lado. Hoje, de manhã, quando a servente veio fa- zer a limpeza, o encontrou morto. Eu não esta- va na hora, já havia saído para o trabalho; e de tarde, quando cheguei, já haviam levado o corpo. Ele morreu durante a noite. Parece que ainda não sabem se foi morte natural ou suicídio. Ele chamava-se João. Até ontem eu pensava que o seu nome fosse Alberto. Deve ser porque alguma vez ouvi, por engano, alguém se referir a ele com esse nome. Não me lembro de quem ou quando foi, mas só pode ser, porque nunca con- versamos e ele nunca teve a oportunidade de me dizer o seu nome, ou eu de perguntar. Apesar de vizinhos, nunca fomos um ao quarto do outro. Mas isso não tem nada de mais, é uma situação comum num hotel; há pessoas que passam anos morando em quartos vizinhos e às vezes não tro- cam nem mesmo uma palavra. Havia talvez mais de ano já que ele morava aqui. Lembro-me dele no hotel há um bom tempo, embora não me recorde exatamente da primeira
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vez em que o vi. A não ser quando é uma pessoa com alguma característica marcante, a gente não presta muita atenção nos hóspedes novos: uma hora cruza no corredor e observa que a pessoa é nova no hotel, mas pode ser que antes disso, on- tem ou anteontem, já tenhamos passado por ela até mais de uma vez e nem reparado. É que há sempre gente chegando e saindo, e quem já mora no hotel há mais tempo se acostuma com esse movimento. Ele era uma pessoa comum, não se distinguia por nada. A velha do trinta e quatro, por exem- plo: essa, desde o primeiro dia em que a vi me chamou a atenção, com aquele vestido quase ba- tendo nos pés, o coque e a cara fantasmagórica. Até hoje, quando passo por ela, ainda a observo; de maneira discreta, evidentemente. Mas ele não: lembrando-me agora das vezes em que o vi, em que cruzei com ele no corredor, sei dizer que ele era de estatura média, uns trinta anos de idade, o andar lento, sempre de terno escuro e gravata. Pouco mais do que isso eu poderia dizer. E não falo, assim, da cor dos olhos, ou se, por exemplo, ele tinha alguma cicatriz no rosto; falo de sua aparên- cia. Era uma pessoa alegre? Triste? Preocupada? Eu não saberia dizer; pelo menos com segurança. Cum- primentávamo-nos, e posso dizer que ele era uma pessoa educada. Mas não me lembro de nenhuma vez em que ele tenha me sorrido, além desse vago
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sorriso que acompanha um bom-dia ou um boa- -noite. Nem por isso, também, tinha cara de poucos amigos. A impressão que me fica dele, agora que ele está morto e que me lembro das vezes em que o vi, é a de uma pessoa simpática, educada, calada. Chego a pensar que poderíamos ter sido bons amigos. É um pensamento que me vem agora des- sas impressões. Na verdade, não há nada que me garanta isso, pois eu não sabia, nem sei ainda, praticamente nada a respeito dele. Como disse, nem o seu nome eu sabia. Julgo pelas impressões. É uma pessoa de quem eu teria prazer em me aproximar e puxar conversa, tornar-me amigo. Quanto a ele, não sei, não posso ter ideia do que ele pensava em relação a mim, mas imagino que me encarasse também com alguma simpatia, já que, pelo menos nas aparências, tínhamos algu- ma coisa em comum, esse mesmo jeito calado. Penso tudo isso agora que ele morreu e que es- sas coisas não poderão mais acontecer. Mas, tal- vez, eu já pensasse antes; apenas não cheguei a expressá-lo claramente para mim, como faço ago- ra. É que nunca dei maior atenção à coisa. Tenho a cabeça sempre muito cheia de preocupações. Meu serviço é muito absorvente; mesmo no hotel, quando chego, à noite, é difícil pensar em algo que não esteja relacionado a ele. E quando isso me cansa ou aborrece, o que geralmente faço é ir
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a um cinema, ou então beber com algum amigo no bar. Se estou com preguiça de sair ou sem von- tade, ligo o rádio e fico escutando música até vir o sono. Nunca, nessas ocasiões, pensei no v izinho. Para dizer a verdade, era como se ele não existis- se, ou que tanto fazia ele existir quanto não existir. Eu sabia que havia um outro quarto ao lado do meu e que nesse quarto morava outra pessoa, que era aquele homem que eu via no corredor e cumprimen- tava; mas nunca me pus a pensar detidamente nis- so. Eu tinha ali, no hotel, o meu quarto para dormir; e fora, na rua, o serviço, os amigos e as diversões. Era isso o meu mundo. O homem do quarto vizinho não entrava nele; eu não sentia necessidade dele, e, por isso, não pensava nele. Pode ser que o mesmo acontecesse com ele: talvez não sentisse também necessidade de mim e não pensasse em mim. Agora ele morreu, e penso nele; mas é apenas porque sua morte me impressiona. Pois, fico lem- brando, ontem mesmo passei por ele e o cum- primentei; e agora ele está morto. Mas não sinto nenhuma espécie de tristeza. Não éramos amigos. Não chegávamos a ser nem mesmo conhecidos. Simplesmente vizinhos. Como já houve outros an- tes dele, de que ainda me lembro ou de que já me esqueci, e como haverá outros depois dele. Daqui a alguns dias, talvez até amanhã mesmo, outra pes- soa virá morar em seu lugar. Há sempre gente pro- curando quartos, e o hotel não quer perder dinheiro.