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IHU

ON-LINE
Revista do Instituto Humanitas Unisinos
Nº 463 | Ano XV
20/04/2015

ISSN 1981-8769
(impresso)
ISSN 1981-8793
(online)

Todas as
possibilidades
do Gênero
Novas identidades,
contradições e desafios

Jamil Cabral: A Queerização da vida

Fernando Seffner: Sexualidade, vivência e pesquisa.


“O pessoal é político!”
Maria Cláudia Dal’Igna: Governamentalidade, gênero e
educação, uma relação complexa

Lúcia Pedrosa: Pedro Lucas Dulci: Jeannine Gramick:


A mística teresiana O que significa LGBT. Esperança de
como veículo para a pensar o cristianismo mudança na acolhida
verdadeira e profunda hoje? 70 anos sem e no ensino da Igreja
transformação Bonhoeffer
DE CAPA IHU EM REVISTA

A Queerização da vida
Jamil Cabral Sierra defende a atitude queer como resposta para transgredir e
dessacralizar uma biopolítica heteronormativa
Por Márcia Junges e Andriolli Costa

D a institucionalização dos mo-


vimentos LGBT, graças às polí-
ticas inclusivas do governo fe-
deral, o pesquisador Jamil Cabral Sierra
aponta duas operações esquizofrenica-
“Queerizar a vida talvez pudesse,
nesse sentido, dizer muito mais se
fosse um gesto menos preocupado em
se constituir empiricamente como um
grupo com identificações afins e mais
mente opostas, mas complementares: em provocar uma atitude obscena,
“a primeira direção é a de conceder estranha, uma atitude inconformada
determinados direitos civis, jurídicos, e disforme em que, ao queerizar-se,
médicos a gays, lésbicas, bissexuais essa vida fosse capaz de ensaiar outros
e pessoas trans, uma reivindicação da modos de viver, em que corpos e prá-
militância inegavelmente importante ticas fossem os elementos fundantes
diante do processo histórico de violência de novas relações entre as pessoas”,
e negação das garantias fundamentais”. defende.
A segunda, descreve ele, é o estabele- Jamil Cabral Sierra é doutor em Edu-
cimento nas diretrizes das políticas pú-
blicas de “formas bastante homogêneas
cação pela Universidade Federal do
Paraná – UFPR, mestre em Letras pela
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e bem definidas de reconhecimento das Universidade Estadual de Maringá e li-
identidades de gênero e sexuais”. cenciado em Letras pela Universidade
Esta definição rígida cristaliza um Estadual do Oeste do Paraná. Atual-
modelo identitário considerado “corre- mente, é professor adjunto da UFPR no
to, honrado, digno e merecedor de tais Programa de Pós-graduação em Edu-
políticas”, orientando os modos de ser, cação. Vice-coordenador do Laborató-
pensar e agir dos sujeitos LGBT a partir rio de Investigação em Corpo, Gênero
de “uma moral sexual e de uma eco- e Subjetividade na Educação (UFPR/
nomia do corpo e das práticas já bem CNPq) e pesquisador do Núcleo de Es-
estabelecidas pela heteronormativida- tudo de Gênero (UFPR/CNPq), voltou
de”. Em entrevista por e-mail à IHU seus estudos para as áreas de relações
On-Line, Sierra aponta os nexos entre de gênero, diversidade sexual, corpo e
homossexualidade, insubmissão e alte- subjetividade e suas conexões com a
Teoria Queer e os estudos foucaultia-
ridade. Discute ainda a necessidade de
nos. Sierra é organizador de Diversida-
queerizar a política e a vida. Um modo
de e educação: intersecções entre cor-
de vida queerizado, para Sierra, dessa-
po, gênero e sexualidade, raça e etnia
craliza gestos, formas e comportamen-
(Matinhos: UFPR, 2014).
tos. Transgride posturas, afetos, corpo
e sexo. É abjeto, inclassificável. Confira a entrevista.

