé in the light
of african ancestral philosophy
Abstract: This article focuses on exploring gender issues within Brazilian candomblé
terreiros from the perspective of ethno-philosophical, that is, the philosophy of crossroads
and enchantment. The methodology used was eminently ethnographic, based on Christine
Hine's (2008) virtual ethnography methods and Uwe Flick's online qualitative research using
the internet. 2009). The aim was to promote the intersection between the legacy of African
religious philosophy and the issues of gender – sexuality and gender identity – within the
candomblé terreiros in enchanted sociocultural contexts that end up reproducing hostilities,
abjections, stigmata and same labels of Judeo-Christian culture in relation to transvestites
and transsexual women.
Key words: Ethnofilosophy; Philosophy of Enchantment; Philosophy of the Crossroads;
Etnoqueer; Religious Exclusion.

*
MIGUEL MELO IFADIREÓ é Doutor em Sociologia (UFPE); professor do curso de Direito
da Faculdade de Ciências Humanas do Sertão Central (FACHUSC) e do curso de Direito do Centro
Universitário Dr. Leão Sampaio (UNILEÃO).

**
ISAAC DE OLIVEIRA MAGALHÃES E SILVA é Pós-graduando em Direito e Processo
Penal pelo Centro Universitário Dr. Leão Sampaio (UNILEÃO).

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1. Considerações iniciais encantamento. Busca-se assim,
O presente artigo é resultado de promover a intersecção entre o legado da
trajetórias pessoais da vida acadêmica filosofia religiosa africana com as
questões de gênero em contextos
dos pesquisadores, bem como no
cotidiano das representações sociais socioculturais que findam por reproduzir
enquanto sacerdotes e religiosos do Ifá as mesmas hostilidades – exclusões,
(Religião Tradicional Iorubá) e do abjeções, estigmas e rótulos – da cultura
Candomblé no Estado do Ceará. O judaico-cristã direcionados às travestis e
recorte temporal da pesquisa relatada foi às mulheres transexuais. Assim, destaca-
construído entre os anos de 2015 e de se neste trabalho que, a educação a partir
2017, tendo a participação dos de práticas inclusivas com foco na
pesquisadores do Laboratório diversidade em relação ao gênero são
Interdisciplinar em Estudos da Violência temas “silenciados” dentro das religiões
(LIEV/ UNILEÃO). O projeto guarda- de matrizes africanas e afro-brasileiras,
chuva inicial rendeu resultados, os quais uma vez que estas ainda estão recheadas
já ensejaram outras publicações, entes ewós (proibições) e de awós (segredos),
estas destacam-se as investigações: a) advindos da assimilação e da aculturação
Travestis e Mulheres Transexuais no das sociedades e culturas dominantes
Candomblé Cearense sob o prisma dos (cristãs e islâmicas) em terras africanas
Direitos Humanos (MELO et. al., 2015); desde o período colonial.
b) Práticas pretagógicas excludentes da Diante destes fatos, destaca-se o objetivo
cosmovisão africana em torno da deste artigo, o qual se propõe: refletir,
homossexualidade. (DIAS et. al., 2014); analisar e compreender a construção
c) Pretagogias na educação: a religião social das práticas que excluem as
dos Òrìsàs na cidade de Padre Cícero travestis e as mulheres transexuais de
(MELO, 2016); e d) Lgbtfobia na muitos ritos, cenários e consagrações
tradição religiosa Iorubá do Ifá: religiosas no Candomblé (religião afro-
especulações e práticas da brasileira). Acrescenta-se que a abjeção
heteronormatividade (MELO, 2017); em tela, em nossa opinião, permanece,
Outrossim, é importante ressaltar que o reproduz e ressignifica mal entendidos e
presente artigo tem como foco a tentativa tabus, os quais são pouco refletidos por
de explorar as questões de gênero dentro parte dos pesquisadores e intelectuais
dos terreiros de candomblé brasileiros que se propõem a entender e
sob a perspectiva da etnofilosofia, ou compreender a filosofia da cosmovisão
seja, da filosofia da encruzilhada e do religiosa africana existentes no Brasil.

