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BENSE Lygia Pape Sem titulo, 1956 Imagens da série Tecelar ‘© Projetoygia Pape 169 YEORIA Terreno intermediario entre a criacao e a conviccao, o ensaio é uma peca de realidade em prosa que nao perde de vista a poesia ensaio e sua prosa Que ninguém se admire ao ver um légico a ponto de dizer duas ou trés coisas sobre as questdes mais sutis da prosa, sua forma e seu estilo ~ duas ou trés coisas que se costuma ouvir apenas da parte de criticos ou mestres da criacdo lite- raria. Parece-me que é chegada a hora de examinar, tanto a0 espelho do esprit géomeétrique como ao espelho do esprit de finesse, os elementos € os resultados do gosto literdrio e poético. Podemos nos valer das ideias de Pascal para tracar distingdes precisas no dominio verbal e chegar a uma com- preensio de certas formas caracteristicas. Nao seria bom que 08 poetas € 0s escritores se exprimissem de vez em quando sobre seu material, suas criacdes, sobre prosa, poesia, frag- mentos, versos ¢ frases? Creio que dai poderia surgir uma teoria respeitavel, no ambito da qual 0 processo estético se apresentaria no apenas como fruto da criacdo, mas tam- bém como fruto da reflexao sobre a criagao. Além do mais, tal teoria teria a vantagem de ser de origem ao mesmo tempo racional e empirica. ‘Assim, bem podemos perguntar em linhas muito amplas: o que distinguiria uma passagem de prosa pura de uma de poesia pura? Como Sulzer j4 demonstrou, 0 verso por si s6 é insuficiente como fronteira entre uma e outra. A constatagao é esclarecedora, mas, dito isto, € 6 com grande esforgo que consigo acompanhar, ao longo das obras literarias, o traco sutil da transicdo continua da poesia & pro Podemos tentar capturar a perfeicdo intima disso que ora cham mos de prosa, ora de poesia, definindo a prosa como uma espécie d poesia generalizada, Desse ponto de vista, o ritmo e a métrica, au caracterizam toda poesia, se transfeririam em suave continuid para os periodos bem articulados e para as cesuras bem cortadas¢ estilo prosaico; a ser assim, aquilo que Lessing chamou, numa mula téo bela, de “discurso sensivel levado & perfeicao” [vollkom sinnliche Rede] se metamorfosearia na ordem de uma prosa qu atinge sua densidade maxima e seu auge classico nos fragmentos¢ Pascal, nos discursos de Galileu, nas meditagdes de Descartes, romances de Goethe ¢ na metafisica de Hegel - a0 mesmo que neles atinge os limites da dispersao do fendmeno prosaico. cluo que, em ultima instancia, o poeta nao pode ser compree seno a partir da poesia, assim como o escritor nao pode sé-lo a partir da prosa; uma e outra exigem alguns comentirios, antes au eu chegue a meu objeto propriamente dito. O intelectual é ou bem um criador ou bem um educador. Ou bess cria uma obra ou bem defende uma conviccdo. Para a obra, o temps indiferente; para a conviegdo, nao. Hé uma diferenga essencial entre poeta ¢ o escritor; num sentido ontoldgico, o poeta acrescenta ao [das Sein vermehr#}, ao passo que o escritor, por obra de suas convicede tenta manipulara esséncia do ser, tenta fazer valer o espirito conen que ele representa. Estou convicto de que a criacdo é uma categoria estética, a0 que a conviccdo tem na ética o seu lugar natural, 0 que co cada qual uma autonomia ontoldgica, A arte interessa por suas cB Ses, e todo estado estético produzido pela arte constitui uma ximagao ao ato de criaco de um ser; por sua vez, 0 estado ético (e todos os seus graus, da conviccao a revolugio, da cultura a supera da mesma) est sempre as voltas com a esséncia desse ser [das Wes dieses Seins|. A poesia consumada é expressao de um estado estéti 0 passo que a prosa magistral trai sua origem ética. Portanto, ad cdo sutil entre o estilo estético e 0 estilo ético (que se espelha na di renga entre o estilo idealmente poético e um estilo idealmente é sempre uma distincdo qualitativa entre