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O material de análise foi composto por três entrevistas realizadas com três
mulheres jovens bissexuais cisgêneras (Sofia, Emília e Nicole), além da
participação da pesquisadora em quatro atividades de ativismos relacionadas a
mulheres bissexuais (p. 7)
Com base nas experiências e nos discursos das interlocutoras foi possível
observar que a marginalização das mulheres bissexuais tem acontecido por
meio de mecanismos de apagamento, hipersexualização e patologização das
bissexualidades (p. 7).
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[...] as sexualidades dessas mulheres têm desorganizado o par binário
heterosseuxual/homossexual e aberto espaço para o reconhecimento de
outras sexualidades possíveis (p. 7).
No processo da escrita, sempre há algo não traduzível, não enunciável, algo que
escapa. Quando escrevo, faço escolhas num infindável mar de palavras (p. 15).
Adrianne Rich (2002, p. 17), é preciso “começar, assim, não por um continente,
por um país ou por uma casa, mas pela geografia mais próxima - o corpo” (p. 15).
O que interessa neste relato não são meus sentimentos e o que há de individual
neles, mas a singularidade do modo como algumas forças se movem em um
determinado contexto histórico. Interessa aqui como esses afetos - que reverberam
em mim e nessa dissertação - são atravessados pelo o que não é meu, por aquilo
que emana do contexto, das relações de poder, das lutas feministas, dos
movimentos LGBT+ (p. 16).
Problema de pesquisa
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[...] as bissexualidades têm sido pouco consideradas, questionadas e
problematizadas especificamente. De um modo geral, quando mencionadas,
aparecem em segundo plano, junto com a discussão das homossexualidades
e das lesbianidades ou como parte de uma lista de categorias (gays, lésbicas,
bissexuais, transexuais) ( Souza, 1996; Silva, 2007; Vieria, 2009; Nobre, 2012;
Ministério da Saúde, 2013). Geralmente, esses estudos estão relacionados a
homens ou à masculinidades, sendo raros os que se referem diretamente a
mulheres ou à feminilidade. Além disso, quando as bissexualidades são
consideradas, muitas vezes são associadas, pelos discursos psicanalíticos, a
uma fase imatura a ser superada (Delouya, 2003; Knobel, 1984; Vittar, 2008;
Piaxão, Decker, Fiorenzano & Ribeiro, 2001; Cucco, 2009) e, pelos discursos
de saúde, a vulnerabilidade, fatores de risco e AIDS/HIV (Souza, 1996;
Vasconcellos, 1996; Ferreira & Abreu, 1998; Toro-Afonso, Varas Díaz;
Andújar-Bello; Nieves-Rosa, 2006; Raxach, 2007) (p. 20).
[...] para realizar essa pesquisa, orientei-me por alguns questionamentos: Como se
dão as experiências de mulheres bissexuais? Quais as práticas e discursos têm
sustentado sua marginalização, inclusive no movimento LGBT+? Quais as relações
das políticas identitárias com a marginalização das bissexualidade? (p. 21).
Posicionamento teórico
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hegemonia, de grandeza e de colonização do outro, presentes nas políticas
identitárias tradicionais” (p. 21).
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como uma importante categoria de análise para controlar os problemas decorrentes
do aumento demográfico ( Foucault, 1988) (p. 25).
Foucault (1988) chamou de biopoder essa nova forma de poder direcionada para
gerir a vida dos sujeitos. O biopoder se desenvolveu, por um lado, por meio das
disciplinas do corpo (no intuito de produzir corpos úteis e dóceis) e, por outro, por
meio da biopolítica da população (uma tentativa dos governos de controlar os
fenômenos biológicos e sociológicos da população) (p. 25)
[...] a partir do século XIX, foi constituído um novo campo do conhecimento que
buscou analisar e classificar cientificamente as práticas sexuais. Foucault
(1988) chamou de Ciencia Sexual o conjunto de discursos científicos e
institucionais que buscou produzir uma verdade sobre o sexo. A partir desse novo
saber, as práticas sexuais passaram a ser pensadas em termos médicos e
classificadas como normais e patológicas (p. 25-26).
O sujeito “desviante” (até então ‘pecador’) devia a partir de agora ‘confessar’ sua
perversão sexual para um profissional para um profissional da ciência capaz de
analisar, classificar e tratar sua sexualidade (p. 26).