IHU On-Line – Como podemos Jamil Cabral Sierra – Tenho dito vai inscrever os problemas de gê-
compreender o governamento em meus últimos escritos, especial- nero e sexuais na ordem das retóri-
mente em minha tese de doutorado cas de respeito e tolerância – é que
da diversidade sexual em nosso
recém-defendida, que no contexto surgem as políticas de inclusão (e
tempo? Nesse debate, qual é a
de emergência da noção de diversi- por consequência, o governamen-
contribuição do pensamento de dade sexual – que, associada a uma to) da população LGBT na esfera
Foucault? teoria e a uma política identitárias social e educacional brasileiras.

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Relativamente recentes, essas po- tos, mas também o de fazer com práticas de subjetivação e o (des)
líticas inserem-se, da forma como que eles mesmos conduzam suas governo biopolítico do gênero e
as percebo, na dimensão da go- vidas em direção à viabilização da sexualidade?
vernamentalidade neoliberal e irá de suas vidas ao que poderíamos
Jamil Cabral Sierra – O governa-
promover formas de regulação das chamar de uma moral sexual e
mento da diversidade sexual tem
condutas dos sujeitos LGBT, bem de uma economia do corpo e das
a ver com um argumento que te-
como estratégias de captura e in- práticas já bem estabelecidas pela
nho defendido que é a noção de
terrupção de determinados corpos heteronormatividade.
viabilidade-moral-econômica dos
e práticas afetivo-sexuais que rom-
Nesse sentido, os aportes fou- sujeitos LGBT. Pois bem! Essa ideia
pem com a heteronormatividade.
caultianos sobre a noção de gover- refere-se às formas de produção de
Essa, é importante salientar, ganha
namentalidade são fundamentais corpos e vidas ajustados aos pro-
forma mais concreta no contexto
nesse processo de caracterização cessos de classificação, correção
brasileiro, a partir do momento em
das formas de governamento da po- e normalização que impõem aos
que os discursos de respeito e to-
pulação LGBT a que me refiro. Ao sujeitos LGBT um modo de vida
lerância em relação à comunidade
possibilitar uma nova compreensão operado a partir da heteronor-
LGBT se sedimentam com a par-
das relações de poder, a noção de matividade e que institui a lógica
ceria entre movimentos sociais e
governamentalidade irá sublinhar a identitária como recurso à inclusão
Estado, especialmente a partir do
questão do sujeito e suas formas de na esfera jurídica, social e educa-
governo do presidente Lula.
governamento, ou melhor dizendo, cional. Para tanto, os sujeitos LGBT
Em grande medida, essa parceria os diferentes modos pelos quais al- precisam ajustar-se a dois princí-
tem promovido um processo bas- guém se torna sujeito de ou assujei- pios: a) a uma certa moral, que
tante homogeneizador dos corpos e tado a, tanto em relação aos outros prescreve quais corpos e quais prá-
das práticas afetivo-sexuais consi- quanto a si mesmo. Desse modo, ticas sexuais e afetivo-amorosas
derados abjetos e, por isso mesmo, ao criar a expressão governamen- são corretas, honradas, saudáveis,
não autorizados a ingressarem – ou talidade para caracterizar as novas seguras e aceitáveis diante tanto
a se beneficiarem – nessas mesmas formas administrativas de governa- das recomendações dos próprios
