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RESUMO
Maria da Cruz, tinha 25 anos quando foi presa pelo Tribunal da Inquisição de Lisboa
acusada de islamismo. De acordo com a narrativa constante no seu processo inquisitorial,
disponibilizado no Arquivo Nacional Torre do Tombo, aos treze anos, vendia pão, sardinhas
assadas e vinho na Costa de Cádis aos homens que tiravam peixe do mar para o seu amo
Antão Flores, quando o local onde trabalhava foi invadido por 16 mouros que lhe fizeram
cativa. Levada à “praça”, foi comprada e levada para o Marrocos. Por três vezes, tentou fugir
dos açoites e pancadas que era submetida, mas foi “recapturada” até que conseguiu fazê-lo
andando durante quinze dias, de dia e de noite. No que se refere ao aporte teórico, a eleição
dessa matéria-prima, ao mesmo tempo sujeito e objeto, encontra-se no conjunto do que a
historiografia nomeou História das Mulheres e justifica-se pelo entendimento de que elas têm
e participam das ações cotidianas em contraposição aos discursos de sujeitos secundários e
subalternos com que foram abordadas durante séculos. A “dissecação” do conteúdo do seu
processo certamente contribuirá para um conhecimento mais aprofundado das vivências
femininas no século XVI, entrelaçado a constatação, no tempo presente, da permanência de
várias formas de violência contra mulheres, colocando um desafio ético-político fundamental
frente àqueles que recusam o irracionalismo dos discursos e práticas que continuam a embasar
tais posturas.
INTRODUÇÃO
Nesse sentido, a história de Maria da Cruz, ainda que verificada em parte, enquanto
estudo de caso, nos pareceu muito adequada para ser apresentada no “VII Congresso
Internacional de Direitos Humanos de Coimbra: uma visão transdisciplinar”,
A esta motivação soma-se um elemento não menos importante e que diz respeito a
constatação do crescimento, no tempo presente, da intolerância religiosa em várias
perspectivas, colocando um desafio ético-político fundamental àqueles que recusam o
irracionalismo dos discursos e práticas que embasam tais posturas. A abordagem do tema
assume assim uma definida posição, qual seja a de defender como fundamental guardar esse
período na memória, ainda que seja um dos mais sombrios da História contrapondo-se às
perspectivas revisionistas que negam a existência da Inquisição e suas práticas.
1
DELUMEAU, Jean. A história do medo no Ocidente: 1300-1800, uma cidade sitiada. São Paulo: Companhia
das Letras, 1989, p. 393-404.
daquele capítulo dramático e violento da História Ibérica e retirando do silêncio vidas por
tanto tempo adormecidas nos documentos.
A par da transcrição paleográfica, optei por seguir as balizas propostas por Carlo
Ginzburg. Nomeadamente seus apontamentos inscritos nas obras, “O queijo e os vermes” e 2
“Mitos, emblemas e sinais” , onde tece considerações sobre o uso de processos como fontes e
3
a imprescindível observância dos detalhes contidos nas fontes e seu potencial em revelar ricas
informações, não raras vezes decisivas, sobre pessoas anônimas, comuns, mas que compõe o
protagonismo da história, como é o caso de Maria da Cruz.
Mulheres e justifica-se pelo entendimento de que elas têm e participam das ações cotidianas
em contraposição aos discursos de sujeitos secundários e subalternos com que foram
abordadas durante séculos. Nesse sentido, a pesquisa tem sua moldura na História das
Mulheres em interface com a História Econômica, dentro do qual se entrelaçam as análises
das vivências femininas no mundo do trabalho. Isso nos leva a destacar o argumento de
Gianna Pomata, com a qual comungamos:
Outra reflexão, não menos significativa, feita pela socióloga Lia Zanotta Machado
em Gênero: conceito ou categoria de análise? tomou como objeto o clássico texto de Joan
Scott, Gênero: uma categoria útil para análise histórica a fim de questionar o estatuto
atribuído a esse conceito, sugerindo que as tentativas de afirmar as diferenças entre os sexos,
ou as relações de gênero, terminam por assentar tal intenção na defesa da centralidade de uma
dessas noções para o entendimento da vida social. Para ela, Scott não estabelecia os limites
2
GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes: o cotidiano e as ideias de um moleiro perseguido pela Inquisição.
São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
3
GINZRBURG, Carlo. Mitos, emblemas, sinais, morfologia e história. São Paulo: Companhia das Letras, 1992
4
PERROT, Michelle. Minha História das mulheres. São Paulo: Contexto, 2007 op. cit. p.19.
