Você está na página 1de 22

Jaeger (2018)

Pesquisar: Santos Filho, Ismar I. dos. (2012). A construção discursiva de


masculinidades bissexuais: um estudo em linguística queer. Tese Doutorado, Programa
de Pós-graduação em Letras, Universidade Federal de Pernambuco, Recife.

Melissa Bittencourt Jaeger (2018) - Experiência de minas bissexuais: políticas de


marginalização

Busca problematizar experiências de mulheres bissexuais e analisar práticas


e discursos que tem sustentado sua marginalização, inclusive nos espaços
LGBTs. Além disso, visa problematizar a implicação das políticas identitárias
nesse processo de marginalização” (p. 7)

“A imersão da pesquisadora no campo se deu a partir da perspectiva ético-


política da cartografia (p. 7)

O material de análise foi composto por três entrevistas realizadas com três
mulheres jovens bissexuais cisgêneras (Sofia, Emília e Nicole), além da
participação da pesquisadora em quatro atividades de ativismos relacionadas a
mulheres bissexuais (p. 7)

A organização do material foi inspirada nas estratégias de Análise Temática,


sendo que a análise em si foi realizada a partir de autores da filosofia da
diferença, das perspectivas queer, do feminismo negro e de teóricas e teóricos que
abordam a temática das bissexualidades (p. 7).

Com base nas experiências e nos discursos das interlocutoras foi possível
observar que a marginalização das mulheres bissexuais tem acontecido por
meio de mecanismos de apagamento, hipersexualização e patologização das
bissexualidades (p. 7).

[...] a marginalização das mulheres bissexuais tem acontecido tanto no território


das heterossexualidades como no território das lesbianidades (p. 7).

Jaeger (2018) 1
[...] as sexualidades dessas mulheres têm desorganizado o par binário
heterosseuxual/homossexual e aberto espaço para o reconhecimento de
outras sexualidades possíveis (p. 7).

Escrever é enfrentar o caos da linguagem” (p. 15)

No processo da escrita, sempre há algo não traduzível, não enunciável, algo que
escapa. Quando escrevo, faço escolhas num infindável mar de palavras (p. 15).

Segundo Deleuze (1997, p. 11(, “escrever é um caso de devir, sempre inacabado,


sempre em via de fazer-se, e que extravasa qualquer matéria vivível ou vivida (p.
15).

Adrianne Rich (2002, p. 17), é preciso “começar, assim, não por um continente,
por um país ou por uma casa, mas pela geografia mais próxima - o corpo” (p. 15).

O que interessa neste relato não são meus sentimentos e o que há de individual
neles, mas a singularidade do modo como algumas forças se movem em um
determinado contexto histórico. Interessa aqui como esses afetos - que reverberam
em mim e nessa dissertação - são atravessados pelo o que não é meu, por aquilo
que emana do contexto, das relações de poder, das lutas feministas, dos
movimentos LGBT+ (p. 16).

Eu frequentemente precisava explicar que os relacionamentos que tive com


homens não foram “uma mentira”, que eu não havia “me descoberto lésbica” e que
eu não estava vivendo, agora, minha “verdadeira sexualidade”. Foi a partir dessas
novas sensações que experimentei, de silenciamento, desconforto e
julgamento, em relação a minha sexualidade, que me motivei a pesquisar
acerca das experiências de mulheres bissexuais” (p. 19 - 20).

Problema de pesquisa

De fato, as práticas bissexuais têm sido relatadas ao longo do tempo de forma


marginalizada, como práticas ilegítimas por não se enquadrarem nas categorias
binárias da sexualidade (heterossexual e homossexual). Em função disso, as
práticas bissexuais têm sido invisibilizadas, consideradas como ambivalentes e
inviáveis tanto por pessoas heterossexuias como por pessoas gays e lésbicas
fazendo com que as bissexualidades ocupem uma zona ininteligível tanto no
território das heterossexualidades como no território das homossexualidades (p.
20).

Jaeger (2018) 2
[...] as bissexualidades têm sido pouco consideradas, questionadas e
problematizadas especificamente. De um modo geral, quando mencionadas,
aparecem em segundo plano, junto com a discussão das homossexualidades
e das lesbianidades ou como parte de uma lista de categorias (gays, lésbicas,
bissexuais, transexuais) ( Souza, 1996; Silva, 2007; Vieria, 2009; Nobre, 2012;
Ministério da Saúde, 2013). Geralmente, esses estudos estão relacionados a
homens ou à masculinidades, sendo raros os que se referem diretamente a
mulheres ou à feminilidade. Além disso, quando as bissexualidades são
consideradas, muitas vezes são associadas, pelos discursos psicanalíticos, a
uma fase imatura a ser superada (Delouya, 2003; Knobel, 1984; Vittar, 2008;
Piaxão, Decker, Fiorenzano & Ribeiro, 2001; Cucco, 2009) e, pelos discursos
de saúde, a vulnerabilidade, fatores de risco e AIDS/HIV (Souza, 1996;
Vasconcellos, 1996; Ferreira & Abreu, 1998; Toro-Afonso, Varas Díaz;
Andújar-Bello; Nieves-Rosa, 2006; Raxach, 2007) (p. 20).

[...] para realizar essa pesquisa, orientei-me por alguns questionamentos: Como se
dão as experiências de mulheres bissexuais? Quais as práticas e discursos têm
sustentado sua marginalização, inclusive no movimento LGBT+? Quais as relações
das políticas identitárias com a marginalização das bissexualidade? (p. 21).

Posicionamento teórico

[...] tomei por base as noções de jogos de verdade e relações de poder de


Michel Foucault (1977, 1988, 2004, 2012, 2014a, 2014b, 2014c). A partir dessas
noções analisei práticas e discursos que têm regulado e sustentado a
marginalização das bissexualidades nas sociedades ocidentais e produzido a ideia
do que seria uma “verdadeira sexualidade”, inclusive nos movimentos LGBT+ e
espaços feministas” (p. 21).