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Finalmente, acrescenta-se que a partir da heterossexual, que têm orientação sexual
revisão de literatura percebeu-se que as pelo sexo oposto, se comportando com
temáticas dos estudos de gênero e da práticas sexuais direcionadas para o sexo
sexualidade, interseccionada com o oposto, este indivíduo assume em alguns
gênero e a sexualidade nas religiões de momentos papéis sexuais antagônicos ao
matrizes africanas – sejam elas seu sexo biológico. Todavia, mesmo
Candomblé, Umbanda, Jurema, mantendo o fetiche em usar peças e
Kimbanda e o Ifá – são temas, ainda, vestimentas do sexo oposto, mantém o
muito pouco explorados pelas ciências desejo sexual pelo sexo oposto. A este
sociais e humanas como um todo. respeito Antoniel Gomes Filho (2017)
sugere que “o travestismo” seja uma
2. A perspectiva queer, a identidade de categoria diferente da travestilidade,
gênero e a concepção de abjeção onde a primeira não está ligada
Antoniel Gomes Filho e Miguel Melo diretamente à temática da orientação
(2014) ressaltam que na atualidade existe sexual, uma vez que homens gays, da
grande confusão na produção de mesma forma que os homens
definições e conceitos sobre a heterossexuais, podem fazer uso do
sexualidade humana, e mais travestismo nas suas práticas sexuais,
especificamente, na conceptualização da sem se identificarem necessariamente
sexualidade, desejos e atitudes sexuais, com a travestilidade.
referentes às travestis e às mulheres
Márcio José Ornat, por sua vez, sobre o
transexuais. Neste diapasão teórico é
termo travestismos ressalta que embora o
importante ressaltar a contribuição dos
travesti se aproprie “de alguns elementos
estudos de gênero e/ou dos estudos queer
do gênero oposto, encaminhando tanto a
na edificação de um novo discurso ou de
partir de fetiches ou irreverência social,
novos discursos acadêmicos e militantes,
os quais se dedicaram não apenas a este significado não se refere a travesti
brasileira” (2012, p. 55). Em
desconstrução cultural e histórica do
contraposição a este modelo, do travesti
conjunto de categorias e arranjos
heterossexual, existem outras formas de
simbolizados pela dualidade biológica e
expressão do comportamento travesti, a
natural do homem macho e da mulher
partir da busca pelo aprimoramento e
fêmea, mas também, verifica-se que tais
construção da feminilidade, não apenas
falas (ou complexo teórico) permitiram
pelo uso de vestimentas, maquiagem e
que novos delineamentos – em torno das
adereços, como o travesti heterossexual,
relações estabelecidas entre homens e
mais estes travestis à brasileira, vão
mulheres, entre homens e homens, e
muito mais além, quando, investem na
respectivamente, entre mulheres e
mulheres ou entre mulheres e homens – transformação do corpo biológico, com
utilização de hormônios femininos,
pudessem ser redefinidos.
próteses e silicones industrializados, sem
Existem grandes disparidades e que chegue a conclusão do processo de
dissemelhanças entre os conceitos e transformação total, com a cirurgia de
definições de gênero que identificam os transgenitalização, práticas realizadas
travestismos, tanto a nível nacional como por algumas mulheres transexuais (Fato
internacional, com o binarismo sexual a travesti não deseja a retirada do falo).
construído sobre o próprio discurso de Já Tereza Vieira (2002, p. 48), ao versar
gênero, onde o indivíduo travesti no juridicamente sobre a categoria do
contexto europeu e norte americano transexual, aponta esta como a
indicaria o homem ou a mulher “convicção inalterável de pertencer ao

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sexo oposto ao constante em seu da transexualidade nos terreiros de
Registro de Nascimento, reprovando candomblé sob o foco da economia
veemente seus órgãos sexuais externos, política do sexo - conforme perspectiva
dos quais deseja se livrar por meio de das relações de sexualidade propagadas
cirurgia”. A partir dessa perspectiva por Rubin – é necessário evidenciar a
constata-se que tanto a construção do presença na cultura religiosa dos
masculino, quanto a edificação do terreiros de candomblé, a dominação do
feminino é um processo social, onde modelo dicotômico do gênero, o qual
tanto as travestis, quanto as mulheres nada mais é do que uma coercitiva
transexuais sujem como transgressores divisão do sexo e da sexualidade que se
ao modelo de sexualidade padrão, que se construída socialmente, e que vem sendo
funda na imposição de papéis sexuais, reproduzida dentro da religião de matriz
fundados nos modelos dicotômicos de africana e afrodescendente. Pois, esta
sexualidade natural e biológica, entre os divisão do gênero, além de impor uma
sexos, masculino e o feminino. (MELO, heterossexualidade obrigatória, ela finda
2018). por coagir a submissão da sexualidade
feminina. Por fim, o binarismo dos sexos
Somente a partir das pioneiras “É um produto das relações sociais da
contribuições do feminismo acerca da sexualidade” que é determinado a
implementação de argumentações da promover arranjos sexuais hábeis para
sexualidade humana, foi que as transformar “machos e fêmeas em
dominantes concepções acerca da ‘homens’ e ‘mulheres’, cada qual uma
biologia sexual, cedeu lugar a lógica do metade incompleta que só pode
gênero, na qual acrescenta que o gênero encontrar a completude quando unida à
biológico, nem sempre corresponde ao outra” (RUBIN, 1993, p. 11).
social, e que o transexual não é uma
orientação de desejo homossexual, mas Por conseguinte, Butler ressalta que
uma não identificação com a biologia de assim como o corpo, o gênero é algo que
nascimento, ou seja, o sexo biológico se é construído socialmente, ou seja, é
difere do que corresponde à identidade algo que nos fazemos em nossas ações
sexual que impede a orientação do cotidianas, como nos vemos, nos
desejo. Corroborando com esta comportamos e nos afirmamos para a
perspectiva e fazendo uso da ideia de coletividade, pois, é “[...] essa repetição
performatividade de gênero de Judith é a um só tempo reencenação e nova
Butler, compreende-se, por um lado, que experiência de um conjunto de
o corpo é uma situação histórica, uma significados já estabelecidos
vez que para ela o corpo “não é uma socialmente; e também é a forma
materialidade idêntica a si própria ou mundana e ritualizada de sua
meramente fática: é uma materialidade legitimação” (BUTLER, 2008, p. 200).
que no mínimo, traduz significado” Principalmente, porque a autora enfatiza
(BUTLER, 2011, p. 72). explicitamente que o gênero “[...] não
deve ser meramente concebido como a
Gayle Rubin (1993), em seu trabalho inscrição cultural de significado num
intitulado O tráfico de mulheres, sexo previamente dado. […] tem de
acrescenta a necessidade de se refletir designar também o aparato mesmo de
criticamente sobre a questão da natureza produção mediante o qual os próprios
e a gênese da opressão e da subordinação sexos são estabelecidos.” (BUTLER,
social das mulheres. Assim, ao se 2008, p. 25), pelo contrário, o gênero é
relacionar a questão da travestilidade e edificado a partir de ações sociais e/ou

