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Migração e Religião: a vida de Dona Esperança Rita da Silva e as transformações no

cenário de Porto Velho – século XX.

NÁBILA RAIANA M. PIMENTEL1

Introdução

A pesquisa sobre a vida de Dona Esperança surge de um conhecimento prévio sobre a


trajetória do Terreiro de Santa Bárbara a partir da Dissertação de Mestrado da historiadora
Marta Valéria de Lima (2000) 2. É baseado em novas perspectivas historiográficas, pois se
fundamenta nas teorias da história das mulheres e nas questões relativas a gênero. Isto, uma
vez que a história dita regional é profundamente marcada pela presença masculina,
representada sempre pelos homens que para cá afluíram durante a construção da Estrada de
Ferro e para a conquista dos seringais. Para o desenvolvimento metodológico da pesquisa, a
micro história italiana e as reflexões acerca do gênero biográfico foram importantes, uma vez
que se trata de um método que ressurge no campo historiográfico atual.
Pensar sobre Dona Esperança Rita é falar sobre sua comunidade de destino – população afro
descendente na Amazônia. Para a etno história, faz se importante compreender a relação de
um grupo dentro de uma cultura global, ou ainda, “é o desenvolvimento histórico dos diversos
grupos étnicos a partir das suas particularidades e universos próprios,..., é o estudo dos
grupos étnicos e de suas interações mútuas” 3. Assim, Dona Esperança Rita não é apenas
uma (indivíduo), mas representa toda uma cultura (coletivo/afro descendente) que se insere
naquilo que chamamos de cultura regional.
As obras dos historiadores Lima (2000), Menezes (1998, 2005 e 2007), e Teixeira (1994)
foram as bases para a discussão mais específica do trabalho: uma biografia. Contudo, diante
da escassez documental foi necessário recorrer a determinados métodos da história oral, aos

1
Professora da rede municipal de ensino de Porto Velho – RO. Graduada em História e discente do Mestrado em
História e Estudos Culturais da Universidade Federal de Rondônia – UNIR. Bolsista da CAPES – REUNI.
2
Barracão de Santa Bárbara em Porto Velho – RO. Dissertação – Mestrado em Antropologia Cultural.
Universidade Federal de Pernambuco, 2000.
3
CARDOSO, Ciro Flamarion S. VAINFAS, Ronaldo (orgs). Domínios da História – ensaios de teoria e
metodologia. Rio de Janeiro: Campus, 1997. Pg. 322.
moldes do CPDOC, da Fundação Getúlio Vargas. “Sendo um método de pesquisa, a história
oral não é um fim em si mesma, e sim um meio de conhecimento”4. Então, as entrevistas vêm
de certa forma preencher determinadas lacunas que os documentos não foram capazes de
suprir.
De modo geral, foram realizadas leituras sobre os cultos de matrizes africanas, especialmente,
sobre o terecô. Ainda, sobre a micro história e o gênero biográfico, textos de Ginzburg
(2006), Reis (2008), Levi (1992) forneceram dados e reflexões esclarecedoras. Sobre a
questão de gênero e história das mulheres, textos de Del Priore (1992), Theodoro (1996),
Brito (1998) entre outras apresentaram a evolução do movimento feminista e a posterior
abertura das ciências humanas, em especial, a História, a aceitação da mulher como objeto e
sujeito.
As representações de Dona Esperança Rita da Silva através dos documentos.
A obra da historiadora Lima (2000) é a que apresenta Dona Esperança Rita da Silva como
sendo a primeira mãe de santo em Porto Velho – RO. Este barracão é o primeiro espaço
formalmente constituído para o culto afro brasileiro. Autores como Silva (1984)5 e
Tupinambá (1986)6 confirmam o pioneirismo do Santa Bárbara, datado de 1917, embora
ainda haja dúvidas quanto a precisão desta data.
Os textos são unânimes quanto a alguns dados: Dona Esperança, natural de Codó, cidade à
300 km da capital São Luís, Maranhão. Veio para Porto Velho com seu marido, Raimundo da
Silva, à convite de um primo, o senhor Irineu dos Santos, para trabalhar na construção da
Estrada de Ferro Madeira Mamoré, em 1911.
Quanto às origens de sua religiosidade, sabe-se que era filha de Iansã, que no sincretismo
afro-católico é representado por Santa Bárbara e praticante do Terecô.
Nas obras consultadas, sempre era representada como uma mulher caridosa, como afirma a
passagem: “... têm-se notícias de que mãe Esperança era uma pessoa caridosa, acolhia em
seu terreiro, verdadeira extensão do seu lar, mulheres desamparadas e também homens que
vinham dos seringais, contagiados pela malária, com fome”7.

