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H.- 1.

MARROU
Professor de Sorbonne

DO CONHECIMENTO
I

HISTORICO

4.a EDIÇÃO
(Revista e aumentada)

H.-1. MARROW (1904- )

Antigo professor das Universidades


do Cairo, Nancy, Montpellier e Lyon,
ocupa desde 1945 a cátedra de his· '
tória do cristianismo na Sorbonne.
Historiador e filósofo de formação
humanista, especialista em cultura
antiga e em patrística, a sua obra
histórica e filosófica de excepcional
envergadura é produto de mais de
40 anos consagrados ao ensino e à ...t. .6vrt1ria
investigação. ~]llurtinifun!Ps EJilvw.Efda.
TÍTULO ORIGINAL
De La Connaissance Historique
© 1954 Éditions du Seuil
(?.a edição, 1975)

EDIÇÃO ACTUALIZADA PELA ?.a EDIÇÃO


FRANCESA, REVISTA E AUMENTADA, DE 1975

INTRODUÇÃO

A FILOSOFIA CRITICA DA HISTORIA

Este livrinho apresenta-se como uma introdução filosófica ao


estudo da História. Poderá procurar.-se nele uma resposta às pergun-
tas fundamentais: qual é a verdade da História? Quais são os graus,
os limites desta verdade (todo o conhecimento humano tem os seus
TRADUÇÃO: RUY BELO limites e o próprio esforço que lhe estabelece a validez determina o
intervalo útil em que se exerce)? Quais são as suas condições de
CAPA: GERALDES SOBREIRO
elaboração? Numa palavra, qual o comportamento correcto da razão
na sua aplicação à História?
Esta introdução dirige-se ao estudante que se encontra no limiar
da investigação e se mostra ansioso por descobrir o que significará
para ele vir a ser historiador; dirige-se ao homem ilustrado, ao usu-
frutuário da nossa produção científica, legitimamente preocupado em
medir o valor da História antes de a integrar na sua cultura; não está
vedado ao filósofo lançar um olhar por sobre o ombro deles, se tem
a curiosidade de saber aquilo que um técnico pensa da sua técnica.
No entanto, manter-nos-emos a um nível muito elementar; não pro-
curaremos aprofundar por si mesmos os problemas que levanta ao .
lógico a estrutura do trabalho histórico. Uma vez reconhecida esta,
apuraremos as regras práticas que devem presidir ao trabalho do histo-
riador. O esforço de análise crítica deve conduzir a uma deontologia ·
para uso do aprendiz ou do companheiro, a um tratado das virtudes
do historiador.
Aliás, uma introdução aos estudos históricos não pode ir além
de princípios muito gerais. Efectivamente, não tarda que o método
TODOS OS DIREITOS DESTA EDIÇÃO PARA O BRASIL RESERVADOS
se deva diversificar . em especialidades, para se adaptar à variedade
PARA LIVRARIA MARTINS FONTES EDITORA L TOA., POR ACORDO COM
EDITORIAL ASTER - LISBOA do objecto histórico e das suas condições de apreensão. Encontrar-

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DO CONHECIMENTO HIBT6RIOO A FILOSOFIA ORITIOA DA HIBT6RIA

-s~-ão, portanto, aqui, pro~egómenos a toda a tentativa de elaborar que pesam sobre o futuro da nossa , civHização ocidental, ameaçada
racionalmente História. Espero que ninguém venha a admirar-se pelo de descambar numa atroz barbárie técniCa.
facto de, apesar de eu ser historiador de ofício, falar como filósofo. Parodiando a máxima platónica, escreveremos no frontão dos
Tenho esse direito e esse dever. É tempo de reagir contra um complexo nossos Propileus: «Oue ninguém entre· aqui se não é filósofo», se não
de inferioridade (e de superioridade: a psicologia revela-nos essa reflectiu primeiro sobre a natureza da História e a condição do histo-
ambivalência e a moral essa astúcia do orgulho) que os historiadores riador: a saúde de uma disciplina científica exige, da parte do sábio,
nutriram durante muito tempo relativamente à filosofia. uma certa inquietação metodológica, o cuidado de tomar consciência
do mecanismo do seu comportamento, um certo esforço de reflexão
Na sua lição de abertura no Colégio de França (1933), Lucien sobre os problemas emergentes da «teoria do conhecimento» implicados
Febvre dizia com um pouco de ironia: «Aliás, permiti-me dizer muitas por este.
vezes: os historiadores não têm grandes necessidades filosóficaS>> 1 • As
coisas rião melhoraram muito posteriormente. Ao reimprimir, em 1953, Dissipemos todo o mal-entendido, porque a ambiguidade do voca-
o seu livro de 1911, La Synthese en Histoire, Henri Berr dirige-me, bulário não contribui pouco para alimentar o mal-estar que desejamos
no apêndice, este estranho cumprimento: «num fascículo da Revue ver superado: não se trata aqui de «filosofia da História» no sentido
de Métaphysique et de Morale consagrado aos <<Problemas da História» hegeliano, especulação sobre o devir da Humanidade considerado no
(Julho-Outubro de 1949), há só um artigo tingido de filosofia, o de H.-1. seu conjunto para lhe apurar as leis ou, como há tendência para dizer
Marrou .. .» 2 • hoje, o significado; mas de uma «filosofia crítica da História» S. de
uma reflexão sobre a História, consagrada ao exame dos problemas
Temos de acabar com estes velhos reflexos e sair do torpor em de ordem lógica e gnoseológica levantados pelo processo do espírito
que o positivismo manteve durante muito tempo os historiadores (como do historiador; ela irá inserir-se nessa «filosofia das ciênciaS>>, cuja legi-
aliás os seus confrades das ciências «exactas»). A nossa profissão está timidade ou fecundidade ninguém hoje contesta; será para a «filosofia
cheia, saturada de servidões técnicas; tende com o tempo a desenvolver da História» o que a filosofia crítica das matemáticas, da física, etc., é
no prático uma mentalidade de insecto especializado. Em vez de o para a Naturphilosophie 4 que, no idealismo rmriântico, se desenvolvera
ajudar a reagir contra esta deformação profissional, o positivismo dava" paralelamente à Philosophie der Geschichte, como um esforço especula-
ao sábio tranquilidade de consciência («sou um simples historiador, tivo para de.5vendar o mistério do universo.
não sou um filósofo; cultivo o meu jardinzinho, cumpro o meu ofício
honestamente, não me meto naquilo que me ultrapassa: ne sutor ultra O problema da verdade histórica e da sua elaboração não está
crepidam ... Altiora ne quaeseris!»): seria descer à categoria de operário apenas ligado com o saneamento interior da nossa disciplina; para
manual; o sábio que aplica um método cuja estrutura lógica desconhece, além do círculo estreito dos técnicos, abrange também o homem vulgar,
que aplica regras cuja eficácia não é capaz de medir, passa a ser como o homem culto, porque aquilo que está em causa não é nada menos
um desses operários encarregados de vigiar uma máquina-utensüio, que os títulos de que a História dispõe para ocupar um lugar na sua
cujo funcionamento controlam, mas que seriam incapazes de reparar cultura, lugar que lhe é hoje cada vez mais contestado. Enquanto a
e, ainda mais, incapazes de construir. Temos de denunciar com cólera nossa ciência não cessa de se desenvolver no sentido de um tecnicismo
uma tendência do espírito que constitui um dos perigos mais graves
3 Devemos a expressão a Raymofld Aron, que deu este título à sua pequena tese
sobre Dilthey, Rickert, Simmel e Max Weber La philosophia critique de l'histoire. Vrin, 1938 a
Ed. du Seuil, coll. «Points», 1969.
1 Reimpresso em Combats pour I'Histoire ( 1953), p. 4.
2 La synthese en Histoire, nova ediÇão (f 953), p. 288. 4 W . H. Walsh, An lntroduction to Philosophy of History (Londres, 1951 ), p. 12.

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DO OONH~OIMENTO HISTORIOO A FIL080FIA ORITIOA DA HIST(JRIA

crescente, aplicando os seus métodos sempre mais exigentes a pesquisas estava em condições de conferir à utopia um fundamento razoável, mos-
cada vez mais extensas, começaram «a desiludir-se com os resultados trando-a enraizada e de alguma maneira já desenvolvida no passado.
excessivamente magros, talvez ilusórios, que ela obtém» 5 • Era possível a Augusto Comte escrever com uma ênfase ingénua:
«A doutrina que tiver explicado suficientemente o conjunto do passado
É inútil elaborar o inventário dos testemunhos que atestam esta obterá inevitavehnente, na sequência só deste transe, a presidência men-
«crise da História>>. No entanto," devemo-nos lembrar que o essencial tal do futuro» 7 •
da acusação já se encontra contido nos anátemas proféticos da Segunda Pretensões excessivas, confiança mal situada. Chegou o dia em
Inactual, de Nietzsche (1874). O sentimento novo que aí se exprime, de que o homem se pôs a duvidar do oráculo que invocara com tamanha
um esmagamento ao peso da História, veio reforçar o tema, tradicional complacência e se sentiu como que incomodado por este montículo
no pensamento ocidental, de cepticismo quanto às suas conclusões, tema que se revelava inútil, incerto. A História tornava-se, de súbito, um
que encontrou uma expressão tão eloquente no Epílogo de Tolstoi à «objecto de ódio» ( Nietzsche) ou de troça. Lembro-me de ter feito, a
Guerra e Paz (1869), que apresenta todo esse romance como uma refu- este respeito, uma homilia a estudantes e de ir buscar o meu texto ao
tação experimental do dogmatismo histórico. profeta Isaías, XXVI, 18: Concepimus, et quasi parturivimus, et pepe-
rimus spiritum .. ., «concebemos na dor e gerâmos vento; não demos à
. Trata-se de uma reacção bastante natural (a história da cultura é terra a salvação!»
constituída por tais corsi e ricorsi), que se sucede à verdadeira inflação Escrevia isto em 1938. Posteriormente, a situação só piorou.
dos valores históricos que o século XIX conhecera. Em algumas gera- A diminuição da confiança na História aparece como uma das mani-
ções (a partir de Niebuhr, de Champollion, de Ranke ... ), as disciplinas festações da crise da verdade, como um dos sintomas mais graves do
em que se elaborara o conhecimento do passado tinham tomado um nosso mal, mais grave mesmo que a «decadência da liberdade»
prodigioso desenvolvimento. Seria de admirar que este conhecimento (D. Halévy), porque é um ferimento que vai direito ao mais profundo
tivesse invaôido a pouco e pouco todos os domínios do pensamento? do ser. Devemo-nos lembrar das palavras atrozes de Hitler, no Mein
O «sentido histórico» converteu-se num dos caracteres específicos da Kampf: «Uma mentira colossal traz em si uma força que afasta a
mentalidade ocidental. O historiador era então rei, toda a cultura se dúvida... Uma propaganda hâbil e perseverante acaba por levar os
encontrava suspensa das suas decisões. Cabia-lhe a ele dizer como se povos a julgar que o céu é, no fundo, um inferno, e que a mais mi~e­
devia ler a llídia, o que era uma nação (fronteiras históricas, inimigo rável das existências é, pelo contrário, um paraíso. . . Porque a mentira
hereditário, missão tradicional). Ele é que saberia se Jesus era Deus ... mais descarada deixa sempre rasto, mesmo se foi reduzida a nada».
Sob a dupla influência do idealismo e do positivismo, a ideologia do Estas fanfarronadas de um prisioneiro e de um louco, aegri somnia,
Progresso impunha-se como categoria fundamental (o Cristianismo viram-se realizadas pela prática corrente da vida política, no decurso
«ultrapassado», os cristãos reduzidos a uma minoria tímida que não da nossa geração. O desprezo da verdade histórica patenteou-se em toda
se imaginava que havia de ser irredutível, o .pensamento «moderno» era a parte. Digo em toda a parte, porque os exemplos ~ue vê~ _es~ntanea­
senhor do terreno). Do mesmo passo, o historjador sucedia ao f~lósofo mente ao espírito são os dos Estados totalitários (assun a utihzaçao pelos
como guia e conselheiro. Detinha os segredos do passado e era ele que, culpados do incêndio do Reichstag, do massacre de Katyn .. .). Mas as
como Um genealogista, fornecia à humanidade as provas da sua nobreza, democracias ocidentais não estão isentas de mácula. Basta pensar no
era ele que voltava a traçar o caminho triunfal do seu Devir. «Fora de recurso a calúnias incontroladas, por parte dos «caçadores de bruxas»,
Deus, o futuro estendia-se no meio da desordem» 6 : só o historiador nos Estados Unidos, ou, entre nós, nas mentiras balbuciantes que são

5 H. Peyre, Louis Ménerd (New-Hoven, 1932), p. 240.


7 Oiscoun sur l'esprit positif ( 18+4), p. 73 ( ed. Schleicher) ·
11 . A. ChDmson, L'homme contre I'Histoire ( 1927), p. 8.

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A FILOSOFIA OR!TIOA DA" HIBTORIA
DO OONHEOIMENTO HIBTORIOO

os «desmentidos oficiais» dos nossos ministros. O recurso a eles tor- Converteu-se num princípio de vida, num axioma de governo · (com o
nou-se tão normal que acabamos por ver nisso uma mera figura de retó- uso impiedoso que dela se faz, a noção chega a assumir um carácter
rica e uma praxe! desumano que lembra o fascínio e a opressão que a ideia de destino
Nesse mundo transtornado, que lugar resta para a História? Não exerceu, em certos momentos, sobre as almas antigas). Esta necessidade
passa de um jogo de máscaras no armazém dos acessórios dos come- de compreender, de saber e já não apenas de duvidar corresponde, no
diantes da Propaganda. Podemo-nos dar por felizes quando eles não nosso tempo, a exigências profundas; foram-se revelando a pouco e
vão ao ponto de fabricar integralmente uma história que sabem que é pouco no período de entre as duas guerras. O problema que a tornada
falsa. Na melhor das hipóteses, vêem no conhecimento do passado um de consciência da multiplicidade das civilizações, da sua relatividade e
reportório de incidentes pitorescos, de paralelos ou de precedentes úteis da sua fragilidade essencial levantara à geração de 1918 (Spengler,
a invocar. Valéry, Ferrero, Toynbee, Sorokin ... ):- «Onde estamos nós? Declínio
do Ocidente? Possibilidade de salto?», foi sendo substituído progressiva-
Assim no tempo de Pétain: queria-se exaltar a chamada <<Revolu- mente por urna interrogação mais angustiada ainda, mais profunda:
ção Nacional»? Bastava invocar Trasíbulo e o restabelecimento de Atenas «Está bem, as civilizações nascem, amadurecem e morrem, mas estare-
depois da derrota de 404. Queríamos, pelo contrário, amaldiçoar o regime mos simplesmente na Terra para construir, depois para destruir civiliza-
hipócrita que se instalava sob o olhar complacente do vencedor? Nessa
ções, essas fábricas provisórias, machinas transituras 9 , como urna gera-
altura, falávamos da tirania dos Trinta e da infâmia dos «Oligarcas» 8 •
ção de térmites constrói a sua termiteira, que será destruída e recons-
É rebaixar a História à maneira ingênua como a concebiam os retóricos
truída na permanência indiferente da espéCie? 10 Devemo-nos resignar
da Antiguidade (uma colectânea de exempla para uso do orador com
a esta perspectiva sem grandeza ou, pelo contrário, reconhecer um valor,
falta de texto). A facilidade da operação tira-lhe toda a seriedade. Assim,
uma fecundidade, um sentido a esta peregrinação, ora triunfal ora dolo-
os partidários da fronteira Oder-Neisse invocam o «exemplo» de Boles-
lau, o Valente, e da Polónia do tempo dos Piast. Mas como a fronteira rosa, da Humanidade, através da duração da sua história?»
ocidental dos Eslavos variou desde as bocas do Elba (por volta do Problema que, uma vez concebido corno possível (civilizações
século V) até Estalinegrado (um instante em 1942), seja qual for a linha inteiras ignoraram-no de facto), já não pode ser iludido e deve necessa-
intermediária onde a política de força estabilizar momentaneamente riamente receber urna solução, nem que seja negativa, corno têm ten-
essa fronteira, sempre encontraremos um «precedente» e uma «justifica- dência para a formular certas filosofias anti-históricas do absurdo ou
ção» históricos para ela! do desespero. Não nos deve, portanto, admirar a renovação que atravessa
hoje a filosofia- e a teologia- da história. Mas deve-nos preocupar
Desde logo, o esforço mediante o qual a nossa filosofia crítica o dogmatismo ingénuo, a segurança intrépida e bárbara de que continuam
vai tentar fundar em razão a validade da História, aparece não só a dar mostras estes filósofos. Vemo-los especularem sobre urna História
como urna justificação da técnica que nós professamos, mas também concebida corno objecto puro, de maneira realmente independente · do
como uma participação no combate pela defesa da cultura, pela sal- problema do conhecimento; praticamente, não cessam de utilizar os
vação da nossa civilização. Mas há muito mais: ~e a história «científica» resultados, ou pretensos resultados, da nossa ciência histórica, sem se
se tornou assim suspeita ou desprezível para muitos, nunca se gostou
tanto de falar da História, de interpretação, de «sentido» da História.

9 Santo Agostinho, Sermio 362, 7: cArchitec:tus aedific:at per moc:hinas tran-


8 Título do livrinho publicodo no clondestinidode por J. lsooc, nas Editions situros domum menentem».
de Minuit {1942). 10 L. Frobenius, Le destin des c:ivilisetions ( 1932), trod . fronc:., pp. 1-3.

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DO OONHEOIMENTO HISTORIOO A FILÓSOFIA ORITIOA DA HISTORIA

preocuparem como deviam pelas condições de elaboração que deter- Hegel era, por outro lado, um pensador grande de mais para não
minam a validade deles e o limite desta. Não pode deixar de nos se aperceber da existência do problema; definiu-o, mesmo de passagem,
causar admiração a indiferença de tantos dos nossos contemporâneos em termos de uma precisão que não foi ultrapassada 13 , mas para ime-
quanto à questão prévia levantada pela reflexão crítica: desta História diatamente o afastar com as costas da. mão. Comparado com Niebuhr,
que invoca de tão bom grado, o que é que sabe e como o sabe? aparece-nos (como já outrora Santo Agostinho relativamente a São Jeró-
Comportamento tão estranho que requer um esforço de elucida- nimo) como o filósofo com pressa de concluir e de dogmatizar, incapaz
ção. Diviso aí um efeito desse movimento pendular que parece presidir de suportar as longas demoras que exige (se é que posso lançar mão
ao desenvolvimento do pensamento. Assim como se tinha assistido, em deste termo escolástico) a subalternaçâo das ciências. Fica-se um pouco
finais do século XIX e nomeadamente na Alemanha, a um «regresso desconcertado com a facilidade com que ele elimina o problema («a
a Kant», como reacção contra os excessos dessa tirania hegeliana que razão governa o mundo, a História universal é racional», etc.) e se pre-
só um Kierkegaard ousara contestar no seu tempo, assim assistimos cipita de cabeça baixa na construç~o de uma História «filosófica>>, atra-
hoje a uma renovoção da influência de Hegel, e designadamente da sua vés de materiais cuja resistência não se deu ao trabalho de verificar 14 •
Philosophie der Geschichte (neste ponto, temos de incriminar o marxismo
que, sob a forma difusa e amiúde abastardada que penetrou tão profun- Já contestável em quem escrevia entre 1822 e 1831, tal indiferença
damente na mentalidade comum da nossa geração, largamente contribuiu é hoje intolerável: não é a neo-hegelianos que será preciso lembrar que
para se voltar a pôr o problema da História em termos de época 1848 ou a cada etapa nova o pensamento deve superar, e não simplesmente anu-
mesmo 1830): temos de denunciar o carácter anacrónico, filosofica- lar, a etapa precedente (retocando a imagem proposta mais ~cima de
mente retrógrado, desta influência, e tanto mais que o ponto visado - um movimento pendular, diremos que o progresso do pensamento exige
que descreva uma hélice e não simplesmente um círculo); não é permi-
o dogmatismo hegeliano- era particularmente vulnerável.
tido fingir que se ignoram os problemas levantados pela filosofia crítica
da História e as soluções por ela entretanto propostas, desde Hegel para
Hegel assistiu ao primeiro florescimento de uma História verda- cá. Porque uma tal filosofia crítica não é objecto de promessa ou de
deiramente científica: é contemporâneo de Niebuhr e de Ranke 11 , que improvisação; quanto ao essencial, já se encontra largamente constituída.
nós veneramos como iniciadores e os primeiros mestres da forma actual O nosso frontispício procurou exprimir, para instrução (e divertimento)
da nossa ciência. Hegel conhece bem a obra de Niebuhr e de bom grado do leitor, a génese deste movimento de pensamento, as correntes prin-
se refere a ela, mas- coisa curiosa- é sempre para a recusar, para a cri-
ticar, para a cobrir de sarcasmos fáceis 12 : só soube ver os aspectos efec-
tivamente frágeis da sua História Romana, essas hipóteses um pouco
apressadamente lançadas por cima das ruínas da tradição, que eram 18 lbid., p. 7: «Poderíemos estebelecer como primeiro condiçiío epreender

efectivamente <<imaginações a priori». Não soube ver tudo o que trazia fielmente o histórico, mes em termos genéricos, teis como «fielmente:., «epreender:.,
reside e embiguidede: o historiedor médio tembém julge que é puremente receptivo,
de novo esta aplicação sistemática à história dos métodos críticos.
que se entrego eo dedo; mes niio é pessivo com o pensemento, fez intervir os sues
cetegories e vê o dedo etrevés deles». Niío se pode dizer melhor!
14 Pare s6 pegarmos num exemplo, o capítulo dos Vorlesungen consegrodo A
hist6rie bizontino (ed. Losson, pp. 768-774), reflect~ ingenuomente os preconceitos
11 A História Romana, de Niebuhr, começou 11 11p11recer em 1811; 11 primeir11 voltoirienos de Gibbon («sucessiío milen6rie de crimes, fróquezes, boixezes, feito de
obra de Renke, História dos povos latiii!Os e germânicos desde 1494 a 1535, é de 1824; cor6cter, o quedro mois terrível e, por consequêncio, o menos interessente:.). Sobre
as célebres Uções sobre a filosofia da História, editados depois de morte de Hegel, esto bose oscilonte, e poderoso «Reziio» eml?ele e descobre, comó é noturel, motivo·
forem pronunciedes de 1822 o 1831. ções ·m~ito ·prof~ndes poro este histÕf'i.e imegin6de, e deí novos contre-sensos
12 Vorlesungen ... , ed. Lesson (Werke, t . IX), pp. 7, 8 (n. 1), 176, bbS, 690, 697. ( pp. 770"771 }.

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DO CONHECIMENTO HISTORIOO A FILOSOFIA CRITICA DA HIBT(JR>IA

cipais c a filiação recíproca delas. A sua fonte principal é representada uma Crítica da razão histórica 18, portanto como um prolongamento, ou
pela obra, a tantos títulos tão fecunda. de Wilhelm Dilthey (1833-1911). um equivalente transposto, da Crítica da razão pura. Mas seria reduzir
o alcance do esforço dele e dos seus sucessores ligar demasiado exclusi-
Embora a sua obra crítica fundamental seja Einleitung in die vamente a filosofia crítica da História a esse momento da história da
eisteswissenschaft (1883), reteremos como simbólica a data (1875) do filosofia alemã e torná-la própria da «escola neo-kantiana de Heidel-
seu artigo Ueber das Studium der Geschichte ... , onde se encontra já berg» 19 • Há, na obra deles, toda uma parte de observações e de con-
estabelecida a distinção entre ciências da natureza e ciências do espí- clusões que são autênticas conquistas e cuja validade não se acha ligada
rito 15 , ponto de partida de todo o desenvolvimento ulterior da sua dou- ao sistema no qual os seus autores as haviam inserido. Não nos podemos
trina. 1875: um ano depois das Considerações Inactuais; mas não se admirar disso: na sua qualidade de lógica aplicada, a filosofia das ciên-
deveria ver puramente e simplesmente num Dilthey uma resposta ao cias (de que depende a nossa teoria da ~stória) beneficia. em larga
desafio lançado por Nietzsche: sejam quais foram os pontos de contacto medida. do mesmo privilégio de invariante técnica que se está de acordo
entre eles (repúdio do ídolo cientista, a vida como categoria suprema), em reconhecer - é claro que igualmente numa medida determinada-
o pensamento de ambos não se desenvolve no mesmo plano. Em vez de à lógica formal: o Organon não depende completamente da validade do
partir de um protesto contra a História, Dilthey vai ao ponto de mani- sistema aristotélico!
festar admiração pela grandeza das conquistai dela (num discurso pro- Da mesma maneira, o movimento de pensamento inaugurado por
nunciado quando fez setenta anos, prestou uma magnífica homenagem Dilthey (nós procuramos retinir aqui essa herança) ultrapassou por
aos grandes historiadores da primeira parte do século XIX, Bockh, toda a parte a escola neo-kantiana, no sentido estrito. Não se poderia
Grimm, Mommsen, Ritter, Ranke) 16 , grandeza ·que lhe parece tão incon- anexar a esta, seja qual for o vínculo de filiação que o liga a Rick:ert,
testável quanto a validez da física de Newton o podia ser para Kant. Daí um homem como Max Weber, cuja obra teórica (porque ele foi também,
o seu projecto: fazer a teoria desta prática tão fecunda. e sobretudo, um economista e um sociólogo) representa uma contribui-
ção essencial para a edificação da nossa filosofia crítica. Teremos tam-
Dilthey encontra-se hoje bastante esquecido na Alemanha, mas bém de integrar uma contribuição não desprezível vinda da Fenomeno-
é o que acontece quando um pensamento, que exerceu uma grande e logia: embora o contexto da sua problemática fosse completamente dife-
perdurável sedução, deixa de estar na moda e passa como que a ser rente, homens como Husserl, J aspers e, sobretudo, Heidegger, também
inútil, por ter sido profundamente assimilado. Efectívamente, a sua depararam com o problema da elaboraÇão do conhecimento histórico,
influência foi extremamente profunda 17 ; é ela que designadamente os dos primeiros quando o desenvolvimento da crise europeia os fez,
explica a atenção dedicada aos problemas da História e a própria por sua v~ defrontar o problema tão actual do sentido da História 20 ,
maneira de levantar esses problemas, que se observa nos filósofos do o último, de maneira mais central talvez na análise da situação ontológica
«regresso a Kant», Windelband, Rick:ert, Simmel. Já em Dilthey mesmo,
tão consciente da sua oposição a Hegel, a referência a Kant é evidente:
não cessou de apresentar o seu empreendimento como a elaboração de
18 Discurso citado, Ges. Schriften, t. V, p. 9, e i~ lntroduction aux Sciences de
I'Esprit, Ges. Schr., t. I, p. li 6.
19 L. Goldmann, Sciences humaines et philosophie, p. 26.
20 P. Ricoeur, Husserl et le sens de I'Histoire {segundo as obras, em grande
15 Tradução froncesa em Le Monde de l'esprit, t. I, p. 58.
16 Ges. Sthriften, t. V, pp. 7, 9. parte inéditas, de 1935-1939). Revue de Métaphysique et de Morale, t. LIV, 1949,
11 Mesmo foro da Alemonho; ossim na Esponho, J. Ortego y Gosset, Historie pp. 281-316 {sublinha bem tudo o que, na obra anteri_or de Husserl, parecia r-;y::luir
como sistema {2.• ed., 1942): 4:Dilthey, o homem o quem mois devemos o ideio do 4:umo inflexão do fenomenologia no sentido de uma filosofia da Hist6rio~ ); K. Jaspers,
vido e, em meu entender, ·o pensador mois importonte da segunda metade do séc. XIX». Vom Ursprung und Ziel der Gesc:hichte ( 1949, trad. fronc. , 1954).

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DO CONHECIMENTO HIBTIJRICO
A FILOSOFIA CRITICA DA HIBTIJRIA

do homem, que faz aparecer a sua «temporalidade» e a sua «historici-


sivamente brilhante, de Eric Dardel 2 \ foi fazer-nos ouvir uma voz mais
dadeJ> essenciais. directamente inspirada em Heidegger.

Por muito originais que sejam o método e a orientação destes filó-


Por muito vasta que seja, a zona de influência de Dilthey não
sofos, o seu pensamento neste ponto não deixou de ser influenciado pela abraça tudo. Desde que saímos desta autarquia nacional, onde estivemos
atmosfera irradiada de Dilthey, à influência do qual Heidegger, por fechados durante tanto tempo e nos começámos a descobrir uns aos
exemplo, se empenhou em prestar homenagem em Sein und Zeit 21 • outros, e a pensar europeu, também a Grã-Bretanha nos revelou uma
linha de pensadores ligados a este mesmo problema, linha original que
Na França (falo sobretudo do meio dos técnicos da História) tem a sua fonte longínqua no empirismo de um H4me 25• É represen-
pareceu ignorar-se, durante muito tempo, este poderoso movimento. tada, por 1830-1850, pelo grupo curioso dos «Anglicanos liberais».
.Thom. Arnold, Rich. Whately, etc. 26 , e, mais perto de nós, por F. H.
Sejamos justos: Chegava até nós qualquer eco graças aos esforços Bradley,
da Revue de Synthese Historique, mas os preconceitos positivistas que
reinavam no grupo reunido à volta de Henri Berr tornaram estéril o cuja carreira filosófica começa por um ensaio, The presuppositions of
esforço tão notável de informação a que se aplicava. criticai History 27 , escrito na data cada vez mais simbólica de 1874,

Quando cheguei à Sorbonne, em Novembro de 1925, fui recebido e os seus sucessores, designadamente Michael B. Oakeshott 28 e, sobre-
pela voz enfraquecida, mas sempre convencida, do velho Seignobos tudo, R. G. Collingwood, esse espírito curioso, um pouco extravagante,
bem conhecido dos historiadores como uma autoridade em matéria de
(Lucien Febvre e. Marc Bloch ainda se encontravam exilados em Estras-
arqueologia da Bretanha Romana, mas cujo pensamento filosófico
burgo) 22 ; o positivismo continuava a ser a filosofia oficial dos hist~riado­
merece também o exame mais atento 29 •
res e ainda só lhe podíamos opor uma recusa instintiva, quase VlSceral,
Collingwood, aliás, não é de filiação unicamente britânica: situa-se,
ainda que se começasse a formular à luz de Bergson. Conti~~ava-se ~o ·
por sua vez, na zona de influência de Benedetto Croce. Sabe-se em que
ponto a que Péguy infelizmente não voltara para a sua of1cma e nao
medida o velho sofista napolitano, também tão historiador de vocação
pudera escrever essa V éronique que .havia de constituir uma contrapar-
quanto filósofo, dispensou atenção aos problemas teóricos da História,
tida positiva da sua amarga Clio ... Foi preciso esperar 1938 para que,
desde a sua primeira dissertação, A História reconduzida ao conceito
com as duas teses retumbantes de Raymond Aron 23 , a filosofia crítica geral da Arte (1893), 30 , até à obra da sua velhice, La storia come
da História se integrasse, finalmente; na cultura francesa; por muito
pessoal que seja a sua posição, Aron vai situar-se no prolongamento da
linha Dilthey-Rickert-Weber; o mérito do livrinho brilhante, talvez exces-
u L'Histoire, science du concret ( 1946).
2
~ De quem devemos lembro r o Ensaio sobre os milagres (em Enquiry con-
cerning humen understending, 1748) .
26
Sobre estes teólogos e historiodores de Oxford (que Stuert Mill designevo
n Se in und Zeit, § 77. pelo nome de Germano-Coleridgean School) , ver M. D. Forbes, The liberei englicen
22 Niio pude ser nem compen he•ro · nem· eluno deles·. de! o interve io dissonente idee of History, Combridge, 1952.
27
que me lige eo grupo dos Anneles. :. . . · , . , , Reimp. em Collected essays, t. I, pp. 1-70.
2
. 21 lntroduc:tion :" r. Philosophie de l'Histoire, es$iii· IUF .l•s lu:rutes de I obJec:t.ve 8 Experience and its modes (Combridge, 1933), Cllp. 111.
21
ltistorique; le philosop!li_e' critiqué de . _I'Histoi.-., efi4.Í sui' une théorie ellemande de Pero o essunto que nos diz respe ito, ver sobretudo o seu livro. póstumo,
I'Hiitoire. · The idee of History (Oxford, 1946), e j.5 Autobiogrephy (Oxford, 1939).
ao Recolhido em Primi Seggi, pp. 3-4, .

18
19
A FILOSOFIA ORlTIOA DA HISTóRIA
DO OONHECIMJjJNTO HISTóRICO

pensiero e come azione (I938), passando pela sua Logica (I904) e Teoria polémica (e não exceptuo desta crítica os meus escritos anteriores sobre
o assunto): sem dúvida, era porque havia tiranias a derrubar, portàs a
e storia della storiografia (escrita em I9I2-13).
arrombar; agora, o caminho está livre... não procurarei nem o patético
A personalidade avassaladora de Croce pareceu muitas vezes resu- nem o paradoxo: abusou-se muito de um e do outro (o existencialismo
mir, aos olhos dos estrangeiros, toda a actividade da especulação italiana; pôs em moda um pathos exagerado que põe em perigo a própria serie-
visão sumária e injusta, m'ormente no que diz respeito ao nosso assunto, dade do pensamento). Sou bastante fiel à tradição humanista para não
como tantas provas vieram recentemente atestar •
31 querer que a filosofia passe sem as Musas, mas a Musa filosófica deve
ser uma virgem de estilo severo, que não abusará do make-up.
Seja qual for a originalidade de cada um destes pensadores, a Ao publicar este livro, realizo um projecto, formado há mais de
variedade das suas tomadas de posição e -longe de mim esquecê-lo vinte e cinco anos, que não cessou de me acompanhar desde que me
-o carácter sempre aberto do debate, a contribuição destes três quar~os iniciei na profissão de historiador. Entretanto, as circunstâncias tinham-me
de século revela bem ao exame uma certa convergência, tanto na maneua levado a escrever uma série de artigos que representaram como que
de pôr os problemas como nas soluções que são propostas para eles: a outros tantos esboços sucessivos. Não era questão de os reimprimir,
partir de uma análise das servidões lógicas que pesam sobre a elabo- mas recuperei com bastante cuidado, em cada um deles, aquilo que me
ração do conhecimento histórico, chegou-se até à constituição . de uma parecia ainda Útil. Se passo a fornecer a lista, é para prevenir o leitor
filosofia crítica da História oú, pelo menos, a um certo conJunto de contra o cuidado de os reler.
princípios fundamentais que doravante se podem considerar como
adquiridos ao mesmo título, por exemplo, que se. adq~iriu a teoria da I) Tristesse de l'historien (a propósito das teses de R. Aron), Esprit,
experimentação nas ciências da natureza, a partir, d1gamos, de J. S. Abril de I939, pp. II-47.
Mill e Claude Bernard. 2) Bergson et l'Histoire, na homenagem póstuma a Henri Bergson,
Por isso me pareceu que era chegado o momento de elaborar um publicada em I94I pelas edições de la Baconniere (retomado a
inventário sistemático; não que eu pretenda apurar, a parti~ des~as_ ~en­ seguir na colecção dos «Cahiers du Rhône»), pp. 213-22I.
tativas diversas, uma ilusória philosophia perennis da raz~o ?1st~nca: 3) Qu'est-ce que l'Histoire?, na colectânea Le sens chrétien de l'His-
a exposição que se vai seguir será também uma formulaçao mspuada toire, col. «Rencontres», vol. IV, Lião, I942. edições de l' Abeille
de um ponto de vista pessoal. Mas pareceu-me que, desde que uma (depois, Paris, edições du Cerf, pp. 9-34).
pessoa se ativesse aos problemas fundamentais e à solução de carácter 4) L"Histoire et l'éducation, discurso pronunciado na sessão solene de
muito geral, era possível apresentar um estado de. coi~as razo~v~l e abertura do ano lectivo, Annales de l'Université de Lyon, L'Uni-
ponderado. Procurei menos ser original do que _reurur, filtra:, venf~car, versité de Lyon en 1941-1942, Lião, I943, pp. 26-36.
precisar aquilo que, sob formas mais ou menos diferentes, se 1~ repe~ndo 5) De la Philosophie à l'Histoire, na homenagem a Étienne Gilson,
por toda a parte. Falarei num tom tranquilo e moderado: a flloso~a da philosophe de la chrétienté, cal. «Rencontres», vol. XXX, Paris,
História foi muitas vezes apresentada até aqui de maneira agressiva e I949, ed. du Cerf, pp. 7I-86.
6) De la logique de l'Histoire à une éthique de l'historien, no número
consagrado aos Problemes de l'Histoire, pela Revue de Métaphy-
sique et de Morale, Julho-Outubro de I949, t. LIV, pp. 248-272.
81 Ver, por exemplo, 11 problema della storia, Atti dell' VIII Convegno di. studi
•( f" • · t" · (G·II•r•te} Bréscio 1953 · os meus leitores americonos tclvez f1quem
7) Relatório sobre a Histoire de la civilisation, I. Antiquité, apresen-
f I 010 ICI CriS IIIRI u u u ' ' • d lb tado ao X Congresso Internacional das Ciências Históricas, Paris,
cdmirados por niio ver figuror neste quodro a tese bem conhecida de Mon e cuml •
1937} · este livro prec1oso pe as
The problem of historical knowledge (Nova Iorque, · ' • . I950, e publicado nas Actes deste Congresso, t. I, Paris, I950, ed.
cn61ises que encerra no sua parte documental, cfigura-se-me as the breves+ tf the leu A. Colin, pp. 325-340.
successful 11 ttempt 1o give «an Answer to Relativism».
21
20
DO CONHECIMENTO HISTóRICO
A FILOSOFIA CRITIOA DA HIST(UUA

8) D'une théorie de la civilisation à la théologie de l'Histoire (sobre a Encyclopédie de la Pléiade, L'Histoire, t. I, Introdução: «Qu' est-ce
obra de Arnold J. Toynbee), Esprit, Julho de I952, pp. Jl2-129. que l'Histoire?», p. I-33, e conclusão: «Comment comprendre le métier
9) Philosophie critique de l'Histoire et «sens de l'Histoire», em d'historien?», p. I465-I540.
L'Homme et l'Histoire, Actes du VI• Congres des Sociétés de Phi- «L'épistemologie de 1l'hí:stoire en Fránce d'aujourd'hui», Denken über
losophie de Langue Française. Strasbourg, 1952, Paris, I952, Pres- Geschichte, Wien, 1974, 'PP· 97-110.
ses Universitaires de France, pp. 3-10.
10) La méthodologie historique: orientations actuelles, a propósito de Encontrar-se-á, por outro lado, aqui, reproduzido em Apêndice,
obras recentes, Revue Historique, Abril-Junho de I953, t. CCIX, um artigo onde o autor se esforçou por responder a certas objecções
pp. 256-270. levantadas.
I I) Lettre à M. André Piganiol (em resposta ao seu artigo: «Qu' est-ce
que l'Histoire?»), Revue de Métaphysique et de Morale, Julho-
-Setembro de I955, pp. 248-250.
12) L'Histoire et les historiens, segunda crónica de metodologia histó-
rica, Revue Historique, Abril-Junho de I957, t. CCXVII, pp. 270-
-289.

Finalmente, este projecto ainda não teria resultado se Mons L. De


Raeymaeker, presidente do Instituto Superior de Filosofia da Universi·
dade de Lovaina, não me tivesse fornecido a ocasião de o realizar, ao
convidar-me para ocupar a cátedra Cardeal Mercíer, para o ano de 1953.
Tenho de agradecer aos meus ouvintes de Lovaina (e também aos nossos
colegas do Centre National de Recherches de Logique, de Bruxelas), o
acolhimento e a atenção: o meu livro terá aproveitado bastante com as
observações e críticas que me formularam tão amigavelmente.

Também não esquecerei os meus antigos estudantes da Escola


Nor~al e da Sorbonne, com quem discuti tantas vezes e com tanta utili-
dade para mim- e em particular, Alain Touraine, Dom Jean Becquet,
o R. P. Pierre Blet, Odette Laffoucriere, o padre Jean Sainsaulieu, Pierre
Vidal-Naquet, o Dr. Jean-Marie Harl, Violette Méjan; devo um parti-
cular reconhecimento a Jean-François Suter e a Maurice Crubellier, que
releram o meu manuscrito e me ajudaram a prepará-lo.
Alguns dos pontos de vista defendidos neste livro foram retoma-
dos em:

Encyclcpédie Française, t. XX. Le Monde en devenir, p. 20. I8. 7-I6.


«Les limites aux apports de I' Histoire».

2::!.
23
1

A HJSTORIA COMO CONHECIMENTO

Partiremos de uma definição e perguntaremos: O que é a Histó-


ria? Trata-se, afinal, como está bem de ver, de um artifício pedagógico;
seria ingénuo imaginar que uma definição, elaborada especulativamente
e assim assente a priori, pudesse abranger a essência, o quid sit, da His-
tória. Não é assim que procede a filosofia das ciências. Parte de um
dado, que é determinada disciplina já constituída, dedica-se a analisar
o comportamento racional dos seus especialistas, e apura assim a estru-
tura lógica do seu método. As diversas ciências desenvolveram-se geral-
mente a partir de uma tradição empírica (a geometria saiu da agrimen-
sura, a medicina experimental da tradição dos curandeiros ... ), antes que
a filosofia tivesse vindo a fazer a teoria delas.

A sociologia não constitui uma excepção, mas uma prova suple-


mentar desta lei: o seu desenvolvimento foi perturbado e não favorecido
pela acumulação de especulações metodológicas que Augusto Comte e
Durkheim lhe ofereceram à maneira de berço.

Da mesma forma, a História existe; não pretendemos, no ponto


de partida, definir a melhor história concebível como possível. Temos
de constatar a existência do nosso objecto, que é esse sector da cultura
humana explorado por um corpo especializado de técnicos, a ordem dos
historiadores; o nosso dado é a prática reconhecida como válida pelos
especialistas competentes. A realidade de um tal dado não pode ser
posta em dúvida; é bem certo que o corpo dos historiadores se encontra
na posse de uma tradição metodológica vigorosa que, para nós, ociden-
tais, começa com Heródoto e Tucídides. e continua até, digamos, Fer-
nand Braudel (para escolher uma das últimas «obras-primas» apresen-
tadas por um jovem mestre* ao julgamento dos membros da cOI1poração);
tradição bem determinada: sabemos bem, nós, gente do ofício, quais

• Escrito em 1953 . Hoje dizemos: «Emmanuel Le Roy Ladurie (Las Paysans de


Languedoc, 1966). na esperança de remetermos para Paul Veyne.>>

2S
DO CONHECIMENTO HISTóRICO A HISTóRIA COMO CONHECIMENTO

são os nossos pares, quais são os historiadores de ontem ou de hoje multiforme. Vemos uns, por exe~plo, condenar a biografia, como um
que apresentaram um trabalho válido, quais são, como se costuma dizer, género fundamentalmente anti- ou an-histórico \ enquanto outros 2 a
autoridades e quais, pelo contrário, são suspeitos de comportamento converteriam, pelo contrário, quase no género histórico ·' por excelência
mais ou menos irregular ... À primeira aproximação, assim como con- (compreendendo-a como uma visão· reunida de toda uma época ou
vém no ponto de partida, esta realidade da História só é delimitada de mesmo de uma civilização, apreendida através de um dos maiores dos
maneira geral e deve admitir, quanto às suas fronteiras, uma margem seus filhos).
mais ou menos delicada. A nossa tradição metodológica não tem cessado
de se transformar: Heródoto, por exemplo, aparece-nos menos sob o Aconteceu-me escrever, para contestar a autoridade que a teoria
aspecto do «Pai da História» que na figura de um antepassado como da história em Croce recebia da sua eXperiência de historiador: a obra
que regressado à infância, e a veneração que professamos, pelo seu histórica de Croce oscila entre dois extremos, a historiazinha local (A revo-
exemplo, não anda isenta de algum sorriso protector; embora, desde lução napolitana de 1799. ü- teatro em Nápoles desde o Renascimento
Tucídides ou Políbio, reconheçamos, quanto ao essencial, a nossa maneira até ao fim do século XVIII) e a grande síntese que domina os
de trabalhar, admitimos que a história verdadeiramente científica só factos, que «pensa» as fontes , mas não trabalha directamente sobre elas
acabou de se constituir no século XIX, quando o rigor dos métodos (História da Itália, 1871-1915; História da Europa no s~culo XIX):
críticos, preparados pelos grandes eruditos dos séculos XVII e XVIII, ousarei insinuar que o eixo da verdadeira história passa entre as duas?
se estendeu do domínio das ciências auxiliares (numismática, paleogra- -Mas cada um determinará este eixo à sua vontade e sei bem que
fia ... ) à construção da própria História: strictiore sensu, a nossa tradi- poderão opor à minha teoria 3 , que é a de um historiador da Antigui-
ção só foi definitivamente inaugurada por B. G. Niebuhr e, sobretudo. dade, de um historiador da cultura, demasiado exclusivamente orientado
Leopold von Ranke. para os problemas de ordem espiritual ou religiosa, e que passaria a ser
A mesma imprecisão marginal quanto à história actualmente pra- mais matizada se tivesse tomado como terreno de exper(ênda a história
ticada: se é verdade que, de maneira geral, os peritos concordam, no contemporânea e os seus problemas económicos ou sociais ...
seio da corporação, para julgar da validade das suas pesquisas, este
consensus não deixa de apresentar algumas dissonâncias e vê-se por Aceitemos provisoriamente esta diversidade de Püntos de vista,
momentos, contestado: se os especialistas são excessivamente rigorosos recusando a cada u~ o exclusivismo, e procuremos apreender, na sua
e gostam de desqualificar o «amador», ouvirão que lhes censuram a realidade complexa e em toda a sua variedade, a História tal como
estreiteza da «ciência oficial». De facto, o campo da História, o campo existe, realizada por obra dos historiadores.
onde operam os historiadores, é ocupado por um grupo de investigadores
que abrem em leque: numa extremidade, os eruditos minuciosos, ocupa- Podemos deixar de lado as tentativas, sempre renovadas, dos teÓ·
dos a «fazer a toilette» dos documentos a publicar, que acabarão por ricos que procuram demonstrar a possibilidade, a necessidade, a urgência
ser acusados de serem siffi:ples filólogos e não ainda historiadores: pre- de uma história diferente da dos historiadores, uma «história» que seria
paradores ou preparadoras, e não ainda verdadeiros sábios; na outra mais científica, mais abstracta, procurando, por exemplo, apurar as leis
ponta, nobres espíritos, entusiasmados pelas vastas sínteses, que abraçam
com um voo de águia imensas camadas de devir: contemplamo-los cá
de baixo com alguma preocupação, porque se suspeita que ultrapassam
1 Col1i"ngwood ; ldea , p . 304; R. Aron . lntroduction •. pp . 81 · 82 .
o nível da História, desta vez por cima ...
2 Como Dilthey, cujes grendes obros hist6rices siio biogrefios : V.ida de Schleier-
De momento, toleramos esta flexibilidade na delimitação das fron- macher, I (1870); Hist6ria da juventud11 de Hegel (1906 ).
teiras; deixamos ao gosto, ou antes, à vocação de cada um, o direito a Como me objecteve Georges Bidoult, durente ume discussão memoré vel na
de valorizar ou de desqualificar este ou aquele aspecto desta prática Société Lyonneise de Philosophie, no d ie 18 de J unho de 1942 .

26 27
DO CONHECIMENTO HIBT6RICO A HIBT6RIA COMO CONHECI:MENTO

mais gerais do comportamento humano tal como se manifesta na história representação falsa . ou falsificada, irreal do passado, opõe-se à utopia,
empírica (contingência, necessidade ...): a «síntese científica» de Henri à história imaginária (do tipo daquela que escreveu W. Pater) 9 , ao
Berr 4, a «história teórica» de P. V endryes 5 , a «theoretische Geschiede- romance histórico, ao mito, às tradições populares ou às lendas peda-
nis» de l. M. Romein 6 • Mesmo supondo que estas disciplinas se mostrem gógicas - esse passado em imagens de Épinal que o orgulho dos gran-
um dia tão fecundas, como esperam os seus fundadores, nem por isso des Estados modernos inculca, desde a escola primária, na alma inocente
suprimirão a historia tradicional, cuja existência postulam. A nossa dos seus futuros cidadãos 10 •
filosofia crítica continuará a ser necessária e legítima. Sem dúvida, esta verdade do conhecimento histórico é um ideal
(e, quanto mais a nossa análise progredir, mais se verá que não é fácil
O que é então a História? Propor-me-ei responder: A História é de atingir). A História, pelo menos, deve ser o resultado do esforço mais
o conhecimento do passado humano. A utilidade prática de uma tal rigoroso, mais sistemático para se aproximar dele. Por isso, talvez se
definição é resumir numa breve fórmula a contribuição das discussões e pudesse precisar utilmente «o conhecimento cientificamente elaborado do
glosas que ela terá provocado. Comentemo-la: passado», se a própria noção de ciência não fosse ambígua: o platónico
Diremos conhecimento e não, como outros, «narração do passado ficará admirado por nós anexarmos à «ciência» esse conhecimento tão
humano?> 7 , ou ainda «obra literária que visa traçá-lo» 8 ; sem dúvida, o pouco racional, que depende completamente do domínio da 86/;cx; o aris-
trabalho histórico deve normalmente levar a uma obra escrita (e exami- totélico, para quem só existe «ciência» do geral, ficará desorientado
naremos este problema para terminar), mas trata-se de uma exigência quando vir a história descrita (e não sem qualquer exagero, como vere-
de carácter prático (a missão social do historiador ... ): de facto, a His- mos) sob os traços de uma «ciência do concreto» ( Dardel) e, até,
tória existe já, perfeitamente elaborada no pensamento do historiador, «do singulan> ( Rickert ). Precisamos, portanto (temos de falar grego
para nos entendermos), que se se fala de ciência a propósito da história,
antes mesmo de ele a ter escrito; sejam quais forem as interferências
dos dois tipos de actividade, são logicamente distintas. é não no sentido de ~ma"Ó)p.l). mas sim no de TÉX."T'J• isto é: por oposição
ao conhecimento vulgar da experiência quotidiana, um conhecimento
Diremos conhecimento e não, como outros, «pesquisa» ou «estudo»,
elaborado em função de um método sistemático e rigoroso, aquele que
embora este sentido de «investigação» seja o sentido primeiro da palavra
se mostrou capaz de representar o facto optimum de verdade.
grega taTopicx. porque é confundir o fim e os meios. O que importa é
Conhecimento do passado, mesmo se se .trata de história realmente
o resultado alcançado pela pesquisa. Não a prosseguiremos se não devesse
contemporânea (pensemos no polícia de trânsito que organiza- acto
resultar; a História define-se pela verdade que se mostra capaz de ela-
histórico elementar- o auto do acidente que acaba de se verificar, há
borar. Porque, ao dizer conhecimento, entendemos conhecimento válido,
um instante, à sua vista). Conhecimento do passado humano: não temos
verdadeiro: . a História opõe-se dessa maneira ao que seria, ao que é
preconceito algum acerca do que pode ter sido. Resistimos, em parti-
cular, às exigências preliminares que gostaria de nos impor o filósofo
da História, o pior inimigo para nós, lógico e filósofo das ciências. Ele
• La synthese en H isto ire, SOl! r apport avec I'Histoire générale ( 1911,
sabe, ou pretende saber, o que constitui a essência desse passado; nós
2.• ed., 1953).
G De la probabilité en Histoire, l'exemple de l'expédition d'Egypte ( 1952).
8 Theoretische Geschiedenis (Groningen, 1946); sobre est11 concepção, muito
m11is compreensiv11 que . 11s duas precedentes, ver 11 comunic11ção de J. H . Not11, Actes 9 lmaginary Portraits ( 1888), p11ra não dizer n11da de Marius o Epicurista nem
du Xl 8 Congràs lntern11tion11l de Philosophie (Bruxelas, 1953), t. VIII, pp. 10-14. de Gaston de Latour.
7 O. Philippe, L'homme et I'Histoire (Actes du Congràs de Strasbourg, 1952), 10 éncontr11r-se-ó no belo livro de R. Minder, Allemagnes et Allemands, ( 1948),
p. 36•. 11 11ná lise comp11r11d11 d11s estiliz11ções 11ntitéticas («stichomythill») que o ensino element11r
B R. Jolivet, ibid., p. 11. forneceu n11 Fr11nça e no Alem11nh11, d11s mesm11s figur11s hist6ric11s: Carlos M11gno, etc.

28 29
DO CONHECIMENTO HIST6RIOO A HIST6RIA COMO CONHECIMENTO

recusamo-nos aqui a sabê-lo e aceitamos na sua complexidade tudo o Há no trabalho do pré-historiador todo um sector que depende
que pertenceu ao passado do homem, tudo o que conseguimos apren- da paleontologia: quando ele analisa os restos dos esqueletos humanos,
der dele. os seus caracteres somáticos, mesmo se essas observações (incidindo, por
Por isso dizemos passado humano, repelindo toda a adição ou exemplo, sobre o volume da caixa craniana, sobre a posição erecta mais
especificação como suspeita de pensamentos reservados. Porquê, por ou menos afirmada) o conduzem a hipóteses sobre o psiquismo dessas
exemplo, acrescentar: passado «dos homens que vivem em sociedade»? ! 1 raças longínquas, não vejo aí nada de especificamente histórico; a paleon-
Ou é inútil, pois sabemos desde Aristóteles que o homem é esse animal tologia aplica ao passado os métodos utilizados no presente pela etnologia
que vive em sociedade organizada (o historiador do eremetismo des- (enquanto oposta à etnografia, que é propriamente o estudo das civiliza·
cobre com espanto que a fuga para o deserto não separa o homem da ções «primitivas»): objecto e métodos dependem realmente da biologia.
sociedade: diante de Deus, o contemplativo assume toda a humanidade) Mas quando o mesmo pré-historiador estuda os objectos que osten-
--ou é tendencioso: não posso admitir que se queira excluir da História tam o vestígio de uma acção voluntária do homem, aquilo a que o
os aspectos mais pessoais da recuperação do passado, -que co,nstituem inglês chama artifacts, e através disso se esforça por compreender as
talvez a sua ·conquista mais preciosa. Da mesma maneira, por que preci- técnicas materiais ou espirituais (magia, religião) e, numa certa medida,
sar «factos humanos do passado»? 12 • É inútil, se «factos», por oposição os sentimentos ou as ideias dos seus autores, o que ele faz depende da
ao fantasista ou ao imaginário, significa simplesmente realidade; é infini- arqueologia, que é um ramo da história, e, sob este aspecto, a pré-história
tamente suspeito se daí se passa a excluir as ideias, os valores, o espírito; é já história, no sentido pleno da palavra.
de maneira que não veremos nada de menos claro que a noção de facto
em matéria de História. Quando, por exemplo, Norbert Casteret descobre, na gruta de
O único elemento que permanece talvez ambíguo na nossa defini- Montespan 13 , um bocado de argila representando um quadrúpede, além
ção, é o de passado humano: entenderemos por tal o comportamento de um crânio de ursotinho, bocado entremeado de golpes de zagaia,
susceptível de compreensão directa, de apreensão pelo interior, acções, não tem dificuldade em reconstituir o rito de magia «simpática>> (aná-
pensamentos, sentimentos e também todas as obras do homem, as cria- logo ao que ainda, nos nossos dias, os Esquimós praticam), a que se
ções materiais ou espirituais das suas sociedades e das suas civilizações. haviam entregado aí caçadores pré-históricos.
obras através das quais atingimos o seu criador, numa palavra, o passado
do homem enquanto homem, do homem já tornado homem, por oposição Compreendemos pelo interior um tal comportamento e essa com-
ao passado biológico, o do devir da espécie humana, estudado já não preensão directa é qualquer coisa de muito diferente da do físico que
pela História, mas pela paleontologia humana, ramo da biologia. «compreende» a desintegração do átomo: é o nosso conhecimento interior
Teremos ocasião de voltar à distinção entre estes dois passados do do homem, das suas possibilidades, que nos permite compreender esses
homem, a evolução biológica e a História. Já a podemos apreender caçadores pré-históricos, neste sentido perfeitamente histórico. De facto,
utilmente, dispensando alguma reflexão a essa disciplina fronteira a que só consideramos artifacts os objectos que nos parecem ostentar um ves-
chamamos pré-história. Disciplina não só fronteira, mas complexa (o caso tígio inteligível da acção do homem; hesitamos diante dos casos duvidosos:
é frequente: as ciências particulares são entidades de ordem prática que
não têm unidade lógica): quer pelo objecto, quer pelos métodos, é assim, em certos jazigos paleolíticos chineses, hesita-se em reconhecer a
mista. acção do homem em certas pedras rebentadas pelo fogo: não são o
efeito de um fenómeno acidental? Ou, então, diante de certos signos

11 Ch. Seignobos, Lettre .\F. Lot (1941), Revue historique, t. CCX (1953), p. 4. 13 P. Chulus, em Seizieme semaine de Synthese: A la recherche de la menta.
1:2 ld., ibid. (e já H. Berr, La synth~se en Histoire, p. I) . lité préhisforique (1950, publ. 1953), pp . 147-148, 151 .

30 31
DO OONHEOllllENTO HIBT,RIOO A HIBT,RIA GOMO OONHEOIMENTO

gravados ou pintados da época, digamos, neolítica, perguntamos a nós simile claudicat: a comparação é imperfeita, porque, numa relação mate-
próprios se são simplesmente decorativos ou se não seriam significativos mática, os dois termos possuem uma realidade própria, enquanto que,
e não representariam um esboço de escrita. na História, esses dois planos só são apreensíveis no seio do conhecimento
que os une. Não podemos isolar, a não .ser por uma distinção formal, de
Não é de excluir que os nossos escavadores tenham deixado escapar um lado um objecto, o passado, do outro um sujeito, o historiador.
documentos preciosos, simplesmente porque não souberam reconhecer Nada de mais significativo a este respeito que o equívoco notável
neles esse rasto do homem. Havemos de mostrar que a riqueza do conhe- mantido pela linguagem: esta não só não se contenta em unir os nossos
cimento histórico é directamente proporcional à da cultura pessoal do dois planos, como até, em virtude de uma metonimia ao mesmo tempo
historiador: o facto observa-se já em pré-história, onde é a etnografia sedutora e instrutiva, tolera que mp.a pessoa se sirva da mesma palavra,
que, dilatando a nossa experiência da variedade das técnicas humanas, a história, para designar alternativamente seja a própria relação, seja o
constitui o instrumento de cultura que torna o historiador mais capaz seu numerador. É, sem dúvida, legítimo distinguir pelo pensamento as
do seu objectivo: duas noções, o desenvolvimento da nossa análise vai exigi-lo a cada ins·
tante e, uma vez estabelecida a distinção, terá de se adoptar qualquer
quem estudou objectos análogos entre os Esquimós do Alasca, descobre forma conveniente de expressão. Propôs-se ou tentou-se mais do que uma.
que os pretensos «bastões de comando» magdalenienses foram instru· A mais simples, se não a mais prática, consiste em opor realidade
mentos para endireitar flechas (obtendo flechas rectilíneas com paus histórica e conhecimento histórico (em vez de: história objectiva e histó-
curvos); tais «bastões-mensagens>> neolíticos são talvez varas de libação, ria subjectiva). Para se fazer compreender, Hegel, um dia, exprimiu-se
como os «levanta-bigodes» dos Ainus 14 • em latim, distinguindo as próprias res gestae da historia rerum gestarum.
Em alemão, tentou-se amiúde 15 , jogando com os pares de palavras do
Conhecimento do passado humano, conhecimento do homem, ou vocabulário (palavras de origem germânica e empréstimos ao francês)
dos homens, de ontem, de outrora, pelo homem de hoje, o homem de especializar, para cada um dos dois sentidos, Geschichte por um lado,
depois que é o historiador. Esta definição faz residir a realidade da Historie pelo outro; em italiano, ou pelo menos na língua muito pessoal
História na relação assim estabelecida pelo esforço de pensamento do de B. Croce, à mesma distinção se presta o par storia I storiografia (que
historiador; pode-se assim estabelecer: é vulnerável à nossa objecção: o conhecimento histórico existe mesmo
se, ou quando, não está ainda escrito). Em francês, a combinação mais
p engenhosa é a que foi imaginada por Henry Corbin ! 6 , Histoire e histoire,
h=-
p a maiúscula para o real, o passado vivido por homens de carne e de
sangue, a minúscula para a humilde imagem que o historiador, pelo seu
Por meio desta imagem, quero simplesmente pôr em evidência trabalho, se ~sforça por recompor, o que exprime bastante bem o valor
facto de que, assim como nas matemáticas a grandeza da relação é pejorativo ligado às pobres fichas dos professores de História, objecto
0
uma coisa diferente de cada um dos termos relacionados, assim a de tantos sarcasmos, desde Hegel a Péguy; combinação infelizmente ina-
História é a relação, a conjunção, estabelecida. por iniciativa do histo-
riador, entre dois planos da Humanidade, o passado vivido pelos home~s
de outrora. o presente em que se desenvolve o esforço de recuperaçao
13 J6 Kant, ldée d'une Histoire univenelle (1784), Werke (ed. Cossirer), t. IV,
desse passado, em proveito do homem, e dos homens de depois. Omne p. 165.
16 Ne sue treduçiio dos §§ 46-76 de Sein und Zeit, eperecide em Heidegger,
Qu'estce que la métaphysique? {1938), pp. 115-208 (v. p. 175, n. I), pertido seguido
H A. Leroi-Gourhan , La civilisation du Renne ( 1936), pp. 58, 60, 63; G. Mon·
por E. Oerdel, L'Histoire, ·Science du concret.
tondon La eivilisation Ainou ( 1937), pp . 52-59 .