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práticas culturais que corporificam A sujeição da sexualidade pelo discurso
sujeitos com interações sociais da heterossexualidade compulsória
performativas (MELO, 2018). Fato este legitima atitudes e desejos sexuais como
que resulta da ressignificação do sexo, o “comuns ou naturais”, e deslegitima e
qual segundo a mesma, é resultado de menospreza outros, vistos e propagados
discursos proferidos, direcionados e como “imorais ou não naturais”.
difundidos “por um sistema de Igualmente se é oportuno salientar que a
significações opressivo para as sujeição sexual, aqui foi analogicamente
mulheres, os gays e as lésbicas” referendada ao termo e ao conceito
(BUTLER, 2008, p. 165). proposto por Misse (2014, p. 204) sobre
“sujeição criminal”, quando o autor se
Seguindo esta mesma linha de raciocínio refere a todo um “processo social pelo
constata-se que o complexo teórico dos qual se dissemina uma expectativa
estudos de gênero funda pressuposições negativa sobre indivíduos e grupos,
e abordagens interessados em entender fazendo-os crer que essa expectativa não
as relações de dualidade sexual que só é verdadeira como constitui parte
tendem à abjeção de personagens, ou integrante de sua subjetividade.”.
seja, aqueles personagens que se tornam
impróprios para a demonstração 3. Breves apontamentos sobre a
performativa fundada nos liames da perspectiva filosófica do
moralidade e normalidade, são excluídos encantamento africano
do processo de sociabilização, em Em Achille Mbembe (2015) vamos
virtude de suas diferenciações de encontrar uma perspectiva crítica à
comportamentos ou de não identificação dominação da filosofia ocidental,
aos papéis sexuais desejados. A quando o filósofo africano afirma que as
propósito, Butler (2008) descreve que a epistemologias do Ocidente são as que
solidariedade da identidade sexual é possuem credibilidade diante à ciência,
construída por parâmetros objetivos e principalmente, porque estas
subjetivos advindos da unicidade de legitimaram para si o papel de validar e
sujeitos, que tenta (des)homogeneizar os de significar a teoria do conhecimento,
corpos sexuados para a estabilidade do ressignificando o postulado de que a
sexo binário à heterossexualidade e ao Europa permanece “sendo o bairro mais
caráter imutável do sexo, quando civilizado do mundo” (MBEMBE.,
considera que “o gênero não está para a 2015, p. 27), bem como a grande
cultura, como o sexo para a natureza” responsável pela salvaguarda dos
(BUTLER, 2008, p. 25). valores, da moralidade e da civilidade
mundial. Principalmente, quando o
Sob esta perspectiva se torna possível pensamento europeu tenta impor a
perceber que a propagação de
padronização epistemológica e
heteronormatividades, que estariam
metodológica da ciência, esquecendo
imbuídas de representações de poder, de
assim, que existem “uma pluralidade de
força e de dominação nas diferentes
caminhos que se bifurcam e não raras
estruturas sociais e políticas, tendem a
vezes principiam e precipitam-se em
negar a demonstração de desejos afetivos
encruzilhadas” (OLIVEIRA, 2007b, p.
e sexuais entre pessoas do mesmo sexo,
174).
como forma de promover identidades e
unicidades de sujeitos que fogem a Neste sentido, ressaltam Adilbênia
estrutura binária do sexo através de Machado (2014) e David Oliveira
subjetividades abjetas (BUTLER, 2008). (2007a) que a filosofia africana tem

