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Lewis (2012)

Elizabeth Sara Lewis


“NÃO É UMA FASE”: CONSTRUÇÕES IDENTITÁRIAS EM NARRATIVAS DE
ATIVISTAS LGBT QUE SE IDENTIFICAM COMO BISSEXUAIS

A presente pesquisa analisa as construções identitárias performativo


discursivas de três ativistas LGBT que se identificam como bissexuais em
narrativas sobre o processo de sair do armário e estereótipos, preconceitos e
discriminações bifóbicos (p. 7).

Os dados foram gerados em entrevistas individuais com três mulheres


bissexuais que participam de uma associação de ativismo e conscientização
LGBT do Rio de Janeiro (p. 7).

A análise se concentra sobre como as três ativistas constroem suas performances


identitárias bissexuais como permanentes e não promíscuas (p. 7)

Nessas construções, veremos (1) como devem provar que suas performances
identitárias não são “só uma fase” para serem aceitas, mas assim reforçam
a ideia de identidades fixas/estáveis, (2) como suas construções identitárias
reproduzem e/ou subvertem a tendência de definir a sexualidade com base
no sexo/gênero da(s) pessoa(s) desejada(s) e (3) como as construções de
performances bissexuais não-promíscuas excluem e/ou abrem outras
possibilidades da diversidade sexual (p. 7).

Os dados analisados foram gerados em um campo etnográfico realizado com


o Grupo Arco-Íris (GAI), uma associação de conscientização e ativismo LGBT
do Rio de Janeiro Os dados principais consistem em três entrevistas
individuais com três jovens ativistas que se identificam como mulheres
bissexuais: “Olímpia” (17 anos), “Nádia” (21 anos) e “Flávia” (31 anos) (p. 14)

A presente pesquisa imbrica os campos da Linguística Aplicada (Moita Lopes


1998, 2006, 2009a; Signorini 1998; Cook 2003; Fabrício 2006; Paiva 2009),
Linguística Queer (Livia e Hall 1997) e Antropologia (Geertz 1988; Marcus
1995; Copans 1998), os olhares da Teoria Queer (Butler 1990, 1993) e das

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Epistemologias Bissexuais (Udis-Kessler 1991, 1995; Däumer 1992; Eadie
1993; Garber 1995; Ault 1996; Prabhudas 1996; Pramaggiore 1996), a
abordagem da Análise das Narrativas (Labov 1972; Linde 1993; Riessman
1993; Bastos 2005) e o arcabouço teórico-analítico das Táticas de
Intersubjetividade (Bucholtz e Hall 2003, 2004, 2005), incorporando também
contextualizações etnográfico-históricas (p. 15).

Moita Lopes propõe uma Linguística Aplicada transdisciplinar que tenta


“criar inteligibilidade sobre problemas sociais em que a linguagem tem um
papel central" (Moita Lopes 2006: 14, grifos no texto fonte), vinculando o
trabalho a epistemologias e teorizações relevantes para o mundo atual, e
construir alternativas para o presente” com relação a esses problemas
(Moita Lopes 2009: 34)

Em consonância com essa visão, um aspecto importante da geração dos


agentes dados e da análise é o compromisso ético e de ação política com
as entrevistadas: levar-lhes os resultados da análise para propor
alternativas em diálogo com elas (Rajagopalan 2003), a fim de melhorar
a situação marginalizada das pessoas que se identificam como bissexuais
dentro do movimento LGBT.[...] Dessa maneira, as entrevistas, o campo
etnográfico, as contextualizações histórias e as análises da presente
pesquisa “envolvem interesse e respeito pela voz do outro” (Moita Lopes
1998: 104) [...] se considera essa pesquisa como transdisciplinar (p.
16)

O posicionamento teórico da pesquisa

Esta pesquisa tem como ponto de partida duas ideias inter-relacionadas:


primeiro, a visão da Teoria Queer (Butler 1990, 1993) de que as
identidades não são expressões de alguma essência fixa interna, mas são
dinâmicas e construídas discursivo-performativamente na linguagem
e nas interações e, segundo, a perspectiva de que as categorias da
sexualidade que usamos (heterossexualidade, homossexualidade,
bissexualidade, etc.) não são fatos naturais, mas são sócio-histórico-
culturalmente construídas (p. 16).

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Consoante Butler (1990, 1993), as identidades de gênero e sexualidade não
são expressões de alguma propriedade essencial do corpo ou da mente; são
constituídas no decorrer do tempo através de o que uma pessoa faz e diz
repetidamente e, assim, assumem uma aparência de “naturalidade. [...]
gênero e a sexualidade são performativos: produzem o que nomeiam” (p. 16
-17).

[...] estas performances discursivas repetidas são limitadas dentro de


um sistema de restrições sociais. Esse sistema é a matriz heteronormativa
[...] (p. 17).

[...] dentro do movimento LGBT frequentemente funciona outro sistema de


restrições sociais: uma matriz homonormativa que exige que as
pessoas
expressem desejo sexual e afetividade por pessoas do “mesmo”
sexo/gênero e
marginaliza as que não se encaixem nesse perfil.

A desconstrução da oposição presumida entre homossexualidade e


heterossexualidade é importante porque nos permite “começar a
imaginar modos alternativos de pensar e viver” (Sullivan 2003: 51)
Como observa Sedgwick, todas as categorias de sexualidade que
usamos hoje em dia são inadequadas porque “a sexualidade se
estende em tantas dimensões que não podem, de modo algum, ser
bem descritas em termos do gênero do objeto escolhido” (p. 18).

Pergunta de pesquisa e objetivos

As narrativas sobre o processo de sair do armário e as narrativas e falas


sobre estereótipos, preconceitos e discriminações foram escolhidos
como o foco da análise por duas razões principais (p. 18).

[...] as narrativas sobre o processo de sair do armário são fontes


particularmente ricas de construções identitárias sobre a
sexualidade
(Liang 1997; Wood 1997; Morrish e Sauntson 2007) (p. 18)

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As narrativas nos oferecem uma oportunidade excepcional para
estudar as relações entre discursos, identidades e sociedades
(Fabrício e Bastos 2009) (p. 18)

O objetivo desta pesquisa é, sob os olhares da Teoria Queer (Butler


1990, 1993) e das Epistemologias Bissexuais (Udis-Kessler 1991,
1995; Däumer 1992; Eadie 1993; Garber 1995; Ault 1996; Prabhudas
1996 e Pramaggiore 1996), estudar como as ativistas entrevistadas
constroem discursivo-performativamente suas identidades de
bissexuais em narrativas sobre o processo de sair do armário e vis-à-
vis preconceitos e discriminações a fim de propor estratégias para
fomentar a aceitação das performances identitárias bissexuais dentro
do Grupo Arco-Íris e do movimento LGBT em geral (p. 19)

[...] "política bissexual" cujo trabalho, consoante Eadie, "se trata tanto de
desmontar todo o aparato que mantém a díade heterossexual/homossexual
quanto criar um terceiro termo para adicionar ele" ([1993) 1999: 122) (p.
20).

Justificativa e relevância da pesquisa

tem uma relevância tanto de ordem teórico-acadêmica quanto de ordem


social.

Em relação à ordem teórico-acadêmica [...] o número de trabalhos sobre


a bissexualidade ser muito menor do que o número de trabalhos sobre a
homossexualidade, a transexualidade e a travestilidade. Nos próprios
Estudos LGBT e Estudos Queer, a bissexualidade é geralmente
mencionada só como parte de uma lista (p. 20)

Angelides é crítico dessa falta de estudos profundos sobre a


bissexualidade nos Estudos Queer, observando que “ignorar o papel
que a categoria
da bissexualidade tem tido na formação da estrutura
hetero/homossexual, o projeto da desconstrução queer não tem
alcançado, em modos importantes, seus objetivos” (2006: 126) (p. 20)

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De modo semelhante, a falta de estudos queer sobre a bissexualidade
tem reforçado o binário heterossexual/homossexual que a Teoria Queer
supostamente pretende desestabilizar (p. 20).

[...] relevância social desta pesquisa. As pessoas que se identificam como


bissexuais frequentemente sofrem dificuldades de preconceitos e
discriminações dentro do movimento LGBT. Ao estudar como essas
pessoas controem suas identidades e lidam com preconceitos, espera-se
ajudar a melhorar a sua situação. [...] Dessa maneira, como mencionamos,
as descobertas desta pesquisa serão levadas de volta às ativistas
entrevistadas para refletirmos juntas sobre como descontruir as noções
atuais das sexualidades e mudar sua situação estigmatizada e
marginalizada dentro do Grupo Arco-Íris e do movimento LGBT (p. 21).

Etimologia da palavra "bissexual"

Historicamente, a palavra "bissexual" tem três usos.

Primeiro [...] do século XVII ao início do século XX, foi usada para se referir
a pessoas cujos corpos tinham uma combinação de atributos biológicos ou
anatômicos considerados femininos e masculinos – pessoas que na
atualidade chamamos de hermafroditas ou intersexuais (p. 26).

Segundo, o termo "bissexual" foi usado no campo da psicanálise, ao final


do século XIX e no século XX, para se referir às pessoas com uma suposta
combinação de masculinidade e feminilidade psicológica, em vez de
anatômica. Esta visão foi sugerida inicialmente pelo psiquiatra e sexólogo
austríaco-alemão Richard von Krafft-Ebing, usando a terminologia
"hermafroditismo psicossexual" e usada nas obras iniciais do sexólogo
britânico Havelock Ellis. (ver Storr 1999) (p. 26).

Esta noção de hermafroditas psicossexuais foi desenvolvida e


popularizada por Freud, usando o termo "bissexual", na sua obra Três
ensaios sobre a teoria da sexualidade ([1905] 2006) [...]Freud
argumentou que esta bissexualidade (feminilidade e masculinidade)
psicológica fazia parte de uma "predisposição bissexual" inata que

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levava os indivíduos a se desenvolverem como heterossexuais ou
homossexuais enquanto amadureciam (ver Freud [1905] 2006;
Heenen-Wolff 2010) (p. 26).

Terceiro [...] usada para indicar um desejo sexual que “combina” ou “une”
a heterossexualidade e a homossexualidade (p. 26).

[...] a palavra "homossexual" foi inventada em 1869, pelo médico suíço


Karoly Maria Benkert, e [...] a palavra "heterossexual" foi inventada
pelo mesmo médico, anos depois (p. 27).