32
• 33
DO OONHEOIMENTO HIBTóRIOO A HIST6RIA COMO OONHEOIMENTO

plicável em inglês, onde History pode, sem artigo, encontrar-se no imcio Bem entendido, uma vez que se define como conhecimento (e
de uma frase, e assim usurpar a maiúscula ... 17 nós precisamos: conhecimento autêntico), a histÓria supõe um objecto,
Mas- e é isso que importa- fora dos momentos em que o pen- pretende atingir o passado «realmente» vivido pela Humanidade. Mas,
samento do lógico se fixa voluntariamente nesta distinção, o génio da lín- deste passado, não podemos dizer naqa, e só o que podemos fazer é
gua que exprime (como acontece amiúde) a sabedoria implícita das nações, postular a sua existência como necessária, enquanto o conhecimento
recusa-se a confirmá-lo. O leitor que se ouça falar e verificará que, na dele se não elaborou, nas condições empíricas e lógicas que a nossa
sua boca, história recebe alternadamente uma e outra acepção; e não se filosofia crítica se vai esforçar por analisar. Se nos é permitido conti·
trata aqui, como se pensou muitas vezes, de uma falta de rigor ou de nuarmos, à maneira de Dilthey, a exprimir-nos em termos pedidos
tecnicismo do francês, sem reparar (ah! o prestígio da «palavra alemã» ... ) a Kant,
que a distinção GeschichteiHistorie era muito artificial. Historie não é
uma palavra realmente viva em alemão e Geschichte emprega-se cons- (precisemos, para não sermos acusados de «neo•kantismo», que se trata
tantemente também no sentido de «conhecimento ou de literatura his- de um uso metafórico: transpomos esse vocabulário do domínio trans-
tórica>>: temos, a esse respeito, declarações explícitas e autorizadas que cendental para o empírico),
vão de Hegel 18 a Heidegger 19 • O facto é geral: em todas as nossas
línguas de cultura, seja o inglês, o espanhol, o italiano (surpreendo diremos que o objecto da história se apresenta de alguma maneira
essa confissão preciosa de recolher na própria pena de Croce) 20 , o holan- a nós, ontologicamente, como «númeno»: ele existe, certamente, sem o
dês, o russo ... , encontra-se a mesma ambiguidade. que a própria noção de um conhecimento histórico seria absurda, mas
Não se deve deslizar da distinção formal para a distinção real, do não o podemos descrever, porque desde que é apreendido, é como
aspecto crítico para o ontofógico: de facto, houve uma tendência geral conhecimento que o é, e nesse momento sofreu uma metamorfose com·
para utilizar, até ao abuso, antíteses do tipo GeschichteiHistorie: Kul- pleta, encontra-se como que remodelado pelas categorias do sujeito
tur I Zivilisation 21 , Gemeinschaft I Gesellschaft, Sacerdócio 1Profetismo, cognoscente, ou melhor (para não continuarmos o jogo de metáforas),
Apolo IDiónisos, etc. A antítese é um instrumento de análise bastante pelas servidões lógicas e técnicas que se impõem à ciência histórica.
grosseiro: dois pólos entre os quais se reclassifica, mas também se recom- Se é preciso estabelecer a distinção, deverá evitar-se designar
põe, o real. O real aqui, a única realidade que a linguagem sempre desig- esse passado, anteriormente à elaboração do seu conhecimento, pela
nou, é a tomada de consciência do passado humano, obtida no pensa- mesma palavra «história>> que esta (nem que seja com maiúscula), ou
mento pelo esforço do historiador; não se situa num nem noutro dos dois por uma palavra da mesma raiz ou do mesmo sentido: mais tarde ou
pólos, mas sim na relação, na síntese que a intervenção activa, a imcia- mais cedo, o equívoco da linguagem comum insinuar-se-á de novo no
tiva do sujeito cognoscente estabelece, entre presente e passado. espírito e porá em perigo a validade da distinção. Uma vez que é preciso
escolher um nome, proporei que fiquemos (de preferência a «devir» ou
a «génese») pelo de Evolução da humanidade, embora também não deixe
17 G. J . Renier, History, its purpose and method (Londres, 1950), p. 81. de apresentar inconvenientes.
18 Vorlesungen, sobre o filosofio do hist6rio, ed. Lasson (Werke, t. VIII), pp. 144-
Tal como foi elaborado pela biologia, este termo evolução designa
-1 45: «No nosso línguo (o olemão!), Geschichte reúne o aspecto objectivo e o ospectc-
subjectivo e designo tanto a historiam rerum gestarum como os pr6prios res gestas ... »
a confusa meada de relações causais, desdobrada no tempo, que liga o
· 1.9 Sein und Zeit, § 73, trod. Corbin, p. 178. ser vivente aos seus antecedentes directos. É legítimo aplicar por analo-
°2
Cf. Noterelle polemiche {1894), em Primi Saggi, p. 46, n. 3. gia esta expressão ao tempo, incomparavelmente mais curto e mais
2! Também bastante ortificiol: o volor dos termos opostos mudou muito desde próximo, vivido pelo homo sapiens desde a emergência do seu tipo.
W. von Humboldt {1836), o F. Tonnies {1887) eM. Weber {1912): ver A. L. Kroeber · A diferença de escala entre as duas durações, a essência distinta dos
e C. Kluckhohn, Cultura, a criticai review of concepts and definitions ( Papers of the
Peobody Museum, vol. XLVII, n.• I, 1952).
fenómenos observados, não opõem um obstáculo intransponível à exten-

34 35
DO CONHECIMENTO HISTORICO
A B1B'Í'ORIA CÓMO CONHECIMENTO

são semântica sugerida. Do conceito inicial, a nossa transposição analó-


gica só conserva a noção fundamental: o estado presente de um ser mente uma fase nova e última daquela; teremos ocasião de voltar a este
ponto (p. 243).
vivo explica-se pela herança do seu passado. Da mesma maneira que
os estiletes da perna de um cavalo são o resultado da redução progressiva
Mas este «passado realmente vivido», esta evolução da humanidade
do metatarso dos seus antepassados terciários, assim os Franceses de
não .é a história; esta não é um simples decalque daquela, como poderia
hoje são aquilo que deles fizeram os anos posteriores à Libertação, e representar-se numa teoria pré-kantiana do conhecimento. Ao readqui~
1940-1945, e o tempo entre as duas guerras, e 1914-1918, e assim suces- rir vida na consciência do historiador, o passado humano torna-se outra
sivamente, indo até Júlio César, Vercingétorix, os nossos antepassados coisa. depende de um outro modo do ser. Abusou-se demasiado, para
gauleses, os arroteadores neolíticos, e mais longe ainda... Mesmo que analisar a essência da história, das fórmulas famosas de Ranke ou de
os ignore (colocamo-nos fora de toda a tentativa de história-conheci- Michelet: «mostrar puramente e simplesmente como as coisas se veri-
mento), o comportamento dos cidadãos franceses perante o ,imposto, ficaram», wie es eigentlich gewesen, «ressurreição integral do passado»,
dos católicos franceses perante o Dinheiro do Culto, explica-se por
hábitos mentais herdados dos antepassados e contraídos no tempo da frases, aliás, que ganham em ser de novo colocadas no seu contexto e
monarquia absoluta ou por efeito da Concordata de 1515. não simplesmente em passar de mão em mão, como uma moedá cada
dia um pouco mais gasta 22 •
Como o representante de uma espécie biológica, o homem de tal
sociedade, de tal meio de civilização, é filho do seu passado, de todo Da mesma maneira, acho extremamente infeliz estoutra fórmula
o seu passado (é mesmo aqui que se tem o direito de falar de uma a que R. G. Collingwood, no seu esforço por arquitectar uma teoria
herança dos caracteres adquiridos!): as revoluções mais inovadoras não verdadeiramente racional da história, chegara finalmente: «re-actuali-
zação da experiência do passado», History as re-enactment of past expe-
conseguem abolir toda esta herança; assim, para quem conhece um pouco
rience.
a história da Rússia, esta mesma U.R.S.S., que pretende ser completa-
Temos de o declarar com vigor: o historiador não se propõe como
mente marxista, deve muito dos traços da sua civilização (a consciência
tarefa (mesmo supondo que a coisa seja concebível sem contradição)
tranquila, por exemplo, no recurso ao terror policial) à sua mãe, a Rússia reanimar, fazer reviver, ressuscitar o passado. Tudo isto são simples
dos Czares, e aos antecedentes bizantinos desta. metáforas. Sem dúvida que, num certo sentido, o historiador entrega de
novo à existência do presente qualquer coisa que se tornara passada e
Redobremos de precauções; é normal que uma disciplina vá buscar que deixara de existir, mas ao tornar-se «história», ao ser conhecido, o
um conceito a uma das suas vizinhas (a biologia, simetricamente, gosta passado não é simplesmente reproduzido tal como fora quando era pre-
de falar de fenómenos «históricos», quando estuda, por exemplo, os sente. Sem falar ainda das inumeráveis transformações (transposições,
efeitos de determinado período glaciar sobre a repartição das espé- deformações, selecçõ~s) a que o terão submetido as manipulações,
cies botânicas ou animais numa área dada), mas é preciso sublinhar mediante as quais a razão histórica terá elaborado o seu conhecimento,
que, sendo utilizado num domínio da experiência diferente daquele
para o qual fora elaborado, todo o conceito científico perde a pouco e
pouco validade, e que este uso novo só tem um carácter analógico e,
22 Cf. Th. von Loue, Leopold Ranke, the formativa years ( Princeton Studies i~
portanto, limitado. Pela minha parte, sou muito sensível ao abuso que se H istory, vol. IV, 1950), pp. 25-26; O. A. Haac, Les príncipes inspirateurs de Michelet
poderia fazer da noção de «evoluÇão» biológica transpondo-a sem modi- ( 1951 ', pp. 73-80: sobre o contexto, ver Geschichte der roma nischen und germanischen
ficação para o .domínio da «história»: esta não é puramente e simples- Vollcbr, Sãmtl. Werke, t . XXXIII, p. VIl ; Histoire de Fra nca, t. I, pp. XI, XX I-XXII ,
XXXI.

36
37
A HISTóRIA OOMO OONHEOIMENTO
DO OONHECIMENTO HIBTORIOO

basta-nos de momento sublinhar que o passado assumido pela história que S. Lucas não conheceu nem mais coisas, nem coisas mais precisas
se encontra, por isso mesmo, afectado de uma qualificação específica: ou certas do que eu), porque o conheço como um homem do século I,
é conhecido enquanto passado. vejo-o, ao fim desses mil e novecentos anos que nos separam, diferente
Quando era «real», era uma coisa completamente diferente para de mim por toda a evolução entretant0 desenrolada. Escolhi o exemplo
os seus actores, para os homens que o viveram: era para eles presente, propositadamente (em vez de dizer: não conheço César como Cícero o
isto é, o ponto de aplicação de um nó buliçoso de forças que faziam conheceu), porque, na minha qualidade de cristão, sinto-me e sei que
surgir, fora do futuro incerto, esse presente imprevisível, onde tudo era estou em comunhão com S. Paulo acerca de tudo o que ele próprio con-
movível, devir, a-becoming, in fieri; reencontrado como passado (mesmo siderava como o essencial do seu pensamento; professo compreender e
se é de ontem, de há um instante), o ser franqueou o limiar do irrevo- partilhar a sua fé em Cristo, - mas continua a ser verdade que, se sou
gável: é ·ter sido geschehen (o dagewesenes Dasein de Heidegger), gra- historiador, escuto o seu ensino, tendo a noção aguda das diferenças
maticalmente: perfeito. Constatação elementar, mas cujas consequências específicas que o separam (ainda, mais uma vez, em quantidade igual tle
se vão revelar profundas e levar longe. Basta, de momento, apurar três: conteúdo teológico) de um homem da Igreja de hoje.
a) Em vez de se tornar, como se tem repetido de mais, o «con-
Tive, a este respeito, uma polémica com o exegeta americano Edgar
temporâneo» do seu objecto, o historiador apreende-o, situa-o em
J. Goodspeed que, na sua tradução modernizada do Novo Testamento,
perspectiva na profundidade do passado; conhece-o enquanto passado,
traduz a saudação xoc(pen por Good morning (Mt., XXVIII, 9) ou
isto é, o próprio acto deste conhecimento estabelece ao mesmo tempo o
Goodbye (Phil., IV, 4). Na minha maneira de ver, é trair o autor e enga-
facto evocado como tendo-sido-um-presente e a distância, maior ou
nar o leitor, levando-o a .julgar que S. Mateus ou S. Paulo escreviam como
menor, que nos separa dele:
americanos do século XX, quando escreveram como gregos do século I,
como detentores de uma língua em que para se cumprimentarem, não
não é verdade, como escrevia Proust para o fim do Temps retrouvé, que
tartamudeavam uma fórmula ininteligível, «How d'y'clo» ou «Byeb~».
«a memória, ao introduzir o passado no presente sem o modificar, tal
como os Anglo-Saxões de hoje, mas diziam com bastante clareza: «Ale-
como era no momento em que era o presente, suprime precisamente esta
gra-te». Vê"se que tiveram perfeita consciência deste sentido de xocí:pe:,
grande dimensão do Tempo»; Proust estava inspirado quando, na última
xaípe7e:., pelo versículo de Phil., IV, 4: «Alegrai-vos incessantemente no
página da sua obra, se vê «empoleirado» no «cimo vertiginoso» do seu
Senhor, mais uma vez vos digo, alegrai-vos». É absolutamente inade-
passado: «sentia vertigens por ver debaixo de mim, e contudo em mim,
quado traduzi-lo por «Goodbye ... Again I say, goodby!»2 3
como se tivesse léguas de altura, tantos anos, como se os homens se
encontrassem empoleirados em dma de ondas vivas que crescessem sem b) Mas este intervalo que nos separa do objecto passado não é
cessar ... »
um espaço vazio: através do tempo intermediário, os acontecimentos
estudados - quer se trate de acções, de pensamentos, de sentimentos -
É mesmo nesta capacidade de sentir de maneira igualmente aguda,
produziram os seus frutos, arrastaram consigo consequências, desenvol-
quer a realidade do passado, quer a distância a que ele se encontra que
veram as virtualidades, e não podemos separar o conhecimento que
reside, segundo parece, aquilo a que se chama propriamente o sentido
deles temos do destas sequelas. .
histórico, cuja ausência nós verificamos nos pintores da Idade Média
AproveitemoB a ocasião para sublinhar quão rica de consequências
ou do Renascimento, quando representam as personagens da Antigui-
práticas se revela a nossa análise teórica: deste facto, decorre aquilo
dade clássica ou cristã vestidas como os seus contemporâneos do
século XN ou do século XV. Conheço S. Paulo de uma maneira dife-
rente de como os homens do seu tempo,S. Lucas, por exemplo, o conhe- 23 E. G. Goodspeed, Problems of New Testement t rensletion (Chic1190, 1945),
ceram (e isso com conteúdo igual do nosso conhecimento, isto é, supondo pp. 45-46, 174-175.

39
38
DO OONiiEOIMEN'I'O B1BT6Rió() A. HIBT6iUA. OOMO CONHECIMENTO

a que gosto de chamar a Regra do Epílogo. Todo o estudo histórico nenhum dos contemporâneos da época estudada soube nem pôde saber:
que não conduz o seu objecto «das origens aos nossos dias», deve come- realmente, não é que ele pretenda encontrar a mesma precisão no por-
çar por uma introdução que mostra os antecedentes do fenómeno estu- menor, a mesma riqueza concreta que a da experiência vivida (isso,
dado e por um epílogo que procura responder à pergunta: «Que acon- como ele sabe, é impossível e, aliás, 'não lhe interessa grandemente):
teceu a seguir?» O estudo não deve começar e acabar abruptamente, o conhecimento que quer elaborar desse passado visa a uma inteligibi-
tal como no cinema, em que o «écran» se ilumina no início do filme lidade, que se deve elevar acima da poeira dos factos miúdos, dessas
para escurecer no fim. moléculas cuja agitação em desordem constitui o presente, para lhe
substituir uma visão ordenada, que apura linhas gerais, orientações
Não se pode expor a história de Lutero sem evocar aquilo que susceptíveis de ser compreendidas, cadeias de relações causais ou fina-
tinham passado a ser a piedade católica e a teologia nominalista no fim listas, significações, valores. O historiador deve chegar a lançar sobre o
do século XV, .nem a da França religiosa do século XVli, sem mostrar passado esse olhar racional que compreende, apreende e (num sentido)
como se pode ter preparado a explosão da Regência e a irreligião triun- explica,- esse olhar que desesperamos poder lançar sobre o nosso
fante do século XVIII. tempo, daí esse apelo a Clio (que Péguy se divertia a descobrir sob a
Como todas as do método histór{co, esta regra tem de ser aplicada pena de Victor Hugo, nos seus Châtiments), essa expectativa da história
com subtileza de espírito; não se devem projectar indevidamente os desen- que um dia, segundo esperamos, permitirá saber o que nós não soubemos
volvimentos ulteriores sobre a situação precedente, tornar, por exemplo, (tantos dados essenciais escaparam à nossa informação, à nossa expe-
Platão «responsável» pelo cepticismo da Nova Academia, nem Santo riência) e, sobretudo, compreender o que no calor dos nossos combates,
Agostinho por Jansénio. Mas o próprio esforço que me leva a estabe- arrastados por correntes de forças que não podíamos contemplar de
lecer que o jansenismo é um desenvolvimento bastardo do augustinismo, cima, não podíamos apreender, que era impossível apreender enquanto
ajuda-me poderosamente a compreender melhor este último. as forças em acção não se houvessem revelado mediante a realização
de todos os seus efeitos, enquanto o devir não estivesse realizado no
c) Finalmente, quando era presente, esse passado era, como o perfeito. Não comparemos depressa de mais o historiador ao drama·
presente que vivemos neste momento, qualquer coisa de pulverulento, turgo ou ao romancista, porque se deve sublinhar bem que esta inteligi-
de confuso, de multiforme, de ininteligível: uma rede densa de causas bilidade deve ser verdadeira, e não imaginária, deve encontrar a sua
e de efeitos, um campo de forças infinitamente complexo que a cons- razão na «realidade» do passado humano; mas, uma vez lembrado isso,
ciência do homem, seja ele actor ou testemunha, é necessariamente é verdade dizer 25 que a história deve procurar elaborar um conheci-
incapaz de apreender na sua realidade autêntica (não há nenhum lugar mento que seja tão inteligível como Shakespeare ou Balzac.
de observação privilegiada- pelo menos nesta terra). Temos de retomar Pode-se aqui recuperar utilmente uma distinção cara a Croce, que
aqui o exemplo,· clássico desde Stendhal e Tolstoi 24 , das batalhas napo- gostava de opor a verdadeira história à simples crónica (Sorokin diz,
leónicas, a Waterloo da Chartreuse, ou melhor (porque o próprio Napo- em americano, newsreel), à analística, a uma narrativa que refere fiel-
leão, para Tolstoi, encontra-se tão perdido como o príncipe André ou mente, mas absurdamente, o passado em toda a desordem da sua expe-
Pedro Bezukhov), a Austerlitz e Borodino de Vojna i Mir ... riência directa:
O historiador não se poderia contentar com uma tal visão, tão
fragmentária e superficial; quer saber, procura saber muito mais do que é o defeito que censuramos amiúde à história local ou regional, a qual
se julga escrupulosa e exaustiva e se obriga a alinhar com minúcia mil

2
' Que foi profundamente influenciado pelo exemplo de Stendhal: cf. I. Berlin,
Lev Tolstoy's historical scepticism, Oxford Slavonic Papers, t. 11 ( 1951 ), pp. 17-54. 2G W. H. Walsh, lritroduction to philosophy of History, p. 33.

40 41
DO CONHECIMENTO HIBTóRIOO A HISTóRIA GOMO CONHECIMENTO

e um factos insignificantes, não nos perdoando nada, nem mesmo uma siderações que a dez anos de distância o herói, esclarecido por todo o
bacia atirada à cabeça de um transeunte no dia 16 de Agosto de 1610: enriquecimento ulterior da sua experiência espiritual, desenvolve a esse
Archives Nationales, z' 3265, f: 99 v.", «plain un pot de grosse et menue propósito, que pelo memorial garatujad~ durante a Noite famosa.
matiere orde et puant ... » 26
Não é ainda história. porque o espírito do historiador não dis- Opomos efectivamente a folha de Pascal às Confissões de Santo
pensou ainda esforços bastantes para pensar o seu dado bruto, para o Agostinho, tão profundamente elaboradas e, por isso mesmo, tão revela-
tornar pensável, isto é, susceptível de ser compreendido. doras, que uma crítica míope julgava poder desclassificar.
Antes de se passar à análise desta transformação profunda, desta
transmutação a que o processo de elaboração do conhecimento histórico
submete o passado-númeno, é preciso sublinhar ainda as consequências
imediatas que a simples constatação da sua realidade vai desencadear
sobre a nossa prática. nomeadamente no que diz respeito à crítica das
fontes. É ingénuo imaginar que um testemunho será tanto mais precioso
para o historiador quanto de mais perto aderir ao acontecimento,

como supõe a teoria clássica 27 da «crítica de exactidão»: a testemunha


estava bem colocada para observar? Deu-se ao trabalho de observar
bem? Não foi vítima de uma alucinação, de uma ilusão, de um precon-
ceito? O facto afirmado era observável?

Isso é verdade se se trata de estabelecer a materialidade de um


facto objectivável (as circunstâncias de um acidente de automóvel: o
documento mais seguro será efectivamente o auto levantado no local,
imediatamente depois do acontecimento, registando as declarações de
várias testemunhas independentes, etc.). Mas não é essa a única tarefa
de um historiador, nem a essencial: mais que estabelecer os «factos»,
importa-lhe compreendê-los e, aliás, os acontecimentos que lhe interes-
sam são as mais das vezes de uma essência mais subtil que essas consta-
tações materiais. Como mostrou L. Massignon, num ensaio justamente
célebre 28, o conteúdo de um instante de iluminação mística é mais exac-
tamente conhecido, porque mais profundamente compreendido, pelas con-

26 F. Lehoux. Le bourg de Saint-Germain-des-Prés, depuis ses origines jusqu'~ la


fin de la guerre de Cent Ans ( 1951 ) , p. 129.
27 Ch .-V. Lenglois e C h. Seignobos, lntroduction eux études historiques ( 1898),
pp. 145-150.
28 L'expérience mystique et les modes de stylisetion littéraire, Le Roseau d'or,
Chroniques, IV (1927), pp. 141-176.

42 43
2

A HISTORIA É INSEPARAVEL DO HISTORIADOR

Se a despojarmos dos seus exageros polémicos e das suas formu-


lações paradoxais, a filosofia crítica da História reconduz-se finalmente
a pôr em evidência o papel decisivo que desempenha, na elaboração do
conhecimento histórico, a intervenção activa do historiador, do seu pensa-
mento, da sua personalidade. Jâ não diremos: «A História, infelizmente,
é inseparável do historiador>> ... 1

Não podemos deixar de evocar a réplica de Gide: «Tanto pior!


-retorquiu Ménalque -. Prefiro dizer de mim para mim que o que
não é, é o que não podia ser». Nem infelizmente nem tanto pior são
categorias filosóficas.

Registamos este facto, inscrito na estrutura do ser, sem surpresa


nem cólera; o que podemos é constatar a situ!lÇão criada ao historiador
pelas condições do conhecimento (estrutura do espírito e natureza do
objecto), e é no interior destas necessidades que procuramos mostrar
em que condições e dentro de que limites é acessível um conhecimento
autêntico, isto é, verdadeiro, do passado humano.

É aqui que me separo de Raymond Aron, cuja posição me parece


ainda excessivamente polémica; o subtítulo da sua tese é bem revelador:
«Ensaio sobre os limites da objectividade histórica>> («É possível uma
ciência histórica universalmente válida? Em que medida o é?»).' O ver·
dadeiro problema é o problema «kantiano» (Em que condições é possível

1 L-1. H11lkin, lnitietion Ale critique historique (1953), p. Bb. cit11ndo P. V11l6ry.
2 R. Aron, lntroduction, p. 10.

4S
DO ÇONHEOIMENTO HISTõRIOO A HISTóRIA ~ INBEPARAVEL DO HISTORIADOR

o conhecimento histórico?), ou melhor, o da verdade da história, cuja tidade que nos deveríamos esforçar por tornar tão pequena quanto
objectividade não é o critério supremo. possível, até a tornarmos desprezível, tendendo para zero.
Nesta concepção, parece admitir-se que o historiador, e já antes
Tornou-se clássico e ainda pode ser útil, pedagogicamente, opor dele a testemunha cujo documento utiliza, só poderiam, pela sua con-
esta tomada de consciência, que basta para definir aquilo a que cha- tribuição pessoal, atentar contra a integridade da verdade, objectiva, da
mamos com altivez o novo espírito histórico, esse princípio fundamental, história; fosse positiva ou negativa -lacunas, incompreensões, erros no
às ilusões dos nossos predecessores positivistas. Eles sonhavam - não segundo caso, considerações ociosas, flores de retórica no primeiro
creio que seja calunioso dizê-lo -fazer alinhar a história entre aquilo -esta contribuição seria sempre de lamentar e deveria ser eliminada.
a que eles ·chamavam - a palavra é bem reveladora - as ciências «exac- Gostariam de ter feito do historiador, e já dos seus informadores, um
tas», a física, a química, a biologia, ciências de que, aliás, faziam uma instrumento puramente passivo, como que um aparelho registador, que
ideia bastante ingénua, tão elementar que se tornava falsa (teremos oca- só teria de reproduzir o seu objecto, o passado, com uma fidelidade
sião de insistir nisto ao precisar a distinção, essencial, mas que deve ser mecânica,- que o fotografar, como se diria, imagino eu, por volta
matizada, entre ciências da natureza e ciências do espírito): deslumbrados de 1900.
e um pouco intimidados pelos triunfos incontestáveis destas ciências, os
teóricos positivistas procuraram definir as condições quo a história deveria E a imagem teria sido magnificamente enganadora, porque apren-
satisfazer para também alcançar a honrosa categoria da ciência positiva, demos entretanto a reconhecer tudo o que podiam ter de pessoal, de
de conhecimento <<Válido para todos» para alcançar a ,lbjectividde. A construído, de profundamente informado pela intervenção activa do
sua ambição confessada era promover «uma ciência exacta das coisas operador estas imagens no entanto obtidas com lentes e com uma emulsão
do espírito». de brometos de prata, -desde o Baudelaire de Nadar até às Images
à la sauvette de Cartier-Bresson.
A palavra é de Renan: tem de se reler L'avenir de la science para
Folheemos o perfeito manual do erudito positivista, o nosso velho
medir a trágica segurança com que os homens de 1848 se comprome-
companheiro Langlois e Seignobos: a seus olhos, a história aparece como
teram, e comprometeram com eles a cultu~a ocidental, numa via que
o conjunto dos «factos» que se extraem dos documentos; ela existe
se revelou hoje um beco sem saída; se continua a haver alguma amar- latente, mas já real, nos documentos, mesmo antes de intervir o trabalho
gura na nossa voz quando evocamos esses homens, que foram nossos do historiador. Sigamos a descrição das operações técnicas deste: o histo-
mestres, peço aos meus jovens leitores que meçam quais as dimensões riador encontra os documentos e depois procede à sua toilette, com
da correcção a que nos vimos obrigados a proceder. a ajuda da crítica externa, «técnica de limpeza e de conserto»: separa-se
o bom grão da cápsula e da palha; a critica de interpretação apura
Para reduzir, por sua vez, a posição deles a uma fórmula, assenta- o testemunho cujo valor é determinado por uma severa «critica interna
riamos, conservando os mesmos símbolos que mais acima: negativa de sinceridade e de exactidão» (a testemunha pode ter-se enga-
nado? Quis enganar-nos? ... ), a pouco e pouco vai-se acumulando nas
h=P+p nossas fichas o puro frumento dos «factos»: o historiador só tem que
os referir com exactidão e fidelidade, apagando-se por trás dos teste-
Para eles, a História é Passado, objectivamente registado, mais, munhos reconhecidos como válidos.
infelizmente! uma intervenção inevitável do presente do historiador, Numa palavra, não constrói a história, encontra-a: Collingwood,
qualquer coisa como a equação pessoal do observador em astronomia que não poupa os seus sarcasmos contra uma tal concepção, do «conhe-
ou o astigmatismo do oftalmologista, isto é, um dado parasitário, quan- cimento histórico pré-fabricado, que bastaria ingorgitar e voltar a cuspir»,

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DO CONHECIMENTO HIBT6RIOO
A HIBT6RIA e INBEPARAVEL DO HISTORIADOR

chama a isso «a história feita com tesouras e um frasco de cola», scisson Ora uma tal concepção, que arruína a seriedade da nossa disci-
and paste. 3 Ironia merecida, porque nada é menos exacto que uma tal plina e a validade da sua verdade, não poderia passar por uma descrição
análise, que não dá conta dos processos reais do espírito do historiador. adequada da actividade real do historiador, tal como nós fazemos a
uxperiência dela no nosso trabalho de cada dia. É preferível, portanto,
Uma tal metodologia levava afinal a degradar a história em eru- renunciar a toda a comparação demasiado coxa e procurar exprimir-nos
dição, e de facto foi a isso que ela conduziu aquele dos teóricos que sem rodeios metafóricos. Adoptarei de bom grado a fórmula, despida
praticamente a levou a sério. Ch.-V. Langlois que, no fim da sua carreira, de pretensões ou paradoxos, proposta por um dos nossos confrades
já não ousava compor história, contentando-se em oferecer aos seus britânicos, o prof. V. H. Galbraith, d~; Cambridge: History, I suppose,
leitores uma montagem de textos (ó ingenuidade, como se a escolha dos is the Past, - so far as we know it, «a história é o passado na medida
testemunhos 'conservados não constituísse já uma temível intervenção em que nós o podemos conhecer»6 •
da personalidade do autor, com as suas orientações, os seus preconceitos, Sim, a modéstia e a precisão lógica desta fórmula parece-me
os seus limites!): ver, por exemplo, La connaissance de Ia nature et du muito mais apta para resumir (.. essencial da nossa experiência de
monde d'apres Ies écrits français à l'usage des la'ics (1911, reed. em 1927 historiadores do que o orgulho do filósofo idealista, seguro de construir
como t. li/ de La vie en France au moyen âge du XII• au milieu (como ele diz) o real só com os recursos do pensamento, do que a
du XN• siecle). miopia conscienciosa do erudito positivista contente por acumular «factos»
no seu ficheiro. Essa experiência não poderia ser descrita como o tran-
Mas não, «não existe uma realidade histórica já toda feita antes quilo trabalho de um nem como a expansão triunfante do outro. É
da ciência que conviria simplesmente reproduzir com fidelidade» 8 : a qualquer coisa de muito mais arriscado, de mais trágico; somos sempre
história é o resultado do esforço, num sentido criador, pelo qual o histo- ofegantes, humilhados, mais que meio vencidos. É qualquer coisa como
riador, o sujeito cognoscente, estabelece essa relação entre o passado que a luta entre J acob e o Anjo de Yahvé, no vale de Yabboq. Não nos
evoca e o presente que é o seu. Sentimos aqui a tentação de recorrer encontramos sós, encontramo-nos nas trevas como um Outro misterioso
de novo a uma comparação com o idealismo, para o qual o conheci- (aquilo a que eu chamava mais acima a realidade numenal do passado),
mento recebe a sua forma, se não mesmo toda a sua realidade, da realidade ao mesmo tempo sentida como terrivelmente presente e como
actividade do pensamento. Hesito desta vez em fazê-lo, pois tenho rebelde ao nosso 'esforço: tentamos abraçá-la, forçá-la a submeter-se,
bastante consciência dos perigos que comporta o abuso de tais refe- e sempre ela acaba, pelo menos em parte, por se esquivar ... A história
rências, porque a insistir-se de mais sobre a contribuição criadora do é um combate do espírito, uma aventura e, como todos os empreendi-
historiador, se viria a descrever a elaboração da história como um jogo mentos humanos, só conhece êxitos parciais, muito relativos, sem pro-
gratuito, como o livre exercício de uma imaginação efabuladora jogando porção com a ambição inicial; como de toda a luta travada com as
entre um material heteróclito de textos, datas, gestos e palavras com profundidades desconcertantes do ser, o homem volta de lá com um
a liberdade dum poeta que faz malabarismos com as suas rimas para sentimento agudo dos seus limites, da sua fraqueza, da sua humildade.
compor um soneto .. _cs Porque sentimos bem qual é a tarefa que deveríamos poder assu-
mir; à força de lutarmos com esse real desconcertante, acabamos por
o situar bastante bem para sabermos aquilo de que precisaríamos, e

a The idea of History, p. 257; cf. p. 246.


• R. Aron . p. 120.
G Why we study History (Historicol Association publicotions, n.0 131, 1944) .
I Cf. e minhe discussão com D. de Rougemont, 11 propósito do seu livro
Mos separo a f6rmulo do contexto, por momentos um pouco céptico, em que a inseriu
L'Amour et I'Occident, em Esprit, Setembro de 1939, pp. 760-768.
o eutor.

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DO CONHECIMENTO HIBTORIOO A HIBTORIA 8 IN8EPARAVEL DO HISTORIADOR

aquilo que nos falta, para o podermos conhecer de maneira autêntica estruturas agrárias do campo francês, até aos arroteamentos da pré-
e total; a nossa razão chega a conceber qual deveria ser o espírito do -história... E tudo isso se cifra em investigações que o nosso espírito
historiador para se tornar capaz de um tal conhecimento (no sentido concebe como possíveis; mas sabemos bem como depende do acaso
em que a geometria nos fala de um arco capaz de um ângulo dado). o sermos informados da possibilidade de cada uma. Torna-se legítimo
Deveria saber tudo, tudo o que foi realmente sentido, pensado, realizado postular a existência de muitas outras séries causais, que não as que
por todos os homens do passado; apreender essa complexidade sem acabam de ser enumeradas.
ignorar, m!m quebrar, nem alterar as relações internas, delicadas, múlti-
plas, emaranhadas que ligam, no real, estas manifestações da actividade Assim, quer em extensão, quer em dimensão, o problema levantado
humana e cujo conhecimento lhe confere uma inteligibilidade. Por muito pelo passado humano revela-se de uma estrutura duplamente e indefi-
limitada que seja a nossa experiência, basta para nos revelar a existência nidamente complexa: poder-se-ia transpor para o objecto da história
dessa rede cerrada de relações em que as causas prolongam os seus o tema pascalino do duplo infinito. Não levarei o esboço mais longe,
efeitos, em que as consequências se recortam, se ligam, se combatem, basta que nos tenha roçado a vertigem.
em que o menor «facto» (este encontro de que vai talvez depender a Se tal é o problema levantado por este programa da histÓria, que
orientação de todo o meu futuro ... ) é o ponto final de uma série Espírito se pode declarar capaz dela? Responderemos: um tal Espírito .
convergente de reacções em cadeia; todo o problema da história, por n
existe, é o Senhor Nosso Deus, TI-~ l cuja Sabedoria incriada «é
muito limitado que seja, postula gradualmente o conhecimento de toda efectivamente em si mesma um Espírito inteligente, subtil, ágil, pene-
a História universal. trante, claro, decisivo, incoercível, sólido e seguro, «capaz» de tudo,
que domina tudo, que penetra tudo ...»8 • Convém que o filósofo se
Retomarei o exemplo, já clássico, proposto por Ch. Morazé: seja detenha e pronuncie com adoração o Nome inefável, porque a sua
o acesso de Jules Ferry à chefia do Governo francês 7 ; o seu historiador meditação bastará para afastar dele a tentação mais perigosa, aquela
deve reconhecer evidentemente as condições precisas da chegada dele que não cessou de ameaçar toda a filosofia da história, o erro fatal,
ao Poder, as conversações que a produziram e, portanto, qual era a o pecado da desmedida, õ~ptç : o historiador deve lembrar-se a tempo
situação parlamentar francesa, em Setembro de 1880. Parlamentar? que é um simples homem e que convém aos mortais pensar como
Digamos, de maneira mais geral e mais profunda, a situação política mortais, 8v~-rà cppovEL-11.
e, portanto, social, económica, etc. Francesa? Não se pode desprezar
a conjuntura internacional. A investigação vai-se desenvolver em novos Falei como cristão, mas a fórmula de Eurípides mostra que esta
registos. Mas voltemos a lules Ferry: quem é este homem? Um tempe- verdade possui um valor absoluto. A referência ao pensamento cristão
ramento, uma psicologia, a resultante, em 1880, de uma história pessoal impõe-se a todo o Ocidental, testemunha Aron, que é obrigado a escre-
já longa (o nosso confrade, o psicanalista, insistirá em que se a prolongue ver: «Só Deus podia pesar o valor de todos os actos, pôr no devido
até ao estádio pré-natal); mas o homem Ferry é somente o produto de lugar os episódios contraditórios(?), unificar o carácter e o comporta-
uma evolução começada no instante da sua concepção? lules Ferry é mento. Com a teologia deve desaparecer a noção desta verdade abso-
também Saint-Dié, a emigração alsaciana, os algodoeiros de Mulhouse, luta ...» 9 • De facto, não desaparece, é sempre concebível como possível,
o protestantismo franc2s, etc. (porque terá de se ir até às origens cristãs); e o teólogo, cristão-ou pagão, ou melhor, o filósofo; proclama-a inacessível
mas há uma outra série que nos conduzirá, através do estudo das à condição humana.

8 Sabedoria de. Salomão, VIl , 22 -23 .


7 Trois essais sur Histoire et Culture ( 1948), pp. 1-10.
9 lntroduction .. . , p. 7 1.

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DO OONHECIME}!TO HIBTORIOO A HISTóRIA É INSEPARAVEL DO HISTORIADOR

O primeiro princípio de comportamento prático que formularemos Podemos abrir o nosso Langlois-Seignobos, livro I, c. I, primeira
para o nosso discípulo será (se é permitido falar em termos familiares): . linha: «.A história faz-se com documentos», fórmula que a conclusão
tu não és Deus, não te esqueças de que és um homem. Este aviso não retomará: «A história é o uso de documentos» 10 • Compreendo perfei-
deve ser interpretado como uma confissão de impotência, como um tamente, mas, logicamente falando, não· é o documento que se encontra
convite à renúncia e ao desespero (S. Tomás, que exalta a virtude da no ponto de partida; o historiador não é um simples operário ligado
magnanitnitas, põe-nos de sobreaviso contra esta astúcia do pecado: à transformação de uma matéria-prima, nem o método histórico uma
máquina-utensílio na qual se introduziria, como que por um funil,
o que haveria nisso seria uma forma subtil de orgulho): o filósofo deve
alegrar-se por ter precisado a verdade, seja ela qual for, a respeito do o documento bruto, e donde sairia um fino tecido continuo de conhe-
cimento. O nosso trabalho supõe uma actividade original, proveniente
ser, - a verdade, aqui, a respeito do ser do historiador. Sim, meu filho,
de uma iniciativa: a história é a resposta (elaborada evidentemente por
és um simples homem, não é razão para renunciares a exercer a tua
meio dos documentos, como havemos de voltar a ver) a uma pergunta
profissão, a tua profissão de homem-historiador, humilde, difícil, mas,
que faz ao passado misterioso a curiosidade, a inquietação, alguns dirão
dentro dos seus limites, certamente fecunda.
a angústia existencial, de qualquer maneira, a inteligência, o espírito
A nossa filosofia também é humana e só pode avançar passo a
do historiador. O passado apresenta-se a ele primeiro como um vago
passo; esta fecundidade, real, mas limitada, será estabelecida por nós
fantasma, sem forma nem consistência; para o apreender, é preciso
no devido tempo; de momento, era preciso garantir este primeiro
encerrá-lo estreitamente numa rede de perguntas sem escapatória, obri-
ponto: a desproporção fundamental entre o objecto ao qual se prende
gá-lo a confessar-se. Enquanto não o atacamos dessa maneira, perma-
a história, essa realidade histórica numenal que só Deus pode abraçar,
nece velado e silencioso. Logicamente, o processo de elaboração da
e os meíos limitados de que ela dispõe, os pobres e pequenos esforços história é desencadeado, não pela existência dos documentos, mas por
do espírito humano, os seus métodos, os seus instrumentos. Lembro-me uma diligência original, a «questão posta>>, que se inscreve na escolha,
de ter seguido, do alto dum rochedo, os esforços de um pescador, num na delimitação e na concepção do assunto.
lago da montanha; e via brilhar na água transparente, longe da linha Praticamente, pode acontecer que uma investigação histórica seja
curta de mais, as belas trutas, que ele desejava da margem... Assim posta em movimento pelo achado fortuito de um documento; a cabra
acontece amiúde com o historiador: os meios limitados de que dispõe pasta no sítio onde está presa (a quantos colegas, interrogados sobre
não lhe permitem varrer nas suas redes toda a extensão do lago do os seus trabalhos, não ouvi já eu dar esta razão): a proximidade de tal
passado; a história será the Past so far as ... , o que ele poderá apanhar depósito de arquivos, os recursos de tal biblioteca, o aparecimento de
nas suas redes. Não é nada, como havemos de ver, .mas não é tudo e, um monumento novo devido ao acaso das escavações (o caso é frequente
sobretudo, não é a mesma coisa: a História é o que o historiador em história antiga, onde os documentos são raros e todo o material
consegue abraçar no passado, mas, ao passar através dos seus instru- novo é bem-vindo), podem aparecer como a origem de tais trabalhos,
mentos de conhecimento, esse passado foi tão reelaborado, tão trabalhado mas isso ·não modifica em nada a prioridade lógica da «pergunta» que
de novo que saiu todo renovado, e se tornou, sob o aspecto ontológico, o historiador fará a esses documentos.
completamente diferente. Mas é tempo de passarmos ao estudo desta A análise na aparência superficial de Langlois e Seignobos expli-
transmutação. ca-se (sejamos justos) pela concepção estreita que se teve durante muito
Para descobrirmos aquilo que se vai tornar a história, temos de tempo da história e da qual eles permaneciam prisioneiros, fosse como
deixar de meditar sobre o seu objecto, esse indeterminado, esse â.7tEtpov,
e temos de partir do historiador, de seguir a sua evolução na via que
o conduzirá ao conhecimento: a história será aquilo que ele tiver con-
seguido elaborar. lo lntroduction aux éfudes historiques, pp. I, 275.

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DO CONHECIMENTO HISTóRICO A HI8T6RIA :2 INBEPARAVEL DO HISTORIADOR

fosse. Limitavam-na praticamente àquilo que se chamava a história .:ultura histórica corre o risco de deixar a realidade conçreta para se
geral, o estudo dos «grandes» acontecimentos históricos, isto é, primeiro dissolve!- em vapores abstractos: lembremos incessantemente aos jovens
as guerras, as negociações diplomáticas que lhes haviam dado início trabalhadores que a história da civilização (e cada uma das suas histórias
ou lhes tinham posto cobro, depois as vicissitudes da política interna especiais) se deve project1.1r sobre uma rede cerrada de nomes, datas,
estudada à cabeça: o rei, os ministros, a corte, ou então os dirigentes acontecimentos precisos, e que os factos políticos, ordinariamázte os
do meio governamental, as assembleias e a vida parlamentar. Se se mais bem documentados, fornecem a trama sólida de um tal esboço.
acrescenta a isso catástrofes, tais como uma epidemia de peste, temos
pouco mais ou menos tudo o que Tucídides, por exemplo, achou útil Desde logo, quando vai abordar o estudo de uma certa época
contar-nos sobre a Grécia do seu tempo, e durante séculos os histo- ou de um meio, o historiador não vê imposto ou, se se prefere, não tem
riadores contentaram-se com um programa análogo; quando muito, à sua disposição um programa de pesquisa fixado a priori, como que
a partir de Voltaire, acrescentavam à sua narração, em apêndice e uma gazua. Cabe-lhe a ele fixar esse programa e, como consequência,
como que fora do corpo do edifício, um quadro do estado das ciências, todo o desenvolvimento ulterior da pesquisa e o próprio conhecimento
das letras e das artes. Nestas condições, o programa encontrava-se a que ela levará se acham orientados e pré-determinados pelas ques-
completamente traçado, as perguntas eram formuladas antecipadamente tões postas ou pelas perguntas feitas.
e a concepção do assunto reconduzia-se à escolha de um período. Hoje, Digo «questões ou perguntas», para andar depressa, mas quando
triunfou uma concepção completamente diferente da história «ao mesmo o espírito elabora uma pergunta, formula logo uma ou várias respostas
tempo mais ampla e mais profunda». possíveis: uma pergunta precisa (e só uma pergunta precisa é útil em
história) apresenta-se sob a forma de uma hipótese a verificar: «não
A expressão pertence a Marc Bloch 1 1. É justo sublinhar o papel seria verdade que ... ?» Sem dúvida, durante a verificação, a hipótese
que a equipa Lucien Febvre-Marc Bloch desempenhou em França nesta achar-se-á, a maior parte das vezes, retomada, corrigida, transformada
luta vitoriosa contra o velho ídolo da história política, da história fac- até se tornar irreconhecível, mas continua a ser verdade que, no ponto
tua/, da «história historicizante». Mas a reacção foi muito geral e não
de partida, um esforço criador do histo"riador começou por elaborar
exclusiva de uma escola. Já Lorde Acton fornecia como princípio aos
uma imagem provisória do passado.
seus estudantes: «Estudem problemas e não períodos». E, ao longo de
Preocupemo-nos por exorcizar de novo o perigoso fantasma do
todo o século XIX, assiste-se aos progressos da história da civilização,
idealismo. Limitemos a parte de «construção» autónoma que comporta
Kulturgeschichte, que se opõe à sua rival, a «história-batalhas».
uma tal elaboração do questionário e das suas hipóteses anexas. Sem
A história política vê-se quase sufocada pelo volume crescente falar do facto que a validade da hipótese permanece suspensa ao pro-
das pesquisas relativas às histórias «especiais», história económica e cesso de verificação da sua conveniência relativamente aos dados
social, história das ideias, das mentalidades, das W eltanschauungen, his- documentais, é bem evidente que o conhecimento histórico não parte de
zero. É por analogia com uma situação humana já conhecida que for-
tória das ciências, da filosofia, da religião, da arte,
mulamos essa imagem hipotética do passado a conhecer, e a parte de
mesmo ao ponto de se ter talvez tornado necessário reagir, pelo menos transposição continua a ser bastante diminuta, porque _a maior parte das
no plano pedagógico: de tanto procurar compreensão e profundidade, a vezes (o caso, salvo uma civilização descoberta de novo, é efectivamente
aberrante; mas então o que se poderá saber dela?) o historiador sabe
já por alto quais são as perguntas verdadeiramente susceptíveis de serem
feitas, quais são os sentimentos, as ideias, as reacções, os resultados
11 Apologie pour l'histoire ou Métier d'histoorien, p. XVII. técnicos que se podem atribuir aos homens de uma época e de um meio

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DO OONHEOIMENTO HISTóRICO A HISTóRIA El INBEPARAVEL DO HISTORIADOR

dados. As hipóteses donde partiu têm tanto maior possibilidade de se de Forcalquier, depois ao Delfim ... Nada sobre a própria história da
mostrar fecundas quanto menor extrapolação contiverem. população desta pequena célula humana, sobre a sua actividade econó-
É aqui que se tem de introduzir a noção de progresso no interior mica, a sua estrutura social, a evolução de uma e da outra (neste ponto,
de um desenvolvimento homogéneo da investigação. Quando a ciência entrevejo, no entanto, o que J. Schneider tão bem soube analisar a res-
histórica aborda o estudo de um domínio novo. é-lhe pouco mais ou peito de Metz 14; uma burguesia que, depois de enriquecer, se trans-
menos impossível evitar cometer o terrível pecado de anacronismo: forma em nobreza terrena. Nada sobre a vida espiritual: ·no entanto, a
ainda não se sabe quais são as perguntas a fazer, o espírito não dispõe crise da Reforma foi aqui extremamente grave e como em . todo o
de instrumentos de análise bastante precisos para construir um questio- De/finado (Gap é a pátria de Farei, um dos principais reformadores),
nário adequado. mas só me mostram os efeitos políticos, as guerras de religião. Sobre as
origens, banalidades. No entanto, podia-se, como fez A. Déléage 15 para
Por isso não atirarei a pedra a Michelet, por ter feito de Abelardo a Borgonha, explorar sistematicamente o material toponomástico represen-
um livre pensador, um apóstolo da raião contra os «obscurantistas esco- tado pelos lugares atestados, tanto nos nossos dias como nos livros de
lásticoS>>; as categorias herdadas da Aufklarung não davam a esse liberal registos medievais, o que permitiria reconstituir, pela análise etimológica,
romântico o equipamento mental necessário para compreender o pensa- as etapas sucessivas da ocupação do solo e, portanto, do povoamento,_indo
mento cristão do século XII; se nos movemos hoje nele mais à vontade, até aos arroteamentos pré-célticos. Podia-se, pelo estudo das lendas
é graças aos progressos realizados, graças aos esforços despendidos com hagiográficas e pela análise da repartição dos santos titulares das diver-
continuidade, desde o próprio Michelet até Étienne Gilson. sas igrejas da região, reconstituir as etapas da implantação do Cristia-
nismo nesta região, no fim da Antiguidade e no início da Idade
A verdade é que o conhecimento de um objecto se pode ver peri- Média 16•
gosamente deformado ou empobrecido pela falta de destreza com que
foi abordado no início. Interrompo aqui a análise dessas possibilidades, que são indefinidas
porque:- não podemos deixar de o sublinhar - cada época, cada meio
Um exemplo de questão mal posta: discutiu-se durante uma gera- humano, cada objecto histórico levanta sempre uma pluralidade de
ção se Santo Agostinho, no ano de 386, em Milão, se convertera ao problemas, é, logicamente falando, susceptível de se prestar a um~
neoplatonismo ou ao Cristianismo. Ora P. Courcelle fez-nos agora com- infinidade de perguntas. O conhecimento que o historiador vier a adqm-
preender que, nessa época, o neoplatonismo era a filosofia oficial do meio rir dependerá evidentemente daquela ou daquelas que ele preferir apro-
intelectual cristão de Milão, a começar pelo bispo, Santo Ambrósio 12. fundar e essa escolha, por sua vez, será directamente função da sua
Exemplo de empobrecimento: publicaram-se duas histórias da cida- personalidade, da orientação do seu pensamento, do nível da ~ua cultur~,
dezinha de Gap ! 3 ; só abrangem a Idade Média e, mesmo nesse período, da filosofia geral, enfim, que lhe assegura as suas categonas mentats
reduzem-se a uma série de monografias sobre os bispos sucessivos e e os seus princípios de juízo.
acerca deles traçam-nos quase exclusivamente os desaguisados de ordem
política que os opuseram ou à municipalidade ou ao suserano, o conde Tomemos um fenómeno histórico bem determinado: o monaquismo
cristão nas suas origens, no Egipto do século IV.Podemos estudá-lo do

12 Ver nomeodamente as suos Recherches sur les Confessions de Saint Augus- 1• La ville de Meh eu XIII• et XIV• siecles (Noncy, 1950) ·
tin ( 1950) . 111 La vie rurale en Bourgogne jusqu'au début du XI• siecle (MScon, 1941 ).
1 3 Th. Gautier, H isto ire de la ville de € ap et du Gapençais ( 1842, publ. por 16 Como tentou, mos sem um método rigoroso, G. de Manteyer, Les origines
P.~P. Guilloume, Gap, 1909); J. Romon, Histoire de la ville de Gap (1892). chrétiennes de la 11• Narbonnaise (Gop, 1924).

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DO CONHECIMENTO HISTORICO A HISTORIA 2 INSEPARÃVEL DO HISTORIADOR

ponto de vista da. história do Cristianismo, na medida em que é um Observem a visão singularmente enriquecida que o génio (tanto
episódio daquela, um aspecto do desenvolvimento deste; podemos estu- como a riqueza de informação) do grande Rostovtsev nos proporcionou
dá-lo do ponto de vista comparativo da história das religiões, como uma da civilização helenística 17 : aparece-nos agora como a admirável matu-
das manifestações do ideal de solidão, de ascese e de contemplação que ridade da civilização antiga- «esse longo Verão sob o sol imóvel do
encarnou de tantas outras maneiras na Humanidade (bramanismo, jai- meio-dia»- em vez de representar jâ a sua decadência, como queria
nismo, budismo, taoísmo e até, segundo parece, nas civilizações pré- um certo purismo do humanismo, excessivamente centrado sobre a noção
-colombianas). Pode-se ver o aspecto social, a fuga para o deserto; a de um século de ouro, ou como queria uma história romântica, unica-
«anacorese» (literalmente. a «suhida ao mato») é um fenómeno muito mente sensível aos valores de originalidade, de criação, de ímpeto inicial
geral no Egipto greco-romano (criminosos, devedores e, sobretudo, con- (o que a levava a interessar-se mais pelo arcaísmo, pela «juventude» de
tribuintes insolventes, a-sociais de toda a espécie, e não apenas religio- uma arte, de um pensamento, de uma civilização)
sos). Pode-se ainda estudar a sua função económica: os cenobitas de
SãO Pacómio que, aos milhares, saiam dos seus conventos para semea-
rem no vale do Nilo e ganharem assim, em alguns dias, a magra
subsistência do ano, aparecem como uma reserva de mão-de-obra, um
Lurnpenproletariat, o equivalente desses trabalhadores sazonais da Cali-
fórnia descritos por Steinbeck em As Vinhas da Ira ...

Cada um destes pontos de vista é em si legítimo, talvez fecundo,


urna vez que apreende, em parte ou sob um aspecto, a realidade do
passado. Deixemos para mais tarde o exame do cordão umbilical que
liga cada um deles à personalidade do seu historiador e das conse-
quências que daí resultam para a validade do conhecimento. Como nos
preocupamos por ir esboçando o nosso tratado das virtudes do histo-
riador, sublinharemos simplesmente de momento que a riqueza do
conhecimento histórico dependerá directamente da habilidade, do enge-
nho com que forem formuladas estas perguntas iniciais que vão condi-
cionar a orientação do conjunto de todo o trabalho ulterior. O grande
historiador será aquele que, no interior do seu sistema de pensamento
(porque por muito vasta que seja a cultura e, como se costuma dizer,
a sua abertura de espírito, todo o homem, pelo próprio facto de revestir
urna forma, aceita limites), saberá pôr o problema histórico da maneira
mais rica, mais fecunda; saberá ver que pergunta interessa fazer a esse
passado. O valor da história- tanto o seu interesse humano como a sua
validade- acha-se dessa man~ira estreitamente subordinado ao génio
do historiador- porque, como dizia Pascal, «quanto mais espírito se
tem. mais homens originais Se encontram» - mais tesouros a recuperar
no passado do homem. 17 The socialand economic history of the Hellenistic world, 3 vol. (Oxford, 19<4-2).

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3

A HISTORIA FAZ-SE COM DOCUMENTOS

Uma vez feita a pergunta, é preciso encontrar resposta para ela,


e aqui intervém a noção de documento. O historiador não é esse nigro~
mante que nós imaginávamos, capaz de evocar a sombra do passado
por meio de processos encantatórios. Não podemos alcançar o passado
directamente, mas só através dos traços, inteligíveis para nós, que deixou
atrás dele, na medida em que estes traços subsistiram, em que nós os
encontramos e em que somos capazes de os interpretar (temos de
insistir mais do que nunca no so far as .. .). Encontramos aqui a pri-
meira e a mais pesada das servidões técnicas que pesam sobre a elabo-
ração da história.

Os filósofos não o sublinharam devidamente, talvez porque a nossa


filosofia crítica nasceu, com Dilthey, no período de euforia em que a
ciência histórica, embriagada pelos triunfos, tinha tendência a esquecer os
seus limites. Importa, no entanto, determos aí o pensamento, porque:

Apreendemos aqui uma das causas principais da distinção real


que assinalámos entre o devir (numenal) da Humanidade e a nossa
história. Evocarei neste ponto a má ideia que Spengler teve, de se
levantar algures contra Ranke !. Este, como bom técnico, escreveu no
prefácio da sua História Universal: «A história só começa onde os
monumentos se tornam inteligíveis e onde existem documentos dignos
de fé». É aqui que Spengler rompe em invectivas: «A vida então só é
um facto quando se fala dela nos livros?». Não tem dificuldade em

~ Der Untergeng des Abendlendes, li , c. I, §" 11. tred. fronc . (2 .• ed .),


t. 11, p . 49.

61
DO CONHECIMENTO HISTORICO A HISTORIA FAZ-SE COM DOCUMENTOS

mostrar que devem ter existido acontecimentos de importância capital, seria bom que fossem. Ou não os há, ou não chegam. Ê o caso geral
dos quais, por falta de documentos, nunca saberemos a primeira palavra, em história antiga, onde trabalhamos a maior parte das vezes sobre
o que lhe permite vasar a sua ironia sobre os velhos sábios míopes, fontes literárias, sempre excessivamente sumárias, de resto secundárias
incapazes de ver para além da ponta das suas fichas e brande triunfal- ou terciárias (porque Tito Lívio, por exemplo, em vez de elaborar a sua
mente a fórmula de Ad. Meyer: «É histórico o que é ou foi activo». história sobre os documentos originais, contentou-se em refazer a narra-
Sofisma! (este pseudo-profeta, este mestre de erros sombrios que é tiva dos predecessores, Políbio ou Valério Antias); o pouco de fontes
Spengler, não se livra de sofisma). Sofisma que repousa sobre o equívoco primárias que possuímos é representado pelos documentos arqueológicos,
já apontado: sim, a história é «o que foi activo», esse passado que foi as inscrições, os papiros descobertos ao acaso das escavações, em virtude,
vivido, realmente, por homens de carne e de sangue nesta terra concreta, portanto, de uma selecção arbitrária.
-mas na medida em que nós o conhecemos. E só o podemos conhecer
se legou documentos. Ora, como a existência e a conservação dos Até às descobertas recentes de Dura e do deserto de Judá, não
documentos se devem ao jogo de um conjunto de forças que não foram possuíamos manuscritos antigos além dos papiros do Egipto: selecção
ordenadas em vista das exigências de um historiador eventual (é o que cega, devida à secura do clima, que deformava o nosso conhecimento
simboliza a palavra irracional «acaso»), resulta daí que nunca saberemos do mundo helenístico ou romano, porque o Egipto era um país muito
desse passado tudo o que ele foi, nem mesmo tudo o que somos capazes diferente das outras regiões, onde nada se passava exactamente como
de desejar saber dele. Admirarmo-nos, irritarmo-nos com isso é tão nos outros sítios e não é o país onde se produziram os acontecimentos
absurdo como revoltarmo-nos contra um carro avariado por falta de mais importantes (pense-se na posição bastante excêntrica que o Egipto
gasolina: a história faz-se tanto com documentos como o motor de ocupou, durante muito tempo, na história do Cristianismo).
explosão funciona com carburante. Um génio perverso parece intervir para nos privar como que
Muitos dos problemas que o historiador poderia levantar, muitas intencionalmente da informação procurada. Quantas vezes um papiro
das perguntas que ele faz efectivamente ao passado, devem ficar sem não aparece rasgado na linha onde começava a ser interessante! Ou
solução ou resposta. por falta de uma documentação adequada. ainda: vejam J. Carcopino esforçar-se por determinar a data precisa
da morte de Átalo lll de Pérgamo 2 (efectivamente, é importante para
Não são as questões mais interessantes que se encontram mais bem a imagem que se terá do mérito respectivo dos dois Gracos saber em
documentadas. Ao estudarmos, por exemplo, a Palestina no século I, que momento do ano 133 o facto se produziu): Carcopino encontrou
dispomos de mais coisas sobre a vida sentimental do rei Herodes do efectivamente duas inscrições relacionadas com o facto, mas um~ delas
que sobre a data do nascimento de Cristo, mais coisas sobre o ius gladii utiliza um calendário local que não sabemos traduzir, a outra serve-se
do procurador da ludeia que sobre as ideias religiosas de Pôncio Pilatos~ do calendário romano, mas por pouca sorte a pedra encontra-se muti-
Mesmo quando se estabelece uma convivência entre os heróis do lada nesse lugar e lê-se somente: dia ... do mês de ... embro!
passado e os seus historiadores vindouros (quando Dario ou Shâpuhr
mandam esculpir os seus relevos, funerário ou triunfal, no rochedo de Ou então os documentos são demasiados: é o caso normal em
Nakhs-i-Rustum, quando os Eslavos modernos organizam e mantêm os história contemporânea, em que o investigador sucumbe ao peso dos
seus depósitos de arquivos), a harmonia pré-estabelecida não é perfeita. arquivos acumulados e doravante excessivamente bem conservados. Os
Nem sempre é sobre o que gostaríamos de saber deles que eles nos problemas realmente interessantes passam a ser inabordáveis, porque as
informaram.

