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URL: http://journals.openedition.org/etnografica/1382
DOI: 10.4000/etnografica.1382
ISSN: 2182-2891
Editora
Centro em Rede de Investigação em Antropologia
Edição impressa
Data de publição: 1 Fevereiro 2012
Paginação: 53-74
ISSN: 0873-6561
Refêrencia eletrónica
Luís Felipe Rios, « O paradoxo dos prazeres: trabalho, homossexualidade e estilos de ser homem no
candomblé queto fluminense », Etnográfica [Online], vol. 16 (1) | 2012, Online desde 23 março 2012,
consultado em 30 abril 2019. URL : http://journals.openedition.org/etnografica/1382 ; DOI : 10.4000/
etnografica.1382
1 A pesquisa que originou este artigo teve financiamento do VI Programa de Metodologia de Pesquisa
em gênero, Sexualidade e Saúde Reprodutiva – Nepo / Unicamp – e bolsa de doutorado da Fundação de
Apoio à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro. Meus agradecimentos ao prof. Richard Parker, orientador
da tese cujos dados e análises possibilitaram este artigo, e também à prof.ª Lady Selma Albernaz, pela
leitura e pelas sugestões incorporadas ao texto.
2 Entre os terreiros de candomblé queto fluminenses, as casas tradicionais são resultantes de um
fluxo migratório de baianos, no início do século XX (Augras 1983). Seus sacerdotes estão diretamente
relacionados aos terreiros baianos do gantois, Engenho Velho, Alaquêto, Axé de Procópio de Ogunjá,
etc. No caso do Axé Opô Afonjá, em que há casas do mesmo nome em Salvador e na Baixada Flumi-
nense, há disputa de entendimento sobre qual terreiro foi fundado primeiro, depois que Mãe Aninha se
desvinculou do Engenho Velho para dar início a sua própria linhagem.
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3 Os ritos e modos de fazer são semelhantes nos terreiros tradicionais e emergentes, e é muito
comum haver “visitas” ilustres nas casas matrizes, colaborando com os rituais mais secretos e as festas
ou assistindo a eles. Há, então, uma espécie de avaliação pelos “mais velhos” do saber dos sacerdotes
emergentes. Essa avaliação espalha-se no campo mais amplo pelo canal da fofoca, e interfere na atribui-
ção de status aos emergentes (Rios 2002, 2004).
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Axé E REPRODUçãO
ser seus “pais” e “mães” no aiê, e cabe-lhes cuidar das divindades quando incor-
poradas nos rodantes. Ogãs e equedes não devem, portanto, ser capazes de pos-
sessão. Quando iniciados (“confirmados”), são tratados como “meu pai ogã”
ou “minha mãe equede”, e merecem as deferências devidas aos “mais velhos”.
Os ogãs são responsáveis pelo sacrifício dos animais e toque dos atabaques, e
as equedes auxiliam os “santos” em suas atividades no aiê – secam-lhes o suor,
ajudam-nos a se vestir e se paramentar, acompanham-nos na dança, etc.
Nos terreiros que estudei, ainda que homens e mulheres possam galgar os
postos supremos, boa parte do trabalho religioso mais especializado é repar-
tida por sexo. Por exemplo, apenas homens podem sacrificar, tocar atabaque
e oficiar os rituais aos egunguns (ancestrais); já as mulheres “rodam” o Ipadê
(ritual que convida os orixás para a festa pública), dirigem a cozinha sagrada
e cultuam as iamis (feiticeiras sagradas), o que faz com que se torne sempre
necessária a presença de homens e mulheres nos terreiros, de modo que os
serviços religiosos se realizem.
É nesse contexto “familiar” que se deve pensar a reprodução (social) nos
terreiros. Ainda que, em última instância, dependam da reprodução biológica,
os nascimentos que importam aos sacerdotes são os de novas iaôs, que se fazem
por via de procedimentos rituais (iniciação, chamada também de “feitura”).