As práticas bissexuais em tribos e povo indígenas

-Em várias tribos na África e na Oceania, por


exemplo, os Kivaï da África Ocidental e os Sambia e os Baruya da Nova Guiné,
acreditava-se que aos jovens que recebiam por via oral ou anal durante anos o
esperma de um homem adulto seriam transmitidas as virtudes da
masculinidade (p. 31)

-Nas tribos camaronesas Beti e Bassa, durante períodos de problemas com


a colheita, as mulheres casadas com homens se reuniam e dançavam tocando
seus
órgãos genitais mutuamente de uma maneira para que os clitóris ficassem
alongados como pênis pequenos, com o objetivo de convocar as forças da
fertilidade da terra e a coesão da tribo (ver Mengel 2009) (p. 31-32).
-Em outros povos indígenas por todo o mundo, da Ásia às Américas, a
bissexualidade nos xamãs era valorizada porque se acreditava que lhes
ajudava a ter uma melhor
compreensão de todos os membros do povo do que uma pessoa monossexual
(p. 32).
-[...] com esses poucos exemplos podemos ver que
os modelos da bissexualidade, como nota Mengel, frequentemente
compartilham a noção de fortalecer o corpo e/ou o espírito através de
promover a coexistência
ou a transcendência dos princípios ideologicamente associados com a
masculinidade e a feminilidade, o que é semelhante às noções de equilíbrio
entre yin e yang no Japão antigo (p. 32).

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A invenção da bissexualidade como identidade e do/a bissexual como sujeito
-[...] as informações que tenho encontrado sobre as primeiras instâncias do
uso da palavra “bissexual” como um rótulo identitário sugerem que este uso
teve origem nos Estados Unidos da América (p. 33).

Segundo Tucker, o rótulo identitário “bissexual” foi reivindicado


publicamente pela primeira vez no início dos anos 70, para promover a
visibilidade e a aceitação das pessoas bissexuais (p. 33).

-Nos Estados Unidos naquela década, o ativismo para a liberdade sexual, ou


“liberação gay”, se concentrava na homossexualidade, particularmente nos
homens brancos de classe média que se identificavam como gays (p. 33)

Muitas mulheres que se identificavam como lésbicas sentiam que as


questões tratadas eram relevantes só para homens e que suas
preocupações não estavam; sendo consideradas, e, portanto, foram
para os movimentos feministas [...] (p. 33).

[...] pessoas não brancas identificando-se como homossexuais


sentiam que suas preocupações sobre racismo não estavam sendo
consideradas, e foram para os movimentos baseados na raça como
aqueles de conscientização negra (p. 34).

[...] muitas pessoas identificando-se como bissexuais se sentiam


excluídas dos movimentos para a liberdade sexual em parte pela falta
de problematização da bissexualidade e priorização das preocupações
dos/as ativistas identificando-se
como bissexuais e em parte por causa da não inclusão da palavra
“bissexual” nos nomes dos grupos

-[...] as pessoas que se identificam como bissexuais (e as pessoas que são


identificadas como bissexuais por causa de suas práticas sexuais muitas vezes
são o alvo de discriminações duplas. Frequentemente sofrem
discriminações por pessoas que se identificam como heterossexuais e pelas
que se identificam como homossexuais, por não se enquadrarem dentro das
categorias binárias normativas da sexualidade: ou heterossexual, ou
homossexual (p. 35).

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-Para Garber ([1995] 1999), muitas das discriminações contra a bissexualidade
e pressões de se encaixar em um dos lados do binário
heterossexual/homossexual vêm do fato de a bissexualidade perturbar essas
“certezas” da heterossexualidade e homossexualidade (p. 35).
-É ingênuo pensar que um grupo minoritário que sofre
discriminações não tenha seus próprios preconceitos. Mesmo dentro dos
grupos de “minorias sexuais” que lutam contra a normatização heterossexual,
operam
outras relações de poder resultando em outros processos
internos de normatização (p. 35).

O desconforto com aquilo que não é facilmente


encaixado no binário não provém simplesmente de um medo da
ambiguidade como sugere Garber, mas de um medo de perder a
coesão dentro do próprio movimento LGBT (p. 35).

Tais preconceitos refletem em parte a ideia que o banimento da


“ameaça” heterossexual alimentará a identidade coletiva
(homossexual) do grupo e a força política do movimento (p. 36).

-Podemos notar que tais discriminações e a pressão de se encaixar em um


lado ou outro do binário são possibilitados pela maneira na qual as identidades
sexuais e os sujeitos sexualizados são definidos hoje em dia – pelo
sexo/gênero do/a parceiro/a ou sujeito
desejado (p. 36).

Paradigmas modernos: estudos e teorizações sobre a bissexualidade

-Segundo Coleman, existem três paradigmas modernos para a compreensão


da bissexualidade.

No primeiro, são reconhecidas distinções da


“orientação sexual dicotômica (heterossexualidade/homossexualidade)
ou tricotômica (heterossexualidade-bissexualidade-homossexualidade
[...]

Esse paradigma dominou o século XX, como vimos anteriormente,


e era fortemente vinculado ao pensamento patologizante que

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escraviza a época: a homossexualidade e a bissexualidade eram
consideradas doenças, e a heterossexualidade como "normal"
porque oferecia a possibilidade da reprodução (p. 37).

[...] No segundo paradigma, em vez de reconhecer só duas ou três


categorias da sexualidade humana, ela é concebida como um contínuo
[...] (p. 37).

[...] porém, não vai além da noção que os genitais do objeto de


desejo determinam a "orientação sexual" do sujeito desejante [...]
exemplificada pelo pensamento de kinsey e de Klen [...] (p. 37)

No terceiro paradigma, é questionada a pressuposição básica que a


sexualidade seja determinada pelos genitais do objeto do desejo (p.
37).

Essa visão rompe com o determinismo biológico, reconhecendo que


uma pessoa pode estar atraída a outras razões que vão além do
sexo biológico, como a identidade de gênero e o papel sexual social
(ver Coleman [1994, 1998] 1999) (p. 37)

-Enfim, nos primeiros dois paradigmas, podemos ver um movimento


para construir a
bissexualidade e no terceiro um movimento para desconstruí-la (p. 37).

Escala Kinsey
-Os estudos científicos mais conhecidos sobre a bissexualidade foram
realizados pelo biólogo
estadunidense Alfred Kinsey (1894-1956) [...]

-Kinsey realizou duas sondagens extensivas sobre a sexualidade


humana, Sexuality in the Human Male (1948) e Sexuality in the
Human Female (1953), e usou os dados dessas pesquisas para
desenvolver uma escala para “mesurar” a orientação sexual dos
seres humanos, baseada nas experiências de vida e reações
fisiológicas dos/as participantes (p. 38).

[...] no sistema de sete graus da Escala Kinsey, os extremos


designam a monossexualidade de pessoas “exclusivamente”

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heterossexuais ou homossexuais,
com vários graus intermediários de o que hoje chamamos de
bissexualidade (p. 38).

Na Escala, o número 0 designa uma pessoa “exclusivamente”


heterossexual e o número 6, uma pessoa “exclusivamente”
homossexual. O
número 3 representa uma pessoa “igualmente” heterossexual e
homossexual. O
número 1 indica uma pessoa “predominantemente” heterossexual e
somente
“incidentalmente” homossexual, e o número 5 é, ao contrário,
“predominantemente” homossexual e “incidentalmente”
heterossexual. Finalmente, o número 2 representa uma pessoa
“predominantemente” heterossexual, mas com experiências
homossexuais “mais incidentais”, e o número 4 indica uma pessoa
“predominantemente” homossexual, mas com
experiências heterossexuais “mais incidentais” (Kinsey, et. al. 1948:
639, 641).

-Ao classificar as pessoas em uma das categorias, Kinsey levava em


consideração experiências sexuais concretas e “reações
psicossexuais”, ou seja, desejos ou excitação baseada em estímulos
físicos, visuais, mentais, etc (p. 38).
-Esse autor frisa que as sete classificações devem ser usadas só como
uma ferramenta para pensar a sexualidade humana para além do binário

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heterossexual/homossexual ou da tríade heterossexual-bissexual-
homossexual (p. 39).
-Adicionalmente, reconhece a fluidez temporal da sexualidade, notando
que uma pessoa pode ser classificada em categorias diferentes durante
períodos diferentes da vida (p. 39).
-Na sua época, o pensamento de Kinsey era extremamente inovador (e
controverso), particularmente pelas visões da sexualidade humana como
um contínuo, a noção que a sexualidade não é fixa, mas pode mudar com o
decorrer do tempo; insistência que a heterossexualidade não é o
comportamento majoritário que parece ser; sugestão que todo ser humano
é o que hoje chamamos de bissexual ou tem “tendências” bissexuais; e pela
insistência que as práticas homossexuais não são patológicas (p. 39-40).
-Porém, nas suas considerações sobre o que hoje chamamos de
bissexualidade, Kinsey só incluiu experiências sexuais concretas
classificadas em dois grupos – com homens ou com mulheres –, e fatores
“psicossexuais” como excitação e desejo. Não levava em consideração
afetividades, preferências para certos atos sexuais ou performances
identitárias além do binário de experiências com homens ou mulheres, as
maneiras nas quais as pessoas se identificam ou como constroem sua
própria sexualidade, etc (p. 40).

-Para Kinsey, a bissexualidade era uma mistura de homossexualidade


e
heterossexualidade; o autor nunca desenvolveu uma teorização das
sexualidades
humanas para além dessas duas categorias baseadas no sexo/gênero do
objeto
desejado e a mistura delas. Adicionalmente, não há lugar na Escala de
Kinsey
para reconhecer que as mesmas práticas sexuais (ou “atos genitais”)
podem
significar coisas muito diferentes para pessoas diferentes (ver Sedgwick
1990) (p. 40).