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[...] Freud teorizou sobre as “aberrações sexuais” e nomeou de “invertidas” aquelas
pessoas sujo “objeto sexual” era do mesmo sexo. [...] criou-se um novo discurso
acerca da sexualidade, no qual a homossexualiade era vista como anormal e
enigmática e a heterossexualidade como normal e aceitável. Ou seja, nesse
processo de medicalização das práticas sexuais, a homossexualidade, que
antes era entendida como um pecado, passou a ser vista como um desvio
psíquico e/ou biológico em oposição à “verdadeira” sexualidade: a
heterossexualidade. (p. 26)
Nessa mesma época, a bissexualidade surgiu como um novo termo para se referir
à sexualidade dos sujeitos que se relacionavam tanto com homens como com
mulheres não se identificavam nem com a heterossexualidade, nem com a
homossexualidade (Lewis, 2012).
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momentos no qual o autor aborda a temática da bissexualidade (p. 28).
Para os gregos, não era o sexo da pessoa amada que constituía o desejo, mas
sim sua beleza. [...] Inclusive, na sociedade grega não existiam categorias
classificatórias para as diferentes formas de amar e sentir prazer, não
havendo distinção entre heterossexualidade, homossexualidade e
bissexualidade (p. 29)
[...] Foucault [...] estava se referindo efetivamente aos homens e não às mulheres.
Inclusive, ao longo de seu livro ele pouco abordou a sexualidade da mulher grega.
Talvez isso tenha ocorrido devido à escassez de registros acerca dessa temática,
visto que na Grécia Antiga a mulher não era considerada um sujeito político, social
e intelectual (p. 29).
[...] na aristocracia japonesa feudal era comum que um samurai adulto, casado
com uma mulher, se envolvesse com um jovem para ensinar o código moral dos
samurais e iniciá-los sexualmente. Tais relações eram consideradas importantes
para manter o equilíbrio entre o ying (elemento feminino) e o yang (elemento
masculino) do sujeito (p. 30).
Na Roma Antiga, o homem também podia ter relações sexuais com ambos os
sexos. No entanto, a penetração deveria ser do homem na mulher, do mestre no
escravo e do homem romano no homem estrangeiro (p. 30)
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A prática bissexual também era comum em rituais de alguns povos indígenas e
tribos isoladas (p. 30)
Como foi possível acompanhar nessa seção, tanto na antiguidade grega, japonesa
e romana, como em alguns povos indígenas e tribos isoladas, as práticas sexuais
não se davam exclusivamente entre pessoas do sexo oposto. Muitas pessoas se
relacionavam com homens e mulheres simultaneamente ou alternadamente. No
entanto, como já mencionado anteriormente, não se usava o termo bissexualidade
para se referir a essas práticas, sendo este uso adotado somente na década de
1970 (p. 31)
Segundo April Callis (2009), o termo “bissexualidade” foi usado para descrever uma
prática ou desejo sexual somente no início do século XX (p. 31)
Desde o século XVII até o início do século XX, a expressão “bissexual” foi usada
para se referir a sujeitos com atributos biológicos ou anatômicos considerados
como femininos e masculinos (semelhantes a concepção atual de “intersexual) (p.
31).
[...] no final do século XIX, o termo “bissexual” começou a ser usado por
sexólogos para se referir a uma mistura de uma condição anatômica e um
estado psicológico. As pessoas bissexuais eram aquelas que expressavam
características psicológicas e anatomicamente masculinas e femininas (Callis,
2009). Richard von Kraff-Ebing chamou de “hermafroditismo psicossexual”
essa combinação psicológica de masculinidade e feminilidade (Lewis, 2012).