[...] me inspirei na noção de nomadismo, proposta por Gilles Deleuze e Felix


Guattari (2012b) no tratado de nomadologia”, para problematizar as relações das
políticas identitárias (que se baseiam em identidades fixas, homogêneas e
verdadeiras) com a marginalização das experiências de mulheres bissexuais.
Assim, considerei as contribuições de Rosi Braidotti (2002) ao articular a noção de
sujeito nômade para pensar a subjetividade como um processo dinâmico e em
constante transformação. Levei em conta ainda as considerações que Feliz
Guattari (1985) fez acerca dos microfascismos, para analisar as fantasias de

Jaeger (2018) 3
hegemonia, de grandeza e de colonização do outro, presentes nas políticas
identitárias tradicionais” (p. 21).

“Parti também das perspectivas queer (Butler, 2003; Preciado, 2014) e do


feminismo negro (Crenshaw, 2012; Bell Hooks, 2015; Ribeiro, 2017) para
problematizar os limites das políticas identitárias que foram apontadas pelas
mulheres bissexuais [...]” (p. 21).

Territórios das (bis)sexualidades

[...] a partir da noção de território de Gilles Deleuze e Félix Guattari (2012b),


problematizo o lugar mais ou menos estável que se produziu ao longo do tempos
acerca das sexualidades e, mais especificamente, das bissexualidades. Essa
noção nos permite pensar que não existe e nunca existiu uma verdade única
sobre as sexualidades e bissexualidade, mas sim movimentos que foram
constituindo esses territórios” (p. 24).

Processos de territorialização das sexualidades

Para problematizar o processo de territorialização das sexualidades, tomo por base


o livro História da Sexualidade I: a vontade de saber (1988), no qual Michel
Foucault analisou como os discursos e as relações de poder no ocidente
constituíram o território das sexualidades (p. 24).

Segundo Foucault (1988), a Igreja católica teve importante papel na análise e


na regulação das práticas sexuais. Isso se deu principalmente, a partir do século
XVII, quando a pastoral cristã, em resposta às Reformas Religiosa, investiu na
prática da confissão nos países católicos. O sacramento da confissão foi uma
maneira de controlar as práticas sexuais dos sujeitos e de prescrever regras que
cada um fizesse seu próprio julgamento. Desse modo, por meio da confissão, o
cristianismo provocou mudanças expressivas na maneira como os sujeitos viviam
sua sexualidade, reforçando um modelo baseado na monogamia, na procriação e
no casamento (p. 25).

A partir do século XVII, as práticas sexuais dos sujeitos passaram a ser


reguladas também desde um discurso racional dos Estados. Com o
surgimento dos aglomerados urbanos, considerados como um problema
econômico e político, os governos começaram a analisar e a controlar
quantitativamente a população por meio de estatísticas de natalidade, morbidade,
fecundidade e doença. Nesse contexto, a conduta sexual da população foi tomada

Jaeger (2018) 4
como uma importante categoria de análise para controlar os problemas decorrentes
do aumento demográfico ( Foucault, 1988) (p. 25).

Foucault (1988) chamou de biopoder essa nova forma de poder direcionada para
gerir a vida dos sujeitos. O biopoder se desenvolveu, por um lado, por meio das
disciplinas do corpo (no intuito de produzir corpos úteis e dóceis) e, por outro, por
meio da biopolítica da população (uma tentativa dos governos de controlar os
fenômenos biológicos e sociológicos da população) (p. 25)

Neste mesmo século, a ciência começou a ver a epistemologia sexual a partir de


uma sistema de oposições, e não mais de semelhanças e graus de
desenvolvimento. [...] a mulher não era mais entendida como uma variação inferior
e imperfeita do homem, mas como um outro sexo, totalmente diferente, com formas
e funções próprias. Desde então, passou-se a marcar as diferenças biológicas
entre homem e mulher, produzindo-se dois sexos opostos (dimorfismo sexual): o
masculino e o feminino (p. 25).

[...] a partir do século XIX, foi constituído um novo campo do conhecimento que
buscou analisar e classificar cientificamente as práticas sexuais. Foucault
(1988) chamou de Ciencia Sexual o conjunto de discursos científicos e
institucionais que buscou produzir uma verdade sobre o sexo. A partir desse novo
saber, as práticas sexuais passaram a ser pensadas em termos médicos e
classificadas como normais e patológicas (p. 25-26).

O sujeito “desviante” (até então ‘pecador’) devia a partir de agora ‘confessar’ sua
perversão sexual para um profissional para um profissional da ciência capaz de
analisar, classificar e tratar sua sexualidade (p. 26).

Em 1869, o médico austro-húngaro Karolyn Maria Benkert criou a categoria


“homossexual”, que passou a ser usada para marcar aqueles sujeitos que se
relacionavam sexualmente com pessoas do mesmo sexo (Lewis, 2012). Em 1886,
o psiquiatra alemão Richard von Krafft-Ebing, classificou as sexualidades como
normais e perversas em sua inciclopédia intitulada “Psicopatia do sexo”, que se
tornou uma referência para médicos e juízes. Nesse contexto, a masturbação foi
patologizada e o ânus, a boca e a mão passaram a ser controlados pelas políticas
de antimasturbação e antihomossexualidade do século XIX (Preciado, 2015). Em
1897, Havelock Ellis usou o termo “inversão sexual” para referir-se à feminilidade
de alguns homens (Vieira, 2009) (p. 26).

Jaeger (2018) 5
[...] Freud teorizou sobre as “aberrações sexuais” e nomeou de “invertidas” aquelas
pessoas sujo “objeto sexual” era do mesmo sexo. [...] criou-se um novo discurso
acerca da sexualidade, no qual a homossexualiade era vista como anormal e
enigmática e a heterossexualidade como normal e aceitável. Ou seja, nesse
processo de medicalização das práticas sexuais, a homossexualidade, que
antes era entendida como um pecado, passou a ser vista como um desvio
psíquico e/ou biológico em oposição à “verdadeira” sexualidade: a
heterossexualidade. (p. 26)

Segundo Foucault (1988, p. 112), o aparecimento das “espécies e subespécies de


homossexualidade, inversão, pederastia e ‘hermafroditismo psíquico’’ no século
XIX permitiu, por um lado, um controle das “perversões”, mas, por outro,
possibilitou a constituição do que ele chamou de “discurso de reação". [...] no
século XX as pessoas que foram classificadas como homossexuais começaram a
reivindicar sua legitimidade e a se auto identificar com as próprias categorias
médicas que as desqualificavam. (p. 26 - 27).

