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Lygia Bojunga – nascida em Pelotas (RS), no ano de 1932 – desde sua infância teve um

contato muito íntimo com os livros e com a escrita. Isso, logicamente, resultou na grande autora
que é hoje; apaixonada por Lobato, Bojunga se dedicou à literatura infanto-juvenil.
Segundo o site Casa Lygia Bojunga, referente à editora da própria escritora, a obra a ser
analisada neste documento é “uma criação viva, que transmite de um modo altamente inventivo
os sentimentos e as emoções íntimas de uma escritora no seu relacionamento com livros”
(BOJUNGA). Centrado na personificação e erotização dos livros – objetos inanimados – a
análise busca exibir a forma fantástica com que a narradora atrais seus leitores ao universo de sua
mente apaixonada pela leitura.
A personificação literária

Objetos com vida, animais que falam, seres fantásticos, etc. são atualmente, características
de histórias contadas para crianças, contos de fadas. Entretanto, esse recurso linguístico (a
personificação) que ensina de forma lúdica, fora usada integralmente nos textos para explicar o
que o ser humano não podia.
O ser humano, por si só, tem a necessidade, e o direito (CÂNDIDO) de sonhar e fantasiar,
portanto é natural que sua literatura tenha sido feita, primordialmente do inacreditável, baseado
principalmente na imaginação e com o intuito de explorar ainda mais essa imaginação.

Em seus primórdios, a literatura foi essencialmente


Fantástica: na infância da humanidade, quando os
fenômenos da vida natural e as causas e os princípios das
coisas eram inexplicáveis pela lógica,o pensamento
mágico ou mítico dominava. Ele está presente na
imaginação que criou a primeira literatura: a dos mitos,
lendas, sagas, cantos rituais, contos maravilhosos, etc.
(...) compreende-se, pois, por que essa literatura arcaica
acabou se transformando em literatura infantil: a
natureza mágica de sua matéria atrai espontaneamente as
crianças. (COELHO apud MICHELLI, 2013, p. 257).

O ato de metaforizar seres humanos na forma de animais ou objetos é denominada


personificação. Dubois (2001, p.466), em seu Dicionário de Linguística diz que a
“Personificação é uma figura da retórica que consiste em fazer de um ser inanimado ou de um ser
abstrato, puramente ideal, uma pessoa real, dotada de sentimento e de vida”.
Além de ser comum aos sonhos, portanto, fácil a quem lê; a personificação aproxima o
leitor do emocional, o tornando mais propício a ser influenciado e persuadido. Em muitas obras,
esse é o objetivo da personificação, como em Animal Farm de George Owell, no qual ao dar vida
aos animais, o autor incentiva os seus receptores a buscarem uma revolução.
Em outros casos, a personificação é utilizada como elemento poético para que o autor
expresse seus pensamentos, pensamentos estes que não estão em um lugar realístico, mas sim em
um campo extraordinário. Como é o caso de Lygia Bojunga em Livro – um encontro, que a
autora explicita seu caminho na leitura estabelecendo uma fantasia de relacionamento com cada
obra, dando vida a estas e chegando a erotizá-las sob a premissa de terem sido grandes marcos
românticos na linha do tempo da narradora.
Sobre a obra