Os documentos conservados não são sempre (a expenencia sugere


quase que se escreva: não são nunca) aqueles que nós gostaríamos, que 2 Autour des Gracques, études critiques ( 1928 ) , pp . 37-38.

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DO CONHECIMENTO HIST6RIOO A HI8T6RIA FAZ-SE COM DOCUMENTOS

operações de selecção se tornam praticamente infinitas ou, pelo menos, decisão ~om~da por tal indivíduo, de uma diligência realizada, para que
não têm proporção com os resultados esperados. Devemo-nos limitar se devena. fixar ~uco menos que um mês, dia, hora; a probabilidade
a monografias-amostras ou, então, condenar equipas de investigadores de que tais precisoes tenham sido correctamente registadas por teste~
(mas que sociedade no-los fornecerá?) a um trabalho monótono e ingrato. munhos conservados tende rapidamente para zero). Tudo _ a rede
infinitamente complexa das causas e dos efeitos que vêm convergir
Estudar-se-á, por exemplo, o Terror no Norte e em Pas-de-Calais, sobre o ponto preciso do passado humano que gostaríamos de conhecer.
o Federalismo no Alto Garona, a Venda dos bens dos emigrados no Quem_ pretenderá dar conta do imenso material documental que uma
distrito de Ruão, a Conscrição em Charente, as Subsistências em Y onne pesqmsa realmente aprofundada exigiria que se reunisse? ·
e particularmente no distrito de Auxerre ... 3 Apuramos aqui um dos limites mais estreitos, mais rígidos em
Um dos mais belos assuntos que apresenta a história da Revolução que . s_: ach~ encerrado o conhecimento histórico. A possibilidade, a
Francesa é essa notável inovação pedagógica que foram as Escolas precisao, o mteresse, o valor dele acham-se determinados (antes de toda
Centrais (a de Grenoble formou Stendhal). Um dos meus antigos alunos a investigação) pelo facto brutal, completamente exterior, da existência
deu-nos uma excelente monografia sobre a de Lião. O interesse dos ou da ausência, de uma documentação conservada respeitante a cad;
seus achados orientava-o naturalmente para o assunto. Mas existiu uma uma das questões que a investigação se proporá abordar.
centena de Escolas Centrais; cerca de cinquenta delas já foram estudadas . Não é tudo : na medida em que os documentos existem, temos
de maneira mais ou menos satisfatória; para conhecer cada uma das ~mda de chegar a ser senhores deles. Aqui, intervirá de novo a persona-
outras, tinha de se contar, dadas as condições fornecidas pela nossa ltdade, as qualidades de espírito, a formação técnica, o engenho a cultura
sociedade ao investigador, com um ano de trabalho, em média. A impor- do historiador. Retoquemos, para o completar, o esboço traçado~ 0 grande
tância do assunto merecia que se lhe consagrasse a vida inteira de um historiador não será somente aquele que souber pôr melhor os problemas
investigador? (porque há espíritos quiméricos hábeis em levantar questões insolúveis
- o que é tempo perdido), mas aquele que, ao mesmo tempo, souber
Utilizei até aqui exemplos em que a pertinência do documento elaborar melhor um programa prático de pesquisas que permitam encon-
era fácil de determinar, o que simplificava a investigação. Mas desde trar, fazer surgir os documentos mais numerosos, mais seguros, mais
que se trate de um problema mais subtil, a resposta será fornecida pela reveladores.
convergência de mil e um índices dispersos. Quem guiará o explorador Porque esta caça ao documento ou, para empregarmos 0 termo
neste dédalo? consagrado, a heurística é toda uma arte.
Podem-se apresentar estas constatações de facto sob uma forma
lógica mais rigorosa: evocávamos mais acima, a exemplo de Ch. Morazé, Os nossos predecessores fizeram muitas vezes uma ideia dela um
o duplo infinito que revela, à análise, a estrutura do objecto histórico. pouco simplista. Assim, Langlois-Seignobos: «Há uma qui:mtidade dada
Resultam daí consequências para o problema da heurística. Sim, o histo- de documentos que existem, se não de documentos conhecidos;- o tempo,
riador gostaria, deveria saber tudo. Tudo - os factos mais precisos a despeito de todas as precauções que se tomam, vai-a fazendo diminuir
(a análise atinge muito depressa uma exigência extrema: a solução sem cessar; não aumentará nunca (... por aqui se vê que nenhum dos
de um problema depende finalmente da data, por exemplo, de uma nossos dois autores era arqueólogo!). O historiador dispõe de um stock
limitado de documentos, etc.» 4 Ou ainda, para o fim da vida, o mesmo

3 Ver as monogrofios de L. Jocob, M. Albert, M. Bouloiseou, G. Vollée,


4
C. Porée. lntroduct ion aux . études historiques, p. 275.

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DO OONHEOIMENTO HISTtJRIOO A HIBTtJRIA FAZ-SE OOM DOCUMENTOS .

Seignobos: «Se exceptuarmos os achados de objectos por acaso e as do investigador encontra aí uma ocasião para se exercitar. Para começar,
diligências junto dos detentores de papéis de família ou de colecções a heurística é ·uma «arte», no sentido antigo, ars, TéXV7J, que comporta
particulares, «a heurística» reduz-se de facto ao uso das bibliografias» 5 • regras, instrumentos, modos de trabalhar tradicionais. Ninguém se impro-
visa historiador (aí estão, para o atestar, os trabalhos de amadores, onde
As coisas são muito mais complexas: um stock determinado de tanto esforço sincero se consome muitas vezes em pura perda). É preciso
documentos representa uma massa inesgotável de ensinamentos, porque aprender a conhecer a existência, a natureza, as condições de utilização
existe um número indefinido de perguntas diferentes a que estes das diversas categorias de fontes históricas. Seria vão procurar traçar
documentos são susceptíveis de responder, se forem bem interrogados. aqui as grandes linhas de uma tal iniciação técnica, porque a ciência
A originalidade do historiador consistirá amiúde em descobrir a maneira histórica teve de adaptar o seu método de pesquisas às condições extre-
como tal grupo de elementos, que já se consideravam bem explorados,
mamente diversas dos períodos e dos aspectos que estuda no passado.
pode passar a responder a uma pergunta nova.
Não são os mesmos géneros de documentos, nem por conseguinte os
mesmos repertórios, nem os mesmos métodos de investigação que utili-
Triturou-se em todos os sentidos as Conlationes, de João Cassiano,
zarão os historiadores do Egipto faraónico, da filosofia gr~ga, da socie-
que se configuram como uma reportagem junto dos Padres do Deserto,
dade feudal, da arte barroca ou da economia capitalista; bastará ter
para de lá tirar um ensinamento sobre o monaquismo egípcio, e con-
cluiu-se, não sem pena, que o seu testemunho não era muito seguro. sublinhado aqui a sua evidente necessidade.
Um dia, um historiador inglês, o reverendo Owen Chadwick 6 descobriu
que esta narrativa era, antes de tudo, uma fonte directa da atmosfera teo- À pesquisa das fontes associa-se intimamente a exploração da
lógica e espiritual que reinava nos meios monásticos da Provença dos anos «bibliografia» do assunto. Quando se começa um trabalho histórico, tem
425-430, nos quais e para os quais Cassiano formulou o seu ensinamento, de se ler o que já foi escrito sobre o mesmo assunto, sobre questões
colocado na boca dos seus mestres egípcios como Platão colocou o seu na próximas e de maneira geral sobre esse domínio. Em primeiro lugar,
boca de Sócrates. para evitar um trabalho inútil (quantos amadores, por ignorância, ima-
Há, na biblioteca da École Normale, um exemplar de Heródoto ginam descobrir a América) a seguir e, sobretudo, para orientar a
que um velho arquícubo encheu de notas relativas à posição religiosa heurística, para aprender dos nossos predecessores o género de fontes
do homem Heródoto (a sua concepção do ciúme dos deuses, etc.); onde temos a sorte de encontrar qualquer coisa. U tilizaçãd que requer
lembro-me de o ter visto nas mãos do meu camarada, o malogrado tacto, porque, se se deixar influenciar de mais pela tradição estabelecida,
Ch. Lecoeur, que se divertia muito com a coisa, porque para ele, que
o noviço corre o risco de ver o passado através das lunetas de outrem,
era um sociólogo, o que dava interesse ao testemunho de Heródoto
de perder o sentido da questão original e fecunda que poderia ter posto...
eram os traços de psicologia colectiva, os costumes mais ou menos
arcaicos, os indícios de mentalidade «pré-lógica» que o historiador refe·
A heurística é também uma arte no sentido moderno da palavra,
ria e não o que pensava deles.
porque, por muito aperfeiçoados que se encontrem, em certos sectores,
A selecção dos documentos utilizáveis para determinada questão os instrumentos de trabalho de que dispomos, como os seus compila-
posta não é, portanto, uma operação puramente mecânica, e o talento dores não puderam ter presentes nem mesmo ter concebido como
possíveis todas as perguntas que nós somos levados a fazer . aos
documentos, não nos fornecem os meios de descobrir estes. Muitas
5 Lettre ~ F. Lot (1941), Revue Historique, t. CCX (1953), p. S.
6 John Cessien, e study in primitiva monesticism (Cembridge, 1950), e e minhe
vezes, a existência da documentação só se revela no dia em que um
recensão em L'Antiquit' clessique, 1952, pp. 240-243. historiador, que é o primeiro a interessar-se por esie problema, a

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DO CONHECIMENTO HISTORIOO
A HIBTORIA FAZ-BE COM DOCUMENTOS

reclama, a procura, a faz surgir por meio de . processos engenhosos, da realidade de um «facto» preciso (isto é, de uma manifestação exterior
imaginados para esse efeito. da actividade humana), se procur~ todas as questões conexas, as causas,
os efeitos, a significação, o valor (para os actores, os contemporâneos, ...
Um dos meus colaboradores, o padre J. Sainsaulieu, empreendeu para nós). ·
uma vasta investigação sobre o eremitismo na França, tendo descoberto
ao mesmo tempo o interesse e a existência do assunto que haviam até Retomemos a nossa investigação sobre o eremitismo; enquanto se
então escapado aos investigadores. De um momento para o outro, os · trata simplesmente de determinar a existência de um eremita ou de um
Inventários de arquivos publicados, por muito bem feitos que estivessem, recluso em tal época, em tal lugar, a pertinência de um documento é
não tinham previsto uma rubrica Eremitas no índice e os arquivos con- fácil de reconhecer: está datado? está situado? menciona um eremita?
sultados respondiam invariavelmente: fenómeno desconhecido- ou, pelo Mas quando quisermos, elevar-nos acima desta poeira de constatações
menos, exótico, arcaico, acidental. J. Sainsaulieu foi, portanto, levado isoladas para abraçar os problemas que levanta a existência destes ere-
a elaborar um «guia para a investigação», verdadeiro methodus ad ere· mitas (problemas, como sempre, infinitamente variados: religiosos, psico-
mitas inveniendos: a) Partir da toponímia: Procurar, graças aos dicioná- lógicos, sociais... e, no interior dos problemas religiosos: canónicos,
rios topográficos e aos mapas antigos em grande escala (Cassini, etc.) doutrinais, espirituais...), terá de se conceber uma investigação que
os lugares chamados Eremitério (capela, quinta, casal), bosque dos abarque muitas outras fontes de informação que não os documentos
Eremitas, fonte do Recluso; ... b) No lugar, interpretar os restos arqueo- de arquivos: o folclore (provérbios, canções populares), as artes plásticas
lógicos: as clausuras transformadas em capelas, casas de arrumação, (J. Sainsaulieu ensina-nos a distinguir as representações de eremitas das
podem-se reconhecer pela janelinha gótica voltada para o altar; ...
de monges ou de peregrinos), a literatura, canções de gesta e trovas
c) Nos arquivos, o documento de base, do século XVI ao século XIX,
à maneira de Moliere e de Claudel, a história do direito (numerosas
é a declaração de óbito no registo paroquial, normalmente seguida, no
constituições diocesanas, jurisprudência dos tribunais reais sobre a capa-
mesmo ano do relatório, da tomada de hábito ou da instalação do cidade civil do eremita), e toda a história da civilização (cada promoção
seguinte, etc. 1• Resultado: em três anos, mais de cinco mil eremitas ou
de eremitas reflecte os grandes movimentos de ideias que agitaram
eremitérios situados no espaço e no tempo! o seu tempo)...
Mas o engenho do historiador não se manifestará somente na arte É um oocumento toda a fonte de informação de que o espírito
de descobrir os documentos. Não basta saber onde e como os encontrar, do historiador sabe tirar qualquer coisa para o conhecimento do passado
é preciso também, e sobretudo, saber que documentos procurar.. T~~os humano, encarado sob o ângulo da pergunta que lhe foi feita. É evidente
de reflectir aqui sobre a própria noção de documento, de fonte histo~ca. que se torna impossível dizer onde começa e onde acaba o documento;
dos quais a teoria clássica não dá uma definição bastante com~reens1va: a pouco e pouco, a noção dilata-se e acaba por abarcar textos, monu-
enquanto a investigação se limita ao domínio elementar daquilo a que mentos, observações de toda a ordem.
nós chamávamos a história factual, é bastante fácil determinar o que
é 0 documento pertinente. A noção torna-se muito mais complexa .e, Assim, quando na companhia de Marc Bloch 8 ou de Roger
.sobretudo, muito mais difusa quando, para além da verificação matenal Dion estudávamos a história da estrutura agrária da França (open
9,

field, afolheamento trienal .. .), uma paisagem contemplada de avião ou


analisada com mapa de grande escala é um documento histórico, na

T Ver 0 opllsculo Enquête sur l'érémitisme, publicado ( 1950)· pela Biblioth~que


s. Les · carac:t~res originaux de l'histoire rurale française ( 1931 , 2.• ed., 1952) ·
d'Histoire des Religions, Sorbonne.
D Essa i ;ur la formation du paysa<ze rural français (Tours, 1934) •

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DO CONHECIMENTO HIBTORIOO A HIBTOEIA FAZ-SE OOM DOCUMENTOS

medida em que sabemos ver nela uma coisa diferente dos simples o que escreve, por exemplo, um grande epigrafista, L. Robert, o autor
efeitos das leis naturais (geologia, pedologia, climatologia, botânica. .. ) dos Études Anatoliennes 14:
e reconhecer a intervenção do homem. «Não é L{m paradoxo insistir sobre o proveito. para os npssos
Foi o que permitiu a L. Febvre escrever ! 0 : «A história faz-se com estudos, dos dias de viagem em que não encontramos uma única inscri-
documentos escritos, sem dúvida. Quando os há. Mas pode fazer-se, ção para copiar: nos planaltos, nas pastagens, na tenda de pêlo escuro
deve fazer-se com tudo o que o engenho do historiador lhe pode permitir onde um yürük hospitaleiro nos oferece iogurte e nata de leite- através
utilizar ... Portanto, com palavras. Com sinais. Com paisagens e com das imensas florestas de pinheiros, solitários e silenciosos... ; na fonte,
telhas 11 • Formas de campos e ervas daninhas. Eclipses da Lua e cabrestos à beira do caminho, mesmo se não descobrimos uma dedicatória às
de tiro ! 2 • Exames de pedras por geólogos e análises de espadas de ninfas, as ninfas lá estão presentes, no meio dos plátanos e dos loendros,
metal pelos químicoS»13 • e voltam a dar coragem aos homens e aos animais, como deram durante
séculos aos Cários e aos Gregos que paravam e lhes rezavam ao repou-
Numa palavra, tudo o que, na herança subsistente do passado, sar»... Abrevio (toda a página seria para citar): é evidente que é preciso
pode ser interpretado como um índice revelando qualquer coisa da primeiro ter-se adquirido o sentido geográfico da paisagem antes de
presença. da actividade, dos sentimentos, da mentalidade do homem poder conceber a ideia de procurar aí uma fonte de informação sobre
de outrora. entrará na nossa docuQlentação. Definida desta maneira, a Ásia Menor na Antiguidade!
esta noção ~parece como uma função de duas variáveis independentes:
depende tanto do passado (representado pelo material de todo o género Compreende-se por que motivo o romancista inglês Rob. Graves
que dele chegou até nós), como do historiador, da sua iniciativa. da sua põe na boca da sua personagem, o nosso confrade, o imperador Cláudio,
habilidade em utilizar os instrumentos de trabalho e os conhecimentos, o seguinte dito: «A história é um desporto para a idade madura>>, History
mas primeiro daquilo que ele é em si mesmo, da sua inteligência. da is an old man's game! Quanto mais o historiador houver acumulado
sua abertura de espírito, da sua cultura. em si conhecimentos variados, experiência humana, abertura sobre as
possibilidades indefinidas da acção, do pensamento, do coração do
Os historiadores franceses da minha geração, a quem o ciclo de homem (accedet homo ad cor altum) 16, mais possibilidades insuspeitadas
estudos que nos era imposto deu a experi2ncia e o gosto pela geografia, de documentação conseguirá descobrir. Muito naturalmente, a fórmula
são muito sensíveis à fecundidade que apresenta para a investigação pascalina: «À medida que se tem mais espírito ... » apresenta-se de novo
propriamente histórica o estudo das condições do meio; aqui temos no bico da pena com razão: o alargamento da noção de documento
progride a par com o aprofundamento de história; a concepção estreita
do «texto tópico» convinha a uma história historicizante, estritamente
factual; a uma história que faz doravante ao passado perguntas cada
to Combats pour l'histoire, p. 428. vez mais novas, mais variadas, mais ambiciosas ou mais subtis, corres-
11 Explicito I!S 11lusões: trl!tll-se 11qui do mllpll dos tectos (distribuiçlio d11s ponde uma investigação dilatada em todo o sentido através dos vestígios
telh11s chlltl!s e d11s telh11s cônci!VIls nll Frl!nçll) de J. Brunhe~. em G. Henot11ux, de toda. a espécie que nos pode ter deixado esse passado multiforme
Histoire de la Nation française, t. I (1920), pp. 438-444. e inesgotável.
'12 Comte Lefebvre des Noettes, L'attelage, le cheval de selle .li travel'l les
&ges (1931, 2.• ed. do livro l!pllrecido em 1924 com o tftulo: La force animale .li travers
les &ges).
1
ta E. Salin, Rhin et Orient, t. li, Le fer A 1'6poque m6rovingienne, technique " Actes du He Congr•s lnternational d'Epigraphie Grecque et Latina (Paris,
et arch6ologique ( 1943); La civllisation m6rovingienne, d' apr•s les s6pultures, les 1952), Paris, 1953, pp. 11-12.
textes et le laboratoire ( 1949-1952). ta Ps., LXIII, 7 (Vulg.).

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DO CONHECIMENTO Hl8TóRIOO A HISTORIA FAZ~SE COM DOCUMENTOS

O princípio acha-se hoje estabelecido fora de toda a contestação. textos que se trata efectivamente do retrato de Henrique VIII. O mesmo
de maneira que nos parece sobretudo útil precisar doravante os limites quadro não seria um documento tão significativo se fosse para nós
dQ intervalo útil em que deve ser aplicado. Resistamos ao gosto tão o simples retrato de um desconhecido ...
difundido pelo paradoxo. Collingwood. por exemplo; foi ao ponto de
dizer: «Seja o que for. pode converter-se num documento para qualquer Temos, por último, de sublinhar que esta nova intervenção do
questão», everything in the world is potential evidence for any subject e
espírito do historiador, da sua capacidade do seu engenho em seleccio-
whatever 16 • É verdade, desde que se insista sobre o coeficiente potencial: nar os documentos impõe ainda um outro limite ao conhecimento
de direito. não há limite imposto às aproximações possíveis, mas. de histórico. Não basta que uns documentos tenham escapado à destruição,
facto, não é verdade que, para um assunto determinado, se possa é preciso ainda que o historiador consiga recuperá-los! Mesmo que se
sempre encontrar «em qualquer parte» um material documental sufi- faça do documento a ideia estreita que nós criticamos (o texto perti-
ciente, nem sobretudo que no material acumulado todos os documentos nente), mesmo que se trate de uma categoria de testemunhos bem conhe-
sejam igualmente pertinentes. cida, bem provida de meios de acesso (textos de autores clássicos, inscri-
ções latinas, cartulários medievais, documentos de arquivos diplomáticos,
Aconteceu-me escrever, num dia de entusiasmo: «Não se com- todos os domínios onde abundam edições, repertórios, guias de toda
preende o papel que a metáfora da <<iluminação» desempenha na teoria a espécie), o historiador nunca pode ter a certeza de não haver deixado
do conhecimento de um neoplatónico como Santo Agostinho, enquanto escapar qualquer peça essencial, por maior método, por maior cuidado,
não se conheceu, no esplendor de uma manhã de Primavera, o que maior profundidade que tenha empregado. A fortiori, se agora enca-
pode ser a luz do céu mediterrâneo» 17 • Isto não deixa de ser verdade, ramos o problema da documentação sob a forma generalizada que lhe
mas deve-se talvez acrescentar que é ainda mais necessário ao historiador atribuímos, quem se poderá gabar de ter esgotado todos os recursos
determinar as fontes imedüitas da doutrina agostiniana em certa passa- possíveis, de não ter desprezado nenhuma categoria de informações
gem das Ennéades de Plotino ou no prólogo do Evangelho de João. novas? Logicamente falando, temos de aceitar que nenhum estudo histó-
L. Febvre reage contra o, valor restritivo que observa na fórmula rico nos pode dar a garantia de ter esgotado todo o material documental
atribuída a Fustel de Coulanges: «A história faz-se com textos» 18 • Tem existente.
muita razão em insistir sobre a existência de milhares de outras fontes
de documentação, mas talvez seja preciso advertir os seus jovens leitores Se agora passamos à prática, direi ao aprendiz de historiador:
que, se a história não se faz unicamente com textos, faz-se sobretudo 6vrrrà crpoveí:v; és um simples homem, não um deus, aprende a contar
com textos cuja precisão nada pode substituir. Temos, por exemplo, bem os teus dias, a não malbaratar os teus esforços. Como vimos, há
o admirável retrato de Henrique VIII, da autoria de Holbein, que se questões insolúveis, no sentido de que reclamariam um esforço colossal
encontra no vestíbulo da Christ Church. Realmente, nenhum texto me de documentação para se obter um resultado incerto ou sem grande
poderia ensinar tantas coisas, tão profundas, tão matizadas sobre ao interesse; outras questões não se encontram maduras enquanto não
psicologia tão complexa desse homem, mas é preciso que eu saiba pelos tiverem sido acabados certos trab"alhos preliminares (recolha ou edição
de fontes; por exemplo). Haverá a grande tentação (muitos sucumbem
a ela) de preferir as questões vãs; mas bem documentadas, aos problemas
profundos, realmente humanos, cuja conquista exige uma heurística
16 The idea of History, p. 280. perigosa. A antinomia não é fácil de superar: a condição do historiador,
17 Un historien en Sardaigne, em Revue de Géographie de Lyon, t. XXVI caso · particular da condição humana, não deixa repousar de todo!
( 1951 ), p. 141. Quanto ao resto, gosto de introduzir aqui a noção de rendimento.
18 Combats pour I'Histoire, pp. 4-5, 71, 428 ... Imaginemos uma fábrica metalúrgica onde, aplicando determinado pro-

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DO CONHJiJCIMENTO HIBTORICO A HIBTORIA FAZ-BE COM DOCUMENTOS

cesso, se consegue extrair, digamos, 80 % do metal puro contido no cada nível sucessivo do trabalho do historiador: a compreensão, das
minério, com um dispêndio de tanto por tonelada tratada; se para elevar Verstehen.
o rendimento de 80 para 85 % fosse preciso decuplicar, centuplicar as Empiricamente observada, a compreensão histórica aparece como
despesas de extracção, que engenheiro aceitaria essa responsabilidade? a interpretação de sinais (voluntários: 'caso da nossa inscrição) ou de
Acontece frequentemente o mesmo na heurística histórica: chega um índices (as cinzas de um fogo, impressões digitais) através da realidade
momento em que os processos de investigação imaginados esgotaram imediata dos quais conseguimos atingir qualquer coisa do homem de
pouco mais ou menos as suas virtudes; para aumentar o stook de outrora: a sua acção, o seu comportamento, o seu pensamento, o seu
documentos recolhidos, seria preciso prolongar indefinidamente as pes- interior, ou por vezes, pelo contrário, simplesmente a sua presença (um
quisas, despender esforços imensamente superiores, e isso para obter homem passou por aqui).
um rendimento ínfimo; a razão prática aconselha-nos então a parar.
Entre estes índices, nem todos se devem necessariamente à acção,
Prossigamos a nossa análise do trabalho do historiador. Encon- a uma intervenção do homem: a torrente de lava solidificada, a camada
tramo-lo em presença de um conjunto de documentos reunidos. Passa de cinzas vulcânicas que recobrem Herculanum ou Pompeia constituem
a estudá-los e pega, por exemplo (imaginemos que estuda a vida romana um «documento» histórico sob o mesmo título que a carta famosa de
no começo da nossa era), na inscrição funerária durante muito tempo Plínio o Jovem a Tácito sobre a erupção do Vesúvio, em 79. Ou ainda:
conhecida pelo nome de Laudatio Thuriae 19 • Objectivamente, este suponhamos que uma vaca que passava pela berma atravessou inopi-
documento apresenta-se · como um conjunto de pequenos segmentos de nadamente a estrada nacional e provocou um acidente de automóvel;
recta, acompanhados de alguns semicírculos e (menos numerosos) de descobrir as marcas das suas passadas será tão importante para a inves-
círculos completos, juntos de maneira irregularmente regular em grupos tigação como ouvir uma testemunha.
paralelos, tudo gravado em incisão no original de mármore, traçado a É que o conhecimento do passado não se limita só aos dados
tinta sobre o papel de uma reprodução ou de uma edição. Descrição propriamente humanos desse passado. O homem não vive isolado, como
paradoxal: o documento não consiste nesta realidade material: é um que debaixo da campânula pneumática; é inseparável do <<meio» no
documento na medida em que este conjunto de linhas rectas e curvas qual se acha inserido, meio complexo: tanto físico, químico, biológico,
se apresenta ao espírito do historiador sob a forma de linhas de uma etc.. como humano. A história dele integrará no seu conhecimento os
escrita, simbolo e vector de pensamento, utilizando um alfabeto conhe- fenómenos naturais que fazem parte desse meio e que desempenharam
cido (o da capitular latina), que no caso serve para grafar uma língua, um papel no seu passado: a peste de Atenas durante a guerra do Pelo-
o latim clássico, que ele possui bem; numa palavra, é um documento poneso, a vaga de frio que permitiu aos A/anos e aos Vândalos passa-
na medida em que o historiador pode e sabe compreender qualquer rem o Reno gelado, por alturas de Colónia, no dia 1 de Janeiro de 407 .. .
coisa nele. Sublinhemos que, na vida quotidiana, a experiência do presente
Acabamos de pronunciar a palavra chave: desde este primeiro oferece a mesma associação de fenómenos naturais e de factos propria-
contacto com o seu objecto material, o documento, a elaboração do mente humanos. Diante de mim, na rua, um transeunte escorrega numa
conhecimento histórico apresenta-nos em acção a operação lógica fun- casca de banana, cai, levanta-se a resmungar e esfrega o joelho .. Na
damental que toda a nossa análise não deixará de pôr em evidência a tomada de consciência que tenho deste incidente, devem-se distinguir
duas partes: a) Subindo dos efeitos até à causa, reconstituo o encadea-
mento dos fenómenos observados, utilizando o meu conhecimento,
implícito ou sábio, das leis da biologia e da mecânica (o conjunto
lD C. I. L, VI, 1527, reeditada e brilhantemente comentada por Durry sob das forças aplicadas em tal instante ao calcanhar direito do transeunte
o tftulo: Elog~ fun.bre d'une matrcíne romaine, col. <Budb (Paris, 1950).
admitiu uma resultante horizontal); b) Interpretando os signos expres-
74 75
A HISTóRIA FAZ-SE OOM DOCUMENTOS
DO OONHEOIMENTO HISTóRICO

Basta-me constatar que nenhum pensamento reflectido se pode -dispensar


sivos que os manifestam, compreendo os sentimentos experimentados
de responder a elas, nem que fosse pelo preço da solução preguiçosa e
pela vítima (dor, indignação .. .).
fácil do pragmatismo 22 ; só o solipsismo, posição paradoxal, que talvez
jamais tenha sido seriamente assumida, . se recusará a admitir a auten-
A História não se interessa só pelo que há de especificamente
ticidade do encontro de outrem. Toda a teoria do conhecimento cons-
humano no passado do homem: da presença de impressões digitais tirar
ciente dos seus deveres deve integrar o facto de «intersubjectividade» (se
a conclusão de que «um homem passou por lá», não é diferente da
for preciso, estabelecerá o «nós» como o dado fundamental .e, por con-
interpretação do rasto de um animal ou mais geralmente de um corpo seguinte, indemonstrável), dar conta, estabelecer que esse facto, aceite
móvel animado de um certo movimento. Mas pode acontecer que esse pela mentalidade comum, não é ilusório.
corpo móvel tenha sido o de um assassino: o facto puramente físico Deixarei, portanto, à gnoseologia propriamente dita o cuidado de
da sua presença, em tal lugar, a tal instante, será assumido no conheci-
fo rmular a sua resposta a esta questão geral do conhecimento de outrem.
mento de carácter sintético que é a história, ao mesmo tempo que as Como aqui só tenho de assumir a teoria do conhecimento histórico,
significações propriamente humanas do seu acto, e torna-se evidente bastar-me-á referir a compreensão dos documentos relativos ao passado;
que é a compreensão destes valores qu~ confere ao conhecimento
lá chegarei, mostrando que não é diferente, de um ponto de vista lógico,
histórico o seu carácter específico. da compreensão dos signos e dos índices que nos tornam possível o
.Se nos quisern10s aperceber, de maneira satisfatória, deste pro-
conhecimento de outrem na experiência do presente. Queiram seguir a
cesso de compreensão, temos de renunciar a servir-nos de uma trans-
gradação destes casos sucessivos:
posição dos métodos das ciências da natureza (o historiador não se
socorre propriamente de dedução nem de indução); tem de tomar como - compreender as palavras que nos dirige um amigo· presente;
ponto de partida o conhecimento dito vulgar, aquele que empregamos -compreender um bilhete que o ·mesmo amigo, que não nos
na vida de todos os dias. Do ponto de vista da teoria do conhecimento, encontrou por estarmos ausente, acaba de redigir à nossa mesa e onde
a história, esse encontro do outro, aparece estreitamente aparentada ele deixou escrita a comunicação que nos teria feito, nos mesmos termos,
com a compreensão de outrem na experiência do presente e entra jun- se nos houvesse encontrado;
tamente com ela na categoria mais geral (onde são alcançados pelos -compreender uma carta que ele nos escreveu, não um instante
conhecimentos do Eu) do conhecimento do homem pelo homem. O pro- antes, mas ontem, há um ano, há dez anos ... ;
blema da compreensão histórica desemboca assim num problema mais -(saltemos os degraus intermediários) ... compreender as Confis-
geral que supõe resolvido. sões de Santo Agostinho.
Não estou disposto a cair no ridículo de improvisar em algumas Ou ainda:
L.ahas uma solução para as questões difíceis que levantam a possibili.. -compreender uma carta que nos comunica um amigo, e que
dade de sair do Eu, o encontro do Outro, a reciprocidade das cons- um terceiro, amigo comum, lhe escreveu;
ciências ... , questões tão seriamente, tão ansiosamente perscrutadas pelo -(saltemos ainda os intermediários) ... compreender uma carta
pensamento moderno, desde Hegel 20 até aos nossos contemporâneos 21 • de S. J erónimo a Santo Agostinho (não conheço porventura um e· outro
como amigos, e muito mais profundamente amigos do que algumas das
. 20 J. Hyppolite, Genese et structure de la Phénciménologie de l'esprit de Hegel minhas relações contemporâneas?).
(Paris, 1946), pp. 311-316'.
· 21 Sabe-se que lugar o pluralidade das consciências desempenha na filosofia
de Husserl ou o Mitsei.n na de Heidegger; como não evocar também as belas . teses
de Nédoncelle, La réciprocité. des consciences ( 1942) ou a de Chastaing, L' existen~e 22 Ver, .por exemplo, G . J. Renier, History, .its purpose and .method (Londres,
d'autrui ( 1951). Ver também F. J. J. Buytendíjk, Phénoménologie de la rencontre 1950), pp. 146-154.
(trad. franc., 1952) .

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DO OONHECIMENTO HIBT6RIOO A HIBT6RIA FAZ-SE OO'M DOOUMENTOB

E para terminar: Outro dependa também, em grande medida, da categoria do Eu. :m


-compreender um documento qualquer, emanado de um outro preciso que eu conheça já o sentido das palavras (ou mais geralmente
ser humano. dos signos) que a sua linguagem utiliza; o que exige que eu conheça
já também as próprias realidades de gue estas palavras ou estes signos
Deus me livre de renovar aqui os velhos sofismas herdados dos são símbolo. Temos necessidade de um dicionário ilustrado para com-
Megáricos (o «monte de trigo», o «calvo»), como se «todas as vezes preender o sentido das palavras que designam certos objectos ou ins-
que uma transição é insensível ou que é vaga uma fronteira entre dois trumentos de uso especializado. De maneira geral, nada mais difícil
géneros, se pudesse gradualmente confundir os extremos, como a lin- de fazer compreender que os termos técnicos de uma «língua especial»
guagem da formiga e a do poeta» ~. 2 (uma gíria profissional) a quem ignora a profissão ou a técnica em
Não, esta gradação tem simplesmente como fim pôr em evidência causa. Só compreendemos o outro pelas suas parecenças comigo, com
o facto de que: a minha experiência adquirida, com o meu próprio clima ou universo
mental. Só podemos compreender aquilo que, em grande medida, já é
Logicamente falando, não hâ nada de específico na compreensão nosso, fraterno; se o outro fosse completamente dissemelhante, estranho
relativa ao passado; é o mesmo processo que põe em jogo a compreen- cem por cento, não se vê como a sua compreensão seria possível.
são de outrem no presente e em particular (porque as mais das vezes Uma vez reconhecido isto, só pode existir conhecimento de outrem
e no melhor dos casos o documento encarado é um «texto») na com- se faço um esforço por ir ao seu encontro, esquecendo um instante
preensão da linguagem articulada. aquilo que sou, saindo de mim para me abrir ao outro. Proporei (talvez
Convidarei aqui o meu leitor a socorrer-se dos clássicos da psico- seja um rodeio um pouco pedante) que neste ponto se peça emprestada
logia da linguagem (Janet, Delacroix, Piaget...). Observará este facto à fenomenologia contemporânea a sua noção de t7tOX.~ ( Ausschal-
revelador: o comportamento, normal ou patológico, que estes autores tung), é claro que não sem lhe fazer sofrer as transposições necessárias
analisam, é exactamente o mesmo, psicologicamente, que o do historia- - aplica-la-íamos ao eu, às suas preocupações, àquilo a que eu chamava
dor a contas com os documentos do passado. Explicam-nos como se a urgência existencial- não como Husserl ao mundo natural). Sim,
estabelece, no presente, a compreensão da palavra ouvida; como na o encontro de outrem supõe, exige que «ponhamos em suspenso», colo-
consciência uma interpretação se forma, se precisa, se controla, se corrige. quemos entre parêntesis, esqueçamos por momentos o que somos para
Ora o trabalho de um historiador realiza-se seguindo o mesmo processo, nos abrirmos sobre esse outrem.
na aparência paradoxal, que se poderia definir à primeira aproximação Interromperei de bom grado esta análise para retomar o esboço
como um círculo vicioso (de facto, a imagem geométrica que convém do nosso tratado das virtudes do historiador. Deverá, num grau emi-
é mais, como vimos, a da hélice, e mesmo da hélice cónica que se vai nente e como que naturalmente, ser capaz de uma tal epokhe. Isto não
alargando a cada espiral), paradoxo outrora bem ilustrado por Santo é dado a todos. Cada um de nós encontrou, ao longo da vida, homens
Agostinho, no seu De Magistro. que se revelam incapazes de se abrir, de prestar atenção a outrem (diz-se
Permitir-me-ão que a defina, em termos platónicos, como uma que essas pessoas não ouvem o que lhes dizem). Tais homens seriam
historiadores bastante maus.
dialéctica do Eu e do Outro. Para que eu possa compreender um
documento, e mais geralmente um outro homem, é preciso que esse :m às vezes por estreiteza de espírito e é então falta de inteligência
(não digamos egoísmo: o verdadeiro egocentrismo é mais subtil); mas
as mais das vezes trata-se de homens que, esmagados ao peso das suas
preocupações, não se dão de alguma maneira ao luxo de se porem
21 P. Ricoeur, criticando 11 tese de Chostoing, em Esprit, Fevereiro de 1954,
assim disponíveis. Este tipo de carácter é frequente nos filósofos (daí
p. 291.
essa incompatibilidade de humor que muitas vezes se observou entre

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DO CONHECIMENTO HISTDRIOO A HISTóRIA FAZ-SE COM DOCUMENTOS

eles e os historiadores). O verdadeiro filósofo, dir-se-á amiúde, é o homem De um tal processo, a experiência quotidiana dá-nos milhares de
possuído por um problema que se impõe a ele como necessário; consi- ·xemplos na vida corrente. Quantas vezes nos acontece ;nterromper
derará de bom grado como infidelidade à sua vocação deixar, nem que n nosso interlocutor para lhe dizer: «Já não o estou a seguir; que quer
fosse por um instante, de prosseguir a sua elaboração, e isso mesmo 1lizer precisamente? ... ». Ou então: «Se estou a compreender bem,
na perspectiva da sua própria dialéctica; continua a cavar, cada vez com acha que .. .». E então propomos a nossa hipótese à sua verificação.
maior profundidade, o seu poço de mina, e depressa se toma incapaz f~ esse evidentemente o caso mais favorável e é muito diferente
de levantar a cabeça para .olhar para outro lado, para compreender um tio do historiador. Mas as dificuldades que ele tem de vencer encon-
pensamento estranho ao seu (daí o aspecto de «diálogo de surdos» que tram-se também na experiência do presente. Que diferença entre com-
reveste facilmente toda a discussão conduzida por tais filósofos). O histo- preender a conversa familiar de um amigo, que nos é fácil interromper
riador, pelo contrário (será necessário dizer que os encontramos, e emi- à vontade para provocar explicações ou verificações necessárias, e ouvir
nentes, entre os próprios filósofos?), será aquele que aceitar pôr o seu um conferencista, um mestre que, por deferência ou tradição, não será
pensamento em férias, empreender longos circuitos que o farão sair possível interrogar sobre o que houver dito! Aqui ainda, como vemos,
do seu meio, porque sabe que dilatação do eu proporciona esse rodeio o carácter «Passado» do objecto histórico não introduz um elemento
que passa pela descoberta de outrem. Voltaremos a este ponto com especificamente novo no mecanismo da compreensão.
máíor vagar (cap. X). Retomemos o exemplo escolhido da Laud(ltio Thuriae: compreendo
Mas retomemos a nossa análise: como é que esse circuito, essa este texto porque está escrito em latim clássico ou, mais precisamente,
deslocação para fora do eu é realizável? Compreender o sentido das na língua escrita que o meio aristocrático de Roma utilizava na época
palavras (ou dos signos), depois comungar dessa maneira com o pensa- de César e de Augusto, língua ilustrada por abundante literatura, ensi-
mento ou os sentimentos que os inspiraram, representam dois períodos nada nas nossas escolas- e que eu aprendi, porque fui um bom aluno.
sucessivos do movimento em círculo, ou melhor, duas espirais da nossa O vocabulário, o estilo do elogio fúnebre não desconcerta o humanista,
hélice. No que me diz esse outro, há palavras e frases que conheço bem, familiarizado com a obra de Cícero e de Tito Lívio. Os sentimentos,
que eu próprio podia ter empregado; essas expressões evocam na minha as ideias expressas por este homem antigo (trata-se de um viúvo que
consciência sensações, impressões ou ideias que podiam ter sido as faz o elogio da defunta mulher) não me surpreendem por aí além. ·
minhas. Então, compreendo sem esforço: esse outro é tão semelhante Exprime reacções de uma ordem largamente humana, que as mais das
a mim que constituímos um só. Outras vezes, a expressão empregada vezes não são muito diferentes daquelas que, num caso análogo, um
surpreende-me («aqui está qualquer coisa que eu nunca teria pensado, dos nossos contemporâneos manifestaria. Há, sem dúvida, aspectos menos
que nunca senti»), mas apresenta bastantes elementos comuns com o luminosos: os sentimentos desse romano do século I não são bem aqueles
conteúdo da minha consciência adquirida para que eu consiga construir que, por simpatia, eu posso experimentar. Como sou cristão, surpreen-
por analogia uma hipótese sobre o que ela pode ter significado, ter de-me esta indiferença bem helenística pelo problema religioso. Na
procurado dizer {tomando aqui analogia no sentido rigoroso que assume qualidade de cidadão de um W elfare state, tenho uma certa dificuldade
no tomismo a noção de analogia de atribuição). De posse desta hipótese, em compreender o lugar que ocupam as questões de herança e de
volto a esse outro e. substituindo a minha interpretação no contexto, património na vida conjugal destes grandes proprietários. Por último,
procuro verificar a sua conveniência; se, depois de experimentada, não como a minha cultura pessoal é condicionada pelo estado da ciência
se revela inteiramente satisfatória, retomo-a, corrijo-a e tento de novo moderna, tenho dificuldade em me desenvencilhar no meio dos enigmas
verificá-la. O processo pode ser . simples ou complexo, automático e, jurídicos que levantam as alusões imprecisas deste texto a processos-
-crime ou a processos-cível, onde se põe à prova o subtil tecnicismo
por conseguinte, inconsciente, ou pode, ·pelo contrário, ser demorado
do direito romano.~. A contas com estas dificuldades, procuro formular
pela dificuldade e prosseguir em plena consciência.
hipóteses, extrapolando a minha experiência humana e os meus conhe-
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DO CONHECIMENTO HIBT(JRIGO A HlSTORIA FAZ-SE COM DOCUMENTOS

cimentos teóricos, hipóteses que procuram dar conta das expressões Seja qual for o partido adaptado, a compreensão do «documento»
e do contexto do nosso documento. filosófico continua sempre a ser difícil e, em certo sentido, precária:
Estas hipóteses serão tanto mais precisas e terão tanto mais possi- não nos deve escandalizar a incompreensão que os contemporâneos
bilidades de ser exactas quanto mais se apoiarem sobre o terreno testemunharam pela filosofia de,Kant. Já -nos pode admirar o eco, sonoro,
sólido da similitude existente entre outrem e eu. Quanto mais a parte mas singularmente deformado, que a leitura de Heidegger despertou
do «Outro» for crescendo à custa da categoria do «Eu», como acontece no pensamento de J. -P. Sartre.
à medida que o documento provém de um passado mais longínquo ou
de um meio mais exótico, mais difícil, aventurosa, parcial se tornará Quer se trate de um texto contemporâneo que apresente dificul-
a compreensão. A língua será menos bem conhecida, as realidades dades especiais, quer de um documento histórico proveniente de um
evocadas por esses signos pertencerão a uma ordem menos familiar, passado longínquo, o mecanismo da compreensão é realmente análogo.
serão mais difíceis de conceber. Remeto de novo o meu leitor para .os psicólogos da linguagem. Estou
Mas se as dificuldades crescem rapidamente na compreensão do a pensar particularmente nas experiências de Piaget com crianças de
passado, o mecanismo utilizado não é tecnicamente diferente daquele onze ~ doze anos: «Se se introduz uma palavra desconhecida na frase,
que a vida quotidiana . supõe. Se um artista original aparece, se um a palavra desconhecida é compreendida em função do esquema de
escritor dá um sentido novo às palavras da tribo, não nos vemos a contas conjunto» 25 • Mas é exactamente assim que procedemos nós, filólogos
com dificuldades semelhantes? O caso típico é o do filósofo, que por clássicos ou historiadores da Antiguidade, quando procuramos fazer
definição deitou um olhar novo sobre o conhecimento, o ser, o mundo avançar o nosso conhecimento do vocabulário das línguas mortas.
ou o homem, e recebe assim uma mensagem sempre difícil de comunicar,
precisamente na medida em que contém um factor de novidade, radi- Procurei mostrar, por exemplo 26 , que a palavra p.e:Àoypa<p(cx que
calmente heterogéneo à cultura comum. Traduziam, segundo a etimologia, por «ditado musical», significava, pelo
contrário, «poesia lírica cantada», apoiando-me sobre a homogeneidade
Daí as dificuldades inextricáveis da linguagem filosófica. Ou tentará do contexto dos documentos que a encerram (inscrições relativas a con-
utilizar todos os recursos da língua comum (há filósofos, por exemplo cursos escolares, epigrama do gramático Apolodoro: <<Homero, elegia,
Platão ou Bergson, que a souberam utilizar com uma arte incom- musa trágica, (J.Ú.oypa!fÍa »).
parável), os recursos da retórica (figuras de palavra, figuras de pensa-
mento... ) para sugerir Mecanismo que não deixa de apresentar erros, erros que uma
experiência mais completa, aproximações mais bem analisadas .permitem
Quel che la parola non ha detto e non dice,
mais tarde, nos casos favoráveis, corrigir. Aqui ainda, analogia perfeita
aquilo que as palavras até então não tinham conseguido dizer e de entre a iniciação à linguagem comum e a compreensão do passado.
facto não dizem, de tal maneira que nunca se tem a certeza de haver
compreendido, de não se ser enganado pela própria arte, por uma «A criança compreende a maior parte das palavras de maneira
metáfora, por uma imagem. Ou então o filósofo arriscar-se-á a .elaborar diferente do adulto. Ao recebê-las numa só posição de frase, engana-se
uma língua técnica, cheia de neologismos, que afasta o leitor pela sua a todo o instante>> 27 • Conheci um rapaz de dezanove anos, operário
.gíria abstrusa e, o que é mais grave, substitui ao real entrevisto um jogo
de abstracções. de fumos vãos.. .24 25 H . Del11croix, Le langage et. le pensée (1924), p . 462.
2.6 L' Antiquité çlassique, t. XV .( 1946) , pp, 289-296.
21 M. Cohen, Persistançe du langage enfantin, em J ournal de Psyçhologie,
24 Limit11mo-nos aqui a 11lguml!s indic11ções sumári11s. O problema I!CI!bl! de ser
1933, p. 391.
on11lisl!do, com bl!st11nte fortun11, por Y. Be l11val. Les philosophes et leur lengege ( 1952).

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DO OONHEOIMENTO HIBT(JRIOO
A HIBTORIA FAZ-SE OOM DOOUMENTOS

joalheiro, para quem o adjectivo «local» significava «pornográfico»: só fazem ouvir, pela primeira vez, Schonberg ou Pierre Boulez, fica tão
tinha encontrado essa palavra nos cartazes de music-hall, onde se anun- desconcertado como o arqueólogo diante de uma língua desconhecida;
ciava uma «Revista local de grande espectáculo»- espectáculo de facto não fazem para ele sentido algum.
bastante despido.
Os mais graves dos nossos orientalistas não procedem doutra
Não é também pela familiaridade, pelo hábito, pelo paciente con-
maneira quando se esforçam por decifrar uma língua mal conhecida,
fronto das analogias e das semelhanças, pela adaptação ao contexto, que
como o fenício arcaico dos textos, escritos em alfabeto cuneiforme, de
conseguimos dilatar o nosso gosto, a nossa compreensão nesse domínio? ...
Ras-Shamra. Na palavra escrita com as três consoantes T. R. KH,
E isso também supõe, exige um espírito aberto (há pe~soas cujo gosto
reconheceu-se primeiramente o nome do pai de Abraão, Tharé ou Térah,
é tão estreito, a vontade de não saírem de ali tão firme, que nunca
e (segundo o contexto) interpretou-se como um deus lunar. Depois, houve
compreenderão nada das formas novas que a arte possa ser levada
q(.tem se convencesse de que compreendia melhor: seria o equivalente
a revestir), uma vontade de nos enriquecermos, de sairmos de nós
do · acádio tirhatu, que significa «dote» ou qualquer coisa como isso
mesmos, uma estrutura mental análoga àquela que, como vimos, ~xigia
(o preço a entregar ao sogro para adquirir a esposa). Outras hipóteses
em história a compreensão do documento.
se sucederam: «pedra preciosa>>. «taça utilizada na adivinhação», nome
de anima/ ... 28
«Alternar tensão e distensão, deixar vir, deixar amadurecer, enga-
nar-se e desenganar-se, aceitar, já não se entender aquilo que se tinha
A quem se admirasse de tais aproximações e extraísse daí con-
entendido, recomeçar, ganhar flexibilidade, imitar exteriormente antes
clusões cépticas (como se a «idade mental» do historiador fosse a de
de se ir à verdade com toda a sua alma, tal é a arte em que me indus-
um adolescente um pouco atrasado), lembrarei que este método de
trio .. .». É um filósofo que fala 29 e quer descrever a compreensão de
compreensão, esta dialéctica do Eu com o Outro (para compreender
um autor difícil. Não é preciso mudarem uma palavra sequer à sua
é preciso que o eu leve nitidamente a melhor sobre o Outro:
análise para o aplicar ao amador de arte em presença de um estilo,
plástico ou musical, que começa por o desconcertar, ou ao historiador
se, seja qual for o sentido exacto de T. R. KH, as tabuinhas de Ras-
perante as testemunhas do passado.
-Shamra puderam no conjunto ser rapidamente e seguramente decifradas,
foi porque a linguagem em que estão escritas era semítico ocidental,
língua bastante próxima do hebreu, família e língua bem conhecidas),

não se aplica só ao caso relativamente elementar da linguagem da vida


corrente; dá igualmente conta da iniciação a todo o modo de expressão,
. mesmo os mais complexos, por exemplo, os da expressão artística.

Assim acontece na música. Um amador, cujo ouvido foi formado


exclusivamente pelo uso do repertório clássico e romântico, a quem

28 O. De Lc nghe, Les textes de Res-Shemre Ugarit et . leurs repports evec Ie


milieu biblique de I'Ancien Testement ( 1945), t. li, pp. 504-519.
"~' Y. Ga!ilvcl, op. ·cit., p . 154 .

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CONDJÇOES E MEIOS DA COMPREENSÃO

Ao chegarmos a este ponto, temos de reflectir sobre as condições


subjectivas que tornam possível- e limitam- esta compreensão. O histo-
riador apresentou-se-nos como o homem que, mediante a epokhe, sabe
sair de si para avançar ao encontro de outrem. Pode-se dar um nome
a esta virtude. Chama-se a simpatia.
Ao pronunciar esta palavra, parece-me que dão um salto no túmulo
os nossos velhos mestres positivistas. Que reviravolta na perspectiva! Ao
lermos os manuais deles, ficamos com a impressão de que consideram
o espírito crítico a primeira virtude do historiador. Todo o documento,
toda a testemunha será de início objecto de suspeição. A desconfiança
metódica é a forma que assumirá, aplicado à história, o princípio carte-
siano da dúvida metódica, ponto de partida de toda a ciência. Pergun-
taremos sistematicamente diante de qualquer documento: a testemunha
pode-se .ter enganado? Quis enganar-nos?'·
A ideia que nos convém fazer do historiador será completamente
diferente: não deve adoptar, relativamente às testemunhas do passado,
essa atitude resmungona, minuciosa e intratável, a do polícia mau para
quem toda a pessoa chamada a comparecer é a priori suspeita e consi-
derada culpada até prova em contrário. Uma tal exacerbação do espírito
crítico, longe de ser uma qualidade, seria para o historiador um vício
radical, que o tornaria praticamente incapaz de reconhecer o significado
real, o alcance, o valor dos documentos que estuda. Uma tal atitude
é tão perigosa em história como, na vida quotidiana, o medo de ser
enganado, essa afectação que Stendhal gosta de emprestar às suas
personagens ( ... «suponho sempre que a pessoa que me fala me quer
enganar» ... ) .

I Langlois-Seignobos, lntroduction eux études historiques, p . 13 1, etc.

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DO OONHEOIMENTO HISTõRIOO CONDIÇõES E MEIOS DA OOMPREENSAO

Se a compreensão é efectivamente essa dialéctica do Eu com o encontrem igualmente representadas no espírito de cada sábio. Mas a
Outro que descrevemos, supõe a existência de uma larga base de comu- elaboração da história é o fruto de um esforço colectivo e os · excessos
nhão fraternal entre sujeito e objecto, entre historiador e documento de uns vêm corrigir as deficiências dos outros. Ê útil ao progresso da
(para sermos mais precisos: e o homem que se revela através do nossa ciência que uma crítica exigente, e até mesmo injusta, venha
documento, esse sinal). Como compreender, sem essa disposição de despertar uma simpatia sonolenta prestes a deslizar para a complacência
espírito que nos toma conaturais a outrem, que nos permite sentir e para a facilidade.
as suas paixões, repensar as suas ideias à mesma luz a que ele as viu, Mas quando se examina de perto a contribuição real destas diver-
numa palavra, comungar com o outro? o termo simpatia é mesmo sas fases da investigação, dá a impressão que é sempre a simpatia, fonte
insuficiente aqui: entre o historiador e o seu objecto é uma amizade e condição da compreensão, que representa a fase construtiva. A crítica
que se deve estabelecer, se o historiador quer compreender, porque, consegue demolir o edifício provisório de um conhecjmento imperfeito,
segundo a bela fórmula de Santo Agostinho, «não se pode conhecer formula exigências úteis à reconstrução ulterior, mas em si mesma com
ninguém a não ser pela amizade», et nef[ZO nisi per amicitiam cognos- pouco contribui. Assim, L. Febvre mostrou bem, na sua brilhant~ mono-
citur 2 • grafia sobre Martinho Lutero, em que medida. a história do grande
Uma tal concepção não elimina o espírito crítico. Esta tendência reformador tinha afinal beneficiado do trabalho de demolição, agressivo
para a simpatia que se actualiza em amizade desenvolve-se no interior e polémico, do P. Denifle; mas trata-se sobretudo de um benefício
da categoria fundamental que nos levou a definir a história como conhe- indirecto, que consistiu em destruir a imagem complacente que formara
cimento, como conquista do conhecimento autêntico, da verdade sobre a hagiografia luteriana, em sublinhar a sua discordância com os . dados
o passado. Quero conhecer, quero compreender o passado, e primeiro reais dos nossos documentos. Se Denifle trouxe, no entanto, alguma
os seus documentos, no seu ser real; quero amar esse amigo que é um contribuição positiva para o avanço do nosso conhecimento de Lutero,
Outro existente e não, sob o seu nome, um ser de razão, um fantasma não foi mediante a sua crítica, mas sim na medida em que asua ·
complacentemente alimentado pela minha imaginação. A amizade autên- competência pessoal de medievalista, a sua própria experiência de reli-
tica, na vida como na história, supõe a verdade. Nada é mais contes- gioso e de teólogo católico, levaram esse dominicano do século XIX
tável que a concepção que, segundo os Tharaud, Péguy teria tido da a simpatizar, apesar de tudo, com o agostinho do século XVI.
amizade. A acreditar neles, amava nos amigos a imagem ideal que
nutria, com o risco de os repelir quando um dia descobria que eles Outra correcção: parecia aos nossos pais que a história encontrava
não encarnavam, ou não encarnavam bastante, o arquétipo que lhes na crítica a ocasião para as suas mais belas realizações; a equação
tinha atribuído. Uma paixão sincera não deve abolir o sentido do real. simbólica:
Num certo sentido, até rejubilo por descobrir mesmo os limites, mesmo h =P+p
os defeitos daquele que amo, porque esse contacto, por vezes brutal,
com o existente me confirma a sua realidade, a sua alteridade essencial. verificava-se no documento antes de se aplicar ao historiador; parecia
Uma vez que não se confunde com o meu sonho, é porque não é o fruto que os documentos só o que podiam conter e~a um ~ouco de verda.de
de uma ilusão complacente; a quem sabe amar, esta experiência do outro, misturada a muitos erros, aqueles erros que a mcapactdade e a mentua
esta saída de si mesmo permitirá vencer toda a desilusão. das testemunhas ou dos agentes de transmissão tinham acrescentado ao
registo objectivo dos factos. Desde logo, o historiador era, antes de tudo,
Se o espírito àítico e a simpatia não são em si mesmos contraditó-
0 crítico que não se deixava surpreender, que sabia descobrir a interpo-
rios, falta que estas duas virtudes sejam sempre fáceis de conciliar, que se lação, desmascarar o falsário, retirar a atribuição usurpad~ . . . Daí a
longo prazo esse preconceito deselegante de sublinhar trocistamente as
2 Sur quatre-vingt-trois questions diverses, 71, 5.
miudezas e as fraquezas de outrem, essa atitude sobranceira e desde-
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DO CONHECIMENTO HIBT6RIOO CONDIÇõES E MEIOS DA COMPREENBAO

nhosa e, por fim, essa espécie de incapacidade em comungar, em dizer incompetência de jovem bárbaro ignorante e presunçoso 3 • Mal passei a
sim, em reconhecer os verdadeiros valores humanos onde eles existem. conhecer melhor o que era a retórica clássica, essa técnica subtil e requin-
Daí invectivas de Péguy, em L' argent e, sobretudo, em L' Argent suite, tada que Santo Agostinho dominava de maneira incomparável, aperce-
tão pertinentes e tão profundas, sob o exagero apaixonado da forma, bi-me de que tomara à conta de imperícia decadente o que era o requinte
contra esta história dos críticos que só o que pode é negar, diminuir, de uma arte, tão perfeitamente segura de si que evitava os efeitos fáceis
destruir; que em toda a parte só encontra mentirosos ou fantoches, e nunca
e sabia arriscar-se à deformação expressiva. À medida que ia penetrando
heróis nem santos.
melhor nela, fui-me a pouco e pouco despojando do orgulho do moderno,
Devemo-nos lembrar que Péguy se atira à recensão, ingenuamente esse orgulho do bárbaro que despreza o que ignora, e passei a com-
elogiosa, que o seu adversário Ch.-V. Langlois publicara, na Revue preender um pouco melhor.
Critique, sobre v Saint Martin, de Ch. Babut (<<este conseguiu demons-
trar, claro como a água, que S. Martinho era uma espécie de duvidoso Cada exigência nova que impomos ao historiador define por tabela
e de detestável lapuz ... »). Este livro pode perfeitamente servir hoje de um outro limite da história. Para que possamos conhecer um sector do
exemplo da atitude crítica que conduz à impossibilidade de compreender. passado, não é preciso só que tenham subsistido documentos significa-
Que subsiste dele depois da dupla execução a que o submeteram o tivos, tem ainda de se encontrar um historiador capaz de os recuperar
bolandista H. Delehaye e o nosso Camille Jullian? e, sobretudo, de os compreender. Isto poderia passar por um truísmo,
mas a minha experiência mostra que não é talvez inútil lembrar uma tal
Entendemos, pelo contrário, hoje, que a experiência da história,
evidência. É difícil a um profano imaginar qual pode ter sido neste ponto
em vez de se adaptar a um tal orgulho, exige de nós, desenvolve aliás
a cegueira positivista. Prestou-se sempre muita atenção às exigências
em nós, uma constante e profunda humildade. A história é encontro
estritamente técnicas da investigação histórica (antes de se estudar a
de outrem e havemos de mostrar que, para quem não tem a alma aca-
nhada e vil, representa amiúde a experiência de uma grandeza que nos história da Arménia, começar por aprender arménio ), mas ficou-se,
abisma, porque os homens de outrora que ela nos revela eram muitas durante muito tempo, singularmente indiferente às suas exigências indi-
vezes maiores que nós. Mas, antes de chegarmos aí, desde a fase preli- rectas, que no entanto, não são menos severas. Para conhecer o seu
minar do trabalho que é o primeiro diálogo com o documento, a nossa objecto, o historiador deve possuir na sua cultura pessoal, na própria
atitude será determinada pelo cuidado de estarmos atentos e nos mos- estrutura do seu espírito, as afinidades psicológicas que lhe permitirão
trarmos como que receptivos ao objecto e, em primeiro lugar, a esse imaginar, sentir, compreender os sentimentos, as ideias, o comportamento
documento que o revela. Nada dessa rigidez de presidente do tribunal dos homens do passado que virá a encontrar nos documentos. A história
colectivo: «Levante-se o réu!» O medo salutar que devemos sentir é da arte exige uma sensibilidade estética bastante rica e bastante flexível.
menos o de sermos enganados do que o de nos enganarmos, de não ser- A história do Cristianismo requer que se tenha pelo menos o sentido do
mos capazes de compreender. Não é assim tão fácil compreender um que pode ter sido o fenómeno religioso, o sentido dos valores espirituais.
documento, saber o que ele é, o que ele diz, o que ele significa. Quantas Por não o haverem compreendido, quantos trabalhos históricos nos não
vezes, lá onde a crítica julgava ter descoberto ignorância ou erro, o dão a impressão de serem pintura da autoria de um cego de nascença,
.desenvolvimento da investigação lhe não vem a revelar, para sua vergo- música contemplada por um surdo!
nha, que não soubera compreender.