Isso não quer dizer que deixam de existir os discursos de verdade sobre a sexu-
alidade, em suas implicações para a relação entre o mundo e o outro mundo, e
sobre a continuidade da religião.
É justamente nessa conjuntura reprodutiva que a sexualidade volta a ser
apreendida. A iniciação faz-se por via de rituais em que o axé, energia que tran-
sita entre aiê e orun, é manipulado. Para uma pessoa participar da feitura ou
se submeter a ela, como a qualquer outro rito, deve abster-se de sexo, a fim de
acumular a energia sagrada. A crença é que o axé se dissipa por meio da inte-
ração sexual, uma vez que ele tem nos fluidos corporais seus suportes. Assim,
para o candomblé, o que importa são os momentos em que se pode ou não ter
atividades sexuais.4
Segato (1995) atribui essa inflexão sobre a reprodução social nas comunida-
des-terreiro ao impacto do sistema escravista sobre a família escrava, que desor-
denou os sistemas de parentesco e de gênero tradicionais africanos e deslocou
a centralidade da conjugalidade como lugar para vivência dos prazeres sexuais.
Seriam essas mudanças nas premissas para a reprodução social (do biológico
para o espiritual) que possibilitariam a abertura dos terreiros para as sexua-
lidades que se organizam na margem da heteronorma. Nesse ínterim, a pos-
sibilidade de haver práticas sexuais entre pessoas do mesmo sexo existe e é,
4 Há interditos quanto às transações sexuais dentro da família de santo, os quais não tenho condi-
ções de aprofundar aqui (ver Segato 1995; Rios 2004).
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inclusive, legitimada pelos deuses. Por exemplo, Oxóssi, o caçador, patrono dos
ogãs, teve sexo com Ossaim, o feiticeiro.
5 Todos os nomes mencionados são fictícios, para guardar o anonimato dos interlocutores. Leo
tem 21 anos e é iaô, negro, homossexual em parceria fixa, de classe popular.
6 Divindade feminina associada às tempestades.
7 “Bicha”: homem com prática homossexual, efeminado; “coroa”: homem na faixa dos 50 anos;
“bagos”: testículos; “xexeca”: vulva.
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quer incorporar), a kaku sai, apoiando-se nas várias pessoas presentes, dando,
de vez em quando, uma paradinha, abrindo os olhos para ver se as pessoas
estão prestando atenção – sinal de que a pessoa está dando ekê (simulando o
transe). Iansã incorpora-se, sob as gargalhadas da plateia. Seguem várias canti-
gas que acenam para o sexual e fazem parte de seus orôs (mistérios). Contudo,
Leo leva ao exagero o que é apenas acenado, quando Oiá realmente está pre-
sente. Na cantiga Zambelê Zambelê, por exemplo, em que, como mandam os
scripts sagrados, Oiá deve procurar os “santos homens” para cortejar, a pago-
deira simula levantar as saias e se “atraca” com algum dos presentes, como
numa verdadeira interação sexual.
Os alvos de Leo são as próprias “bichas”, no candomblé denominadas adés
– categoria na qual ele também se inclui –, sobretudo as kakus, que, “na falta
de outros atrativos, usam do santo para chamar atenção”. O que poderia ser
visto como blasfêmia contra uma divindade, no candomblé, é um recorrente
jogo jocoso. Leo brinca com uma situação que muitos de seus espectadores
vivem ou viverão – tornar-se “bicha velha” –, ao mesmo tempo em que coloca
em discussão o transe (possibilidade de ekê), o próprio padrão erótico de Oiá e
seus filhos e dos adés em geral.
Também o linguajar religioso é usado para falar dos corpos e prazeres. Por
exemplo, o termo oro, utilizado para referir os momentos mais sagrados e mis-
teriosos da religião, é utilizado para designar segredos profanos e fofocas e para
denominar o ato sexual. “Dar o bife pra Exu”8 é o mesmo que ter sexo. Há ainda
termos propriamente sexuais, como edi (ânus), amapô (vagina) e ocâni (pênis). Na
verdade, as expressões sexuais se multiplicam ad infinitum. Tudo pode assumir,
na brincadeira, duplo sentido e ganhar ares de eroticidade (Teixeira 1987).