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importância fundamental na reedificação sua abordagem a promoção “positiva da
do processo filosófico mundial, tendo em imagem do negro, do conhecimento da
vista que esta filosofia, ao buscar nossa história, da nossa cultura. É uma
compreender e ressignificar o ação formativa, implicada, onde o
pensamento social e cultural não aprender / conhecer leva ao sentir(se),
hegemônico, consegue permitir que ser em devir”. (MACHADO, 2014, p.
caminhemos para as margens do saber, 23).
ou seja, que busquemos conhecer os
“saberes esquecidos” – advindos “dela”
(Ancestralidade) e “dele” Petronilha Silva (2013), a este respeito,
(Encantamento) – e renegados pelo acentua que reconhecer e valorizar a
pensamento “tradicional” europeu cultura ancestral, a filosofia africana e a
(OLIVEIRA, 2009). Assim, a filosofia etnofilosofia, é antes de tudo, enaltecer o
africana consegue possibilitar que conhecimento oral, a cultura tradicional
caminhemos e aprendamos com as e a religiosidade africana, que tanto o
“encruzilhadas” (OLIVEIRA, 2007b), mundo ocidental, quanto muitos
tendo em vista que “a ancestralidade e o afrodescendentes desconhecem. Oliveira
encantamento complementam-se, (2007b) corrobora com Silva (2004) ao
desejam-se, […] onde estes são plurais e apontar que os caminhos para se
diversos.”. (MACHADO, 2014, p. 23). compreender a essência filosófica da
Na contramão deste processo ancestralidade, nos levam, antes de tudo,
civilizatório, a etnofilosofia se torna um a estarmos “descalços com o pé na terra”
contra-poder simbólico, instrumento diante de nossa racionalidade,
capaz de ressignificar o aroma espiritual eminentemente, ocidental e recheadas de
dos saberes ancestrais, os encantamentos paradigmas fixos e universais. Por
oriundos de África nos tempos pós- conseguinte, acentua-se que a
modernos. Por um lado, ela continua a etnofilosofia, exatamente por não se
denunciar a luta pela descolonização, pautar em um modelo pré-estabelecido,
estendendo-a para o campo da fixo, ideal, racional e comprovado
consciência libertadora e emancipadora cientificamente por um método
dos povos africanos e advindos da coisificado, como defende o positivismo
diáspora africana no novo mundo; por acadêmico contemporâneo, consegue na
outro lado, ela fornece os anéis da verdade produzir uma filosofia
travessura através das encruzilhadas da “(des)racionalizada” e descolonizada, ou
vida, as quais representam a conquista de seja, uma racionalidade que se põe na
uma nova identidade cultural, hábil para contramão do tradicionalismo
promover a autoconsciência da preponderante. Neste sentido, o filósofo
libertação pela cosmovisão africana. Por africano Paulin Hountdonji (1993), por
último, a filosofia africana contribui para um lado, avalia se esta problemática
o despertar de sujeitos políticos ativos e advinda da racionalidade ocidental é um
protagonistas de suas próprias histórias. problema real ou uma construção
Fato importante, a filosofia africana ao sistemática que revela ao mesmo tempo
assumir o papel fundamental de filosofia a história do poder e da dominação; por
das encruzilhadas e do encantamento, ela outro lado, o filósofo constata o demérito
permite a desconstrução crítica de todo o com que a filosofia ocidental trata a
projeto civilizatório europeu e de sua arte filosofia africana, principalmente,
de pensar, principalmente, quando ela quando questiona se esta deva ser
reconhece como diretriz fundamental de reconhecida como filosofia.

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Mogobe Ramose (2002), corroborando uma vez que estas podem de forma
com esta perspectiva, explica a categoria decisiva e não restritiva, reduzir as
epistemológica africana do nbuntu, impressões de malefício que a filosofia
salientando que este termo em muito se ocidental causou as culturas não
aproxima da ideia de ética, conceito ocidentais.
oriundo da filosofia ocidental. Pois, o
4. A abjeção etnoqueer – debatendo
conceito de nbuntu, assim como o termo
(pré)conceitos sobre identidade de
ética, encontra fundamento na essência
gênero no candomblé
da própria filosofia, ou seja, na
pressuposição teórica que interliga tanto Miguel Melo (2018; 2001) ao estudar os
a ética, quanto o nbuntu a concepção crimes de ódio e as violações de direitos
científica que a denomina, por um lado, humanos enfatizando as práticas
como ciência da conduta e do bom lgbtfóbicas no Brasil, ressalta que a
comportamento; e por outro lado, inter- recepção e entendimento sobre as
relaciona a ética e/ ou o nbuntu como um sexualidades humanas, fundamenta-se
dos princípios fundadores da moralidade nas relações entre a dicotomia de gênero
social ou de toda uma coletividade, a e as identidades não hegemônicas, as
saber: quais vêm sofrendo constantes
transformações (FOUCAULT, 1985).
[...] o fundamento filosófico da ética Assim, o autor ao observar a
do ubuntu. Ubuntu como conceito e “transgênese” operacional de conceitos e
experiência está ligado categorias identificatórias de indivíduos
epistemologicamente a umuntu.
não heterossexuais, salienta que muitas
Com base nesta ligação, umuntu
postula ubuntu como sua categoria categorias conceituais, por um lado,
normativa básica da ética. Kagamé foram apresentadas ao longo das quatro
sugere corretamente que muntu, últimas décadas, algumas delas
kintu, hantu e kuntu são as quatro permaneceram no uso e nas
categorias da filosofia africana. representações sociais da linguagem e na
Porém, a enumeração não é comunicação entre os indivíduos LGBT;
completa nem suficiente sem a por outro lado, outras caíram em desuso
inclusão de ubuntu. Ubuntu é a a partir do aparecimento de novas
quinta categoria básica da filosofia denominações e identificações pela
africana. É a categoria ética própria comunidade. Por conseguinte, ao
normativa que prescreve e, portanto,
focar a questão dentro da perspectiva
deve permear a relação entre muntu,
kintu, hantu, e kuntu. (RAMOSE, etnoqueer, salienta-se que o sujeito
2002, p. 324)1. queer (estranho, esquisito) tem a
liberdade de vivenciar em sua plenitude
Assim, fundamentando-se nos a sua condição “bioancestral do ser”, ou
propósitos filosóficos promovidos por seja, tanto a sua identidade de gênero,
Ramose (2002) e Hountondji (1993), quanto a sua orientação sexual. A
reconhece-se a necessidade de se discutir identificação etnoqueer não deve ser
a universalização e a relativização não corporificada e promotora do
apenas do pensamento ocidental, bem estranhamento em relação ao gênero
como, da possível inferência dos (identidade de gênero) destes sujeitos
pressupostos interculturais que nas mais distintas interações simbólicas
reduziriam a refutação das bases e processos religiosos que
ontológicas da etnofilosofia africana, tendenciosamente afastam e excluem
1
Grifo dos autores.