Posteriormente, essa noção foi popularizada por Freud (1980), que se referiu a um
“hermafroditismo psíquico” na sua obra “Três ensaios sobre a teoria da
sexualidade”[...] Freud explorou a noção de “sexualidade perverso polimorfa"
para se referir ao momento inicial da vida humana em que, segundo ele, a
pulsão sexual do sujeito não possuiria objeto fixo e até mesmo
independência desse objeto em função de suas possibilidades autoeróticas
(Oliveira, 2016). Somente no início do século XX que cientistas passaram a
usar o termo “bissexual” para se referir a pessoas que sentem atração por
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homens e mulheres. No entanto, a bissexualidade ainda não era considerada uma
categoria independente ou uma sexualidade, mas sim um estágio do
desenvolvimento. (Callis, 2009) (p. 31-32)
[...] vários coletivos de ativismo bissexual foram criados nos Estados Unidos
da América, como o Bisexual forum em Nova York e o Bisexual Center em São
Francisco. (p. 32)
No início dos anos 1980, foi reivindicado que o termo bissexual fosse
incluído nos nomes de organizações, conferências e paradas (Callis, 2009)
(p. 33)
[...]final dos anos 1970, fazer sexo com homens e mulheres era entendido
como uma prática “libertadora”. No entanto, quem se identifica como bissexual
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era visto como uma pessoa enrustida, “dentro do armário” ou “em cima do
muro” (p. 33).
A partir dos anos 1980, com o surgimento da AIDS - a chamada “peste gay” -
fazer sexo com homens e mulheres deixou de ser algo “libertador” e passou a
ser entendido como uma prática promíscua. Nesse momento, começou-se a
falar da “ponte bissexual do HIV” e, assim, a prática bissexual passou a ser
entendida como uma prática que contamina (p. 33).
[...] o movimento LGBT brasileiro ainda não se livrou das “brincadeiras maldosas”
que insistem em associar bissexualidade a enrustimento, promiscuidade,
contaminação e traição (p. 33).
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dar suporte para a noção de que a bissexualidade é apenas uma fase
transitória antes de uma pessoa desenvolver uma “sexualidade adulta” e
“verdadeira” (p. 36).
Esses achados corroboram com Camila Cavalcanti (2007), que afirma que os
discursos científicos sobre bissexualidade têm associado as práticas
bissexuais à transmissão de HIV (p. 36).
Essa noção de que a prática bissexual contamina e de que bissexuais são vetores
de doenças, parece ainda estar presente nos dias de hoje e ser reificada pelos
discursos da ciência biomédica (p. 36)
[...] por meio do Banco de Teses e Dissertações da Capes, foi possível encontrar
importantes contribuições brasileiras relacionadas à temática das bissexualidade
(p. 37).
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Outro trabalho importante encontrado foi a dissertação de mestrado de Camila
Cavalcanti (2007) intitulada de “Visíveis e Invisíveis: práticas e identidade
bissexual”.
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A tese de doutorado “A construção discursiva de masculinidades bissexuais:
um estudo em linguística queer” de Ismar Inácio dos Santos Filho (2012)
buscou compreender as performances de homens que se posicionam como
bissexuais em chats da internet de Recife (p. 39).
bissexual não declarado (se posiciona como heterossexual, mas procura relações
homoeróticas),
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pesquisou a bissexualidade a partir do movimento bissexual brasileiro ao analisar o
jornal do Núcleo Bis (Núcleo de Bissexuais de Brasília – DF)
Nessa pesquisa tomei por base a cartografia como uma perspectiva ético-
política de produção do conhecimento (p. 42). [...] foi mencionado na Introdução
de Mil Platôs de Deleuze e Guattari (2011) como um dos princípios do rizoma. [...]
foi retomado por autoras e autores brasileiras(os) (Rolnik, 2011; Passos, Kastrup, &
Escóssia, 2014) para denominar um novo modo de se fazer pesquisa, que não
compõe necessariamente um método, mas princípios que orientam o ato de
pesquisar.
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No intuito de organizar e analisar todo o material de campo, orientei-me pelas
estratégias da Análise Temática propostas pelas pesquisadoras Virginia Braun e
Victoria Clarke (2013) (p. 61).
TEMAS
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O termo monossexualidade tem sido usado para se referir à sexualidade das
pessoas que sentem atração por apenas um sexo e/ou gênero, como as
heterossexualidades e as homossexualidades (p. 66)
[...] muitas interlocutoras relataram que por serem bissexuais são frequentemente
associadas a fantasias sexualmente excitantes para homens cisgêneros
heterossexuais, como o ménage à trois. Inclusive isso é um artifício usado por
muitas lésbicas para deslegitimar as mulheres bissexuais, alegando que estas
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estariam reforçando as fantasias de homens cisgêneros e a própria objetificação
feminina (p. 75).
[...] essa ideia de que pessoas bissexuais são vetores de DST parece ser
também sustentada pelo discurso da saúde
Patologização das experiências bissexuais: “ a meta da terapia era descobrir se ela era
hétero ou lésbica”.