modalidades, a despeitod sabidas transicdes entre uma e outra. Oescritor se volta para um espaco mais limitado ¢ pacifico queod poeta, mas nem por isso seu olhar é de comunhio ou meditacao, contrario: ele é seletivo, imperativo, destrutivo, construtivo, inqui 86 0 escritor movido por uma convicgdo pode igualmente ser cientis filésofo, critico politico ou religioso. Talvez seja preciso ter d Pt para tras o prazer profundo da criacao pura para substituir o canto pela vontade, pela meta ardorosamente perseguida. A mira posta no leitor desvia o escritor da criagdo, assim como a mira na utilidade des- via a ciéncia da verdade intocavel. A paixao sem peias que responde pela criagao da obra nao se comunica facilmente com a vontade sem peias do espirito que representa uma conviceiio. A histéria das ideias nos ensina que o intelectual, o representante de uma conviegio, ganha influéncia e se faz necessario nas épocas dificeis. A constatagio beira osupérfluo. Ao contrario da prosa, a compreensiio da poesia depende menos do contexto de época. Nesse sentido preciso, Lessing, Herder, Kierkegaard, Marx e Nietzsche sao grandes escritores, interessados empenhados no trabalho de tornar visivel a esséncia humana. Hoje em. dia, pertencem a essa mesma categoria autores como Gide, Sartre e Camus, na Franca, ou Unamuno e Ortega, na Espanha, ou ainda Gottfried Benn, Ernst Jiinger, Walter Benjamin, Theodor Haecker e Karl Kraus, no ambito da lingua alema. Ora, pode-se observar nesses mesmos escritores uma peculiar coincidéncia de convicedo € criacdo. Esses autores so todos casos intermediérios, no sentido mais genufno da palavra. Em sua criaciio reside inegavelmente a poesia, mas a expressio, a forma como a cria- cdo se da e se apresenta, é da ordem do argument porfiado — néo do argumento fundado no pathos ou na demonstracdo cabal e gran- diosa, mas do argumento que se articula discretamente, por meio da repeticao incansavel. Tal prosa lanca luz.e vida sobre os objetos de que cla fala e que cla gostaria de dar a conhecer; ao mesmo tempo, ela fala sobre si mesma, ela se da a conhecer como expressiio autén- tica do espirito. caracteristico que esse modo de proceder se intro- duza mesmo nas construgdes verbais. As conviccdes estdo embuti- das na expressao do pensamento, que procede por meio de signos; no todo, a prosa se mostra como uma configuracao de palavras, ela manipula signos ¢ os associa a determinadas construgdes, periodos, passagens, em cujo ambito devem se manifestar certos contetidos determinados; ela respira 0 ar da mais estrita precisao, mas, ao fim ao cabo, é apenas criptorracional. Ela oculta sua prépria raciona- lidade. Por qué? Porque ela nao quer ser pura convicc&o, porque ela ainda € poesia, porque ela s6 se remata no afi por uma criagio sem mécula, Nao pode ser de outra maneira quando se persegue uma meta ditada no apenas pela intengdo, mas também pela forma, quando nao apenas o conhecimento, mas também sua expresso e comunicacao poem em movimento a vontade do autor—e 0 fazema tal ponto que nao sera de admirar que a vontade va mesmo “além do espirito”, para dizé-lo nos termos da censura cartesiana. Em sie para Sem titulo, 1959 73 si,avontade literdria é dominada pela razio, mas aqui a razao deve se ocultar, por amor a forma, que é da ordem do estético; de outro modo, ganharia evidéncia demais oaspecto ético, que nao deve ser exclusivo, em que pese aadesao do autor aos pensamentos proclamados. Dito em outras palavras: a inten¢ao de educar e influenciar por meio da forma introduz no espago estético a repe- tigdo, a manipulagio de signos, o célculo, mas a impres- sao de racionalidade que assim se cria apenas simula 0 projeto ético, que deve permanecer oculto. Donde uma questio essencial: uma convicgao derivada de meras formas estéticas é capaz de se fazer valer a longo prazo? A conviccao nao é sempre ideia, conteudo? O problema