5
POMATA, Gianna. Fragmento da comunicação apresentada como contribuição às Leituras Críticas do
Colóquio Femmes et histoire. In: PERROT, Michelle. Escrever uma História das Mulheres: relato de uma
experiência. op. cit. pp. 24-25.
próprios do conceito no interior de um modelo teórico mais geral, produzindo um
imperialismo do conceito.
Por fim, destacamos as pontuais considerações de Maria Beatriz Nizza da Silva, das
quais comungamos, acerca da dicotomia história das mulheres / estudos de gênero. Tomando
uma posição clara, Nizza da Silva defende o uso da terminologia “história das mulheres” uma
vez que, “para a história as mulheres nunca foram abstrações, sendo o conhecimento histórico
por excelência um conhecimento relacional” . 6
DESENVOLVIMENTO
como seus pais Loureço Pegado e Grácia Rodrigues. (ARQUIVO NACIONAL TORRE DO
TOMBO, 2009)
6
NIZZA DA SILVA. Maria Beatriz. Passado e presente nos estudos sobre as mulheres. In: Igualdade de
Oportunidades. Gênero e Educação, CEMRI, Universidade Aberta, p.43.
7
De acordo com Maria de Fátima Lagarto da Silva, o povoamento de Elvas teve início no século VI. a.C. no
lugar nomeado “Alba”, cidade celta. Conquistada pelos romanos no início do século II a.C. foi renomeada
“Elvii” e, em 714, após ser tomada pelos árabes, foi chamada “IaLBaX” ou “Ielche”. (SILVA, 2012, p.3).
“No séc. XI, Ialbax era já um aglomerado populacional importante, na esfera de Batalyaws. Beneficiava não só
desta cercania, mas também de estar situada numa posição estratégica junto a uma rede viária ainda romana que
ligava entre outras as povoações de al-Qasr (Alcácer do Sal), Chantirein (Santarém) e Ushbûna (Lisboa) a
Batalyaws e de um local ideal no topo de uma colina. Por todos esses motivos a povoação ia crescendo em
tamanho e em termos populacionais e no século seguinte havia que construir outra muralha que abraçasse todo o
casario que foi nascendo já fora da cerca primitiva. “A nova cerca foi construída com diversas portas de entrada,
das quais apenas conhecemos parte. A segunda muralha islâmica seria diversas vezes alterada durante os vários
séculos no que diz respeito às suas entradas. No entanto, como portas ainda construídas durante o período
islâmico identificam-se a Porta dos Banhos ou Porta Ferrada, junto à actual igreja de São Pedro, a Porta do Bispo
e a Porta de São Martinho. “Das suas construções há a salientar, para além das novas muralhas atrás abordadas, o
seu castelo, a cisterna árabe e pelo menos uma mesquita. É esta medina que tentará ser conquistada pelos reis
cristãos a partir do século XII. D. Afonso Henriques terá entrado em Elvas, mas a cidade seria reconquistada
pelos mouros pouco tempo depois. “Em 1226, já com D. Sancho II, o cerco e a chacina voltam a ser infrutíferos.
Em 1229 seus homens conseguem finalmente conquistar a fortaleza, talvez já com menos militares a defendê-la.
(CÂMARA MUNICIPAL DE ELVAS, 2020, online)
Evangelhos, em que pôs a mão e prometeu dizer a verdade. (ARQUIVO NACIONAL
TORRE DO TOMBO, 2009)
Em seu depoimento, descreveu que, por volta de 1581, aos treze anos de vida, vendia
pão, sardinhas assadas e vinho em uma taverna nas arenas gordas, situada na Costa de Cádiz,
aos homens que tiravão peixe do mar para seu amo Antão Flores quando chegaram desaseis
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fustas de mouros que a fizeram cativa com outra muita gente. (ARQUIVO NACIONAL
9
uma definição de escravidão que nos parece bastante aplicável a seus diversos
contextos históricos é a proposta por Claude Meillassoux. Segundo ele, a escravidão é um
modo de exploração que toma forma quando uma classe distinta de indivíduos se renova
continuamente a partir da exploração de outra classe. Ou seja, a escravidão aparece quando
todo um sistema social se estrutura com base na exploração e na perpetuação de escravos
continuamente reintroduzidos seja por comércio ou reprodução natural. O autor ainda afirma
que para a escravidão existir é preciso uma rede de relações entre diferentes sociedades: há
aquelas nas quais os escravos são capturados, aquelas que dispõem de uma estrutura militar
para capturar os cativos das primeiras, aquelas sociedades ditas mercantis que controlam o
escoamento dos escravos e, por fim, há sociedades mercantis consumidoras de escravos. Essa
definição demonstra o quanto a escravidão mobiliza um conjunto econômico e social
geograficamente extenso. (SILVA; SILVA, 2009, p.110)
Desde os três anos de idade, Maria fora apartada de sua família indo para Lisboa
onde foi criada até 13 anos por uma senhora chamada Dona Isabel, casada com o
desembargador João de Souza. Quando faleceu Dona Isabel, Maria novamente veria o curso
de sua vida ser alterado ao ser levada para a vila de Pallos de la Frontera, situada no Golfo de
8
De acordo com o Dicionário Raphael Bluteau (1879, p.75), o termo “amo” refere-se ao “Senhor a respeito do
criado de servir”.