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sujeitos travestis e mulheres transexuais gênero estabelecidos pelas dominantes
do Candomblé. Principalmente, porque matrizes religiosas judaico-cristã e
existem peculiaridades entre a mulçumanas e seus distintos processos
etnicidade, a religiosidade, o gênero e o que foram assimilados, aculturados nas
sexo que não podem ser objeto apenas territorialidades religiosas dos terreiros
das pretéritas relações de sexualidade de candomblé. Por conseguinte, acentua-
advindas de um “passado humano ainda se que, a categoria terminológica que
dominam nossa vida sexual, nossas aqui chamamos etnoqueer se propõe a
ideias sobre homens e mulheres e a ressignificar os processos de
forma como educamos nossos filhos”. corporificação das subjetividades
(RUBIN, 1993, p. 50). humanas dentro das religiosidades de
matrizes religiosas africanas e afro-
Neste contexto, acrescenta-se que a brasileiras, uma vez que esta abordagem
concepção etnoqueer, visa discutir a foi pouco discutida pelas ciências
diversidade de gênero, de sexo e de sociais, humanas e jurídicas.
sexualidades exteriorizadas nos Principalmente, quando as análises
processos iniciáticos da cosmologia da acadêmicas não conseguem se adentrar
reordenação africana, uma vez que se nos “segredos”, “mistérios” e “tabus” do
constata que estes ritos estão recheados universo cosmológico africano e,
de encantamentos e saberes existenciais, permanecendo assim, distantes das
bem como sobre prerrogativas regras de ordenação e de normatização
construídas e propagadas dentro e fora existencial, sejam elas iniciáticas,
do universo religioso da cosmovisão intermediárias ou avançadas.
africana do Candomblé. O fato é
silenciado e acentua a problemática do Ademais, vale se ressaltar que estas
gênero, da identidade de gênero, das regras/ normas litúrgicas estão recheadas
sexualidades humanas e dos papéis de encantamentos, de saberes
sexuais dentro dos terreiros de propagados e profanados pela tradição
candomblé, independente da nação ou oral “dos mais velhos”, onde ao “mais
nações que compõem a vasta diversidade novo” não é permitido questionar nem
étnico-cultural das religiões de matrizes perguntar, pois, o processo pretagógico
africanas e afrodescendentes do (PETIT, 2008) está intrinsicamente
Candomblé. ligado ao tempo, a saber: tempo de
nascer, tempo de aprender, tempo de
Neste sentido, em nossas investidas com ensinar, tempo de questionar e tempo de
os sujeitos da pesquisa, travestis e não falar. Por ventura, o silêncio em
mulheres transexuais enquanto relação ao gênero e a identidade de
indivíduos praticantes e religiosos do gênero permanece atrelado ao mistério
candomblé, se tornou possível perceber, peculiar destas religiões de cunho tribal
por um lado, a presença marcante da desde África ao Novo Mundo. Fato este
heteronormatividade e da que decorre da construção e da
heterossexualidade compulsória nos propagação de uma verdade absoluta,
espaços religiosos dos terreiros (Ègbés, única e universal, ligada à dicotomia que
Ìlés, Kwe, Abassás, Nzo entre outras atrela a sexualidade ao coito sexual entre
denominações); por outro lado, o homem (sujeito ativo) e a mulher
constatou-se o predomínio da abjeção (sujeito passivo). Essa perspectiva
(anormalidade, transgressão e revela, por um lado, tanto a propagação
imoralidade) destes indivíduos que não da tolerância à mulheres lésbicas e
correspondem aos papéis sociais e de bissexuais, quanto a aceitação de homens