Nesse contexto, a interpretação de Bakhtin (1996), referente à cultura
popular na Idade Média e no Renascimento, caberia em muitos sentidos para
descrever o funcionamento do sistema erótico apresentado nos terreiros, seja
em seus aspectos de carnavalização do mundo, na conversão do sagrado em
objetos de burla e blasfêmia e, sobretudo, na ênfase na vida material e corporal
(imagens do corpo, da bebida, da comida, da satisfação de necessidades natu-
rais e, principalmente, da vida sexual) que se configura no que o autor concei-
tua como realismo grotesco. Conforme Bakhtin (1996), por meio desse regime
de imagens, ditos e atos, o social (cultura popular) ritualizaria, na degradação
e materialização, a fertilidade, o crescimento e a superabundância, e se renova-
ria, brincando, criticando e rindo de o que é instituído.
Contudo, o que tenho chamado de cultura sexual se desdobra em vários
registros. Ainda que eu tenha enfatizado até aqui aspectos do que é conceituado
como sexualidade ou verdade e erótico ou prazer, outra lógica entra neste
Axé, outros homens com práticas homossexuais, como Leo (aquele do ekê da
Oiá pagodeira), assumem, sem problemas, diferentes posições de gênero e da
hierarquia do terreiro. Então, que mal haveria em um jovem adepto do can-
domblé apresentar características que são concebidas como sendo da ordem
do feminino?
Para entender o preconceito dirigido ao jovem ogã, é preciso aprofundar a
discussão por dois caminhos: investigar o sistema de gênero do candomblé,
afinal, os atributos agenciados por ele são acionados para destituir sua ima-
gem; e a divisão do trabalho religioso, em especial, as atribuições concernentes
ao cargo de ogã (na brincadeira, Weliton vinha sendo confrontado com essas
atribuições). Iniciarei pelo gênero.
13 Iabá: Oxum, Iemanjá, Iansã, Ewá, Obá, Nanã; Aboró: Oxalá, Xangô, Oxóssi, Ogun; Metá: Oxumaré,
Ossaim e Logun Edé.
14 No que se refere aos metás, Logun Edé e Ossaim são descritos como do sexo masculino. Já Oxumaré,
em algumas versões míticas, aparece mudando de sexo de seis em seis meses.
15 Modo como é denominada a religião afro-brasileira africanista autóctone do estado de Pernambuco,
no Nordeste do Brasil.
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Ogã
Conduzi uma entrevista coletiva com quatro iaôs do Ilê Ofá-megi, e a figura
de Weliton ganhou proeminência, atualizando o desconforto da comunidade
com seu modo de ser. Para ajudar a entender o que se passava, resolvi mencio-
nar a sexualidade de outros ogãs conhecidos. Questiono se não poderia haver
ogãs homossexuais, e Júlio16 se adianta: “O ogã é o símbolo [do] homem, né?
Eu acho que tem que ser homem”. Flávia completa: “Só que não existe ogã
veado, homossexual. Ogã homossexual não pode!” No momento em que ela
fala da impossibilidade, recordo-me de um casal conhecido dos presentes, no
qual um dos parceiros era ogã de uma casa prestigiada, e o menciono para
o grupo. Imediatamente Flávia objeta: “Quem comia quem?”17 Eu respondo:
“Não havia isso, os dois se comiam…” Flávia, descontente, encerra a conversa:
“Tudo bem, eu sempre ouvi meu pai [de santo] falar que não pode. Pelo menos
eu acho que é o certo”.