[...] uma pesquisa inglesa realizada com 5.706 mulheres apontou que mulheres
bissexuais são mais propensas a relatar problemas alimentares,
automutilação, depressão e ansiedade em relação às lésbicas, além de serem
mais jovens, mais pobres, e mais frequentemente se identificarem como trans,
minorias étnicas e fazerem uso de maconha (Colledge, Hickson, Reid, &
Weatherburn, 2015) (p. 81).
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um estudo brasileiro realizado no interior paulista com 2.282 estudantes do Ensino
Médio entre 12 e 20 anos que buscou conhecer as associações entre orientação
sexual e ideações/tentativas de suicídio [...] [evidenciou que] dentre os
adolescentes não heterossexuais, os que se auto identificam como bissexuais e
“outros” são mais vulneráveis a pensamentos e tentativas de suicídio. Do
total de 21 pessoas não heterossexuais que responderam ter tentado se
matar, entre elas 9 (42,9%) se identificam como bissexuais (Teixeira-Filho &
Rondini, 2012) (p. 81)
Políticas identitárias
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No entanto, a partir do final do século XX, algumas autoras feministas como
Judith Butler, Paul B. Preciado, Kimberlé Crenshaw e bell hooks passaram
a apontar limites das políticas identitárias no que se refere aos processos
de apagamento das diferenças, homogeneização e exclusão dos sujeitos
políticos (p. 85).
Para a autora, o lugar de fala não deve funcionar como uma forma de delimitar
quem pode ou não falar, mas como uma estratégia de reconhecer os diferentes
lugares desde onde cada pessoa fala (p. 91).
[...] os movimento sociais também têm seus regimes de verdade e suas regras
internas as quais exigem certas características do sujeito para que
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determinado discurso seja acolhido e entendido como verdadeiro (p. 90).
Lisa Diamond (2008) [...] afirmou por meio de um estudo longitudinal de 10 anos
que mulheres bissexuais e mulheres que não se identificam com nenhum
rótulo identitário apresentam uma maior tendência à fluidez do desejo. Nesse
sentido, observa-se que o desejo bissexual parece ter uma dimensão
inerentemente nômade (Deleuze & Guattari, 2012b), no sentido de não se fixar em
um dos termos do binário homem/mulher, mas transitar por eles e, por vezes, para
além
deles (pessoas não binárias, travestis e andróginas) (p. 96).
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a própria existência. Ou seja, não deve ser uma prisão, uma lei, uma verdade que
normalize e discipline os modos de vida (p. 97).
[..] não é possível presumir que toda prática lésbica seja revolucionária (como
no caso da violência doméstica entre dos movimentos assimilacionistas e de
lésbicas que reproduzem bifobia e transfobia) e nem que toda a
heterossexualidade seja normativa (como no caso de pessoas heterossexuais que
praticam BDSM, pessoas transexuais que são heterossexuais e pessoas
heterossexuais que praticam poliamor ou amor livre) Ou seja, a sexualidade de
uma pessoa não determina se suas práticas sexuais ou afetivas serão livres de
relações do poder (Foucault, 1988) (p. 101).
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Para Judith Butler (2003), a ideia de que existe uma “verdadeira sexualidade” é
estabelecida através de uma matriz heteronormativa que regula a continuidade
entre sexo, gênero e sexualidade. Assim, para que os sujeitos sejam inteligíveis,
eles devem manter uma coerência e uma continuidade heterossexual entre sexo,
gênero e sexualidade ao longo da vida. Por outro lado, aqueles que não atendem a
essas normas de inteligibilidade são considerados como falhas do desenvolvimento
ou como impossibilidade lógica, como no caso de pessoas lésbicas, gay,
bissexuais, trans e travestis (p. 109).
[..]~ a ideia de que existe uma “verdadeira sexualidade” também parece estar
sendo reproduzida por práticas
reguladoras nos movimentos lésbicos e gays que produzem sexualidades
coerentes de acordo com uma matriz de inteligibilidade. [...] parece existir uma
matriz homonormativa que estabelece o que seria uma “verdadeira
homossexualidade” e que limita os campos do aceitável, do dizível e do
compreensível. Assim, para que os sujeitos
homossexuais sejam inteligíveis, eles também devem manter uma coerência e
uma continuidade homossexual ao longo da vida entre sexo, gênero e
sexualidade.
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