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gays e bissexuais, muito embora, reflita encontrar, vivendo em uma mesma
uma total estigmatização e/ ou a territorialidade, os ascendentes,
estandardização da reprovação à descendentes e colaterais diretos e
mulheres transexuais e travestis em indiretos (tais como os avós, os tios, os
situações próprias e conflitivas, como sobrinhos, os pais e os filhos).
por exemplo, o uso de vestimentas
femininas, ao uso do nome social, a não Importante destacar que nas famílias
aceitação destas a nível de cargos religiosas do candomblé, os signos e
hierárquicos sacerdotais ou de significados heteronormativos do
responsabilidade dentro dos terreiros. controle social pela família sanguínea
Verifica-se que os comportamentos não são apenas reproduzidos, mas
sociais de exclusão de travestis e também alicerçam-se no “papel e
mulheres transexuais, são repetidos, uma econômico, voltado principalmente para
vez que os papéis sexuais voltados para a manutenção do grupo”, onde a
o sexo biológico e para a reprodução da propriedade, a herança, a acumulação de
espécie, que têm na heterossexualidade o excedentes econômicos. Assim,
modelo padrão e natural de expressão da elucidam-se os signos de exclusão que
sexualidade, são reproduzidos - em promovem a dificuldade de aceitação, de
específicas situações - dentro das filiação e de pertencimento de travestis e
famílias religiosas do Candomblé de mulheres transexuais, por não se
encaixarem nos modelos
José Manuel Rocha (2013) assevera que heteronormativos do binarismo sexual e
a família tem fundamental importância do gênero.
para a fomentação dos valores materiais
e formais do indivíduo em sociedade, Muito embora, se verifique a
principalmente porque, é na família que aceitabilidade de sujeitos lésbicas, gays e
as normas culturais, sociais, religiosas, bissexuais, do contrário ainda existe
bem como, os papéis de gênero, de muita resistência em relação à inclusão e
sexualidade e de identidade de gênero aceitabilidade de travestis e mulheres ou
são construídos. Importante destacar que homens transexuais. Principalmente, no
a família desempenha função primordial que afere aos direitos sucessórios, de
para a sobrevivência e resistência da posse e de propriedade de terreiros
identidade e memória individual ou religiosos de Candomblé, em caso de
coletiva dos agrupamentos étnicos em transmissão pós-mortem da liderança
sociedade, uma vez que as funções da religiosa (linhagem matriarcal/
família “podem ser identificadas patriarcal), uma vez que nem se cogita a
amplamente no preceito constitucional, e possibilidade de uma travesti ou de uma
serem classificadas em sexual, mulher transsexual vir a poder herdar a
reprodução, econômica, educacional e de casa.
proteção”. (ROCHA, 2013, p. 41). Ao se 4. Metodologia
tomar como referência a significação ou
a função da família religiosa no O tipo de pesquisa se deu com investidas
candomblé, seja ela provinda de uma em campo – em terreiros de candomblé
linhagem feminina (matriarcado) ou de localizados em Juazeiro do Norte e em
uma masculina (patriarcado), verifica-se Fortaleza/ CE, como também, se foi feito
que o modelo da família religiosa no uso de entrevistas online (Facebook,
Candomblé atrela-se à concepção de Messenger e WhatsUp), realizadas nas
família extensa, tendo em vista que redes sociais via internet com indivíduos
nestas linhagens familiares podemos de outros Estados. Para a coleta de dados

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se foi feito entrevistas compostas de advindas da pesquisa qualitativa (HINE,
perguntas encadeadas, semiestruturadas, 2008). A etnografia virtual foi realizada
de aplicação presencial e gravadas entre novembro de 2015 e junho de 2017,
(GASKELL, 2002), onde os e que somente com a posse do termo de
entrevistados a partir das entrevistas livre consentimento assinado, é que se
episódicas puderam apresentar suas deu início à realização das entrevistas.
perspectivas sobre o processo de
exclusão, rotulação e estigmas que O grupo de estudo foi formado por nove
sofrem dentro dos terreiros de entrevistas ao todo, cinco episódicas in
candomblé em virtude de sua orientação loco, e quatro online – etnografia virtual
sexual e práticas de gênero. Já sobre a – com uso da internet (HINE, 2008). A
pesquisa qualitativa online com uso da proposta de investigação social foi a
internet, Flick (2009) é incisiva ao mesma para todos as colaboradoras, seis
descrever que os avanços ocorridos, travestis e três mulheres transexuais
através da globalização da sociedade entrevistadas. Procurou-se informações
contemporânea, tornaram possíveis sobre as relações destes com as
transformações e adaptações na forma de sacerdotisas/ sacerdotes em seus
se realizar a investigação social terreiros; como elas se vestiam e se
(LAMNEK, 1995), e consequentemente, comportavam, ou seja, se elas
a metodologia qualitativa teve que permaneciam com suas identidades de
acompanhar as exigências desta gênero ou se adotavam a identidade
revolução digital e tecnológica própria biológica, invés da social dentro dos
do século XXI. Neste sentido a autora terreiros; como eram as obrigações
aponta que: religiosas? Se desejavam abrir casa? Se
usariam ou desejariam usar o título de
Computadores são usados para Iyaolorisá, Doné ou Mam’etu? Quais
analisar dados qualitativos. eram os maiores empecilhos ou
Gravadores de áudio, de minidiscos dificuldades encontradas dentro dos
e de MP 3 são utilizados para
terreiros? Se a questão de gênero era um
registrar entrevistas e grupos focais.
Pode-se utilizar a internet para
tema dentro da própria comunidade
encontrar literatura e publicar religiosa; algumas, já respondiam que
resultados. Mas além, da pesquisa, a não podiam ajudar na pesquisa.
internet tornou-se também parte da
vida cotidiana das pessoas. (...). A 5. Resultados - analisando discursos
entrevista online pode ser sobre travestis e mulheres
organizada em forma síncrona, que transsexuais no candomblé
significa que o pesquisador entra em
contato com se participante em uma A partir destes depoimentos percebemos
sala de bate-papo (chat), na qual a importância de se trabalhar com a
pode trocar diretamente perguntas e tradição oral, diante da necessidade de se
respostas enquanto ambos estão debater sob o foco da filosofia africana
online ao mesmo tempo. (FLICK, problemática do gênero e da identidade
2009, p. 239- 241). de gênero nos terreiros de candomblé.
O método descritivo nos ajudou a Neste sentido, não serão apresentamos
descrever fenômenos (vivências, trechos de entrevistas (etnografia
sentimentos e comportamentos). Para virtual), mas uma interpretação
registrar o advento da presente panorâmica das categorias extraídas das
investigação social sobre as narrativas, nove entrevistas realizadas com as seis
utilizaremos as técnicas metodológicas travestis e três mulheres transexuais:

40
a) Territorialidades, Iyaolorisá, Mam’etu ou Doné.
regionalidades e nações de Importante salientar, que os homens
Candomblé transexuais vivenciam o mesmo
processo de exclusão, onde as narrativas
As entrevistas presenciais foram
indicam que a estes é retirado o direito de
realizadas com duas travestis – Selma de
se tornarem Kambondos, Huntós ou
Osun de Olinda/ PE e Graice de Yemanjá
Ogans, bem como, Bàbáolorisá, Tat’etu
de Recife/ PE – e uma mulher transexual
ou Doté. Assim, por não poderem
– Martha de Matamba - de Recife/ PE;
biologicamente gerar filhos como
do Ceará tivemos a participação das
“mulheres” e por não terem útero, os
travestis Joice de Oyá de Juazeiro do
sujeitos entrevistados apontam –
Norte/ CE; e Clara de Osun iniciada em
algumas em concordância e outras em
Salvador/ Bahia, porém, residente em
discordância – que existe o predomínio
Fortaleza/CE. Já as entrevistas virtuais
de discursos e argumentos – das
foram realizadas com as mulheres
lideranças religiosas tanto nas linhagens
transexuais Bruna de Odé de
matriarcais, quanto patriarcais – que
Fortaleza/CE e Fernanda de Obatalá de
proíbem a possibilidade de que estas se
Porto Alegre/RS. Por último, foi feita a tornem mães espirituais “sacerdotisas”,
entrevista com Maisia de Lembá de
tampouco mães de Orisás, Mukices ou
Campos dos Goytacazes/ RJ. As nações
Voodos (Ekedji, Ajoyes ou Makotas).
das travestis e mulheres transexuais
foram seis de ketu, duas de angola e uma c) As roupas e os trajes no
de batuque. Percebeu-se que as Candomblé e o respeito a
entrevistadas foram, identidade de gênero
predominantemente, iniciadas em Orisás
e Mukices femininos, com exceção do A temática das vestimentas e o traje dos
Nkice Lembá e do Orisá Odé. fiéis e/ou praticantes do Candomblé,
independente da nação é uma das
b) Família, descendência e status
questões que mais ambiguidades e
social religioso
discordâncias causaram no desenrolar
As entrevistas evidenciaram regras – das entrevistas. De modo que as
normas de conduta e de comportamento colaboradoras se questionaram ou
- e distintas modalidades hierárquicas demonstraram respeito, medo ou desejo
dentro dos terreiros de candomblé. de se conversar sobre este tópico, uma
Segundo as narrativas das entrevistadas, vez que se acredita socialmente que o
existem dentro dos terreiros as mesmas Candomblé é uma das religiões mais
práticas de exclusão em relação à inclusivas, existentes no Estado
indivíduos com identidade de gênero não brasileiro. Fato este que é posto em
heteronormatizada, onde as travestis e as discussão pela presente investigação,
mulheres transexuais vivenciam tendo em vista que as vestimentas
distintos processos de distanciamento e caracterizadoras da identidade feminina/
até de recusa ao pertencimento as masculina são hierarquicamente
famílias religiosas. Neste sentido, estruturadas por funcionalidade,
operacionalizam-se os mesmos temporalidade, gênero e vivencia dentro
interditos sociais e culturais dentro dos das territorialidades afro-brasileiras do
terreiros que refutam, entre outras, a Candomblé. Assim, se foi possível
possibilidade da travesti ou da mulher verificar que existem regras de
transexual se tornar, por um lado, ekedji, vestimentas para quase todas as funções
ajoye ou makota; por outro lado, dos indivíduos no Candomblé,

41
independente da nação – por exemplo, na sete anos se torna Ègbón (irmã ou irmão
Nação Ketu –, se foram narradas a mais velho, maioridade religiosa).
importância e o apego a utilização de
Assim, logo, se tornará uma autoridade
vestimentas específicas para cada idade
religiosa e poderá ou não receber títulos
cronológica dos sujeitos religiosos
sacerdotais – tais como Ìyálásè,
dentro de cada terreiro – desde do Abian
Ìyákekère, Ìyámoyoyó, Ìyádagã,
(noviço), Ìyáwó (iniciado sem
Ìyásidagã, Ìyáewé, Ìyámaye entre outros
maioridade religiosa), Ègbón (iniciado
títulos –, podendo estas Ègbón
com maioridade religiosa), Ajoyè/ Ekedi
acrescentarem aos seus vestuários
(mãe do orisá, cuidadora do orisá), até a
litúrgicos a bata (restrita as autoridades
Iyáolorisá (mãe de santo).
femininas) e o pano de costas (amarrado
Neste sentido, por serem seis das acima dos seios) restrito às mulheres.
colaboradoras iniciadas na Nação de Somente as Ègbón, Ajoyè ou Ìyáolorisá
Ketu – duas na Angola/ Congo e uma no poderão, caso desejem, usar o pano na
Batuque – tomamos o cuidado de cintura. e) Finalmente, acrescenta-se que
observar a importância das vestimentas os brincos e pulseiras são da mesma
para as adeptas desta Nação, uma vez forma condizentes com o sexo, com a
que apetrechos religiosos foram idade cronológica dos religiosos, bem
apontados como fundamentais para a como com o sexo dos Orisás. A
socialização dentro do terreiro, entre sexualidade dos Orisás tem papel
estes, foram indicados os trajes/ fundamental segundo a narrativa das
vestimentas e/ou apetrechos gerais entrevistadas, as quais apontaram que em
independentes do gênero, sexo ou idade suas nações e cidades, é ainda muito
cronológica, a saber: a) roupas de siré comum o fato de Orisás femininos
(observar a idade religiosa), muito (Ayabás) não serem “feitas” (iniciadas)
embora exista diferença em relação ao na cabeça de homens, mesmo que estes
sexo (masculino e feminino); b) com sejam gays e/ ou bissexuais, tampouco
duas exceções no vestuário em relação heterossexuais; da mesma forma os
ao gênero (social) foi relatada, onde os Orisás masculinos (Oboró) não são
terreiros um no Ceará e outro em “feitos” na cabeça de mulheres. Fato é
Pernambuco permitem que o gênero que das nove entrevistadas apenas uma
social se sobressaia ao sexo biológico. foi iniciada para um Orisá masculino, a
Nos demais discursos verificou-se a lembrar Obatalá. Muito embora, as
regra do uso obrigatório de calça de mesmas afirmem que hoje em dia cada
ração para homens e camisa de ração vez mais vivenciamos a quebra desta
crioulas para as mulheres, saia, ojá (pano tradição, onde o sexo ou a sexualidade
da cabeça) e o pano de costas (amarrado dos Orisás vem perdendo o interdito de
acima dos seios); c) já para as Ajoyè/ ser feita na cabeça de seus iniciados,
Ekedi apontaram as entrevistadas a mesmos que estes tenham um sexo
necessidade da saia (sem anáguas de oposto ao de seu Orisá.
baiana ou com goma), toalhinha para
6. Considerações finais
enxugar o Orisá, a bata (camisa um
pouco mais longa que a de ração, não é Primeiro, partindo da análise destes
um vestido) e o pano de cabeça; d) Em discursos, nota-se que a religião do
relação a vestimentas das Ègbón Candomblé, não é tão liberal como se
verifica-se contradições, uma vez que em parece ser pelo conhecimento vulgar que
algumas casas todo sujeito que completa se tem sobre a mesma, como sendo uma
e cumpre com a obrigação religiosa dos religião, paraíso das minorias sexuais,