No candomblé, o termo “homem”, usado por Júlio, condensa vários sen-
tidos relacionados ao entendimento da vida sexual: “ter ocâni”, “comer” (ser
ativo na interação sexual), apresentar de forma prevalente características dos
orixás aborós, explicitamente se apresentar como desejando mulheres. Essa
configuração é nomeada okó (marido). Se, por acaso, nas fofocas, práticas
homossexuais vierem a público, logo motivos extra(-desejos)-sexuais (por
dinheiro, excesso de álcool, etc.) ou, como fez Flávia, a posição de penetra-
dor, são utilizados para restituir o lugar de macho àquele que “foi para cama”
com outro homem.
Por outro lado, o termo “homossexual”, utilizado por minha interlocutora
como anátema em relação aos ogãs, afasta-se do significado para o qual foi
forjado no seio das ciências médicas, em que se refere a pessoas que interagem
sexualmente com pessoas do mesmo sexo, e ganha o sentido de passividade
sexual, numa relação entre dois homens, que é reiterada no cotidiano por
performances efeminadas de gênero. Como mencionado, essa configuração de
sexo-gênero ganha, nos terreiros, a nomeação de adé.
Quando se trata dos ogãs, os signos da homossexualidade, passividade e
feminilidade assumem, de modo mais explícito, valor negativo, parecendo
degenerar a imagem daqueles, destituindo-os das qualidades necessárias para
o exercício de suas funções na divisão do trabalho religioso. Lembro que, nos
tempos da perseguição aberta às religiões afro-brasileiras, muitos ogãs eram
escolhidos entre personagens ilustres da sociedade (artistas, escritores, políti-
cos, militares, antropólogos, etc.), e realizavam a mediação dos terreiros com
as instituições do mundo exterior. Eles intercediam na polícia, nos serviços de
saúde mental, na academia, dentre outros, garantindo o funcionamento dos
terreiros (Rodrigues 1935; Santos 2002).
Hoje, quando a polícia não mais realiza “quebra-quebras”, os ogãs que não
se ocupam dos atabaques nos dias de festa recebem os convidados e guardam
a ordem da comunidade, enquanto o pai ou mãe de santo realiza o trabalho
religioso. Nesse âmbito, a questão que se põe a meus entrevistados é: como um
veado poderia assumir tais funções? Que respeito poderia obter das pessoas de
lá e de cá?
Por tudo isso, um ogã, além de não poder incorporar um santo, pois pre-
cisa se manter em vigília para exercer suas funções, deve se portar de modo o
mais formal possível, como prescrito para um homem quanto à postura, com
contenção dos “gestos largos”, com atenção para o local certo onde “pousar a
mão”. Deve ter atenção também às formas de rir e de olhar. Lembro de alguém
falando até das roupas que um ogã deve vestir: “Calça de linho e camisa de
botão, sapato engraxado […]”.
Weliton não observou a regra de apresentar-se publicamente como okó,
como cabe a um ogã, e pagou os ônus por seus rompantes de adeicidade. Após
alguns meses de frequência ininterrupta da casa, o pai de santo resolveu tirar
a prova dos nove: consultou os búzios para confirmar o santo e o cargo do
rapaz. O terreiro inteiro mobilizou-se e, respeitando o pensamento do grupo,
os búzios não mentiram: naquele Ilê Axé ele jamais seria ogã. O pai de santo
foi categórico: Weliton não era de Oxalá, mas de Xangô, e rodante. O jovem
caiu em lágrimas.
Acostumado a “correr gira”,18 Weliton teria de abrir mão dos privilégios
próprios dos ogãs – ser reconhecido e saudado como um “mais velho” da reli-
gião, e todas as prerrogativas que isso implica. Ele voltaria a ser abiã (noviço),
e posteriormente, quando iniciado, seria iaô, serviria os “mais velhos”, cuida-
ria dos afazeres mais básicos necessários à manutenção da casa (lavar louça,
varrer, cuidar dos banheiros, etc.). Sentaria no chão, pois só os “mais velhos”
têm direito à cadeira, manter-se-ia de cabeça baixa. Assim, iniciaria o percurso
de galgar a hierarquia – o que nunca cumpriu antes, pois ogãs e equedes, quando
iniciados, tornam-se logo ebômis. No mínimo, eram sete anos de obrigações
cumpridas para voltar a sentar em cadeira e olhar os “mais velhos” cara a
cara.