9
“Navio de remo de médias dimensões, de catorze a dezoito bancos por bordo, normalmente de dois remadores.
Aparelhava com um ou dois mastros que podiam ser abatidos e envergar alternadamente pano latino ou redondo.
A postiça era comum. Apenas as fustas de maiores dimensões tinham arrombada de artilharia, como as galés e as
galeotas. A ordenança era ligeira, usualmente não indo acima de um punhado de falcões e berços, por regra
dispostos à vante.” (PISSARRA, 2002, online)
Cádis, por Custódia Roiz, criada da casa de Dona Isabel, e onde vivia e era natural o
castelhano Antão Flores, marido da referida Custódia. (ARQUIVO NACIONAL TORRE DO
TOMBO, 2009, tif 7)
Voltemos ao episódio do seu cativeiro.
Levada para o Marrocos, Maria foi vendida na “praça” de Larache (cuja planta pode
ser vista na Figura 1) a um mouro por nome Halebe. Após quinze dias em Larache foi
novamente negociada. O então comprador foi o mouro Cid Muça Mafamede , que a levou ao 10
universo”) , lhe fizerão cõ huã navalha hu´ sinal na barba , lhe levantaram o dedo três vezes,
12 13
lhe mostraram suas biscainhas arrenegadas e lhe puseram o nome de Haahisha. (ARQUIVO
NACIONAL TORRE DO TOMBO, 2009, tif 6)
A partir de então, passou a andar vestida como moura, a guardar as sextas-feiras e a
comer carne em todas as quaresmas. Nos dias das festas se enfeitava e os guardava e só não
comia carne de porco, por ser guarda da Lei do Mouros. (ARQUIVO NACIONAL TORRE
DO TOMBO, 2009, tif 6)
Maria não estava feliz. Não podia estar. Era cativa, já não tinha o seu nome, já não
tinha a sua religião. Não se resignou e por três vezes, tentou fugir. Em todas elas, como
registra em seu processo inquisitorial, tornaram a tomá-la. (ARQUIVO NACIONAL TORRE
DO TOMBO, 2009, tif 6)
Não desistiria e, aconselhada por um clérigo de Valadollid, buscaria com afinco para
reconquistar a sua liberdade. Em companhia de Dom João D´Azevedo, de seu sobrinho Lins
10
Os termos Mafoma e Mafamede, são frequentemente encontrados nos documentos quinhentistas em referência
à religião islâmica e, ou, ao Maomé. (MOTA, 2017)
11
Hala Hala pode ser traduzido como “Alá é o único, onipotente e única divindade e criador do universo”.
(A FONTE DE INFORMAÇÃO, 2021-2022, online)
12
Hala significa apenas Alá, acredito que essa frase é uma alusão ao que é dito em árabe na confissão de fé: “La
ilaha illa Allah, Muhammad rasoolu Allah”, que quer dizer “não há verdadeiro deus, exceto Allah, e Muhammad
é o Mensageiro de Deus”. https://www.islamreligion.com/pt/articles/204/como-se-converter-ao-isla-e-se-tornar-
muculmano/
13
IBRAHIM, 2011; IQARAISLAM, 2022.
D´Azevedo e outros, que não lembrava o nome, andou por quinze dias ou três semanas
embrenhada, caminhando de dia e de noite até Azamor (cidade da costa Atlântica do norte do
Marrocos), passando de noite pelos lugares dos mouros. (ARQUIVO NACIONAL TORRE
DO TOMBO, 2009, tif 6)
De Azamor Maria seguiu para Mazagão, importante cidade portuária à época sob
domínio português.
Nunca saberemos os detalhes daqueles dias e meses, mas certo é que Maria
conseguiu chegar em Ceuta e atravessar o Estreito de Gilbraltar. No outro lado da margem
continuou a sua jornada até Sevilha, e, finalmente, Lisboa (ARQUIVO NACIONAL TORRE
DO TOMBO, 2009).