4
ALBERTI, Verena. Manual de História Oral. 3ª Ed. Rio de Janeiro: FGV, 2005.
5
SILVA, Amizael. No rastro dos pioneiros: um pouco de história rondoniana. Porto Velho: Seduc, 1984.
6
TUPINAMBÁ, Ary. Viver amazônico. Porto Velho: SECET/CEC, 1986.
7
MENEZES, 1998, 22.
2
Micro história e os estudos biográficos.
Na obra de João José Reis, intitulada Domingos Sodré – um sacerdote africano8, tem-se um
exemplo do exercício da micro história italiana, aos moldes daquela praticada por Carlo
Ginzburg, que tem em seu “Queijo e os vermes”, seu máximo expoente. E esta prática norteia
a pesquisa acerca da vida de Dona Esperança Rita.
A micro história analisa a trajetória individual de um “eu”, mas em constante diálogo com o
contexto social, o “nós”. A trajetória de vida individual é o fio condutor para se pensar
determinado tempo, neste caso, a Porto Velho do início do século XX. Para Giovanni Levi
(1992), “toda ação social é vista como o resultado de uma constante negociação, manipulação,
escolhas e decisões do indivíduo, diante de uma realidade normativa que, embora difusa, não
obstante oferece muitas possibilidades de interpretações e liberdades pessoais”9. Idéia essa
que muito se aproxima do que afirma Jacques Le Goff sobre o gênero biográfico: “acho que a
biografia se aproxima da história total, que idealizávamos na Escola dos Annales. Quando
faço uma biografia, penso que devo, por meio de um personagem, chegar a uma explicação da
sociedade daquele tempo” 10.
Desse modo, o que a micro história e o gênero biográfico têm por premissas é o que se
almejou através desta análise: Dona Esperança Rita e seu contexto sócio-cultural, assim como
seu legado sócio cultural, que compõem os tópicos a seguir.
Legado afro religioso: o terecô.
Quando da vinda de Dona Esperança Rita para Porto velho em 1911, ela trouxe consigo, em
sua “bagagem cultural”, sua religião, o terecô. Ela acaba por introduzir os cultos de matrizes
africanas na cidade. Este sem dúvidas, principalmente para os adeptos de tais práticas,
constitui seu mais expressivo legado.
Os cultos de Tambor de Mina são predominantes no Estado do Maranhão. O terecô é uma
versão desta prática comum à capital – o tambor de mina, mas de forma regionalizada e

8
REIS, João José. Domingos Sodré – um sacerdote africano. Escravidão, liberdade e candomblé na Bahia
do século XX. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
9
BURKE, Peter (org). A escrita da história. Novas perspectivas. São Paulo: UNESP, 1992. Pg. 135.
10
COLOMBO, Sylvia. Visões do poente. Le Goff e Hobsbawm mapeiam o ocidente. In: Folha de São Paulo.
São Paulo: ano 80, nº 26.251, 15 de fev. de 2001.
3
sincretizada. Uma vez que esta assimila características muito próximas às práticas indígenas,
como a pajelança11.
Dona Esperança era muito procurada por conta de sua prática na arte de curar, característica
bem definida no terecô. É interessante levar-se em conta as condições sanitárias da Porto
Velho, pois tanto hospitais, médicos e medicamentos não eram acessíveis à maioria.
Independência feminina no contexto religioso: a questão de gênero.
Fazendo frente a história dita positivista que priorizava a faceta política da sociedade e tudo
aquilo que era de domínio público, perde-se de vista a participação das mulheres no curso da
história. Contudo, com as recentes transformações porque passa a disciplina historiográfica, a
“interdisciplinaridade, uma prática enfatizada nos últimos tempos pelos profissionais da
história, assume importância crescente nos estudos sobre as mulheres”12.
Mais complicado ainda torna-se o debate quando se está a falar das mulheres negras, pois esta
é duas vezes submetida: pelo gênero e pela cor. Primeiramente como escrava, a mulher negra
possibilitou o desenvolvimento e a emancipação da mulher branca. Além de levar os recados
de sua “sinhá”, permitia para esta uma vida amena, tranqüila e até ociosa. Cuidava de todos os
afazeres da casa grande, e ainda contribuía para a economia do país, pois por vezes,
trabalhava nas lavouras. Outro ponto interessante que surge destas considerações é o fato da
mulher, quer negra ou branca, ocupar o espaço do lar, enquanto que para o homem o espaço
que lhe cabe é a rua. A mulher caberia a história do cotidiano e da vida privada13 (DEL
PRIORI, 1992).
E por fazer parte do círculo familiar enquanto mercadoria teve sua sexualidade abusada e
transformada em objeto do senhor. Daí advém a suposta sensualidade da mulher negra, que
sabemos ser resultado de uma construção social. Ainda hoje a mulher negra possibilita a
emancipação da mulher branca (THEODORO, 1996, 36).
A partir destas considerações, é importante que se coloque em xeque determinadas vertentes
historiográficas, neste caso, a história regional de Porto Velho – RO, que ainda é