Nosso protagonista não se fez rogado e iniciou um namoro com uma fre-
quentadora do grupo, como querendo expressar a virilidade sexual necessária
ao ogã, mas isso não foi suficiente para ser restituído ao lugar almejado. Mais
importante do que o que ele “fazia na cama” era o que expressava no cotidiano
da casa de santo, e, em especial, nos dias de festa, quando o terreiro se abre
para o mundo. Ele continuava usando suas lentes de contato coloridas, suas
pulseiras douradas, mantinha seus maneirismos. Por fim, talvez porque tenha
se conscientizado de que não receberia seu “cargo” de volta, Arranca Toco dei-
xou aquele terreiro, em busca de outro menos rígido quanto às prescrições em
termos de gênero para um ogã.
Não quero dizer que, do ponto de vista nativo, a leitura sobre a homossexu-
alidade por meio da performance de gênero inexista. De fato, no caso do can-
domblé, do mesmo modo que na sociedade abrangente, efetivamente, muitas
vezes, ela ocorre. Não obstante, se a possessão tem, de fato, implicações para a
realização do trabalho religioso, meus dados empíricos mostram que ela é insu-
ficiente para configurar tanto o gênero como a orientação sexual dos adeptos.
No terreiro Ofá-megi, na época da pesquisa, o número de mulheres supe-
rava, em dobro, o de homens. O número de homens rodantes, heterossexuais
(casados ou não) quase se igualava ao número de homens declaradamente
homossexuais – cerca de 18 homens no total. Não havia cogitação sobre a
19 Embora a autora proponha adé como categoria sacerdotal, stricto sensu ela não se configura como
tal, mas como categoria de gênero-sexualidade.
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O que quero sublinhar é que, ainda que o foco de Birman (1995) tenha
sido as representações de gênero, a autora parece ter dado pouca importância
ao relato de seus informantes adés e ogãs sobre suas práticas e parcerias sexuais,
pois apreendeu e discutiu apenas um dos estatutos de gênero que a identidade
(homo)sexual pode assumir. Talvez isso tenha sido efeito da própria posição
de sexo, sexualidade e gênero da pesquisadora, que matiza as possibilidades
dos relatos dos interlocutores.22 Além disso, por interesse de pesquisa, eu estava
atento ao modo como parcerias e práticas sexuais se expressavam publicamente,
e pedia para que as pessoas me falassem delas. Por outro lado, talvez o próprio
fenômeno da AIDS tenha se interposto, na medida em que, na época de meu
trabalho de campo, estava amplamente consolidado o discurso médico das cate-
gorias e práticas de risco, que situa o potencial de perigo das transações sexuais,
em especial para homens homossexuais e bissexuais. Tudo isso pode ter con-
tribuído para que as dúvidas sobre a orientação sexual dos “homens mesmo”
aparecessem no campo discursivo, na ocasião de conversas e entrevistas.
De certo modo, um conjunto de relatos que coloca em cheque a relação pro-
posta por Birman (1995) – a possessão como capaz de criar orientação sexual
e, portanto, um determinado estatuto de gênero –, à medida que as represen-
tações também situam os ogãs e outros “homens mesmo” como possíveis par-
ceiros sexuais dos adés. Nesse arranjo simbólico, ficam todos, okós e adés, sob o
peso da ambiguidade que certo dito popular coloca para as interações sexuais
entre homens: entre quatro paredes vale tudo (Parker 1991).