A Grade de Orientação Sexual de Klein

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-Fritz Klein (1932- 2006), um psiquiatra austríaco-estadunidense que fazia
pesquisa sobre a sexualidade humana e era ativista que lutava para os
direitos das pessoas bissexuais, propôs essa grade no livro The Bisexual
Option: A Concept of One Hundred Percent Intimacy (1978) (p. 40)

[...] foi publicado em um momento histórico de conflito em


relação à bissexualidade, no qual vários movimentos de ativismo
político baseados na identificação como bissexual tinham sido
estabelecidos, mas muitos médicos, psiquiatras e psicólogos não
consideravam a bissexualidade como uma "verdadeira orientação
sexual", frequentemente insistindo que as pessoas que se
identificavam como bissexuais estavam simplesmente negando sua
homossexualidade

Klein combate tais noções no livro, dizendo que "a bissexualidade


não é nem a homossexualidade disfarçada, nem a
heterossexualidade disfarçada. É um outro modo de expressão
sexual. Embora contenha elementos de comportamento
heterossexual e homossexual, é um modo de ser em si... ([1978]
1993: 7) (p. 41).

-Klein propõe uma grade com sete componentes da orientação sexual


(no eixo vertical): (A) atração sexual, (B) comportamento sexual
(experiências sexuais realizadas), (C) fantasias sexuais, (D)
preferência emocional, (E) preferência social, (F) preferência de vida, e
(G) auto identificação. Cada uma dessas variáveis é avaliada em três
períodos da vida da pessoa (no eixo horizontal): o passado (toda a vida
até um ano atrás), o presente (últimos doze meses) e o ideal (como a
pessoa gostaria que fosse). Cada variável em cada período temporal é
avaliada com um grau de 1 a 7, parecido aos sete graus da Escala Kinsey.

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-Embora a Grade de Klein possa ser vista de certa maneira como um passo
adiante com respeito à Escala de Kinsey, continua problematizando a
sexualidade humana como uma questão só de preferência para homens
e/ou mulheres (ou para pênis e/ou vaginas), ligada à questão das categorias
identitárias de heterossexualidade e homossexualidade. Adicionalmente,
apresenta esses sete fatores como elementos separados constituindo a
sexualidade, em vez de componentes inextricavelmente interrelacionados (p.
42-43).

O modelo da fita de Möbius de Garber

-Nos anos 1990, vários teóricos/as começaram a problematizar a


bissexualidade e desenvolver as “Epistemologias Bissexuais” [...] (p. 43).
-Uma dos/as epistemólogos/as bissexuais mais influentes é Marjorie Garber,
autora de Vice Versa: Bisexuality and the Eroticism of Everyday Life
-Na visão de Garber, a bissexualidade representa a própria natureza do
erotismo. “Erotismo é o que escapa, o que transgride as normas, desfaz
as categorias, questiona fronteiras. Não pode ser encarnado em um
manual, uma tabela, um teste de laboratório, ou um manifesto. ‘Ser’ um/a
bissexual é um uso impossível do verbo” (Garber [1995] 1999: 141). Para a
autora, a bissexualidade é inerentemente transgressiva e desconstrutiva, e

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mostra a impossibilidade de
categorizar a sexualidade humana (p. 44).
-Em vez de usar o binário heterossexual/homossexual para entender a
sexualidade humana, Garber ([1995] 1999) sugere simplesmente partir da
sexualidade como uma categoria geral. Propõe um modelo tri-dimensional
parecido a uma fita de Möbius, no qual “as categorias da heterossexualidade
e homossexualidade não são mais radicalmente distintas, mas escorrem dentro
e através de si mesmas” (Angelides 2001: 3), mostrando a fluidez
inclassificável da sexualidade humana.

Porém, para Garber, essa sexualidade humana é a bissexualidade, e


éa
bissexualidade que cria a heterossexualidade e a homossexualidade.

-Angelides [...] Reconhece que, por um lado, tal inversão - a


heterossexualidade ser uma combinação dessas duas - é importante como o
primeiro passo no processo de desconstrução (ver Derrida 1972). Poré, o autor
critica Garber por reificar a bissexualidade como uma sexualidade [...] (p. 44).

Apesar da sua asserção inicial de que é inútil tentar definir a


bissexualidade como uma combinação ou unificação da
heterossexualidade e da homossexualidade ou como um ponto no
contínuo entre os dois extremos do binário, Garber esquece que é
igualmente inútil definir a bissexualidade como uma categoria em si que
representa todo o contínuo da sexualidade humana (p. 45).

-[...] o que é necessário, à Foucault, não é nos perguntar o que a


bissexualidade é, mas o que a bissexualidade pode fazer como categoria
política e/ou ponto de partida epistemológico (p. 45).
-Como observa Bornstein, de qualquer modo, se aceitarmos as categorias da
orientação sexual baseadas unicamente no gênero – heterossexual, homossexual
ou bissexual – nos negamos a possibilidade de fazer uma interrogação profunda
das nossas verdadeiras preferências sexuais” ([1994] 1995: 38) (p. 46).
-Como observa De Neuter:
o amor não se conjuga necessariamente com o desejo. Existem homens e
mulheres que
não podem amar aqueles ou aquelas com quem fazem o amor e que não

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podem desejar e
fazer o amor com aqueles ou aquelas que amam. Na nossa cultura hoje, esta
clivagem é
considerada um sintoma. (2010: 79)(p. 47).
-O problema é que essas duas categorias [heterossexualidade e
homossexualidade] têm se tornado os dois grandes eixos a partir dos anos 1970, e
que por causa da insistência nesse binário, as pessoas que se identificam
como bissexuais (e qualquer pessoa que não quer se encaixar em um dos
lados dos extremos), frequentemente sofrem de problemas de discriminações
(p. 47).

Teorias Queer e Epistemologias Bissexuais


-A Teoria Queer, que procura desconstruir, desnaturalizar e desestabilizar os
binários de sexo, gênero e sexualidade, e as -Epistemologias Bissexuais, que
buscam usar a bissexualidade como ponto de partida para tais desestabilizações,
são particularmente relevantes para falar das performances identitárias
bissexuais dentro dessa visão não-essencialista (p. 27).

Teorias Queer
-"etimologia da palavra [...] No passado seu significado era "estranho", mas com
o decorrer do tempo começou a ser usada como uma palavra depreciativa para
falar das pessoas que faziam performances identitárias não-heterossexuais [...]
foi reapropriada pelos movimentos LGBT para sublinhar que ser diferente da norma
heterossexual não era anormal(p. 27).

-Posteriormente, a palavra queer emprestou seu nome a uma teoria que


emergiu ao início dos anos 90, através de uma relação circular entre o trabalho
acadêmico de teóricas como Judith Butler (1990, 1993) e Eve Kosofsky
Sedgwick (1990 1994), que foram influenciadas pelas obras de Michel Foucault,
pelo pós estruturalismo, pela desconstrução derrideana, pela teoria feminista e
pelos estudos LGBT, e o ativismo de movimentos políticos como Queer Nation e
Act Up, que se apropriaram do trabalho teórico dessas autoras

-[...] dois usos atuais paradoxais da palavra “queer”: a partir dos anos 90, queer
começou a ser usado como uma palavra guarda-chuvas para facilitar a referência a

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toda performance identitária não-heteronormativa, mas “[i]ntelectualmente, se
refere ao que não está alinhado com nenhuma identidade em particular e que
resiste à categorização” (Sauntson 2008: 271-272) (p. 50).

Judith Butler e as bases da Teoria Queer


A performatividade do gênero e do sexo
-No livro Gender Trouble: Feminism and the Subversion of Identity (1990), um
texto canônico da teoria queer e do feminismo pós-moderno e pós estrutural
(terceira onda), Butler desenvolve a teoria da performatividade de gênero (p. 50).

Para ela, o gênero é uma construção sócio-histórico-cultural e discursiva


(p. 50).

[...] o gênero não é uma propriedade essencial, inata ou pré-discursiva das


pessoas, é produzido (em parte) pelos atos de fala que o nomeiam (p. 50).

Butler sugere, então, a seguinte “definição” de


gênero: “O gênero é a estilização repetida do corpo, um conjunto de atos
repetidos no interior de uma estrutura reguladora altamente rígida, [os
quais] se cristaliza[m] no tempo para produzir a aparência de uma
substância, de uma classe natural de ser” (p. 50).

-Butler mostra que o sexo também é uma construção sócio-histórico-cultural,


(re)produzido no discurso e nas repetições. Embora mais de dez por cento da
população tenha variações cromossômicas que não se encaixam nitidamente nas
categorias de XX (fêmea) e XY (macho), criamos um sistema de classificação com
somente essas duas categorias (ver Butler 1990; Fausto-Sterling 1993, 2000a,
2000b) (p. 50).

O sexo é tomado como um “dado imediato”, um “dado sensível” ou


“características
físicas” pertencentes à ordem natural. Mas o que acreditamos ser uma
percepção física e direta é só uma construção mítica e sofisticada,
uma “formação imaginária” que reinterpreta as características físicas
(em si mesmas tão neutras como outras, mas marcadas por um sistema
social) por meio da rede de relações em que são percebidas (Wittig 1981:
48, apud Butler [1990] 2003: 166) (p. 51).

Lewis (2012) 16
Para Butler, como para Foucault, o corpo não tem um sexo até o
discurso lhe dar
este significado, no contexto das relações de poder (p. 51).

Portanto, visto que o sexo também é uma construção histórico-sócio


cultural, não podemos considerar o gênero como a “interpretação
cultural” do sexo biológico (p. 51).

Dos atos de fala performativos de Autin à performatividade de Butler


-Para explicar o fenômeno da “criação” discursiva do gênero, Butler se vale
das teorias de Austin (1962) (p. 52).

Para Austin, existem elocuções constativas que são ou verdadeiras ou


falsas, por exemplo, “Está chovendo”, e elocuções performativas que
não descrevem, relatam ou constatam nada e que não são nem
verdadeiras nem falsas (p. 52).

Ao final do livro, porém, Austin argumenta que na verdade as elocuções


constativas também são performativas, porque realizam o ato de
informar (ver Austin 1962 (p. 52).

Como observa Hall, “essa é uma conclusão revolucionária, porque


toda elocução deve, portanto, ser vista como ação” (2000: 184) – toda
elocução é performativa (p. 52).

-Para Butler, essas elocuções performativas criam as “realidades” de


sexo/gênero que percebemos: “A linguagem é investida do poder de criar ‘o
socialmente real’ por meio dos atos de locução dos sujeitos falantes” ([1990]
2003: 167) (p. 52).

[...] a linguagem é performativa porque tem o poder de produzir


aquilo que nomeia (p. 52).

Butler tem uma visão não-essencialista dos significados das palavras


[...] A palavra em si não significa nada; o significado vem da matriz
cultural na qual é inserida e como é usada e repetida (p. 52).