políticas que se dizem inclusivas mento da população, Foucault con- movimentos sociais quanto das po-
e para todos. Ao tomar a popula- seguiu mostrar as sutilezas de um líticas públicas de Estado; b) a uma
36 ção LGBT como sujeitos de direito, tipo de poder que não se dá exclusi- certa economia, que institui quais
essas políticas de inclusão operam vamente por meio do Estado onipo- corpos e quais práticas sexuais e
esquizofrenicamente em duas di- tente e onipresente, mas também afetivo-amorosas atendem ao pro-
reções opostas, mas visceralmente por tecnologias difusas e dispersas jeto de utilidade-rentabilidade que
complementares: a primeira dire- capazes de governar os indivíduos a ordem do consumo e do trabalho
ção é a de conceder determinados em diferentes esferas de suas vidas. neoliberais apregoam como ne-
direitos civis, jurídicos, médicos a Esse deslocamento que dá Foucault cessárias ao projeto de consolida-
gays, lésbicas, bissexuais e pessoas na análise sobre as relações de po- ção do sujeito de direito e de sua
trans, uma reivindicação da mili- der, isto é, deixar de pensá-lo no consequente e paradoxal exclusão
tância inegavelmente importante âmbito das relações de força para pelo mesmo sistema jurídico-eco-
diante do processo histórico de pensá-lo a partir dos diferentes mo- nômico que o criou e diz incluí-lo.
violência e negação das garantias dos de condução de condutas será A assunção de uma identidade
fundamentais da vida dessas pes- fundamental para recolocar o poder carimbaria esse sujeito, da forma
soas; e a segunda direção é, numa não mais em termos de coerção e como venho nomeando, como um
espécie de “dou com uma mão e repressão sobre os indivíduos, mas corpo-em-viabilidade, uma vida-
tiro com a outra”, estabelecer em em termos de um direcionamen- em-viabilidade e, diante dessa sua
suas diretrizes formas bastante ho- to e regulação dos modos de vida virtual utilidade-rentabilidade, um
mogêneas e bem definidas de re- das pessoas. Em vista disso, penso corpo capaz de lutar por direitos
conhecimento das identidades de que o pensamento de Foucault nos até então não reconhecidos a ele.
gênero e sexuais. ajuda em muito na compreensão de Revelar-se gay significa, nesse con-
Essa segunda direção, parece-me, como tem sido operados os discur- texto, deixar de ser “veado” para
acaba por cristalizar um deter- sos em torno da diversidade sexual, constituir-se viável, assumir-se
minado modelo identitário consi- pois o pensamento do autor nos dá útil-rentável moral e economica-
derado correto, honrado, digno e ferramentas para problematizar as mente e, com isso, tentar a chance
merecedor de tais políticas, bem formas de ajustamento dos corpos de trocar de domínio: do lugar da
como por promover, em função e condutas LGBT no contexto da go- abjeção pelo lugar da aceitação.
dessa cristalização, formas de go- vernamentalidade neoliberal. Esse movimento a que chamo de
vernamento dos sujeitos LGBT cujo produção biopolítica de uma via-
objetivo principal será não só o de IHU On-Line – O que esse gover- bilidade-moral-econômica, que co-
conduzir a conduta desses sujei- namento permite pensar sobre as meça a ser desenhado nos anos 70