11
A pajelança é um conjunto ritualístico de cura praticado por indígenas amazônicos. Sinônimo de benzedura,
arte de curar, ou a prática dos curandeiros ou pajés, que utiliza métodos estranhos à medicina oficial.
12
SOIHET, Rachel. Condição feminina e formas de violência. Mulheres pobres e ordem urbana 1890-1920.
Rio de Janeiro: Forense, 1992.
13
BURKE, Peter (org). A escrita da história. Novas perspectivas. São Paulo: UNESP, 1992. Pg. 173.
4
profundamente marcada pela presença masculina. Autoras como a historiadora Nilza
Menezes14 e Helena Theodoro15 têm trabalhado essa relação entre a mulher e o contexto afro
religioso.
No caso particular desta pesquisa, a relação se dá entre Dona Esperança Rita e a história
regional. Basicamente é apresentada apenas como a primeira mãe de santo do Santa Bárbara,
contudo seu valor enquanto líder de comunidade religiosa que transitava entre o oficial e o
não-oficial (catolicismo/terecô) é relegado à planos secundários, não tendo até a presente
pesquisa despertado interesses. A história regional aparece construída por homens e para
homens. Mas havia uma mulher.

Considerações finais:
Terreiro de Santa Bárbara e Mãe Esperança Rita da Silva: comunicação e negociação
com as elites locais.
Dos milhares de migrantes que afluíram ou foram “importados” para a construção da Estrada
de Ferro Madeira Mamoré estava Dona Esperança Rita e seu esposo, que vieram “tentar a
sorte”. Dona Esperança, uma negra maranhense que funda o terreiro de Santa Bárbara dá
início à ocupação do Mocambo, bairro dos mais antigos da cidade de Porto Velho.
E o bairro do Mocambo apresenta-se mais do que uma construção geográfica, mas um espaço
lúdico, pois é neste lugar que se cria a personagem Mãe Esperança Rita. De acordo com
trabalho da historiadora Menezes16 intitulado “Com feitiço e com fetiche: a trajetória do
bairro de Mocambo em Porto Velho - Rondônia, o lugar tem seu estabelecimento diretamente
ligado á fundação do terreiro. O trabalho da referida autora é rico em depoimentos de pessoas,
antigos moradores do bairro. E em cada depoimento analisado, tem-se a imagem de uma
pessoa extremamente bondosa, querida por todos. Contudo, é importante nos perguntarmos
sobre o que há por trás dessas falas, do que é tecida essa memória.

14
MENEZES, Nilza. Arreda homem que aí vem mulher. Representações da Pombagira. São Paulo: Fortune,
2009.
15
THEODORO, Helena. Mulheres negras. Mito e espiritualidade. Rio de Janeiro: Pallas, 1996.
16
MENEZES, Nilza. Com feitiço e com fetiche: a trajetória do bairro de Mocambo em Porto Velho –
Rondônia. Pernambuco: Revista Antropológicas, 1998. Série Ensaios, Núcleo de Religiões Populares, Ano III,
vol. 08.
5
Segundo Montenegro (1994), “a cultura popular é historicamente determinada. Cada época
recupera e atribui ao popular um sentido, que, em princípio, resulta da disputa ou das
relações no interior dos discursos, na medida em que estes discursos se propõem estabelecer
17
determinados imaginários” . Entende-se a partir desta citação que cada grupo conta-se do
modo como lhe é mais interessante.
O bairro do Mocambo é até os dias atuais um lugar marginalizado na sociedade de Porto
Velho, apesar de estar no centro da cidade.
Os depoimentos dos moradores do bairro nos indicam uma mulher que servia de abrigo para
todos aqueles que o precisassem. No caso do Tenente Fernando, que dizem no imaginário
popular ter sumido graças a encantamentos de Mãe Esperança, vê-se a tentativa da construção
do mito, uma vez que o referido tenente veio a morrer três anos após a data que é vinculada a
Esperança. Ou seja, ela não foi o responsável por sua morte, por seu “sumiço”.
O que é possível perceber é a constante intenção de dizer: “nós, do Mocambo, apesar de toda
violência e prostituição, temos quem nos proteja. Esta nossa guardiã é Mãe Esperança”. A fala
de Montenegro é um indicativo para a confirmação desta análise: “através dos depoimentos,
analisar que elementos simbólicos são construídos pela população, e se apresentam, muitas
vezes, como o avesso daquilo que lhe é imposto cotidianamente, à medida que essa população
convive, tolera, assimila, reproduz a cultura oficial”18.
A cultura oficial – “nosso país cristão” – é negada através da construção/elaboração
simbólica, nesse caso, de resistência. Dona Esperança, ao dar “sumiço” ao Tenente Fernando,
torna-se um símbolo de resistência, de poder frente ao poder oficial e causa admiração em uns
e medo em outros.
Por fim, através desta pesquisa é possível tecer algumas considerações novas dentro do
contexto da História Regional, em especial, no campo das religiões. Trilhando os caminhos da
biografia, nos deparamos com Dona Esperança Rita da Silva – relação individual – e sua
comunidade de destino – os imigrantes, afro descendentes.