A performance de gênero, portanto, não é um ato ou evento singular; é


uma produção ritualizada e repetida (p. 52).

Lewis (2012) 17
Butler explica que “O gênero não deve[ria] ser construído como
uma identidade estável ou um lócus de [agência] do qual decorrem
vários atos; em vez disso, o gênero é uma identidade tenuemente
constituída no tempo, instituído num espaço externo por meio de
uma repetição estilizada de atos” ([1990] 2003: 200, grifos no texto
fonte) (p. 52).

[...] para Derrida uma característica de todo tipo de comunicação,


escrita ou falada, é a possibilidade de ser repetida e transmitida por
uma pessoa e depois por outras (p. 53).
Derrida frisa o fato de o funcionamento do nosso sistema linguístico
cultural
ser baseado nas repetições. Se não fosse possível repetir, o
sistema não poderia existir. [...] no decorrer do tempo, não
podemos identificar o centro ou a origem das repetições (p. 53).

-As pessoas repetem as ações e elocuções performativas de gênero


“masculino” e “feminino”, etc. que veem e ouvem, mas seria
impossível identificar o ponto de origem dessas identidades, mesmo se
pudesse voltar no tempo. As pessoas copiam as cópias, porém, não há
um original, e “o gênero é, assim, uma construção que regularmente
esconde sua gênese” (Butler 2004a: 157) (p. 53).

A matriz heteronormativa e a sua subversão


Como explica Sullivan, Butler enfatiza que “a performatividade não é algo
que o sujeito faz, mas é um processo através do qual o sujeito é constituído,
e que o gênero não é algo que possa ser colocado ou
removido à vontade” (2003: 89).

Isso nos leva ao segundo ponto: para Butler a performance ritualizada


e repetida de gênero não é completamente sem restrições; é
constrangida por normas.

Embora existam corpos individuais que encenam essas significações


estilizando-se em formas de gênero, essa "ação" é uma política. [...] a
performance é realizada com o objetivo estratégico de manter o
gênero em sua estrutura binária - um objetivo que não pode ser

Lewis (2012) 18
atribuído a um sujeito, devendo, ao invés disso, ser compreendido como
fundador e consolidador do sujeito ([1990] 2003:200) (p. 54.)

Essas normas criam uma matriz heteronormativa dentro da qual o


“sexo biológico” causa o gênero que, a seguir, causa o desejo. Essa
matriz heteronormativa é um sistema de "heterossexualidade
compulsória" (p. 54).

-A matriz cultural por intermédio da qual a identidade de gênero se torna


inteligível exige que certos tipos de “identidade” não possam
“existir” – isto é, aquelas em que o gênero não decorre do sexo e
aquelas em que as práticas do desejo não “decorrem” nem do “sexo”
nem do “gênero”. ([1990] 2003: 38-39, grifos meus) (p. 54).

Porém, é importante lembrar que “[a]inda que essas normas


reiterem sempre, de forma compulsória, a heterossexualidade,
paradoxalmente, elas também dão espaço para a produção dos
corpos que a elas não se ajustam” (Louro 2004: 44) (p. 54).

-Entrar nas práticas repetitivas desse terreno de significação não é


uma escolha, pois o “eu” que poderia entrar está dentro delas desde
sempre: não há possibilidade de ação ou realidade fora das práticas
discursivas que dão a esses termos a inteligibilidade que eles têm. A
tarefa não consiste em repetir ou não, mas em como repetir, ou, a
rigor, repetir e por meio de uma proliferação radical do gênero, afastar
[ou deslocar] as normas do gênero que facultam a própria repetição.
([1990] 2003: 213, grifos no texto fonte) (p. 55).

-Não seremos entendidos/as se expressarmos fora da matriz de


inteligibilidade já estabelecida, tentando mudar de modo repentino o
sistema linguístico (p. 55).

Desta maneira, Butler mostra que a mudança (um significado


alterado, a reapropriação de uma palavra, uma forma alternativa de
uma elocução, etc.) deve ser inteligível dentro do sistema
linguístico atual para ter a possibilidade de ser repetida e para
mudar o sistema através de mais repetições da mesma (p. 55).

“se a repetição está fadada a persistir como mecanismo da


reprodução cultural das

Lewis (2012) 19
identidades, daí emerge a questão crucial: que tipo de repetição
subversiva
poderia questionar a própria prática reguladora da identidade?”
([1990] 2003: 57) Para mudar a matriz heteronormativa para que
não marginalize certas performances identitárias, as mudanças
têm que surgir do interior do sistema através de atos
subversivos (p. 56).

Se eu sou alguém que não pode ser sem fazer, então as


condições para as minhas ações são, em parte, as condições
para a minha existência. Se a minha capacidade de fazer
depende do que outros fazem comigo ou, em vez disso, as
maneiras nas quais as normas me fazem, então a possibilidade
da minha persistência como um “eu” depende da minha
capacidade de fazer algo com o que é feito comigo. (Butler
2004b: 3, grifos no texto fonte) (p. 56).

Butler não considera possível, ou pelo menos não


considera como uma meta
prática, a destruição total da matriz heteronormativa; a
autora propõe implementar mudanças gradativas através de
repetições diferentes dentro do sistema (p. 57).

A(s) teoria(s) Queer hoje em dia


-Louro esclarece:

queer significa colocar-se contra a normalização - venha ela


de onde vier. [...] Queer representa claramente a diferença que
não quer ser assimilada ou tolerada, e, portanto, sua forma de
ação é muito mais transgressiva e perturbada (2004: 38-39) (p.
57).

Teoria queer e interseccionalidade


-[...] a Teoria Queer tem sido criticada por não estudar todas as
relações e sobreposições entre tais construções, tratando-as como

Lewis (2012) 20
variáveis
separadas e aditivas em vez de inseparáveis e interligadas, e por não
considerar a materialidade do corpo, concentrando-se sobre corpos
como efeitos ou produtos discursivos (ver Prosser 1998) (p. 58).

Por isso, vários/as teóricos/as têm frisado a importância de


abordagens queer vinculadas à interseccionalidade, “a
interação complexa entre uma gama de discursos, instituições,
identidades e formas de exploração que estruturam
subjetividades (e as relações entre elas) em maneiras
elaboradas, heterogêneas e frequentemente contraditórias”
(Sullivan 2003: 72) (p. 58).

-Como observa Anzaldúa ao criticar o modelo aditivo de identidade e


opressão, “a identidade não é um agrupamento de caixinhas
recheadas respectivamente com intelecto, sexo, raça, classe,
vocação, gênero. A identidade escorre entre e sob os aspetos de
uma pessoa” (1991: 252-253 apud Sullivan 2003: 71) (p. 58 - 59).
-Além de não dar conta dessas influências imbricadas
inextricavelmente que “compõem” as performances identitárias, se a
Teoria Queer não incorporar uma abordagem interseccional,
corre o risco de reproduzir o pensamento elitista normalizado
centrado nos homens brancos, ocidentais,
cristãos, de classe média que supostamente tem como objetivo
contestar e desestabilizar (ver Barnard 2004) (p. 59).

Teoria Queer e a evasão da fixidez


-Concordo com Halperin e outros/as que é mais produtivo falar de o
que a Teoria Queer faz em vez de tentar definir o que é; porém, a
noção de uma Teoria Queer totalmente indefinível é um ideal não
sustentável (p. 60).

Teoria Queer e A~]ao Política

Lewis (2012) 21
-Se uma das aplicações da Teoria Queer é enfraquecer as categorias
rígidas para abrir espaço na sociedade e na linguagem para a ampla
gama de identidades de gênero e sexualidade que existem e se
transformam continuamente, e se até as
performances identitárias que contestam a heteronormatividade
realizam outros
tipos de normalização e regulação, come pode, então, a Teoria
Queer ser compatível com uma ação política LGBT baseada nas
categorias identitárias? (p. 60).

Políticas identitárias
-As políticas identitárias são argumentos políticos baseados nos
interesses e perspectivas de grupos de pessoas, geralmente
grupos minoritários, que se consideram ligadas por “terem”
identidades sociais parecidas ou relacionadas (de raça, etnia,
classe social, gênero, sexualidade, religião, etc. (p. 60 - 61).

Os membros dos movimentos políticos que empregam a


estratégia das políticas identitárias usam essas “identidades
em comum” como uma base para lutar pelos direitos, o
reconhecimento, etc. das suas respectivas comunidades
imaginadas (ver Anderson 1983) (p. 61).

As políticas identitárias muitas vezes são criticadas por


políticos da Esquerda por fragmentar o sonho de uma
política cumulativa e
solidária de resistência de todos/as (ver Clifford 2000) e
por apagar as diferenças
e homogeneizar os sujeitos de um grupo [...] (p. 61).

Por se basear assim nas identidades, as políticas


identitárias são frequentemente acusadas de
essencialismo da parte de pós-estruturalistas e
teóricos/as queer (p. 61).

Rótulos e categorias identitárias

Lewis (2012) 22
-A teoria queer é cautelosa sobre os rótulos e as categorias,
mostrando seu potencial de excluir e marginalizar (p. 62).
[...] movimentos LGBT [...] constestam a marginalização de
sujeitos que não fazem performances hetenormativas, mas que
também têm seus próprios mecanismos internos de regulação.

Isso acontece particularmente quando os/as ativistas que se


identificam como bissexuais recebem pressões de outros/as
ativistas
identificando-se como gays e lésbicas
por fazerem performances “exclusivamente” homossexuais
(p. 62).

-Como observa Ochs em uma entrevista com Kendall (2009), os


rótulos podem causar muitos danos e
serem prejudiciais, mas também podem fazer bem, ajudando-
nos a nos encontrar, a nos organizar politicamente e a nos
comunicar com mais facilidade (p. 62).

[..] nem toda política identitária tem que ter uma visão essencialista
ou essencializadora das identidades (p. 62-63).

Conciliar a Teoria Queer e as políticas identitárias LGBT é possível ?


-É razoável e produtivo utilizar os rótulos como as ferramentas que
podem ser. Mas ao mesmo tempo, se deve constantemente insistir
em uma realidade mais complexa. Deve-se sempre entender que
esses rótulos são ferramentas funcionais, mas não são realidades.
Utilize-os, mas não pode se deixar ficar imprisionado/a dentro deles
como se fossem coisas verdadeiras ou caixas concretas. (entrevista
com Ochs citada em Kendall
2009: 187) (p. 63).