42
onde não existe a produção do assim, receber um título sacerdotal, foi
preconceito. Percebemos em nossas apontado pelas entrevistadas como
entrevistas, que boa parte das empecilho, quando estas são travestis ou
entrevistadas, mesmo sendo travestis e mulheres transexuais. Quinto, verificou-
mulheres transexuais, reproduzem em se a necessidade de estudos, de
suas falas o discurso da exclusão e da informações e intervenções em matéria
abjeção em relação ao sexo e o gênero, de gênero dentro dos terreiros de
bem como não compreendem a Candomblé, para que assim, se torne
importância fundamental para a possível que as travestis e as mulheres
promoção da dignidade da pessoa transexuais possam conquistar direitos,
humana o respeito a identidade de gênero respeito e vivenciarem suas
ou a orientação sexual delas enquanto religiosidades com dignidade dentro dos
sujeitos de direitos e obrigações. terreiros. Finalmente, ressalta-se a
Segundo, as doxias e os ritos religiosos necessidade de mobilizações sociais de
do Candomblé, independente da Nação, empoderamento para lésbicas, gays,
reproduzem o discurso dicotômico que travestis e transexuais dentro dos
problematiza o gênero em suas terreiros de Candomblé, onde as algemas
territorialidades, onde a crença na que amarram as questões de gênero
heteronormatividade, também, é sejam quebradas, para que os fiéis
determinante, ao reproduzirem o consigam, a partir de estratégia de
preconceito, o rótulo, o estigma e a visibilidade, reivindicatórias de seus
abjeção sexual em relação às travestis e direitos frente a uma sociedade
às mulheres e aos homens transexuais. candomblecista heteronormativa,
possam vivenciar a saúde mental dentro
Em terceiro lugar, chamou-nos atenção o dos terreiros.
fato de que tanto as sacerdotisas
heterossexuais e lésbicas, quanto os O gênero e a sexualidade são um tema a
sacerdotes heterossexuais e gays ser discutido e melhor analisado e que
discriminam as filhas travestis e ficou óbvio que este pequeno estudo, o
mulheres ou homens transexuais no qual infelizmente não conseguiu abordar
cotidiano geral de seus terreiros, salvo todos nuances que se apresentam nas
pouquíssimas exceções. De modo que a vivencias e nas representações sociais de
exclusão desses dentro do contexto travestis e mulheres transexuais
religioso é tida de forma visível por não envolvidos. Pois, se verificou foi que a
estarem dentro de uma normalidade e filosofia ancestral africana, da mesma
naturalidade proposta pelos princípios da forma que a filosofia ocidental, mantem
heteronormatividade ou da em seus processos socioculturais de
heterossexualidade compulsória. produção e de manutenção dos saberes, a
estigmatização, a rotulação e o
Por conseguinte, verificou-se que tanto a espraiamento do preconceito nas
estratificação, quanto o status religioso narrativas religiosas, propagando assim,
das filhas e filhos de santo ainda não o desrespeito ao princípio da dignidade
conseguiu absorver nem a travestilidade, da pessoa humana, onde a liberdade e
tampouco e a transexualidade em sua respeito tanto a questão do gênero e da
plenitude dentro dos terreiros, uma vez identidade de gênero ainda é tratada sem
que a estratificação social religiosa, o devido respeito a noção de promoção
enquanto processo de reconhecimento de dos direitos humanos.
que a iniciada ficou mais velha no santo
e mais próxima do seu Orixá, podendo

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