Assim, quando se sai do âmbito do mundo dos modelos ideais, onde os ogãs
são, por exemplo, considerados “homens mesmo”, aproximando-se do mundo
real, vê-se que, no terreiro, são eles que estão sob maior suspeita. O fato é que a
assunção performática da homossexualidade pelos adés tira-os da ordem da ambi-
guidade. Os olhares e as fofocas se voltam, sobretudo, para os não “adeemente”
identificados, sejam rodantes ou não. As dúvidas se localizam, sim, nos homens
okós. Afinal, é da ordem do erótico que a possibilidade de converter sexualmente
alguém torne a empreitada mais perigosa e com maior possibilidade de se obter
prazeres, não só físicos, mas também discursivos. Ressalto que se trata de sus-
peita sobre orientações e posições sexuais, mas não sobre estatuto de gênero. Por
isso, esses homens em nada são abalados em relação a seus “cargos”.
Voltando à compreensão do caso de Ogã Arranca Toco, ele, que jamais entrou
em transe, não se feminizou por conta disso. Weliton era percebido como
efeminado, desde que chegou ao terreiro. A (possibilidade de) possessão, ao
invés de configuradora de sua identidade de gênero, foi importante elemento
disciplinador. Depois de muitos esforços para ensinar-lhe como um ogã deve
se portar, foi acionado o transe, como a derradeira estratégia para, mudando a
22 Nas conversas que presenciei nos terreiros, adés e okós mantinham, frente às mulheres, a associação
okós-masculinidade-heterossexualidade e adés-feminilidade-homossexualidade – assim procedeu Júlio,
reiterando que “ogã é símbolo [do] homem”, completado por Flávia: “Não pode ser homossexual”.
Mas, o mesmo Júlio sabe que não é bem assim, pois, noutra ocasião, comentara comigo sobre as investi-
das de Ogã Lucivaldo sobre ele. Quando não era mais possível dissimular a homossexualidade de um okó
(rodante ou não), buscava-se manter a partição masculino-penetrador versus feminino-penetrado entre
os envolvidos. Assim fez Flávia, quando eu explicitei que o modelo penetrador-penetrado não valia
para o casal sobre o qual conversávamos. Pareceu-me que eu estava revelando um segredo interditado
às mulheres, que, explicitado, desarrumou o esquema de inteligibilidade utilizado por Flávia.
O PARADOXO DOS PRAzERES: TRABALHO, HOMOSSEXUALIDADE E ESTILOS… 69
inscrição, mantê-lo no terreiro. Dizer que ele era rodante e precisava se iniciar
como tal, caso Weliton aceitasse, iria deslocá-lo em direção a uma posição hie-
rárquica que pudesse ser compatível com sua performance de gênero.
Em minha compreensão, embora a possessão tenha papel chave na configu-
ração de gênero, ela é insuficiente como operador de gênero, pois precisa estar
articulada às atribuições religiosas a ser desempenhadas pelos homens quando
ingressam na hierarquia religiosa. A possibilidade de possessão não causa repre-
sentações de feminilidade, são as performances de gênero das pessoas que, ao ser
lidas, indicam, dentre outras coisas, possibilidades de localização no terreiro.
23 Demonstração de gostos sexuais por via de performances femininas desempenhadas por homens.
24 Conduta pouco usual, utilizada para chamar atenção. Quando aplicado aos adés revela o comporta-
mento percebido como histriônico-caricato que eles realizam pelo uso de coisas femininas. Embora no
contexto em estudo “fechação” e “pinta” se refiram a performances femininas realizadas por homens,
a primeira tende a ser usada para referência a um ato proposital, enquanto a segunda usualmente se
refere a uma conduta não intencional.
25 Trabalho aqui é concebido no sentido lato: a divisão de tarefas necessárias para a reprodução de
um grupo, comunidade ou sociedade.