-Através de formações baseadas nas desconstruções e


desnaturalizações da Teoria
Queer, por exemplo, se pode fazer com que as pessoas que usam
rótulos
identitários o façam com mais consciência da história, construção e

Lewis (2012) 23
(re)produção
das categorias identitárias prevalentes hoje em dia e das possíveis
implicações de
empregá-las em diferentes contextos, por exemplo para fazer ação
política (p. 63).

Esse uso proposital de rótulos, ligado a seus processos de


desconstrução, se encaixa na visão de Spivak de
“essencialismo estratégico”, ou seja, uma essencialização
feita conscientemente e criticamente por fins específicos
como parte de uma estratégia política (ver Spivak [1985]
1996). Essa estratégia de desconstruir e usar
conscientemente os rótulos é o que Kirsch chama de uma
“política radical”, uma política que combina análise e ação
para transformar os aspectos da cultura que reduzem a
liberdade e as possibilidades de escolha (ver Kirsh 2000) (p.
63).

-Por que, porém, é necessária esta conjugação entre a Teoria


Queer e a
ação política? Por que as estratégias desconstrutivas da Teoria
Queer não são suficientes? (p. 64).

Não há um caminho mágico através do qual os conceitos


mais abstratos magicamente provoquem a mobilização da
sociedade 1979: 43 apud Kirsch 2000: 98). Para Sedgwick,
uma análise desconstrutiva dos binários é necessária, mas
“não é de modo algum suficiente para desabilitá-los (p. 64).

Primeiro, a subversão não tem sempre o efeito queerificador


“positivo” que se quer para as mudanças sociais. [...]
Segundo, o medo dos/as teóricos/as quer de dar algum grau
de fixidez ao queer limita suas possíveis aplicações além da
desconestrução e subversão (p. 64).

Wilchins critica a Teoria Queer [...] observando, (p. 64).

Lewis (2012) 24
se não tirarmos a teoria do gênero [Teoria Queer] fora da
sua torre de marfim para trabalhar nas ruas, podemos
estar presenciando o nascimento de um grande
movimento filosófico que consegue politicizar
praticamente tudo, mas não produz quase nada de
mudanças sociais organizadas e sistêmicas. (2004: 106)
(p. 64).

-Em relação às políticas identitárias, Halberstam (2005) também


observa a falta da influência da Teoria Queer, particularmente nos
casos nos quais grupos minoritários ficam discutindo qual deles é
(supostamente) o mais transgressivo ou o mais oprimido, e não
ligam tais discussões com outros discursos sobre
capitalismo, classe social, etc. Halberstam sugere que isso
significa que a Teoria Queer é restrita demais ao âmbito
acadêmico universitário e não chega a outros públicos com
os quais poderia dialogar e que poderia beneficiar (p. 65).

Epistemologias Bissexuais e Teoria Queer


-Na visão dos/as epistemólogos/as bissexuais, a bissexualidade
pode ser usada como uma posição epistemológica para
desconstruir o
binário heterossexual/homossexual e a noção moderna de definir
a sexualidade com base no sexo/gênero do objeto do desejo (p.
66).
-[...] a bissexualidade parece um tema excelente para a Teoria
Queer porque a bissexualidade perturba as certezas:
heterossexual, gay, lésbica. Tem afinidades com elas todas, mas
não é delimitada por nenhuma. É, portanto, uma identidade que
também não é uma identidade, uma indicação da certeza da
ambiguidade, a estabilidade da instabilidade, uma categoria que
define e vai contra a categorização. (Garber [1995] 1999: 138) (p.
67).

Lewis (2012) 25
-Os trabalhos principais sobre as epistemologias bissexuais foram
publicados pouco depois dos livros canônicos da Teoria Queer de
Butler e Sedgwick, e a influência dessas teóricas é visível nas
escritas dos/as epistemólogos/as bissexuais.
-Porém, em que diferem a ação desconstrutiva das
Epistemologias Bissexuais e a Teoria Queer? (p. 67).

As duas perspectivas, quando aplicadas, podem trabalhar para


desestabilizar o binário heterossexual/homossexual,
desnaturalizar a definição da sexualidade baseada no
sexo/gênero do objeto desejado, revelar a gama infinita de
possibilidades da sexualidade humana, etc. e tentam evitar as
definições rígidas, limitadoras e excludentes (p. 67).

Ao meu ver, a diferença principal é que as epistemologias


bissexuais insistem na bissexualidade como ponto de
partida para realizar a desconstrução, desnaturalização e
desestabilização, enquanto a Teoria Queer não prescreve
nenhum ponto de partida específico para realizar esses
processos (p. 67).

-Para Däumer, adotar a bissexualidade como uma perspectiva


tem quatro vantagens principais:

(1) por ocupar uma “posição ambígua entre identidades”, a


bissexualidade pode revelar as contradições de toda
identidade (p. 67)

(2) a falta de uma identidade bissexual normativa hoje em dia


pode expor que as identidades politicizadas (gays e
lésbicas) não são tão homogêneas quanto parecem (p. 67-
68).

(3) a "posição ambígua" da bissexualidade entre a


heterossexualidade e a homossexualidade (as quais para
Däumer são "culturas sexuais mutuamente exclusivas"), nos
leva a distinguir entre a heterossexualidade compulsória
e as resistências à heterossexualidade que acontecem em
e fora de "relações heterossexuais" (p. 68)

Lewis (2012) 26
(4) performar uma identidade bissexual pode servir como
uma ponte entre diferentes performances identitárias (de
raça, gênero, sexualidade, etc.) para que trabalhemos
juntos/as, nos concentrando sobre nossas semelhanças e
objetivos em comum (Däumer [1992] 1999: 159-161) (p. 68).

-[...] os/as epistemólogos/as bissexuais também se preocupam


como vários problemas que poderiam resultar da aplicação das
epistemologias (p. 68).

Uma das preocupações maiores é a criação de novos


binários rígidos e excludentes (p. 68).

Ault ([1996] 1999) observa que ao privilegiar a


bissexualidade para deslocar o binário
heterossexual/homossexual, arrisca-se criar um novo
binário de bissexual/monossexual (o segundo
termo englobando as pessoas identificando-se como
heterossexuais
e homossexuais) (p. 68)

[...] usar a bissexualidade para legitimar toda a


diversidade sexual não-normativa poderia criar outro
novo binário de queer/não-queer (p. 68).

→Porém, na sua visão, a substituição do binário


heterossexual/homossexual com um desses novos
binarismos após seu deslocamento não é
necessariamente negativo, por causa da possibilidade
de redistribuição dos privilégios nos novos binários e
da possibilidade de ter novos dualismos sem
diferenças hierarquizadas (ver Ault [1996] 1999) (p. 68).
→Outra preocupação dos/as epistemólogos/as bissexuais,
semelhante ao debate na Teoria Queer, é a possível perda
do poder subversivo da
bissexualidade ao legitimá-la como uma identidade sexual
(p. 68)

Lewis (2012) 27
Políticas de identidades coletivas bissexuais
-Ault critica fortemente a legitimização de uma identidade
bissexual,
alegando que é um caminho direto para o essencialismo e que
significa participar do reforço discursivo da sexualidade definida
com base no sexo/gênero do/a parceiro/a: “A construção e
definição de categorias é um exercício na imposição de ordem,
não um exercício na interrupção dela” ([1996] 1999: 184) (p. 69).
-A crítica de Däumer é menos aguda que aquela de Ault, mas
ela
concorda que é redutivo pensar a bissexualidade como uma
“terceira orientação sexual” ou uma “mistura de
orientações”, e que esse tipo de pensamento resulta na
simplificação das implicações sócio-políticas da bissexualidade
(p. 69).
-Outros/as teóricos/as, porém, reconhecem as vantagens de
usar o rótulo
bissexual, ter grupos de ativismo e/ou socialização bissexuais,
construir uma
identidade coletiva bissexual, lutar para a legitimização da
bissexualidade, etc (p. 69).

Eadie é um dos/as proponentes mais fortes dessa visão,


asseverando que o aumento na estigmatização da
bissexualidade tem criado uma necessidade maior para
“espaços de apoio bissexuais” (ver Eadie [1993] 1999) (p.
69).

Däumer, com sua posição menos radical do que aquela de


Ault, reconhece que a afirmação de uma identidade
coletiva bissexual dentro de comunidades de apoio
bissexuais pode beneficiar o bem estar psicológico de
muitas pessoas. Parece duvidar, porém, que um aumento da
visibilidade bissexual possa contribuir à luta contra a
homofobia, o sexismo e o heterossexismo (ver Däumer [1992]
1999) (p. 69).

Lewis (2012) 28
-Os/as epistemologos/as bissexuais observam duas diferenças
principais nos tipos de grupos bissexuais – grupos que tentam
criar uma identidade coletiva bissexual, e grupos “não-
prescritivos” sobre as identidades que sustentam a
diversidade sexual em geral em vez de uma identidade “pré-
estabelecida” a ser adotada. Para Eadie ([1993] 1999), essa
segunda tipologia de coletividade é mais vantajosa porque
consegue criar um lugar de apoio psicológico sem fixar uma
identidade bissexual normativa (p. 70).
-Prabhudas oferece uma solução para uma política bissexual
que concilia
as duas vertentes divergentes nesse debate: (p. 70)

Embora seja importante criar nossos próprios grupos


separados, baseados em raça, gênero, sexualidade,
deficiência física e outras identidades que sofrem
discriminações, porque tais grupos oferecem ambientes
seguros e confortáveis, onde as pessoas não se sentem
intimidadas, isso somente deve representar uma medida em
curto prazo contra a opressão.
Em longo prazo, uma política de separação somente reforça
uma cultura de guetização, permitindo que a sociedade inteira
‘passe a bola’ com respeito a questões minoritárias, e
perpetua mitos já prevalentes, cultivados pela ignorância. É
hora de tratar de pôr em questão esta ignorância através da
ampliação do nosso ponto de vista e da adoção de uma
filosofia de unidade, em vez de uma de divisão... ([1996]
1999: 151) (p. 70).