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com as lutas pelo outing, ganham, contemporâneos e da lógica de in- lembrar aqui que quando falo em
na contemporaneidade, sua radica- clusão neoliberal que tem produzi- diferença não a entendo como es-
lização no momento em que movi- do nossos corpos e nossos desejos pécie de erro do sistema, sujeita,
mentos sociais e Estado passam a como lugares moral e economica- portanto, ao reenquadramento às
configurar uma parceria disposta mente viáveis apenas. Além disso, regras gerais, como se fosse sem-
a reparar, sob o princípio da tole- pensar em termos de vidas vivíveis pre possível corrigir a insubmissão
rância e da inclusão, os corpos de nos permite considerar formas de de corpos e práticas que deslocam
LGBT, traduzindo-os em uma iden- existir no mundo que questionam a o modelo heteronormativo. Ao
tidade segura e reconhecível, bem ordem de gênero/sexual estabele- contrário, por diferença entendo
como viabilizando-os por meio dos cida por meio de uma reconfigura- aquele ponto anômalo ao sistema
compromissos de cidadania e di- ção dos limites do corpo, de seus construído como verdadeiro, como
reitos reivindicados pelos sujeitos usos e de suas práticas, de modo ordem, impossível de ser corrigido
da diversidade sexual e garantidos a criar, como diz Foucault em seus e de ter seu fluxo estancado, justa-
pelo Estado. últimos escritos, um trabalho éti- mente pelo fato de que se trata de
co/estético de transformação so- um tipo de vivência do corpo e dos
IHU On-Line – Quais são os desa- bre si mesmo. prazeres deslocado, descentrado
fios fundamentais de uma ética/ Penso que isso traria novas pos- da norma. Se pudéssemos mapear
estética pós-identitária para a sibilidades para pensarmos não só melhor essas vivências, podería-
teorização político-educacional as políticas que se direcionam à mos talvez pensar alternativas em
LGBT? população LGBT, mas também no- que a homossexualidade, como nos
vas alternativas para se pensar a diz Foucault, pudesse se constituir
Jamil Cabral Sierra – Pensar em
questão da diversidade sexual na em uma grande possibilidade de
termos de uma ética/estética pós-
escola. Um caminho, talvez, menos criar outros estilos de vida, ou-
identitária, tanto no âmbito polí-
voltado unicamente ao reconheci- tras escolhas de existência, novas
tico como no âmbito educacional,
mento do sujeito de direito e de virtualidades relacionais entre as
significa problematizar o modelo
sua inclusão na esfera educacional, pessoas. A homossexualidade, nes-
identitário que sustenta a noção de
e muito mais voltado àquilo que se sentido, antes de ser a manifes-
diversidade sexual atual, em favor
essas experiências de uso do corpo tação de um desejo, seria algo de
de um outro pensamento que nos
desejável, algo que precisaria ser
lance na busca por outras formas e dos prazeres poderiam fornecer
buscado. Claro que não me refiro
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de viver o corpo e os prazeres. O para ressignificar o próprio espaço
educacional como um todo. aqui à homossexualidade como o
desafio é justamente tentar en-
ato sexual em si entre duas pesso-
saiar uma busca capaz de esgarçar
as do mesmo sexo, mas a um modo
os mecanismos de governamento IHU On-Line – Qual é o nexo en-
de vida homossexual, a um estar-
que promovem a viabilidade-mo- tre homossexualidade, insubmis-
-no-mundo homossexual ainda em
ral-econômica dos sujeitos LGBT são e alteridades?
devir, a um trabalho sobre si mes-
e que ajusta – ao mesmo tempo
Jamil Cabral Sierra – A principal mo que levaria à invenção de algo
que normaliza – seus corpos, suas
relação entre esses três termos ainda impensável, inimaginável, à
práticas sexuais e afetivo-amo-
tem a ver com as relações de po- transformação de si em algo que
rosas, seus desejos, suas vidas às
der, uma vez que os sujeitos LGBT ainda não se é.
reconfigurações neoliberais con-
têm sido absorvidos, homogenea-
temporâneas. Uma busca capaz de
mente, pelo grande guarda-chuva IHU On-Line – Quais são as re-
instabilizar essas reconfigurações
da diversidade sexual, lugar onde presentações principais da homo-
para mirar a possibilidade de cons-
têm sido agrupados os corpos ti- cultura na mídia e como essas re-
tituição de outras experimenta-
dos como insubmissos. Porém, esse
ções, outras textualizações, outros presentações ajudam a construir
agrupamento nunca é neutro e
corpos, outras práticas sexuais e um imaginário a respeito dessa
uniforme, mas sim produzido por
afetivo-amorosas, todas elas cons- temática?
poderosas relações de poder, que
tituindo a vida-outra, ou como te- Jamil Cabral Sierra – Discuti esse
provocam hierarquização e exclu-
nho chamado, a vida vivível.
são não só externamente ao grupo, tema das representações da homo-
A ideia de uma vida vivível tem mas também em seu próprio inte- cultura na mídia em minha disser-
a ver, portanto, com uma certa rior, entre membros da comunidade tação de mestrado, já há algum
atitude capaz de promover desar- LGBT. Ao nos referirmos generica- tempo. Mas penso que o que pro-
ranjos, desajustes, trincamentos, mente à expressão diversidade se- pus naquela época ainda vale para
curtos-circuitos, incisões nos me- xual, por exemplo, invisibilizamos os dias de hoje. Da forma como
canismos de captura e controle os conflitos que os sujeitos perten- tenho acompanhado, as represen-
das subjetividades LGBT. Uma es- centes a essa categoria estabele- tações da diversidade sexual na mí-
pécie de tensionamento em face cem, apagando assim a dimensão dia se dão basicamente em duas di-
dos dispositivos de governamento mesma de suas diferenças. Cabe reções. Uma primeira direção que