17
MONTENEGRO, Antonio Torres. História oral e memória. A cultura popular revisitada. São Paulo:
Contexto, 1994. Pg. 11.
18
MONTENEGRO, 1994, PG. 13.
6
Nesse espaço denominado Terreiro de Santa Bárbara, deu-se aquilo que Reis (2008) chamou
de negociação ou mediação. O Santa Bárbara se constitui então, em um perfeito espaço de
convivência e negociação entre negros e brancos, pobres – a própria comunidade – e a elite –
Aluízio Ferreira e sua família19.
Desse modo, Dona Esperança, aproxima-se bastante do escravo liberto Domingos Sodré, de
João José Reis (2008). Com isso, velhas dicotomias como escravos x libertos, negros x
brancos, católicos x macumbeiros, são superadas e vão encontrar realidades sociais mais
complexas. Dona Esperança não era apenas uma macumbeira, mas católica; não era apenas
uma negra, mas uma negra que dispunha de poder entre as elites locais e prestígios.
Em parte, pois o vivido jamais se reconstitui como foi. Esta era Dona Esperança Rita da Silva,
negra maranhense, macumbeira e, sobretudo mulher.

REFERÊNICIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALBERTI, Verena. Manual de História Oral. 3ª Ed. Rio de Janeiro: FGV, 2005.

BURKE, Peter (org). A escrita da história. Novas perspectivas. São Paulo: UNESP, 1992.

Pg. 135.

BURKE, Peter (org). A escrita da história. Novas perspectivas. São Paulo: UNESP, 1992.

Pg. 173.

CARDOSO, Ciro Flamarion S. VAINFAS, Ronaldo (orgs). Domínios da História – ensaios

de teoria e metodologia. Rio de Janeiro: Campus, 1997. Pg. 322.

COLOMBO, Sylvia. Visões do poente. Le Goff e Hobsbawm mapeiam o ocidente. In: Folha

de São Paulo. São Paulo: ano 80, nº 26.251, 15 de fev. de 2001.

19
Aluízio Pinheiro Ferreira: (1897-1980), foi militar e político que atuou na nacionalização da Estrada de Ferro
Madeira Mamoré e favoreceu para a criação do Território Federal do Guaporé, e foi a ser o primeiro governador
no novo território.
7
LIMA, Marta Valéria de. Barracão de Santa Bárbara em Porto Velho – RO. Dissertação –

Mestrado em Antropologia Cultural. Universidade Federal de Pernambuco, 2000.

MENEZES, Nilza. Arreda homem que aí vem mulher. Representações da Pombagira.

São Paulo: Fortune, 2009.

MENEZES, Nilza. Com feitiço e com fetiche: a trajetória do bairro de Mocambo em

Porto Velho – Rondônia. Pernambuco: Revista Antropológicas, 1998. Série Ensaios, Núcleo

de Religiões Populares, Ano III, vol. 08.

MONTENEGRO, Antonio Torres. História oral e memória. A cultura popular revisitada.

São Paulo: Contexto, 1994. Pg. 11.

REIS, João José. Domingos Sodré – um sacerdote africano. Escravidão, liberdade e

candomblé na Bahia do século XX. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

SILVA, Amizael. No rastro dos pioneiros: um pouco de história rondoniana. Porto Velho:

Seduc, 1984.

SOIHET, Rachel. Condição feminina e formas de violência. Mulheres pobres e ordem

urbana 1890-1920. Rio de Janeiro: Forense, 1992.

THEODORO, Helena. Mulheres negras. Mito e espiritualidade. Rio de Janeiro: Pallas,

1996.

TUPINAMBÁ, Ary. Viver amazônico. Porto Velho: SECET/CEC, 1986.

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