Não vou agora bater de contrição no peito do vizinho. Quando era


novo, escrevi um capítulo completo em que pretendia demonstrar que 8
Retomo oqui os termos da minha Retractatio ( 1949), em Saint Augustin et la
Santo Agostinho não sabia compor. Este juízo exprimia afinal a minha fin de la cultura anti que ( 1938), pp. 665·666.

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DO CONHECIMENTO HISTóRICO CONDIÇõES E MEIOS DA COMPREENSÃO

Temos uma volumosa tese sobre La Serbie et son Église 4 • O autor, ele vomite informações». Mas não, não o devemos violentar, porque o
visivelmente insensível aos valores religiosos, limitou-se, com perfeita problema é apreender, em toda a sua delicadeza e nos seus matizes, o
tranquilidade de consciência, a estudar componentes políticos da vida cxacto alcance da significação dele. O melhor será não nos apressarmos.
religiosa do povo sérvio (os seus monges ortodoxos não passam de O historiador deve saber utilizar longas demoras. De facto, quantas
terroristas aos tiros contra os Turcos; mas por que é que havia mon- vezes escam quaerens margaritam repperit! Não se encontra sempre aquilo
ges?), de maneira que se assiste a um estranho espectáculo dado por um que se procura, mas às vezes descobre-se num documento aquilo que não
actor invisível! tínhamos ousado esperar:

O valor do conhecimento histórico é directamente função da riqueza Folheava um dia, no Cairo, os Papiros Maspero, à procura de infor-
interior, da abertura de espírito, da magnanimidade do historiador que mações sobre a administração de um convento bizantino de Alexandria.
o elaborou. Temos uma tendência técnica, tão deformados estamos por Fui lá encontrar a origem, procurada há tanto tempo em vão, dos diaco-
anos de especialização, pelo esforço por vezes sobre-humano que tivemos nados romanos, essa curiosa instituição eclesiástica da alta Idade Média
de despender para a adquirir. O nosso público, pelo contrário, é muito que sobreviveu nos «títuloS>> dos nossos cardeais-diáconos.
sensível a isso (falo do nosso verdadeiro público, a sociedade para a qual
trabalhamos). O acolhimento descoroçoado que recebem as nossas pro- Volta mais uma vez a acontecer, quanto ao encontro de outrem
duções («história académica, ciência oficial, pura erudição»), essa indife- na história dos seus documentos, o mesmo que na vida quotidiana.
rença, esse desprezo que sentimos como uma injustiça, provêm do con- Para travar conhecimento com uma nova relação, será bom sistema
traste que revelam muitos dos nossos trabalhos entre uma exigência impor-lhe uma série de perguntas relativas às nossas preocupações de
técnica levada até ao escrúpulo e uma filosofia geral sobre o homem, momento? Não, temos de nos abrir a ela, de nos esquecermos, de pro-
a vida e os seus problemas, dignas de um jornalista de terceira ordem, curarmos apreendê-Ia em · si mesma enquanto estranha ...
um desconhecimento pueril dos grandes problemas levantados à consciên- Estas considerações parecerão sem dúvida elementares. Bastam,
cia do nosso tempo, que uma atenção suficientemente desperta devia ter no entanto, para iluminar, a uma luz bastante nova, a teoria clássica das
podido reconhecer na vida desses homens do passado que nós preten- operações preliminares a que se há-de submeter o documento. Se se
demos redescobrir. O historiador deve ser também, e primeiro que tudo, consultarem os manuais de metodologia histórica 5 , havemos de encon-
um homem plenamente homem, aberto a tudo o que é humano, em vez trá-los segundo o seguinte esquema:
de aparecer atrofiado como um rato de biblioteca e um ficheiro!
Na medida em que for capaz disso, o historiador deverá, portanto, . A. Crítica externa.
empenhar-se em compreender o seu documento. Voltamos a encontrar
aqui a noção ·de epokhe: a atitude de submissão ao objecto que definimos I. Crítica de autenticidade:
implica que nos esqueçamos momentaneamente da própria questão que
nos levou a seleccionar o documento. É preciso ouvi-lo, deixá-lo falar, (o «texto», nas nossas mãos, apresenta-se ou não como o autor o havia
dar-lhe a sua possibilidade de se mostrar tal como é. Não se pode saber escrito? Possuímos o próprio original, uma cópia, uma cópia de cópia(s),
antecipadamente tudo o que ele pode ter para nos dizer. Impor-lhe cedo e, nestes últimos casos, será fiel ou enganosa?
de mais um questionário estabelecido a priori é o meio mais seguro de
atrofiar e de deformar o seu testemunho. Utilizou-se muito a metáfora, 5
A opresentoçõo nõo é 16 muito v11riad11 desde o Grundriss de Droysen ( 1.• ed,
renovada, de Bacon: «Submeter o documento à tortura, fazer com que 1867), e o Lehrbuch de Bernheim ( 1889), 11té 110 Comment on écrit l'histoire de
P. Harsin (Liàge, 1933; s.• ed., 1949), piiSSIIndo, bem entendido, por Lllnglois e
~ J. Mousset, La Serbie et son Eglise, 1830-1904 ( 1939). Seignobos ( 1898).

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DO OONHEOIMENTO HIST6RIOO CONDIÇõES E MEIOS DA OOMPREENSA.O

A esta fase liga-se por vezes (trata-se na realidade de um aspecto nio em que a maior parte da documentação são crónicas de segunda
completamente diferente, muito mais activo, do trabalho histórico) a mão, diplomas e cartas falsificadas, vidas de santos ultrajosamente ante-
crítica de restituição, «crítica de limpeza e de remendo», que visa a datadas.
reconstituir um original desaparecido;
Numa tal concepção, a investigação histórica concentra-se sobre o
estabelecimento da realidade de «factos», isto é, de acções humanas
2. Crítica de proveniência:
constatáveis objectivamente; o documento ideal é nessa altura efectiva-
mente o original de um auto levantado no próprio local por testemunhas
[mediante a amílise dos caracteres intrínsecos- ir-se-á, se for preciso,
oculares competentes e verídicas, e todo o documento encontrado vê-se
até à filigrana do papel - mediante o confronto com os testemunhos de
qualificado de bom ou de mau, conforme se aproxima mais ou menos
outros documentos, procura-se responder às perguntas: Quem redigiu este
deste testemunho ideal. Mas, como nós sublinhámos, não é essa, hoje,
documento? Quando? Onde? Como? (forma do documento), por que
a ambição única nem a mais alta ambição da História. Aprendemos a
vias chegou até nós?].
utilizar de muitas outras maneiras muitas espécies de documentos e a
fazer-lhes perguntas mais subtis e mais variadas.
B. Critica interna. Por outro lado, não se deve confundir a repartição empírica das
diversas operações técnicas com a análise lógica das interferências racio-
1. Crítica de interpretação: nais implicadas por estas operações, que é o problema que nos importa
abordar aqui. Se se levanta a questão em toda a sua generalidade, tem de
(o que o autor disse, o que quis dizà). se responder que todo o problema «critico», isto é, o conjunto das opera-
ções a que o historiador submete o documento antes de o utilizar para
2. Crítica de credibilidade: a elaboração do conhecimento do passado, reconduz-se, em última aná-
lise, a determinar a natureza, o «ser» desse documento. Procuramos
crítica negativa de sinceridade, de competência e de exactidão: procura-se saber exactamente o que ele é em si mesmo e por si mesmo. À noção, no
determinar o valor do testemunho. É aqui que se põem as famosas per- fundo sobretudo negativa, de investigação «crítica» (estabelecer o que o
guntas: O autor pode-se ter enganado, quis enganar-nos, foi obrigado documento não é: que não é falso, que não é mentiroso ... ), parece-me
a enganar-nos? Ao exame de competência liga-se o problema das fontes: útil substituir a noção positiva de compreensão do documento: esta
é uma testemunha directa, «ocular», ou vai buscar a sua informação pesquisa visa e leva de facto a estabelecer o que é na realidade o
a testemunhas anteriores? Se estas fontes se conservam, o documento documento.
deixa de ter interesse; se se perderam, a «pesquisa das fonteS>> (Quellen- É inútil sublinhar que amiúde o seu «ser>> real se revelará com-
forschung) depressa se torna desanimadora ... pletamente diferente do que parecia de início, do que o seu autor dese-
java que ele parecesse. O nosso esforço de compreensão positiva integra
Apesar do seu carácter sist\!mático e lógico, este esquema não sem dificuldade aquilo que a crítica, externa ou interna, elaborava de
possui a generalidade a que aspira. Só se aplica bem a uma história válido: compreendemos que este documento é um original, este outro
.de tipo factual, narrativa, que utiliza, antes de tudo, fontes textuais, uma cópia imediata ou mediata, fiel, enganosa ou falsificada; é autên-
literárias. tico, pseudepígrafo ou apócrifo; é veridico, mentiroso ou perfidamente
enganador.
De facto, este programa foi sobretudo preconizado pelos espeçia- Mas não há interesse em nos deixarmos encerrar nas categorias
listas da história políiiça ou eclesiástica da Idade Média ocidental, domi- do questionário imaginado para a história factual. De facto , o nosso

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DO CONHECIMENTO HISTóRICO CONDIÇõES E MEIOS DA COMPREENSÃO

esforço de compreensão levará a conclusões muito mais matizadas. De boa vontade transporei para o conhecimento histórico e para
O conhecimento do ser real do documento ensina-nos a lê-lo como deve os seus documentos o que Santo Agostinho diz algures 6 do conhecimento
ser lido, a não procurar nele o que ele não contém, a não o estudar sensível e dos objectos materiais. Não se pode dizer que no seu ser real
sob um ponto de vista deformador. um documento seja alguma vez «mentiroso». Pode «enganar» o histo-
riador, crédulo ou desatento, se este o toma por aquilo que não é, mas
Tomemos como exemplo a interpretação dos Evangelhos canónicos. esta hipótese falsa é que é a fonte do erro e não o próprio ser do
Quanto tempo perdido pela «crítica» a procurar a credibilidade do documento: se somos enganados, não é ex eo quod est, mas, sim, ex eo
testemunho que eles dão sobre os acontecimentos da vida de Jesus! quod non est!
Começamos apenas (porque os fundadores da Formgeschichte, ainda Tomemos o caso mais importante do «falso». A seguirmos a teoria
excessivamente submetidos à tradição estabelecida pelo século XIX, não aceite, dá a impressão de que, uma · vez reconhecido como falso, um
souberam tirar todas as conclusões que ressaltam dos princípios tão documento só serve para ser deitado para o cesto dos papéis. Ora não
fecundos que tiveram o mérito de pôr) a aperceber-nos de que urgia, é assim. Basta extraí-lo do processo histórico, onde figurava provisoria-
em primeiro lugar, compreender o que era um Evangelho: não é uma mente e indevidamente, para o colocar no do falsário, onde constitui
colectânea de autos, de atestações de acontecimentos, mais ou menos um documento positivo e amiúde bastante revelador (porque é raro que
exactos ou tendenciosos, mais ou menos fielmente transmitidos. O autor um documento falso tenha nascido de um acto «gratuito»).
não se propunha fornecer um dia uma documentação à história histo-
ricizante, mas uma coisa completamente diferente: queria, na perspectiva O cartulário da abadia de Saint-Germain-des-Prés contém três
existencial da catequese eclesiástica, transmitir aos seus leitores o conhe- cartas 1 , uma de Carlos Magno, a segunda de Luís o Piedoso, a terceira
cimento de Cristo necessário à salvação. Para elaborar esta imagem de de Carlos o Calvo, que se vê bem que são documentos falsos. A demons~
Jesus, pode ter sido levado a toda uma manipulação das suas fontes tração 8 , apoiada na análise dos caracteres paleográficos, diplomáticos
que nos desconcerta talvez (pela indiferença que manifesta, por exemplo, e sigilográficos, não deixa margem para dúvida. É evidente que estes
pela cronologia), mas que seria ingénuo qualificar de falsificação ou de «documentos» não devem ser tomados em consideração para a história
I
mentira. Seria mais ingénuo ainda imaginar quç se possa decompor este do período carolíngio; mas devem-se todos três à mesma mão, que redi-
testemunho e, separando a boa semente do joio, isolar um puro núcleo giu um quarto privilégio 9 , esse autêntico, pelo qual o rei Henrique I,
de «factos» autênticos. Os Evangelhos não são um testemunho directo em 1058, referindo-se ao nosso primeiro documento falso (inspecto pri-
sobre a vida de Cristo, são um documento primário, e de um valor vilegio Karoli magni) confirma, a pedido do abade Hubert, o privilégio
incomparável, sobre a comunidade cristã primitiva. Só atingimos Jesus pretensamente concedido por Carlos Magno. É preciso juntar os nossos
através da imagem que os seus discípulos tiveram d' Ele. O que não quer três documentos falsos ao processo deste assunto que eles iluminam de
dizer que esta imagem seja enganadora, embora não coincida com aquela muitas maneiras, quer revelando-nos os meios empregados para obter
que o historiador factual gostaria que ela fosse (sentiríamos, por exemplo, a concessão do rei Henrique, quer ensinando-nos a conhecer as ideias
a maior satisfação em conhecer a data, dia, mês e ano, do nascimento
ou da paixão de Cristo, curiosidade que deixou totalmente indiferentes
os primeiros cristãos).
6 De vera religione, 3 3 (62).
7 R. Poupardin, Recuei! des chartes de l'abbaye de Saint- Germain-des-Prés, t. l,
O aprofundamento da investigação preliminar levará necessaria-
p. 25, n.• XVII; p. 41, n.• XXVII; p. 53, n.• XXXIII.
mente a conclusões positivas: uma vez que existe, o documento possui 8 Aos ergumentos de Poupardin, ocrescentem-se os de Prou, Comptes rendus de
um certo «ser» que se tem de determinar por compreensão e graças à I'Académie das lnscriptions, 1922, pp. 125-130.
simpatia. 9 Pouperdin, Recueil ... , t. I, p. 101, n.• LXIII.

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IJCJ CONHECIMENTO HISTóRICO CONDIÇõES E . MEIOS DA COMPREENSÃO

JUr/dicas da chancelaria capeta (valor do precedente carolíngio), as ideias fações, um ciclone determinado do mar das Antilhas (fenómeno tão
morais que reinavam em torno do abade de Saint-Germain e até os determinado que se lhe atribui um nome, como os militares fazem numa
conhecimentos históricos que se possuía neste meio (é di vertido inves- operação de desembarque), ou em geologia, a ondulação alpina, a gla-
tigar em que medida se conseguiu «fazer carolíngio»). ciação de Risse ou de W ürm. Fenómends que por uma analogia parcial, .
mas real, se tenderá a qualificar de «históricos».
Um documento falso é efectivamente uma mentira, mas o histo-
riador avisado pode, graças a uma simpatia que lhe permite compreen- Mas, inversamente, tem de se sublinhar (se não descambamos no
der, sem ser enganado, esse «crime perfeito» (e que, deve-se acrescentar, irracional) que esta compreensão do singular, do outro enquanto tal,
não é exclusivo de um juízo moral mais severo), utilizar a verdade que é um conhecimento de tipo analógico, construído a partir de elementos
o acto de ter mentido encerra no seio do seu ser. se não universais, pelo menos gerais. Compreendo um documento como
A compreensão do documento, dissemos nós, realiza-se por uma compreendo uma palavra, uma expressão da linguagem na vida quoti-
dialéctica do Eu com o Outro. Temos de insistir quanto mais não fosse diana, isto é, na medida em que ele não se apresenta só a mim como
no intuito de contribuirmos para precisar de passagem uma noção que isolado. Todo o documento histórico deve, por um lado, possuir uma
até aqui tem sido mais polémica do que outra coisa: a da história como certa originalidade, pelo menos numérica (por exemplo, a das moedas
conhecimento do singular. de oiro idênticas que, pelo número, constituem uni tesouro e dão uma
Sim, sem dúvida, o conhecimento histórico aspira a apreender importância, um significado particular ao achado), e, por outro lado,
«aquilo que nunca se verá duas vezes» (não há verdadeiro recomeço, ser semelhante sob este ou aquele dos seus aspectos, ou, de maneira mais
repetição na evolução da Humanidade: cada acontecimento histórico rigorosa, ser análogo a outro já conhecido: se é cognoscível, é em função
leva em si a sua diferença incomunicável): apreende o singular enquanto desta analogia.
tal como (observadas todas as proporções e nos limites da analogia) o
apreende o conhecimento divino. Seja o caso da decifração de uma linguagem desconhecida: Cham-
pollion conseguiu compreender o egípcio faraónico, porque conhecia o ·
Daí a oposição que facilmente se estabelece entre a história e as capta, língua dele derivada. Pelo contrário, o etrusco resiste aos nossos
ciências da natureza, as quais procuram, mediante leis gerais, alcançar esforços, porque ainda se não conseguiu aparentá-lo a uma língua conhe-
o conhecimento do que é comum: a física não se interessa por essa maçã cida. Uma escrita ainda indecifrada (a da civilização do lndostão, o
que caiu dessa macieira na cabeça do indivíduo lsaac Newton, mas pelo hieróglifo minóico) possui pelo menos bastantes caracteres comuns com
móvel cujo movimento corresponde à equação aqueles que nós conhecemos para que se possa compreender que é uma
escrita; mas tomemos o quippu peruano, esse sistema mnemotécnico que
e = 1/2 gt2 se apresentava sob a forma de um molho de cordõezinhos munidos de
um ou vários nós confeccionados segundo diversas regras. Se não conhe-
Oposição que se deveria matizar, como Rickert já teve o mérito cêssemos o seu emprego pela experiência directa da etnografia, nem
de sublinhar: a antítese é um processo oratório que nós denunciamos sequer saberíamos que é uma espécie de escrita, tão diferente é de todos
como grosseiro a maior parte das vezes (natura non facit saltus). os outros sistemas conhecidos de notação do pensamento.
De facto, o conhecimento histórico também utiliza leis ( psicoló-
gicas, por exemplo) e o conhecimento do homem em geral para conhe- De facto, quanto mais pontos comuns um documento apresentar
cer tal homem em particular. Por outro lado, as ciências da natureza com uma série bem homogénea de documentos análogos e já conhecidos,
estudam também, nos respectivos domínios, factos singulares. Assim em mais facilmente e mais seguramente será adquirida a sua interpretação
meteorologia, quando se observa, para lhe prever a trajectória e as devas- (isto é, ainda uma vez a compreensão do que ele é na realidade, do seu

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DO CONHECIMENTO HISTóRICO C ONDIÇõES E. MEIOS DA COMJ>REENBAO

quid sit). É o que constitui a força e a utilidade prática das disciplinas na disciplina que acabo de tomar como exemplo, a epigrafia romana.
especializadas a que se chama as ciências auxiliares da história (arqueo- Temos:
logia, numismática, epigrafia, paleografia, diplomática, sigilografia ... ),
que repousam sobre a comparação sistemática de uma certa categoria de
documentos, observam as constantes em matéria de analogia e formulam
regras, ou melhor, leis que repousam sobre esse elemento de generalidade
que apresentam nos casos singulares assim aproximados.

Tem de se introduzir um pouco de rigor na terminologia. Não vou


chamar ciências auxiliares da história a todas as disciplinas cujo conhe-
cimento se revela útil ao historiador. Como se viu, este deveria saber
tudo, as ciências da natureza (pela sua interferência com a história do
homem) e, sobretudo, as ciências humanas (psicologia, sociologia, econo-
mia política,' etc., pois todas elas, um dia ou outro, lhe prestarão qual-
quer contribuição): a noção torna-se excessivamente vaga para apresentar
uma utilidade.
L \
O uso da concepção mais estreita qúe nós sugerimos requer tam-
bém algumas precauções, porque (já o verificámos de passagem, a pro-
pósito da pré-história) as «disciplinas>> são entidades de ordem empírica
a cópia, tal como no-la conservou um manuscrito datado de 152]1°, de
que se resolvem na análise. Tomemos o caso da filologia, pavilhão
uma inscrição 11 descoberta em Saintes Maries de la Mer, na Camargue.
ambicioso que cobre muitas mercadorias. Não a posso considerar a toda
Viu-se neste texto um documento que vinha em apoio das famosas
ela como uma ciência auxiliar. A linguística, na medida em que a con-
Lendas que se popularizaram e proliferaram na Provença a partir
cebem hoje como estudo histórico das línguas e da respectiva evolução,
dos fins do século XI, segundo as quais lá chegou milagrosamente
é bem uma parte integrante da nossa história, ao mesmo título que a
(devia-se precisar: à própria praia das <<Saintes») todo um grupo de
história da filosofia ou a história da arte. Só vejo que se deve considerar
personagens evangélicas: Lázaro o Ressuscitado, as suas duas irmãs
como ciência auxiliar a parte da filologia relativa às críticas dos textos
M arta e Maria (Madalena), etc., e nomeadamente as duas Santas Mulhe-
( ecdótica).
res, Maria (mãe de) Tiago e Salomé 12 • A basílica que tem hoje o nome
Para quem as examina de um ponto de vista lógico, as verdadeiras
delas conserva as suas pretensas relíquias, exumadas em 1448, durante
disciplinas auxiliares são, por sua vez, conglomerados complexos. Assim,
escavações empreendidas com este fim sob o solo da cripta. O redactor
a epigrafia, (tem de se p~ecisar, porque compreende muitas variedades:
do nosso manuscrito pretende, mas com certeza sem razão 18 , que a inven-
digamos a ep{grafia latina, ou seja, o conhecimento das leis gerais que as
.inscrições latiruis, pagãs, antigas, observam) analisa-se em três com-
ponentes: arqueologia (estudo dos monumentos onde se encontram gra- 10 Arles, Bi bl. Mun., ms. 113 (I e « Livre No i,), p. 24.
vadas ou fixadas as inscrições), paleografia (decifrar e datar os textos 1! C. I. L., XII, 120=4101.
12 Me., XV, 40 (cf. Mt., XXVII .56) ; XVI. I.
segundo a escrita), diplomática (estudo dos formulários). 13 Porque não se faz referência à nossa inscnç11o no 11uto das escav11ções
de 1448, conservado nos Arquivos de partamentais das Bocas do R6d11no, B. 1192, e
Pode ser interessante observar, num caso particular, o método publicado por Chailla•n, Les Saintes Ma ries de la Me r, reche rches archéologiques et
empregado por estas ciências auxiliares e o seu alcance. Vou escolhê-lo histo riques (Aix, 1926), pp. 77- 142.

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DO OONHEOIMENTO HISTORIOO OONDlÇõES E MEIOS DA COMPREENBAO

ção das relíquias teria sido facilitada pela leitura da inscrição que com- Se este se achasse isolado na sua singularidade, não se vê como
preende, lendo da direita para a esquerda e com desprezo da ortografia: seria possível interpretá-lo com segurança. Mas a fórmula final V S L M,
Sub (h)umo muri I cava I ara (sic) bas(ili) ce a (l)tiori 1 M(arias) Iacobi que o nosso desenhador reproduziu fielmente, embora a sua hipótese
(et) S(alome) v(idebis). exigisse V SIM, é um dos conjuntos 'de siglas que encontramos com
maior frequência, gravados dessa maneira no fim de uma inscrição
«.Cava sob a terra do muro do altar da basílica superior: verás as latina. Possuímos milhares e milhares de exemplares provenientes de
Marias de Tiago e Salomé». todas as partes do mundo romano. Exclui-se, portanto, que se trate aqui
Não devo surpreender o leitor declarando esta interpretação ina-
de uma alusão particular às Santas Marias. É uma fórmula de uso geral.
ceitável. Mas é preciso ver porquê. Ela não encerra nada de contradi-
Ora de facto acontece ela aparecer, de maneira menos elíptica, em VOT
tório, não é a priori impossível. Inverosímil? É isso que se tem de demons-
SOL LIB MER, ou mesmo com todas as letras: Votum Solvit Libens
trar. Conhecemos documentos que também exigem uma interpretação
far-fetched. Temos, por exemplo, o reverso de uma moeda de oiro 14 que Merito, ou seja, o equivalente pagão da fórmula banal ex voto.
se conserva no Museu do Bardo, em Tunes: Temos, portanto, aqui, uma inscrição votiva. Dedicada a quem?
Basta ter um mínimo de experiência da paleografia das inscrições
romanas para ler sem dificuldade (a nossa cópia soube conservar bem
a ligação das duas letras-N/-: a abreviatura da segunda palavra também
é muito usual 15 : Iunonibus I Aug(ustis); «às /unos Augustas>>, Iunones
era um dos nomes que recebem em latim divindades protectoras de
origem céltica (ou pré-céltica) análogas às Matres 16).
O exame da forma do monumento, que é evidentemente um altar
votivo pagão (os nossos museus têm um grande número de objectos
análogos), confirma arqueologicamente esta interpretação. Passando final-
mente à parte diplomática da análise, o esquema constante das dedica-
tórias votivas convida-nos a procurar na linha 3, depois do nome no
Tem a seguinte inscnçao, constituída por maiúsculas latinas (em dativo das divindades, o nome, no nominativo, do autor do voto. Era
círculo): D SETE R N S D S MA G N S O e (no meio-campo, horizon- uma mulher que, segundo as regras do onomástico romano clássico,
talmente): R TE R C N. Trata-se de uma moeda cunhada em Cartago,
no início da ocupação árabe. O texto, latino, mas de inspiração muçul-
mana, deve interpretar-se assim:
15 Tão usual que nos dispensa de ter em conta os traços parasitas que ostente
D(eu)s etern(u)s, D(eu)s magn(u)s, o I (m)n(ium) cre(a)t(o)r, e segunda letra & que poderiam fazer pensar numa ligeção de AVAC ou ANAC (como
a linha horizontal lê-se assim da direita para a esquerda, o que na ver- procure ler F. Benoit, Mémoires de l'lnstitut Historique de Provence, t. V, 1928, p. lb).
dqde é, pelo menos, tão imprevisto como o nosso documento provençal. 16 Sabe-se que os Romanos essimiiMam às divindades do Panteiío clóssico es
dos povos «bárberos» que tin ham conquistado: como Juno era, em Roma, o equivalente
feminino do Genius, houve deusas protectoras a que se pôde sem dificuldade chemer
14 lnédite. t uma veriedede de cunhegem descrite por H. Lavoix, no númerc 109 lunones. O facto é atestado por numerosos documentos, escalonados desde o Nerbonerise
do seu Catalogue des Monnaies musulmanes de la Bibliotheque Nationa le, Khalifes eté 110 N6rico. Ver, por exemplo, K Prümm, Religionsgeschichtliches Handbuch für den
orientaux ( 1887), p. 35. Raum der altchristlichen Umwelt ( Frifurgo, 1943), p. 777.

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DO OONHEOIMENTO HIBT6RIOO

usava um gentilício que o estado da pedra não permitiu ao nosso autor


I CONDIÇõES E MEIOS DA COMPREENBAO

A certeza histórica é sempre apenas uma verosirnilhança que não


copiar com clareza 17 e um cognomen que era, segundo parece, o de parece razoável contestar por falta de razão suficiente para isso. Em ter-
Barbara, bastante comum. mos pragmatistas, diremos que é a practical satisfactoriness.
Mas mesmo esse resultado só é· adquirido, no caso escolhido e
Não há epigrafista nem historiador avisado que conteste esta inter- igualmente nas conclusões análogas que as ciências auxiliares contêm,
pretação. Mas tem de se precisar o que se quer dizer ao qualificá-la de graças ao carácter geral dos factos evocados pela argumentação. Na
«certa». Não se trata da certeza matemática obtida por via de dedução medida em que um documento se torna mais singular, mais original-
racional, nem da certeza empírica que a verificação experimental pro- é preciso acrescentar, do ponto de vista do historiador, mais interessante
porciona. Embora se trate, no caso estudado, de uma das conclusões - a parte do Outro cresce em detrimento do Eu, e a sua interpret11ção
mais seguras que a investigação histórica pode alcançar, é apenas ainda torna-se mais delicada.
uma conclusão logicamente provável. Afloramos aqui um dos princípios
fundamentais da teoria da história, que foi posto em evidência frequentes Retomemos a inscrição das Santas Marias. No fundo, não apre-
vezes. de Lcibniz a R. Aron (lembre-se a fórmula, em estilo kantiano, senta grande interesse do ponto de vista documental. A sua originalidade
do último: «a modalidade dos juízos históricos é a possibilidade») ' 8 • (à parte o nome, aliás incerto, da pessoa que dedica ... a Barbara) é quase
Mas esta probabilidade é aqui praticamente infinita. de ordem simplesmente numérica: um documento mais que atesta a
existência do culto das !unos Augustas na Narbonense.
Sem dúvida, não se pode considerar louco o autor do nosso manus-
crito, que vê no texto um criptograma redigido pelos «discípulos de Temos de o sublinhar, porque foi fundando-se nos triunfos incon-
testáveis obtidos desde o século XVII pelo desenvolvimento das ciên-
Nosso Senhor ... o mais obscuramente que puderam, por causa dos des-
cias auxiliares, que o dogmatismo histórico concebeu o sonho de um
crentes que havia nos arredores (sic), nesse tempo, para que as Santas
conhecimento do passado realmente «científico», de uma certeza com-
Mulheres não fossem prejudicadas nem mortas». Mas que verosimilhança
parável à das ciências da natureza. Mas a extrapolação é ilegítima: o
existe nisso? Para que um criptograma possa um dia ser decifrado, é
método comparativo sobre que repousam as nossas ciências auxiliares
preciso pelo menos que seja claro que é um criptograma. Os autores do só se pode aplicar aos factos de repetição. Ora os documentos mais pre-
nosso texto teriam conseguido camuflá-lo bastante bem em dedicatória à.s ciosos para o historiador são aqueles que nos permitem atingir os aspec-
Iunones! Um contraditor obstinado replicará que nem mesmo isso é tos propriamente singulares da realidade do passado. O essencial da
impossível (é verdade: aconteceu-me receber, durante a Resistência, uma sua mensagem escapa ao domínio das regras fundadas sobre a observa-
mensagem clandestina tão astuciosamente combinada que na minha inge- ção de certas constantes. Desde que uma inscrição passa a ser nem que
nuidade só consegui compreender o sentido literal). Mas que probabi- seja pouco desenvolvida, precisa, numa palavra, original, a ciência epi-
lidade existe disso? gráfica já não tem grande coisa a ensinar-nos sobre ela, não é mais que
um texto literário como os outros, isolado na sua singularidade.

Voltemos mais uma vez à Laudatio Thuriae: não há nada de espe-


17 O. Hirschfeld encontrou, num manuscrito do Vaticono, uma c6pio ( indepen- cificamente epigráfico na análise que se pode fazer deste grande e belo
dente da nossa) da mesma inscrição. Concorda no conjunto e manifest6 o mesma hesi- texto (a parte conservada ocupa onze páginas, na edição Durry). Pouco
toçiío e a mesma impotênci6 perante esta linha: Sitzungsberic:hte da Ac6demio das importa que tenha sido gravada a duas colunas numa placa de mármore,
Ciências de Viena, t. CVII ( 1884), p. 235. em vez de ser copiada a tinta sobre papiro. Para a comentar, a que
18 R. Aron, lntrodudion, p. 196.
ciências auxiliares se deve recorrer? Não vejo que a história literária,

104 105
DO CONHECIMENTO HISTôRICO CONDIÇõES E MEIOS DA COMPREENSAO
I
ao fazer-nos conhecer o desenvolvimento que em Roma obteve o género partículas); -ou a da literatura grega, é sobretudo do género de espécie
da laudatio fúnebre, oos ajude a situar este texto numa tradição. Como única que é o diálogo platónico que se teria de conhecer as regras ...
os restos conservados se encontram mutilados, o historiador, para preen- O que guia, orienta e determina a minha compreensão é, de maneira
.cher as lacunal, aproveitará todos os recursos da crítica conjecturai, mas geral, o que posso saber do homem grego do tempo de Platão (qual era
está-se ainda perante uma «ciência»? Nas inscrições de tipo banal- o seu mundo interior, que ideias se podem reconhecer como possíveis
aquelas ., que evocam factos susceptíveis de serem observados por repe- para ele)- e, finalmente, sobretudo o que eu sei do homem isto só, e
tição- a conjectura apoia-se sobre analogias, sobre paralelos, e vê-se do pensamento.
amiúde recompensada pela verificação experimental que representa por
vezes uma descoberta nova. Aqui, pelo. contrário, vai-se à aventura e os São ainda elementos gerais que nos permiteni a compreensão deste
complementos sugeridos são necessariamente arbitrários. Uma descoberta documento singular, -mas doravante cabe ao engenho, à capacidade
recente acaba de fornecer essa demonstração. V m novo fragmento da do historiador, descobrir a existência de analogias possíveis entre os
Laudatio veio-nos proporcionar o fim, que até aqui faltava, de dez linhas dados do documento e as realÍdades conhecidas ou experimentadas da
do texto. Os editores precedentes (e contam-se entre eles nomes ilustres: natureza humana. Como cada vez que a nossa teoria sublinha uma vir·-
Mommsen, Vollmer) tinham-se esforçado por preencher essas lacunas, tude nova a exigir do historiador, é um limite mais que se impõe à
mas, na realidade, só acertaram uma vez em oito! 19 história: um documento será exactamente compreendido na medida em
que se encontrar um historiador capaz de lhe apreciar, com maior pro-
É o caso geral: a maior parte das vezes, num trabalho histórico fundidade, a natureza e o alcance.
mesmo sem grande profundidade, os documentos a examinar não caem
sob a jurisdição destas preciosas disciplinas e o esforço de compreensão Para acabar com o exame preliminar, sublinhemos um outro limite
não se pode cindir em duas fases, uma exterior e preliminar, destinada à validade da construção histórica: por razões práticas, nem sempre é
a precisar a natureza do testemunho, a outra, mais central, visando ana- possível ao historiador trabalhar directamente sobre os documentos ori-
lisar-lhe o conteúdo. Tornam-se inseparáveis uma da outra e o conheci- ginais. Tomemos o caso das obras literárias antigas ou medievais: a
mento deste objecto singular já só se pode apoiar sobre a analogia que maior parte das vezes, o historiador consulta-as numa edição moderna
lhe descobrimos com a nossa experiência geral de todos os documentos e não pelos manuscritos que IW-las transmitiram. Mas isso equivale a
provenientes da mesma zona do passado e, mais geralmente ainda, com interpor, entre o passado «numenal» e o nosso conhecimento, ' uma
a nossa experiência do homem. camada suplementar de transformações resultante da intervenção humana.
A verdade da nossa história achar-se-á suspensa da validade das opera·
Suponhamos a interpretação de um documento tão rico na sua ções efectuadas, fora da nossa fiscalização. pelo editor, e, em primeiro
originalidade como um diálogo de Platão. Tudo aqui é singular, porque lugar, do valor das disciplinas a que este recorreu. Século e meio de
se posso invocar o meu conhecimento da língua grega, é sobretudo do experiência tornaram-nos muito mais inquietos sobre o alcance dos métq-
grego de Platão que se terão de conhecer os hábitos de estilo, de voca- dos empregados pela crítica dos textos do que oos tempos heróicos de
bulário (descendo, como se sabe 20 , até às mínimas variações no uso dal Lachmann e Madvig. Medimos plenamente tudo o que entra de arbi-
trário, de incerto, de subjectivo nesta «arte» entre todas conjecturai ...
De tal maneira que as regras práticas que damus aos novatos (ler
19 A. E. Gordon, Americ:an Journel of Arc:heeology, t. LIV ( 1950), pp. 223-226;
Durry, Revue des Etudes Letines, t. XXVIII ( 1950), pp. 81-82.
um texto na edição melhor e mais recente; estar em condições de verifi-
20 As pesquises ineugurades por L. Cempbell e W . Lutoslewski mostrarem que car o trabalho dos oossos predecessores) só têm um valor provisório.
o estudo estetfstico do emprego des pertfcules permitie conclusões precises sobre !I A um nível mais aprofundado da investigação impor-se-á o regresso
evolução do .estilo de Platão e indirectemente sobre e datação dos diversos Di,logos. aos manuscritos. Se, por exemplo, o P. M. V erheijen acaba de renovar

106 107
DO CONHECIMENTO HIST6RICO

completamente a história, tão obscura, da Regra monástica atribuída a


Santo Agostinho, foi porque, em vez de se contentar em ler a Carta 2H
na edição crítica, geralmente aceite, de Goldbacher no Corpus de Viena,
foi ao ponto de procurar os manuscritos, descobriu-os muito mais antigos s ·
do que aqueles que esse editor tinha estudado, e dessa maneira recons-
tituiu uma história da tradição desse texto cuja complexidade ninguém
ia imaginar n. DO DOCUMENTO AO PASSADO
Tem de se insistir nisso, porque a teoria clássica da «crítica externa»
desprezava esse. facto brutal: o documento que nos liga ao passado não
. é, por exemplo, o texto da De Civitate Dei, tal como o lemos na edição Não estudamos o documento em si mesmo, mas para através dele
Dombart-Kalb, mas sim os 376 manuscritos que se apuraram; sem atingirmos o passado. Chegou a altura de analisarmos essa passagem
dúvida, o conteúdo destes manuscritos já não é Santo Agostinho com- do sinal à coisa significada, do documento ao passado, processo decisivo
pletamente puro. Há a acrescentar as faltas acumuladas pelos copistas mediante o qual se realiza o essencial da elaboração do conhecimento
e as correcções mais ou menos engenhosas introduzidas por esses mes- histórico. Para fazermos essa apreciação, temos de desconfiar de uma
mos copistas ou pelos seus leitores; mas o texto «limpo e consertado» esquematização excessivamente simplista. A análise leva-nos a distinguir
que recebemos das mãos do filólogo acrescenta ainda a esses dados uma operações lógicas que de facto se encontram intimamente associadas e
camada suplementar de tratamentos, cujo valor deve ser em cada passo em constante interacção.
cuidadosamente apreciado. Porém, mais ainda do que aos erros eventuais, O historiador, como mostrámos, começa por levantar uma questão.
sou sensível à mutação substancial que o documento sofre ao passar Depois constitui um processo de documentos e aferentes, a cada um dos
pelas mãos do editor e do impressor. Foi-me possível mostrar, por exem- quais se atribui a sua nota de credibilidade pela análise preliminar.
plo, pelo estudo dos três manuscritos mais .antigos da Cidade de Deus, Imagem ainda excessivamente elementar: o progresso do conhecimento
que para ler essa obra como Santo Agostinho queria que ela fosse lida, realiza-se através desse movimento dialéctico, circular, ou melhor, heli-
tinham de se desprezar as divisões em capítulos introduzidas pelos edi- coidal, no qual o espírito do historiador passa sucessivamente do objecto
tores modernos e considerar cada livro como um todo, como um amplo da investigação ao documento que constitui o seu instrumento e reci-
desenvolvimento que nada vem retalhar 22 • Compreende-se que Helm, procamente. A pergunta que desencadeou o movimento não permanece
ao editar, no Corpus de Berlim, a Crónica de Eusébio-lerónimo, tenha idêntica a si mesma. Ao contacto dos dados do documento, não cessa
adaptado a medida de caligrafar um texto em oncial, disposto como o de se transformar:
arquétipo, tal como ele o reconstruía, da nossa tradição manuscrita.
conclui-se, por exemplo, que era absurda, anacrónica («o problema não
se levanta»), aprende-se a formulá-la em termos mais precisos, mais bem
adaptados à natureza do ob.iecto. É aí que intervém o benefício da nossa
epokhê provisória. Em vez de um interrogatório impaciente que, sem
cessar, interrompe a testemunha para lhe dizer: «Voltemos à questão»,
o historiador pergunta ao documento: «Quem és tu? Ensina-me a conhe-
21 Verheijen, Vigiliee Christienee, t. Vil { 1953) pp. 27-56; Revue du Moyen-Age
cer-te».
Letin, t. VIII ( 1952), pp. 97-122; Augustinus megister, Actes du Congràs lnternationol
Augustinien .{Paris, 1954), t. I, pp. 255-263. Mas esta pergunta implicava já uma resposta, formulada a título
22 Mélenges J. de G.hellinc:k ( Gembloux, 195 1) , t. I, pp. 235-249. de hipótese. A cada um desses regressos sobre si, a cada espira sucessiva

108 109
DO CONHECIMENTO HISTORIOO DO DOCUMENTO AO PASSADO

da nossa hélice simbólica, a hipótese é retomada, corrigida, completada, a capacidade do historiador. Conhecerei das Leis de Platão o que me
e assim, a pouco e pouco, nasce e cresce o conhecimento histórico. mostrar capaz de compreender.
Empiricamente observada, esta elaboração da história não se opera
em duas fases distintas e sucessivas: a) apreciar o valor do documento; Da mesma maneira, há todo um aspecto da história da arte bem
b) inferir. dele para o passado. Só há um processo, homogéneo: é «com- ilustrado, embora paradoxalmente, por B. Berenson ' · onde se observa
preendendo» os documentos, familiarizando-se com eles, meditando-os, o mesmo carácter imediato na compreensão: quando diante de um
retomando-os sem cessar, penetrando-os a pouco e pouco, que se chega quadro, de um monumento carregado de valores, lhe procuramos ana-
a conhecer não só o que eles são na verdade, mas também, ao mesmo lisar e aprofundar o sentido.
tempo, o passado humano cujos vestígios conservam e de que dão
testemunho. O historiador é o homem que adquire essa familiaridade A investigação não tardará a fazer com que se elaborem estas
b)
com os documentos, graças à qual acaba por saber com certeza qual perguntas, que alguns qualificariam de «mais propriamente históricas»,
é o seu sentido, o seu alcance, o seu valor - qual é a imagem do do tipo não já: «Qual é a beleza própria deste quadro?», mas sim :
passado que eles guardam e lhe levam. «Que quis fazer o pintor que o concebeu?»; não já: «Que significa por
Será um processo assim tão diferente daquele pelo qual na vida si mesmo e em si mesmo este diálogo de Platão?», mas sim: «Que quis
quotidiana, na experiência vivida do presente, se chega a conhecer, a dizer aqui Platão?». Perguntaremos, por exemplo, se ele se compromete
compreenqer, · a encontrar outrem? li: ao vê-lo viver, ao vê-lo agir, pessoalmente quanto à verdade das suas proposições, um pouco como
reagir, ao ouvi-lo falar, ao observar os testemunhos de toda a ordem numa conversa nos acontece interromper o Outro para lhe perguntar:
que ele nos dá da sua autoridade, que a pouco e pouco vamos concebendo «Está a falar a sério?». E a pergunta, no caso de Platão, toma-se amiúde
uma imagem, finalmente válida, do Ou~ro. Acontece de maneira dife- necessária, tão difícil é discernir, neste espírito subtil e neste artista
rente em história? O comércio com os documentos permite-nos final- requintado, o intervalo exacto onde se exerce o seu recurso à ironia
mente conhecer também o homem do passado como hoje o amigo herdada de Sócrates.
conhece os seus amigos.
Mas tem de se examinar de mais perto como se realiza este Seja, é o exemplo-tipo da questão disputada 2 , o elogio de Isócrates
conhecimento do passado significado. Importa distinguir vários casos, no fim do Pedro. É sincero ou irónico? Ou, a ser sincero na boca de
entre os quais existem todos os graus intermediários e cujo encadeamento Sócrates, na data em que Platão o faz falar, exprimirá um pesar amargo
é bem revelador: das promessas não mantidas que lsócrates dera na sua juventude? Ou
então, na pessoa de lsócrates, o orador-tipo, Platão não evocaria a
a) Muitas vezes, o objecto do conhecimento histórico, esse passado retórica ideal tal como ele a concebe, aquela, por exemplo, que o
que o historiador procura apreender, não é diferente do próprio ser jovem Aristóteles deve ensinar à Academia? E o campo das hipóteses
do documento estudado. O caso apresenta-se na história da filosofia e, não fica por aqui ...
mais geralmente, na história do pensamento, na história da arte, Este tipo de problema aparece constantemente. Ao lermos
na história das manifestações daquilo a que Dilthey chamava o espírito Aucassin et Nicolette, uma coisa é encontrarmos lá reflectido o ideal
objectivo (pox: uma transposição parcial do conceito hegeliano): história
· de uma língua, de uma técnica. O trabalho aqui reduz-se à compreensão.
ao Verstehen. Estamos, por exemplo, em presença de uma obra filo-
·'· Ver designadamente Aesthetic:s, Ethic:s a nd History ( trad . fr~~nc., 1953) .
sófica, as Leis de Platão: o que significa esse texto, qual é a coerência 2 A bibliografia que fornec i desta questã~ em Histoire de l'éduc:ation dan&
interna da doutrina que exprime? ... Verifica-se neste caso um conhe- l'a nt iquité (196~) .. _ pp. _ 533-534, já não está . actualizada; acrescentar, pelo menos,
cimento imediato do passado que tem como única condição ou limite R. Schaerer, La question · platon ic:ienne ( Neuchôtel, 1938).

uo 111
DO CONHECIMENTO HIST6RICO DO DOCUMENTO AO PA.SSADO

do amor cortês, outra é compreender que o autor fala disso ·para Sublinhemos de que precauções uma pessoa tem de se rodear (o
fazer troça. A resposta nunca é simples. Quem conseguirá disúrnir esforço de compreensão, dizíamos nós, ao procurar a verdade do passado,
até onde se estende a cumplicidade de Cervantes com o Quixote? exclui a credulidade): a testemunha pode ter afectado sentimentos que
de facto não tinha experimentado, pode ter procurado fazer-se valer
Problemas difíceis, que nunca se pode ter a certeza de haver no seu documento (é amiúde o caso dos autores de Memórias, que não
resolvido plenamente e que só podem ser esclarecidos por um esforço escrevem em geral para se caluniar). A verdade das conclusões obtidas
maior de compreensão interior. 1;erá directamente função da arte do historiador, da habilidade e da
c) Existe um outro caso, bem diferente do primeiro, mas onde prudência com que souber formular perguntas e respostas:
se realiza de uma outra maneira a mesma apreensão directa do passado
no documento. É quando pedimos a este, não o testemunho que pode No exemplo citado, não se deverá concluir: «Os homens do tempo
dar sobre um passado posterior a ele, mas a expressão do passado de Augusto ... ». Seria a[?ir como o Inglês lendário que, apenas desem-
que ele próprio representa. Tomemos o caso de Amiano Marcelino. barcado em Calais, anotava no seu caderno: «As Francesas são ruivas>>.
Podemos pedir ao seu livro, não uma descrição dos acontecimentos Dir-se-ia: «No tempo de Auf?Usto, o velho ideal da cidade antiga tinha
que assinalaram os reinados de Constância 11, de Juliano o Após- perdido a sua influência, porque se pode ver um esposo que se hçmra
tata, etc., mas que nos faça conhecer o homem do século IV depois de ter recusado o divórcio por causa de esterilidade ... ». Por outro lado,
de Cristo que era o próprio Amiano, tal como aparece na sua maneira não se procurará saber se o nosso homem experimentou realmente os
de pensar, de sentir, de julgar. Já não lhe perguntamos o que ele sentimentos que exprime. A questão histórica é: «Como é que este
sabia (nem se o que pretende saber é verdade), mas o que ele era. homem formulou a expressão de um amor? .. .».
A compreensão da obra proporciona-nos um conhecimento directo do
seu autor. Há um modo frequente de exploração das nossas fontes É claro, por último, que esta verdade se conterá nos limites em
históricas, um dos mais seguros e dos mais fecundos: é a maneira que se encerra sempre a reciprocidade das consciências. Mesmo na expe-
como se elabora a história da mentalidade, da sensibilidade, da atmos- riência vivida, podemos alguma vez ter a certeza de havermos penetrado
fera espiritual, do Zeitgeist de uma época ou de uma sociedade: um até às profundezas da consciência do Outro?
dos sectores mais florescentes da nossa ciência.
d) Mas, a pouco e pouco, o historiador será de toda a maneira
Volto mais uma vez ao caso da Laudatio Thuriae. Encontra-se
levado a fazer ao passado perguntas de <<facto»: esses «acontecimentos»
neste texto uma preciosa contribuição para a história do amor. O marido a que os nossos predecessores tinham tão grande tendência para reduzir
conta-nos que, como o casamento deles permanecera estéril, a esposa
a história. Ainda que rejeitemos essa concepção estreita de história histo-
lhe propusera espontâneamente que se divorciassem. Ela obedecia nisso ricizante, nem por isso seremos menos levados a procurar a realidade,
à velha tradição romana que concebia o casamento liberorum procrean-
a existência passada, de fenômenos humanos localizados no tempo e no
doruin causa, únicamente em função da família. O nosso homem, porém, espaço, e isso em todos os domínios da investigação, mesmo os mais
reage como «moderno»- diremos, sem anacronismo, como homem geralmente rebeldes à pura curiosidade histórica, como o pensamento
helenístico para quem a pessoa humana tem um valor absoluto - e
ou a arte. Em toda a parte se levantam, por exemplo, questões de data,
·recusa esse sacrifício s. de atribuição:

Para a compreensão de determinado diálogo platónico, importa


s C. 1. L., VI, 1527, 11, pp . 31-47 (ed. Durry, pp . 19-23j. determinar o seu lugar na cronologia e, por conseguinte, na evolução

112
8 113
•.,, ... ·, .

DU CONHECIMENTO HISTORIOt!J DO DOCUMENTO AO PASSADO

do pensamento de Platão; para a interpretação do sist~m~ de Aristótel:s, situação criada ao historiador pelos «acasos» caprichosos que presidem
importa que o conjunto dos seus tratados seja do proprzo mestre_ e ,nao. à sua documentação. Nenhuma das condições acima enumeradas se
como 0 quereria uma hipótese recente 4 , em boa parte do seu dzsczpulo acha, na maior parte dos casos, realizada. Elas suporiam o estabele-
cimento de proposições singulares negàtivas, isto é (todos os lógicos
Teofrasto.
estarão de acordo), a coisa do mundo mais difícil de obter.
Aqui, 0 historiador deve, desta vez, dar o salto e passar . do A independência das testemunhas? Podemos, na medida das nossas
documento para uma realidade que ele evoca, mas q~e I?:
~ extenor. informações, estabelecer as relações positivas de dependência que podem
A realidade desse passado é naturalmente muito ma1s d1f1c1l de est~­ existir entre os documentos o'u então concluir: «até mais ampla infor-
b'elecer e a parte de incerteza não tardará a ir cresce~do. A metodolo~la mação, parecem independentes». Mas quando poderemos afirmar que
positiva tinha elaborado, a esse propósito, uma doutnna de um perfetto o são? O mesmo quanto à credibilidade. A crítica interna determina
rigor, que se reconduz a isto 5 : • • • , o grau máximo de credibilidade que, atenta a nossa informação, parece
Nenhum documento, por si mesmo, prova de maneua_ md1scutív~l merecer um documento, não o seu grau real, porque não podemos fazer
a existência de um facto. A análise crítica só leva a determmar a cred~­ o recenseamento integral das causas de erro possíveis:
bilidade que parece merecer o seu testemunho. Por outro l~do, testz_s
unus testis nullus: de um só documento não se pode co~clmr a reah- mesmo que eu consiga estabelecer que a minha testemunha assistiu
dade, do facto (porque todas as nossas afirmações ficanam afectadas efectivamente à cena que descreve, que estava bem colocada para a obser-
do coeficiente de incerteza: «se se dá crédito à nossa testemunh~ ... »). var, nunca poderei saber se por pouca sorte não piscou os olhos ou não
Agora, se se chega a reunir vários testemunho~ ig~almente autonzados espirrou no instante decisivo- aquele, por exemplo, em que Napoleão,
e se as suas afirmações sobre o mesmo facto sao ngorosamente conver· na altura da sua coroação, se apoderou da coroa que lhe devia impor
gentes e é possível estabelecer que esses testemunhos são independentes Pio VIl ...
(e não derivados uns dos outros ou de uma mesma fonte)~ nessa altur~
a probabilidade de que seja lícito conclu~r pela sua veracidade torna-~e
O acordo de vários testemunhos? É preciso para isso que o objecto
maior e acaba por atingir a certeza prática. da observação tenha sido efectivamente o mesmo. Ora, dois homens
Não há nada a opor a estes princípios, a não ser que quase nun~a
diferentes, porque se interessam por coisas diferentes, porque não têm
são realmente aplicáveis. Como foi toda deduzida de uma emulaçao
a mesma mentalidade, nem os mesmos hábitos de espírito, nunca verão
consciente com as ciências da natureza. da ambição co~essada de _P~~­
exactamente o mesmo objecto no mesmo espectáculo humano colocado
mover a história à dignidade de «ciência exacta>> ~as cmsas do espm '
sob os seus olhos. É extremamente raro encontrar dois testemunhos que
a teoria positivista define as condições necessánas par~ asse~urar a
.da do Conhecer sem poder garantir a extensao, o mteresse incidam realmente e exactamente sobre o mesmo conjunto de dados de
pureza quen • f , 1 As exi- experiência, sobre aquilo a que, numa palavra, se chama o mesmo
d·o Conhecido que ' nestas condições, será
· -
de acto acesslve . d
«facto». Sem dúvida, basta, e acontece muitas vezes, que os campos de
gências levantadas desprezam as serndoes da cond"tçao
- humana, a
observação se recortem. O acordo incide então sobre a parte comum
desses testemunhos. É preciso ver, porém, que essa qualidade só pode
incidir sobre os elementos mais exteriores do real, os elementos objectivos
4 J Zürcher Aristoteles' Werlo: und Geist ( Paderborn, 1952) . ou mais objectiváveis, a propósito dos quais se pode estabelecer um
5 V.er por ~xemplo, Langlois-Seignobos, lntroduction ... , PP· 166 e ss. d? po~i-
' , f . por exemplo, a ISCUSSOO acordo, fundado sobre a verificação experimental. Mas trata-se de um
. . iio foi uma doença especificamente rancesa, ver, h b
t 1V1smo n d h d 131 prop6sito de A R om erg simples esqueleto descarnado em relação à realidade humana total, a
de G. J. Renier, History, its purpose an met o ' p. ' o .
única que merece ser procurada e conhecida, realidade complexa em que
( 1883) et W. Bauer ( 1921 ).

115
114
DO DOCUMENTO AO PASSADO
DO OONHEOIMENTO HIBTORIOO

() inquérito judiciário está para a teoria da história como os números


os gestos exteriores, as acções vtstvets são inseparáveis dos valores
inteiros estão para a teoria moderna do número, que deve abranger
psicológicos e outros valores que lhes conferem significação e alcance.
não só números inteiros, mas também números fraccionários, algé-
hricos, irracionais, imaginários, transfinitos ...
Seja o «facto histórico»: «César atravessou o Rubicão». O que
interessa ao historiador não é que o móvel constituído pelo corpo do
Perante a realidade do passado que se trata de apreender, é
citado C. lulius Caesar tenha, num instante t do dia 17 de Dezembro
menos a questão de existência que a questão de essência que preocupa
de 50 a. C. (segundo o nosso calendário), passado da margem esquerda
o historiador: estabelecer a realidade do elemento (insistimos que tanto
à margem direita do rio1.inho em questão - mas que esse «gesto» tenha
pode ser um sentimento, uma ideia como uma acção, tanto um fenó-
tido o significado político de desencadear a guerra civil... meno de conjunto como um gesto individual) importa realmente, mas
não seria bastante: sobre o esqueleto factual, tem de se poder voltar
Impressiona-nos ver como a teoria clássica que acabamos de a colocar os nervos e a carne e a pele ~ a epiderme delicada e fremente
expor mutila a realidade histórica para a poder apreender no instru- de vida. É a complexidade do real, do homem, que é objecto da história.
mento grosseiro das suas categorias. Ela é, afinal, na realidade, uma É preciso entendermo-nos efectivamente sobre aquilo a que se chama
transposição, ilegítima, das categorias da instrução judiciária 6 , que a verdade da história. Se o seu objecto é o passado humano, será
correspondem a uma ordem de preocupações muito diferente e cujo verdadeira na medida em que conseguir reencontrar, em toda a sua
objecto, sempre bastante simples, necessariamente objectivo, só parcial- riqueza. essa realidade do homem. Reduzi-lo a um corpo móvel, animado
mente se confunde com o objecto, muito mais rico, da investigação de movimentos determináveis no tempo e no espaço, não é conhecer
histórica. o homem. A teoria clássica de verificação por convergência só pode
aproveitar dos diversos testemunhos o maior factor comum, o que obriga
Collingwood, por exemplo, para expor a sua teoria da história, a desprezar o que cada um deles encerra de mais precioso, porque mais
imagina um pequeno romance policial subordinado ao tema Who killed subtil, mais matizado- mais real, porque está mais perto da inesgotável
John Doe? 7 complexidade da realidade humana.
E, efectivamente, o inquérito policial desencadeado pela descoberta Convém fazermos do conhecimento histórico uma doutrina lógica.
do assassinato é um estudo de ordem propriamente histórica: pesquisa, não direi menos rigorosa, mas menos rígida. O conhecimento deve adap-
crítica e interpretação de documentos, no caso os indícios (vestígios de tar-se ao seu objecto. Os nossos predecessores positivistas foram perse-
passos, impressões digitais) e os testemunhos recolhidos. Mas é uma guidos até à obsessão pelo ideal da «objectividade», entendida muito
história de tipo muito elementar, quase grosseiro, tão simples, tão objec· precisamente do conhecimento verificável, de alguma maneira experimen-
tivável, tão fácil de determinar, de «compreender» é o acontecimento que talmente, do conhecimento, como eles gostavam de dizer, <<Válido para
se procura reconstituir (no caso imaginado, uma punhalada). O apare- todos». O que levava nada menos que a negar praticamente a própria
cimento no universo do espírito objectivo da teoria platónica das ldeias possibilidade da história.
é também um acontecimento, mas reclama um tratamento mais delicado.
Muito logicamente, concluíam que, quando não dispomos de teste-
munhos convergentes de qualidade e em quantidade suficientes, só o que
havia era que confessar a nossa ignorância: «A única atitude correcta
6 Como bem mostrou 0 grande bolandisto P. Peeters, no suo memória Les é o agnosticismo» 8 • Mas como sobre todos os problemas realmente
aphorismes du droit dans la critique historique, em Bulletin de I'Acad. R. de Belgique,
Cl. des Lettres, t. V, XXXII (194&), pp. 81-llb. 8 La nglois -Seignobos. op. cit., p. 133, n. 1.
7 The idea of History, pp. 2bb e ss.
1:17
116
DO OONHEOIMENTU HIST6RIOO DO DOCUMENTO AO PASSADO

humanos é impossível que as condições estabelecidas se realizem, resulta provável sobre o grau e a natureza da sua veracidade e, em seguida,
que uma história estritamente conforme às exigências positivistas com- decidir se damos um passo em frente e se depositamos ou não con-
preenderia sobretudo páginas brancas. fiança nele.
Tocamos aqui na própria essência do conhecimento histórico.
Quando nos encontramos em presença de um documento, de uma Quando incide plenamente sobre o seu objecto, isto é, sobre toda a
testemunha, a nossa grande preocupação já não será perguntarmos a riqueza da realidade humana, não é susceptível desta acumulação de
nós próprios se é possível confrontá-lo com outros (de facto, ainda uma probabilidade que teoricamente poderia conduzir a uma quase certeza.
vez quanto ao essencial, o testemunho revela-se quase sempr~ único Repousa, em última análise, sobre um acto de fé: conhecemos do
no seu gênero, no seu teor, na sua orientação), se o testemunho nos passado aquilo que acreditamos ser verdadeiro, aquilo que compreen-
quis enganar, mas, antes de tudo, sabermos se compreendeu (ou, se se demos do que os documentos disso conservaram.
trata, não de um testemunho voluntário, mas de um índice implicado Não é caso para nos escandalizarmos. É ainda um facto e a nossa
pelo próprio ser do documento, saber se pôde expriÍnir) aquilo de que filosofia crítica só tem que o reconhecer (o filósofo procura a natureza
nos fala, até que ponto o compreendeu ou exprimiu, até que grau de das coisas e, quando a encontra, alegra-se. Laetatur inventor) 9 , porque
precisão, isto é, de riqueza, de complexidade, de profundidade, pôde o ser é sempre, enquanto é, superior ao não-ser. O contacto com o real,
reflectir, registar e assim nos transmitir a subtil realidade humana que por muito rugoso que seja, vale mais do que acariciar uma quimera.
procuramos apreender. A circunstância de se constatar que o conhecimento histórico deriva
de um acto de fé (porque «ter confiança» e «ter fé» são uma só coisa,
Seja o exemplo clássico do problema de Sócrates. Durante perto como o mostram o grego e o latim, 7TtGTéÚw, credo), não significa que lá
de um século, na esteira de Hegel (é mais um dos seus erros deplorá- por isso se negue a sua verdade, se negue que possa ser susceptível de
veis), entendeu-se que o Sócrates histórico era o de Xenofonte e não verdade. Mais uma vez, temos de evitar confundir rigor e rigidez de
o de Platão: não é evidente que este não passa de um pseudónimo sob espírito. É um falso rigor reduzir o racional ao apodítico, restringir a
o qual Platão expõe a sua própria filosofia? (Diremos que Platão mentiu, posse da verdade só às conquistas da dedução rnore geometrico e da
que nos quis enganar? Não, ele não escreveu os Diálogos para oferecer verificação experimental das hipóteses da indução; pesquisa pusilânime
material documental aos historiadores vindouros de Sócrates! Colocar, da segurança: uma pessoa, com medo de se enganar, reduz a razão
como ele colocou, a sua doutrina na boca do seu velho mestre era uma à impotência. De facto, uma filosofia autêntica, com o cuidado de não
homenagem prestada àquele a quem ele tinha consciência de dever tudo deixar escapar nada, será a primeira a constatar o papel, legítimo,
aqui_lo que viera a ser). Dizia-se, pelo contrário, que Xenofonte não necessário, que desempenha na vida do homem o conhecimento pela fé.
podia ter deformado a doutrina de Sócrates, uma vez que não tinha Impressiona-me ouvir, a quinze séculos de distância, a voz de Karl
filosofia nem propriamente pensamento pessoal para lhe substituir. Tar- J aspers I 0 servir de eco à reflexão tão justa de Santo Agostinho, o qual,
dou a reparar-se (apesar do aviso profético do Schleiermacher) que depois de apurar nitidamente o papel da fé em história, mostra que ela
precisamente por isso, Xenofonte não tinha talvez sido capaz de com- reaparece em muitos outros domínios do conhecimento, de tal maneira
preender grande coisa da doutrina de Sócrates e só dava dela uma que, se nos recusássemos a apelar pera ela, a acção, a própria vida, se
imagem empobrecida, banalizada até à caricatura.