Bifobia e discriminação
-Outra preocupação dos/as epistemólogos/as bissexuais é que as
pessoas
identificando-se como bissexuais tendem a experimentar
problemas duplos de discriminação, preconceitos,
hostilidade e estigmatização da parte de pessoas que se
identificam como heterossexuais e da parte de pessoas que

Lewis (2012) 29
se identificam como homossexuais – um fenômeno chamado
de “bifobia”. Segundo Ochs e Deihl, essa bifobia vem “[d]o medo
do outro e [d]o medo do espaço entre nossas categorias” (1992:
69) (p. 70).
-Na visão de Klein, as pessoas identificando-se como
heterossexuais e
homossexuais têm medo da possibilidade da sua própria
ambiguidade sexual, e “não conseguem entender a capacidade
do/a bissexual de compartilhar suas preferências, mas não suas
aversões” ([1978] 1993: 11) (p. 71).
-[...] as razões para atitudes bifóbicas podem ter raízes parecidas
(como o medo à percebida ambiguidade da bissexualidade), mas
se manifestam em maneiras diferentes, têm efeitos diferentes, e
devemos lidar com elas em modos diferentes (p. 71).
-Para Garber ([1995] 1999), a bifobia é um “subproduto” da
homofobia, e
a bifobia não existiria se a homossexualidade não fosse reprimida
e
marginalizada (p. 71).
-Garber e Udis-Kessler sugerem que é necessário lutar
contra a homofobia, a bifobia sendo fácil de erradicar depois
(ver Garber [1995] 1999; Udis-Kessler 1991) (p. 72).

A meu ver, a eliminação da homofobia ajudaria muito na luta


contra a
bifobia; porém, dada a ignorância geral sobre a
bissexualidade e a tendência de temer o que não se
entende – mesmo se a homossexualidade não fosse mais
estigmatizada, as pessoas
poderiam ainda temer a “ambiguidade” da bissexualidade
–, acho que também é necessário continuar lutando para
visibilizar a bissexualidade e a diversidade sexual em geral, e
educar usando aplicações da
Teoria Queer para desnaturalizar as noções atuais da
sexualidade (p. 72).

Lewis (2012) 30
A (invisibilidade da) bissexualidade nos trabalhos acadêmicos
-Segundo Storr (1999), a ideia da falta de trabalhos
acadêmicos sobre a
bissexualidade é um mito; a autora alega que há uma grande
quantidade de
trabalhos, alcançando quase todas as disciplinas. Embora
haja mais trabalhos sobre a bissexualidade do que é
geralmente reconhecido, isso não muda o fato de que em
comparação com a quantidade enorme de trabalhos sobre
gays e lésbicas, e mais recentemente também sobre
transexuais e travestis, o número de trabalhos sobre pessoas
identificando-se como bissexuais é minúsculo (p. 72).
-Adicionalmente, Breno e Galupo (2009) observam que muita
pesquisa feita sobre a bissexualidade no passado tem só
aumentado o número e a força de estereótipos e mitos sobre
pessoas que se identificam como bissexuais, particularmente
dado que tanta pesquisa sobre a bissexualidade tem se
concentrado sobre as relações nãomonogâmicas (p. 72).
Há, porém, uns/umas acadêmicos/as que trabalham mais
especificamente sobre a bissexualidade:

Seffner (2003) estuda a construção das masculinidades


bissexuais de homens brasileiros que fazem parte de
uma rede postal, e traz os frutos da sua análise às
chamadas pedagogias da sexualidade do campo da
educação (p. 73).

Facchini (2005, 2008, 2009), por outro lado, se concentra


sobre o ativismo LGBT no Brasil e menciona alguns
casos de discriminação contra pessoas que se
identificam como bissexuais (principalmente por parte de
grupos homossexuais que não queriam deixá-las participar)
(p. 73).

Lewis (2012) 31
-Surpreendentemente, apesar das possibilidades subversivas da
bissexualidade mencionadas nesta seção, há uma imensa e
preocupante falta de estudos sobre a bissexualidade nos
próprios Estudos Queer. A bissexualidade, quando não
totalmente esquecida, é geralmente mencionada só como parte
de uma lista (“gays, lésbicas, bissexuais, transexuais,
transgêneros, intersexuais...”), mas não examinada, questionada
e problematizada profundamente (p. 73).

Para Angelides, a falta de estudos sobre a bissexualidade


nos Estudos
Queer tem raízes históricas: segundo o autor, a
bissexualidade tem sido quase completamente invisível
como uma identidade cultural até as décadas recentes,
então é pouco mencionada nos estudos sócio-
construcionistas da história; por causa disso, a oposição
heterossexual/homossexual tem sido “involuntariamente
reproduzida em uma teoria queer desconstrutiva derivada
de tais estudos históricos construcionistas” (2001: 9). O
fato de que poucos estudos queer têm
tratado de bissexualidade só reforça o binário
heterossexual/homossexual que a Teoria Queer
supostamente quer desestabilizar. Esta pesquisa visa a
contribuir à desestabilização deste binário não somente nos
movimentos LGBT, mas também no mundo acadêmico (p.
74).

Abordagens da Linguística e o Campo Etnográfico


-[... Neumann da obra canônica da Linguística Queer, Queerly
Phrased,

A identidade não acontece em um vácuo cultural e então não


pode ser analisada simplesmente em termos linguísticos; é
criada em relação às comunidades e culturas das quais a[/o]
falante se sente parte, como vê sua posição no mundo, e como
percebe o lugar do mundo na sua vida. Uma abordagem

Lewis (2012) 32
interdisciplinar que combina linguística, antropologia e sociologia
é, portanto, necessária para qualquer análise das construções
identitárias em narrativas. (1997: 280) (p. 76).

-[...] a presente pesquisa, sobre a construção identitária


performativo-discursiva em narrativas de ativistas LGBT que se
identificam como bissexuais, combina os campos da Linguística
Aplicada, Linguística Queer e Antropologia, e incorpora
contextualizações etnográfico-históricas (p. 76).
-É por causa da imbricação entre vários campos, abordagens e
teorias (ver também Capítulo 2), os fins de ação política, esse
compromisso ético e a geração de dados no contexto da aplicação,
que considero esta pesquisa transdisciplinar (p. 76 - 77).

Linguística Aplicada transdisciplinar com fins de ação política e


compromissos éticos
-Segundo Inês Signorini, tal Linguística Aplicada transdisciplinar “tem
se configurado também, e cada vez mais, como uma espécie de
interface que avança por zonas fronteiriças de diferentes
disciplinas”(p. 78).

uma área feita de margens, de zonas limítrofes e


bifurcações, onde se tornam móveis as linhas de partilha dos
campos disciplinares e são deslocados, reinscritos,
reconfigurados, os constructos tomados de diferentes tradições e
áreas do conhecimento. (1998: 89-90) (p. 78).

-[...] três vantagens da transdisciplinariedade [...] (p. 78).

Primeiro, [...] uma aproximação transdisciplinar nos oferece o


potencial de entender mais profundamente as complexidades
e dinâmicas múltiplas inextrincavelmente imbricadas dos
fenômenos sócio-culturais (p. 78).

Segundo, uma

exposição à multiplicidade leva a um distanciamento


tremendamente salutar do[/a] pesquisador[a] em relação

Lewis (2012) 33
ao seu próprio universo de referência, contribuindo para a
não reprodução, no âmbito específico da disciplina, de
uma certa ordem institucionalizada de posições, crenças
e valores hierarquizados. (Signorini 1998: 97) (p. 78).

Terceiro, como observa Signorini, "os percursos


transdisciplinares são catalisadores poderosos que
incrementam [o] processo de deslocamento e
reconfiguração no campo epistemológico" (1998: 90); ou seja,
quanto mais transdisciplinar um estudo for, mais poder
transformador terá (p. 78).

-Moita Lopes sublinha que "fazer pesquisa no contexto aplicado,


principalmente, precisa ser reteorizado como fazer política"
(2009a: 36). O autor defende uma Linguística Aplicada orientada
para a ação política que gera “conhecimento útil para um[/a]
participante do mundo social” cujos “interesses e perspectivas são
considerados na investigação” (1998: 106) e que tem o objetivo de
realizar “[a] construção de alternativas para o presente” (2009a: 34),
particularmente para o presente das vozes que estão à margem:
pessoas de classe social baixa, negras e indígenas, homossexuais,
bissexuais e transexuais, etc. (ver Moita Lopes 2002, 2006) (p. 78-
79).
-[...] como explica Moita Lopes, na Linguística Aplicada,

a teoria informa a prática e a prática informa a teoria [...] Para


se formular conhecimento que tenha efeito no mundo social, ele
tem que ser informado pela prática social onde as pessoas
agem. É, em última análise, gerado no contexto de aplicação.
(1998: 110) (p. 79).

-A noção de “ética negativa” de Couze Venn (2000) é útil para


pensar o papel da ética nessa relação ético-teórico-prática. Segundo
Venn,
uma ética negativa é uma (p. 79).

Ideia regulatória, uma ética não-normativa e não-prescritiva


que transmuta noções de estar-com e de responsabilidade

Lewis (2012) 34
pelo outro no princípio de respeito pelo tempo do outro e do
reconhecimento do outro (p. 79).

Linguística Queer
-O campo específico da Linguagem Queer [...] foi unaugurado depois
da segunda metade dos anos 90 com a publicação do livro Queerly
Phrased, organizado por Ana Livia e Kira Hall (1997) (p. 81).

Estudos da Linguagem, Gênero e Sexualidade


-[...] antes da segunda metade dos anos 1990, os poucos estudos
sobre lingua(gem) e "orientação sexual" geralmente falavam
somente do léxico empregado por pessoas identificando-se como
homossexuais (p. 81).
-Desde a segunda metade dos anos 1990, porém, vários/as
autores/as começaram a preencher as lacunas na literatura prévia,
investigando não somente a linguagem usada por pessoas
performando certas identidades, mas a construção dessas
identidades através da linguagem (p. 81).
-Considera-se que o campo da Linguística Queer foi oficialmente
inaugurado com
a publicação do livro Queerly Phrased: Language, Gender, and
Sexuality em
1997, organizado por Anna Livia e Kira Hall. O livro é composto por
25 artigos escritos por vários/as autores/as que examinam como as
identidades sexuais são construídas discursivamente, partindo da
teoria da performatividade de gênero de Judith Butler (p. 81).

[...] há um só artigo que se concentra sobre a bissexualidade, e


poucas menções à bissexualidade nos outros 24 artigos (p. 81).