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coloca os sujeitos LGBT sempre em tese política que pretende reunir envolvimentos afetivo-amorosos
uma posição abjeta, portanto pejo- as diferentes identidades sexuais que, mesmo fora, inclusive, da rei-
rativa, estereotipada e preconcei- (lésbica, gay, bissexual, trans) e vindicação do casamento civil, la-
tuosa, típica de programas de hu- tirá-las do purgatório da anorma- tejam uma experiência de encon-
mor, telenovelas, comerciais de TV, lidade onde até então habitavam, tro possível entre duas ou até mais
canais humorísticos na Internet; e alçando-as, por meio de uma coe- pessoas. Pensar nessas formas inco-
uma segunda direção que é tentar xistência pacífica e harmoniosa, à muns de conjugalidade e parentes-
entender os sujeitos LGBT pela via condição de normalidade, sob o ar- co, do que chamo de vida íntima
das retóricas de respeito e tolerân- gumento de que se tais identidades partilhada, significaria, sobretudo,
cia. A primeira direção parece-me também fazem partem da humani- curto-circuitar a própria noção he-
bastante evidente naquilo que tem dade, é preciso que haja tolerância terossexual de casamento, modelo
a ver com seus efeitos discursivos e respeito em relação a elas. No pelo qual se cria as referências de
nocivos. Porém, a segunda direção, entanto, como sabemos, isso tem união entre as pessoas, incluindo
por parecer algo consensual, pouco seus efeitos, cujo mais grave é a homossexuais.
desperta para uma análise de seus produção de violentas estratégias
Nesse aspecto, diante de várias
efeitos que, em certa medida, po- de homogeneização cultural e via-
interpretações sobre o tema, me
dem também ser tão devastadores bilização moral e econômica pelas
interessa muito a leitura que Ju-
quanto colocar na novela das 21h quais esses mesmos sujeitos LGBT
dith Butler1 faz do casamento ci-
um personagem gay caricato dando precisam se submeter para acessar
vil entre pessoas do mesmo sexo,
pinta de bicha má. o universo inclusivo que lhes tem
com a qual tendo a concordar. Para
sido, de forma espetacularizada
O que tento argumentar é que os Butler é preciso mostrar também
pela mídia, prometido.
discursos de respeito e tolerância os limites que esse tipo de casa-
que povoam o universo midiático e mento pode impor a determinadas
constroem a noção de que os sujei- IHU On-Line – O tema “casa- configurações sexuais, bem como a
tos LGBT precisam da compaixão mento gay”, como o define e qual determinadas formas de conjugali-
para existirem como tais, camu- a importância hoje? dade que, por não serem reconhe-
flam um processo de normalização Jamil Cabral Sierra – O tema cidas pelo tipo de união legitimada
e ajustamento dos corpos e práti- do casamento gay, ou “casamen- socialmente, ficam ameaçadas em
38 cas LGBT na lógica heteronormati- to igualitário”, como vem sendo converterem-se em formas abje-
va. O que quero dizer com isso é chamado no Brasil, é importante tas, ilegítimas, ilegais, o que, para-
que esses discursos de respeito e do ponto de vista da reivindicação doxalmente, mesmo promovendo o
tolerância que se pretendem tão por direitos historicamente nega- combate à homofobia por um lado