Nessa mesma época, a bissexualidade surgiu como um novo termo para se referir
à sexualidade dos sujeitos que se relacionavam tanto com homens como com
mulheres não se identificavam nem com a heterossexualidade, nem com a
homossexualidade (Lewis, 2012).

Práticas bissexuais ao longo do tempo

Na mitologia grega e romana, o que hoje chamamos de bissexualidade fazia parte


da sexualidade das deusas e dos deuses. Além disso, na Grécia Antiga era comum
um homem casado com uma mulher ter relação sexual e afetiva com um
adolescente ou jovem adulto (p. 27).

[...] O amor entre homens ajudava a aumentar as qualidades do jovem,


tornando-o um cidadão respeitável e sábio [...] Além disso, a ligação entre
homens fazia parte de uma estratégia militar, pois pensava-se que unidos
afetivamente eles se protegeriam e não abandonariam a unidade em
momentos difíceis [...] o relacionamento entre dois homens era admitido
socialmente e tinha o suporte de instituições pedagógicas e militares (Foucault,
1984) (p. 27).

Essa “bissexualidade grega” foi problematizada por Michel Foucault (1984) em


seu livro História da Sexualidade II: o uso dos prazeres, sendo esse um dos poucos

Jaeger (2018) 6
momentos no qual o autor aborda a temática da bissexualidade (p. 28).

No capítulo Erótica, Foucault afirma que, na antiguidade grega, amar alguém


do próprio sexo ou alguém do sexo oposto não era entendido como escolhas
opostas ou excludentes (p. 28)

Essa maneira distinta e mais fluida de experimentar a sexualidade na Grécia Antiga


nos faz questionar a fixidez das categorias modernas que definem as práticas
sexuais. Além disso, nos permite problematizar os binarismos que constituem a
sexualidade no ocidente, incluindo a noção moderna de definir a sexualidade com
base no sexo/gênero da pessoa desejada (p. 28).

Para os gregos, não era o sexo da pessoa amada que constituía o desejo, mas
sim sua beleza. [...] Inclusive, na sociedade grega não existiam categorias
classificatórias para as diferentes formas de amar e sentir prazer, não
havendo distinção entre heterossexualidade, homossexualidade e
bissexualidade (p. 29)

[...] Foucault [...] estava se referindo efetivamente aos homens e não às mulheres.
Inclusive, ao longo de seu livro ele pouco abordou a sexualidade da mulher grega.
Talvez isso tenha ocorrido devido à escassez de registros acerca dessa temática,
visto que na Grécia Antiga a mulher não era considerada um sujeito político, social
e intelectual (p. 29).

Apesar disso, encontrei um estudo chamado “As práticas ‘homossexuais


femininas’ na antiguidade grega” de Gisele Moreira da Mata (2009) que analisa
indícios de práticas sexuais entre mulheres presentes nas obras da poetisa
Safo da ilha grega de Lesbos (p. 29).

[...] na aristocracia japonesa feudal era comum que um samurai adulto, casado
com uma mulher, se envolvesse com um jovem para ensinar o código moral dos
samurais e iniciá-los sexualmente. Tais relações eram consideradas importantes
para manter o equilíbrio entre o ying (elemento feminino) e o yang (elemento
masculino) do sujeito (p. 30).

Na Roma Antiga, o homem também podia ter relações sexuais com ambos os
sexos. No entanto, a penetração deveria ser do homem na mulher, do mestre no
escravo e do homem romano no homem estrangeiro (p. 30)

Jaeger (2018) 7
A prática bissexual também era comum em rituais de alguns povos indígenas e
tribos isoladas (p. 30)

[...] diversos povos indígenas, da Ásia às Américas, valorizavam que os xamãs


tivessem relacionamentos com homens e mulheres como uma forma de
entender melhor os membros da tribo (Lewis, 2012) (p. 31)

Como foi possível acompanhar nessa seção, tanto na antiguidade grega, japonesa
e romana, como em alguns povos indígenas e tribos isoladas, as práticas sexuais
não se davam exclusivamente entre pessoas do sexo oposto. Muitas pessoas se
relacionavam com homens e mulheres simultaneamente ou alternadamente. No
entanto, como já mencionado anteriormente, não se usava o termo bissexualidade
para se referir a essas práticas, sendo este uso adotado somente na década de
1970 (p. 31)

Da etimologia ao ativismo bissexual

Segundo April Callis (2009), o termo “bissexualidade” foi usado para descrever uma
prática ou desejo sexual somente no início do século XX (p. 31)

Desde o século XVII até o início do século XX, a expressão “bissexual” foi usada
para se referir a sujeitos com atributos biológicos ou anatômicos considerados
como femininos e masculinos (semelhantes a concepção atual de “intersexual) (p.
31).