das formas é um problema de abstragao estética, e ha sempre um ponto em que a abstracdo se converte no mais concreto dos atos. Uma vez que, por natureza, a convicgdo é manifestacdo de uma vontade que vincula aideia a vida, a conviccao é sempre um fenémeno exis- tencial. Se for auténtica, ela nao tem como suprimir esse seu momento existencial, e é por isso que sempre chega © ponto em que uma conviccao — mesmo uma convic- io estética —adentra o estado ético. Podemos entio admitir que entre a poesia ea prosa, entre 0 estado estético da criacao e 0 estado ético da conviecio, ha um terreno intermediario que é digno de nota. De aspecto iridescente, oscilando numa ambi- valéncia entre a criagdo e a conviccao, ele se fixa na forma literaria do ensaio. E com isso chegamos a nosso objeto. 0 ensaio é uma pega de realidade em prosa que nao perde de vista a poesia. Ensaio significa tentativa. Podemos bem nos perguntar se a expressio deve ser entendida no sentido de que aqui esta se tentando escrever sobre alguma coisa — isto é, no mesmo sentido em que falamos das agdes do espitito e da mao - ou se 0 ato de escrever sobre um objeto total ou parcial- mente determinado se reveste aqui do carater de um experimento. Pode ser que ambos os sentidos sejam ver- dadeiros. O ensaio é expressao do modo experimental de pensar ¢ agir, mas é igualmente expresso daquela atividade do espirito que tenta conferir contorno pre- ciso a um objeto, dar-lhe realidade e ser [Sein]. Nem os objetos nem os pensamentos a seu respeito se dio em 74 Ambito eterno ou absoluto, uns e Outros se mostram como objetos Telativos e pensamentos relativos, Por isso mesmo, 0 ensaio nao ‘chega a formular leis; contudo, seus objetos e pensamentos vido se orde- nando lentamente, de modo tal que podem um dia vir a ser tema de teoria, Todo fisico sabe que o experimento conduzido sobre um caso Particular pode servir para a dedugio de uma teoria, de certas leis; da mesma maneira, o ensaio prepara substratos, ideias, sentimentos € formas de expresso que algum dia virdo a se tornar Prosa ou poesia, convicgao ou criagdo. O ensaio significa, nesse sentido, uma forma de literatura experimental, do mesmo modo que se fala de fisica experi- mental em contraposiao a fisica teoriea. Por isso, o ensaio no se con- funde com a tese ou o tratado. Escreve ensaisticamente quem tenta capturar seu objeto por via experimental, quem descobre ou inventa Seu objeto no ato mesmo de escrever, dar forma, comunicar, quem Interroga, apalpa, prova, ilumina e aponta tudo 0 que pode se dar a ver sob as condi¢des manuais e intelectuais do autor. O ensaio busca aprender um objeto abstrato ou concreto, literario ou nao literdrio, tal como ele se da nas condicées criadas pela escrita, Deve-se entender por procedimento experimental a tentativa de extrair uma ideia, um pensamento, uma imagem abrangente a par. tirde certa massa de experiéncias, consideragoes e reflexes. 0 autor fareja uma verdade, sem contudo té-laem méos; 0 autor vai fechando © circulo em torno delas por meio de sucessivas conclusées, formulas verbais ou mesmo reflexes digressivas que descobrem lacunas, con tomas, cernes, contetidos. A prosa que nasce dai nao é transparente como uma teoria. Nomelhor dos casos, vamos ao encontro da génese de uma teoria, presenciamos um nascimento e no nos livramos da impressio de que o proceso criativo em alguma medida impedea visdo unitaria do todo. A mestria consumada no ensaio consistiri Pois, em levar o procedimento experimental encarnado na exp: sao verbal as raias do tedrico, até o limite em que comega uma outra espécie de prosa ~a teria. Desse modo, a reproducio linguistica do pensamento ex; mental ou bem representa a génese de um pensamento ou bem 4 prova a verdade desse pensamento num determinado conte: Assim sendo, 0 ensaio pode ser visto como conclusao ou origem: uma ordem de pensamentos. E 0 ensaio tem sempre o carter de Prova, de uma prova que procede por meio de experimentos, te tivas— portanto, ndio uma prova de cardter dedutivo, mas uma pr de carter experimental, ensaistico, pragmatico. f claro que, as como acontece com a capacidade de deducao, a capacidade de con, 2ir experimentos com ideias demanda um aprendizado prévio. 