Publicado em 1988, Livro – um encontro foi produzido por Lygia Bojunga para ser
apresentado durante as exposições de suas publicações brasileiras e européias que ela estava
promovendo junto à Editora Agir. A autora diz que, a princípio, não sabia se o texto era uma
palestra ou história, apenas que era um encontro com ela – encontro este que se transformou no
seu primeiro solo teatral e no primeiro livro da trilogia que mais tarde viria a ser completada por
Fazendo Ana Paz (1991) e Paisagem (1992).
Livro – um encontro (antes, Livro – um encontro com Lygia Bojunga Nunes) conta sobre
os seis casos de amor que Lygia teve com obras literárias. Mostrando de forma delicada e
primorosa os sentimentos e emoções que a autora tem ou teve para com elas.
O seu primeiro caso de amor foi com o livro Reinações de Narizinho, de Monteiro
Lobato, que ela ganhou de um tio quando tinha sete anos. “Esse livro sacudiu a minha
imaginação. E ela tinha acordado. Agora... ela queria imaginar” (BOJUNGA, 2007, p. 19).
O segundo e terceiro casos de amor só aconteceram aos seus 17 anos – apesar de nesse
meio tempo, ela ter tido alguns flertes e namoros. Os responsáveis por despertarem esses amores
foram Dostoievski, principalmente com seu Crime e Castigo, e Edgar Allan Poe com seus contos
de atmosfera “tão fantasticamente opressiva” (BOJUNGA, 2007, p. 25).
Vários anos separaram esses três casos dos próximos três. Anos nos quais ela descobriu
Clarissa Lispector, Cecília Meireles, Jane Austin e Katherine Mansfield, e se encantou com tais
obras, ainda que não houvesse sentido “aquela química que transforma um encontro num caso de
amor” (BOJUNGA, 2007, p. 26). Houve alguns casamentos durante este período, até seu quarto
amor, que trata com vergonha e não revela o nome, aparecer e a conquistar meio que a contra-
gosto, com seus livros de receita pronta.
Nesse momento, Bojunga passou a reclamar de quem escrevia: “Tá, tudo bem, você
escreveu um bocado de texto, mas... e as entrelinhas? e as pausas? os espaços em branco? as
ambigüidades? Sou eu que fico enchendo aquilo tudo, não é? Eu: leitora. E não me pagam um
tostão de direito autoral!” (BOJUNGA, 2007, p. 34).
O seu quinto caso, talvez o mais intenso, foi com Cartas a um Poeta, de Rainer Maria
Rilke, ou simplesmente Rilke, como ela chamava o livro com tanto carinho.
Segundo o relato, Rilke era carregado para todos os lados e acabou “morrendo” afogado após
acidentalmente cair no mar. E é no mesmo dia que esta tragédia acontece, que o seu sexto e
último amor surge: Fernando Pessoa.
No início, o “romance” havia se dado por tabela, pois ela aprendera a gostar do escritor
devido ao amor que seu namorado nutria por ele. Anos depois, quando se reencontrou com
Fernando Pessoa através de outra obra dele, um amor mais puro e profundo emergiu: “Eu lia e
me amarrava. E lia mais e me encantava. E ia me ligando cada vez mais na riqueza da língua
portuguesa que o Fernando Pessoa usava” (BOJUNGA, 2007, p. 48).
Após narrar sobre esse último caso, Lygia – devido à insistência de sua amiga Ana Lúcia.
– conta um pouco sobre o seu amor pela escrita, começando pelos exercícios escolares de
caligrafia que tanto gostava, passando pelos seus trabalhos como roteirista de rádio e TV e
chegando à decisão de escrever seu primeiro livro.
Livro – um encontro contém algumas fotos tiradas na estréia do monólogo, no Rio de
Janeiro, além do “Pra você que me lê”, onde a autora conversa com o leitor sobre o livro em
questão e o texto “Caminhos”, antes presente somente nos dois livros seguintes da trilogia.
Com uma linguagem fácil e fluida, Livro trata-se de uma gostosa e envolvente conversa entre
Lygia e seus leitores que, infelizmente, acaba em um rápido passar de horas.
A personificação e a erotização em Livro – um encontro

Como dito anteriormente, em Livro – um encontro, Lygia Bojunga utiliza a personificação


como um elemento poético, a fim de transmitir as emoções e sentimentos que nutria/nutre pelos
seus casos de amor literários da forma mais humana e intensa possível, mostrando para o leitor a
verdade e a dimensão deles.
A personificação se dá logo no início, quando a autora nomeia sua relação com os livros
citados como “casos de amor”, sendo que para ela “um caso de amor é coisa de envolvimento
muito intenso” (BOJUNGA, 2007, p. 15). Usando termos como flertes e casamentos,
normalmente designados para nomear relações humanas, Lygia trabalha a ideia de que sua
interação com os livros é tão forte e marcante quanto a interação direta com outro ser humano.
Outros termos empregados às relações humanas são manuseados pela autora, como
“promiscuidade” e “transa”, e os valores morais que geralmente compõem as relações humanas
também estão presentes nesta interação Lygia-livros. No trecho a seguir, por exemplo, é retrato a
questão de princípios, fidelidade e traição para com os livros:

— Olha, eu não posso ler esse García Márquez: agora eu não leio mais romance
nem conto; agora eu só leio história e geografia.
— Mas uma coisa não tem nada que ver com a outra.
— Pra mim, tem. Agora é só história e geografia.
— Puxa! Mistura um bocadinho.
— Não: eu não gosto de promiscuidade. (BOJUNGA, 2007, p. 27).