É quase sempre escusado alimentar a esperança de controlar, do


exterior, a validade dos nossos testemunhos. Muitas vezes, tudo o que 9 Santo Agostinho , De Libero arbítrio, li, XII (34).
podemos fazer, como conhecemos bem o nosso documento, como nos lO La foi philosophique, conferência traduzida em francês, no colectônell 11p11-
esforçamos por entrar nele cada vez melhor, é formular um juízo recida sob este título ( 1953).

118 119
DO OONHEOIMENTO HISTóRICO DO DOCUMENTO AO PASSADO

tornariam impossíveis, omnino in hac vita nihil ageremus 11 • E é bem para tudo o que sabemos do homem, da vida, do ser e do nada) acaba
verdade que o homem e o próprio filósofo, por muito racional que seja por levar a um juízo de credibilidade, juízo fundado na razão. O histo-
e por que se queira fazer passar, não cessa de recorrer à fé, e isso tanto riador consciencioso precarver-se-á sempre contra aquilo a que a teologia
no comportamento mais banal da vida quotidiana como no exercício católica chama o erro do «fideísmo»; essa tendência para minimizar ou
mais rigoroso do pensamento puro: para negar o papel da razão demonstrativa no estabelecimento da
crença sã.
«Depositamos confiança» no horário dos comboios que nos fornece
Condição necessária, mas não suficiente: uma vez reconhecido que
o Guia dos Caminhos de Ferro, embora ele seja o primeiro a pôr-nos de
confiança não é credibilidade, que a fé não é arbitrariedade pura, não é
sobreaviso contra a sua não infalibilidade; no outro extremo, pense-se
o efeito de um despotismo da vontade que «prendesse» a inteligência
no papel do axioma em matemática, no carácter indt!monstrável dos
princípios a partir dos quais se deduz uma filosofia. (dando ainda à palavra o sentido forte que Bossuet gostava de lhe dar),
subsiste que o acto de fé continua a ser um acto livre- credere non
Não se trata de um tipo de conhecimento excepcional, que seria potest, nisi uolens 12 - que compromete todo o homem, que implica uma
reservado ao caso muito particular da fé ideológica. decisão existencial.
Voltaremos a falar demoradamente sobre este último aspecto. Limi-
Os Cristãos serão, como é natural, particularmente sensíveis a este tando-nos, de momento, . só à análise lógica do comportamento do
caso supremo, para eles especialmente importante: ao contrário de historiador, temos de sublinhar de novo a circunstância de que nenhuma
outras religiões que só põem em causa verdades eternas ou símbolos das conclusões da sua investigação, nenhuma verdade histórica é pro-
míticos, o Cristianismo repousa sobre verdades de carácter histórico priamente, no sentido rigoroso dos termos, incontestável, imperiosa.
( ... (l Encarnação, a Paixão, a Ressurreição .. .). É cristão aquele que É o que ressalta, de maneira retumbante, do conjunto dos factos reunidos
acredita Naquele em quem São Pedro acreditou. Da mesma maneira, no processo tão curioso do hipercrítico, que tem de se ter coragem de abrir
a nossa teoria do conhecimento histórico pode aproveitar de tudo o que e de considerar sem escândalo. Contém, em primeiro lugar, uma série
a teologia e, ousarei mesmo dizer, a psicologia cristãs acumularam de de experiências exageradamente paradoxais, queridas como tais pelos
reflexão em volta da noção de «fé divina»; mutandis mutatis, e com seus autores. Estes, num contexto polémico (seja para combater o cepti-
a condição das precauções necessárias a toda a transposição, poderá
cismo histórico gerado por um racionalismo demasiado estreito, seja,
dizer-se:
pelo contrário, para reconduzir à prudência o dogmatismo desenfreado
O acto de fé histórico não deve ser arbitrário, comporta preambula dos fazedores de hipóteses), procuram tornar de alguma maneira mani-
fidei racionais. O esforço de compreensão a que submetemos os docu- festo o carácter não necessário das verdades históricas, mostrando que
mentos (e que, como vimos, excede completamente os quadros da sim- se podia com todo o rigor lógico, sem cair na contradição, negar a mais
ples «crítica» externa e interna, mas apela para tudo o que podemos evidente, contestar, por exemplo a existência de Napoleão 1:
saber do meio de civilização donde os documentos saíram e, finalmente,
as mais célebres destas «experiências para ver o resultado» são efecti-
vamente as de R. W hately, Historie doubts relative to Napoleon Buona-
11
Confissões, VI, V (7) : tem de se reler tod~ .a passagem. Not~r-se-6 il nitidez
dos termos que dizem respeito à história: «,( Mihi) consideranti qu~m i_n numerabilia
erederem quae non uiderem neque cum gererEintur adfuissem, sicut tam multa in
h isto ria geiltium ... ». 12 Santo Agostinho, Traetatus in lohannem, 26, 2 (P. L., ·t. 35, c. 1607).

120 121
DO CONHECIMENTO HISToRIGO DO DOCUMENTO AO PASSADO

parte 1 s e de J.,B Péres, Comme quoi Napoléon n'a jamais existé 14 ; o zamos ainda com proveito, pelos seus comentários, a sua grande edição de
primeiro, futuro arcebispo (anglicano) de Dublin, membro desse curioso Themistios, e as suas Acta conciliorum marcaram uma data no pro-
grupo de liberais de Oxford, cuja importância já assinalei, pretendia gresso dos estudos eclesiásticos), mas que se lembrou, a partir de
mostrar, levando as coisas até ao limite, o que tinham de excessivas :1s Agosto de i690, de contestar a autenticidade da maior parte das lite-
exigênciQS racionalistas de Hume contra os milagres evangélicos 15 ; o raturas grega e Latina, clássicas ou cristãs. Os seus juízos são de uma
segundo, um antigo oratoriano que veio a ser bibliotecário de Agen, arbitrariedade extravagante: condena a Eneida, mas aceita as Geórgicas,
faz de Napoleão um mito solar, para ridicularizar a teoria, no seu temTJo da mesma maneira que de Horácio aceita Sátiras e Epístolas, para rejeitar
famosa, de Ch. Fr. Dupuis sobre «a explicação da fábula por meio da as Odes. Todos estes apócrifos teriam sido integralmente fabricados por
astronomia» 16 • Não são os únicos casos conhecidos. Quando Max Müller monges do século X IV!
retomou à sua maneira a hipótese de Dupuis sobre a origem solar dos Na medida em que se pode tentar compreender este caso verdadei-
mitos gregos, viu-se circular entre os estudantes de Oxford um folheto ramente limite 18 , parece que o ponto de partida desta construção insen-
anónimo: Como Max Müller nunca existiu "... E eu próprio, numa sata teria sido a preocupação, ingenuamente interessada, de retirar aos
polémica contra um desses amadores que contestam, com uma certa maus jansenistas as armas que a obra de Santo Agostinho lhes fornecia,
facilidade, a existência de Jesus, me tinha proposto demonstrar que porque, segundo parece, foi da autenticidade dos Padres da igreja que
Descartes era também um mito todo ele criado pelos jesuítas de La ele primeiro suspeitou: explica-nos complacentemente como, apenas fabri-
Fleche, preocupados em fazer reclamo do seu colégio. cadas, por meados do século XIV , as obras dele foram utilizadas peios
heréticos, como Wiclef, antes de o serem por Lutero e Calvino!
Ao lado disso temos, e o caso é ainda mais revelador, interpre- O P. Hardouin não é um fenómeno isolado. Pela mesma altura,
tações também perfeitamente lógicas, coerentes, sem depararem com viu-se eruditos protestantes. inquietos pelos reforços que a apologética
nenhuma impossibilidade racional absoluta, que desta vez foram sus- católica encontrava nos monumentos das catacumbas romanas 19 , mete-
tentadas com a maior seriedade pelos autores, para quem eram uma rem ombros à tarefa de negar o carácter cristão destes cemitérios subterrâ-
autêntica verdade, mas que a unanimidade dos seus confrades, de todos neos e atribuírem as respectivas pinturas a falsários da idade Média 20 •
os técnicos competentes da história. consideram como evidentemente No início do século XIX, um certo P. J. F. Muller, esse movido
falsas, totalmente inaceitáveis, indignas mesmo de serem refutadas, a pela paixão nacíonal, pretendeu que os documentos relativos à Idade
não ser por um encolher de ombros. Média germânica tinham sido falsificados por estrangeiros ciumentos,
que quiseram fazer esquecer que os Alemães foram então o povo mais
Vou citar o caso verdadeiramente espantoso do sábio jesuíta Jean civilizado e politicamente mais unificado da Europa! 21
Hardouin (1646-i729), que foi um grande erudito e em múltiplos domí-
nios (numismática, filologia, etc.), um bom servidor da história (utili- /
18 Porque é difícil reconhecermo-nos no meio desta obra imense e confuso,
cuja bibliografia é complicodo pelo existêncie de edições sub-reptícios ou usurpadas,
de protestoções ou de retratações cuja sinceridade é suspe ita, etc . Ver, por exemplo
1S Londres, 1819, omiúde reeditedo. Veyssiere de la Croze, Vindiciae veterum scriptorum contra Harduinum ( Roterdão, 1707).
14 Agen, 1817 (ou 1827); numeroses edições; um o dos primeiras oste nto o 19 Que a obro póstuma de Ant. Bosio, Roma subtarranea novissima ( Romo,
título significativo de Le nouveau Oupuis ou. l'lmagination se jouant de la Vérité. 1651), ocebavo de revelo r.
u Whetely aplice vários vezes as regras formuledes por Hume, no seu Ensaio 2o G. Bu rnett, Letters ( from) Switxerland . . . ( Roterdão, 1686), pelo menos cinco
110bre os milagres (que foz parte de Enql.'iry concerning human understanding). edições em que rente anos : F.-M . Misson , Nouve au voyage d'ltalie (Heie, 1691), várias
16 Tftulo de umo memório oporecido em 1779-1780, no Journal des Savants; ~ edições e troduções em inglês, alemão, holandês; P. Zorn, Disse rtat io historico-theolog ica
suo grande obro é L' origine de tous les cultes ou la religion universelle ( 1795 ). de Qlltacumbis. . . ( l.eipz-ig, 1703) .
17 Troduzido em frencês, no revisto de fo iclo re Mélusine, t. 11, c. 73 e ss. 21 Cf. G. J. Reniet, Hi1iory, ih purpose and method, p . I H .

122 123
DO CONHECIMENTO HIST6RIOO DO DOCUMENTO AO PASSADO

Seria fácil multiplicar os exemplos e fornecer alguns bastante investigação histórica. Há zonas tranquilas onde os testemunhos são
recentes ... aceites sem dificuldade pelo seu valor facial, há outras, pelo contrário,
onde reinam inquietação, escrúpulo e desconfiança. Que contraste, por
Pode dizer-se que rejeitamos estas ideias quiméricas como a Aca- exemplo, quando se passa (trata-se, contudo, dos mesmos séculos, do
demia das Ciências rejeita as comunicações que todos os anos, segundo mesmo meio de civilização) da história do Império Romano para a das
parece, amáveis loucos não deixam de lhe enviar, sobre o valor erróneo origens cristãs!
de 7t ou a possibilidade do movimento perpétuo? Não, as coisas são
muito diferentes, porque nós não podemos propriamente descortinar O contraste pode analisar-se na obra de um mesmo autor: temos
nos nossos hipercríticos verdadeiros paralogismos nem opor-lhes evi- o caso- trata-se de um digno sucessor do P. Hardouin- de Polydore
dências realmente decisivas. A razão histórica situa-se ao nível do possível, Hochart, um honesto professor do ensino secundário francês, que consa-
do (mais ou menos) provável. Propõem aos nosso assentimento, a tomar- grou dois volumes, formato in-8:, grande, a contestar a autenticidade dos
mos as coisas pelo melhor, pelos testemunhos que nada impede que se acei- Anais e das Histórias de Tácito 23 , que, segundo ele, seriam falsificações
tem, que as boas razões nos encorajam a aceitar; mas que responder àquele devidas à pena de Poggio, o célebre humanista do século XV (via, por
que acha que estes motivos de credibilidade não são suficientes? Conhe- exemplo, nos Anais, lll, 58, onde se trata da proibição, dirigida aos fla-
ce-se a resposta de Mons. Duchesne a um contraditar que lhe tinha mínios de Júpiter, de saírem da Itália, um eco das polémicas do tempo
chamado hipercrítico: «E se eu lhe retorquir que o senhor é que é sobre a estadia dos cardeais longe de Roma) 24 • Esta hipótese encontrou a
hipercrítico?» mais total indiferença. Manuais ou bibliografias nem sequer a mencionam.
Não se pode obrigar ninguém a aderir à fé: daí (cada geração de O mesmo Hochart rejeitou, com a mesma falta de boas razões, o livro
historiadores faz essa experiência) o carácter apaixonado, o azedume, a das Cartas de Plínio o Jovem, contendo as famosas cartas X, 96-97, sobre
infinidade das discussões suscitadas por tais hipóteses hipercríticas: uma os Cristãos da Bitínia 2 G. Mas, desta vez, como tocou num desses proble-
pessoa não consegue fazer-se entender, fazer com que partilhem a sua mas asperamente contestados, vê-se atendido e devidamente citado (só
convicção ... com o inconveniente de ver que lhe censuram a sua falta de discerni-
Sem dúvida, é claro que uma espécie de unanimidade não tarda a menta) por quem retoma um pouco a fundo o exame da questao - u.
formar-se, se formou, por exemplo, desde o século XVII, contra este
pobre Hardouin; portanto, talvez não seja impossível definir de c?mu~ Porque é que o problema do Cristianismo continua a ser, para
acordo aquilo a .que se poderia chamar a zonà correcta de aphcaçao muitos dos nossos contemporâneos, uma questão posta, actual, imperiosa,
da razão histórica, a standard way of thinking about its subject-matter 22 que põe em jogo a sua opção fundamental sobre a vida? Desde logo,
que se possa qualificar de normal. Sem dúvida, e é efectivamente nesse como nos havíamos de admirar que, pararelamente à posição existencial,
sentido que me parece possível defender contra o cepticismo a validade cresça a exigência crítica? Neste domínio, onde tod.a a afirmação histórica
da história (que se deve procurar não no inacessível do apodítico, mas constitui por si mesma uma razão suplementar para acreditar ou para duvi-
no plano do «praticamente satisfatório»), mas tem de se precisar as con- dar, é natural que o historiador avance com circunspecção, sonde, por
dições lógicas de um tal acordo.
Constatemos, em primeiro lugar, que, se este acordo existe, não se
estabelece ao mesmo nível de exigência crítica em todos os domínios da
23 De l'authentieité des Annales et des Histoires de Taeite ( 1890); Nouvelles
eonsidérations au sujet des Annales et des Histoires de Taeite ( 1894) .
24 Nouvelles eonsidérations ... , pp. 21 I e ss.
25 Etudes au sujet de la perséeution des ehrétiens sous Néron ( 1885), pp. 79-143.
22 W. A. Wolsh, lntroduetion to Philosophy of History, p. 96.
zs Assim Durry, ed. de Pline le Jeune, Lettres (Livre X), col. «Budé» ( 1947), p. 7'J.

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DO CONHECIMENTO HISTORICO DO DOCUMENTO AO PASSADO

assim dizer, a cada passo onde vai pôr o pé, digamos sem metáfora: os factos históricos, conhecidos pelo tetemunho da experiência de outrem,
que ele reclama aos documentos os seus títulos de credibilidàde com uma seriam objecto de ciência. A decepção só existe em relação a essas
particular insistência e, em cada caso, só se decide a atravessar os ilusões. De facto, todas as observações precedentes só o que fizeram foi
umbrais depois de longos debates interiores. ilustrar o facto fundamental: o conhecimento histórico, que repousa
Mas é preciso sublinhar- a história positivista, demasiado orgu- sobre a noção de testemunho, é afinal uma experiência mediata do real,
lhosa do título equívoco de «ciência» que envergava, evitava voluntaria- por personagem interposta (o documento) e não é, portanto, susceptível
mente reconhecê-lo - que estas conclusões históricas de tão grande de demonstração, não é propriamente uma ciência, mas um conhecimento
importância para a fé religiosa dependem já de si da categoria gnoseo- de fé.
lógica da fé: a análise crítica, por muito longe que seja levada, nunca Desde logo se torna possível determinar, como verificamos que o~
sairá do exame dos motivos de credibilidade, não poderá jamais concluir historiadores determinam na prática de feito, o intervalo útil onde se pode
pela realidade do passado, se não intervier a vontade de acreditar, de eficazmente exercer a exigência crítica. É amiúde trabalho perdido
«depositar confiança>> no testemunho dos documentos. levá-la longe de mais, porque não tarda a chegar o momento em que
A experiência do hipercrítico põe-nos frequentemente em presença o crítico não revela nada mais que o princípio geral: o juízo histórico
daquilo a que o teólogo no seu domínio chamaria a obstinação na incr~­ depende da ordem do provável, não da necessidade. É verdade, não há
dulidade. Basta que um historiador esteja animado por quelquer paixão dúvida, que as coisas poderiam sempre ter-se passado de outra maneira;
profunda (e a simples curiosidade, como o moralista bem sabe, pode-se todo o testemunho pode ser contestado, bem o sabemos! Procuremos,
tomar uma paixão terrível) para que, antes de se decidir a conceder portanto, compreender antes o nosso documento, ver o que pode saber d0
o seu crédito, se ponha a exigir sempre mais dos seus documentos, que seu ser real e o que é razoável tirar de lá ... Razoável, sem mais; a quem
os examine com um olhar cada vez mais desconfiado, e adeus possibi- é mais exigente tem de se responder, como a cortesã veneziana respondia
lidade de concluir! Existem desta maneira, quase em toda a parte a Rousseau: «Lascia le donne e studia la matematica», que abandone a
da história, pontos cancerosos onde a discussão se eterniza, se envenena, história e se limite às matemáticas, porque é o único domínio onde o espí-
onde a bibliografia prolifera, sem proveito positivo. rito geométrico pode encontrar um terreno de aplicação legítimo e uma
Como se vê de tempos a tempos a epidemia alastrar, surgir as dúvi- plena satisfação.
das, aparecer uma nova questão submetida à disputa, há a grande Quanto tempo perdido para retomar o exemplo tão impressionante
tentação- e temos de saber fugir a ela - de sucumbir ao cepticismo e da história das origens do Cristianismo, tanto •pela apologética cristã
de concluir: «Em história, nada é seguro; o que tende, no limite, a ser como pela contra-apologética dos seus adversários; uns e outros agravaram
«certo», é menos o facto bem atestado do que aquilo que ninguém achou inutilmente o debate, uns tentando fazer da história uma «demonstração
ainda útil contestar 27 ; por isso a verdade histórica só é válida para evangélica» e como que uma máquina de converter, os outros procurando
aqueles que querem essa verdade» _28 • estabelecer a ilegitimidade de uma adesão pela fé teologal aos artigos
Mas seria ir longe de mais. O cepticismo só é legítimo em referência históricos do Credo, quando a crítica só o que faz é sublinhar o seu
ao dogmatismo positivo cujas raízes, como se sabe, mergulham até Kant, carácter não necessário e, se se quiser, improvável (mas a fé cristã sempre
para quem, ao contrário de um racionalista consequente como Descartes, implicou um certo elemento, específico e essencial, de obscuridade,
«porque vemos agora num espelho de maneira enigmática» 29 e, quanto à
«verosimilhança», ela apresenta-se paradoxalmente à razão como «escân-
dalo» e «loucura») 30 •
27 Como eu escrevie, orrebotodo pelo poixão polémico, em 1939: Tristesse de
l'historien, p. 3b. 29 Cor., XIII, 12 .
28 lbid., p. 37; cf. R. Aron, lntroduction, p . 88. so Cor., I, 23.

126 127
DO ·CONHECIMENTO HIST6RIOO DO DOCUMENTO AO PASSADO

Gostaria de pôr termo a este capítulo sublinhando as consequências limitar a tempo a nossa curiosidade, exercer os nossos esforços nas con·
práticas que resultam desta análise. Há muito a dizer sobre à inconsciên- dições e nos limites em que eles se podem realmente mostrar fecundos.
cia verdadeiramente culposa de muitos historiadores relativamente 'is Mo~s. Duchesne soube extrair de São Paulo um preceito bom para
servidões que limitam a fecundidade do trabalho histórico, sobre a ligei- meditar: Non plus sapere quam oportet. sapere sed sapere ad sobrieta·
reza imperdoável com que levantam, como que gostosamente, problemas tem 8 1.
que deveriam saber que são, para eles e para nós, insolúveis. Não somos
Deus, não podemos saber tudo. Ao contrário das ciências da natureza,
onde, nos limites da experiência comum (no intervalo entre o infinitamente
grande e o infinitamente pequeno), é sempre possível aumentar a precisão
da experiência, em história, a precisão depressa cresce à custa da certeza.

Seja uma das questões mais disputadas de há uma geração para cá:
a conversão de Constantino. Tomando as coisas de maneira geral, pode-se
dar como assente (nos limites da «certeza>> histórica) que, depois da
vitória de Constantino sobre Maxêncio, a política religiosa do Império
Romano enveredou definitivamente, em oposição com a linha geral defi-
nida por Diocleciano, num sentido favorável ao Cristianismo, que o
próprio Constantino se mostrou rapidamente cada vez mais simpático
a esta religião e que morreu baptizado. Pode-se procurar ir um pouco mais
longe, fazer, por exemplo, um esforço por datar com alguma precisão
(graças aos documentos legislativos e sobretudo numismáticos) o apareci-
mento das primeiras manifestações oficiais desta tendência pré-cristã.
Quanto a cingirmos mais de perto a evolução pessoal do próprio impe-
rador, a sabermos se ele efectivamente teve uma visão na noite de 27 para
28 de Outubro de 312 e o que ele viu ou julgou ver nesse momento, é
completamente vão despender esforços, na falta de uma documentação
adequada: não possuímos sobre a corte de Constantino o eqnivalente
às Efemérides de Alexandre (ou, nos tempos modernos, o Journal de
Dangeau), nem sobre a sua vida interior Confissões do valor das de
Santo Agostinho (ou de Rousseau.)

Temos de saber reconhecer de boa vontade as nossas servidões


quanto aos documentos, medir o seu alcance, saber o que é possível extrair
deles (por muito engenhoso que seja, o historiador não pode extrapolar
indefinidamente o testemunho das suas fontes, fazê-las dizer coisas dife-
rentes daquilo que elas por natureza devem dizer). Temos de saber reco-
nhecer também as nossas servidões quanto à lógica, medir as nossas pró- 81
Pref6cio dll SUil Histoir11 encienne de l'~glise, t. I, p. XV, citllndo Rom.,
prias forças, não prometer mais do que aquilo que podemos cumprir, saber XII, 3.

9
128 129
6

O USO DO CONCEITO

Investigação, compreensão, exploração dos documentos: é assim


que o espírito do historiador constrói uma resposta à pergunta por meio
da qual avançou à descoberta, ao encontro do passado. Retomando a
análise num grau superior de abstracção, temos agora de precisar, de um
ponto de ,vista lógico, como, por que meios, com que instrumentos se
efectua esta elaboração. Isto tem importância, porque todo o problema
da verdade da história está suspenso da validade destas operações men-
tais, pelas quais se efectua a passagem, a mutação do «númeno» para o
conhecimento, da «realidade» humana, que desenrolava · a sua evolução
no passado, para a história.
O instrumento essencial empregado parece ser o conceito: conhecer,
aqui conhecer historicamente, é substituir a um dado bruto, de si inapreen-
sível, um Sistema de conceitos elaborados pelo espírito, e isso desde que o
conhecimento histórico aparece no historiador, anteriormente a toda a
preocupação de redução a uma fórmula, de expressão literária para
uso de um público. Como muito bem viu Croce 1 , o historiador não
pode apreender seja o que for do passado, nem que fosse o «facto»
mais elementar, o mais simples, o mais objectivo (digamos, por exemplo:
a morte de J,úJio César), sem o «qualifican>: ninguém se pode contentar
em dizer que existiu, que foi, sem precisar de alguma maneira o que
foi; em termos rigorosos, Croce analisava o mecanismo invocando o prin-

1 Logice come seienze del concetto puro, pp. 184-185; douhina retomado nas

suas obras ulteriores, como La storia come pensiero e come azione, trad. francesa, p. 58.

131
DO OONHEOIMENTO HIST6RIOO O USO DO OONOEITO

cípio lógico da indissolubilidade do predicado de existência e do predicado dir~ta ~o passado~ estes conceitos, obtidos por um processo de esque-
de qualificação no juízo particular 2 • m.atizaçao, o que nos forneceram foi uma imagem mutilada dessa reali-
Mas como qualificar o passado sem lhe dar uma forma que o da~e humana. •Para ~eflec.tir a sua ri~uem de maneira mais precisa e
espírito possa apreender, um rosto que o olhar da consciência possa malS ':'mpleta:. sem jamais nos gabarmos de a esgotar, teremos, sem
ver, um nome, enfim- por intermédio, por meio de um conceito elabo- re~unciar a utiliZar esses conceitos científicos, de os completar com uma
rado ad hoc pelo esp1rito humano? Que ilusão poder atingir «as próprias séne ~~_outros conceitos, esses especificamente humanos, que não só nos
coisas», o passado «tal como ele foi realmente»! Seria contraditório perm1tirao apreender melhor a realidade histórica, mas lhe conferirão
pretender conhecer sem utilizar os instrumentos lógicos do conheci- uma es~ru~ura dotada ~e um alto grau de inteligibilidade. Serão as noções
mento. Mostrá-lo-emos sem dificuldade ao examinar o caso do exemplo ~e repubhca, monarquia, aristocracia, legalidade; ditador, senador, nobi-
escolhido, o assassinato de César. Que significaria conhecer esse episódio lztas; conspiração, ambição, liberdade, ingratidão, desespero ... a
do passado; «!indo às próprias coisas»? À custa de muitos esforços, O problema, para nós, é determinar a validade destes conceitos
chegar-se-ia quando muito à narração que passamos a apresentar. ~ sua adapt~ção. ao real, a sua verdade, donde depende, em última anã~
lise, ~ da históna. Tem aqui de se distinguir vários casos: é por não 0
Os Idos de Num instante t do universo (que se poderia determinar por referência à ter feito que a teoria da história se contentou vezes . de mais com um
Março do precessão dos equinócios e aos movimentos aparentes da Lua e do Sol), esq~em~tism?. simplista e inadequado. Nem todos os instrumentos que
ano 44 a. (. num ponto da superfície terrestre definido pelas coordenadas x• de lat. a históna utilim têm a mesma estrutura lógica ou o mesmo valor. Pro-
pelas 11 horas N. e y• de long. E. Greenwich, no interior de um espaço fechado com
da manhã
ponho que se distingam, pelo menos, cinco grandes categorias:
a forma de um paralelepípedo rectangular, onde se encontravam reuni-
Roma
dos cerca de 300 indivíduos machos da ~pécie homo sapiens, um novo ~) A. hist.ória utiliza, em primeiro lugar, conceitos de ambição
a cúria
indivíduo pertencente à mesma espécie entrou lá dentro, descrevendo propnamente umversal, isto é, susceptíveis de serem aplicados ao homem
O Senado
trajectória rectilínea. No instante t + n, enquanto os outros indi·víduos de ~ualquer época. ou meio; os partidários do relativismo histórico (há
César
presentes oscilavam · ligeiramente em torno da sua posição de equilíbrio, ~uitos entre os historiadores, quer tenham consciência disso, quer se
Em estilo doze puseram-se em movimento, descrevendo, a uma velocidade acele-
~orem como tal) encolhem aqui os ombros com desdém (mostrando
parlamentar : rada, trajectórias convergentes que alcançaram no ponto m a trajectória
movimentos swples desprezo pelo «chavão do homem eterno idêntico a si mesmo
do precedente. Na extremidade preênsil dos membros superiores direitos
diversos através dos séculos», esse «não sei que homem abstracto, eterno, imutá-
dos doze, havia pirâmides afiadas de aço que, graças à força viva, pro·
Bruto, vel no seu ~undo e perpetuamente idêntico a si mesmo» 4. No entanto,
Cássio, ele. duziram chagas penetrantes no corpo do dito primeiro indivíduo, arras- antes ~e se ~t~~essar pelo que no homem é singular ou especial de um
Punhais tando consigo a morte. tal me10 de CIViliZação determinado, é preciso que o historiador apreenda
o homem enquanto puramente e simplesmente homem. Quem de entre
Como podemos ver, não apreendemos directamente as coisas tal
como elas na realidade se passaram. Pensamo-las, isto é, apreendemo- nós _pode ~m s~ instante pensar o passado humano sem apelar para as
noçoes uruversaiS de homem, homo ou vir, mulher, vida, morte? ...
-las por meio de conceitos, escolhidos entre aqueles que foram elabora-
dos pelo homem, em ordem à construção das ciências da natureza,
mecânica, biologia, etc. Em IVez de nos permitir uma apreensão mais
s O exemplo escolhido por Croce. é o de um11 fr11se de Tito Lfvio XX II
XLIV, I que põe em. j.ogo _os conceitos de: homem, guerrll, exército, perseguiçiío, ~str11 da·.
t~ct~mp!lmento, forhfiCIIÇilO, sonho, ret~lidade, amor, 6dio, p6tria, etc.
2 Noções elaborlldlls por Croce em Logica .. . , pp. 103-113. • Cf. L. Febvre, Combats pour l'histoire, p. 21.

132 133
DO OONBEOIMENTO HIBTtJRIOO O USO DO CONCEITO

Tomemos um exemplo menos grosseiro: se, na esteira de Tucídides, o historiador permanece as mais das vezes prisioneiro ·d a óptica parti-
procuro conhecer a história política ou cultural de Atenas nos anos que cular que lhe impõe, ou pelo menos lhe sugere, a sua mentalidade pessoal,
precedem imediatamente a guerra do Peloponeso, serei levado a pro- em larga escala pedida à mentalidade comum · do seu meio e do seu
nunciar a todo o instante o nome de Péricles, que enche o horizonte tempo: frequentemente, se não tiver cuidado, julgará pensar o homem
desta história. O uso deste nome supõe a noção de «personalidade», a em termos de validade universal, quando o que faz é imaginá-lo através
ideia de que, através de todas as modificações biológicas e psicológicas, das formas pa11ticulares que vai buscar à experência do seu tempo. Daí
qualquer coisa de permanente, de coerente e de uno persistiu, durante a o anacronismo. Esses instrumentos imperfeitos não lhe p~rmitirão apreen-
sua vida, em Péricles: factor de inteligibilidade. der, sem os deformar, os homens do passado, enquanto são outros, dife-
rentes. Com razão o historicismo denuncia o perigo de um dogmatismo
Dizíamos «conceitos de ambição universal», para nada prejudicar ingénuo que, querendo ignorar a história, só leva a um pseudo-univer-
da sua ,validade. Trata-se efeotivamente de uma classe heterogénea que salismo falacioso.
se tem de analisar com precaução. A história vai buscar alguns destes
conceitos às ciências da natureza: o homem César era, em primeiro lugar, Por exemplo, o dos clássicos franceses, que julgavam só se inte-
esse corpo dotado de uma certa massa e, como tal, susceptível de acele- ressar pelo homem em geral; mas quando falam de reis e de princesas,
ração; em seguida, esse corpo vivo, susceptível de tais afecções somáticas: a propósito dos heróis de Homero, transpõem ingenuamente para Aga-
o conhecimento histórico de César deve integrar tudo o que a mecânica memnon ou lfigénia os dados da sua experiência da vida na corte em
e a biologia podem apreender deste objecto. Outros, muito mais nume- tempos de Luís XIV ...
rosos, provêm das «Ciências do homem», sociologia, psicologia, moral
(«Nero era cruel>>) ... A validade, a universalidade real destes conceitos É mais fácil denunciar os erros, bem patentes, dos nossos' ·prede-
acha-se evidentemente .suspensa do valor das ciências que os elaboraram cessores, do que evitar, por nosso .turno, cometer semelhantes extrapo-
e é relativa ao grau de verdade de que são susceptíveis, no estado atin- lações. Num sentido, toda a experiência histórica se a:presenta, rpara o
gido pelo seu desenvolvimento. A proposição «César era calvo» utiliza o investigador, como uma ascese onde, ao contacto dos documentos•.
conceito verdadeiramente universal. bem definido pela ciência médica, aprende a pouco e pouco a despojar-se dos seus preconceitos, dos seus
de <<calvície». ·<(Nero não liquidara o seu complexo de Édipo», pelo con- hábitos mentais, da sua forma excessivamente particular de humanidade
trário, põe em causa uma disciplina, a psicanálise, cujos métodos, alcance - a esquecer-se de si mesmo para se abrir a outras formas de experiên-
exacto, valor eX!plicativo, são ainda discutíveis: por isso o uso que ·O cia vivida, para se tornar capaz de compreender, de encontrar outrem.
historiador deles fizer se vê afectado por um coeficiente variável de Se passarmos da moral à lógica e procurarmos precisar ·como isto
legitimidade. se toma possível, é preciso responder que esse ideal, difícil, e que só
Uma outra espécie do mesmo género é representada pelas ideias parcialmente será alguma vez atingido, impõe duas regras de método ao
sobre o homem, as coisas humanas, a humanidade, que o historiador, historiador: que ele aprenda primeiro a pensar com rigor, a dar um
conscientemente ou não, recebe do respectivo meio de civilização: a sentido preciso a todas as palavras que emprega (um conteúdo definido
língua do seu povo, as ideias dominantes da sua época (Zeitgeist), a ideo- a todos os conceitos de que se serve), isso como reaoção contra os hábi-
logia da classe social, a filosofia que o ensinou a pensar. Foi aqui que tos da linguagem comum.
a crítica dos relativistas encontrou ampla matéria onde se exercer e nos
traz uma contribuição útil. Porque se o «historicismo» (tudo no homem Assim, no domínio relativamente simples da história militar, a que
é relativo ao seu tempo) constitui, como voltaremos a ver, uma conclu- dar o nome de «vitória»? Matar mais gente do que aquela que se_perde?
são filosófica preguiçosa e um erro, representa uma reacção ilegítima Ganhar terreno? (Para os Gregos do tempo de Tucídides, e;a ficar
a um conjunto de factos bem observados. É por demais evidente que senhor do campo de batalha, poder enterrar ps seus mortos e elevar

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DO OONBEOIMENTO BlBTóRIOO O UBO DO OON OE ITO

um troféu). Os modernos convencem-se que fizeram progredir a noção Concluiremos destas observações que a universalidade ou a gene-
ao defini-la «o facto de impor a própria vontade ao adversário»- mas ralidade, a validez dos conceitos utilizados pela história são efectiva-
em qui e até onde? mente, não é preciso dizer relativos, mas dependentes, não propriamente
da personalidade, da mentalidade, do tempo, do historiador, mas da
Depois, quando se torna evidente que tal conceito contemporâneo verdade da filosofia, implícita e - é preciso desejá-lo - explícita, que
não é aplicável assim aos dados do passado, construir, sempre em plena lhe permitiu elaborá-los. Todas as nossas ideias sobre o homem, qu~
consciência e com todo o ·rigor, a partir dos dados da eX1Periência, um constituem o instrumento por meio do qual nos vamos arriscar a apreen-
conceito mais geral que, por abstracção ou ·t:ransposição, 5e toma apli- der o passado humano, ligam-se a uma certa filosofia do homem; a
cável a um domínio mais largo. verdade destes conceitos, que implica os seus limites de validez, condi-
Tem de se ter aqui o maior cuidado em não passar depressa de dona a verdade do conhecimento histórico. Não é ao historiador; a não
mais da generalidade, maior ou menor, adquirida por tais conceitos, ser por acidente, mas ao filósofo enquanto tal, ao antropólogo, que per- ·
para uma universalidade no sentido próprio e rigoroso. Temos de des- tence estabelecer, precisar, verificar esta validez. A história não se sus-
confiar das armadilhas que as astúcias da imaginação estendem à razão: tenta só por si, como sonhavam os positivistas. Faz parte de um todo,
a filosofia das ciências (da natureza) dirige aqui ao teórico da história de um organismo cultural onde a filosofia do homem ,faz como que as
advertências que convém meditar. vezes de eixo, de madeiramento, de sistema nervoso. Segura-se e cai
com ele. Temos de ousar reconhecer este carácter fortemente estrutu-
Quando a experiincia científica se estende a novos domínios, des- rado do conhecimento e a unidade que liga as diversas manifestações do
cobre-se que os conceitos utilizados até aí dependem estreitamente das espírito humano.
condições experimentais em que tinham sido elaborados.
É flagrante em física, ·mas não é menos verdade nas matemáticas. b) Haverá o cuidado de distinguir os verdadeiros conceitos assim
Euclides, por exemplo, julgava utilizar um conceito de «espaço» verda- elaborados por generaliza~o. do uso analógico ou metafórico que o his-
deiramente universal. Desde Lobatchevski e Riemann, aprendemos a toriador pode fazer de uma imagem singular.
descobrir os caracteres particulares do espaço euclidiano (homogéneo,
a três dimensões, sem curvatura, infinito), e a sua dependência evidente Por oposição a <<Nero, parricida>>, consideremos a proposzçao
quanto aos dados empíricos. <<Nero foi um tirano». Para sermos rigorosos e verdadeiros, temos de a
O mesmo acontece em história. A proposição «Nero foi um parri· precisar assim: «0 comportamento de Nero para com a aristocracia
cida» serve-se de um conceito na aparincia bem universal, mas a defini- senatorial, considerado do ponto de vista desta e julgado. em função das
ção «o parricida é o assassino de um dos dois paiS>> implica a noção de normas que ela admitia, apresentou os mesmos caracteres de crueldade
autor responsável, o que a particulariza e a torna, por exemplo, inapli- e de desigualdade que aqueles que a tradição democrática grega dos
cável a uma sociedade «primitiva» que praticasse o sacrifício ritual dos séculos V e IV se comprouve em sublinhar na recordação que conser-
velhos. vava dos Tvpa:vvoL do século V I».
Muitas vezes, só a experiência (quer a do presente, quer aquela, Separo-me aqui de Croce ~ que, preocupado em fornecer uma aná-
sempre renovada e enriquecida, do passado) ensinará a discernir estes lise rigorosa do trabalho do historiador, se pôs a descrevê-lo em termos
limites. Mas não será caso para se tirar deste facto conclusões cépticas.
Só representa uma dificuldade para um racionalismo estreito e rígido.
~ ~ um dos pontos m11 is firm es do pen s11me nto «proteico» de ·C roce . Volt11 cons- ·
Uma teoria do conhecimento autêntico não experimenta dificuldade em t11 ntemente 11 ele em Logice ... , p p. 103 e ss.; 108 e ss:; Teoria e sto~ie delle storiogre-
reconhecer a interferência inevitável e a colaboração necessária entre a f ia, p. 49; La storia come pensiero e come azi one, trad ução f rancesa, pp . 130 e ss. ; 227 e ss ..
experiência e a reflexão. etc .

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DO CONHECIMENTO HIST6RICU O USO DO CONCEITO

de lógica formal: o conhecimento histórico seria um conjunto de juízos levando cada princípio ao seu limite numa orgia de experiência e de
do tipo S é P, I é V , afirmando de um sujeito particular um predicado inovações- e é a isso que se pode chamar o barroco.
universal. Estes predicados seriam «conceitos funcionaiS>>, susceptíveis Esta outra definição não exclui a P_rimeira e não pretende, por sua
de definição rigorosa, elaborados pela razão, pela filosofia («a filosofia vez, esgotar o conteúdo da noção. Outros virão, ou já vieram, que tenta-
é metodologia do pensamento histórico»), e permitiriam conferir ao sin- ram descrevê-la de outra maneira. E. d'Ors, por exemplo, apresenta-a
gular um carácter racional, ou antes (é um hegeliano que fala), libertar como uma categoria estética fundamental oposta antiteticamente à de
a racionalidade imanente do real singular. Croce insiste sobre a origem clássico e, em vez de a definir, tenta sugeri-la mediante uma série. de
extratemporal, não empírica, destes universais (muito diferentes, por exemplos: o barroco é o redondo e não o quadrado, a elipse em vez do
conseguinte, dos conceitos examinados no parágrafo precedente: «calvo», círculo, etc. 8
«parricida», etc., conceitos oriundos das diversas ciências que estudam
o homem e que Croce, imagino eu, teria excluído como não especifica- Na realidade, observamos dois usos muito diferentes do termo.
mente históricos). Quando ,se diz: «a Igreja de Santa Teresa-a-Chiaia é barroca», ou mais
ousadamente: «a descoberta da circulação do sangue por Harvey é uma
Vamos buscar ao próprio Croce o seu exemplo favorito: a noção invenção barroca», servimo-nos dele como de uma noção, não universal,
de <cbarroco». Para ele, é um conceito que o historiador recebe do filó- mas singular, que procura exprimir os traços comuns que possuem um
sofo (de facto, aqui o estético) e cujo conteúdo pode ser, à maneira de grande número de criações artísticas da Itália do século XVII e, a pouco
um termo geométrico, expresso com precisão por uma definição: o bar- e pouco, outras formas de expressão e de . pensamento que caracterizam
roco, essa variedade do feio é, diz ele, o «vício da expressão artística a época em questão. Diz-se a arte barroca, a idade barroca, como quem
que substitui à beleza um efeito devido à surpresa ou ao inesperado) 6 • diz o gótico ou a Renascença. Examinaremos mais longe (§ e) este tipo
Definição rigorosa, mas na qual não reconheço a noção de barroco tal de «conceito» singular. Só nos ocupamos de momento do seu uso <<Uni-
como a gosta de utilizar nos nossos dias a história da arte e da cultura, versal». Quando qualificamos de barrocos o grande templo de Baalbek
noção que de facto é muito mais compreensiva, mais matizada, mais ou a retórica de Santo Agostinho, já não se trata propriamente de uma
subtil e, embora talvez menos precisa, muito mais fecunda. utilização do mesmo «conceito», mas simplesment\! de uma imagem, de
uma figura de palavra, metáfora ou analogia (é por vezes difícil decidir),
Se analiso, por exemplo, o uso que me aconteceu fazer dela 7, pare- que repousa sobre uma comparação implícita: distingo, entre a arte tão
ce-me que vi no barroco não uma espécie do género «fealdade», mas um sóbria, tão equilibrada do tempo de Augusto ou de Trajano e a de
momento na evoluçãO · de um estilo. A seguir ao período «clássico» - Baalbek, uma relação análoga àquela que estabeleço, por outro lado,
o período em que, depois das apalpadelas do arcaísmo, dos primitivos, entre o classicismo de Miguel Ângelo e o barroco de Bernin; da mesma
a arte atinge uma mestria perfeita dos seus meios de expressão - podem-se maneira entre o estilo de Cícero (ou de Isócrates) e o de Santo Agos-
verificar duas coisas (afora uma revolução que interrompa o desenvol- tinho. Se esta comparação é legítima, torna-se claro que poderei explici-
vimento homogéneo desse estilo): ou a tradição se fixa na imitação tar as razões e encontrar quer em Baalbek, quer em Santo Agostinho e
estreita, timorata, e não tarda a ser atingida pela esclerose- e é o aca- em Bernin, exuberância, procura do efeito, deformação expressiva, disse-
demismo, ou, pelo contrário, exaspera-se numa floração exuberante, metria, etc. Mas esta análise não esgotará necessariamente o alcance da
comparação implícita.

1; l a storia . .. t ra duç ã o francesa , p . 132. B Ver o colectônea de ensoios 1roduzida em f rancês sob o titulo Ou baroque
7 Como discípulo de Focillon e, atrovés dele, de Wõlfflin, em Santo Agostinho ... , ( 1935) . E. Castelli propõe uma outra concepçiio : 111 Congresso lntern . di st udi umanistici
Retractotio, p. 670. (Veneza, 1954).

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O UBO DO OONOEITO
DO OONHEOIMENTO HlBTóRlOO

c) Por oposição aos conceitos verdadeiramente universais que


Porque um tal uso depende não do espírito geométrico, desse
examinámos no § a, o historiador usa noções técnicas cuja validez é
emprego rigoroso do conceito mediante o qual Croce esperava atingir
limitada no tempo e no espaço, ou melhor, é relativa a um meio de
a própria essência do objecto histórico e esgotá-lo racionalmente, mas
civilização dado. !É o caso de todos os termos especiais que designam
do espírito de finura; e é preciso defendê-lo como tal, porque o conhe-
instituições, instrumentos ou utensílios, maneiras de agir, de sentir ou
cimento histórico, que procura apreender a vida dos homens do passado
de pensar, numa palavra, factos de civilização. Assim, para a história da
em toda a sua delicadeza, nos seus matizes infinitos, na sua verdade
República Romana, patrício, cônsul, toga, atrium, molae trusatiles (o
subtil, não se poderia contentar com os recursos limitados da lógica,
moinho de •braço), adopção, deuotio, mos maiof'oum ... , tudo conceitos evi-
rigorosa, mas estreita, das matemáticas. Uma comparação implícita do
dentemente relativos, salvo o caso de uso metafórico, a esse sector deter-
tipo acima examinado pode permitir apreender muitos aspectos do real
minado do passado.
que se escapariam debaixo dos dedos de quem procurasse encerrá-los
Aqui, os limites de validade são os da nossa compreensão. O pro-
em definições explícitas.
blema está em encontrar exactamente o que um romano da República
Sem dúvida, a verdade de um tal uso metafórico continua a ser
punha por trás das palavras <~patrício» ou «cônsul» (o direito público
relativa ao ponto de vista parcial sob o qual o historiador considera
quer o seu objecto, quer o termo de comparação. Também não se deve romano existia antes de Mommsen, é só questão de o reconstituir) e a
esquecer que toda a comparação coxeia, que nunca existe em história, verdade progride com o nosso conhecimento. Comparemos a imagem
esse domínio do singular, paralelo perfeito nem recomeço absoluto. tão rica, tão precisa, tão verdadeira que nós podemos ter da noção de
O uso de tais processos analógicos ou metafóricos requer, portanto, <<faraó», graças a um século de esforços despendidos desde Champollion,
precauções, habilidade, cultura, qualidades que, por outro lado, são w com a imagem, tão sumária, sem dúvida também verdadeira, mas de
qualquer maneira indispensáveis para compor esse instrumento delicado uma verdade pobre, que dela podia fazer um letrado carolíngio, que só
de conhecimento que deve ser o espírito do historiador. conhecia o .faraó pela história de José no Génesis e pela descrição do
Exodo.
Quando se tiver de passar da elaboração do conhecimento no Um caso um pouco mais complexo é o dos conceitos que encon-
espírito do historiador à sua expressão para o público, o uso figurado tramos elaborados nas nossas fontes pelos historiadores ou, mais geral-
das imagens singulares apresentará dificuldades suplementares: como ter mente, as testemunhas intermediárias que nos ligam ao passado. Assim
a certeza de que o leitor compreenderá tudo o que o autor pôs nessa a noção de <<Virtude romana», que Plutarco nos apresenta, e a de «demo-
aproximação e dentro dos limites em que o encerrou. Aconteceu-me com- cracia ateniense», expressa pelo Péricles de Tucídides. Verdade e validez
parar a ideia que os Padres faziam das obscuridades da Escritura à encontram-se aqui suspensas de duas operações mentais. O· historiador
obscuridade poética segundo Mallarmé, por oposição a Rimbaud: um deve, por um lado, compreender o que quiseram dizer Tucídides ou
crítico objectou-me 9 que tais comparações ultramodernas tend to obscure Plutarco, apreciar em seguida a legitimidade da construção ou do teste-
the argument rather than to clarify it; evidentemente, não tinha lido munho de um e do outro. Finalmente, tais conceitos são por vezes ela-
Mondor! Apesar destas dificuldades, a riqueza sugestiva de um tal uso borados pelo historiador de hoje, mesmo se ele os designa com um termo
figurado é tal que o historiador dificilmente consentirá em passar sem ele. pedido à lingua dos seus heróis,

como gostam de fazer os geógrafos, conferindo uma acepção técnica a


termos usuais, utilizando, por exemplo, o francês (loreno) côte ou o espa-
9 Cf. G. S (erton), em lsis, t. XLI ( 1950), p. 332, criticendo minhe Retractatio,
11
nhol (mexicano) cuesta para designar um relevo monoclinal.
p. b49.

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140
DO CONHECIMENTO HIBT<'RIOO O USO DO CONCEITO

O perigo, neste caso, não está, como mais acima, em pôr na noção o que exprime e confere unidade a esses grupos sociais, que vão desde
menos que a verdade total do passado, mas em pôr mais ou em pôr a família à cidade, é a existência de um culto específico dirigido ao
outra coisa. iÉ o que ameaça semrpre o historiador da filosofia, do pen- antepassado ou ao herói, praticado em volta de um lar comum.
samento, da mentalidade, que terá a tentação de atribuir ao homem de
outrora a ideia clara e distinta que ele próprio elaborou, extrapolando Como este exemplo mostra, trata-se de um esquema de valor rela-
os dados, amiúde magros ou imprecisos, dos seus documentos. tivamente geral, construído pelo historiador com elementos observados
no estudo dos casos particulares, esquema orgânico de partes mutua-
Tomemos o livro célebre, e de facto tão precioso, do grande teó- mente dependentes (e esta organização não é arbitrária; repousa sobre
logo luterano A. Nygren, Erôs et Agape, la rnotion chrétienne de l'amour relações estruturais extraídas da análise dos casos singulares), expresso
et ses transformations. É claro que a imagem muito sistemática que ele enfim com rigor e precisão pelo ·historiador numa definição que lhe
aí propõe dos dois conceitos de «Erôs» (o amor-desejo, ascendente, aspi- esgota o conteúdo. O atributo «ideal» sublinha a parte de construção
rando à posse do seu objecto) e o de «Agape» (o amor-dádiva de si original que a noção encerra. Não é uma simples imagem genérica,
mesmo, descendente, derramado) ultrapassa infinitamente em precisão, reduzida só aos caracteres comuns como são os conceitos da sistemática
estrutura interna, rigor, quer o sentido que estas duas palavras gregas em biologia, que só conservam os caracteres apresentados de maneira
reo.ebem na pena dos escritores gregos, pagãos ou cristãos, quer a idêntica por todos os indivíduos da espécie ou do género: os caracteres
tomada de consciência que os antigos podiam ter alcançado dos seus consel'V'ados pelo Idealtypus não são necessariamente aqueles que for-
sentimentos reais. necem os casos mais numerosos, mas antes aqueles que fornecem os
Aqui deslizamos para uma categoria completamente diferente. casos mais «favoráveis», isto é que sugerem ao historiador a noção
É indecisa a fronteira que separa estes conceitos particulares elaborados mais coerente, mais carregada de significações, mais inteligível.
pelo historiador e aqueles que vamos agora estudar:
Se, ao contrário do «predicado universal)> de Croce, a génese do
d) Conservar-se-á, pam designar esta outra classe, o termo Ideal- ldealtypus supõe uma fase análoga à da elaboração do A bstracto aris-
typus, pedido a Max Weber 10, que definiu este género de noção com totélico, a parte da construção original que se lhe segue continua a ser
uma particular atenção e de facto se serviu sistematicamente dela na essencial. Sem dúvida, Fustel de Coulanges não imaginou a partir do
sua obra de historiador. Não que ele a tenha propriamente inventado, nada o seu tipo ideal da cidade antiga. Serviu-se para isso do estudo
nem que seja o único a servir-se dela: comparado dos casos singulares que representam as diversas constitui-
ções, 7tOÀtn(ou, das cidades conhecidas da Grécia clássica ou da ·Roma
Tomarei como exemplo de ldealtypus a noção de Cidade Antiga, arcaica. Nem por isso a sua Cidade Antiga deixa de ser qualquer coisa
tal como foi elaborada por Fustel de Coulanges (1863), e que nós não de diferente e qualquer coisa mais que qualquer das cidades empirica-
mente observadas.
cessamos de utilizar (mesmo quando a criticamos ou recusamos), isto
é, o city-state concebido como confederação de grandes famílias patriar-
cais ( yÉvYJ, gentes) federadas primeiro em fratrias, depois em tribos, e Uma vez de ,posse desta ideia pura, o historiador volta ao con-
creto e serve-se dele para melhor apreender no conhecimento os casos
singulares, os únicos «reais» que os nossos documentos apresentam, e
isso de duas maneiras: ,p or um lado, na medida em que os exemplos
10 O leitor encontr11r6 um11 primeir11 inici11ção à teori11 em R. Aron, La philoso-
particulares, uma vez sobrepostos à imagem teórica do Tipo-ideal,
phie critique de l'histoire, pp. 232-235; Weinreich, Max Weber, l'homme et le savant revelam uma coincidência maior ou menor com esta, vê-se que o real
(tese de Paris. 1938), pp. 96·153. adquiriu uma inteligibilidade, parcial sem dúvida, mas autêntica; em

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DO CONHECIMENTO HIBT6RICO O U80 DO CONCEITO

segundo lugar, na medida em que o confronto leva a um juízo negativo Ainda a propósito da Cidade Antiga, uma polémica opôs, em
(aquele em que o caso real se revela não ser idêntico ao ldealtypus), 1937, V. Ehrenberg a H. Berve 12 , sobre a data do seu aparecimento:
esse juízo permite alcançar um conhecimento preciso do singular en- Ehrenberg fá-la remontar ao início do século VIII, Berve tinha ten-
quanto tal, até aí inapreensível na sua autonomia, na sua heterogeneidade dência para a retardar cada vez mais:· 600, 500, ou mesmo mais tarde
absolutJa. ainda. É que um e outro definem de maneira diferente o seu Idealtypus
da Polis. Berve entende por ela a cidade democrática e, para a reconhe-
Procurando precisar a originalidade da Cidade lacedemónica, cer, espera pela eliminação de todo o princípio «dinástico», enquanto
H. Jeanmaire declara que a hipótese de Fustel é <<Sem dúvida aquela para Ehrenberg o regime da cidade se acha instaurado, quanto ao essen-
que parece menos própria para servir de ponto de partida para a expli- cial, desde que a comunidade procura impor a lei. soberana à autonomia
cação de Esparta» 11 • Simples indeferimento? Não, a continuação mostra dos cidadãos.
que o confronto entre a hipótese e os dados documentais ajuda Jean- As duas concepções são legítimas e a discussão poderia eterni-
maire a apreender, e a datar o desenvolvimento, excepcionalmente tardio zar-se, se não interviessem exigências práticas: dos dois conceitos, qual
em tEsparta, da família aristocrática. é o mais útil ao historiador? No meu entender, evidentemente que é o
de Ehrenberg, que abraça uma maior generalidade; a cidade de Berve
Saudou-se por !Vezes a introdução por Weber da noção de ldeal- não atinge o seu desenvolvimento completo antes de 450 e o seu declínio
typus como um progresso decisivo da teoria, e da prática, da história, começa com a tensão interior causada pela guerra do Peloponeso
finalmente munida dum instrumento rigoroso. Talvez seja necessário (431 e ss.): reduzida a um período tão breve, a noção perde utilidade.
moderar esse entusiasmo. Em primeiro lugar, como mostraram as con-
siderações precedentes, o Tipo-ideal não é o ·único meio de conheci- Enfim e sobretudo o Idea!typus só é de um uso legítimo se, como
mento que o historiador utiliza, nem mesmo o mais ·frequentemente sublinhava com insistência Max Weber, o historiador conserva sempre
utilizado; em seguida, a &ua elalboração revela-se delicada desde que plena consciência do seu carácter estreitamente nominalista. Max Weber,
uma pessoa se preocupa por assegurar a este tipo de conceito um rendi- com toda a razão, não perde nenhuma ocasião de sublinhar o carácter
mento óptimo. Efectivamen.te, na medida em que o ldealtypus se dis- construído, irreal, fictício destes conceitos. E é útil lembrá-lo, porque
tingue de um simples conceito geral por abstracção, tende a tomar-se a tendência natural do espírito humano é para exagerar .o valor das
arbitrário (ao mesmo título que o «predicado universal» que Croce nos suas próprias ideias. A tentação idealista espreita a .todo o instante
mostrava 1brotando do engenho a priori do pensamento filosófico): as o historiador. Se ele não se precaver, terá espontaneamente tendência
definições de palavras .são livres e está no meu poder definir tal Tipo- para lhes dar realidade, para coisificar os seus «tipos-ideais», para se
-ideal que me convém, mas, para ser 'útil ao historiador, será preciso servir deles como se se tratasse de verdadeiras ldeias platónicas, de
que esse conceito, ao mesmo tempo que possui essa lógica interna Essências que, na sua pureza ideal, seriam mais reais que a autêntica
carregada de significações que lhe confere a sua «claridade», a sua realidade histórica, esse objecb inapreensível que sempre se esquiva em
inteligibilidade, seja aquele cujos caracteres melhor se encontram, pelo qualquer grau, finalmente rebelde aos nossos esforços de racionalização,
menos no estado participado, nos casos singulares revelados como exis- condição de todo o conhecimento.
te~tes pela nossa documentação; daí muitas dificuldades práticas.

12 V. Ehrenberg, When did the Polis rise7, em Journel of Hellenic Studies, t.


LVII (1937), pp. 147-159, criticMdo H. Serve, Fürstlic:he Herren der Perserkriege, em
11 Couroi et Couretes, Treveux et Mémoires de I'Université de Li lle, 21 ( Lille,
Die Antike, t. XII ( 193b), pp. 1-28; Miltiedes, Studien zur Geschichte des Mennes und
1939), p. 468 .
seiner Zeit (Berlim, 1937) .