75. basta escrever um punhado de poemas para ser ensaista. E preciso ter ideias para escrever um ensaio, mas de nada serve entregar-se ao ecle- tismo das ideias. E preciso ter uma ideia de partida, a cujo nascimento estivemos presentes, para que se possa fazer experimentos com sua verdade; o sentimento, por si s, nao basta. Nesse sentido preciso, 0 ensaio é também um modo de comuni- cago experimental, de modo que deixa de depender formalmente do contetido de seus objetos: ele € 0 resultado de uma combinacao dos contornos e dos contrastes desses objetos. O ensaio tem o direito formal de se valer de todos os meios de construgio racional e emo- cional, bem como de todos os meios de comunicagao racional e existencial — da reflexao, da meditagao, da deducio, da descrigao -; pode langar mao tanto de metaforas como de sinais abstratos, da dtivida como da prova, da destrui¢o como da provocacao; tem 0 direito de levar uma tese ao extremo tedrico, como pode também encobri-la para ganhar em concretude; a Optica perspectivistica amecdnica da montagem formam o aparato tecnoldgico dessa arte do experimento. Eclaro que em todo ensaio ocorrem belas frases, que sfio como que seu germe, sua origem. E por essas frases que se sabe que essa prosa néo tem fronteira fixa em relagdo a poesia. Essas frases elementares per- tencem tanto 4 poesia como a prosa, so momentos de “discurso sen- sivel levado a perfeicdo”, momentos de um corpo linguistico que nos comove como se fosse a propria natureza, ao mesmo tempo em que sao momentos de um raciocinio agucado, de uma dedugio rema- tada que nos comove como uma ideia platénica. Devemos aprender a ler nessas duas linguas se quisermos chegar a fruir plenamente de um ensaio... Caso contrario, acabamos por converter o ensaio numa sequéncia de aforismos, cada qual contendo um pensamento levado ao extremo, como se pode observar em Lichtenberg, Novalis ou Goethe — ou, sendo, numa sequéncia de imagens poetizadas que, a maneira das lluminagdes de Rimbaud, coligem os membros dispersos de uma “poesia infinita” levada quase a perfeicao. Chegamos a um novo momento de definigao. Nao salta aos olhos que todos os grandes ensaistas foram também criticos? Nao salta aos olhos que todas as épocas marcadas pelo ensaio foram também, essen- cialmente, épocas criticas? O que isso quer dizer? Avancemos por partes. Na Franga, 0 ensaio desenvolveu-se a partir do trabalho critico de Montaigne. Suas indicagdes sobre como viver morrer, pensar e trabalhar, desfrutar e penar so obra de um espirito critico. O elemento em que se move sua reflexdo é aquele dos grandes moralistas ¢ céticos franceses. Montaigne é um espirito fundador, o Sem titulo, 1957 7 iniciador de uma tradi¢ao critica que determinou intei- ramente 0s séculos 17 18. Hé uma linhagem que leva de Montaigne a Gide, Valéry e Camus. Na Inglaterra, coube a Bacon desenvolver o ensaio; todos os seus ensaios comportam uma segunda intencao, que pode ser astuciosa, moralista, cética, iluminista — em suma, cri- tica. No fundo, foi ele que suscitou autores como Swift, Defoe, Hume, W.G. Hamilton, De Quincey e Chesterton, para ndo falar de modernos como Poe, Bertrand Russell, AN. Whitehead, TS. Eliot, Strachey, e assim por diante. Na Alemanha, pode-se assistir como Lessing, Méser e Herder a um s6 tempo inauguram e dominam a nossa forma de literatura experimental. No caso de Herder, sobretudo nas inesgotaveis Cartas sobre o progresso da humanidade, que certamente constituem a mais sig- nificativa reunido de ensaios classicos; é bem sabida