Aplicação da Teoria Queer à Linguística

Lewis (2012) 35
-Borba caracteriza a queerificação da Linguística da seguinte
maneira:

Quer-se, ao cravejar os estudos lingüísticos com ideias queer,


criar inteligibilidades sobre como construímos, negociamos
e estruturamos nossas identidades dentro de sociedades
heteronormativas que impõem determinadas maneiras de
ser aprioristicamente (2006: s.n., ênfase no texto fonte) (p. 82).

-Borba observa que “O objetivo principal da L[inguística] Q[ueer] é


investigar como indivíduos considerados não-normativos
negociam suas identidades dentro das limitações discursivas da
heteronormatividade ao repeti-la ou subvertê-la através de suas
performances lingüísticas” (2006: s.n.) (p. 82).
[...] em consonância com a proposta queer de fugir de definições
rígidas e prescritivas, a Linguística Queer não possui uma
metodologia fixa própria. Contudo, o/a pesquisador/a que trabalha
com temas de gênero e sexualidade é encorajado/a a incorporar
várias abordagens teóricas e metodológicas para criar uma
abordagem híbrida adequada ao objeto de estudo (ver Harrington,
et. al. 2008).

Táticas de intersubjetividade
-[...] uma ferramenta teórico-analítica útil para entender os
mecanismos discursivos e performativos através dos quais são
criadas as identidades, sem essencializar essas performances
identitárias (p. 84).
-No artigo “The Contributions of Queer Theory to Gender and
Language Research”, Sauntson observa que o arcabouço das táticas
de intersubjetividade

possibilita uma aplicação do objetivo principal da teoria


queer, de desvelar as maneiras nas quais a
heterossexualidade é naturalizada e como outras formas de
identidade sexual são ‘queerificadas’. O arcabouço realiza
isso sem dispensar das noções de identidade, mas reconhece

Lewis (2012) 36
que a construção identitária é intersubjetiva, contextual e nunca
completa. (2008: 282) (p. 84).

-O conjunto das táticas de intersubjetividade serve para o/a


pesquisador/a no campo da Linguística Queer examinar como a
identidade é co-construída
performativamente nas interações através de recursos
simbólicos como a linguagem (p. 84).
-Esse conjunto é composto de três pares de táticas: adequação e
distinção, autenticação e desnaturalização e autorização e
deslegitimação (p. 84).

A adequação é a tática de deixar de lado as diferenças e


acrescentar as semelhanças. [...] Essa tática é usada
frequentemente como a base de organização política e/ou
ativismo e para processos de essencialismo estratégico (ver
seção 3.2.3).
→A distinção é a tática contrária, de acrescentar as diferenças
e suprimir as semelhanças (p. 84).

tática de autenticação exige a construção de uma identidade


acreditável, “real” ou “genuína. Dizer que uma performance
identitária é autenticada, ou seja, construída como “real” ou
“verdadeira”, é diferente que sugerir que seja de fato autêntica,
um termo ligado à visão essencialista e a suposta existência de
identidades “reais”. Como observam Bucholtz e Hall, nesta
pesquisa “chamamos a atenção à autenticidade não como
uma essência inerente, mas à autenticação como um
processo social realizado no discurso” (2005: 601). (p. 85).

→[...] a desnaturalização é a produção intencional de uma


identidade inacreditável, “irreal” ou “não-genuína (ver
Bucholtz e Hall 2003, 2004, 2005). Isso acontece frequentemente
em performances teatrais ou quando pessoas que se identificam
como lésbicas, gays, bissexuais, etc. não querem visibilizar essa
identificação e “ficam no armário”, passando por pessoas que se
identificam como heterossexuais (p. 85).

Lewis (2012) 37
[...] a autorização é a legitimação de uma identidade através
de
uma instituição ou autoridade e suas estruturas de poder e
ideologias, dando certo grau de reconhecimento ao sujeito (p.
85).
→A deslegitimação acontece, inversamente, quando uma
autoridade é usada para eliminar ou negar a legitimidade de
uma identidade, e então, o seu poder, marginalizando e/ou
censurando o sujeito (ver Bucholtz e Hall 2003, 2004, 2005). (p.
85).

Análise das Narrativas


Narrativas, identidades e performances
-A narrativa é “um pequeno show do[/a] falante, que envolve e
emociona o[/a] ouvinte, e não um simples relatório de um evento”
(Bastos 2008: 77) Esses "pequenos shows" são produtos sócio-
histórico-culturalmente situados (p. 86).
-Estão relacionados às experiências de vida do/a narrador/a, mas
não são "transportadores transparentes" (Lawler 2002: 242)
dessas experiências; as narrativas "são dispositivos interpretativos
através dos quais realizam performances identitárias para si mesmas
e para outras pessoas" (ibid). Estas representações mudam
dependendo de como o/a narrador/a quer ser visto/a em certo
contexto (p. 86 - 87).

A ênfase se dá não apenas nos aspectos de contextualização da


narrativas, mas em como a narrativa é moldada e também
molda processos socioculturais mais amplos, assim como os
situacionais, com relações entre a ordem micro e macro. Nesse
sentido, o contexto não é estático, como um 'quadro' circundante,
mas sim dinâmico, com processos múltiplos que se entrecruzam,
alimentando a fala-em-interação (Pereira e Cortez 2011: 81) (p.
87).

-[...] as narrativas são um “lócus privilegiado de compreensão da


relação entre discurso, identidade e sociedade, pois as formas

Lewis (2012) 38
narrativas de (re)construção da experiência organizam nossas
ações, nossa percepção de mundo e nossas ficções identitárias”
(Fabrício e Bastos 2009: 41-42). Essas "ficções identitárias", em
uma perspectiva queer, são chamadas de performances; as
narrativas são usadas para performar e projetar certas identidades
sociais.

Assim, performance narrativa se refere a um lugar de luta


para identidades pessoais e sociais, em vez de aos atos de
um self com uma essência fixa, unificada, estável ou final que
sirva como a origem ou realização das experiências [...]. Desde o
ponto de vista de performance e performatividade, a análise das
narrativas não é somente semântica, engajando-se na
interpretação de significados, mas também deve ser
pragmática: analisando a luta sobre os significados e as
condições e as consequências de contar uma
história em uma maneira particular [...] A identidade é uma
luta performativa (Langellier 2001: 151) (p. 87).

-É particularmente interessante estudar tais “lutas” narrativo-


identitárias no caso de performances identitárias não
normativas e estigmatizadas, como no caso de muitas
performances identitárias bissexuais (p. 87).
-Neste trabalho, a minha aproximação à análise das narrativas se
concentra sobre a construção identitária discursivo-performativa,
seguindo a visão não-essencialista da Teoria Queer (p. 87).
-De acordo com Fabrício e Bastos, a identidade é "um fenômeno
social e relacional que se estabelece diante do outro, em um
jogo de semelhanças e diferenças em relação a esse outro" (p.
87-88).
-Construímos quem somos
sinalizando e interpretando tanto afiliações a categorias sociais
(classe social, gênero, profissão, religião, etc.) e posições na
hierarquia da interação (status e papéis), quanto atribuições de
qualidades e qualificações de ordem mais pessoal [...]. Ao
contar estórias, situamos os outros e a nós mesmos[/as] numa

Lewis (2012) 39
rede de relações sociais, crenças, valores; ou seja, ao contar
estórias, estamos construindo identidade (2005: 81) (p. 88).

-Ao analisar as narrativas, é importante lembrar também da sua


natureza situada
em relação a outros discursos sociais, culturais e institucionais
(ver Riessman
1993). Adicionalmente, nossas histórias “locais” estão ligadas a
histórias e
repertórios mais amplos (p. 88).

A estrutura das narrativas


-Labov identifica seis partes estruturais das narrativas: resumo,
orientações, ações complicadoras, avaliações, resolução e
coda.
1- O resumo se encontra ao início da narrativa, e sumariza a ideia
geral dela (p. 88).
2- As orientações oferecem contextualizações para ajudar o/a
ouvinte a entender e situar narrativas (p. 88).
3- As ações compiladoras são sequências de ações que compõem a
história (p. 88).
4 - As avaliações oferecem a perspectiva do/a narrador/a sobre os
eventos da narrativa (p. 88).
5 - A resolução se encontra ao final da narrativa e sinaliza o
resultado das ações compiladoras (p. 88).
6 - [...] às vezes há uma coda, uma parte opcional que liga os
acontecimentos passados da narrativa ao presente (p. 88 - 89).
-Esses elementos não são necessariamente apresentados nessa
ordem. [...] Adicionalmente, cada narrativa não contém
necessariamente todos esses elementos (p. 89).
-Na última década, os estudos discursivos das narrativas
começaram a abandonar o interesse na identificação dos
componentes estruturais das narrativas, preferindo se

Lewis (2012) 40
concentrar sobre os significados de contá-las e a maneira na
qual as experiências relatadas são situadas sócio-culturalmente e
nas interações (ver Oliveira e Bastos 2002) (p. 89).

Porém, nesta pesquisa analisaremos também a forma


estrutural das narrativas, porque, como observa Wood (1997),
a forma contribui ao significado da narrativa; o significado
não vem exclusivamente do conteúdo semântico (ver Wood
1997; Riessman 1993) (p. 89).

Sair do armário
-As narrativas sobre o tema de "sair do armário" são fontes ricas
e complexas de construções identitárias discursivo-
performáticas (p. 89).
-[...] sair do armário é um processo, não algo que se faz uma vez
só. Esse processo dura necessariamente toda a vida, em função
da tendência na sociedade heteronormativa de presumir que uma
pessoa seja heterossexual até ela se "revelar" (ou ser revelada)
homossexual, bissexual, etc. (p. 89 - 90).

Por causa dessa heterossexualidade presumida, até a pessoa


mais abertamente “fora do armário” (pelas declarações que faz,
pela estilização do corpo, etc.) se encontrará em algum momento
“no armário” com alguém que não conhece, a quem ainda não
revelou explicitamente sua identificação de sexualidade (p. 90).

-Para as pessoas que se identificam como bissexuais e frequentam


“contextos LGBT”, esse processo tem outro fator: a
homossexualidade presumida e a necessidade de sair do armário
como bissexuais. Assim, as pessoas identificando-se como
bissexuais experimentam uma espécie de armário duplo de ambos
lados do binário heterossexual/homossexual (p. 90).

-Como sair do armário não é algo que se faz uma única vez, ficar
dentro
do armário também não pode ser reduzido a um ato ou escolha

Lewis (2012) 41
singular (ver
Chambers 2009) (p. 90).
-Por terem que decidir se assumir-se ou não em cada interação, sair
do armário ou ficar dentro são processuais (p. 90).