[...] no final do século XIX, o termo “bissexual” começou a ser usado por
sexólogos para se referir a uma mistura de uma condição anatômica e um
estado psicológico. As pessoas bissexuais eram aquelas que expressavam
características psicológicas e anatomicamente masculinas e femininas (Callis,
2009). Richard von Kraff-Ebing chamou de “hermafroditismo psicossexual”
essa combinação psicológica de masculinidade e feminilidade (Lewis, 2012).
Posteriormente, essa noção foi popularizada por Freud (1980), que se referiu a um
“hermafroditismo psíquico” na sua obra “Três ensaios sobre a teoria da
sexualidade”[...] Freud explorou a noção de “sexualidade perverso polimorfa"
para se referir ao momento inicial da vida humana em que, segundo ele, a
pulsão sexual do sujeito não possuiria objeto fixo e até mesmo
independência desse objeto em função de suas possibilidades autoeróticas
(Oliveira, 2016). Somente no início do século XX que cientistas passaram a
usar o termo “bissexual” para se referir a pessoas que sentem atração por

Jaeger (2018) 8
homens e mulheres. No entanto, a bissexualidade ainda não era considerada uma
categoria independente ou uma sexualidade, mas sim um estágio do
desenvolvimento. (Callis, 2009) (p. 31-32)

O sexólogo Havelock Ellis, por exemplo, acreditava que os sujeitos iniciavam a


vida como bissexuais, com características heterossexuais e homossexuais, mas
com o tempo sentiriam mais atração por um sexo. Para Freud, de modo
semelhante, os sujeitos teriam uma “predisposição originariamente
bissexual”, mas com o amadurecimento se tornariam heterossexuais ou
homossexuais.[...] Assim, por muito tempo, as práticas chamadas bissexuais não
foram classificadas como uma sexualidade em si, mas nomeadas alternadamente
nos termos da heterossexualidade e da homossexualidade [...] a bissexualidade
não foi considerada como uma categoria sexual para o discurso científico,
mas entendida como um estágio, uma posição intermediária ou uma pré-
sexualidade (p. 32).

Conforme mencionado na seção anterior, os sujeitos que foram identificados como


homossexuais usaram das categorias e conceitos da medicina para se articularem
como movimento político [...] no caso da bissexualidade, por não haver essas
categorias e conceitos, a articulação do movimento bissexual aconteceu de
modo mais lento e cresceu a partir da insatisfação com o movimento gay e
lésbico (p. 32).

Segundo Elisabeth Sara Lewis (2012), os sujeitos começaram a se auto identificar


como bissexuais no início dos anos 1970.

[...] vários coletivos de ativismo bissexual foram criados nos Estados Unidos
da América, como o Bisexual forum em Nova York e o Bisexual Center em São
Francisco. (p. 32)

No início dos anos 1980, foi reivindicado que o termo bissexual fosse
incluído nos nomes de organizações, conferências e paradas (Callis, 2009)
(p. 33)

No Brasil, a emergência de coletivos que problematizam a questão da


bissexualidade se deu somente a partir dos anos 2000 (p. 33)

[...]final dos anos 1970, fazer sexo com homens e mulheres era entendido
como uma prática “libertadora”. No entanto, quem se identifica como bissexual

Jaeger (2018) 9
era visto como uma pessoa enrustida, “dentro do armário” ou “em cima do
muro” (p. 33).

A partir dos anos 1980, com o surgimento da AIDS - a chamada “peste gay” -
fazer sexo com homens e mulheres deixou de ser algo “libertador” e passou a
ser entendido como uma prática promíscua. Nesse momento, começou-se a
falar da “ponte bissexual do HIV” e, assim, a prática bissexual passou a ser
entendida como uma prática que contamina (p. 33).

[...] o movimento LGBT brasileiro ainda não se livrou das “brincadeiras maldosas”
que insistem em associar bissexualidade a enrustimento, promiscuidade,
contaminação e traição (p. 33).

Território das bissexualidades na produção científica brasileira

[...] realizei um levantamento bibliográfico junto à BVS (Biblioteca Virtual em


Capes Saúde) e ao Catálogo de Teses e Dissertações da usando o descritor
“bissexualidade” (p. 34)

Na busca realizada junto a BVS, foram encontrados 3.114 títulos em bases de


dados internacionais e apenas 54 em bases de dados brasileiras. A partir
dessa leitura, foi possível observar que a bissexualidade tem sido
academicamente abordada no Brasil sobretudo a partir das seguintes áreas
sexuais. temáticas: (1) psicanálise, (2) saúde e (3) identidade e direitos. De um
modo geral, foi possível observar que a bissexualidade, quando mencionada
nesses resumos, aparece em segundo plano, junto com a discussão da
homossexualidade e, em alguns casos, faz parte de uma lista de categorias
(gays, lésbicas, bissexuais, transexuais). Raramente a bissexualidade é
considerada, questionada e problematizada especificamente. Além disso,
mostrou-se relevante a quantidade de estudos (15) que mencionam
especificamente homens ou masculinidade, sendo que apenas cinco dos
resumos se referem diretamente a mulheres ou a feminilidade (p. 35).

Dos 54 títulos brasileiros encontrados, a maioria (31, ou seja, mais da metade) é


oriunda da área da psicanálise [...] desses estudos se referem à bissexualidade
como uma combinação psicológica de masculinidade e feminilidade, reafirmando a
noção de “hermafroditismo psíquico” proposta por Freud (p. 35)

Ao associar a bissexualidade como uma etapa do desenvolvimento a ser


superada ou a uma pré-sexualidade, esses discursos psicanalíticos parecem

Jaeger (2018) 10
dar suporte para a noção de que a bissexualidade é apenas uma fase
transitória antes de uma pessoa desenvolver uma “sexualidade adulta” e
“verdadeira” (p. 36).

No que se refere aos discursos da saúde, 15 estudos vincularam a


bissexualidade a AIDS/HIV e quatro relacionaram bissexualidade à saúde LGBT,
vulnerabilidades e fatores de risco (p. 36).

Esses achados corroboram com Camila Cavalcanti (2007), que afirma que os
discursos científicos sobre bissexualidade têm associado as práticas
bissexuais à transmissão de HIV (p. 36).

Essa noção de que a prática bissexual contamina e de que bissexuais são vetores
de doenças, parece ainda estar presente nos dias de hoje e ser reificada pelos
discursos da ciência biomédica (p. 36)

[...] pensar as bissexualidades apenas a partir de temáticas como HIV/AIDS,


vulnerabilidade e fatores de risco, contribui para a marginalização das
práticas bissexuais (p. 37).

Segundo Elizabeth Sara Lewis (2012), muitos dos estudos sobre as


bissexualidades mais aumentam a discriminação do que auxiliam a emancipação
de sujeitos que vivenciam práticas bissexuais (p. 37).