a abundancia de ideias criticas contidas neles. Friedrich Schlegel — ele mesmo um mestre da critica e do ensaio— caracteriza Herder como o tipo puro do criticoe vénele um protestante no sentido mais vasto do termo; Adam Miiller, por sua vez, aponta Lessing e sua conferéncia sobre 0 surgimento da critica alema como uma fonte decisiva. Ja mencionamos Dilthey, Nietzsche, Ortega y Gasset. A eles, seguem-se os mais jovens: Gottfried Benn, oriundo do expressionismo; Hofmiller, o critico litera- rio; Karl Hillebrand, que sabia partir do momento con- tempordneo para chegar a uma visada analitica; Ernst Janger, cujos ensaios conduzem experiéncias no tom sereno, meio cinico, meio eético, de um Montaigne; 0 precocemente falecido Eugen Gottlob Winkler, eritico de Jiinger e de Stefan George; Rudolf Kassner, o incan- sdvel, sempre disposto a sublinhar, naquele seu tom ligeiramente velhusco, as vantagens historicas da inteli- géncia analitica; Walter Benjamin e sua prosa grandiosa, ritmica, feita de imagens claras e reflexos perturbado- res (basta citar dois exemplos, “Infancia berlinense” e “Sobre alguns motivos em Baudelaire”, em que a atmos- fera [Stimmung] ea racionalidade sao mantidas separa- das, e um terceiro, “Rua de mao tinica”, em que uma ¢ outra se confundem); Thomas Mann, cujos periodos Jongos vertem a esséncia do €pico no ambito do ensaio, e isso num leque tematico que compreende arte, 178 histéria, psicologia e politica; e finalmente os ensaistas austriacos, de ‘irenberger e Speidel a Karl Kraus, Hofmannsthal e Stol— este tltime chegou mesmo a consagrar ao género uma espécie de teoria, segundo qual o “instintual” e o “consciente” se equilibram “harmoniosamente® no interior do ensaio. O ensaio nasce da esséncia critica de nosso espirito; seu prazer €1 experimentar deriva simplesmente de uma necessidade do seu mod de ser, do seu método. Para dizé-lo de forma mais ampla: 0 ensaio a forma da categoria critica do nosso espirito. Pois quem critica d também, e necessariamente, conduzir um experimento, deve condic6es sob as quais um objeto se mostra a uma nova luz, deve tar a forca ow a fragilidade do objeto — e é por isso que o critico su mete seus objetos a infimas variacdes. Se pedissemos a um critico li nario que estipulasse certas leis e preceitos para a critica 4 imagem 4 que as velhas poéticas faziam para outros géneros literarios, ele ded raria que em toda boa critica vige a lei que conserva a variacao minis do objeto —variacao que intervém justamente ali onde a grandeza a miséria do objeto literdrio se tornam plenamente visiveis. O ens trabalha sob a mesma lei, ela define o método de sua experiment Nesse sentido, o ensaio comporta tudo o que pertence a categoria espirito critico: a sitira, a ironia, o cinismo, o ceticismo, a argun 40, 0 nivelamento, a caricatura, e assim por diante. Ao privilegi forma literdria do ensaio, o critico se instala naquele terreno inte diario entre 0 estado ético, de um lado, ¢ 0 estado estético-criativo outro; nao pertence a nenhum dos dois, seu lugar € essa zona inter didria, o que, de um ponto de vista sociolégico, significa que cle se si entre as classes e entre as épocas, que ele encontra seus confrades onde se preparam as revolucdes (explicitas ou silenciosas), as resis cias, as subversdes. Ja dissemos o que se alcanga por meio do ensaio. Mas o que se to visivel por meio dele? A pratica ensaistica torna visiveis os cont de uma coisa, os contornos de seu ser interior e exterior, os contornes! “ser-assim” do objeto. Mas os contornos que se desenham assim no. respondem a um limite, a uma fronteira substancial — 20 menos necessariamente. Em si mesmo, o experimento ensaistico indeper da substancia e pode até conviver com certa heterogeneidade des maneira de uma sequéncia de aforismos, por exemplo, nao é pre: ordenar tudo segundo principios, sistemas, deduces. Nao estan sugerindo, porém, um