conciliatórios, plurais, altruístas e dos à população LGBT. Nesse sen- (de uniões gays mais próximas ao
humanitários, trabalham em favor tido, o casamento entre pessoas do modelo heterossexual, por exem-
da manutenção da estabilidade mesmo sexo insere-se no mesmo plo), pode, por outro, aumentar a
(ainda que, paradoxalmente, pro- domínio de outras reivindicações violência e exclusão de outras for-
voquem algum descolamento no importantes, como a aprovação
combate à homofobia, por exem- do nome civil de pessoas trans e 1 Queer: gíria inglesa usada em referência a
plo) da identidade tida como he- homossexuais. Está associada à teoria queer,
a criminalização da homofobia.
desenvolvida nos anos 1980, nos Estados
terossexual/normal. Nesse caso, Diante de um contexto de funda- Unidos, a partir da publicação do livro Gen-
os sujeitos LGBT continuam sendo mentalismo religioso como temos der Trouble, de Judith Butler. Possui um alto
percebidos e representados na mí- experimentado aqui no Brasil, tais grau de influência do filósofo francês Michael
Foucault e suas ideias sobre a sexualidade. So-
dia como vidas anormais, portanto pautas se fazem urgente e, penso bre a teoria queer, confira a edição nº 32 dos
excêntricas, esquisitas, estranhas, eu, contribuiriam, se aprovadas, Cadernos IHU Ideias, intitulada À meia
merecedoras apenas do respeito para construir um novo cenário na luz: a emergência de uma teologia gay. Seus
dilemas e possibilidades, escrita por André
e da tolerância da suposta identi- forma pela qual os sujeitos LGBT Sidnei Musskopf, disponível em http://bit.
dade tida como normal, isto é, a são tratados neste país. ly/1etDPIk. Musskofp também apresentou o
heterossexual. Nesse sentido, “to- evento IHU Ideias em 11-09-2008, debatido
Agora, no que tem que ver com na entrevista Via(da)gens teológicas. Itinerários
lerar” é discriminar e nosso esforço de uma teologia queer no Brasil – a entrevista foi
a constituição de outras formas de
deveria se concentrar em discutir publicada no sítio do IHU em 07-09-2008 e está
união entre as pessoas, interessa
as formas de privilégio de quem disponível em http://bit.ly/R24T9H. Ainda sobre
dizer que, apesar de reconhecer o assunto, confira a entrevista Transgressão,
se coloca na posição de tolerante
a importância do casamento civil implosão, mistura, desconstrução e recons-
em relação às outras experiências trução, com Musskofp, publicada na edição
entre pessoas do mesmo sexo e de
de vida, individuais ou coletivas, 227 da IHU On-Line, de 09-07-2007, intitulada
acreditar que sua implementação Frida Kahlo – 1907-2007, disponível em http://
negando-as ou normalizando-as.
é, dentro do sistema atual, parte bit.ly/1glo8Et. E a entrevista Torcidas Queer e a
O que a mídia tem feito, em mui- de um direito negado, penso que é homofobia nos estádios de futebol, com Gustavo
Andrada Bandeira, publicada no dia 02-05-2013
tos casos, é tratar a diversidade preciso também supor outras for- no sítio do IHU, disponível em http://bit.ly/10u-
sexual como uma espécie de sín- mas de conjugalidade, parentesco, fBEy. (Nota da IHU On-Line)