Até mesmo um caso vergonhoso é contado pela escritora, o que personifica ainda mais
essa sua relação com o literário, já que é tão comum em relações pessoais ocorrerem
constrangimentos devido o envolvimento com determinada pessoa. “E lia escondido. Ah, sim! eu
dei pra ler o fulano escondido. Pra nunca mais a Ana Lúcia me pegar com ele. Nem a Ana Lúcia
nem ninguém” (BOJUNGA, 2007, p. 30).
A personificação chega a um estágio tão avançado para mostrar a intensidade do amor
existente nesses casos, que há até mesmo a erotização dos livros. “E no meio dessa explosão
emocional, de repente, eu me dei conta de como é forte a transa livro-e-a-gente” (BOJUNGA,
2007, p. 32).
O caso mais evidente de personificação acontece com o quinto caso de amor de Lygia,
Cartas a um Poeta, de Rainer Maria Rilke. O Rilke, como o livro passa a ser chamado por ela e
Ana Lúcia, é carregado para onde quer que Lygia vá, sua narrativa é tida como as falas de uma
pessoa real e ele se torna assunto entre as amigas. “Biografia do Rilke? Também nunca li.
Entrevista com o Rilke? Vai ver eu até ia gostar, mas pra quê? Se o Rilke era Cartas a um Poeta e
pronto? Tão pronto, mas tão pronto, que a gente – a Ana Lúcia e eu – a gente até pegava tom de
fofoca pra falar no Rilke. Quase sempre no telefone” (BOJUNGA, 2007, p. 37).
A relação com o Rilke é tão humanizada que quando ela o perde, após deixá-lo cair
acidentalmente no mar – o que proporciona o começo do seu caso com Fernando Pessoa –, tal
fatalidade é tratada como a morte de alguém: “Então foi assim que, naquele dia cinzento, quando
o Rilke morreu afogado, eu comecei o meu último caso de amor” (BOJUNGA, 2007, p. 43).
Essa personificação e erotização dos livros são muito bem trabalhadas por Bojunga
durante o enredo, deixando-o mais interessante e proporcionando a quem o lê uma visão clara dos
seus sentimentos, que uma descrição mais objetiva e denotativa talvez não fosse capaz de passar.
A sensibilidade do texto é fascinante e, muitas vezes, nos pegamos pensando que as emoções que
a escritora descreve são, de fato, o retrato de como nos sentimos frente a alguns livros.
Conclusão
A obra de Lygia Bojunga é tão espontânea quanto a autora e intensa quanto a autora que,
em sua trajetória fez o possível para avivar suas ações. Seu contato com o mundo e modo de vê-
lo a tornam peculiar, de fato, uma autora ímpar, uma vez que seu modo de escrever é íntimo e
pessoal, diferindo das comuns obras de literatura infanto-juvenil; enquanto a maioria alicerça
suas palavras na norma culta, Lygia apresenta seus pensamentos abusando da oralidade.

Livro – um encontro, leva o leitor a uma viagem não apenas na vida da autora, mas na sua
relação com livros. O que torna a obra tão admirada é o fato de que se alinha com os
pensamentos e emoções de quem se denomina um Leitor¹. Ter suas experiências narradas com as
sensações de paixão, ódio, amor, vergonha, etc. é incomum, uma vez que a maioria dos livros
tenta ser impessoal em seus relatos para se aproximar do “Real”.

A personificação é um recurso antigo, quase primitivo quando se trata de literatura, no


entanto, concluímos após a leitura da obra que Lygia é capaz de renovar-se, utilizando de tal
recurso para encantar aqueles que a lêem.

1. No terceiro livro de sua trilogia denominado “Paisagem”, o personagem Lourenço define como Leitor – com letra
maiúscula – como alguém apaixonado pela escrita de um determinado autor, ao ponto de reconhecer seus traços
estilísticos. Nos apropriamos desse termo com a ressignificação daquele que ama ler, apaixonado pela escrita como
Lygia na obra aqui analisada.
Referências

ARAÚJO, Vitor Rafael Siqueira de. A personificação como elemento de persuasão política no
livro “Animal Farm”. In: Portal educação. Disponível em:
<https://www.portaleducacao.com.br/conteudo/artigos/psicologia/a-personificacao-como-
elemento-de-persuasao-politica-no-livro-animal-farm/51578>. Acesso em: 14 de dezembro de
2018.
BOJUNGA, Lygia. Livro – um encontro. 6. ed. Rio de Janeiro: Casa Lygia Bojunga, 2007.
MICHELLI, Regina. Diálogos: maravilhoso e verismo em Lygia Bojunga. In: Caderno Seminal
Digital Ano 19, nº 19, V. 19 (Jan-Jun/2013).

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