144 10 145
DO CONHECIMENTO HIBT(JRICO O USO DO CONCEITO

Quero crer que não estou a denunciar um perigo imaginário. o espírito e o real ameaça sempre embotar a curiosidade, que deve ser
Bastante seduzido pela «claridade», pela limpidez racional, do tipo-ideal, um
infatigável, do historiador à procura de contacto sempre mais directo
o historiador corre o risco de confundir meios e fim, de trocar a presa e mais íntimo com ·o concreto.
pela sombra e de substituir o autêntico conhecimento do concreto que Da mesma maneira, nos verdadeiros historiadores, o uso prático
deve ser o seu fim, por um jogo de abstracções combinadas: das noções primeiro definidas como Tipos-ideais revela uma reacção
instintiva contra esta deformação idealista e uma correcção salutar.
Seja a Atenas do tempo de Péricles. Poderemos analisá-la e encon- Quando um historiador da Antiguidade pronuncia, por exemplo, o termo
trar, por exemplo, lá, x% de verdadeira <<Cidade antiga>> (o homem de «civilização da Cidade antiga», serve-se de facto dele para evocar
definido pela sua partiCipação nas colectividades sobrepostas que o numa apreensão complexa o conjunto formado pelos factos conforme à
integram), ainda y% de sobrevivências do personalismo arcaico (a ética definição do «tipo» e pelas excepções registadas quando do trabalhÓ
do herói de estilo homérico), já z% de individualismo que anuncia o de verificação, de confronto entre a ideia abstracta e os casos singulares.
homem helénico; x + y + z formam um total que tende mais ou menos A palavra evoca para ele, por um lado, o conjunto sistematizado do que,
para cem. na vida dos antigos Gregos e Romanos, se ligava directamente ou indi-
Vimos a encontrar os mesmos inconvenientes com os conceitos rectamente ao ideal comunitário da 7T6AI(;, mas também, ao mesmo
universais de Croce que nos convida a analisar a arte de uma época tempo, os elementos desta mesma civilização que escapavam à acção
em x% de barroco, 100- x% de não-barroco, a obra de Dante em deste ideal (sobrevivências do espírito cavaleiresco homérico, pressen-
combinação análoga de poesia e não-poesia. timentos do individualismo helenístico) e, finalmente, as mil e uma
Escolhi à minha vontade exemplos não sujeitos a discussão. Deixo particularidades que o mesmo historiador ,pode conhecer dos casos
ao meu leitor o cuidado de travar a polémica com os historiadores singulares que tinham o nome de Atenas, Tebas, Esparta, ... Roma. No
marxistas, nos quais será fácil descortinar uma verdadeira intoxicação termo da elaboração, o conhecimento histórico revela o seu nomina-
idealista. Sob o pretexto de atingirem a realidade profunda, vemo-los lismo radical, muito mais radical do que imaginava MaxWeber, apesar
substituírem, com toda a ingenuidade, o real autêntico por um jogo de da sua profissão de fé. Empregados desta maneira, estes termos técilicos
abstracções coisificadas: classes sociais, forças de produção, feudalidade, já não são propriamente Idealtypus, mas simples etiquetas verbais, que
capitalismo, proletariado. não prejudicam nada do conteúdo complexo, muitas vezes mesmo hete-
róclito, do ficheiro, que permitem designar comodamente. Com este modo
Nunca insistiremos de mais em que, atra'Vés dos conceitos «ideais», de emprego, chegamos na realidade a uma quinta e última espécie de
não atingimos essências. Não passam de esboços, de representações, de conceitos, se é que se lhes pode continuar a dar esse nome, de noções
construções de espírito, que procuram simplesmente apreender qualquer históricas:
coisa do real, cuja complexidade desorientadora escapa completamente
a estes moldes que a querem encerrar. Se se. sobrestima o valor ontológico e) Só o que nos custa é escolher entre os exemplos: assim a
destes instrumentos do pensamento, descamba-se numa história verda- Antiguidade clássica, Atenas, a Pentecosioetíade («o entre-as-duas-
deiramente imaginária: o passado aparecia menos «real» que estas -guerras» - entre as guerras médicas e a do Peloponeso), a Segunda
entidades inteligíveis que se mostra incapaz de jamais encarnar plena- Sofística, a Spãtantike, Bizâncio, o Renascimento, o Barroco (é aqui
·mente. O historiador passaria o seu tempo a procurar no passado qual- que o termo, empregado desta 'Vez no sentido próprio, . encontra o seu
quer coisa que lá não se encontra ou que pelo menos não se encontra verdadeiro lugar)- que sei eu ainda?- a Revolução Francesa.
em quantidade suficiente.
Manejado sem precaução, o Idealtypus tende a não ser mais que No século XIX, os historiadores da era liberal (vide Michelet)
um estereotipo, um preconceito: a ideia já feita que se entrepõe entre pensaram a Revolução Francesa por meio de um verdadeiro Ideal-

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DO OONHEOIMENTO 'HIBT6RIOO O USO DO OONOEITO

typus. Era para eles um sistema coerente de pensamento e de acções nossos cronistas desportivos- trata-se ainda de história- dizem de bom
(«a Revolução é um bloco»- dizia ainda Clemenceau): Hoje, este termo grado: a Inglaterra ganhou ou perdeu tal desafio, quando só se trata
evoca para nós a totalidade tumultuosa do que podemos saber de tudo de um grupo de jogadores profissionais; mas quando se assiste às explo-
o que se passou na França, e sob a influência francesa, entre o dia 5 de sões de paixão colectiva que provoca em ·tal país a no,tíciÍl de uma dessas
Maio de 1789 e o 18 Brumário do ano Vil/. «vitórias>> ou «derrotas» nacionàis, tem de se reconhecer qualquer verdade
nessa metonímia). O historiador rigoroso deve, no entanto, precisar
Trata-se, desta vez,. de termos singulares, não susceptíveis de sempre em que sentido assume uma tal maneira de hipostasiar.
uma definição exaustiva, denotando um conjunto, por exemplo, um
período mais ou menos vasto da história: de um meio humano deter- Mas, uma vez tomadas estas precauções necessárias, a história não
minado ou de história da arte, do pensamento, etc., isto é, a .totalidade deve, não pode recusar-se a utilizar tais designações que pertencem ao
do que conseguimos conhecer do objecto assim definido. O uso de tais termo da sua elaboração. O estádio último do conhecimento não pode
noções é perfeitamente legítimo, se pelo menos há o cuidado de lhes ser representado por conceitos gerais ou abstractos (como os ldealtypen),
conservar uma carácter estreitamente nominalista: a palavra não é mais porque a realidade do passado é sempre mais rica, mais matizada, mais
que o símbolo verbal de uma realidade cuja estrutura mais ou menos complexa que qualquer das ideias que podemos elaborar para a cingir.
orgânica, mais ou menos arcaica, se preconcebe. Depois de longos anos Ela é esse concreto, esse singular que sempre nos desnorteia, nos descon-
de' estudos, o historiador pode fechar os olhos e evocar, só por meio certa, nos surpreende por qualquer coisa de inesperado, de novo, de
de uma palavra, tudo o que sabe do seu objecto, da mesma maneira radicalmente Outro. Um racionalismo estreito ficará desolado como se
que um namorado pronuncia baixinho o nome da amada. tivesse sofrido uma derrota, mas o historiador autêntico, pelo .contrário,
Subsiste o perigo - e temos de nos saber defender dele- de alegra-se, porque é neste aspecto da realidade humana que reside a
bipostasiar estas noções e de lhes . conferir, por sua vez, o valor de uma originalidade, a fecundidade da história. A ex"periência do passado é
ideia, de uma essência, de uma realidade superior, de um princípio de constituída de tal maneira que tem como função fazer .rebentar os quadros
coesão e de inteligibilidade. demasiado simétricos, sempre demasiado simples, em que a razão humana
encerraria espontâneamente a realidade. Parafraseando a palavra famosa
O processo do erro é o seguinte: o historiador, por esta ou aquela que o príncipe Hamlet dirige ao seu amigo Horácio - T here are more
boa razão, decide designar um período por aquilo que lhe parece ter things in heaven and earth ... -poder-se-ia dizer que é próprio da história
sido um carácter dominante. Falará, por exemplo, de Idade Barroca fazer-nos lembrar incessantemente, fazer-nos descobrir que há mais coisas
quanto à Itália do século XVII. Depois, por uma viragem inconsciente, no homem e na vida do que coisas sonhadas nos ,pequenos conceitos
tende (ou os seus leitores tenderão por ele) a fazer desse nome um de uma filosofia.
princípio e a «explicar» os fenómenos observados pelo «barroco», esque-
cendo que a noção não tem ser próprio. As considerações precedentes permitem resolver, mediante · uma
A história passa dessa maneira a encontrar-se povoada de fan- palavra, uma questão disputada durante muito tempo (13): a da divisão
tasmas, é uma outra maneira de a converter num jogo de abstracções, da história em períodos, a Periodisierung, como diziam os doutos (sempre
essas sombras vãs. Lord Acton irritava-se por ver a história diplo- esse prestígio da palavra alemã). Nunca passará de uma questão de
mática fazer intervir a todo o instante esses actores estereotipados:
a Grã-Bretanha, a França, lá onde se deveria dizer a classe dirigente,
o governo, o Foreign Office ou o Quai d'Orsay, ou antes, tal ministro
13
ou tal jovem chefe de serviços nesse dia em tal gabinete. Não é que Contento-me em remeter para J. H. J. van der Pot, De periodisering der
tais formas abreviadas sejam necessariamente de proscrever (assim os geschiedenis, een overzing· der theorieiin (Haia, 1951 ) .

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DO CONHECIMENTO HIST6RICO

etiquetas, sempre provisórias, relativas ao ponto de vist~ _mome_ntânea-


mente adaptado; o seu papel, de ordem prá~ica,_ pedagog~ca •. nao d:v~
ser sobrestimado. Não será nunca uma determmaçao de essenczas.1 A czvz-
lização da África vândala enquadra-s.e ainda na Antiguidade ou já na 7
Idade Média? Tudo depende da perspectiva escolhida para a estudar!

A EXPLICAÇÃO E OS SEUS LIMITES

Tínhamos assentado, no início deste estudo . (cap. 11), em que


o conhecimento histórico não se deveria contentar em reflectir, na
sua riqueza a princípio desconcertante, a realidade tumultuosa do
passado e que teria também a ambição de nela projectar, ou melhor,
de extrair dela, uma inteligibilidade. Ao chegar aqui, o leitor pode
perguntar de si para si se o nominalismo integral que acabamos de
professar não vai conduzir ao ininteligível puro e simples. Temos,
portanto, de nos apressar a mostrar que, ao procurar apreender o
seu objecto de maneira tão precisa e completa quanto possível, a
história não cessa de se preocupar ao mesmo tempo de o «fazer com-
preenden>, de fornecer para ele, num certo sentido e dentro de certos
limites, uma «explicação».
Consideremos, para começar, o caso relativamente simples do
quadro histórico: Atenas no tempo de Péricles, a sociedade francesa
nas ·Vésperas da Revolução, isto é, o esforço que o historiador faz
por apreender o espectáculo que lhe proporciona, visto num instante t
da sua evolução, o passado da humanidade, ou antes, o sector sempre
limitado que é objecto da investigação autenticamente histórica. Não
é verdade, como poderia parecer, que o dado sobre o qual se
exerce esse esforço de compreensão (o conjunto do que nos revelam
os documentos), se apresente como um prurido confuso, uma pulve·
rulência de factozinhos elementares. A análise descobre lá, de maneira
segura, fenómenos de coordenação, estruturas.
Sem dúvida, o objecto da história pertence sempre à categoria
do Singular, sem dúvida também os actores desta história são sempre
homens, individualidades humanas (o indivíduo, a pessoa é a unidade
histórica, o «átomo» no sentido grego da falavra); mas, como bem

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DO CONHECIMENTO HIBTOBIOO .A. EXPLIOiJ..ÇAO E OB BEUB LIMITEB

soubera sublinhar Rickert 1, há realidades históricas que. sem deixarem tigação. a precisar os seus limites. Porque, de cada vez que ela verifica
de ser singulares. possuem. no entanto. um certo carácter geral. no que tais çstruturas são reais. descobre que elas. ou antes. o «tipo-ideal»
sentido de que englobam um conjunto de fenómenos elementares. de que elaboramos para as apreender. nunca abraça mais que uma parte
carácter menos compreensivo. que aparecem. em relação a ela. como dum objecto histórico que ele quereria e que elas parecem primeiro
partes vivas relativamente a um todo. sistematizar. A realidade histórica revela-se sempre finalmente mais
rica. mais complexa que toda a estrutura unificada. Proporei dois
Seja o exemplo profJl)sto da Atenas de Péricles. Atenas não era exemplos bem característicos deste sucesso parcial e do fracasso ine-
só a reunião empírica de uma multidão determinada de representantes vitável de toda a hipótese organicista:
da espécie humana. Entre todos os seus habitantes havia alguns milha-
res que usavam o título de cidadãos e que se achavam repartidos por Primeiro, o do tipo-ideal da Cidade Antiga. Nas mãos do histo-
demos e por tribos, reuniam na ecclesia, forneciam ao tribunal dos riador avisado que era Fustel, nas mãos dos seus sucessores que a aper-
heleatas os seus jurados, etc., numa palavra, constituíam a ossatura feiçoaram, esta hipótese de trabalho mostrou-se fecunda e revelou a
organizada que transformava uma massa amorfa de individualidades existência, na civilização da Antiguidade clássica, de toda uma rede
humanas nesse organismo político bem preciso que era a cidade demo- de relações. Sim, o homem antigo era realmente, numa larga medida.
crática de Atenas. como o definia Aristóteles, 'wov7ToÀmxóv isto é, o ser animado que, em
Da mesma maneira, toda uma série de práticas rituais, de costu- vez de viver em rebanhos, alcateias, hordas, colmeias ou formigueiros,
mes, de crenças, organizavam-se em função de uma esperança central tem como carácter específico viver XIXT& 7tÓAet~. inserido nesse orga-
relativa à vida de além-túmulo e constituíam esse culto das Duas nismo social bem determinado que constitui a 1TÓÀtc;.. Constatamos Je
Deusas que designamos abreviadamente pelo termo de mistérios Je facto que um bom número dos principais aspectos da vida antiga-
Elêusis, etc. económicos, artísticos, religiosos, morais, etc.- parecem. pelo menos
em certo grau. encontrar a sua explicação (a razão de ser, o sentido)
Em tais complexos singulares. as partes componentes não apa- na relação directa ou indirecta com os quadros sociais da Cidade.
recem simplesmente aproximadas por uma intuição global; encontram-se Mas o progresso da nossa análise não tardou a revelar que a estru-
unidas. entre si e com o todo. por relações de interdependência tura «política>> não abraçava o todo do homem antigo. Por muito uni-
que lhes conferem uma plena inteligibilidade e constituem a sua ficada que fosse a civilização da Grécia clássica (por comparação com
«explicação». o pluralismo ou com a anarquia da Europa Ocidental do século XIX),
Esta observação só na aparência contradiz o que no capítulo não se pode ligar ao ideal da Cidade todos os aspectos da vida grega.
precedente nos sugeria o exame das determinações nominais do tipo Salvo talvez em Esparta, a educação da inteligência, por exemplo, não
«Atenas». «Revolução Francesa». Dizer. como nós dizíamos. que o sofreu profundamente a sua acção. Como bem mostrou W. Jaeger,' os
emprego destas etiquetas não julgava antecipadamente da estrutura mais futuros cidadãos da «Cidade de hóplitas>> eram alimentados pelos poemas
ou menos orgânica dos conjuntos assim designados. não era negar de Homero e imbuídos por eles de uma ética- a do herói à procura da
a existência de tais estruturas. mas apenas convidar o historiador a façanha fora de série, da glória pessoal- bem alheia ao ideal da subor-
verificar. em cada caso. a realidade desta estrutura e. depois da inves- dinação totalitária do cidadão à comunidade. Também não é verdade,

1 Ver, sobretudo hoje, a inteligente análise que P. Veyne faz da distinção entre
<<Singulam e <<específico» no seu belo livro, Comment on écrit l'histoire, Paris, Ed. du Seuil, 2 Peideie, die Formung des griechischen Menschen, I ( 1954 J, c. 11 I; cf.
1971, pp. 72·76.
minha Histoire de I'Education dans I'Antiquité (1965), pp . 39-44.

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Do- CONHECIMENTO HISTORICO A EXPLICAÇAO E 08 SE.U S LIMITES

como tendia a crer Fustel, que as diversas formas do culto social- entendo aquele que possui um sentido agudo do real irredutível, não -
religião do lar, do clã, da cidade - tenham bastado para estudar a bem entendido - o árido historiador historicizante) experimentará uma
religiosidade do homem antigo. Nilsson acaba oportunamente de subli- repugnância invencível relativamente à maior parte das teorias da civi-
nhar como desde a época arcaica, século VII-VI, as correntes místicas lização que se multiplicaram entre as ·duas guerras, na medida em que
e estáticas da religião pessoal se opuseram sempre com força e vitalidade elas admitem esse postulado da coerência, da unidade estrutural. Ele
às formas da religião cívica 3 • deverá repudiar não só as lucubrações delirantes de Spengler, em quem
Seja agora o caso da cristandade medieval. É incontestável que a metáfora do «organismo», uma vez aplicada às grandes civilizações,
um número bastante grande dos aspectos da civilização da Idade Média é objecto de uma exploração sistemática e paradoxal, mas também a
ocidental se explicam em função da sua estreita subordinação ao ideal síntese tão conscienciosamente, tão razoavelmente elaborada por esse
religioso cristão: artes, ciência, técnicas, sociedade, Estado, maneiras grande e nobre espírito que é Arnold J. Toynbee:
de viver ou de sentir aparecem então como meios, ou símbolos, subor- t
dinados como ao seu fim à Fé, na qual comungavam os homens desta Embora o seu sentido empirista do positivo e o seu sentido his-
civilização cristã. tórico do concreto o ponham de sobreaviso contra a tentação idealista
Mas, em contrapartida, não é menos evidente que um certo número (critica, de passagem, o organicismo extremo de Spengler), não deixa
de sectores da vida medieval permaneceram estranhos a esta síntese. também de sucumbir a ele, quando define, por exemplo, as 21 (ou 29)
Tiveram outra origem e apenas receberam uma cristianização superfi- «civilizaçõeS>> que recortou um pouco arbitrariamente 1UJ tecido da his·
cial, um verniz exterior que só o que fez foi dissimular o ser real deles, tória como «conjuntos que formam um todo e em que todas as partes
sem os chegar a integrar verdadeiramente no edifício da Cristandade. se encontram em coesão recíproca e se afectam mutuamente» 4•
Citemos ao acaso: sobrevivência (e, a partir do século XII, renasci- Os nossos teóricos da civilização, os «culturologistaS>> 5 não foram
mento) do ideal antigo do Império e da autonomia do direito público, os únicos que abusaram desta hipótese unitária. Pelo seu lado, os etnó·
sobrevivências do paganismo, fáceis de detectar na devoção popular ou grafos também pecaram muitas vezes, por exemplo, os que defenderam
nas práticas ocultas da feitiçaria, heresias dualistas (os Cátaros decerto a lUJÇão de «ciclos culturaiS>>, civilizações «primitivaS>>, definidas pela
não eram católicos; seriam ao menos cristãos?), ideal profano do amor- associação (segundo eles, empiricamente constatada, mas num sentido
-paixão (quer o amor cortês venha dos Árabes através da Espanha ou também necessária) de técnicas variadas. Assim, o «ciclo do boomerang»
dos Celtas pelo romance bretão, mostra-se irredutível às categorias (Austrália, Alto Nilo) associaria o uso musical do roncador, a extracção
propriamente cristãs), que sei eu ainda? tantos aspectos da organização ritual de certos dentes, o monoteísmo, a mitologia lunar, a exogamia e
económica e social do feudalismo ... A existência destes domínios aber- a igualdade dos sexos ... 6
rantes não destrói a do sector hierarquizado, mas revela que a lUJÇão de
cristandade não esgota o
conteúdo de toda a Idade Média ocidental. Este mito - porque de um mito se trata - da unidade estrutural
das civilizações, é uma das formas da grande tentação idealista que o
Por outras palavras, tem de se estabelecer, e não de se postular, a historiador tem de superar. Correrá incessantemente o risco de passar
existência de uma estrutura unificada, de um todo coerente, de um
Zusammenhang. A unidade é · um problema, não um princípio de que
se possa partir. 'É por isso que o verdadeiro historiador (e por ele
~ A Study of History, t. 111, p. 380.
5 Termo lllnçlldo pllrll designllr estes teóricos d11 civilizllçiio pelo professor
L. A. White, d11 Universid11de de Michig11n.
e Ver, por exemplo, o 11rtigo de G . Mont11ndon, Cultureli (Cicli), n11 Enciclopedie
8
6rekist religiositet, trllduçiio inglesll ( Oxford, 1948 J, pp. 20-65. Italiana, t. XII, pp. 104A-113B.

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DO OONHEOIMENTO HIBT6IUOO A EXPLICAÇÃO E OB BEUB LIMITES

da justaposição de facto para a unidade hipotética. para o «espírito» e aqui aparece a estrutura verdadeiramente orgânica - constituem sis-
de uma civilização, para o «génio» de um povo, para o Zeitgeist. temas (é designadamente o caso das diversas técnicas: a arquitectura
do templo grego clássico constitui um «sistema»). Os sistemas, por sua
Verificar-se-á que a civilização da França do sul, no século XII, vez, podem combinar"se em · vastas sínteses (assim as grandes religiões,
apresenta os factos seguintes: sobrevivência do direito romano, arte Budismo do Mahâyâna, Islão sunnita, Cristianismo católico latino, que
românica, heresia cátara, poesia dos trovadores. Basta isso para que combinam, num .todo verdadeiramente organizado, sentimentos, crenças,
se oiça proclamar que os trovadores eram cátaros! 1 • princípios de moral, liturgia, organização sociaL .. ). Concebe-se no limite
a possibilidade de um «supersistema ideológico» que _teria a ambição
A estrutura real das diversas civilizações não pode ser postulada. de reger toda uma civilização (reencontramos aqui os exemplos estudados
Só se revela depois de um exame matizado e preciso. De todos os que, mais acima: Cidade antiga, Cristandade medieval ocidental). Mas trata-se
nos últimos trinta anos, se debruçaram sobre este problema, aquele que apenas de um limite, que pode ter existido sob a forma de ideal na cons-
me parece ter cingido melhor, na sua complexidade, a realidade do ciência dos homens, mas que nunca encarnou 100% em nenhuma civi-
fenómeno «civilização» e, de maneira mais geral, a natureza do objecto lização. Como mostrámos, no caso dos exemplos acima citados, uma
histórico, foi decerto o sociólogo russo-americano P. A. Sorokin. covilização real manifesta-se à análise como mais rica e menos unificada
que os supersistemas que lá se procuraram implantar.
Reconduzida aos resultados essenciais, porque ao longo de uma Finalmente e sobretudo, quer se trate de elementos isolados, de
obra de dimensões consideráveis 8 ela evoluiu muito, e liberta dos para- congeres, de sistemas, de sínteses mais ou menos vastas, a experiência
doxos, a sua doutrina apresenta-se como um justo meio entre os dois revela que, num dado meio de civilização, são possíveis três casos que
erros opostos do «atomismo» dos historiadores superficiais, para os se verificam alternadamente: integração, antagonismo, neutralidade.
quais descrever uma civilização equivale a inventariar ao acaso os diver-
sos aspectos, e do «integralismo» dos teóricos organicistas do tipo Retomemos o caso, fácil de estudar, da Idade Média ocidentaL
Spengler-Toynbee. Depois de apurar os caracteres próprios dos factos e mais precisamente do século XII: a técnica da arquitectura româ-
de civilização (que constituem aquilo a que ele chama o «sócio-cultural»: nica é neutra relativamente ao ideal da cristandade (que importa a esta
significações, valores, normas... ), Sorokin analisa de forma muito con- que uma basílica seja coberta de madeiramento ou em abóbada de
creta o seu modo de existência: berço?), o amor cortês é certamente antagonista; a cultura gramatical,
estreitamente subordinada ao estudo dos livros sagrados, é integrada
Os elementos de realidade histórica que constituem os factos de de maneira satisfatória; a tensão que se manifesta, por exemplo, entre
civilização podem apresentar-se no estado isolado; outros encontram-se Abelardo e São Bernardo, prova que a sorte da cultura filosófica (dia-
justapostos de maneira puramente empírica em «congeres» 9 ; outros- léctica) constitui uma dificuldade: sabe-se que, a princípio antagonista,
acabará por ser integrada pela Escolástica.

7 Assim D. de Rougemont, L' amou r et I'Occident ( 1939). O historiador deve procurar apreender a totalidade do real. O seu
8 Ver nomeadamente Social and cultural Dynamics (Nova Iorque, 1937-1941, conhecimento deverá registar tanto a:s estruturas inteligíveis como as
4 vols.) e Society, Culture and Personality, their structure and dynamics, a system anomalias, precisar, na medida do possível, as relações existentes entre
of general sociology (Nova iorque, 1947}. Encontrar-se-6 uma iniciaçiio c6moda em os diversos elementos, congeres ou sistemas que tiver sabido discernir.
F. R. Cowel, History, Civilization and Cultura, an lntroduc:tion to the historical and
Deve também, lá mesmo onde a sua análise legitima as vistas sintéticas,
social philosopry of Pitirim A. Soro~in (Londres, 1952).
9 Vou buscar a palavra aos dialectos alpinos (onde se acha bem viva no lembrar-se a tempo, como sublinhâvámos rio início deste capítulo, que
sentido de «monte de •neve acumulada pelo vento»). So.rokin utiliza o latim congeries. o dado fundamental, o que. uealnie~te existiu», não é nem o facto de

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DO OONHEOIMENTO Hl8T6RIOO A EXPLIOAÇAO E OS SEUS LIMITES

civilização. nem o sistema ou o supersistema. mas o ser humano cuja num instante t, se revela sempre mais ou menos estruturada, assim o
individualidade é o único organismo verdadeiro autenticamente forne- desenrolar dos instantes não é essa linha descontínua de átomos do real,
cido pela experiência. Mesmo aqui o espreita a tentação idealista. Ao isolados como as contas de um rosário passadas numa ordem arbitrária.
ler certos trabalhos contemporâneos, tem-se a im:pressão de que os pela vontade insondável de Deus (assim como se compraz em imagi-
autores da história já não são homens. mas sim entidades, a Cidade ná-Ia a teologia muçulmana): a experiência da história, aquela que o
Antiga, o Feudalismo, a burguesia capitalista, o proletariado revolucio- trabalhador consciencioso adquire ao contacto com os documentos,
nário. Existe aí um excesso: faz-nos descobrir que existem relações inteligíveis entre os momentos
sucessivos do tempo. Não é que tudo se encadeie. Há hiatos no desen-
Mesmo que se revele ao exame de todos os dados documentais volvimento temporal, da mesma maneira que existem limites para as
que tal fenómeno histórico se explica por um desses abstractos sócio- estmturas estáticas. Mas a tarefa do historiador é descobrir esses enca-
-culturais, o historiador deverá sempre procurar não esquecer e não deamentos onde eles existem.
fazer esquecer que se trata de uma simples construção do espírito, ine- IÉ o que se exprime vulgarmente dizendo que a história deve não
vitável sem dúvida (como o único meio de apreender a complexidade só «estabelecer os factos», mas também procurar-lhes as «causas»,
do real) e, dentro dos limites do seu emprego, legítimo, mas, seja como
for, uma abstracção, um produto derivado e não o próprio real, nem e as consequências. Insisto de novo nisso, porque não importa menos
sobretudo-como se acaba sempre por acreditar-sobrerreal! (p. 145-6). à compreensão plena de um elemento do passado estabelecer do que é
que ele pode ter sido a causa do que saber a que causa é devido.
Se agora deixarmos a observação do quadro histórico no instante t
e reintegrarmos os fenómenos históricos no fluxo da duração e lhes Esta noção de «causa>>, tal como a recebemos do pensamento
seguirmos o desenvolvimento, a· evolução, no decurso do tempo (e é daí comum e da linguagem da vida quotidiana, revela-se, no entanto, ao
que se emprega norn1almente o essencial do trabalho do historiador). ser posta à prova, bem dificilmente utilizável pelo conhecimento his-
encontramos as mesmas exigências racionais: o espírito não se pode tórico. Só tem verdadeiramente sentido nos casos elementares em que
satisfazer com uma pura enumeração, onde se sucederiam, simplesmente
a investigação histórica se aproxima muito da investigação de tipo judi-
colocados segundo ordem cronológica, acontecimentos e factos de toda
ciário. Quem é o autor responsável de um acto voluntário? Ou, para reto-
a ordem.
marmos o exemplo imaginado por Collingwood: quem matou John
Doe? Mas estes casos raramente se apresentam na investigação verda-
J. Deforme compilou uma útil Chronologie des civilisations, onde
deiramente histórica:
se encontram, bem alinhadas em quadros analíticos, todas as grandes
datas da história universal, desde 3064 a. C. (fundação da monarquia
porque o que importará as mais das vezes é menos a identificação
egípcia) até Dezembro de 1945. Trata-se de um auxiliar da memória,
um instrumento de trabalho de um uso quotidiano, mas ninguém se do assassino do que a reconstituição do sistema de valores de que este
homem se mostra o agente: motivos ou móbeis- conscientes ou incons-
lembraria de ver nele a suma nem o sumo do nosso conhecimento his-
tórico! cientes, ocasionais ou profundos... A «causa» histórica da morte de
César não reside propriamente na pessoa dos conjurados reunidos em
A história só alcança a inteligibilidade na medida em que se mos- torno de Bruto e de Cássio, mas sim na oposição da aristocracia sena-
tra capaz de estabelecer, de descortinar as relações que unem cada torial à política monárquica de César, combinada com os ressentimen-
estádio do devir humano aos seus antecedentes e às suas consequências. tos particulares ou os motivos de vingança que cada um dos conju-
Da mesma maneira que, estaticamente, uma situação histórica, apreendida rados podia, por seu lado, alimentar quanto ao ditador.

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DO CONHECIMENTO HIST6RICO A EXPLICAÇAO E OS SEUS LIMITES

A procura das «causas» só tinha sentido no interior de uma con- de que, modificando o ângulo de inclinação ex do plano sobre a hori-
cepção estreitamente factual da história, como era a antiga história zontal, podemos fazer variar a intensidade e medir os efeitos diferentes.
política ou militar que operava sobre aquilo a que chamava factos pre- Trata-se de um exemplo muito elementar. Mesmo nas ciências da
cisos (começos ou fins de reinado, negociações diplomáticas ou tratados, natureza, quando os fenómeno:. se tornam mais complexos, a realização
cercos ou batalhas), espécies de átomos de realidade histórica isolados de tais sistemas fecliados torna-se rapidamente mais difícil e a noção de
pelo pensamento que se podia dispor comodamente em séries encadea- experimentação muito mais delicada de manejar.
das de causas e efeitos. Tomámo-nos hoje extremamente sensíveis ao Ligar-se-á uma importância particular às dificuldades metodológi-
carácter artificial, construído, derivado, do «facto» histórico assim con- cas, amiúde muito análogas às da história, que encontram ciências como
cebido. Em vez de o considerarmos a própria essência da realidade do a geologia, a geografia física, onde intervém também o estudo do passado
passado, aprendemos a conhecer nele o resultado de um recorte, de e onde a experimentação também é impossível (porque a que se pode
uma selecção (legítima, se é consciente e racionalmente justificada) que, tentar sobre <<modelos reduzidos» só tem um valor analógico).
no tecido complexo e contínuo do passado, destaca o fragmento que o
historiador considera útil colocar sob a objectiva do seu aparelho de Não podemos agir sobre o passado. Por outro lado, como nos
mira 10• Desde logo corre-se o risco de se tomar artificial tratar como encontramos ligados ao conhecimento do singular, não podemos alimen-
um fenómeno distinto (um efeito de uma causa) o que talvez não tenha tar a esperança de encontrar na repetição o equivalente da experiência
tido existência autónoma. Por isso o problema deixa de se pôr quando variada do laboratório. Desde logo - e aí temos mais uma razão do
se estudam aspectos mais complexos do passado, tais como instituições. carácter simplesmente «provável» e não obrigatório dos juízos em his-
factos de mentalidade, técnicas ou artes, que não aparecem como meteo- tória- só podemos oferecer, quando muito, nesta procura das «causas»,
ros no céu da história; saíram de uma lenta incubação e só são apreen- hipóteses verosímeis, fundadas sobre um cálculo de probabilidade retros-
didos na sua própria evolução, durante a qual não deixam de sofrer pectiva.
insensíveis e profundas metamoforses. Vou buscar a expressão a R. Aron 11 , que neste ponto me parece
Mas tem de se insistir sobre a dificuldade central que levanta a ter descrito perfeitamente o comportamento do historiador.
impossibilidade em que nos encontramos de isolar, a não ser pelo pen-
samento, um elemento ou um aspecto da realidade histórica. A noção Tem razão designadamente quando se insurge contra os Hegelia-
vulgar de «causa» só pode encontrar um uso rigoroso nos casos em nos 12 que, em nome da racionalidade do real e da necessidade dela
que, pela experimentação, é possível constituir um sistema fechado decorrente, rejeitam como ilógica e anti-histórica toda a suputação sobre
onde se isolará, para se observar e fazer variar os efeitos. a acção de «o que poderia ter sido de outra maneira». Sem dúvida é tarefa vã
uma causa determinada. imaginar laboriosamente, como Renouvier na sua Uchronie, «o desen-
volvimento da civilização europeia tal como ele não foi, tal como podia
Seja, por exemplo, em física, a experiência clássica de Galileu sobre ter sido», mas é, por outro lado, um facto que «todo o historiador, para
o plano inclinado: uma vez desprezível o atrito, o móvel de massa m explicar o que foi, pergunta a si mesmo o que poderia ter sido» 18 :
que desliza no plano deixa de estar submetido a uma força mg. sin a

11 lntroduetion a, la philosophie de I'Histoire, pp. 159-187.


10 Ver nomeadamente H. Lévy-Bruhl. Qu'est-ee qu'un fait historique, em 12 Assim Croce, La storia come pensiero e come azione, tradução francesa, pp. 44-48:
Revue de Synthese Historique, t. XIII ( 1926), pp. 53-59; Une notion eonfuse, le fait «A significação histórica da necessidade».
1.8 R. Aron, lntrod·uetion, p. 164 (sublinhado pelo autor).
historique, em Recherches philosophiques, t. V (1935-1936), pp. 264-274,- e Fr. Furet (infra,
p. 301) .
11
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DO CONHECIMENTO HIST6RI00 A EXPLICAÇÃO E OS SEUS LIMITES

Em presença de uma situação histórica, evocamos os seus diversos como político ou linguístico- com o mesmo impulso de poderosa vita-
antecedentes (ou as suas consequências), depois, pelo pensamento, faze- lidade (Renascimento francês, Reforma francesa ... ): num instante, a
mos variar ora um ora outro, tentando de cada uma das vezes construir «causa» entrevista desvanece-se, pois se vê que é ilusória a hierarquia
o que dela teria resultado. Dessa maneira, fazemos uma ideia sobre a estabelecida entre os dois aspectos do· real a princípio seleccionados.
eficácia relativa das diversas «causas» em jogo: a experiência mental
substitui a impossível experiência do laboratório, mas o seu carácter Quem não 'Vê o alcance de uma tal conclusão? O problema, em vez
fictício afecta dolorosamente o alcance das conclusões! de receber uma solução, achou-se reabsorvido num problema mais
complexo (que fica levantado) .. . Não se pode negar, no entanto, que,
Há um aspecto mais grave: o historiador só pode recorrer à noção por meio desta nova operação, a «explicação», se assim se pode dizer,
de causa à custa de uma esquematização arbitrária, de uma simplifica- do problema inicial (a francização das regiões d'Oc), não tenha progre-
ção grosseira do real. Um exemplo fá-lo-á sentir: dido. Não há dúvida que a inteligibilidade aumentou. Ao estabelecer
desta maneira, com os fenómenos concomitantes, uma rede mais cerrada
Um érudito apreciável, A. Brun u, traçou com precisão as etapas de interconexões, o historiador conseguiu compreender melhor, apreen•
da progressão do francês nas províncias de langue d'Oc. Depois de ter der mais autenticamente este aspecto da vida francesa do .século XVI,
posto em paralelo a política de unificação prosseguida pelo governo real mas tornou-se bem evidente que esta «explicação» já não é do tipo
durante o mesmo período (grosso modo: 1450-1600, os anos decisivos causal.
foram 1500-1550), concluiu com vigor que isto é a causa daquilo: assim, Já seria, portanto, tempo de que a teoria da história procedesse
a propósito da famosa lei de Villers-Cotterets (1538) sobre o emprego por sua conta, como a das· ciências da natureza procedeu a partir de
exclusivo do francês nos actos públicos, escreve: «É questão doravante A. Comte, a uma revisão da noção de causa; físicos e naturalistas subs-
assente que o seu alcance foi quase desmedido» u. tituiram-na praticamente pela noção, ao mesmo tempo mais geral e .
Mas não se apercebeu de que a sua convicção repousava sobre mais bem definida, de «condições de aparecimento» (dados os fenóme-
uma operação provinda de uma iniciativa arbitrária, operação mediante nos A, B, C... observar-se-á o fenómeno X). Da mesma maneira, pare-
a qual optou por isolar o fenómeno «política real» e aproximá-lo da ce-me que a história deve trocar a investigação das causas pela dos
evolução linguistica. desenvolvimentos coordenados, noção que é, afinal, uma extensão à
Bem o mostra a intervenção de L. :Pebvre 1.6 que, deslocando, ou dimensão nova do tempo da noção estática de estrutura (tal fenómeno
melhor, alargando o debate, desmascara o carácter artificial da relação histórico encontra-se ligado a tal outro por uma relação inteligível.
de causa para efeito estabelecida entre os dois termos. Um e outro não Compreende-se a moral espartana, quando se reconhece que ela se
passam de manifestações particulares de uma mesma realidade histórica, acha ligada ao ideal totalitário da Cidade).
mais geral: a expansão da civilização francesa que neste período, Poder-se-ia comparar a realidade histórica a um músculo. Estu-
aquele que se sucede às longas crises da Guerra dos Cem Anos, se damos a respectiva estrutura mediante um corte feito a um nfvel dado
manifesta em todos os domínios- económico, artístico, religioso, assim (é o «quadro histórico» cujo caso nós examinámos para começar). Assim
como o músculo se revela dividido em feixes, subdivididos ·em fibras e
fibrinhas, o passado faz aparecer uma estrutura mais ou menos perfei-
tamente hierarquizada de factos de civilização, congeres ou sistemas e
H Racharchas historiquas sur l'introduction du frençeis dens las provincas
supersistemas ideológicos (para conservar a terminologia de Sorokin).
du Midi (tese de Paris, 1923).
lG lbid., p. 421. Mas um estudo mais completo exigirá que o anatomista siga, de nível
16 Combets sur I'Histoire, pp. 169-18 I {reimpressão d11 Ravue da Synthe$8 em nf.vel, a continuidade de cada .fibra ou feixe, que analise a respectiva
Historiqua, t. XXXVIII, 1924). natureza e relações nas suas modificações graduais. Assim também o

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DO OONHEOIMENTO HiBTORIOO A EXPLIOAÇAO E 08 SEUS LIMITES

hist9riador descobrira que cada um dos elementos da realidade histó- sado. Mostrámo-lo ao nível do conceito; também é verdade, aos mvexs
rica, desde o facto de civilização isolado ou elementar até à mais vasta mais elevados dos diversos graus da síntese: toda a explicação deixa um
síntese, se acha inserido num desenvolvimento contínuo, no decurso do resíduo (há sempre <<mais coisas» na realidade histórica «do que as que
qual não cessa de se transformar, como não cessam de se modificar se sonham», se prevêem num tipo id~al, num sistema, num princípio
as relações (de neutralidade, de antagonismo ou de integração) estabe- de explicação). Melhor, ou pior, ainda: quanto mais se aprofunda a
lecidas com os elementos vizinhos ... investigação, à medida que prossegue o nosso esforço de compreensão,
Tocamos aqui no essencial: a explicação em história é a desco- mais a inesgotável realidade histórica revela possuir no seu seio laços
berta, a apreensão, a análise dos mil e . um laços que, de maneira talvez estruturais, relações de interdependência, de coordenações entre as diver-
inextricável, unem umas às outras as faces múltiplas da realidade humana sas etapas de cada um dos seus desenvolvimentos, de maneira que até
- que ligam cada fenómeno aos fenômenos vizinhos, cada estado a essa rede de relações, com que contávamos para abraçar mais comoda-
antecedentes, imediatos ou longínquos, assim como às suas consequên- mente o real, não tarda a aparecer tão complexa, tão embrulhada, tão
cias. Podemos legitimamente perguntar a nós mesmos se a verdadeira confusa como o real informe que se procurava esclarecer ...
história não ·é isso, essa experiência concreta de complexidade do real,
essa tomada de consciência da sua estrutura e da sua evolução, uma e Retomemos o exemplo, proposto mais atrás (p. 57), da história do
outra tão ramificadas. Conhecimento sem dúvida tão elaborado em monaquismo no antigo Egipto. Sem dúvida, a uma poeira de informa-
profundidade como dilatado em compreem;ão, mas, em última análise, ções individuais (tais e tais monges em tais e tais eremitérios ou comuni-
qualquer coisa que ficaria mais perto da experiência vivida que da expli- dades, que em tal ou tal época teriam pronunciado tais apotegma.s ou
cação científica 11• teriam agido de tal maneira), o esforço do historiador consegué substi-
É fácil prever que, a uma tal conclusão, muitos dos meus lei-tores tuir cadeias de desenvolvimento inteligível. Já as enumerámos: função
reajam· coni surpresa ou indignação. O quê? Seria essa a explicação económica, fenómeno social, técnica espiritual, santidade cristã... Mas
procurada, a inteligibilidade esperada? Quem aceitaria sem mais dar-se acontece ser o mesmo monge Arsenios ou Poimen 'que é ao mesmo
por satisfeito? tempo um semeador, um maquisard, um asceta e um discípulo do Evan-
Sem dúvida, como bem vemos, o tipo de conhecimento a que aca- gelho. A complexidade reaparece a esse nível. Como combinar esses
bamos de chegar é muito diferente do dado bruto tal como na sua pri- diversos sistemas de explicação? .
meira desordem aparecia ao contacto inicial com os documentos: a aná-
lise conseguiÚ-lhe libertar elementos de ordem, de ·classificação, prin- O historiador consciencioso, sem se gabar de ser exaustivo. (sena
cípios de compreensão, cadeias, já não dizemos causas e efeitos, mas uma ilusão), esforçar-se-á pelo menos por dar o devido lugar a cada
sim ·desenvolvimentos, entre os quais se estabelecem relações de inter- ordem ou princípio, mas se se contenta em os justapor, voltará a cair
dependência e amiúde de hierarquia (como no seio dos grandes «siste- numa desordem inextricável, análoga à da pura e simples descrição
mas» ou «supersistemas ideológicos», nos quais se entrevê a unidade, empírica. Para que a imagem que construímos do passado se torne real-
pelo menos ' ideal, de toda uma civilização). mente inteligível, tínhamos de poder hierarquiZar rigorosamente estes
Mas, paradoxalmente, este trabalho de coordenação entre os diver- diversos princípios de explicação, sistematizar esta rede complexa de
sos aspectos do reat, à medida que se vai aprofundando, faz com que relações, sublinhar as suas linhas mestras, introduzir 'nelas ordem e
se complique tanto como se sistematiza o nosso conhecimento do pas- unidade. Mas é possível, ou antes, é uma operação legítima quanto ao
ideal de verdade que todo o conhecimento deve prosseguir?
Encontramo-nos aqui em presença de uma exigência fundamen~
tal, num sentido irrepressível, do espírito humano, essencialmente domi-
1.7 C f. R. Aron, lntroduction, p. I06. nado pela ordem, pela simplicidade, pela unidade.

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DO OONHEOIMENTO HISTCJIUOO A EXPLWAÇAO E OS SEUS LIMITES

Lembro-me de ter ouvido um dia um jovem filósofo sustentar que A minha tarefa aqui será fácil. Tratar-se-á sobretudo de mostrar
«o fim da filosofia - aos olhos de muitos - é explicar tudo por um só as consequências práticas a tirar de uma verdade que ficou bem assente
princípio, um só conceito, um só nome»: pela sua parte, honrava-se de devido ao esforço dos meus predecessores. Para fazer sentir a sua evi-
ser dualista, orgulhava-se da sua audácia, porque «entre os filósofos, dência, basta-me comentar brevemente· dois aforismos, já clássicos, Je
este epíteto passa por injúria ou, pelo menos, por uma censura» 18• O ver- Raymond Aron:
dadeiro historiador não se dará por satisfeito tão depressa: a flauta de A teoria precede .a história 19 • A teoria, isto é, a posição consciente
dois buracos parece-lhe um instrumento ainda primitivo de mais para ou inconsciente assumida quanto ao passado pelo historiador: escolha f'
modelar, na sua infinita variedade, a melodia subtil e desorientadora recorte do assunto, questões levantadas, conceitos utilizados e, sobre-
que aprendeu em contacto com o passado ... tudo, relações, sistemas de interpretação, valor relativo ligado a cada
um. É a filosofia pessoal do historiador que lhe dita a escolha do sis-
iÉ inevitável que o historiador conheça, por sua vez, a tentação tema de pensamento em função do qual vai reconstruir e, julga ele,
propriamente filosófica da redução à unidade e muitas vezes sucumba explicar o passado.
a ela.. À análise escrupulosa e, segundo lhe parece, timorata que procura A riqueza, a complexidade da natureza dos factos humanos e por
dosear os matizes, dar o devido lugar a toda a ligação entrevista, achar- consequência da realidade histórica torna esta, como nós verificámos,
-se-á no dever de substituir a forte construção, a bela hipótese que, praticamente inesgotável ao esforço de descoberta e de compreensão.
restituindo à unidade a multiplicidade do dado histórico, permitirá pen- A realidade histórica é, ao mesmo tempo, inesgotável e equívoca 20 •
sar de maneira enfim satisfatória o acontecimento, a vida. o período, a Há sempre tantos aspectos diversos, tantas forças em acção que se recor-
civilização que estudamos. Mas se a operação é num sentido inevitávd, tam e sobrepõem no mesmo ponto do passado, que o pensamento do
se é possível rigorosamente achar-lhe no plano pedagógico qualquer historiador aí encontrará sempre o elemento específico que, segundo a
utilidade, seria ilusório esperar daí não digo apenas um acabamento, sua teoria, se revela como preponderante e se impõe como princípio ele
uma sublimação da história, mas mesmo sempre um progresso substan- inteligibilidade - como a explicação. O historiador escolhe à sua von-
cial na elaboração do nosso conhecimento. tade: os dados prestam-se complacentemente à sua demonstração e adap-
Sem dúvida, ao longo de toda a nossa análise, não cessámos de tam-se igualmente a todo o sistema. Encontra sempre o que procura-
descobrir, a cada etapa desta elaboração, uma intervenção maciça da sejam mitos solares (ou indo-europeus), exigências religiosas, forças
personalidade do historiaqor, cujo pensamento, categorias, exigências sociais ou estruturas económicas. Mas que o seu triunfo seja modesto:
modelavam o conhecimento histórico, lhe impunham forma e rosto. não terá arriscado nada, porque está bem demonstrado que a vida
Pelo menos esta construção encontrava alimento e justificação no mate- humana possui ao mesmo tempo componentes económicos, sociais, reli-
rial do dado, informe, mas real, que lhe forneciam os documentos. Aqui, giosos, etc., e o nosso homem encontra-se, logo à partida. de posse de
pelo contrário, passamos ao limite, e o espírito humano, que só obedei.:e uma doutrina que ensina qual desses diferentes aspectos é determinante,
à sua exigência própria. aparece como uma roldana louca que se tivesse fundamental- real.
feito parar. Esta tendência para imaginar a estrutura do passado como Coloquemo-nos no caso mais elementar: o de uma história
mais simples, mais unificada do que é na realidade, constitui um desses factual aplicada àquilo que ele chama a procura das «causas». Terá
preconceitos tenazes, desses ídolos do espírito, fontes do erro, que outrora de tomar partido diante da multiplicidade das ·causas possíveis que
Bacon denunciava (entra no primeiro dos .géneros que ele distinguia; é uma investigação um pouco desenvolvida sempre descortina, e discernir
propriamente um idola tribus). entre causas acidentais e causas profundas, entre as simples circuns-

18 S. Pétrement, Essai sur le dualisme chez Platon, les Gnostiques e les Mani- to R. Aron, lntroduction, p. 93.
ché.ens {1947}, p. I. 20 lbid., p. 102.

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tâncias favoráveis e a impulsão, iniciativa ou decisão decisiva. Queni' as diversas interpretações possíveis, como não reparar na incerteza,
não se apercebe da parte de arbitrariedade que, num instante, entrará na gratuitidade fundamental de toda a solução escolhida?
em toda a tentativa de explicação desta natureza? O historiador pode Mas trata-se ainda de um exemplo grosseiro. Encontrar-se-á a
sempre exaltar ou rebaixar o seu herói, atribuindo o seu comporta- mesma esquematização consoladora, mas incerta, nas grandes hipóteses
mento a motivos elevados ou a móbeis inconfessados. mediante as quais os historiadores se esforçaram por vezes em reunir,
De maneira mais geral, vê-se sempre dividido entre os dois tipos como numa síntese suprema, a essência do seu saber (ou pelo menos
de explicação que lhe sugere a experiência vivida e, segundo a sua nas quais um público sempre apressado de bom grado condensou a
equação pessoal, escolherá entre uma e a outra (ou uma das mil contribuição, amiúde muito mais rica e mais subtil, do seu trabalho).
combinações possíveis entre as duas), ou então experimentará de maneira
aguda o sentimento da necessidade histórica. Não sentimos muitas vezes Assim as respostas sucessivamente propostas para a questão levan-
a impressão de que tudo o que nos acontece se impõe a nós com uma tada por Ed. Gibbon (qual foi a «causa» da decadência e da ruína
força invencível, que toda a nossa vida é determinada por um jogo de do Império Romano?): triunfo da religião (cristã) e da barbárie (o
forças que, uolentes, nolentes, nos conduzem ou nos arrastam? O cristão próprio Gibbon), eliminação do escol, Ausrottung der Besten (Seeck),
sentir-se-á entre as mãos de Deus, o pagão falará do destino: degeneração física (Kaphahn) ou racial (T. Frank), crise climática, seca
(Huntington), degradação do solo (Liebig, Vassiliev), declínio da escra-
Was it not Fate, that, on this July midnigth ... vatura e regresso à economia natural (M. W eber), luta de classes, o
exército vermelho dos soldados-camponeses contra a «burguesia» cita-
Muito naturalmente, o historiador será então conduzido a procurar dina (Rostovtsev), catástrofe exterior, «a civilização romana não morreu
aquilo a que chamará as causas profundas e descreverá o passado como de morte natural, foi assassinada» pelas invasões bárbaras (Piganiol),
um desenvolvimento majestoso cujas modalidades de pormenor, talvez conjunção do perigo exterior e do desafecto das masas (Toynbee) ...
em si mesmas contingentes, serão logo à primeira desprezadas em bene- E não pretendo erguer um catálogo completo! 21
fício de um movimento de conjunto, desenhado com o rigor de uma A não ser que se desloque o problema e se situe muito mais
curva: a história passa a ser evolução e o desenvolvimento da humani- · tarde a linha de ruptura: para H. Pirenne, a Antiguidade continua
dade participa da dignidade da Natureza. através da época «bárbara», e é somente a conquista árabe das mar-
Mas a experiência vivida sugere-nos também a hipótese oposta de gens sul do Mediterrâneo que destrói, com a unidade mediterrânea,
ama contingência radical: tanto como para a noção do destino imutável~ a unidade económica do mundo antigo. Aqui, a síntese atinge a
a consciência mítica da humanidade apelou para a da Fortuna, cega sua forma perfeita. Toda a teoria se pode resumir em duas palavras,
e inconstante, ou do acaso. A experiência do homem de acção alcança Mahomet et Charlemagne 22 •
aqui a da vida quotidiana: é por ter jogado cara ou coroa o emprego
de · um dia de descanso que tive este encontro imprevisto que orientou Temos de fazer a tais hipóteses a mesma crítica que fazíamos
o desenvolvimento de toda a minha vida... O historiador então pôr-se-á aos conceitos demasiado ambiciosos: There are more things... Há
a sonhar: «se o nariz de Cleópatra tivesse sido mais curto ... » e subli-
nhará, ao contrário do precedente, as circunstâncias imprevistas, as
particularidades de toda a ordem que fizeram a história tal como ela 2~ Encontrar-se-á a análise destas principais teses em M. Rostovzev, Storia
economia e sociale del l'lmpero Romano {1933) , pp. 610-619; A. Piganiol, L'empire
é - tal como ela podia não ter sido.
chrétien { 1947), pp. 411-422; S. Mazzarino, Aspetti social i del quarto seco lo {1951),
Contingência ou fatalidade? Causas profundas ou acasos? Dado pp. 8-29.
mais uma vez o carácter fictício das operações mentais, pelas quais 22 Tftulo do livro póstumo {Bruxelas, 1937), onde se encontrará o último
pesamos os prós e os contras, e assim procedemos a uma escolha entre estado da teoria.

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DO OONHEOIMENTO HIST6RIOO A EXPLICAÇAO E OS SEUS LIMITES

sempre, na realidade histórica, mais coisas do que as que a hipótese os iluminam com as suas aproximações e suscitam todo um trabalho
mais engenhosa consegue abraçar: esta não passa de um artifício de fecundo de verificações, de demolições e de reconstruções» 23 ,
apresentação que, para comodidade da memória, sublinha, com um
traço de lápis vermelho, tais e tais linhas submersas num desenho de Mas facilmente se podem converter nessas «grandes máquinas
milhares de curvas que se recortam em todo o sentido. Não passa de que impedem de compreender»24• Pela sua simplicidade consoladora,
uma maneira de ver, não podia pretender reconduzir a multiplicidade pela sua claridade que cega, acabam por embotar a aptidão do historiador
observada a alguns princípios gerais que a pouco e pouco explicariam para ver a realidade na sua 'autêntica e irritante' multiplicidade.
verdadeiramente e totalmeate o real.
Nada de mais revelador à observação que o uso autêntico que É o que acontece que os epígonos que recebem confiadamente
os verdadeiros historiadores fazem de facto destas hipóteses. Podemos, a teoria já pronta- ou com o próprio mestre que envelheceu, perdeu
por exemplo, ler o capítulo final que Miguel Rostovtsev ou André a frescura de reacção, e deixa endurecer os esquemas em que chegara
Piganiol consagram, cada um por seu lado, ao exame do problema a poder fixar o resultado da sua investigação. A hipótese, fossilizada,
torna-se uma teoria que se substitui ao real e que se pretende verificar,
«Fim do Mundo Antigo». É bem evidente que nem um nem o outro
custe o que custar. A coisa acontece aos maiores, como, por exemplo,
pretendem reunir toda a verdade do seu conhecimento do assunto na
H. Pirenne. A pista da minha investigação cruzou uma vez a sua, a
fórmula sumária em que eu lhes resumia mais acima a opinião. Atesta-o propósito do estado da instrução dos laicos na época merovíngia 25 •
o cuidado minucioso que têm, quer um quer o outro, em evocar as Como a teoria Mahomet et Charlemagne exigia que a educação antiga
principais hipóteses dos seus predecessores, em precisar para cada tivesse persistido para além das invasões bárbaras, era preciso encon-
uma (em si de ambição totalitária e exclusiva das outras) a parte de trar, no tempo dos Francos, escolas «laicaS>> de tipo romano, e Pirenne
verdade que ela pode patentear - ou que, pela sua crítica, pode levar julgou encontrá-las, mas todos os ·textos que invoca a esse propósito são
a descobrir ... A imagem real que a sua exposição, matizada e minu- utilizados às avessas e referem-se na realidade a· escolas «clericais»
ciosa, deixa no espírito de um leitor atento, é constituída pela sobre- de tipo medieval.
posição destas passagens e novas passagens do pincel. Como sublinhá-
vamos mais acima, é menos úma explicação que reconduz o pormenor Também as mais das vezes, estas vistas gerais só terão um valor
à unidade do que uma descrição raciocinada que evoca a pouco e pouco e uma função pedagógicas: são maneiras de represerrtar as coisas,
a complexidade destas coordenações múltiplas que constituem a estru- sumárias e provisórias, equivalem a um resumo cômodo, a um primeiro
tura do real. esboço sempre destinado a ser completado, complicado e ultrapassado,
em vez de ser como que uma essência pura da história, como um
Não poderíamos, portanto, ver nas teorias deste género a forma
álcool de elevada graduação que encerraria o aroma do saber!
superior, a súmula do saber histórico- o equivalente das «grandes
hipóteses» da física (teoria cinética dos gases, teoria electromagnética
da luz, relatividade), com que as compararam, não sem bastante impru-
dência. Têm sem dúvida as suas vantagens e podem, numa certa 23 Combats pour I'Histoire, p. 96; cf. p. 358.
medida, ajudar a descoberta. u Vou buscar a f6rmul11 ao mesmo L. Febvre, ibid., p. 308, n. I, que se
corrige assim a si mesmo. o

25 Tftulo da memória publicada por H. Pirenne, na Revue Bénédictine, t. XLVI


Ninguém melhor que L. Febvre soube descrever a utilidade destas (1934), pp. 165-177; contra, a minha Histoire de l'éducation dans I' Antiquité (1965). pp. 482 e
«hipóteses largas que agrupam milhares de factos miúdos e dispersos, 621, n. 11.

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G. Wiet acaba de publicar um artigo sobre o Império neobizan- Tem de se ver efectivamente que, devido a uma inclinação quase fatal,
tino dos Omíadas e o Império neo-sassânida dos Abássidas 26 , magní- toda a hipótese explicativa tende a transborcar do -domínio para o qual
fico esboço, trOfadO com mão de mestre, singularmente excitante para fora concebida (e no interior do qual, se foi bem concebida, será
o espírito, mas onde só se poderá ver uma introdução à história destes válida) e, a pouco e pouco, a manifestar uma ambição totalitária, a
dois séculos da história muçulmana; o autêntico sábio que é G. Wiet querer dar conta de tudo. Uma pessoa deixa-se arrastar a repensar
decerto não a pretende subsumir toda nestes dois conceitos! e a reconstruir um conjunto da realidade histórica encarada (e às
vezes o conjunto da história humana) em função do sistema privile-
Fiéis ao nosso nominalismo integral, temos de denunciar aqui giado por que se optou. E como o tecido da realidade histórica é
o perigo da tentação idealista. O historiador deve ter o cuidado de bastante cerrado (há. entre os diversos aspectos do real, tantas conca-
nunca sobrestimar a qualidade lógica das suas hipóteses, da mesma tenações variadas), como, seja qual for a maneira por que se apreende,
maneira que não sobrestimará (como nós lhe prescrevemos) a dos seus pouco e pouco todo ou quase todo ele, segundo parece, acaba por vir,.
conceitos. Se não vigiar com a sua inquieta prudência, quase fatalmente tem-se a ilusão de que a teoria esgotou tudo: ficamos espantados com
consentirá em extrapolá-los. o êxito obtido e vemos aí como que uma verificação experimental da
O mecanismo é o seguinte: uma teoria é sempre elaborada (por verdade do sistema- quando esta retrospectiva implica e não seria
meio dos recursos mentais do historiador e com o seu equipamento capaz de demonstrar a teoria em função da qual foi elaborada 27 •
teórico) para resolver um problema particular e limitado; repousa,
portanto, sobre uma selecção (é o «traço de lápis vermelho» de que O exemplo que aqui se impõe, na sua grosseria caricatura!, é
falávamos mais acima), uma escolha entre os inumeráveis aspectos o do marxismo, tal como foi empregado por certos historiadores comu-
que a realidade histórica encarada apresenta. O historiador só conserva nistas, nomeadamente na Rússia 28• O marxismo apresenta-se ao histo-
os elementos úteis, em seu entender, para explicar o ou os fenómenos riador como uma teoria elaborada pelo seu autor (designadamente por
que ele preferiu explicar. Operação legítima, enquanto não se esquecer meio de «tipos-ideaiS>>: o capitalismo, a burguesia, o proletariado, as
de que representa uma abstracção. classes sociais, as forças de produção), na perspectiva filosófica que
Mas o perigo é :grande. Corre-se sempre o risco de esquecer a era a sua (a de um discípulo de Hegel e de Feuerbach), para dar conta
existência daquilo que se resolvera não contemplar. A teoria é como de um conjunto de fenómenos sociais em relação com a revolução
um projector cujo delgado pincel luminoso perscruta o real e ilumina industrial da Europa do século XIX e, enquanto tal, foi uma teoria que
violentamente os objectos que se lhe apresentam com um ângulo favo- se revelou notavelmente fecunda e que correspondeu, em larga medida,
rável, repelindo por contraste o resto para uma obscuridade total. à tarefa que lhe foi confiada.