[...] por meio do Banco de Teses e Dissertações da Capes, foi possível encontrar
importantes contribuições brasileiras relacionadas à temática das bissexualidade
(p. 37).

[...] Fernando Seffner (2003), em sua tese de doutorado “Derivas da


Masculinidade: representações, identidades e diferenças na
masculinidade bissexual”, analisou a masculinidade bissexual por meio de
uma rede postal formada por homens bissexuais de diversas cidades
brasileiras (p. 37 - 38).

[...] a maioria dos informantes se esforçava para não se apresentar de


forma afeminada e preferia visibilizar as relações com mulheres , deixando
no anonimato as relações com outros homens. Para o autor, esse fato o fez
pensar que a masculinidade bissexual se construía mais a partir da
negação da homossexualidade do que da afirmação de um estilo de vida
próprio (p. 38).

Jaeger (2018) 11
Outro trabalho importante encontrado foi a dissertação de mestrado de Camila
Cavalcanti (2007) intitulada de “Visíveis e Invisíveis: práticas e identidade
bissexual”.

Sua pesquisa buscou identificar diferentes discursos acerca da bissexualidade


a partir de um jornal impresso confeccionado pelo Núcleo Bis (Núcleo
Bissexuais de Brasília-DF) (p. 38).

A autora discutiu os 10 mitos acerca da bissexualidade que são apontados


neste jornal: (1) bissexualidade não existe, (2) bissexuais são emocionalmente
imaturos e não sabem o que querem, (3) bissexuais são promíscuos, eles/elas
querem sexo e não compromisso, (4) bissexuais sofrem menos preconceitos,
(5) bissexuais sofrem preconceito apenas quando têm relação sexual/afetiva
com pessoa do mesmo sexo, (6) um homem bissexual vai deixa-lo por uma
mulher e vice-versa. (7) bissexuais espalham HIV/AIDS, (8) são todos/as
casados/as, enrustidos ou fazem swing, (9), bissexuais são pessoas que se
relacionam sexual/afetivamente com travestis, transexuais ou transgêneros,
(10) bissexuais são melhores do que o resto da humanidade, são mais livres
ou são o futuro em direção ao qual caminhamos (p. 38 - 39).

A pesquisa de Elisabeth Sara Lewis (2012) analisou o processo de sair do


armário e os preconceitos e estereótipos bifóbicos por meio da narrativa de
três mulheres ativistas bissexuais do Rio de Janeiro em sua dissertação de
mestrado “Não é uma fase: construções identitárias em narrativas de ativistas
LGBT que se identificam como bissexuais

[...] a autora organizou as discriminações em duas categorias: o apagamento da


bissexualidade e a super-sexualização das pessoas que se identificam como
bissexuais

[...] os mecanismos de apagamento da bissexualidade são: (1) a negação total


da existência da bissexualidade, (2) a insistência em classificar as pessoas
como heterossexuais/homossexuais e (3) a noção da bissexualidade como
uma fase (p. 39)

Já a super-sexualização se dá pelos estereótipos de que as pessoas que se


identificam como bissexuais são poliamorosas, promíscuas e infiéis. De acordo
com a autora, a super- sexualização cria uma visão de que bissexuais são
pessoas portadoras de doenças e não são confiáveis (p. 39).

Jaeger (2018) 12
A tese de doutorado “A construção discursiva de masculinidades bissexuais:
um estudo em linguística queer” de Ismar Inácio dos Santos Filho (2012)
buscou compreender as performances de homens que se posicionam como
bissexuais em chats da internet de Recife (p. 39).

A partir das análises o autor pensou as masculinidades bissexuais em seis faces:

bissexual não declarado (se posiciona como heterossexual, mas procura relações
homoeróticas),

bissexual declarado direto,

bissexual declarado hegemônico (assume a masculinidade hegemônica),

bissexual declarado não hegemônico (passivo no intercurso sexual),

homossexual queer (sente atração física por mulheres, mas se relaciona


afetivamente com homens) e

bissexual falso (compreende que a identidade bissexual o constrói como homem e


não gay) (p. 39).

Marianna Barbosa Almeida (2015) analisou a bissexualidade feminina por meio


do BlogSouBi e investigou as demandas por visibilidade em sua dissertação
“Bissexualidades femininas: repertórios entre jogos de (in)visibilidade” (p. 39
- 40)

A análise de 134 postagens foi dividida em alguns marcadores de análise:


nomeações (para abordar os termos usados que associam a bissexualidade com
jogo, brincadeira, fantasia, promiscuidade e indecisão), origem da bissexualidade
(para apresentar as justificativas e explicações sobre a origem da bissexualidade),
práticas que definem a bissexualidade características de bissexuais, e demandas
públicas que favorecem os direitos de bissexuais (p. 40)

De modo geral, as teses e dissertações brasileiras apresentadas abordaram questões


relacionadas à identidade bissexual, ao processo de invisibilização das
bissexualidades e aos preconceitos, discriminações, mitos e estereótipos que
deslegitimam as bissexualidades. A maioria dessas pesquisas obtive seus materiais de
campo a partir da internet, com exceção de Fernando Seffner (2003) que trabalhou
com uma rede postal e de Sara Elizabeth Lewis (2012) que entrevistou pessoalmente
três mulheres bissexuais. De todos estes trabalhos, apenas Camila Cavalcanti (2007)

Jaeger (2018) 13
pesquisou a bissexualidade a partir do movimento bissexual brasileiro ao analisar o
jornal do Núcleo Bis (Núcleo de Bissexuais de Brasília – DF)

No que se refere à temporalidade dessas pesquisas, é interessante notar que seu


surgimento no Brasil se deu a partir dos anos 2000, mesma época em que apareceram
os primeiros coletivos brasileiros de bissexuais. Isso sugere que as problematizações
acadêmicas acerca das bissexualidades aconteceram de maneira concomitante à
emergência do movimento bissexual brasileiro (p. 40).
Perspectivas ético políticas da cartografia

Nessa pesquisa tomei por base a cartografia como uma perspectiva ético-
política de produção do conhecimento (p. 42). [...] foi mencionado na Introdução
de Mil Platôs de Deleuze e Guattari (2011) como um dos princípios do rizoma. [...]
foi retomado por autoras e autores brasileiras(os) (Rolnik, 2011; Passos, Kastrup, &
Escóssia, 2014) para denominar um novo modo de se fazer pesquisa, que não
compõe necessariamente um método, mas princípios que orientam o ato de
pesquisar.