parentesco entre o ensaio e o aforismo. As d formas diferem quanto 4 amplitude, a densidade, ao estilo e ao. de um lado, reina a formula agucada; de outro, reina ainda o épico pode ser esse o sentido da declaracao de Hofmiller, para quem oe 79 nao tem como ser cientifico: ali onde a ciéncia se apresenta como suma, sistema axiomatico-dedutivo operando num ambito objetivo bem definido, o ensaio nao é possivel. Mas, na medida em que toda ciéncia fixa para si uma objetividade e faz dela um tema de reflexio critica, 0 ensaio cientifico conserva a sua razao de ser. Ha exemplos suficientes na Alemanha, na Franca e na Inglaterra. Vale citar o ensaio de Goethe sobre o granito. Max Weber, uma das iiltimas grandes cabecas cienti- ficas a cultivar o grande estilo, deu-nos dois exemplos desse ensaismo de espirito cientifico em suas conferéncias sobre a “Politica como vocagao” e a “Ciéncia como vocacao”. Da mesma forma, os ensaios de ‘Werner Heisenberg sobre “O desenvolvimento da mecanica quantica” e “As transformagées dos fundamentos das ciéncias naturais” sio exem- plos modelares da prosa cientifica em alemao. Os ensaios histéricos de Strachey, por sua vez, ilustram a arte anglo-saxa de experimentacio lite- réria aplicada ao dominio da ciéncia. Tal enumeragio permite entender por que, em vez de uma distinedo entre ensaio cientifico e ensaio literé- rio, preferimos distinguir entre o espiritual [schdngeistig] ¢ o perspicaz {feingeistig). O ensaismo espiritual aborda um tema estranho ao ambito cientifico; a reflexao, muitas vezes digressiva, intuitiva e irracional, nao deixa de ter clareza, mas essa nfo é a clareza da defmigao conceitual, e sim ade um olhar que atravessa 0 espaco poético ou intelectual em pauta. O ensaismo perspicaz, fruto de um esforgo de definicao e axio- matizacdo aplicado a um objeto mais ou menos bem determinado e per- tencente a uma dada ciéncia, manifesta, por sua vez, uma indole légica; seu estilo é o da clareza racional, ao qual ele nao renuncia jamais. Ele analisa, reconduz aos fundamentos, descasca a substincia, sem jamais perdé-la de vista. Talvez fosse o caso de acrescentar uma terceira catego- ia, a do ensaio polémico, que nao faz experiéncias com seu objeto para submeté-lo a iluminacao critica, mas para atacé-lo e destrui-lo. Nada se opée a tal adicao, Esse tipo de ensaio langa mao de todos os meios para levar o objeto a uma posicdo em que sua fragilidade, sua vulnerabili- dade, sua instabilidade aparecem sob uma luz suicida; para tanto, ele nao desdenha nenhum dos recursos do género e maneja tanto a reflexio espiritual como a anilise perspicaz. Lessing possuia esse dom no mais alto grau, e quase todos os grandes polemistas da literatura universal foram também grandes mestres da experimentacao polémica. Podemos agora dizer sem maior dificuldade o que caracteriza o ensaio de um ponto de vista literario e o que constitui sua substancia. O ensaista é um combinador que cria incansavelmente novas configu- races ao redor de um objeto dado. Tudo o que se encontra nas proxi- midades do objeto pode ser incluido na combinagao e, por essa via, criar uma configuragao nova das coisas. Transformar a configuragao em que 1. Alfred Brehm, ornitdlogo alemao do século19, autor de Vida iustrada ddosanimais, publieada a parti de1864.8.dor) ‘2. Das abenteuerlche Her, publicado ‘originalmente em 1929 e—numa versio profundamente alterada—em 1938. ‘Sem titulo, 1957 181 0 objeto se da a nés, esse é 0 sentido do experimento ensais- tico; ea razo de ser do ensaio consiste menos em encontrar uma definicao reveladora do objeto e mais em adicionar con- textos e configuragdes em que ele possa se inserir. De resto, esse procedimento no é despido de valor cientifico, pois 0 contexto e a atmosfera em que uma dada coisa se produz também merecem ser conhecidos ¢ tém algo a dizer sobre essa mesma coisa. A configuragio