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“Culturas orais, ainda hoje, têm na memória um recurso valioso, pois ela permite o
‘armazenamento’ e a transmissão dos conhecimentos. E a oralidade foi por muito
tempo um instrumento fundamental nesse fazer. Contudo, ao longo do tempo,
criaram-se os registros escritos e, com isso, aprendemos a pensar que apenas o que
está escrito, registrado e fixo é confiável e tem valor”, analisa a professora de
história na Universidade de Taubaté (Unitau) Suzana Ribeiro, doutora em história
pela Universidade de São Paulo (USP). Ou seja, “a escrita era – e de certa forma
ainda é – de domínio de poucos. E com isso, não podemos deixar de pensar que
valorizar seus registros como documentos históricos era também forma de ‘roubar’
o protagonismo das pessoas comuns e nos fazer acreditar que apenas grandes
líderes e heróis fazem parte da história”, observa.
Memória plural
Fundadora e curadora do Museu da Pessoa – plataforma virtual e colaborativa de
histórias de vida –, a historiadora Karen Worcman também reflete sobre a crença
de que as sociedades ditas “cultas” ou “desenvolvidas” eram aquelas que tinham a
escrita, diferenciando-as, em qualidade, das sociedades orais. “É todo um
arcabouço que sustentou a ideia civilizatória e que separou e justificou para os
colonizadores a superioridade da sociedade ocidental. Veio junto a esse tipo de
crença uma série de ações que deixaram de fora um conjunto de saberes e práticas
das sociedades orais”, aponta.
Escritor, músico e cineasta, Cristino Wapichana acredita que quando “um povo
quer sempre ser superior a outro povo, ele esquece a coisa mais básica, que é a
existência de uma única humanidade”. Artista indígena do povo Wapichana, que
vive na região conhecida como Reserva Raposa Serra do Sol, no norte de Roraima,
Cristino ouviu muitas histórias de sua mãe e sua avó, compartilhando-as até hoje
para que as línguas e conhecimentos de seu povo sejam valorizados. Por isso,
defende a oralidade como “a principal forma de repassar toda a ancestralidade de
um povo e dela continuar sendo utilizada para atualizar essas memórias”.
Wapichana conta que para os povos originários, a oralidade é o que dá voz a todas
as coisas. “Ela comporta tudo de conhecimento, tudo que nós compreendemos
sobre o mundo, sobre as coisas, sobre os seres, sobre as pessoas, sobre o próprio
universo, sobre a natureza. A oralidade é a parte primordial do ensinamento de um
povo. Então, sem ela a gente não conhecia as plantas medicinais, não sabia de casa,
de pesca, de ler estrela, de ler o universo. Não conhecíamos sobre direitos, deveres,
nada disso.”
Nas últimas décadas, mais ações como essa desdobram-se pelo país, a exemplo da
iniciativa pioneira do Museu da Pessoa, criado em 1991 [Leia Valorizar
Memórias], e do premiado podcast Negra Voz, do jornalista Tiago Rogero, sobre a
herança africana e os grandes feitos de negras e negros do passado e do presente no
país. “Na escola, ao se ensinar sobre pessoas negras nos períodos da colônia e do
Império no Brasil, elas só aparecem como escravizadas no tronco. Ignora-se que,
mesmo nessa condição, muitas estavam resistindo, formando quilombos,
professando sua fé, formando famílias, aprendendo a ler, ensinando outros”, disse
Rogero em entrevista à edição de janeiro de 2023 da Revista E. Compreender e
valorizar a oralidade como um documento histórico não só permitiu a organização
das práticas de história oral e de movimentos de pesquisa, publicações e outros
suportes, como também ecoou uma pluralidade de vozes. “Dessa maneira, [essas
narrativas de vida] representam melhor a diversidade de pessoas que compõem a
população de cidades como São Paulo e países como o Brasil. Digo mais; qualquer
história de cidades ou países que não seja plural, é parcial e excludente”,
acrescenta a pesquisadora Suzana Ribeiro.