Diferente do modelo hegemônico de produção de conhecimento da ciência


moderna, a cartografia não visa isolar o “objeto” de estudo de suas conexões
com o mundo, mas sim considerar o cenário no qual determinado “objeto”
está inserido. [...] critica a cisão entre “sujeito” e “objeto” do conhecimento,
valorizando a força dos encontros de quem pesquisa com o campo (p. 42).

Nesse sentido, considerei tanto a trajetória do ativismo bissexual brasileiro


quanto os jogos de verdade que constituem o território das sexualidades nas
sociedades ocidentais (p. 42).

Do mesmo modo, inspirei-me nas perspectivas feministas que, de maneira


semelhante à cartografia, têm criticado a noção de neutralidade científica e
apontado para a importância de localizar o conhecimento. [...] acredito ser
importante localizar minha posição como uma mulher que, assim como as
interlocutoras dessa pesquisa, também sente atração por mais de um gênero (p.
43).

Estratégias de análise do material

Jaeger (2018) 14
No intuito de organizar e analisar todo o material de campo, orientei-me pelas
estratégias da Análise Temática propostas pelas pesquisadoras Virginia Braun e
Victoria Clarke (2013) (p. 61).

[...] o processo de análise se dá de maneira semelhante a um trabalho artesanal de


bricolage (Deleuze & Guattari, 2011), no qual é necessário fazer escolhas dos
elementos que farão parte da montagem final. [...] quero dizer que a análise que
faço nessa dissertação acerca das experiências de mulheres bissexuais é apenas
uma das histórias possíveis de ser contada (p. 62).

No que se refere aos procedimentos da pesquisa, o registro do material


aconteceu por meio de diário de campo e gravador de áudio, sendo que
posteriormente os áudios foram transcritos e analisados.

Para realizar a análise, primeiramente transcrevi os áudios de diário de campo,


entrevistas e participações em rodas de conversas. Posteriormente fiz uma leitura
cuidadosa do material, buscando aspectos importantes e pistas para organização
da análise [...] comecei a pensar em possíveis temas que me auxiliassem a narrar
e a analisar as experiências das mulheres bissexuais. [...] Eles não foram
pensados anteriormente, mas sim emergiram do meu encontro e das minhas
inquietações como pesquisadora com o campo e com o material analisado (p. 62).

TEMAS

Marginalização das mulheres bissexuais

No subtema apagamento das bissexualidades, analiso as situações em que as


bissexualidades das interlocutoras são consideradas como inexistentes ou como
uma indecisão. Também discuto o processo de invisibilização das bissexualidades
dessas mulheres frente ao binário heterossexual/homossexual e a pressão para
escolha de um lado desse binário. No subtema hipersexualização das
bissexualidades analiso algumas fantasias associadas às bissexualidades das
interlocutoras, como a noção de que as pessoas bissexuais são poligâmicas, infiéis
e não querem se envolver em relacionamentos afetivos. Também, discuto o
processo de objetificação e de fetichização das interlocutoras bissexuais e
problematizo a associação recorrente de que essas são vetores de doença. Por
fim, no subtema patologização das experiências bissexuais analiso a implicação
da psicologia na reprodução da bifobia (p. 65).

Jaeger (2018) 15
O termo monossexualidade tem sido usado para se referir à sexualidade das
pessoas que sentem atração por apenas um sexo e/ou gênero, como as
heterossexualidades e as homossexualidades (p. 66)

Já o termo não monossexualidade tem sido usado para se referir à


sexualidade das pessoas que sentem atração por mais de um sexo e/ou
gênero, como as bissexualidades, as pansexualidades e as sexualidades
fluídas (p. 66)

E o termo monossexismo tem sido usado para se referir à crença social de


que as monossexualidades (heterossexualidades e homossexualidades) são
mais verdadeiras e mais legítimas que as não monossexualidades (p. 66)

[...] Shiri Eisner (2013) estendeu ainda mais os efeitos da heteronormatividade


nas sociedades ocidentais e considerou que além de pressupor que todas as
pessoas sejam heterossexuais e cisgêneras, a heteronormatividade também
estabelece como norma a monossexualidade (p. 66).

Kenji Yoshino (2000) sugere que esse processo de invisibilização das


bissexualidades acontece por meio de um "contrato epistêmico de
apagamento bissexual", no qual tanto pessoas que se identificam como
heterossexuais, como pessoas que se identificam como gays e lésbicas
compactuam com este contrato (p. 67)

Nota-se que as bissexualidades das interlocutoras são frequentemente


deslegitimadas, negadas, invisibilizadas e consideradas como sexualidades falsas
ou inexistentes por não se enquadrarem no binário heterossexual/homossexual
presente nas sociedades ocidentais (p. 70).

Hipersexualização das bissexualidades: “você é uma hetero safada”.

[...] a bissexualidade é vista como uma necessidade de se relacionar com


mais de um gênero e não como uma possibilidade. Desta forma, a pessoa
bissexual simplesmente é entendida como incapaz de ser fiel e monogâmica (p.
72).

[...] muitas interlocutoras relataram que por serem bissexuais são frequentemente
associadas a fantasias sexualmente excitantes para homens cisgêneros
heterossexuais, como o ménage à trois. Inclusive isso é um artifício usado por
muitas lésbicas para deslegitimar as mulheres bissexuais, alegando que estas

Jaeger (2018) 16
estariam reforçando as fantasias de homens cisgêneros e a própria objetificação
feminina (p. 75).

Segundo Shiri Eisner (2013), a mídia e a pornografia tradicional têm grande


responsabilidade pela objetificação e fetichização das mulheres bissexuais.
Desde o século XVIII até os dias de hoje, a bissexualidade feminina tem estado
presente na pornografia escrita, desenhada, fotografada ou filmada como objeto de
desejo do homem cisgênero heterossexual (p. 75).