A imagem é insitficente (como toda a comparação), porque


poderia sugerir que, para obter uma verdade mais completa, bastaria 27 C f. R. Aron, lntroduetion, p. 95: «(A retrospecção) não é relotiv11 quer
multiplicar essas iluminações parciais e obter, como um todo, as luzes: e teorillquer e perspectivll do historiodor? lmplicll portllnto e n1io poderia demonstrllr
iluminar-se-ia a Cidade Antiga, do lado religioso, com o projector 11 verdade d11 filosofi11 de que é solidári~t».
28 Estas pouc11s linhas não pretendem 11presentor uma discussão dos problem11s
<<F'ustel de CoulangeS>>, depois o aspecto economzco e social por meio
lev~tntodos pelo próprio morxismo, mos 11penas qu~tlificor um11 cert11 ~tplic11ç1io que -:!&
do projector «Marxismo», etc. Processo largamente ilusório:
f~tcto lhe foi d11d11. O seu c11rácter bárb11ro explica-se pelos condições em que 11 cultur11
soviética se viu situad11 pelo f11cto d11 Revoluç1io: dado que 11 intelligentsia russ11 se
viu dizim~tda, ou melhor, qu11se aniquil11d11 pel11 cliquidaç1io» ou pel11 emigr11ção, a
cultura teve de começ11r de novo n11 Rússi11, num clim11 qu11se c11rolfngio; foi verda-
28 Cahiers d'Histoire mondiale, t. I ( 1953), pp. 63-70. deiramente um11 nova ld11de Médi~t.

172 173
DO CONHECIMENTO HIBT6RICO A EXPLIOAÇAO E OB BEUB LIMITES

Mas a partir do momento em que se esforçam por aplicar a teoria data final). Porquê? É que a «luz do marxismo» só lhes proporcionava 3 1
a sectores do real que se afastam cada vez mais daquele - o económico- um fraco morrão, o princípio do «esclavagismo» (entre a «comunidade
-social- para o qual foi concebida, o seu domínio sobre as coisas, a primitiva» e a «feudalidade»)- e quem poderia «explicar», por refe-
sua significação, o seu alcance diminuem rapidamente. Assim acontece rência só a este conceito, a imensa variedade da história romana?
no sector religioso ou estético. O dogmatismo exagerado de que dão prova certos partidários do
A crítica soviética 29 pede-nos que se ponha a obra de Moussorgsky materialismo histórico obriga a insistir sobre o carácter ilusório das ope-
em relação com o «democratismo» revolucionário da década de 1860, rações lógicas em que vêem uma prova da sua verdade e da sua eficácia.
a pequena burguesia, o anarquismo dos «populistas>>; descobre nesta Mais uma vez, a teoria precede a reconstituição histórica: só vêem o que
obra as contradições objectivas de uma classe social, a contradição desse a teoria permite ver e dão o nome de «história>> a uma imagem seleccio-
nobre deslocado que, depois de ter rompido todo o laço económico nada em função da doutrina, imagem parcial e deformada. Aqui temos
com os proprietários fundiários, se revela incapaz de se elevar até às um que imagina «explicar» Racine pondo a sua obra em correlação com
ideias revolucionárias consequentes... Em que é que uma tal interpre- os acontecimentos religiosos, sociais e políticos do tempo sa. Fica mara-
tação constitui uma explicação realmente histórica de uma obra como vilhado com os resultados imprevistos, com a correlação estreita que
a iKhovanchtchina, em que é que nos ajuda- é propriamente esse nwnifestam aproximações deste género:
o fim da história- a compreender os valores estéticos desta música, a
originalidade técnica, surpreendente, deste estilo, e, finalmente, a signi- 1675-1677 1675
ficação humana que faz deste drama «popular» uma das obras-primas
da arte religiosa? Racine escreve Pedra. Regresso Após uma calma que dura desde
As relações apontadas são reais, mas só aparecerão decisivas àquele à tragédia. Retoma o tema de 1669-1670, recomeçam as insur-
que tiver escolhido ver através do óculo marxista, um aparelho que ~ó Mithridate, mas numa perspec- reições populares na Bretanha,
está feito para o que está feito e que analisa toda a realidade de maneira tiva trágica. A história deixa de em Mans e em Bordéus. Aumen-
a pôr em evidência a sua componente económico-social, desqualificando existir, os conflitos são insolú- tam as tensões, etc.
como «superestrutura>> tudo o resto, mas uma tal história marxista da veis, não é possível compro-
música só conserva e só pode conservar o que é de facto não-música! misso algum.
O contraste entre o real e as ambições teóricas é ainda maior à 1676
medida que nos vamos afastando da época «capitalista». Temos dois
historiadores soviéticos do perfodo staliniano que se debruçam sobre 30 de Maio, decisão antijanse-
a Roma antiga ao. Que contraste penoso entre a sua profissão de fé nista contra H e n r i A r n a u 1J,
marxista, a convicção repetida de que dai deriva uma concepção verda- pondo de novo o problema da
deiramente nova e, enfim, autenticamente cientlfica, e o quadro, muito assinatura do formulário.
académico, que eles traçam (não falta nenhuma banalidade: nem os sete
reis de Roma nem a escolha da deposição de Rómulo Augústulo como
3
1 Com dois obiter dieta do «geniel» camerada Staline, tradução francese
em Questions du Léninisme {Mascavo, 1947), pp. 432 {«e revolução dos escravos»?)
29 e 453 «R ame recisto!).
Ver o curioso prefácio redigido em nome de «Edição Musicel do Estedo>
32
pere a edição crftica de Khovenchtchina, por P. Lemm { 1932). pp. V-VI. L. Goldmann, Sciences humaines et philosophie ( 1952), pp. 137-145; mes
ao N. A. Mochkine, lstorija drevnego Rima, Mascavo ou Leninegredo, 1948 a prático do eutor revelou-se bast~~nte diferente do que anunciovo este monifesto
e S. I. Koveliev, lstorija Rima, Leninegrodo, 1948. te6rico: Ver Le dieu caché ( 1955).

174 175
DO CONHECIMENTO HISTóRICO A EXPLICAÇÃO E OS SEUS LIMITES

Mas temos de lhe fazer as mesmas objecções que vimos L. Febvre tivas da história. Estas parecem-nos sucumbir sem resistência ao prestígio
.dirigir a A. Brun (p. 162): foi por o autor ter elaborado o quadro em impuro do idola tribus. Na medida em que propõem ao espírito esta
duas colunas que a aproximação lhe parece convincente. Bastar-lhe-J explicação, total e unificada, que o adula e lhe dá satisfação às exigências
acrescentar pelo menos uma terceira, consagrada, por exemplo, à vida secretas, substituem um esquema sem validade à autêntica história, aquela
sexual e sentimental de Racine, para que as coisas se iluminem doutra que se esforça por . «desenredar pacientemente a meada confusa dos
maneira (as tempestades da sua ligação com a Champmeslé ... ): um fcnómenos históricos», fazendo frente à sua «eXtrema complicação» 36 ;
psicanalista que se apodere do caso, e o carácter privilegiado dos slncro· é destruir a contribuição original, a fecundidade própria da investigação
nismos sócio-políticos desvanecer-se-á! histórica (que nós resumíamos no verso de Hamlet: There are more
Novo paralogismo é um raciocínio deste tipo: como o marxismo things ... ). Efectivamente, de que serve a história se a filosofia nos ensina
conseguiu explicar a génese do capitalismo, «a concepção materialista antecipadamente, quanto ao essencial, aquilo que ela deve conter! A
da história já não é uma hipótese, mas uma doutrina cientificamente história então é um simples aparelho registador, que constata que as
demonstradm> 88 - e torna-se legítimo empregá-lo para o estudo das coisas se passaram realmente como se deviam passar, limita-se a ser
outras sociedades. Não, porque o valor de um conceito científico é um processo de verificação. Como sublinhava, com tamanha pertinência,
estritamente relativo ao domínio da experiência, para explicação do qual Péguy, na Note conjointe ...• «se Jesus tivesse cumprido as profecias
foi elaborado: «Todo o conceito acaba por perder a sua utilidade, a sua pela via de uma dedução automática, de uma dedução mecânica, de
própria significação, à medida que o afastam cada vez mais das condi· uma dedução puramente e estritamente determinativa.... se a vida de
81
ções experimentais em que se formou» 84 • Se o marxismo teve no passado Jesus só tivesse sido a realização automática, mecânica e mesmo o coroa-
e possui ainda uma fecundidade geral para a história, ela não reside mento metódico das profecias, não teríamos necessidade dos Evangelhos
nestas aplicações literais, mas sim nas transposições analógicas a que se e mesmo Jesus não teria tido necessidade deles».
pôde proceder. O papel do marxismo foi sugerir que os aspectos eco~­
micos da história podiam ter uma importância fundamental e encoraJar O exemplo é hoje muito mais saboroso do que podia parecer no
a procurá-los. A verdadeira contribuição do marxismo para a hist~ria tem po de Péguy, porque, entretanto, vieram «historiadoreS>>, como G. A.
romana não é representada por estes manuais soviéticos dignos de dó, van den Bergh van Eysinga, para quem precisamente Jesus não era nada
mas sim pela obra tão fecunda, de M. Rostovtsev, dos Studien zur mais que a realização metódica das profecias. Repararam que a sua vida
Geschiohte des romischen Kolonats (1910) à Social and economic history já não tinha razão de ser e muito logicamente chegaram, com a maior
of the Roman Empire (ed. póstuma 1957). seriedade do mundo, a contestar a sua existência.

Esta discussão tem o interesse de pôr em evidência as razões Uma pessoa fica impressionada, quando sobe de Marx a Hegel, de
profundas da rejeição que desde há um século e meio, se não há mais, Hegel a Fichte, depois a Kant, ao descobrir com que perfeita franqueza
os historiadores de ofício não deixaram de opor às filosofias especula- a filosofia da história, na sua juventude, proclamava esta desqualificação
da história empírica. Kant, por exemplo, desenvolve em nove proposições
a ldeia de uma história universal verdadeiramente filosófica 37 - «dei-
ss Cf. V. Lenine, Ce que sont les amis du pleuple ... , em Oeuvres choisies
(Moscovo, 1948), t. I. p. 94.
a• Invoco 11 qui 0 flsico e r11cioneliste J. Perrin, Les 6léments de la Physique
( 1929), p. 21 (sublinhedo pelo eutor). . .
8G Porque, per11nte o orgulho ingénuo dos Soviéticos e dos comun1st11~ oc~de~· se Como diz muito bem H. Berr, l11 synth~se en histoire, p. 205.
teis, se tem de sublinh11r e importônci11 do per!odo «socilll-democrete» de mfluenc111 ST Tr11dução froncese de St. Piobett11 : Kont, La phi'osophie de l'histoire,
opuscules (1947), p. 61. Quonto a Fichte, cf. H. Berr, op. cit., p. 22.
marxist11.
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176
DO CONHECIMENTO HIST6RICO ·Ã EXPLIOAÇAO E OS SEUS LIMITES

xando, como ele diz com simplicidade ou desenvoltura, deixando à natu- que resultam da impossibilidade de proceder por meio da experimen-
reza o cuidado de produzir o homem capaz de redigir a história segundo tação à · constituição de sistemas fechados, isolando este ou aquele
esse princípio»- um pouco, diríamos nós, como Leverrier deixava ao elemento do real). As observações de carácter pretensamente geral,
astrónomo de serviço o cuidado inútil de constatar a presença de Neptuno que se procura fazer passar por «lei1? da história», não passam de
no ponto determinado pelo cálculo! semelhanças parciais, relativas ao ponto de vista momentâneo sob o
Confirmando assim as conclusões precedentemente sugeridas (p. 164), qual o olhar do historiador preferiu fixar tais aspectos do passado.
esta análise dos limites da explicação histórica permitiu-nos apurar ~ Algumas destas «leis», de carácter psicológico ou sociológico,
existência de um nível específico onde se estabelece a validade da história dependem de facto não de uma ou de outra destas ciências, mas
como conhecimento do passado humano. Mesmo se- preferimos não da arte do moralista (estilo La Rochefoucauld, Vauvenargues). São
encarar este proble~a (p. 29)- fosse ou se tornasse possível elaborar «máximas» cujo giro sentencioso não passa de uma forma aliciante
uma verdadeira ciência da evolução da humanidade, estabelecer, de de apresentar, sob uma forma geral, uma aproximação de alcance
maneira racionalmente ou experimentalmente convincente, a existência limitado entre alguns casos de experiência. Assim o axioma caro a
de leis ou de princípios gerais que explicassem realmente o comporta- Lorde Acton (e a Alain): «0 poder corrompe ... ».
mento humano no tempo, a validade desta experiência directa do passado,
deste conhecimento singular que a história representa- e que implica, Oiço efectivamente os grandes homens de Estado, os verdadeiros
como vimos, toda uma análise das coordenações estruturais ou temporais «pastores de povos», chamem-se eles Péricles ou Churchill, sugerir-me
- permaneceria, conservaria o seu valor próprio, o seu nível específico que é, pelo contrário, no exercício do poder que uma alma grande
de inteligibilidade- um pouco como a existência das leis gerais da Botâ· mostra o seu valor; que se outros, como Calígula, Nero ou alguns
nica (anatomia e fisiologia vegetais, leis da evolução ... ) não suprime dos nossos ministros, se foram abaixo, é porque eram afinal almas
a validade de um outro nível de conhecimento das plantas, o do cam· moles, indignas da sua função.
ponês, do amador de jardins. ou de flores, sobretudo o do botânico
«sistemático» (descrição, análise dos caracteres de cada espécie). Atribuirei o mesmo valor muito relativo às «leis» do desenvol-
Em tudo o que precede, só encarámos efectivamente a expli- vimento da civilização que o estudo paciente e engenhoso de Toynbee
cação possível dos fenómenos históricos singulares- objecto próprio pode ter apurado de •um confronto sistemático das vinte e uma civi-
do trabalho do historiador. Creio, efectivamente, que é inútil encarar lizações registadas pela nossa história: desafio-resposta, breakdown,
a possibilidade de uma elaboração de «leis» históricas propriamen~e N emesis da creatividade, etc.
ditas (distintas das leis explicativas da filosofia da história, as 5ua~s
supõem que se alcançou um plano mais profundo que o da expenenc1.a É inútil insistir sobre a arbitrariedade do postulado que supõe
directa e explicam os fenómenos históricos por redução a uma . reah- The Study of History- o da unidade orgânica da «civilização», suma-
dade considerada . como mais autêntica - a infra-estrutura económica,
riamente definida como «intelligible field of History>>. Se não há dúvida,
a sexualidade). por exemplo, que o Egipto seja um dom do Nilo, que as dificuldades
Porquê? É que a realidade histórica, tal como a revela. a expe-
riência através dos documentos, só nos oferece fenómenos smgulares, particulares que encontrava o estabelecimento de uma civilização
irredutíveis um ao outro. Se é possível instaurar uma comparação agrícola neste vale possam ter desempenhado um papel decisivo no
entre alguns desses fenómenos, as analogias que se pode dessa maneira desenvolvimento do antigo Egipto, o historiador hesitará, 1JO entanto,
pôr em evidência só incidem sobre aspectos parciais, ficticiamente em explicar toda a civilização faraónica pela response . ao challenge
abstraídos pela análise mental, nunca sobre a própria realidade (enc~n­ representado pela secagem do clima líbico depois do último período
tramos, como a propósito da procura das «causas», as consequênc1as glaciar.

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DO CONHECIMENTO HISTóRICO A EXPLICAÇAO E OS SEUS LIMITES

Sou pessoalmente muito sensível ao interesse que apresenta, para no interior de certos limites, pode ser perfeitamente legítima e fecunda)
o historiador, a meditação dos esquemas de desenvolvimento assim do mesmo tipo que aquela que consiste em qualificar de «barroco»
definidos por Arnold J. Toynbee. No entanto, é claro que a sua a arte de Baalbek: isso equivale a dizer que esse período foi, para o
teoria não conseguiu, como ele esperava, formular as leis específicas mundo grego, qualquer coisa de análogo (até que ponto? Aí é que
do fenómeno «civilização». Analisa com finura e segurança certos aspectos está a dificuldade!) ao período de perturbações dinásticas, nacionais e
do processo histórico, apurando, se se quiser, «leis» do comportamento sociais que, na história do povo russo, se estende desde 1584 a 1613 e
humano, mas os esquemas de conduta, os elementos de curva dese- recebeu propriamente o nome de «Tempo das perturbações», Smoutnoi:é
nhados mostram-se susceptíveis de serem aplicados, em escalas dife- Vrémia.
rentes, a fenómenos históricos de amplitude variável, e não são, portanto,
características do desenvolvimento das civilizações. Para quem as sabe conter dentro de certos limites, tais aproxi-
mações são, como nós vimos, sugestivas e ricas de expressão. Seria
Toynbee é demasiado perspicaz para não ter sido o primeiro a abusivo esperar demasiado delas.
reparar nisso. Ao verificar que o ritmo Ying-Yang, Repouso-Dinamismo
que lhe tinha servido para caracterizar a passagem das civilizações
primitivas às grandes civilizações, se encontra no Withdrawai-Return,
«retirada e regresso», da vida pessoal dos grandes homens, observa:
«This time the rythm is tuned to a shorter wave-length» 38 •

IÉ que ainda aqui não deparamos com leis de carácter científico,


isto é, com determinações de carácter geral apurada pela observação
de fenómenos bem definidos -mas somente com aproximações", legí-
timas sem dúvida, que sublinham semelhanças parciais, postas em
evidência J>elO ponto de vista particular em que o autor nos convida
a colocar-nos com ele. A validade destes esquemas de desenvolvimento
- parece-me da mesma ordem que a dos conceitos analógicos ou meta-
fóricos (do tipo «o barroco») analisados mais acima (pp. 137 e ss.).
De facto, não deixará de nos chamar a atenção que Toynbee goste
de utilizar, para formular as suas «leis», tais conceitos figurados: tempo
das perturbações, proletariado (interior ou exterior: dois graus sucessivos
de analogia), fronteira, língua franca ...

Dizer, por exemplo, que o período que vai da guerra do Pelo-


poneso à fundação do Império Romano representa para a civilização
helénica o «tempo das perturbações». é uma operação mental (que,

ss A Study of History, t. 111, p. 3/IJ.

180 181
8

O EXISTENCIAL EM HISTóRIA

Estudámos até aqui a história, se se pode dizer, do ponto de vist;:;


do seu objecto, do passado a conhecer ou, pelo menos, do conhecimento
em vias de elaboração. Subindo agora da periferia para o centro, para a
origem, temos de encarar a mesma história do ponto de vista do sujeito
cognoscente.
Por oposição ao objectivismo estrito do velho positivismo, que gos-
taria de poder reduzir o comportamento do historiador a um olhar gelado
e como que indiferente lançado sobre um passado morto, a história apa-
receu-nos como o fruto de uma acção, de um esforço num sentido
criador, que põe em jogo as forças vivas do espírito, tal como é definido
pelas suas capacidades, pela sua mentalidade, pelo seu equipamento
técnico, pela sua cultura. A história é uma aventura espiritual em que
se cómpromete toda a personalidade do historiador. ·P ara tudo dizer
numa palavra, ela é dotada, para ele, de um •valor existencial, e é daí
que recebe a sua seriedade, a ·sua significação e o seu valor.
É efectivamente lá que se situa, como tínhamos anunciado, o pró-
prio coração da nossa filosofia crítica, o ponto de vista central donde
tudo se ordena e se ilumina. Este princípio tornou-se· hoje tão evidente
que a tarefa verdadeiramente útil que nos incumbe é menos estabelecer
do que controlar, precisar, limitar a sua verdade. Chegou o momento de
consolidar as posições conquistadas. Tem de se abandonar as fórmulas
enfáticas, as pretensões exageradas, os paradoxos de que usou e abusou.
Reconheçamo-lo francamente: todos, aqui, pecámos mais ou menos.
·A começar mesmo pelo grande Dilthey: juntamente com muita ver-
dade, há algum exagero na sua insistência sobre a biografia, a autobio-
grafia, o conhecimento do eu no e pelo passado pessoal, que ele situa na
origem e como que no centro de toda a história: é a partir da minha his-
tória pessoal que se alarga a minha curiosidade e a minha investigação,
que a pouco e pouco acabam por englobar toda a humanidade; doutrina

183
DO OONHEOIMENTO HIBT6RIOO O EXIBTENOIAL EM HIBT6RIA

que Raymond Aron, com o seu sentido da .fórmula cheia, soube .felizmente A redescoberta do passado «pressupõe já q Ser Histórico para a
resumir num tríplice aforismo: «Num certo momento do tempo, um realidade-humana que-foi-uma Presença, isto é, a historicidade da exis-
indivíduo reflecte sobre a sua aventura, uma colectividade sobre o seu tência do historiador. É esta historicidade que funda existencialmente a
passado, a humanidade sobre a sua evolução: assim nascem a autobio- história como ciência até nas disposições menos aparentes»- as minúcias
grafia, a história particular, a história universal» 1 • Isto está bem visto, do trabalho de erudição 6 •
mas .temos de precisar como é que o · passado acessível da humanidade Não ousarei dizer que se tenha sempre mostrado tão bem inspirado.
pode num sentido ser assumido por cada homem como seu; se não, a Não há dúvida que a influência de H eidegger é largamente responsável
história dos Hititas, por exemplo, só teria sentido- valor existencial- por esse lirismo paroxístico, por esse estilo precioso que tantos dos nossos
para os turcos de hoje, seus sucessores na Anatólia, e numa larga medida jovens filósofos afectam como UI'IUl garantia de profundidade: são dessa
seus descendentes. ordem os malabarismos verbais à base de etimologia, renovados do
E que dizer dos paradoxos de Croce- do tipo «toda a história é Crátilo, apenas toleráveis em alemão, mas que, imitados ou transpostos
hjstória contemp'orâitea»! 2 Sem dúvida, ainda hâ verdade nisto: .todo o em francês (língua onde o sentido das palavras é definido pelo uso e não
problema autenticamente histórico {que Croce 3 opunha à <<anedota», pela raiz) se to~nam duma puerilidade ridícula. E também,
provinda de uma pura e vã curiosidade), mesmo que diga respeito ao
mais longínquo passado, é bem o drama que se desenrola na consciência o objecto principal da reflexão de Heidegger não era a nossa
· de um homem de hoje: é uma questão que põe a si próprio o historiador, ciência, o conhecimento histórico, mas aquilo a que chamei, sem grandes
tal como se acha «em situação» na sua vida, no seu meio, no seu tempo. ilusões acerca do valor da fórmula, a análise da situação ontológica do
Mas, a insistirmos de mais nisso, a celebrarmos de mais essa «presença» do homem que, «temporal até ao .fundo de si mesmo, só é e só pode
passado, actualizado •de novo na consciência do historiador, corre-se o existir historicamente» 7 • Era tentador, era num sentido inevitável que
risco de destruir, de esvaziar por dentro o carácter específico da história se viesse a transpor para o conhecimento histórico (passando de Ges-
que entretanto é, por definição (p. 28), o conhecimento do passado, do chichte para Historie) esta descrição tão profundamente patética da histo-
outrora, da realidade humana enquanto «foi», dagewesenes Dasein. ricidade da «realidade-humana» (Dasein) que encontra os seus funda-
Esse ponto, como tantos outros, foi bem esclarecido por Heidegger \ mentos na finitude da temporalidade 8 , descrição onde abundam as ima-
de quem, desde que se saiba ler com sangue-frio, há muito a aprender. gens e as .fórmulas trágicas: destino, derrelicção, cuidado, inquietação,
Assim no comentário, tão pessoal, que ele deu da ideia cara a Dilthey: «O homem como Ser para a morte».

é por ser um ser histórico que o homem (das Individuum) compreende Exemplo perigoso de imitar: daí provém esta tendência, que se
a história 5 • tornou tão geral, para apresentar, sob um dia demasiado prometedor, o
carácter existencial da investigação histórica. O nosso diálogo com o

1 R. Aron, lntroduetion, p. 82. 6 Sein und Zeit, § 76, tr11d. p. 204 {reproduzi o sistem11 de equivalentes enge-
2 Contribuzione a la critica di me stesso, troduçõo francesa ( 1949), p. 110; nhosos, mas estranhos, imaginados por H. Corbin, que torna ess11 tran·scrição- não
«... o Teoria e hist6ria da Historiografia, n11 qu11l eu empreender11 determinar a natu- se tem a coragem de dizer essa tradução- muito mais obscura em francês do que
.rezll da verdadeiro historiografia, considerada como uma históri11 sempre «contempo- no 11lemão origin11l). No próprio Dilthey, o fórmula 4:0 homem é um ser histórico» põe
nea», isto é, nascid11 dos necessidades intelectu11is e mor11is do momento.» sobretudo «o 11cento sobre a presença l11tente do esplrito objecti vo em cada pessoa»
3 La storia come pensiero e come azione, tradução francesa, pp . 118-125. (llngu11, conceitos, monumentos, técnicos, herd11dos do passado): R. Aron, La philo-
• Sein und Zeit, § 73, tr11duçõo fr11nces11 em Qu'est-ce que la métaphysique?, sophie critique, p. 87.
pp. 179-180. 7 Sein und Ze·it, § 72, mesm11 tr11duçõo, p. 176.
5 Der Aufbau der geschichtlichen Welt ... , Gesammelte Schriften, t. Vil, p. 151.
8 lbid., § 74, p. 191 .

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DO OONHEOIMENTO HIBTõRIOO O EXIBTENOIAL EM HISTóRIA

passado torna-se então um debate pesado de angústia, em que o histo- do problema para ele fundamental, cuja solução por ·vias algumas vezes
riador, comprometido nos combates da vida presente, procura, no fogo travessas e muitas vezes misteriosas, importa ao seu destino, e nisso com-
da acção, obter do passado algumas luzes que o possam ajudar no seu prometerá a sua vida e toda a sua pessqa.
esforço por impor uma forma ao futuro; Haverá ainda necessidade de convencer disso o meu leitor? Não
existe história, como nós vimos (cap. li), enquanto não se encontra um
assim Aron: <iNa medida em que vive historicamente, o historiador tende historiador para evocar o fantasma do passado e para o constranger com
para a acção e procura o passado do seu futuro» 9 ,ou E. Dardel: «0 inte- perguntas; ora é do mais profundo do próprio ser do historiador que
resse pelo passado denuncia já uma historicidade que se procura a si brotam estas questões que de antemão orientam e .predeterminam toda a
mesma»- o que é muito bem visto, mas por que motivo falar a esse investigação {pelo menos nas suas grandes linhas, porque, como vimos,
propósito de «vertigem» e de «angústia»? 10 à medida que o diálogo se prolonga, a questão inflecte diante da resis-
tência "do objecto e transforma-se para se conformar a ele).
Em vez de procurar perversamente nos meus predecessores aquilo Uma análise um pouco cerrada porá sempre em evidência esse
que eles podem ter escrito com um pouco de exagero, prefiro repetir: vínculo essencial, esse cordão umbilical que liga a história ao seu histo-
todos nós pecamos. Aconteceu-me um dia 11 ceder ao atractivo da moda riador. Comec.emos pela escolha de assunto: é muitas vezes por razões
e ir buscar a Sartre a sua noção de <<>psicanálise existencial», transpondo-o na aparência bem extrínsecas que um investigador decide empreender tal
do plano ontológico para o da expressão empírica 12 • Eu fazia assim ver trabalho, mas instem um pouco com ele e o carácter existencial da sua
na investigação histórica, pelo menos para um historiador de vocação escolha não tardará a aparecer:
autêntica (aquele para quem a história não é um simples passatempo ou
uma ocupação acidental), uma manifestação simbólica desse «projecto» Publiquei em 1948 essa Histoire de l'Éducation dans 1' Antiquité,
fundamental, original, no qual e pelo qual a pessoa procura encarnar, porque me tinha sido encomendada em 1943 pelas Éditions du Seuil. Sim,
«fazer-se» e em que, de uma certa maneira, toda ela se exprime 13 • mas o editor é um amigo e, se instou para que eu realizasse esse projecto,
Eu queria dizer muito simplesmente que, se pelo menos ele continua foi porque sabia bem que me era caro, e se foi o primeiro a falar comigo,
a ser um homem e se alcança verdadeiramente a história (isto é, se não é é porque adivinhava que o trazia em mim. Por outro lado, se acolhi ~
um simples erudito, esse trabalhador ocupado a desbastar os materiais suas sugestões, quando afastei tantas outras sem exame, não foi porque
para a história vindoura), o historiador não passará o seu tempo em subti- reconheci logo que a sua ideia era a minha?
lezas, com questões que não impedem ninguém de dormir (segundo as
palavras cruéis de Jean Prévost, que foram sentidas como um desafio Mas a escolha do assunto, em si mesma, não é nada ainda. O que
por todos os universitários da minha geração): prosseguirá, no seu diálogo conta é a maneira como a delimitamos, a orientamos, a compreendemos
com o passado, a elaboração da questão que o impede, a ele, de dormir, -sobretudo a maneira como a realizamos. A pouco e pouco, a investi-
gação histórica põe em acção todos os recursos do espírito que se lhe
aplica. Como nos havemos de admirar que ela receba uma marca inde-
9 lntroduction, p. 337. lével? Aquilo que ela passa a ser depende tão estreitamente do que ele
!Q L'histoire, science du concret, p. 121. é ... E ela só existe na medida em que o historiador se interessa, se apai-
11 Revue de Métaphysique et de Morale, t. LIV ( 1949), pp. 259-260. xona, se empenha integralmente nisso.
12 Transposição em si legítima, tanto como a que o pr6prio Sartre fez sofrer
à noção original do «pro-jacto» (Entwurf) que em Heidegger significa uma coiso
Poderíamos retomar e recapitular deste ponto de vista todas as
completamente diferente («Ü homem projectado, deitado ao ser, lançado co mo oii- análises precedentes. A coisa iria por si mesma. É inútil demorarmo-nos
mento ao ser») do que significa nele! nisso. O que mais importa, insisto, é matizar, para a limitar ao seu exacto
13 Cf. J.-P. Sartre, L'être et le néant, pp. 643-663. alcance, essa afirmação do valor existencial da história. À força de a

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DO CONHECIMENTO BIBTORICO O EXISTENCIAL EM HIST6RIA

sublinharmos de mais, corre-se o risco de a deformar. Não devemos fazer passado cuja herança ela conserva: Bizâncio ajuda a compreender Mos-
uma ideia demasiado elevada da história, espera.r de mais ou exigir de cavo, «a terceira Roma» ...
mais dela. Foi devido a tais exageros que a filosofia crítica se desconsi- . Tem, portanto, de se suavizar, para a enriquecer, esta noção de
derou às vezes aos olhos dos historiadores de ofício que já não reconhe- empenho existencial, o que nos fornece ·ocasião para comentarmos, con-
ciam o seu trabalho, humilde e consciencioso, na imagem demasiado colo- ferindo-lhe toda a sua verdade, a doutrina de Dilthey sobre a história
rida, demasiado comovente que dela davam os teóricos. .Para quê falar universal como extrapolação da autobiografia. IÉ bem verdade que uma
de «angústia existencial» a um historiador da economia, dedicado a história nos toca mais, mais directamente (não digo mais profundamente)
estudar as 'Variações da produção e do preço da prata na América no se de alguma maneira aparece como a nossa história. Mas não devemos
século XIX- variações que se registam e se «compreendem» quase _tão ligar esta só à reconstituição da nossa linhagem biológica directa. Retomo
objectivamente como, por exemplo, .as da pluviosidade? Nos dois casos, o caso dos Hititas: se nos parecem mais distantes do que estão os Turcos,
o elemento propriamente humano revela-se para além do próprio fenó- é também um facto que a descoberta deles despertou um interesse par-
meno, que pode e deve, em primeiro lugar, ser observado em si mesmo ticular nos nossos meios do Ocidente, desde o dia em que se ficou com
e por si mesmo. a garantia de que eram indo-europeus (ou que pelo 'menos a classe
É, portanto, necessário precisar bem que, se todo o conhecimento dominante usava uma língua aparentada aos nossos dialectos indo-euro-
histórico reveste, em última análise, um valor existencial, não pode ser peus): de repente passavam .a ser nossos, muito mais interessantes do
sempre in actu com a mesma intensidade, com o mesmo alcance imedia- que os Elamitas, por exemplo (embora a civilização do Elã tenha sido
tamente útil. Nem tudo o que constitui a ciência histórica se encontra mais original e mais fecunda). O conhecimento deles servia para iluminar
no mesmo plano: há uma grande quantidade de conhecimentos que lhe lateralme!}te o das nossas origens. Se não eram nossos pais, eram pelo
menos tios ou primos ...
são indispensáveis a título de meios, subordinados como ao seu fim a um
conhecimento mais alto, o único que constitui a verdadeira história, mas
Lembro-me com que alegria se saudou a publicação de um tratado
que sem eles, não seria possível. É o caso de tudo o que de materiais
hitita sobre o treino dos cavalos 14 • Não era como que uma verificação da
acumulam, com uma infinita paciência, as nossas ciências auxiliares.
tese, defendida nomeadamente por Max W eber sobre os Indo-Europeus,
Reunir um Corpus das marcas de oleiros romanos não é em si uma ope-
povos de cavaleiros?
ração mental carregada de mais valores existenciais que a do Coleccio-
nador imaginado por Jean Capart, que apanhava, classificava, identificava
Não seria fácil determinar, de direito, onde terminará esta com-
os botões de calças apanhados,por ele nas ruas de Bruxelas. Mas um tal
preensão fraterna. Tudo depende da fronteira atribuída ao Eu, esse sujeito
Corpus não é um fim em si e vai buscar a sua justificação aos serviços dos valores. A tradição nacional dos nossos velhos países . do Ocidente
que daí pode extrair um historiador do Império Romano ... habituou-nos a sentirmo-nos solidários com a comunidade nacional e com·
Por outro lado, não se deve fazer uma ideia demasiado estreita, o seu passado: de Dunquerque a Perpinhão, as crianças. fr~ncesas apren-
demasiado imediatamente rentável do alcance existencial de um conheci- deram a sentir-se e todos os cidadãos franceses se sentem solidários de
mento. O homem político ou o diplomata curvado ao peso das suas Vercingetórix, de Clóvis, dos Capetas, etc. Mas já somos em grande
responsabilidades, procurará, antes de tudo, uma cultura histórica que número aqueles que nos pensamos Europeus e mesmo ~Atlânticos (uns;
·lhe forneça a compreensão da conjuntura presente: parecer-lhe-á mais
necessário saber o que se passou nas conferências de Y alta ou de Potsdam
que no tempo de Roma ou de Bizâncio. Mas serão vistas estreitas. indignas 14 B. Hronzny, L'entreinement des cheveux chez les enciens lndo-Européens
de um homem verdadeiramente cultivado, porque meSIIllo a compreensão d' epr~s un texte mitennien-hittite provenent du XJVe siecle event J.-C., em Archiv
da situação internacional de hoje exige o conhecimento do longínquo Orientelni, t. 111 (1931), pp. 431-461.

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DO CONHECIMENTO HIST6RIOO O EXISTENCIAL EM HIST6RI.A

os outros: Soviéticos). iHá gente oheia de fé, na O.N.U. e na U.N.E.S.C.O., de cegueira para a razão, a sua apologia das virtudes, tão antigas ao mesmo
que trabalha a valer para fazer nascer uma consciência planetária. O coro- tempo e tão cristãs, da temperança e da prudência: moderação em tudo,
lário natural foi que não tardaram a mandrur redigir uma história do justo equilíbrio, arte de compor uma mistura bem doseada com todos os
desenvolvimento científico e cultural da humanidade. elementos necessários. Ne quid nimis ... :Não deve ser de mais; à força de
Esta última extensão conserva ainda um carácter imperfeito, porque se carregar de mais no pedal existencial, corre-se um duplo perigo; é amea-
a unificação cultural do mundo ainda não se efectuou. Mas aqui inter- çar quer a realidade quer a verdade da história.
vém um outro factor, o da vocação pessoal. A história da China perma- A sua .realidade: definimo-la como encontro de outrem, saída de
nece estranha para mim, que sou ocidental, porque não posso imediata- nós mesmos, enriquecimento do ser; mas se o homem toma uma cons-
mente assumir esse ,passado original cuja riqueza constitui o património ciência demasiado aguda do seu compromisso no ser e na vida, encerra-se
do povo chinês; mas se decido aprender a língua, a literatura, a arte, nela e, sobrecarregado pela gravidade e pela urgência dos problemas que
deixo de me sentir alheio. Quando ouvimos Louis Massignon falar-nos de se lhe impõem, toma-se radicalmente incapaz de pôr provisoriamente
AI Hallâj e de lbn Dawüd, sentimos bem que para ele o passado árabe «entre ,parêntesis» as nossas preocupações, toma-se incapaz desta epokhe,
não é um passado estranho. Se eu soubesse o árabe tão hem como a única coisa que torna possível e fecunda a saída de nós mesmos, o
Massignon, também a história árabe faria parte do meu passado. Não encontro e o conhecimento de outrem. Nada é mais instrutivo do que
há, portanto, de direito, limite imposto a este alargamento da curio- seguir o desenvolvimento do existencialismo contemporâneo: aqui, temos
sidade, da compreensão, da cultura históricas: nada do que é humano uma filosofia que começa, com Heidegger, por afirmar com força a
me está a priori vedado. Poder-se-iam transpor os versos de Vigny historicidade característica da situação do homem e que leva ao «pen-
quando fala dos antepassados: samento ao-histórico de Sartre», que «aprisiona o homem na .galinha da
sua liberdade» e «barra a estrada», «exclui pelo seu próprio método»
Em vão de todos eles faz-me o sangue descender: aquilo a que nós chamamos história, toma-a «absolutamente irreinte-
Ao escrever-lhes a história são meus descendentes. grável» 15 •
O perigo que eu denuncio aqui não é somente teórico e não ameaça
Pensando, ,pelo contrário, em homens o mais estranhos que se só os filósofos: para dar testemunho disso, temos tod.a a nossa lite-
queira à hereditariedade biológica que se manifesta nos meus cromos- ratura histórica, onde abundam tantos trabalhos cujo valor limitado ou
somas, direi: que importa se o sangue não me faz descender deles? contestável é devido a esta singularidade. Uma investigação dominada
Ao escrever-lhes a história, também descendo deles daqui para o futuro pela urgência existencial, demasiado centrada sobre as preocupações
-porque, se me mostrei capaz de compreender o passado deles, foi presentes, sobre o problema que se levanta, hic et nunc, ao historiador
porque este se me revelou familiar. e·aos seus contemporâneos, e como que obcecada pela resposta esperada,
Uma vez reconhecido tudo isso- e trata-se de uma questão de perde rapidamente a sua fecundidade, a sua autenticidade - a sua rea-
facto - sempre preocupados por completar o nosso tratado das virtudes, lidade.
temos de acabar por pôr a questão de ordem deontológica. Quer isto dizer
que nos tenhamos necessariamente de abandonar sem <<eantrôle» a esta Seria fácil multiplicar os exemplos, alguns deles cruéis. Escolho
pressão do existencial, a esta paixão, consciente ou secreta, que assim um que dá garantias de tranquilidade: trabalhou-se muito sobre Santo
anima toda a actividade, desperta e orienta a curiosidade, sustenta o Agostinho, no século XVII, jesuítas contra jansenistas, agostinianos (Noris,
esforço do historiador? É neste plano prático, sobretudo, que me parece
necessário reagir contra a · moda actual das noções de existencial e de
15 J.-L. Ferrier, Actes do Congresso de Estrosburgo, 1952, pp. 171-175: trota-se
compromisso. Chamarei em minha ajuda toda a tradição humanista, a
do primeiro Sortre, o de L'Etre et le Néent.
sabedoria clássica e os seus conselhos sobre os perigos da paixão, fonte
191
190
DO CONHECIMENTO HIBT6RIOO O EXISTENCIAL EM HIST6RIA

etc.) contra jesuítas, católicos (Harlay ... ) contra protestantes; mas as ·Perigo talvez mais grosseiro, mas não menos real, não menos amea-
mais das vezes, estes trabalhos centram-se demasiado profundamente, çador, a obsessão do existencial pode comnrometer a própria verdade
demasiado estreitamente sobre as controvérsias teológicas do tempo para da história. Começa-se por denunciar, e num sentido com razão, o
serem ainda realmente úteis. Havia uma preocupação excessiva por pro- «ri:tito da obiectividade»; sublinha-se com- insistêhcia o facto de aue todo
curar em Santo Agostinho argumentos imediatamente utilizáveis para o trabalho histórico, quanto mais não fosse por supor uma escolha entre
ter tempo de descobrir, de encontrar, 'de conhecer o próprio Santo a infinidade dos aspectqs póssíveis do passado, supõe e reflecte· uma
Agostinho. enquanto tal. opção, uma orientação que ·lhe impõe o espírito do historiador. Só hâ,
diz-se, três casos possíveis: a exposição que sabe que é partidâria e se diz
,Poder-se-ia retomar aqui aquilo que dizíamos mais acima a propó- objectiva- grosseira hipocrisia; aquela que se julga objectiva e reflecte,
sito da crítica dos documentos (cap. IV): a 'história como amizade. sem o saber, preconceitos inconscientes - imperdoâvel ingenuidade: como
Aquele que pensa de mais, cedo de mais ou demasiado unicamente em não preferir decididamente a última solução: uma história comprome-
utilizar os amigos, não pode <verdadeiramente amã-los nem conhecê-los. tida, uma exposição de co'lnbate e que se orgulha de o ser? te.
Não se vão confundir amizade e relações de negócios. A história também
supõe uma atitude interior, jâ não egocêntrica, mas centrífuga 16 , uma Dir-se-á, 'por exemplo: não há história (sobretudo contemporânea)
abertura sobre outrem que exige que abafemos de alguma maneira as impardal; faça-se o que se fizer, já se embarcou. Só se pode escolher
nossas preocupações existenciais. entre uma história ·«burguesa», «capitalista», «imperialista» - e uma
iÉ certo que estas nunca podem ser completamente eliminadas e
história comunista ou, pelo menos, «progressista»; ou será um ~esto de
defesa da classe possuidora ameaçada nos seus privilégios pela evolução
a epokhe, o «pôr entre parêntesis», é sempre não só provisório, mas rela-
económica e soda!, ou será uma tomada de consciência desta evolução
tivo. Não esqueço nada de tudo o que a nossa anâlise revelou de depen-
e um gesto revolucionário.
dência essencial entre a história e o historiador, mas não se devem con-
fundir os planos, o da anâlise ontológica e o da conduta empírica. Tudo
Mas, a.partir do moment\> ~m que se pôs o acento desta maneira
é uma questão de grau, de medida, de espírito de finura, de sentido dos
matizes e, em primeiro lugar, de bom senso. Contra uma exaltação desor-
a
sobre a acção e a sua eficâcia, que passa ser a nossa procura paciente
e obstinada de tóda'a verdade acessível, seja ela qual for, sobre o passado?
denada dos valores existenciais, a nossa ética recuperarâ com proveito as O historiador não tardará a ser requisitado pelas exigências dq combate
sábias regras formuladas por Cícero ou Tâcito: «evitar até a mínima em que está empenhado. Começarão por o notificar de que nem toda a
desconfiança de favor ou de ódio» 11 ; «não falar de ninguém com amor verdade é boa para dizer (ora, é próprio da investigação histórica esbarrar·
ou ressentimento» 18 • Conto com a inteligência do leitor para não con- a cada instante com o inesperado, com o intempestivo).·
fundir esta impacialidade necessária, feita de sangue-frio e de uma
necessidade de compreensão, com a atitude ilusória de desa.pego preconi- Continuo a colher os meus . exemplos - é um · caso limite- no
zada pelos teóricos positivistas: «considerar os factos humanos do exterior comunismo, soviético ou oddental, no ·período staliniano.: reconhecer o
como coisas». papel desempenhado por Trotsky durante o período crítico da guerra

1~ M. Nédoncelle, ne sue comuniceçiio 110 mesmo Congreuo, ibid., p. 145. 19


P. Viler, Défense de la paix et objedivité historique, em Trygée, 15 de
17 De oratore, li, 15 (62) • Novembro de 1953, pp. 25-26, defese inteligente e convencide, mes, por isso mesmo·
1.8 Hist6rias, I, I, 5. (Viler é pere mim um velho _cemereda e devo-lhe este frenqueze), tento meis de~oledo.re.

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DO CONHECIMENTO HISTORiaO O EXISTEN'CIAL EM HISTORIA

civil era um gesto contra-revolucionário quando Staline andava ocupado Esta crítica poderá passar por simplista e inju~ta. Não esqueço que
em. eliminar Trotsky do Poder e em consolidar o seu próprio domínio. o marxismo, essa filosofia romântica, põe os seus fiéis 1Ui posse de uma
Calar esta verdade que se metia pelos olhos dentro, tornava-se um dever. teoria (que eles possuem como verdadeira e consideram fundada na razão
e na experiência) que os provê, anteriormente a toda a investigação pro-
Persuadem-no, a seguir, de que já não é «Um sábio de gabinete priamente histórica que incida sobre as questões de facto, da verdade sobre .
da espécie de outrora», mas sim, ,p or exemplo, um «combatente do comu- o sentido da História e o seu processo de realização: encontramos no seu
nismo» ao serviço do povo 20 ou dos seus chefes, e lá temos o nosso histo- caso a oposição entre história e filosofia da história, e a segunda reduz
riador atirado para o gmpo dos propagandistas, convidado a tirar dos seus a primeira a um simples processo de verificação.
dossiers, no momento querido (ou a meter), o pacote das fichas forne- A seguir, os marxistas, esses ·neo;hegelianos, são homens que negam
cendo um precedente útil, uma ilustração cômoda, um comentário como- a trancendência: para eles, só há verdade histórica na (e em relação à)
vedor da tendência momentáneamente dominante- uma tangente à curva, conjuntura, no momento da evolução humana. Mas eu escrevi este tratado
com mil inflexões imprevisfveis, da «linha geral» definida pelos mestres para homens «que acreditam freneticamente na verdade», como esse
de momento. Papel sem dignidade, sem valor. «pequeno bretão consciencioso que um dia fugiu amedrontado de S.
Sulpício, porque se convenceu de que uma . parte do que os seus mestres
Nada de mais desolador que a sorte reservada aos historiadores dos lhe tinham dito talvez não fosse verdade» 21 •
povos não-russos da União Soviética: se a «política das nacionalidades»
aumenta o seu liberalismo, vemo-los convidados a debruçar-se sobre Por isso voltarei a dizer, sempre com Cícero, «que a primeira lei
o passado da sua pequena pátria e exaltar os heróis de outrora; se que se impõe à história é não ousar dizer nada que seja falso, a segunda
Moscovo se preocupa com o inevitável recrudescimento do «nacionalismo ousar dizer tudo o que é verdade», ne quid falsi dicere audeat, deinde ne
burguêS>> e estes heróis não passam de repccionários, · o historiador de quid ueri non audeat! 22 E premunirei o meu discípulo contra estas
serviço empenhar-se-á doravante em explicar que felicidade foi para aplicações ingenuamente monstruosas da nossa teoria do conhecimento
Kasaks ou Tchetchenos terem sido agregados à grande família russa comprometendo-o a tomar uma consciência mda vez mais aguda do per-
pela conquista imperialista do tempo dos czares. sonalismo essencial do conhecimento histórico- e, por uma consequên-
cia natural, da dignidade do seu papel e da responsabiHdade que assume.
Um passo mais e como é que o nosso confrade poderá resistir no dia
Como homem de ciência, o historiador vê que os seus irmãos, os homens,
em que um maquiavélico lhe sugerir que tal mentira habilmente condi-
como que delegaram nele a conquista da verdade.
.mentada será mais efic!lz no combate travado, servirá melhor a causa,
Isolado pelo próprio tecnicismo da sua investigação, ali está ele
que essas verdadezinhas de facto tão minuciosamente estabelecidas? Que
sozinho, perante a sua consciência, a d~bater-se nas trevas em que se
importa que as coisas não se tenham passado assim? Contam-se tal como
elabora a sua convicção. Debalde se seduzem com um «contrôle>> recí-
deviam ter sido e esta história será «politicamente» verdadeira.
proco: quanto a tudo o que constituirá o essencial da sua contribuição,
Não se contentaram em silenciar os feitos de Trotsyk. Falsifica- essa fina ponta da verdade que terá sido o único a poder entrever e
ram sem escrúpulo documentos, por exemplo, fotográficos, e procuraram apreender, não há possibilidade de que antes de muito tempo uni confrade
çJSsim melhorar o papel real desempenhado por Staline ao lado de Lenine,
na direcção dos assuntos durante os primeiros anos da Revolução.

21 E. Renon, Préfece (1890) o L'Ayenir dele Science, em Oeuvres completes,


20 I. Kon, K voprosu o specifike zedetcheh istoritcheskoj neuke, em Voprossy t. 111, p. 718.
lstorii, n.• 6 (Junho de 1951), p. 63. 22 Ne mesme possogem do De oretore, li , J 5 (82).

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DO OONHEOIMENTO HI8TóRIOO O EXI8TENOIAL EM HISTóRIA

volte a passar pela mesma pista e recomece as suas operações e as possa temente, como mostramos que é sempre, o seu ·problema, aquele de que
verificar (a verdade da história é constituíd~ por juízos subtis, pesando depende, em última análise, a sua própria pessoa e o sentido da sua
e combinando milhares de elementos de informação diversos; é o .fruto vida.
de uma experiência mental que não se torna .fácil ao primeiro que ~er Tomarei mais uma vez às avessas as fórmulas caras aos meus pre-
recomeçar na sua proveta). É, em última análise, da integridade mental decessores positivistas: ao seu ideal ilusório do «conhecimento válido para
do investigador, da sua qualificação pessoal, da sua min·úcia, da sua todos», oporei o da verdade válida para mim e .verei nisso uma gara~tia
consciência numa palavra, que depende a verdade da ciência. E é efectiva- de seriedade, de exigência, de rigor. Em história, é sempre fácil persuadir
mente aí que repousam a nosSa convicção e a nossa confiança. os outros; nem mesmo é preciso um grande talento, basta um pouco de
habilidade na apresentação, algum talento de advogado; pelo contrário, é
Daí o nosso escândalo quando a vemos surpreendida; quando R. muito mais difícil convencermo-nos a nós mesmos, quando trabalhamos
Draguet, por exemplo, vem dizer que até o grande Dom C. Butler um dia em primeira mão, ao contacto da ambiguidade fundamental das fontes, das
pecou por ligeireza, pois não conferiu nem realmente utilizou, para a sua dificuldades da informação . e da compreensão - sobretudo aí, onde se
edição crítica de l?alladios, tal manuscrito fundamental que, no entanto, mede o alcance do compromisso existencial. Desejo que o meu discípulo
conhecia e que folheou com negligência 11• medite amiúde nesta admirável réplica que ·Platão pôs na hoca de Sócrates.
Àquele que, como de costume, lhe levantou o problema inextricável, o
Consciente desta responsabilidade, o historiador saberá então fáter sofista Híppias, como homem para quem a verdade não contava, só encon-
o que lhe é possível para se tornar capaz do máximo de verdade e, para trou a seguinte resposta: «Talvez ~stas dificuldades escapem ao nosso
isso, fazer calar as suas ,paixões e, em primeiro lugar, acalmar aquelas que adversário». E Sócrates respÓndeu: «Com a breca! Hippias, não escaparão
o seu compromisso existencial acende e alimenta. É certo que também lhe ao homem diante do qual eu coraria mais do que diante de qualquer outro
recomendamos que tome consciência desta ·paixão central e dos pressu- por disparatar e por falar para nada dizer. -Quem é esse? -Ora! sou
postos, dos preconceitos inevitáveis que ela implica, como formas- estru- eu mesmo, Sócrates, filho de Sofronisco, que não me darei mais ao luxo
tura e limites- do seu espírito, mas será para que ele aprenda melhor a de adiantar levianamente uma afirmação não verificada do que parecer
não se enganar jamais,, se possível, a si mesmo - a pôr-se nas melhores saber aquilo que ignoro!» 2 '
condições po"ssíveis .para ver e ouvir, para compreender.
E este esforço de domínio de si mesmo, de correcção, numa palavra, ·
de ascese, o historiador impô-lo-á a si mesmo com tanto imaior rigor
quanto menos começar por pensar no uso externo que o seu conheci-
mento, uma vez elaborado e posto em circulação, poderá receber, quanto
menos ·pensar na sua influência, na sua utilidade para os outros: O his-
toriador não trabalha, em primeiro lugar nem essencialmente, para o
público, mas para si mesmo, e a verdade dos seus resultados será procu-
rada com tanto maior .paixão, ap~rada com tanto maior pureza, atingida
~m tanto maior segurança quanto o problema estudado é !bem conscien-

28 Ver, sobre este essunto, 11 note publicede em The Journal of Theological


Studies, 1955. 24 Hippias Maior; 298 bc.

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A VERDADE DA HISTóRIA

Eis-nos chegados ao limiar da última questão, aquela que nunca


perdemos de vista e a que toqa a nossa investigação se preparou _,para res-
pÜnder: qual é a verdade· da história? 'Assentávamos, ao começar, que a
história se definiria pela velidade que ,seria capaz de elaborar. Revelou-se
capaz disso? No momento de responder: sim, suplico mais uma vez ao
meu leitor que se lembre que domínio é que nós continujlmos a explorar:
trata-se do conhecimento do homem - do homem, na· sua riqueza, na sua
complexida.~e embaraçosa, na sua infinitude; domínio, portanto, do espí-
rito de finura, do sentido dos matizes: a verdade. de que se trata não se
encontra subordinada à rigidez sumária do espírito geométrico ou, pelo
menos (porque as .verdadeiras matemáticas .requerem mais subtiléza), das
categorias estreitas que se designa de bom grado por esse nome.
Haverá o cuidado de evitar as assimilações .forçadas .como as dico-
tomias sumárias. A teoria da verdade histórica foi desviada do verda-
deiro caminho pelo simplismo dos positivistas e, mesmo depois de tanta
reacção, permanece ainda muitas vezes como que deformada, estabelecida
em termos de porta falsa~ Alinhar a história entre as ciências da natureza,
fazer da objectividade o critério supremo e, eni certo sentido, único,
da verdade, era sair fora do CatVinho. Faça ele o que .fizer (toda a nossa
análise o mostrou bem)~ o infeliz historiador introduzirá sempre no seu
conhecimento qualquer elemento pessoal- essa temível e desoladora
«subjectividade»: exigir que. ele acabe, ao fim das suas operaçi)es, po.r;
isolar no fundo do seu cadinho um resíduo 100% objectivo, é impo:r~lhe
uma tarefa· irrealizável; nesta perspectiva, ou se mutila a história (reduzin-
do-a a algumas magras constatações de facto), ou se. abre a porta ao
cepticismo (muitos precipitaram-se nele).
Mas inversamente (e também a esse .respeito as nossas observações
precedentes já ·puseram de sobreaviso o leitor), é uma solução bem peri-
gosa opor sem mais,. como dois dados irredutíveis, os dois grupos: Ciên-

199
DO CONHECIMEN'l'O HIB'l'OEICO A · VERDADE DA HIB'l'OEIA

cias. da Natureza, Ciências do Espírito, como se a verdade histórica fosse Poder-se-iam multiplicar as analogias ou os paralelos:
de uma ordem complftamente diferente. Ameaça-nos aqui o irracional:
compreen?o perfeitamente e partilho as inquietações dos nossos antepas- 'Temos, por exemplo, o balancim de um velho relógio de a!deia, que
sados per~te essas teorias do conheéimentó que descambam numa meta- bate na sua caixa de vidro 4 • Para o estudar cientificamente, devo primeiro,
física da intuição. A razão humana é una, p0r diversas que sejam as suas no interior da experiência que tenho, eliminar todas as implicações de
aplicações, por flexível que seja o seu comportamento. ·Um lóg1co não des- ordem pessoal, afectiva (este relógio é uma herança de família e o seu
cobre tosso intranspoD:ível entre as operaçoes mentais .do fis1co, do natu- movimento moriótono evoca para mim mil e uma recordações da infân-
ralista e as do historiador. cia). É por este esfo~ço de abstracção que o conhecimento que vou uti-
lizar se tornará objectivo.
_:É .m:uito .fácil opor iis côndições da história a magnífica «objecti-
Mas, no próprio plano da actividade científica, este mesmo objecto
vidade» das c1ênc1as expenm~nta1s. Não se pode afirmar sllllplesmeme que
é susceptível de uma pluralidade de apreensões. Posso ver nele ora um
as lelS da tísica, por exemplo, «se imvõem a .todos,aqueJ.es que querem _ pêndulo integrado no mecanismo de um relógio, ora ainda (sinto o olhar
a verdade~ 1 • Connec1memo váudo para todos'! . Não; decerto, para todos atraído pelos jogos de luz que aparecem à superfície) um espelho con-
os homens. Não se impóe ao primitivo, à criança, ao simples, ao ignorante• vexo, ou ainda uma liga de cobre e de estanho. Não •será, num domínio
mas apenas ao fis1co competente. .Pode-se diZer da física, como Aron diSse da realidade menos complexa que o da história humana, o equivalente
um d1a da história, que «.ela é verdadeira pàra todos aqueles que querem do carácter «equivoco e inesgotável» que reconhecemos à história?
a sua verdade, isto é, que constroem os factos da mesma maneira e que Outra zona comum: o papel da autoridade. À medida· que os fenó-
se servem dos mesmos conceitos» '2 • Porque . ela propfiamente só existe menos estudados se vão afastando mais da experiência da vida quotidiana,
para os espíritos que, por terem aceitado a tradição da ciência ocidental, torna-se mais difícil, torf}a-se mais raro que se possua um· conhecimento
aceitaram submeter-se a uma _disciplina, a dos nossos laboratórios, que os ·em primeira mão. Não se refaz todos os oito dias uma experiência delicada
ensinou a esquematizar os dado~ _ da ex,periência. sensível por :meio de de realizar como· a de Michelson e Morle?; não se podem refazer à von-
·processos operatórios escolhidos para obter resultadüs de uma · ordem tade determinadas observações clínic~. Em todos estes casos, o físico
determinada. Uma exacta filosofia das ciênciàs não deíxará de insistir ou o biólogo aceitam a verdade deste~ resultados ou destes dados acredita-
tando nos testemunhos de um confrade autorizado, exactamente como o
sobre a contribuição activa do sábio nesta «estiliz~ção do real» que implica
historiador confia nas suas testemunhas. Acredita-se que, se se refizesse
a intervenção positiva, uma «construção teórica», um ·verdadeiro «trabalho
a experiência ou se se fizesse a observação, se obteriam as mesmas ver-
· criador» s. Selecção e delimitação dos fenómenos, processos de análise e dades, da mesma maneira que o historiador acredita que, se tivesse
de medida, tudo isso modela a .física, por exemplo, confere-lhe a sua observado no lugar da testemiinha, teria registado o m~smo acontecimento.
forma e a · sua estr!l:tura, da ·mesma maneira que a história, como nós Desejo que o leitor nilo se engane sobre o alcance destas analogias.
vimos, é modelada por ·obra do historiador- ~enão na mesma medida Não pretendo assimilar sem mais o conhecimento histórico e o das
ou no mesmo _grau. ciências da natureza Jassim, para o último caso encarado: o historiador
não pode verificar o testemunho em que deposita confiança, o físico, esse,
pode, à custa de um esforço q~e na prática é por vezes considerável,

1 R. Aron, Introduction, p. 88.


2 Como ele me lembrovo numa c11rtl! de ,5 de Junho de 1954.
8 Vou busc11r estas f6rmul11s 11 M. V11nhoutte, Theses -(Lovl!inil, 1953) (D. Thomee
4 Cf. o mesmo exemplo em F. von H11yek, Scientism and the study of Society
Aquin11tis Scholo, n.• XXV). pp., 25-27. ( 1952), tr11duçõo fr11ncesl!, p. 78.