[...] sair do armário é performativo. São atos de fala que não


somente
descrevem a identidade homossexual, bissexual, heterossexual,
etc., mas também criam tal identidade (p. 90).

Sedgwick (1990) observa que o estar no armário (“closetedness”)


também é uma performance realizada através de atos de fala
(mentiras, silêncios, omissões, etc.) (p. 90).

[...] é importante notar que não há uma oposição binária


dentro/fora do armário. Para Morrish e Sauntson (2007), é
uma questão de grau: algumas pessoas estão “mais fora” do
que outras em relação ao número de pessoas às quais o têm
contado, à visibilidade por causa da estilização do corpo, etc. e
tudo isso varia dependendo do contexto (p. 90-91).

Halperin desconstrói mais ainda a noção de poder ficar ou sair


do armário: segundo ele, uma pessoa não pode realmente
estar no armário porque não pode saber se está sendo
tratada como heterossexual porque está conseguindo
convencer as outras pessoas disso, ou porque estão
fingindo não sabê-lo. Por isso, o armário é um lugar
contraditório – não se pode realmente estar nem dentro, nem
fora (ver Halperin 1995) (p. 91).

- Geralmente, as pessoas contam várias narrativas, não uma


história só. Contam essas narrativas em cadeia, criando um padrão
de iniciar e parar (“stopping and starting”) no qual contam a
resolução de uma história e, ao resolvê-la ou contar uma coda,
pensam em outra história e a vinculam à precedente (p. 91).
-Como as configurações da narrativa refletem o fato do sair do
armário ser um processo, o significado da narrativa vem do

Lewis (2012) 42
conteúdo semântico e da forma estrutural (ver Wood 1997) (p.
91).
-Além de serem fontes ricas para a análise da construção discursivo
performativa das identidades, as narrativas sobre o processo de
sair do armário são usadas para “negociar a inclusão social”
(Fenge, et. al. 2010: 322) e articulam posições ideológicas e
desvendam normas, preconceitos, relações de poder, sistemas
de opressão de certas identidades, práticas sexuais, etc. (ver
Morrish e Sauntson 2007) (p. 91).

As entrevistas narrativas
-As três entrevistas principais eram semi-estruturadas e foram
gravadas em
áudio e depois transcritas (p. 101).
-[...] comecei as entrevistas pedindo para as agentes me contarem
suas histórias sobre o processo de sair do armário (p. 101).
-Além dessa pergunta inicial, eu tinha preparado perguntas sobre
como a participação no Grupo Arco-Íris tinha influenciado as
vidas das agentes e sobre experiências de discriminação ou
aceitação das suas performances identitárias bissexuais; porém,
narrativas sobre esses temas frequentemente surgiram sem
solicitação minha (p. 101).
-Adicionalmente, às vezes contei histórias pessoais da minha
própria vida para criar um vínculo de experiências compartilhadas e
uma relação entrevistadora-entrevistada menos assimétrica (p. 101).
-Concentrei-me sobre mulheres por duas razões: primeiro, porque
várias atividades no Grupo Arco-Íris (como a participação do
subgrupo Laços e Acasos)
são divididas por gênero, então, como mulher, conseguia fazer
mais observações etnográficas sobre as mulheres, e segundo,
porque não encontrei homens no GAI que se identificassem
como bissexuais (p. 102).

Lewis (2012) 43
Construções identitárias em narrativas sobre o processo de sair do
armário
-As narrativas sobre o processo de sair do armário de pessoas
que se identificam como bissexuais nos permitem entender não
somente como constroem suas identidades, mas como elas
compreendem o termo “bissexual(idade)” e a relevância e
influência do termo nos contextos situados das suas vidas (p.
108).

Análise: lindando com preconceitos e discriminações


Como observa Kim, quando falantes usam fala reportada,
posicionam "os/as personagens nas suas narrativas como
representantes de ideologias em conflito, assim fornecendo uma
base para avaliação e negociação" (2009: 251) (p. 147).

A maneira de imitar os/as falantes que originalmente


disseram essas frases (com muitas mudanças de tom, ênfase e
velocidade, muitos alongamentos, etc.) mostra o
posicionamento crítico das agentes em relação ao discurso
bifóbico. A fala preconceituosa que reportam geralmente entra
em duas categorias: (p. 147)
→(1) o apagamento da bissexualidade: sua não-existência e o/a
bissexual como uma pessoa não certa de "ser" heterossexual ou
homossexual (p. 147).
→(2) a super-sexualização das pessoas que se identificam como
bissexuais: o/a bissexual como uma pessoa promíscua e
desconfiável (p. 148)

Lannutti observa que, segundo Rust (2000), a bifobia de


mulheres que se identificam como ativistas lésbicas “inclui dois
tipos de crenças:
crenças ‘explicatórias’ que desafiam a existência da bissexualidade,
e crenças
‘despolitizantes’ que as mulheres bissexuais são politicamente
perigosas para

Lewis (2012) 44
lésbicas porque lhes falta lealdade à comunidade lésbica” (Lannutti
2009: 104) (p. 148).

Considerações finais: as implicações das construções identitárias na


fala sobre preconceito e discriminações
-Os preconceitos com mais frequência nas entrevistas com as
agentes entram em duas categorias: (1) o apagamento da
bissexualidade e (2) a super-sexualização das pessoas que se
identificam como bissexuais (p. 173).

Os preconceitos relacionados à primeira categoria incluem a


negação completa da existência da bissexualidade, a
insistência em classificar os indivíduos ou como
heterossexuais ou como homossexuais e a ideia que a
bissexualidade é somente uma fase transitória (p. 173).

Os preconceitos relacionados à segunda categoria incluem a


suposta necessidade de relações poliamorosas com homens
e mulheres para a satisfação sexual, a promiscuidade, a
infidelidade inevitável e a necessidade do falo da parte das
mulheres que se identificam como bissexuais (p. 173-174).

-As agentes geralmente lidam com essas deslegitimações das


performances identitárias bissexuais através de depoimentos de
autenticação e autorização (p. 174).
-Para lidar com os preconceitos da primeira categoria, insistem
sobre experiências afetivo-sexuais com “ambos os sexos” e
constroem a durabilidade e estabilidade das suas performances
identitárias (p. 174).
-Para combater os preconceitos da segunda categoria, as
agentes tendem a construir performances identitárias de mulheres
bissexuais monógamas ou seletivas que não precisam se relacionar
sempre com homens e mulheres. (p. 174).
-Embora funcionem para legitimar as performances identitárias
bissexuais, esses depoimentos têm o efeito secundário de reforçar

Lewis (2012) 45
certos discursos heteronormativos (o binário homem/mulher) e
essencialistas (a fixidez das identidades), e de ignorar e excluir
outras possibilidades da diversidade sexual (p. 174).
-Se, por exemplo, os/as ativistas entenderem que a(s) sexualidade(s)
não são fixas e pre-estabelecidas, não será tão necessário insistir na
durabilidade das performances identitárias bissexuais para defender
essas performances (p. 174).
- Olímpia mostra um fenômeno útil que poderá ser levantado nas
discussões no Grupo Arco-Íris: o padrão duplo de as pessoas que
se identificam como heterossexuais ou homossexuais serem
aceitas automaticamente como tal, mas as pessoas que fazem
performances identitárias bissexuais terem
que “provar sua bissexualidade” para serem aceitas (p. 174).
-Olímpia construiu as categorias de
“trissexual” e “quadrissexual”, mostrando que a palavra
“bissexual” se concentra sobre o binário homem/mulher e não
contempla o desejo e a afetividade para outras performances
(trans)gêneras (transexual, intersex, etc.) (p. 175).

- Finalmente, vimos que os/as ativistas que se identificam como


bissexuais frequentemente se deixam passar por homossexuais
nos âmbitos LGBT para evitar problemas de discriminação
ligados a um padrão duplo de tolerância: são tolerados/as quando
têm relações ou expressam desejos e/ou afetividades vistos como
“homossexuais” (adequação), mas não são tolerados/as quando têm
relações ou expressam desejos e/ou afetividades considerados
“heterossexuais” (distinção).
-A advertência de Sullivan sobre o sair do armário é
particularmente relevante no caso de se declarar bissexual. Primeiro,
por causa da invisibilidade das pessoas que se identificam como
bissexuais no movimento LGBT e todos os preconceitos ligados à
“não-compreensão” das bissexualidades, o rótulo “bissexual” é
particularmente ambíguo (p. 175).

Lewis (2012) 46
Segundo, a ação de sair do armário como bissexual não é
necessariamente transformativa, nem para a pessoa que se
assume, nem para a posição invisibilizada e marginalizada das
performances identitárias bissexuais no movimento LGBT (p.
175).

Simplesmente se declarar bissexual


publicamente pode ajudar com a visibilidade quantitativa das
performances
identitárias bissexuais no movimento LGBT. Porém, como as
performances identitárias bissexuais frequentemente não são
vistas como legítimas dentro do movimento LGBT, não terão
necessariamente a autoridade, como disse Barrett, para
transformar sua posição marginalizada dentro do movimento
como quer Nádia (p. 175).

Destarte, a estratégia de assumir-se publicamente como


bissexual em toda
interação nos âmbitos LGBT deve ser acompanhada por
discussões sobre a(s)
bissexualidade(s), as várias implicações de “assumir-se”, os
vários modos nos quais essa ação pode ser interpretada, e,
sobretudo, discussões sobre a diversidade sexual em geral para
não fomentar aceitação para quem escolhe se
rotular como bissexual às custas de marginalizar outras
performances (p. 175).

Considerações finais

-Além de serem boas fontes para a análise de


construções identitárias discursivo-performativas (Liang 1997;
Wood 1997;
Morrish e Sauntson 2007), nas histórias sobre o processo de sair
do armário são articuladas posições ideológicas e expostos
preconceitos, normas, relações de poder, sistemas de opressão nos
quais são marginalizadas certas performances identitárias e práticas
sexuais, etc. (Morrish e Sauntson 2007), e é negociada a

Lewis (2012) 47
inclusão social (Fenge, et. al. 2010) na categoria “bissexual” e como
membros “válidos” do movimento LGBT (p. 177).

Lewis (2012) 48
Lewis (2012) 49
Lewis (2012) 50

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