Sua busca por liberdade durou doze anos, sendo um ano e meio o tempo da sua
última e bem sucedida fuga.
Ao chegar em Lisboa, porém, ainda haveria de se explicar ao Tribunal Inquisitorial,
pois aos olhos do Santo Ofício cometera o “crime” do islamismo.
Já havia passado um mês desde que Maria chegara em Lisboa e, segundo suas
palavras, após uma pregação de Mestre Inácio Lemos e Frei Francisco, Confessor do
Arcebispo, foi falar com o o Arcebispo e ele a mandara para o Tribunal portando um recado
que Maria de tudo pedia perdão e que já tinha tinha sido mandado que não saísse da cidade
sem autorização da Mesa Inquisitorial e que nela se apresentasse todas as quartas e sextas-
feiras, o que ela prometeu fazer, (ARQUIVO NACIONAL TORRE DO TOMBO, 2009)
Depois de tanto, Maria ainda teria outra luta. A de fazer os Inquisidores acreditarem
que ela falava a verdade.
Em sua declaração, afirmou que era cristã batizada e crismada, que sempre
comungava e fazia os mais autos de cristã. Os Inquisidores mandaram então que se
persignasse (o sinal da cruz com o dedo polegar, primeiramente na testa, depois na boca, e,
por último, no peito), se benzesse e dissesse as orações e doutrina dos cristãos. E respondeu
com as orações Padre Nosso, Ave Maria, Creio em Deus Padre e Salve Regina e que cria na
Santa Madre Igreja de Roma. (ARQUIVO NACIONAL TORRE DO TOMBO, 2009)
A sessão continuou com perguntas se no tempo em que esteve no Marrocos ela
realmente não teve fé na boca e no coração como moura, se não sabia da extensão do seu
pecado, se havia deixado de crer em Nosso Senhor Jesus Cristo e nos Santos da Igreja, se
fazia o jejum do Ramadão, se guardava as festas dos mouros, se orava as orações dos mouros,
se induziu alguém a ser mouro e se ia nas masmorras dos cativos. (ARQUIVO NACIONAL
TORRE DO TOMBO, 2009)
Maria foi contundente ao afirmar que só havia “sido” moura pelo medo que lhe
fizeram, mas que em seu coração sempre havia sido cristã, que andava em trajes de moura,
pois fingia sê-la por medo dos açoites e pancadas e que se apresentava à Mesa para pedir
perdão e misericórdia dos seus erros e pecados. (ARQUIVO NACIONAL TORRE DO
TOMBO, 2009)
Cansaço, medo e culpa. Novamente o desassossego de ser castigada. Agora para
provar que era cristã. Apanhou por ser cristã e, ali, via-se submetida a um interrogatório para
provar que não era moura.
E confirmou, mais uma vez, que em seu coração sempre teve crença na Lei de Jesus
Nosso Senhor, no entanto entenderam os Inquisidores e Deputados responsáveis pelo seu
processo que ela havia ido a Mesquita e se tornado moura “por dizer que queria ser moura”.
Declarada suspeita na Fé e culpada por aceitar a Lei dos Mouros (como se ela tivesse
alternativa). (ARQUIVO NACIONAL TORRE DO TOMBO, 2009)
Sua sentença foi proferida na Mesa em 13 de abril de 1593 e como pena: abjuração
de vehementi (atribuída a pessoas seriamente suspeitas); reclusão para receber instrução da fé
em lugar recluso; proibição de ter contato com mouros sem licença da Mesa; obrigação de
fazer os autos de boa católica e pagamento das custas do seu processo.
No dia 16 de julho daquele ano, foi “certificado” que Maria sabia a doutrina cristã.
(ARQUIVO NACIONAL TORRE DO TOMBO, 2009)
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Maria não foi resgatada, como ocorreu a muitos, antes resgatou-se a si própria.
Maria resistiu. Maria reExististiu. Enfrentou, buscou e recuperou a sua liberdade e
mesmo quando a teve de volta, ainda encontrou forças para responder às desconfianças do
Tribunal Inquisitorial mostrando que sempre foi o que foi, uma valente e digna mulher
compromissada com a sua verdade, sua trajetória e sua história.
Maria da Cruz fez valer a sua pessoa humana em detrimento da violência que a
assaltou tantas e diversas formas. Foi resiliente e resistente e praticou, mesmo sem imaginar, o
que mais tarde seria o que chamamos Direitos Humanos.
Enfim, Maria da Cruz assegurou a si própria o direito à liberdade e à vida.
REFERÊNCIAS
PERROT, Michelle. Minha História das mulheres. São Paulo: Contexto, 2007 op.
cit. p.19.