[...] no raciocínio de muitas lésbicas, as mulheres bissexuais são consideradas


como potenciais transmissoras de doenças por se relacionarem com homens
cisgêneros, esses entendidos como promíscuos e sujos (Facchini, 2004) (p. 77).

[...] o discurso lésbico se aproxima do discurso heterossexual, já que ambos


consideram as pessoas bissexuais como vetores de doença e sentem medo de ser
contaminados por elas (p. 77).

[...] essa ideia de que pessoas bissexuais são vetores de DST parece ser
também sustentada pelo discurso da saúde

De acordo com o artigo 64 da Portaria 2712 de 2013 do Ministério da Saúde


(Brasil, 2013), que define o regulamento técnico de procedimentos
hemoterápicos é considerado “inapto temporário” para doar sangue
“homens que tiveram relações sexuais com outros homens e/ou as
parceiras sexuais destes (p. 78).

Patologização das experiências bissexuais: “ a meta da terapia era descobrir se ela era
hétero ou lésbica”.

De acordo com um estudo realizado na Austrália com 4824 adultos, as pessoas


bissexuais possuem pior índice de saúde mental quando comparadas a gays,
lésbicas e heterossexuais, principalmente no que se refere a ansiedade e
depressão(Jorm, Korten, Rodgers, Jacomb, & Christensen, 2002) (p. 81).

[...] uma pesquisa inglesa realizada com 5.706 mulheres apontou que mulheres
bissexuais são mais propensas a relatar problemas alimentares,
automutilação, depressão e ansiedade em relação às lésbicas, além de serem
mais jovens, mais pobres, e mais frequentemente se identificarem como trans,
minorias étnicas e fazerem uso de maconha (Colledge, Hickson, Reid, &
Weatherburn, 2015) (p. 81).

Jaeger (2018) 17
um estudo brasileiro realizado no interior paulista com 2.282 estudantes do Ensino
Médio entre 12 e 20 anos que buscou conhecer as associações entre orientação
sexual e ideações/tentativas de suicídio [...] [evidenciou que] dentre os
adolescentes não heterossexuais, os que se auto identificam como bissexuais e
“outros” são mais vulneráveis a pensamentos e tentativas de suicídio. Do
total de 21 pessoas não heterossexuais que responderam ter tentado se
matar, entre elas 9 (42,9%) se identificam como bissexuais (Teixeira-Filho &
Rondini, 2012) (p. 81)

Nicole também comentou que muitas pessoas bissexuais recebem diagnósticos


errados de transtornos mentais que estão relacionados a um “senso instável de
identidade” ou a “comportamentos sexuais de risco” como Transtorno de
Personalidade Borderline e Transtorno de Humor Bipolar. Em outros casos, se
a pessoa tem o diagnóstico desse transtorno, a bissexualidade é considerada como
um sintoma. “Então, você nunca vai estar estabilizado porque você continua com
esse sintoma da sua doença que é sua sexualidade, sua afetividade” (p. 82).

Durante a psicoterapia, psicólogas e psicólogos, por vezes, não reconhecem a


bissexualidade como uma sexualidade "verdadeira", podendo conduzir seu
trabalho no sentido de "descobrir" se a pessoa é heterossexual ou lésbica. [...]
alguns psicólogos e psicólogas têm associado a bissexualidade a um
desequilíbrio, a uma imaturidade, a uma adolescência tardia, a uma confusão, a
um problema a ser corrigido ou a um sintoma psicopatológico de identidade
instável ou de comportamento de risco (p. 82).

No entanto, deve-se considerar que nem toda a psicologia têm reproduzido


essa perspectiva de sujeito. Desde o final dos anos 80, a Psicologia Social
Crítica tem problematizado o posicionamento colonizador e patologizante da
psicologia positivista e tem se comprometido com o contexto socio-histórico-
político brasileiro (p. 82).

Políticas identitárias

As políticas identitárias podem ser pensadas como uma estratégia política de


determinados grupos, que se baseiam em identidades em comum, para lutar por
direitos e reconhecimentos (como o movimento feminista, o movimento negro, o
movimento LGBT, as religiões e as torcidas organizadas) (Alves, 2017) (p. 85).

Jaeger (2018) 18
No entanto, a partir do final do século XX, algumas autoras feministas como
Judith Butler, Paul B. Preciado, Kimberlé Crenshaw e bell hooks passaram
a apontar limites das políticas identitárias no que se refere aos processos
de apagamento das diferenças, homogeneização e exclusão dos sujeitos
políticos (p. 85).

As perspectivas queer podem contribuir bastante com essa discussão [...]


Tais perspectivas surgiram como uma reação aos pressupostos cisgênero,
heterossexual e colonial do feminismo hegemônico e como uma ruptura
com o próprio sujeito político do feminismo (p. 87).

Essa ruptura consistiu em desestabilizar os fundamentos da teoria e da


política de identidade e em propor outros modos de resistência à
norma, menos essencializantes, totalizantes e excludentes, e mais
articulados a partir das noções de diferença ou de margem do que de
identidade (Preciado, 2014). Autoras como Judith Butler (2003) e Paul B.
Preciado (2011, 2014) têm apontando o silenciamento das diferenças e a
reprodução da lógica competitiva e segregacionista das políticas
identitárias nos movimentos feministas e LGBT (p. 87).

Segundo Djamila Ribeiro (2017), a noção de “lugar fala” surgiu a partir do


feminismo negro para entender as diferentes realidades que ficaram implícitas por
muito tempo no discurso feminista e para marcar as condições sociais que
permitem certos sujeitos acessarem certos lugares e outros não (p. 90).

Para a autora, o lugar de fala não deve funcionar como uma forma de delimitar
quem pode ou não falar, mas como uma estratégia de reconhecer os diferentes
lugares desde onde cada pessoa fala (p. 91).