é também uma categoria da teoria do conhecimento, uma categoria a que nao se chega por via dedutiva e axiomatica, mas to somente por meio dessa combinatéria literaria que substitui o conhecimento puro pela imaginacdo. A imaginacdo nao cria novos objetos, ela confere certas configuragdes aos objetos — configuracdes necessarias do ponto de vista da experimentacio, nao da dedugdo. Todos os grandes ensaistas associaram 0 génio da combinagio a uma extraordinéria poténcia imaginativa. Ebem verdade que nao é facil julgar se uma ideia e uma forma foram realmente trabalhadas de modo experimental; podemos sempre nos perguntar se estamos diante de um ensaio auténtico e até que ponto o escritor soube ir além do mero resumo. O ensaio é a forma literaria mais dificil de se dominar ea mais ardua de se avaliar. Tomemos uma coisa qualquer, uma criatura como 0 pica-pau-verde. Uma descri- cdo analitica nao leva a mais que um trecho de Brehm, mas basta, ao observarmos um pica-pau-verde, que pensemos na nogio de ritmo e imaginemos que ele, no instante da Criagio, encontrava-se no ponto de separago entre ritmo melodia: o elemento experimental misturou-se ao mero Tesumo, ao trecho & maneira de Brehm. Passamos a expe- rimentar com a ideia, examinamos a atividade cadenciada do passaro de varios angulos e, de repente, no meio de uma frase, nos damos conta de que tais combinagées podem vir aser pequenos modelos de um outro modo de ver as coisas. Entdo nos dizemos que estamos diante de “um auténtico [Ernst] Jiinger” e nos perdemos deliberadamente nos mais infimos detalhes, ao mesmo tempo que nao perdemos de vista uma ideia perfeitamente recortada e um homem cheio de convicgdes ~ 0 autor que, em O coragdo aventureiro,* dedicou um ensaio ao “raciocinio combinatério” e mostrou ser ele mesmo um mestre desse procedimento. £ gracas a essa técnica que a subjetividade do escritor, do homem de letras (no melhor sentido do termo), introduz-se na arte 182 {Em alemfo, “sedutor”¢ Versucher, da "mesma familia que Versuch, ensuio", “tentativa",“experimento” |x. do) combinatéria, de tal modo que a conviccio teérica se transforma, aberta ou secretamente, em existéncia. A convicgao se faz ouvir as maravilhas no ensaio. Ter convicgées significa também ser um sedutor, um ten- tador.* E com isso se fecha o circulo de nossa reflexao, 0 objeto € posto em evidéncia por via experimental, luz de uma combinatéria de conceitos ¢ idcias, imagens € comparagoes; as conviccdes vio se desenhando na trama da escrita, antes de interpelar o leitor; assim nasce um auténtico escritor, o auténtico homem de letras no sentido de Lessing — um espirito e um coracio que por- fiam para possuir uma dada coisa. O ensaio rompe sua forma literaria para ganhar félego ético, existencial, a0 mesmo tempo que a categoria ética do tentador,com sua imagem e seu método proprios, ganha forma literdria, O intelectual que nao visa a criago, mas a expresso de convicgdes, persegue um fim concreto, existencial. Como vimos, toda conviceao tem viés existencial — e quer, portanto, agir sobre o existente. Sua acdo € de ins- piracao socratica, mas, ao contrario de Sdcrates, que dizia o que queria dizer por meio de didlogos 4 beira do dramitico, o intelectual de hoje prefere o ensaio, uma vez que 0 esforgo de tornar visivel um aspecto da exis- téncia reveste-se de um carter experimental. O ensaio substitui o diélogo dramatico. Como género de moné- logo reflexivo, ele possui uma forma dramatica em que 0 aspecto dialético se transfere para a dimensio expe- rimental. O contetido e a forma essenciais do ensaio consistem em fazer valer uma ideia segundo o modelo socrético ou em produzir um objeto por via experimen- tal. Nao se enuncia diretamente o que se quer dizer, como formula pronta, como lei, mas progressivamente, 4 luz da inteligéncia do leitor, por meio de sucessivas variagdes sobre o ponto de partida. O