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mais velhas e precisam se engajar no mundo do trabalho, fora dos espaços gay
ou serviços de estética, “se endurecem”, diminuindo, tanto quanto possam, as
pintas em suas performances públicas. Lembra-se que, na sociedade brasileira,
um homem feminino é tudo o que um “macho de verdade” não deve ser ou se
tornar. A feminilidade degenera seus corpos e almas (Lancaster 1999), desa-
bilita-os, dentre outras coisas, a assumir muitos dos postos de trabalho social-
mente disponíveis para os homens (Rios 2004; Rodrigues e Nardi 2008).
Também não posso deixar de mencionar o caso guaiaqui, tornado clássico
por Pierre Clastres (1978). Refiro-me ao homem que não sabia lidar bem com
as tarefas masculinas: não sabia usar o arco e, como as mulheres, cuidava da
coleta. Por tudo isso, era rechaçado pela comunidade, mas não era descrito ou
se descrevia como se sentindo atraído por homens, tampouco usava adereços e
gestualidade que o remetessem ao feminino. Outro guaiaqui, entretanto, tam-
bém não sabia lidar com as tarefas masculinas, vestia-se como mulher e fazia
sexo com homens. Ele era bem visto pela comunidade (que parecia não se
preocupar tanto com o sexo biológico, no momento de classificar e valorar as
pessoas), uma vez que sua orientação erótica combinava com a performance
de gênero e as regras da divisão do trabalho.
Dos guaiaquis à sociedade ocidental, o primeiro ponto a ser destacado é a
ênfase na biologia como lócus de onde as classificações devem sair e para onde
devem convergir (Rubin 1993; Butler 2003). Além disso, e ainda que pesem as
mudanças sociais relacionadas aos reposicionamentos da mulher na sociedade
ocidental contemporânea, pode-se afirmar que, enquanto o trabalho domés-
tico, realizado pelas mulheres, tem recorrentemente ganhado o sentido de não
trabalho, o que faz com que as subjetividades das mulheres se organizem a
partir da ideia de cuidado com a casa, o cônjuge e a prole, o trabalho na esfera
pública tem proeminência simbólica para organizar as identidades dos homens
(Duarte 1986).
Os fragmentos etnográficos acima mencionados, que analisam espaços
sociais em que homens circulam e são avaliados em suas masculinidades, apon-
tam para uma importante inter-relação entre trabalho, gestualidade e adereços
e fontes privilegiadas de prazeres corporais; para a economia política do sexo-
-gênero; para a organização das configurações de estilos de estar no mundo que
os homens precisam apresentar; para sinalizar competência rumo à colocação
laboral que querem ou precisam assumir no grupo, comunidade ou sociedade
em que se inserem.
Voltando aos terreiros que investiguei, mostrei como o processo estig-
matizante contra homens femininos é atenuado pelo desafivelamento entre
sexualidade e reprodução biológica, que, de certo modo, quebra o tabu da
homossexualidade. Tal desafivelamento parece abrir caminho para a lógica
da metanidade, tornando legítimo, para os adeptos homens, uma amplitude
maior de agenciamentos contra-hegemônicos de gestualidades e adereços
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26 É justamente no processo iniciático que a complementaridade dos sexos tem a melhor visibilidade:
os homens sacrificam e tocam para chamar os deuses; as mulheres, no Ipadê, comunicam quem deve
vir para a cerimônia, aplacam as iamis e, na culinária sagrada, transformam sacrifício e oferendas em axé
especializado, de modo que a capacidade gerativa do encontro entre os sexos possa se realizar no fazer
uma nova iaô.
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entidades fechadas e exclusivas, mas, como diria Perlongher (1984), são como
pontos de um contínuo.
Talvez aí resida o verdadeiro paradoxo oferecido pela cultura sexual dos
terreiros de candomblé queto a seus partidários homens com práticas homos-
sexuais: se apresentar a um só tempo masculino e feminino, de modo a ser res-
peitado pela comunidade, mas sem perder a capacidade de sinalizar no corpo
quem se quer e o que se quer, em termos dos prazeres sexuais.
BIBLIOGRAFIA