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mas de vida que ensaiam práticas recentes, justamente do encontro surgir, para algumas pessoas, com
sexuais e sistemas de vida íntima que proponho estabelecer entre a invenção de outras práticas sexu-
partilhada distanciados do modelo atitude queer e atitude cínica, pro- ais, isto é, de outros prazeres.
reconhecido e corrigível. posta por Foucault em seus últimos
Esse é o ponto, a meu ver, que
Nesse aspecto, a interrogação escritos sobre estética da existên- me faz ensaiar uma aproximação
de Butler sobre como seria possí- cia. Queerizar a vida talvez pudes- do que chamo de atitude queer
vel o combate à homofobia sem, se, nesse sentido, dizer muito mais com a atitude cínica descrita por
contudo, tomar o casamento ci- se fosse um gesto menos preocupa- Foucault no curso A coragem da
vil entre pessoas do mesmo sexo verdade. Lanço essa aposta, muito
como a pauta de reivindicação particular, de associação da expe-
mais valorada se torna funda- riência cínica descrita por Foucault
mental e crucial. Se as relações com o pensamento queer contem-
de parentesco ou de vida íntima Queerizar a vida porâneo, no sentido de marcar no-
partilhada para existirem como vas possibilidades de uso teórico e
tais precisam se associar ao ca- poderia, então, político da experiência queer em
samento e se, por consequência,
não cabem, no modelo de matri-
desvincular o favor do que tenho denominado de
vida vivível. Nesse sentido, além
mônio que se reivindica, arranjos corpo e suas do resgaste da vida abjeta, que no
de união que não desemboquem
em uma ideia socialmente aceita
práticas das for- cinismo se dá por meio da figura do
cão tornada virtude e na atitude
de família, logo, esses arranjos mas tradicionais queer por meio de sua estranheza
se tornariam inviáveis ao projeto
heteronormativo, sobrando a eles, de concebê-los e abjeção tornadas um caminho
possível de vida, essa aproximação
unicamente, a abjeção e a exclu- dá-se, também, no sentido da ma-
são. Além disso, ao ignorar formas nifestação pública de certas práti-
de união que se dissociam de um do em se constituir empiricamente
como um grupo com identificações cas contrassexuais, como nos suge-
modelo familiar reconhecível e re Beatriz Preciado, bem como – e
reconhecido, corre-se o risco de afins e mais em provocar uma ati-
principalmente – da constituição
transformar o matrimônio no ele- tude obscena, estranha, uma ati-
de outras vivências do corpo e dos 39
mento exclusivo de classificação tude inconformada e disforme em
prazeres entre as pessoas.
e ordenação sexual e de gênero, que, ao queerizar-se, essa vida fos-
bem como de organização conju- se capaz de ensaiar outros modos Queerizar a vida poderia, então,
gal e/ou de parentesco. de viver, em que corpos e práticas desvincular o corpo e suas prá-
fossem os elementos fundantes ticas das formas tradicionais de
Diante desses perigos, seria pre-
de novas relações entre as pesso- concebê-los, formas essas que os
ciso, da forma como concebo, de-
as. Pensar em termos de corpos e têm produzido como um artefato
sarticular os direitos e vantagens
práticas talvez pudesse nos dar a capturável pelos mecanismos de
que se associam ao casamento,
chance de subverter uma noção de produção do que chamo de vida vi-
seja ele entre pessoas de sexos di-
desejo tão amplamente difundida ável e que os objetivam na lógica
ferentes ou do mesmo sexo, pois
e que sustenta uma vontade de identitária como seu último desti-
assim se desmembrariam do ca-
verdade pouco questionada. no e única garantia. Queerizar a
samento as vantagens civis e ju-
vida poderia, ainda, constituir o
rídicas que só por ele podem ser Esse gesto talvez pudesse nos im- ensaio de um outro exercício do vi-
acessadas. Isso significaria não pelir a criar formas interacionais ver, corpos e práticas não previstos
reivindicar o direito ao matrimô- imprevisíveis, absolutamente radi- que poderiam, ao serem desloca-
nio entre pessoas do mesmo sexo, cais, sem pretensão alguma em se dos, desmembrados, expandidos,
mas, ao contrário, colocar em xe- constituírem modelos para outras desterritorializados, exercitados,
que o próprio casamento heteros- relações. Ao contrário, que fossem experimentados, sentidos em seu
sexual como instância a partir da não mais que um exercício de um avesso, em sua deformidade, em
qual se organiza a vida social, civil
grupo com o objetivo de desvin- sua sujidade e abjeção, formular
e jurídica das pessoas.
cular o sexo da sexualidade para, novas estratégias de insubmissão,
com isso, ensaiar relações em que provocar distensões na hetero-
IHU On-Line – O senhor fala em o corpo e os prazeres fossem, uni- normatividade, funcionar como
“queerização da política e da camente, o catalisador dessas no- questionamento ético, estético e
vida”. O que isso significa? vas relações. Essa é a virada cru- político e, sobretudo, reivindicar
Jamil Cabral Sierra – A ideia de cial: não pensar o desejo como a chance de uma vida diferente,
queerizar a política e a vida surge, algo a priori, anterior à prática, essa a que tenho chamado de vida
nas minhas argumentações mais mas como algo que pode ou não vivível. ■

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