processo é seme- Ihante, de um lado, a demonstrac3o experimental de uma lei fisica e, de outro, a construgiio de uma dada con- figuragao por meio do caleidoscépio. Afirmei anteriormente que o ensaio, como indica seu nome, opera por via experimental, que ele nao repre- senta outra coisa sendio a realizacdo de um experimento, € acrescentei que nao se trata exclusivamente de expe- rimentos sobre ideias. Lichtenberg, que era mestre do 183, género, afirmou certa vez que é preciso incluir a si mesmo no experimento. Ao fazé-lo, 0 ensaio auténtico vai além do ato estético ou ético; o procedi mento intelectual desdobra-se no pathos existencial do autor. A teoria fica para tras, penetramos na esfera dos casos coneretos, que se dao em carne e 0850, num tempo e num espaco determinados, conforme exigia Kierkegaard, na contramio de Hegel. 0 que o enssio faz? Ele busca uma realidade con- creta que se destaca da teoria, a ocorréncia conereta de uma ideia, refletida no préprio ensaista. Chegamos ao termo de nossa reflexdo, cuja meta era assinalar a necessi- dade ea seriedade de um género literdrio desprezado por alguns. Essa forma no € fruto de uma época de félego curto ¢ leviano, no geral destrutiva, ape- sar de digna de estima; é a situagio critica, a crise da vida e do pensamento, que faz do ensaio um género caracteristico do nosso tempo. Ele serve a crise ea resolucao da crise ao levar o espirito a experimentar, a rearranjar as coi- sas em novas configuracées; a0 fazé-lo, ele se torna mais do que simples expressio da crise. Reduzir 0 ensaio a uma arte da divulgagio popular seria o mesmo que nao compreender a que ele vem. Por sua esséncia critica, 0 ensaio vai além da oposigio entre o popular ¢ o nao popular. ‘MAX BENSE (1910-1990) fez contflur fisica, matemstica, semiologia eestética em sua obra. Foi um os principais professores da Escola de Ulm, referéncia para os estudos do design, sobretudo centre as décadas de 1950 1960. Manteve intensas relagdes intelectuais com o Brasil, onde deu ‘aulas em temporadas que inspiraram o ensaio Inteligéncia brasileira (Cosac Naify). & autor de Pequena estética (Perspectiva). Inédito em portugués, este ensaio foi publicado pela primeira vez em 1947 na tevista Merkur, ntimero 3, ¢, em versio modificada, integra a coletinea Plakacwelt. Vier Essays (Stuttgart: Deutsche Verlagsanstalt), de 1952. "Tradugdo de SAMUEL TITAN IR. ‘Um dos nomes fundadores da vanguarda neoconcretista, LYGIA PAPE (1927-2004) formou-se ‘como gravadora e destacou-se ainda na escultura e no cinema experimental. As gravuras aqui reunidas sio tipicas de sua produgio dos anos 1950, integrando a série Tecelar. Exposta nos prin- cipais museus de todo o mundo, sua obra € hoje preservadae difundida através do Projeto Lygia Pape (wwwlygiapape.org br). VAL ee Den ie ener Joo Moreira Salles ore ey Ne Penni renee oko Paar Sates Scere eat Scoot ene TN Te Slee ee tee Dre erence eeu U Ua Ue Ure te eet tena at Francisco Bosco, Heloisa Espada, Matinas Suzuki fe, Paulo Roberto Pires eSaniuel Tian js theiro, Eee cress Deen are crmn inert Ueno ASSISTENTE DE ARTE Gustavo Marches Cees ee Cena ar eee eS Cet et SUNT Nee eee Pee eae eC eta ert er trees DOS eae acerey eens Ceram ete Binet centre corte Ea aoe eye} ponies eC sree Sees pores era ae ret Tey ee ee te ec eh ner eee eae ee Se arom ton ny eco ea eho ar eee renee RUC re rere enn Raa cnnec ee A SN eae ee ea ett a et ee Pee aa ae ee a Teeter eS ree ee Ye eee SCN ais oun erteenae ne Ln RN Sere eer SL eer erat nen eeee Co PO oe ee eee Cee an Reever Tent Poor Un gett Scene erent eer meen ee nL eee Tee err roe ra Sra eet atone ere ethet arene ae RG Teun merlot su riremetanen eraeeec ar nvete Dora acon oat este ener ee eros ie Se da a ec eS eer can SR a cet tL ena senor esa aca eran Tne er er Cer Se eae or eat re eee Ca ee ae eter erica

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