Kimberlé Crenshaw (2012), por exemplo, propôs o conceito


“interseccionalidade” no intuito de considerar diferenças de raça, classe e gênero
na vida das mulheres. A proposta da interseccionalidade foi uma tentativa de
marcar e complexificar as diferenças intragrupais no contexto de discriminação
contra a mulher e de reconhecer essas diferenças para se construir políticas (p.
90).

[...] os movimento sociais também têm seus regimes de verdade e suas regras
internas as quais exigem certas características do sujeito para que

Jaeger (2018) 19
determinado discurso seja acolhido e entendido como verdadeiro (p. 90).

De modo geral, o conceito de “lugar de fala” tem se apresentado de maneira


polissêmica tanto nos movimentos sociais como no debate acadêmico. Pode-se
considerar que por um lado, ele tem contribuído para explicitar as diferentes
condições sociais dos sujeitos políticos e de reconhecê-las na construção de
estratégias políticas. Por outro lado, esse conceito tem sido usado em alguns
contextos do movimento social como uma forma de desautorizar a militância e a
fala de sujeitos políticos que não fazem parte de determinados marcadores sociais
(p. 91).

“as pessoas que se identificam como heterossexuais ou homossexuais não têm


que justificar suas performances identitárias, mas as pessoas que se identificam
como bissexuais devem ‘provar sua bissexualidade’” (Lewis, 2012, p. 179). Isso
demonstra que os efeitos de regulação dos regimes de verdade incidem de
maneira diferente na subjetividade das pessoas bissexuais (p. 93).

Pode-se pensar que considerar a bissexualidade “duradoura” e relatar


relacionamentos afetivos com homens e mulher é uma forma de autorizar a
identidade bissexual, combater os discursos da bissexualidade como uma fase ou
uma indecisão e propor uma sexualidade possível para além do binário
heterossexual/homossexual. No entanto, paradoxalmente,
essas estratégias podem hierarquizar as bissexualidades e reproduzir a noção de
que para ser bissexual é preciso ter se envolvido afetiva e sexualmente com
homens e mulheres (p. 95 - 96).

Lisa Diamond (2008) [...] afirmou por meio de um estudo longitudinal de 10 anos
que mulheres bissexuais e mulheres que não se identificam com nenhum
rótulo identitário apresentam uma maior tendência à fluidez do desejo. Nesse
sentido, observa-se que o desejo bissexual parece ter uma dimensão
inerentemente nômade (Deleuze & Guattari, 2012b), no sentido de não se fixar em
um dos termos do binário homem/mulher, mas transitar por eles e, por vezes, para
além
deles (pessoas não binárias, travestis e andróginas) (p. 96).

Segundo Foucault (2004), a identidade pode ser útil politicamente se ela


favorecer as relações sociais; mas ela não deve se tornar mais importante que

Jaeger (2018) 20
a própria existência. Ou seja, não deve ser uma prisão, uma lei, uma verdade que
normalize e discipline os modos de vida (p. 97).

Ideologia Lésbica: "tu devia pegar só mina, essa é a moral"

Por um lado, as feministas lésbicas impulsionaram a problematização do


sistema heterossexual, como Monique Wittig o fez em “O pensamento hétero”
(1980) e tensionaram as feministas heterossexuais a reconhecerem seus
privilégios. Mas por
outro lado, acabaram afirmando a lesbianidade como única possibilidade de
uma prática política feminista legítima (Oliveira, et al., 2009) (p. 101).

[..] não é possível presumir que toda prática lésbica seja revolucionária (como
no caso da violência doméstica entre dos movimentos assimilacionistas e de
lésbicas que reproduzem bifobia e transfobia) e nem que toda a
heterossexualidade seja normativa (como no caso de pessoas heterossexuais que
praticam BDSM, pessoas transexuais que são heterossexuais e pessoas
heterossexuais que praticam poliamor ou amor livre) Ou seja, a sexualidade de
uma pessoa não determina se suas práticas sexuais ou afetivas serão livres de
relações do poder (Foucault, 1988) (p. 101).

Judith Butler (2003), também alertou sobre a importância de os movimentos


feministas fazerem uma análise autocrítica de seus gestos totalizantes e
problematizarem suas posições colonizadoras. Para a autora, localizar a
opressão das mulheres em uma única forma de dominação (o patriarcado) foi
insuficiente para o movimento feminista, por se basear em uma noção binária e
essencialista de homem e mulher (p. 103).

É possível analisar essas questões de falta de reconhecimento das mulheres


bissexuais e de reprodução da bifobia nos movimentos lésbicos a partir do termo
homonormatividade. No Brasil, a homonormatividade tem sido descrita como
“formas de experimentação normativas das sexualidades LGBT” (Pocahy, 2012) e
como uma incorporação das normas heterossexuais pela população LGBT
(Oliveira, 2013) (p. 109).

Jaeger (2018) 21
Para Judith Butler (2003), a ideia de que existe uma “verdadeira sexualidade” é
estabelecida através de uma matriz heteronormativa que regula a continuidade
entre sexo, gênero e sexualidade. Assim, para que os sujeitos sejam inteligíveis,
eles devem manter uma coerência e uma continuidade heterossexual entre sexo,
gênero e sexualidade ao longo da vida. Por outro lado, aqueles que não atendem a
essas normas de inteligibilidade são considerados como falhas do desenvolvimento
ou como impossibilidade lógica, como no caso de pessoas lésbicas, gay,
bissexuais, trans e travestis (p. 109).

[..]~ a ideia de que existe uma “verdadeira sexualidade” também parece estar
sendo reproduzida por práticas
reguladoras nos movimentos lésbicos e gays que produzem sexualidades
coerentes de acordo com uma matriz de inteligibilidade. [...] parece existir uma
matriz homonormativa que estabelece o que seria uma “verdadeira
homossexualidade” e que limita os campos do aceitável, do dizível e do
compreensível. Assim, para que os sujeitos
homossexuais sejam inteligíveis, eles também devem manter uma coerência e
uma continuidade homossexual ao longo da vida entre sexo, gênero e
sexualidade.

Jaeger (2018) 22

Você também pode gostar