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lJO OONHEOIMENTO HIBTóRIOO A VERDADE DA HIBTORIA

refazer a experiência, o clínico pode razoavelmente alimentar a esperança Porque dois historiadores que ponham um problema da mesma
de encontrar um dia casos análogos: a repetição, embora amiúde virtual, maneira, que disponham dos mesmos dados documentais e do mesmo
cria sem dúvida uma grande diferença). Quis simplesmente pôr em evi- equipamento técnico cultural que permita utiliZá-los, não encontrarão res-
dência a analogia do comportamento psicológico e gnoseQlógico do histo- postas diferentes, não construirão duas ,histórias 5 • O historiador não se
riador e do sábio. acha aprisionado na sua subjectividade. Aí está a existência da ciência
histórica para o testemunhar. Exagerou-se muito as contradições que nos
Não se pode, portanto, falar sem mais da objectividade das ciências dividem. De facto, chegamos a persuadir-nos uns aos outros. E as discus-
da natureza: ter-se-á pelo menos de precisar q~e não se entende por isso sões que opõem especialistas, embora sejam animadas e por vezes apai-
um conhecimento do tipo daquele que eu definia como 100% tirado do xonadas, não têm nada de um diálogo de surdos entre pontos de vista
objecto sem nenhuma ingerência do sujeito cognoscente. É objectiva no irredutíveis. São efectivamente comparáveis às que periodicamente opõem
sentido de que, por meio das técnicas e dos processos introduzidos pelo os sábios uns aos outros (aí está a !J.istória das ciências, de cada uma das
sábio, atinge qualquer coisa que pertence autenticamente ao objecto. Mas ciências· «positivas», para testemunhar dificuldades que se encontram
então em que é que, mutatis mutandis, e tendo em conta a adaptação sempre a impor os pontos de 'Vista novos, as descobertas originais, os
empreendimentos ousados. Estamos a ver o papel, e os estragos, do espí-
necessária a um objecto de natureza infinitamente mais complexa, em
rito de autoriqade).
que é que a situação do historiador seria substancialmente diferente?
P_a ra todos os problemas históricos simples, tais como os que se
Como o número das questões que é possivel pôr a um mesmo
referem ao estabelecimento (realidade, datação; etc.) dos «factos» de
sector da experiência do passado é tão grande (sobretudo se se compara
carácter objectivável, está garantido o acordo, entre técn~cos competentes,
com o questionário limitado do físico ou do químico), que pode passar sobre os processos operatórios: recorte do facto, isolamento do fenó-
praticamente por infinito, como estas questões são de uma natureza tão meno, crítica do testemunho, apreciação dos motivos de credibilidade.
subtil que os conceitos por meio dos quais se formulará a sua s~lüção Apesar das críticas hiperlógica:s de Péres e Whately, a existência de
são ao mesmo tempo muito mais numerosos e menos fáceis de definir que, Napoleão Bonaparte, as grandes datas da sua vida encontram-se estabe-
por exemplo, os do matemático, torna-se muito mais difícil encontrar do lecidas da mesma maneira por todos os historiadores e ·consideradas como
pé para a apão dois historiadores que em presença do mesnio objecto se adquiridas com o mesmo grau de probabilidade praticamente satisfatória
decidam a sistematizá-lo em função dos mesmos processos operatórios, - ainda que todos estes factos não possam ser definidos com a mesma
«construam os .factos da mesma maneira>~. elaborem o mesmo· conheci- precisão (nem todas as medidas do físico são obtidas com a me.sma
mento -mas isso não quer dizer, como admitem tão facilmente os rela- aproximação).
tivistas e os cépticos, que a história se veja por isso afectada por uma À medida que as questões rpàssam a ser mais complexas (mais
«subjectividade» (entendida no sentido de uma alibitrariedade) radical. "interessantes, mais ricas de humanidade), torna-se sem dúvida muito mais
difícil obter logo à primeira vista um acordÇ> unânime. Mas nem mesmo
Insisto nisso porque tais fórmulas, empregadas num contexto pDlé- a visão do historiador é marcada por uma subjectividade irremediável: à
mico, enganaram por vezes quanto ao alcance da nossa filosofia crítica: custa de um esforço de explicação, de um lado, de um esforço de com-
preensão, do outro, .chegamos progressivamente a partilhar a mesma
·cÓntra o objectivismo dos positivistas, tivemos de insistir durante muito
convicção, aprendendo a ver como o outro primeiro ,viu, colocando-nos
tempo sobre o factor <<Subjectivo» introduzido na história, como- acaba-
mos de o ver- em toda a ciência, pela intervenção activa, ·construtiva,
num sentido criadora, do sujeito cognoscente- mas essa subjectividade
não é a do céptico. 5 Esta simples constatação de bom senso já foi feita por von Hayek, op. cit., p. 80.

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DO CONHECIMENTO Bl8TORICO A VERDADE DA HIBTORIA

no mesmo ponto de vista, utilizando os mesmos instrumentos de apreensão A solução do prdblema da !Verdade histórica deve ser formulada à luz
·(conceitos, etc.). Isso nem sempre é fácil. Para se porem de acordo, de tudo o que a nossa análise crítica nos ·fez descobrir: nem objectivismo
dois historiadores devem chegar a possuir em comum as mesmas cate- puro, nem subjectivismo radical; a história é, ao mesmo tempo, apreensão
gorias. mentais, o mesmo fundo de cultura, as mesmas afinidades. À parte do objecto e aventura espiritual do sujeito cognoscente; é essa relação
os daltónicos, todos ·os homens verificam que percebem da mesma maneira
as radiações luminosas. O acordo não é tão fácil de estabelecer sobre p
os dados da experiência histórica (valores, significações, ou ainda: menta- h= p
lidades. caracteres, personalidades). Não é, no entanto, irrealizável.
Não pretendo, mediante. estas observações, eliminar toda a subjecti- estabelecida entre dois planos da realidade humana: a do ·Passado, bLm
:vidade do conhecimento histórico: no limite, concebe-se que permanecerá entendido, mas também a do presente do historiador, agindo e pensando
sempre nele um resíduo, .um sector que conserva um carácter pessoal. na sua perspectiva existencial, com a sua orientação, as suas antenas,
Nunca seremos dois a ter visto exactamente as mesmas coisas da mesma as suas aptidões- e os se:.ts limites, as suas exclusões (há aspectos do
maneira. Mas aquilo que serei o único a apreender, porque era o ·único a passado que, por eu ser eu e não uni outro, não sou capaz de perceber
estar na situação mental que me qualificava para o apreender, nem wr nem de compreender). o facto de neste conhecimento haver necessaria-
isso será o menos .verdadeiro, o menos autêntico, o menos prec1oso - mente qualquer Goisa de subjectivo, de relativo à minha situação de ser
pelo 'contrário! no mundo, não impede que possa ser ao mesmo tempo uma apreensão
Como se viu (p. 114), o esforço dos positivistas por alcançarem um autêntica do passado. De facto, logo que a história é verdadeira, a sua ver-
conheciment<;> válido para todos, a ter sido seguido, haveria levado a dade é dupla, feita, por sua ·vez, de verdade sobre o passado e de teste-
mutilar a história, a fazer-lhe perder a sua riqueza humana, a sua profun- munho sobre o historiador.
Nada de mais .revelado r que o exame das imagens sucessivas que os
didade, a sua fecundidade, porque teria de limitar a sua verdade a esse
historiadores, de época, de mentalidade ou de orientação diversas, vieram
magro factor comum entre todas as percepções diversas (alguns «factoS»
cada um por sua vez elaborando de um mesmo passado; por exemplo,
elementares. reduzidos às suas componentes objectiváveis, despojados do
aquelas que nos propõem da história romana, Santo Agostinho, Lenain
seu ·valor, do seu sentido). Para nós, pelo contrário, o dever que se impõe de Tillemont, Gibbon, Mommsen, que sei eu ainda? Digamos Gaston Bois-
ao historiador não é limitar-se àquilo que tem a certeza de que qualqqer sier ou Rostovtsev. Do espectáculo, que consideram desolador, das suas
pessoa veria como ele, mas sim compreender tudo o que ele é capaz «variações», relativistas ou cépticos tiram consequências que me recuso a
de atingir. admitir. :a certo que estas diversas imagens, tomadas globalmente, não se
podem sobrepor, mas uma análise crítica mais profunda consegue discernir
Acabamos.de o ver: na minha qualidade -de historiador, não procuro, muito .bem o que nelas há de apreensão autêntica do objecto e o que é
em primeiro lugar, satisfazer um público, a fortiori todos oS' homens; manifestação de cada uma destas personalidades (equação pessoal que
proc~ro convencer-me, a mim~ da verdade da minha apreensão do passado. ex.plica ao mesmo tempo o que há de justo e o que há de falso, ou de
Depois disto, não encerraremos o nosso historiador num conheci- lacunar, na sua visão). Nós, os herdeiros, utilizamos de facto estes velhos
.mento que só ·seria válido para ele. Mostraremos, para terminar, o papel textos ora para o estudo do mesmo passado a que se ligaram, ora para
social que lhe cabe desempenhar: sublinhemos simplesmente aqui que esse o desse passado que se tomou o presente desses historiadores de outrora.
conhecimento elaborado pelo e para o historiador será igualmente válido Seja, por exemplo, a evocação do passado romano que encerra· a
para todos aqueles que se revelarem capazes de o partilhar, isto é, de o CidtUJe de Deus. Diviso nitidamente o carácter subjectivo deSta imagem.
compreender, de o encontrar como verdadeiro. que me é fácil pôr em relação com a perspectiva exitencial em que se

204 20S
DO OONHEOIMENTO HIBT6RIOO A VERDADE DA HIBT6RIA

tinha estabelecido Santo Agostinho (o seu trabalho é dominado por uma parecido com ele) e em que, por outro lado, o artista, como o historiador,
dupla preocupação polémica dirigida ao mesmo tempo contra os pagãos todo ele encarna. O retrato também apresenta uma verdade dupla: no
do seu tempo e contra os Pelagianos). Esta tomada de consciência permi- Baltazar Castiglione, de Rafael, no Louvre, encontro ao mesmo tempo
te-me fazer a crítica do seu testemunho, mas não me impede de o utili- todo o Rafael e todo o autor do Cortigiano.
zar; com as precauções necessárias, sirvo-me da Cidade de Deus ao mesmo
tempo para a história da ·Velha Roma {na medida em que a minha crítica Às ilusões do perspectivismo histórico corresponderia a experzencza .
me permite estabelecer que Agostinho a conheceu autênticamente, de uma bem conhecida dos psicólogos, aquela que sobreporia os diversos perfis
certa maneira e no interior de certos limites) e para a história do próprio conservados de Cleópatras, e pretenderia obter assim mecanicamente
Santo Agostinho ou do seu tempo. o verdadeiro rosto da rainha- o que é absurdo. Cleópatra está demasiado
mal atestada (plasticamente e historicamente) para que a experiência,
Poder-se-ia fazer a mesma análise a propósito de cada um dos. tentada sobre ela, seja decisiva. Tomemos antes o caso de Luís X/f.
historiadores citados: por ser um liberal do segundo Império, é que G. Sobrepor as imagens que dele compreenderam e deram Rigaud, Mignard,
Boissier escreveu L'opposition sous les Césars; por ser um russo branco, Le Brun, etc., não tem sentido!
é que M. Rostovtsev pôs em evidência o carácter «revolúção de classe»
das intervenções do exército nos assuntos imperiais do século l/1. Mas A história, conhecimento do homem pelo homem, é uma apreensão
seria ingénuo imaginar que tinham o olhar nublado por se orientar numa do passado .p or e num pensamento humano, vivo, comprometido: é um
certa direcção. complexo, um mi~to indissolúvel de sujeito e qhjecto. A quem se inquieta
ou se irrita com esta servidão, só o que posso é repetir: é assim a con-
Não é minha intenção retomar aqui a imagem do projector apon- dição :h umana e assim a natureza humana. Não há dúvida que dessa
tado num azimute determinado. Já sublinhei a insuficiência de uma tal maneira se introduz um elemento de relatividade no conhecimento histó-
comparação, que abre o caminho à teoria, consoladora, mas numa larga rico; mas todo o conhecimento humano se encontra da mesma maneira
medida ilusória, do «perspectivismo»: como se, para ter do passado uma marcado pela situação do homem no ser e no mundo. Basta pensar no
imagem mais completa e mais total, bastasse multiplicar os projectores e que nos ensinaram os físicos da relatividade. Sabemos agora que a nossa
os pontos de vista! (p. 172) Não, porque a imagem que cada historiador. percepção do espaço, e a nossa .concepção do espaço euclidiano, é uma
dá do passado é tão profundamente, tão organicamente modelada ,pela função da velocidade da luz! o facto de entrar, e de maneira irredutível,
sua personalidade que os seus diferentes pontos de vista · são, em última . qualquer coisa do historiador na composição da história, não impede
análise, menos complementares do que exclusivos. Para ilustrar a nossa que ela possa ser também, ao mesmo tempo, uma apreensão autêntica
teoria do conhecimento histórico, a melhor comparação é aquela que do passado.
vou buscar à arte do retrato 6 : diante de tal quadro de Holbein, de Ticiano, Retomando e completando a fórmula em que tínhamos ficado
de Rembrandt, de Là Tour, de Goya, encontramo-nos, como na história (p. 119)., direi agora: a história é verdadeira na medida em que o histo-
(à autobiografia corresponderia o autoritratto), em presença de uma obra riador tem razões válidas para conceder a sua confiança ao que compreen-
em que, por um lado, o objécto é apreendido de maneira autêntica·(mesmo deu dos documentos. Mais uma rvez o caso da história não pode ser
sem havermos conhecido o modelo, temos a certeza de que este rosto é examinado à parte do caso mais geral do conhecimento, da experiência
de outrem. O facto de ela incidir sobre o passado não introduz, como
vimos, diferença fundamental: apreendemos o passado humano nas mes-
mas condições, psicológicas e metafísicas, que na .vida quotidiana nos
6 Seguindo o exemplo de W. H. Wolsh, An · lntroduetion to Philosophy of permitem elaborar um conhecimento de outrem, conhecimento cujo carác-
History, p. 113 . ter relativo, imperfeito, <<humano, demasiado humano» (não conheço o

206 W1
DO CONHECIMENTO HISTDRICO A VERDADE DA HIBTDRIA

meu amigo, não me conhece como nós somos, um e outro, conhecidos de perante a morte - não pode obliterar a personagem r.eal que transparece
Deus), nenhum filósofo dissimulará, conhecimento cuja modalidade hipo- através dos documentos, a verdadeira Henriette de Croissy, essa figura
tética, cujo carácter não obdgatório, eminentemente prático, todo o lógico cavaleiresca que, mesmo no patíbulo, «desafiava o gume da guilhotina» 9 •
sublinhará, mas cuja realidade e, no interior de limites por vezes difíceis
de .precisar, cuja 'Verdade ninguém mais uma ;yr:z, a não ser o imaginário Mas não nos podemos ficar por estas considerações gerais: a nossa
solipsista, pretenderá contestar. teoria- e é a sua fecundidade própria- pôs-nos na posse de normas
Mostrei que a história se apresenta à razão humana com os mesmos precisas que nos permitem julgar das pretensões da história, .tal como foi
títulos de credibilidade que todo o resto da experiência de outre~: empiricamente constituída, a possuir qualquer verdade. Seria chegado o
o encontro do passàdo e o encontro do homem na experiência vivida momento de empreendermos uma revisão crítica desta literatura histórica
impõem-se a nós com o mesmo valor de real. Ao começar {cap. 1), opus que, ao começar, nós aceitámos como um facto. Não surpreenderei o
a história autêntica a todas as formas de representação imaginária do meu leitor ao declarar que nem tudo tem o mesmo valor, que nem tudo
passado. Não se tratava de uma simples descrição formal, mas a expressão tem :valor, na produção histórica, tal como se acumulou nas nossas biblio-
de uma experiência profunda: a história distingue-se das suas falsificações tecas de Heródoto para cá.
ou dos seus sósias por este carácter de realidade que penetra todo o seu ser. ~ inútil sublinhar a parcela inevitável de imperfeição implicada em
Já houve quem falasse da «atmosfera irrespirável das Utopias» 7 , todo o empreendimento humano, os erros, as lacunas imputáveis à impe-
o romance histórico presta-se às mesmas observações: o trabalho paciente rícia, a negligência, etc. Mesmo o bom Homero dormita por vezes. Até
mediante o qual o historiador, ou hist_oriadores sucessivos de um mesmo os maiores dos nossos mestres, os mais exigentes para consigo mesmos,
passado, se esforça(m) por cingir cada vez de mais perto a autêntica alteri- têm todos na consciência qualquer referência falsa, qualquer contra-senso
.dade do objecto, impregna o seu <".Qnhecimento, J;J.a medida em qu~ parti- desastroso. Também não é inútil insistir sobre a insuficiência de certos
cipa assim da categoria do real, de um valor que nãó se pode confundir trabalhos antigos que não puderam aplicar os nossos métodos de inves-
com nenhum outro. Mesmo quando um grande escritor, romancista, dra- tigação com a mesmo precisão rigorosa que adquiriram no nosso tempo
maturgo ou poeta, se apoderou de uma figura histórica e a marcou com ~há tantos te:x;tos ou documentos que têm hoje de ser de novo publicados,
a marca do seu génio criador, mesmo se esta criação ~admirável, como- porque não se usou o devido rigor crítico; tantos jazigos arqueológicos
vente, grandiosa, verdadeira de uma certa humanidade ideal, a 'Verdade devastados pelos processos brutais dos antigos escavadores): é natural
histórica, por muito humilde que seja, continua a ser preciosa em· si e que a investigação histórica, como toda a disciplina intelectual sujeita
sempre desejável, por9ue ~ trata da humanidade reai. a um desenvolvimento contínuo, tenha progredido com o tempo e tenha
passado dos fracaiSISOS reconhecidos às .inióati'V'as fecundas.
Assim, mesmo depois de La. demiere à l'échafaud e do Dialogue. O importante reside não aí, mas na circunstância de a literatura
des Carmélites, La véritable passion de seize Carmélites de Compiegne 8 , histórica encerrar muita falsa história, pseudo-história, não-história. Por
merece ser conhecida por si mesma: a espantosa personagem que Ber- não terem a guiá-los uma filosofia crítica, uma teoria racional, precisa, do
~

nanos imaginou da Madre de Croissy- encarnação trágica da angústia conhecimento histórico, das suas condições e, sobretudo, dos seus limites,
os historiadores perderam-se em tentativas :vãs. No ponto onde nós che-
gámos, será verdadeiramente necessário convencer disso o leitor? Se fosse
necessário, deveríamos retomar, na companhia dele, capítulo por capítulo,
T R. Ruyer, L'Utople et les utopies (1950), pp. 109-113. ·
8 Tal como acaba de a reconstituir, com base em documentos de arquivos
e em outros documentos, o· P. Bruno da J.-M., Le sang du Carmel ou la véritable
passion (subtítulo citado), 1954. 9 Bruno de J.-M., citando um11 das su11s fontes.

208 209
DO CONHECIMENTO HISTóRICO A VERDADE DA HISTóRIA

toda a análise precedente e confrontar, etapa por etapa, as exigências tão priamente filosóficos levantados pela sua elaboração: quantos paralo-
rigorosas da razão histórica com a prática dos historiadores, que foi e gismos ingénuos na crítica deles (assim no emprego abusivo do argumento
continua ainda muitas ·vezes a ser incerta ou aventurosa. Mas este a silentio). Mesmo quando se gabavam tanto de terem passado a ser
balanço crítico, por mais severamente que fosse elaborado, conceber-se-ia homens de «ciência>>, continuaram a ser demasiado literatos, isto é, retó-
num espírito completamente diferente do jogo ·de demolição a que o cep- ricos que se serviam da arte de ex.posição, esse talento de equilibrista,
ticismo se entregou tantas vezes com tamanha facilidade, desde que se para camuflar as falhas de demonstração racional.
fala de uma crise da história (de facto, como nós observámos, a negação Servidão não só quanto à lógica, mas quanto a .toda a filosofia.
da história pertence à tradição constante do cepticismo ocidental, a título O erudito positivista repousava sobre o seu método crítico, essa máquina
idêntico ao jogo paralelo sobre as contradições dos filósofos): não nos infalível de produzir a certeza. Daí esse pânico que ele manifestava pela
contentaríamos em mostrar que existem, na obra dos historiadores, erros m:tetafísica» e dentro em pouco por todo o .pensamento um ·pouco reflec-
por vezes enormes, incompreensões muitas vezes grosseiras, zonas de tido sobre o homem e sobre o mundo.
incerteza imensas, juízos pretensiosos, sínteses tão ambiciosas como ilusó-
rias. Sublinharíamos de cada uma das vezes, porque nos encontramos Lembro-me desse ·velho erudito que uma mulher inteligente comprimen-
agora em condições de o fazer, a raiz lógica destes erros falaciosos. tava diante de mim, e não sem ironia, por qualquer grande calhamaço
Constataremos quase sempre que a história pecou por hybris, por que ele acabava de deitar cá para fora: «A! minha senhora, não é ver-
essa desmedida que lhe fazia esquecer o sentido dos seus limites, o peso dade? Aí ao menos não corremos o risco de nos perdermos nas ideias!»
das suas servidões, a humildade da condição humana. Ah! pretensiosa,
ambiciosa, icária Clio! Com essa excessiva confiança nas tuas asas, Ilusão cómoda de mais. Como vimos (p. 137), não há verdadeira
quantas ·vezes te esmagaste contra · o solo por teres querido voar acima história que seja independente de uma filosofia do homem e da vida, à
do teu poder .. . qual vá buscar os seus conceitos fundamentais, os seus esquemas de
Mas, em vez de medir desta maneira a censura e o elogio aos histo- explicação e, em primeiro lugar, as próprias questões que, em nome da
riadores de outrora, prefiro voltar-me para a história vindoura e, sempre sua concepção do mundo, ela levantará ao passado. A verdade da histó-
preocupado por completar o nosso tratado das virtudes, continuarei a ria é função da verdade da filosofia utilizada .pelo historiador. Desde logo,
doutrinar o meu discípulo. Sabes agora de que é que a razão aplicada ao como não havemos de despender todo o nosso esforço para tomarmos
estudo da história é capaz, em que condições e dentro de que limites. consciência e para elaborarmos .racionalmente estes pressupostos?
fvw6 ae:auTóv, aprende a conhecer-te tal como tu és. Que a descobe11ta Servidão, finalmente, ou antes, dependência fecunda não só quanto
da tua limitação não te deixe acabrunihado. É verdade, és um simples aos quadros doutrinais, mas quanto à cultura, à orientação, à posição
homem, não és Deus. Podes saber qualquer coisa do passado, não !POdes existencial do :próprio ser do historiador. Muitos, sobretudo entre os mais
saber tudo. Sê humilde, não te enchas de ilusões, aprende a medir a velhos, continuam ainda a experimentar reticências de mais quanto a
força do teu :braço, o comprimento dos teus dias. Aceita de boa mente esta «revolução copérnica» 10 operada •pela filosofia crítica que doravante
(de qualquer maneira impor-se-ão a ti) as servidões, lógicas e técnicas, faz gravitar todo o sistema da história em torno do foco central de energia
que pesam sobre o teu esforço e lhe delimitam e determinam o campo
de aplicação.
Servidão, por exemplo, a respeito do documento: é inútil levantar 10 A expressão, que parece provir de Lorde Acton, tornou-se como que o
a nosso bel-prazer problemas que, por falta de docUiilentação, permane- schibboleth do novo espírito histórico : todos ( Meinecke, Croce, Collingwood) c reto-
cerão !insolúveis. Servidão sobretudo a re~ito da lógica: aprende a pen- mam sem lhe der sempre o mesmo sentido: opor, por exemplo, M. Nédoncelle e
sar. a assegurar a coerência e o rigor dos teus raciocínios. A história1 P. Thévencz, L'homme et l'histoire (Actes do Congresso de Estrcsburgo, 1950),
pagou muito caro a indiferença dos historiadores pelos problemas pro- pp. 145 e 220.

210 211
A VERDADE DA HISTóRIA
DO CONHECIMENTO HIBT(JRICO

leitura da juventude, do que de uma reflexão provinda de determinado


constituído pelo espírito do historiador. Parece-lhes que isso equivale a
encontro com a vida.
voltar a pôr em cau,sa todo o esforço despendido desde Niebuhr e Ranke
(se não desde Lenain de Tillemont) para arrancar a histórica à «literatura»
Não abandonaremos as condições reais da investigação. Da mesma
e para a dotar de uma estrutura rigorosa. Para os tranquilizar, bastaria
maneira que o historiador será sempre um simples homem, a sua compe-
persuadi-los de que o nosso novo espírito histórico .pretende menos repu-
tência achar-se-á definida por aquilo a que nos foi possível chamar a
diar do que ultrapassar, assumindo-o, o ideal dos nossos predecessores.
sua equação pessoal, isto é, a sua forma de espírito. o seu equipamento
É a ocasião de aplicar uma !Vez mais a imagem já familiar ao leitor de
mental. a sua cultura. com os respectivos aspectos positivos. mas também
um progresso não linear {o que seria de um optimismo ingénuo), nem
e necessariamente com os seus limites. Conhecerá do passado aquilo que
pendular (o que justificaria a inquietação do pessimista), mas sim heli-
se revelar capaz de conhecer dele. As reflexões que nos sugeria mais
coidal- e nós preferimos precisar que ele descreve uma hélice cónica,
acima (cap. IV) o papel necessário de simpatia na compreensão do
que se dilata a cada espira enquanto progride em profundidade.
documento têm um alcance geral. O melhor historiador de uma época,
Não contestamos que de facto a nossa teoria integra na aparência
de um problema humano, de uma grande personalidade, é o homem que,
os axiomas do método positivista, ao nível, na verdade bastante superficial, pela sua estrutura mental, estiver mais ·~ preparado para ressoar
para que são válidos. Os problemas levantados pela teoria nova do conhe- harmonicamente, para fazer eco. para perceber a gama de comprimentos
cimento situam-se num plano completamente diferente: mudou-se de de onda. específicos do seu objecto.
espira! A moral positivista para uso do historiador era, tal como a sua Se é a qualificação pessoal que garante desta maneira a riqueza e
lógica, muito elementar: o historiador devia ser- e não temos dificuldade a verdade do conhecimento histórico, não há nada de mais vão ou de
em concordar- exacto, preciso, prudente, crítico, imparcial... Mas, a mais hipócrita do que a atitude durante tanto tempo imposta ao historia-
partir do momento em que se reconhecer em que sentido muito realista dor. essa atitude desapegada e como que impessoal, unimpassioned perante
e muito profundo se tem de entender o axioma «O trabalho vale o que o seu assunto, esse tom «objectivo». A moda ainda não passou. Se por
valer o operário», será necessário ser-se mais exigente. O ·valor, quero acaso um investigador. preocupado pelo rigor lógico, ousa explicar os
eu diZer, a verdade do trabalho histórico estará na proporção da riqueza seus postulados e dizer: «Fui portanto levado desta maneira a perguntar
humana do historiador. Quanto mais inteligente, mais culto, mais rico de a mim próprio se ... , pensei que ... », imediatamente a crítica se indigna e
experiência ~Vivida, mais aJberto a todos os valores do homem ele for, protesta contra esta !Í!l1'vrusão do eu detootá'Vel.
mais se tomará capaz de encontrar coisas no passado. mais o seu conhe-
cimento será su5ceptivel de riqueza e de verdade. Passando ao limite 2 claro que, mais uma vez, existe um primeiro nível: a história
(porque tudo é, pelo menos em potência. uma documentação possível sobre deve evitar o estilo do panfleto. da mesma maneira que deve evitar o do
todo o assunto estudado), ele deveria saber tudo, tem visto tudo, ter lido panegírico. A este sangue-frio, a este domínio da paixão existencial que
tudo. ter conhecido tudo. exigimos como uma garantia de ponderação no juízo, corresponde uma
certa moderação. Mas a um nível mais profundo, uma vez que está
Adeus, pelo menos, tranquilidade de consciência do erudito, satis- · assente que a verdade da história é uma função do eu do historiador,
feito por ter dado conta de uma bibliografia declarada exaustiva. Conheci torna-se perfeitamente ilógico e pode-se tornar. perigoso pretender eliminar
um grande historiador que não hesitava em atravessar a Europa para ir esta variável.
verificar uma referência em qualquer brochura difícil 4e encontrar. Nunca
se será completo de mais, mas sabemos hoje que a verdade do nosso Pelo meu lado, irei muito longe nesta reacção. Sempre se entendeu
estudo depende muitas vezes menos de um tal pormenor de erudição que um sábio honesto devia fornecer aos seus leitores o meio de contro-
do que de uma ideia depositada no fundo da nossa consciência por uma larem a validade das suas afirmações. Daí as notas ao pé de página. as

212 213
DO CONHECIMENTO HIBT61UCO A VERDADE DA HIBT6RIA

referências precisas às fontes. Constitui um dos méritos incontestáveis do a compreender, a apreciar exactamente o seu Westem Mysticism, os
positivismo ter-nos ensinado a sermos muito exigentes em matéria de Aftert:hougihts, acrescentados, à maneira de prefácio, à segunda edição
minúcia nestas indicações. Mas já não nos bastará garantir assim que se (1927).
aproveitou correctamente o documento utilizado. Seria ainda preciso
permitir ao leitor que soubesse se se compreendeu, ou antes (porque Aquilo que o próprio autor não pode levar a cabo, terá o leitor de
toda a compreensão é necessariamente orientadá, relativa a certos dados o prosseguir tão longe quanto puder para fazer um uso crítico da obra.
subjectivos e, portanto, parcial), como se compreendeu. Não, sem dúvida, que isso lhe seja fácil. Privada da verificação experi-
A honestidade científica parece-me exigir que o historiador, por mental que a psicanálise, no sentido próprio, encontra «ou julga encon-
um esforço de tomada de consciência, defina a orientação do seu pen- trar» na sua eficácia curativa, a nossa «psicanálise existencial» será muitas
samento, explicite os seus postulados (na medida em que isso é possível); vezes levada a formular hipóteses ousadas. Não se trata de descortinar
que se mostre em acção e nos faça assistir à génese da sua obra: por que intenções secretas, tanto mais determinantes e decisivas quanto mais pro-
motivo e como escolheu e delimitou o seu assunto; aquilo que procurava, fundamente se encontravam encerradas no inconsciente do investigador?
aquilo que encontrou; que descreva o seu jtinerário interior, porque toda llipóteses que se afigurariam de uma indiscrição descortês, perfeitamente
a in'Vestigação histórica, se é verdadeiramente fecunda, ·implica um pro- insuportável, ao historiador objecto de tais investigações. E de tal maneira
gresso na própria alma do seu autor: o «encontro de outrem», de espantos que não aconselho ninguém a entregar-se a tais tentativas sobre um
em descobertas, enriquece-o, transformando-o. Numa palavra, o facto de autor 'Vivo. porque a sua crítica «existencial» correria o risco de cair
nos fornecer todos os materiais com que uma introspecção rigorosa pode sob a alçada da lei francesa de 29 de Julho de 1881, que reprime a
contribuir para aquilo a que eu, com termos pedidos a Sartre, propunha difamação!
que se ch!llllasse a sua «;psicanálise existenciah>.
Defino desta maneira um ideal, sem dissimular a mim próprio que Embora corra o risco de parecer que me ergo contra a sua memó-
a sua realidade prática deparará sempre com obstáculos em parte intrans- ria, retomo o caso de Ch . Babut. Sem dúvida se teria ofendido doloro-
poníveis. As mais das vezes, esse olhar, lançado de perto de mais, não samente este historiador consciencioso se diagnosticássemos a existência
será suficiente para descortinar a estrutura interna de uma obra histórica. nele de um «complexo de Camisardo». No entanto, dizer que passava
Os postulados fundamentais, a opção central encontram-se demasiado para os seus heróis o ressentimento acumulado nele contra o catolicismo,
enraizados no seu ser para que o autor possa julgar-se totalmente a si pelas perseguições outrora infligidas aos seus antepassados protestantes,
mesmo. Nem sobretudo imediatamente, porque a experiência atesta que, continua a ser a hipótese mais verosímil e, no fundo, a menos descortês
ao fim. de alguns anos, o desenvolvimento da sua evolução pessoal lhe para explicar a incompreensão manifesta de que dá provas quanto aos
dará, com a perspectiva necessária, um desprendimento quase objectivo Papas e aos bispos ortodoxos .dos séculos IV e V.
que permanecerá associado a uma compreensão directa. Desde que essa
retrospecção seja ,franca e corajosa, mesmo que não baste para uma No entanto, não se pode duvidar da legitimidade e da necessidade
explicitação COlil(pleta, poderá fornecer elementos de apreciação extrema- de uma tal «psicanálise», sejam quais forem as dificuldades práticas da
mente preciosos. sua realização, seja qual for também o carácter caricatura! dos primeiros
ensaios que já se tentou fazer.
Censuram-me muito por haver acrescentado, ao meu Santo Agos-
tinho ... , que eu reeditava passados treze anos, . uma Retractatio de O mais característico que posso citar é o de Daniel Guérin, no fim
90 páginas. No entanto, não o fazia por fatuidade nem, à parte a escolha dos seus dois volumes sobre La lutte des classes sous la Premiere Répu-
do título, por desejo de me comparar ao meu herói. Tinha querido blique: Bourgeois et Bras Nus, 1793-1797 (1946): passa aí em revista os
seguir o exemplo de Dom C. Butler, por ter verificado quanto ajudavam principais historiadores que o precederam no estudo do período revolu-

214 215
DO CONHECIMENTO HIBTORIOO A VERDADE DA HIBTORIA

cionário e esforça-se por proferir sobre cada um deles um juízo crítico, vaca e inesgotável» e uma síntese colectiva também não conseguiria vencer
determinando (como nós aqui desejamos fazer) os pressupostos teóricos a dificuldade.
da sua investigação. Daí, devido a uma consequência natural (sem falar do facto de que
Infelizmente, esta tentativa tão louváv~l foi realizada com o dogma- a história limitada à zona iluminada pelos documentos inteligíveis só
tismo primário, o gosto da baixeza no insulto que os comunistas oci- alcança os últimos milénios e há-de ignorar sempre as longas infâncias
dentais stalinianos ou (como D. Guérin) trotskistas ião deploravelmente da pré-história, no decurso das quais a humanidade tomou as opções
foram buscar à retórica soviética. Custa ouvir dizer que' o nosso bom decisivas sobre o seu futuro), a impossibilidade de uma filosofia da
mestre A. Mathiez, esse coração puro, pelo facto de ser funcionário, se história extraída da experiência ou, se se prefere, cientificamente fun-
encontrava a soldo da república capitalista (não era antes uma vítima dada, isto é, no sentido clássico, uma doutrina que pretenda determinar
dela?). É ingénuo pretender que todos os historiadores «burgueseS>> têm a significação ou as leis gerais da marcha da humanidade através do tempo.
qualquer coisa a esconder (em boa lógica, deve-se dizer: a posição deles
esconde-lhes necessariamente qualquer coisa) e que o historiador mar-
xista, esse, não tem nada a esconder. Claro que não tem do seu ponto
de vista, que também não é menos parcial!

Assim, a nossa teoria da história pode desenvolver-se livremente,


sem ter de escolher entre um dogmatismo cego ou um cepticismo desa-
nimado. A história é perfeitamente susceptível de uma verdade que pode
ser autêntica, embora seja relativa aos instrumentos do pensamento que
permitiram élaborá-la. Se o leitor tem presentes na memória as fases
da nossa análise, deve lembrar-se de que cada um dos elementos sucessi-
vos da nossa teoria do conhecimento impunha à história um limite novo
- ao mesmo tempo que estabelecia a sua possibilidade. A rverdade da
história, quando autêntica, vê-se limitada por todos os lados pelas servi-
dões impostas à condição do homem. A história é verdadeira, mas essa
verdade é parcial: podemos saber coisas sobre o passado humano, não
podemos saber tudo desse passado (nem tudo sobre qualquer aspecto
do passado, seja ele qual for: nada mais inútil que essas tentativas para
sondar o mistério da pessoa, que esses historiadores que julgam os seus
heróis, fazendo-se passa~ pelo Eterno) ...

Daí, em particular, a impossibilidade teórica de uma história univer-


sal (salvo naturalmente no plano elementar dos manuais). Falo de uma
história autêntica que pretendesse conhecer tão directamente, tão profun-
damente Amenofis IV como a rainha Vitória - e saber sobre todos tudo
o que é possível compreender. Não há homem que consiga reunir no
microscosmos do seu conhecimento o macrocosmos desta matéria «equí-

216 217
10·

A UTIUDADE DA HISTóRIA

Na medida em que este carácter limitado, parcial da verdade histó-


rica e, portanto, da própria história, se torna mais manifesto, somos con-
duzidos a fazer com maior insistência a pergunta, já tão amiúde discutida
pelos nossos predecessores, sem que eles a tenham sempre resolvido,
segundo parece, de maneira satisfatória: qual pode ser a utilidade da
história, isto é, qual a função que deve assumir na cultura?
A nossa resposta será tão matizada quanto complexa, porque a·
história, que se situa a vários níveis do ser, serve de facto para vários
fins. Utilizando mais uma vez a imagem, já familiar rpara o leitor, da
hélice cónica, direi que o processo de exploração do passado não se
desenvolve sempre à mesma profundidade, nem com o mesmo raio de
alargamento. Temos de retomar aqui as distinções esboçadas (cap. VIII)
a propósito do rvalor existencial. As duas questões encontram-se ligadas,
ou antes, são apenas uma: é «útil» aquilo que de qualquer maneira se
revela carregado de existencial- mas a história pode está-lo de muitas
maneiras e em graus diversos.
Sem dúvida, nós repetimos, com Heidegger e todo o existencia-
lismo: «se há história é na e pela historicidade do historiadon>. O passado
só pode ser conhecido se de alguma maneira se encontra em relação com
a nossa existência -mas foi rpara acrescentar imediatamente o esclare-
cimento, a nossos olhos capital, que se o passado nos importa, pode ser
por vezes de muito longe, de maneira muito indirecta, à custa, como
gostava de dizer Platão, de um «longo rodeio», (.Laxl?li ~ 7te:p(oSoç.
Não é .verdade que o historiador se veja como que obsidiado pelo
seu compromisso no devir e só procure compreender a 'sua situação
presente para orientar a acção imediata no futuro. •Preocuparam-me os
excessos a que podia conduzir uma concepção egocêntrica como a de
Dilthey, que organiza toda a sua maneira de ver a história a partir e em

219
DO CONHECIMENTO HISTôRICO
A UTILIDADE DA HISTóRIA

tomo do conhecimento do Eu. Descobrimos, pelo contrário, que o conhe-


é o equivalente do esforço do botânico para obser·var e catalogar as
·oimento histól'1co, fundado sobre uma diadéctica do Mesmo e do Outro,
diferentes espécies que constituem a flora de uma região explorada de
implicava nece&Saniamente um elemelllto de aiter:idooe essenci:ad.
novo. Tem primeiro de se saber que existem e o que elas são, antes de
ver que problemas, realmente interesSantes, ~e poderão levantar a seu
Na perspectiva mais estreita, a de uma história que só visasse à propósito.
compreensão da minha situação histórica presente pela reconstituição da Enquanto se mantém neste primeiro nível, a história vai-se encon-
linhagem de alguma maneira genealógica dos meus antecedentes, é bem trar exposta à severa crítica que dirige à curiosidade o moralista, quer ele
evidente que conheço esses estádios anteriores, esses antepassados, esses se ohàme Santo Agostinho, Descartes ou (herdeiro de um e do outro)
predecessores mesmo imediatos- na autobiografia, o meu eu de ontem Bossuet:
-como diferentes (porque passados), como irredutivelmente diferentes
do eu presente em tensão para o futuro. «... esta insaciável avidez de saber a história!. . . Se é para dela extrair
qualquer exemplo útil à vida humana, seja bem-vinda! Temos de o supor-
O conhecimento histórico implica, portanto, sempre um rodeio, um tar e mesmo de louvar, desde que se introduza nessa investigação uma
circuito, que supõe um primeiro movimento centrífugo 1, uma epokhe, certa sobriedade. Mas se, como se observa na maior parte dos curiosos,
uma suspensão das minhas preocupações existenciais mais urgentes, uma é para alimentar a imaginação desses vãos objectos, haverá alguma coisa
saída fora de mim, uma expatriação, uma descoberta e ·um encontro de mais inútil do que ficar naquilo que já não é, do que procurar todas as
outrem. loucuras que passaram pela cabeça de um mortal, do que evocar com
É aqui que importa distinguir níveis e compartimentos:· sob a sua tamanho cuidado essas imagens que Deus destruiu na Sua cidade santa,
forma mais superficial, a história aparecerá ao mora:lista como o fruto essas sombras que Ele dissipou, todo esse aparato de vaidade que por si
de uma pura curiosidade. Ela é, em primeiro lugar, a descoberta de uma mesmo voltou a mergulhar no nada donde saíra? 2 •
alteridade pura: naquele tempo, naquele país, existiam homens que eram
isto e aquilo, falavam tal língua, possuíam tal tipo de organização social, Como sempre que se trata de moral prática, tem de se distinguir
praticavam tais e tais técnicas de produção; vestiam desta maneira, cozi- os casos específicos: como mostram as perguntas ociosas dirigidas pelos
nhavam daquela... Nível a que se poderia chamar elementar: leitores a revistas de vulgarização especializadas neste géneró de curio-
sidade, é bem certo que existe .uma zona periférica onde o conhecimento
é o nível, na escola primária, da criança francesa que aprende pela pri- histórico se degrada em vacuidade; mas também o agostinismo, em nome
meira vez: «0 nosso pais antigamente chamava-se a Gália». Ao nível da seriedade da existência e de uma atitude existencial, pode degradar-se
secundário, é o de quem descobre a civilização faraónica. E o mesmo em utilitarismo estreito e grosseiro. O êxito humano reside num equilí-
acontece se nos elevarmos mais acima: ouvia no outro dia Ch. Virolleaud brio, difícil de realizar e sempre instável, entre eXigências opostas. Na
expor, na Academia das Inscrições, o resultado das escavações russas cultura, saúde e riqueza, compromisso e largueza de vistas nem sempre
de Kamir-Blour, na Arménia: descobrimos a existência da civilização jogam.
urartiana com a mesma curiosidade com que os nossos filhos descobrem
os Gauleses; Todos nós encontrámos destes educadores timoratos que medem
avaramente ao espírito o seu alimento, inquietos por tudo o que o pode

1 Ninguém insistiu melhor sobre este ponto que M. Nédoncelle, comunicação


2 Traité de la Concuspiscense, cap. VIII. citado por P. Mesnord, L'esprit eartésien
citado, em L'homme et l'histoire, p. 145.
est-il compatible. avec le .sens de l'histoire, mesm11 colectânea, p. 275 .

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DO OONHEOIMENTO HIBT6RIOO A UTILIDADE DA HIBT6RIA

perturbar ou induzir em tent(]fão, mas que não se preocupam bastante jovem italiano que, em 1932 ou 1933, foi de avião deitar folhetos
se a planta, que cresceu num vaso fechado, estio/a. antifascistas por cima de Roma e morreu na aventura 4 •
Que dizer de Balzac? Sem Vidocq não teríamos Vautrin, nem
Se consultarmos um psicólogo, 'Veremos que ele declara que uma Une ténébreuse affaire sem o rapto do 'senador Clément de Ris, ocorrido
curiosidade, por muito gratuita que pareça, implica no seu núcleo um em Outubro de 1800; a lig(]fão de Esther Gobseck com Lucien de
valor existencial que, hem entendido (todo o problema moral permanece), Rubempré vai buscar os seus episódios mais humanos à de Juliette
pode perfeitamente ser mórbido; evasão, sonho acordado, necessidade de Drouet com Vítor Hugo, etc. Esta característica não é exclusiva dos
uma pessoa se imaginar diferente ou de se opor a uma outra. romancistas realistas: a imaginação de Stendhal nunca teria concebido
Desde logo, mesmo que a história fosse apenas, como a definiram A Cartuxa se não tivesse sido fecundada por uma velha crónica romana ...
algumas vezes, essa «contemplação estética das singularidades» 3 , não
deixaria de ter utilidade, função cultural. Gostaria de sublinhar este Estas aproximações vão ajudar-nos a tomar consciência de uma
aspecto propriamente estético: basta reflectirmos para ,vermos aparecer outra função, mais profunda, do conhecimento histórico. Os teóricos
a analogia que existe entre a matéria histórica e os assuntos- temas, têm-na desprezado muitas vezes ou desqualificado sumariamente. Não
caracteres, situações - utilizados pela literatura épica; trágica, dramática, está tudo dito depois de se haver pronunciado a palavra de valor
romanesca ou cómica. Encarada sob este ângulo, a história aparece como estético. Sim, muitas vezes fazemos história como se lê Balzac. Haverá
um repertório de <~histórias» bo2.s para contar, um repertório magnífico, algum espírito tão superficial que tenha a coragem de pretender que
de uma riqueza inesgotável. a leitura de Balzac não está carregada de seriedade existencial? Nos dois
casos, retiramos da nossa aventura uma lição de humanidade. Em res-
Haverá -tragédia raciniana comparável, pela intensidade e pela no- posta ao moralista cuja intransigência estreita se funda na igno-
breza da paixão, à história verídica dos amores de Heloísa? Como aven- rância, o amador de literatura unir-se-á ao historiador para defender
tura romanesca, que dizer do rei Giannino, esse mercador de Siena que a legitimidade e, em primeiro lugar, a fecundidade desta experiência
Cola di Rienzi convenceu de que era o rei João 1 de França, esse filho humana, autêntica, ainda que fictícia, vicariante, que representa um
póstumo de Luís X o Teimoso, que teria sido suprimido em proveito do verdadeiro alargamento da experiência vivida, da minha experiência
seu tio Filipe V? Que romance policial iguala em suspense determinada do homem. Com muito maior segurança que através da literatura,
história autêntica de espionagem como, em Ankara, durante a última cuja humanidade é sempre parcialmente incerta, o conhecimento histórico
guerra, «O caso Cícero»? dilata, em proporções praticamente ilimitadas, o meu conhecimento do
homem, da sua realidade multiforme, das suas virtualidades infinita~.
Há mais do que uma simples analogia. Ficamos surpreendidos muito para além dos limites sempre estreitos em que se encerrará
ao vermos o papel que o conhecimento histórico desempenhou como a minha experiência 'Vivida.
fermento da imaginação criadora na literatura oficial, desde Homero
até aos nossos dias: E deve ficar assente que, quando dizemos «o homem», quere-
mos dizer tudo aquilo de que é susceptível a natureza humana: tanto
R. Martin du Gard não teria imaginado o desenlace de L'été 1914 aspectos pessoais como manifest(]fões colectivas. A história estuda e
se não tivesse conhecido o suicídio histórico de Lauro de Bosis, esse

s A fórmula é de R. Aron, La philoosophie critique, p. 32, e resume a crítica " R. Roll11nd, lntrod11etion ~ (ediçiio for11 do comércio) «lcare» de Lauro
que Dilthey f11z 11 est11 concepção. de Bosis, em Europe, J. XXXII (1933), pp. 5-15 .

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A UTILIDADE DA HI81l'6RIA
DO CONHECIMENTO HI8T6RIOO

conhece, quer a civilização romana ou a cultura antiga, quer a persona- seio do pensamento do historiador e da cultura contemporânea onde
lidade de Cícero. este as reintroduz. O historiador parece-me semelhante a um homem
que, sem receio de perder o seu tempo (é a epokhe), se compraz a
escavar nos escombros do passado- é verdade, literalmente, quando,
Fazemos história da mesma maneira que lemos seriamente a
à procura de papiros, escavamos em montes de sebakh, de lixo doméstico
literatura e, sobretudo, da mesma maneira que procuramos na vida
acumulado às portas dos burgos do Egipto grego ou romano! E vamos
encontrar e conhecer os homens, «para aprender o que não sabíamos
lá encontrar as dracmas, perdidas por esquecimento, e até státeres de
e que seria praticamente impossível descobrir só por nós, a menos
ouro, com a efígie do rei, brilhantes e frescos como se tivessem sido
que fôssemos precisamente esse homem que no-lo dá a conhecer. Depois
acabados de cunhar!
de o termos conhecido e compreendido, convertemo-nos nesse homem
Não é necessário demorarmo-nos a demonstrar a reaÜdáde desta
e sabemos o que ele sabe; mesmo que ele tivesse vivido há muito
recuperação, que é evidente, por exemplo, no domínio da história da
tempo e muito longe de nós, passamos a ter a sua experiência do homem
filosofia ou da história da arte. Cada um pode medir, reflectindo sobre
e da vida» 5 •
a sua própria experiência artística, qual foi a contribuição da história
Atribuirei desta maneira à história, como uma das suas funções
para o enriquecimento da nossa consciência estética, para o aprofun-
essenciais, este enriquecimento do meu universo interior pela reassunção
damento do gosto.
dos valores culturais recuperados no passado.
Tomemos o caso da mustca, para nada dizer das artes plásticas,
Pelo termo, intencionalmente vago, de «valor cultural», desig-
onde Malraux chega bem. Comparem a estreiteza do repertório onde
nar-se-á, da . maneira mais geral possível, tudo o que podemos conhecer
se encerrava um amador çomo Stendhal (grosso modo: de Mozart a
e compreender de verdadeiro, de belo, de real, no domínio da vida Rossini) à extensão dos domínios onde a nossa preferência se recreia
humana, dos factos de civilização mais elementares (um artifact qualquer, sem esforço: na minha infância, Bach aparecia ainda na fronteira que
instrumento ou utensílio, uma obra de arte, um conceito, um senti- separava a arte «antiga>> e a música moderna; hoje, encontra-se como
mento) até às sínteses mais vastas, esses «supersistemas ideológicos» que no centro de um repertório que aumentou desmedidamente. Recupe-
que nos apresentaram as grandes civilizações em via de se organizar rámos toda a Polifonia do Renascimento e as suas origens medievais,
em torno de um ideal colectivo. as melodias dos trovadores ou dos Minnesinger, para nada dizer de
todos os compositores que vieram enriquecer períodos mal conhecidos
Descobrimos, em primeiro lugar, estes valores sob a categoria (assim para a música francesa do período clássico. Outrora, passava-se
do Outro, ao encontrá-los como «qualquer coisa que existiu» entre de Lulli para Rameau. Pois bem: descobrimos Charpentier e La-
os homens do passado, no seio de civilização ou de sociedade desa- /ande, etc.).
parecidas, mas .na medida em que nos mostramos capazes de os apreender, Não há somente um alargamento em quantidade: vejam com que
de os compreender, eles voltam a ganhar vida em nós, adquirem de finura de gosto os magníficos progressos realizados pela arqueologia
alguma maneira uma nova realidade e uma historicidade segunda no grega permitiram fazer incidir a nossa apreciação propriamente estética
sobre a escultura antiga; comparemo-nos com Winckelmann que, por
só dispor de uma imagem vaga e sintética da «antiguidade», onde se
misturavam o grego e o romano, as formas mais altas da arte com a pro-
5 .Isto p11refreseie umll bel11 p6gin11 de crític11 liter6ri11 do meu 11migo P11ulding,
The Reporter, Dezembro li, 1951, p. 39.
dução artesanal dos decoradores provinciais de Pompeia, admirava con-

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DO CONHECIMENTO HISTóRICO A UTILIDADE DA HISTóRIA

fiadamente um conjunto heterogéneo e confuso de valores bem duvi- ção, mas a história não pode deixar de pegar no seu 'bem onde ele
dosos. se encontra!

É certo que não ignoro, uma vez que eu próprio as formulei Não negarei que se pode ter feito· ou que se pode fazer um mau
outrora 6, as censuras que, na linha de Nietzsche, se pode fazer ao abuso uso da história neste domínio, como em muitos outros. Pelo meu lado,
da história da arte, à opressão que daí resulta para o artista ou para o de bom grado retomarei as observações, duras, mas pertinentes, de
amador: com tendência para se verem subjugados pela erudição, tor- Nietzsche 7 , para quem a história só pode ser suportada por personali-
nam-se incapazes de sentir e substituem à experiência propriamente dades fortes. Quanto às fracas, acaba por as decompor, confunde-lhes
estética o juízo histórico. Deixa de se amar, deixa de se aplaudir, a sensibilidade e o juízo estético. São essas que, por não estarem segu-
enquanto bela, uma obra de arte. O que se faz é situar esta abóbada ras de si mesmas, vão pedir conselhos à história da arte. Como devo
no desenvolvimento do gótico burguinhão, é determinar as influências sentir, compreender, julgar, admirar? Penso ter ensinado suficiente-
italianas ou flamengas neste quadro do século XVII francês. À força mente ao meu discípulo o sentido dos limites da nossa ciência e a humil-
de tudo compreender, acaba-se por admitir tudo, deixa de haver belo dade que se lhe impõe, para não ter necessidade de lhe demonstrar
ou feio, grandeza ou decadência. Passa-se de Praxíteles para estas jóias como é ingénuo e desolador pedir desta maneira ao historiador que
sármatas ou góticas, ornadas de algumas espirais e de cabuchões de cor resolva o problema artístico - como aliás o problema religioso ou qual-
engastada~ em serrilhas. Diz-se: há a arte clássica e há o barroco. quer outro dos grandes problemas humanos. Não tem que se substituir
Luís XIV, esse, que tinha gosto porque tinha um gosto, exilava para o ao estético, ao crítico de arte, ao amador, ao artista. É a eles que incumbe
fundo do Lago dos Suíços e não sem ter mandado Girardon retocá-la, este juízo original, irredutível a qualquer outro género de. conhecimento,
a estátua equestre, irreal e grandiloquente, que Bernin tinha esculpido que reconhece à obra de arte o seu valor propriamente estético, e assim
para ele. lhe confere a sua realidade. .
·Uma vez reconhecido isto, falta que o historiador veja a sua cola-
Limitemos o alcance destas críticas. A obra de arte não interessa
boração pedida para a redacção de algumas das decisões deste juíZJ. ·
so a história da arte. A história é um esforço de comprensão total e
Impressiona-me muito ver que este papel, subordinado, mas amiúde
apreende todos os valores de que ela constitui um testemunho, e alguns
indispensável, é reconhecido mesmo por aqueles que maior desconfiança
desses valores. não são de ordem estética.
manifestam contra as intromissões possíveis da história, pelos mais preo-
Assim os valores simbólicos da iconografia: se estudamos a
cupados em salvaguardar a autonomia da experiência estética, os mais
última das grandes sínteses de Émile Mâle, L'art religieux apres le Con-
hostis para com a mesquinhez das investigações de erudição, como o
cile de Trente, aprenderemos a interessar-nos por obras artisticamente
muito medíocres como as cenas de martírio pintadas por Pomarancio nosso velho mestre Bernard Berenson. Sem dúvida, o verdadeiro ama-
em San Stefano Rotondo, porque estas terríveis garatujas se revelaram um dor, o artista, é aquele que ama um quadro por si mesmo, como se
documento muito significativo das preocupações missionárias da Igreja ama um amigo, o filho- uma pessoa 8 • Mas desde que queira aprofun-
da Contra-Reforma. Metemos estes frescos no dossier da história reli- dar este amor, tem realmente de procurar conhecer o seu objecto em
giosa; noutros casos, será em proveito da técnica, da economia, da si mesmo, tal como é na .realidade- para não correr o risco de amar
sociedade- da civilização. o artista escandaliza-se com esta profana-

7
Considérai>ions inac:tuelles, 11, § 5, traduçiio francesa, pp. 176-178.
8
B. Berenson, Aesthetic:s, ethic:s and history ( 1948), traduçiio francesa, p . 130,
6 Num livro de juventude, Fondements d'une c:ulture c:hrétienne ( 1934 ), pp. 50-51. 132; cf. 120, 226.

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DO CONHECIMENTO HIBT6RIOO A UTILIDADE D.J1 HISTóRIA

sob esse nome um fantasma vão (o leitor volta a encontrar aqui o nosso uma vez denunciar sem dúvida o mau uso possível da história, mas
ideal da amizade fundada sobre o conhecimento, ideal que repudia também talvez, de maneira mais urgente, .as deformações, as caricaturas
toda a ilusão): como desde logo poderia evitar, por exemplo, as ques- que tantas vezes nos oferecem sob o seu nome.
tões de data ou de atribuição, determinantes para o seu ~uízo? Por A história da filosofia, tal como a praticam em geral os filósofos,
muito vexatório que seja para ele fazer depender esse juizo de dados é uma causa de perpétua irritação para o historiador sem mais: vê na<>
extrínsecos, o artista neste ponto deverá chamar o historiador, o eru- mãos deles o passado perder a sua realidade concreta, o pensamento
dito, que se mandaram embora com tamanho desdém! tornar-se como que impessoal e mesmo intemporal. Para muitos, a his-
tória propriamente não existe, só há o imenso arsenal da philosophia
Sob que luz nova vemos a obra de Georges de la Tour, outrora perennis, onde o pensador de hoje vai buscar um conjunto de conceitos
dispersada entre as escolas de Le Nain, Zurbaran, Caravaggio e Rem- ou de raciocínios, escolhidos entre todos aqueles que se justapõem lado
brandi, depois que ela foi finalmente reunida e restituída ao seu verda- a lado.
deiro autor? Basta folhear as notas da monumental monografia de F. G.
Pariset 9 para verificar o papel que desempenham nesta reconstituição Pode-se falar da ideia platónica ou do argumento de Santo Anselmo,
as peças de arquivos, documentos do estado civil, livros de contas, etc. mas quando se diz «teorema de PitágoraS>> e «princípio de Carnot»,
Lanza de/ Vasto troçou com sobranceria desses bons eruditos trata-se afinal de uma etiqueta tradicional, a que se liga um vago senti-
(como P. Coirault) que se esforçam, com tamanha paciência, por voltar mento de homenagem. Não se trata verdadeiramente de uma tomada de
consciência histórica.
a encontrar as fontes artísticas (árias de ópera, canções de Pont-Neuf)
das nossas canções populares: «trabalhos inúteis!» 10 No entanto, quando
vemos o velho Herder tomar por arte autênticamente popular, saída das Para outros, a história é um pretexto, uma máscara, não tenho a
profundezas do inconsciente colectivo, as medíocres imitações em estilo coragem de dizer um nariz postiço. Como Descartes, no momento de
trovador do académico Moncrif (1750) ou Lesueur (o mestre de Ber- afrontar a cena do mundo e as suas luzes, o filósofo parece dizer: lar-
/ioz) ver na área de Que ne suis-je la fougere? (um romance do fim do vatus prodeo! Não ousa ou não quer expor em seu nome o seu próprio
século XVII), uma ária antiga da primeira Igreja do Oriente herdada pensamento e apresenta-o, um pouco fraudulentamente, sob a autori-
dade de um grande nome.
dos Hebreus pelos primeiros cristãos-como não havemos de fazer
rroça? «Por essa razão- diz ainda Berenson- é que importa que as
Seria fácil citar muitos exemplos: no tempo em que reinava entre
atribuições sejam muito seguras» 11 •
nós a ditadura positivista, a metafísica não ousava dizer o seu nome e
À luz das considerações precedentes, podemos iluminar um pouco
a história (uma história muito má) servia de refúgio a todos os dogma-
o caso, muito mais complexo, da história da filosofia- digamos mais
tismos vergonhosos. Mas esse processo pode inspirar-se em motivos bem
geralmente da ·história do pensamento, porque a «teologia positiva>> 12
complexos, como o mostra o exemplo já citado (p. JI8) de Platão e,
levanta problemas em grande medida análogos. Aqui, devemos mais
com ele, de todos os «pequenos SocráticoS>> que decidiram exprimir-.\e
com os seus Diálogos pela boca do mestre.

9 Georges de la Tour {1948). Por fim, sob o nome de história da filosofia, é na realidade muitas
10 Lonzo dei Vasto, pref6cio do seu Chansonnier populaire ( 1947); cf. o meu vezes uma filosofia da história (encarada do ponto de vista do pen-
Livre des Chansons, pp. 26, 46, 80. samento) que nos é proposta com bastante ingenuidade. Solidamente
11 B. Berenson, op. c:it., p. 225.
12 Ver as observações metodológicos t1io profundos de R. Laurentin, Marie,
instalado no interior das suas posições doutrinais, o filósofo deita um
I'Eglise et le sac:erdoce, t. 11 {1953)~ pp. 17-18. olhar sobre a galeria dos seus grandes predecessores e organiza o qua-

228 229
DO CONHECIMENTO HIBTõRIOO A UTILIDADE DA HISTóRIA

dro genealógico, onde se inscreve a génese da sua própria filosofia tica e rítmica. O comentário que dela dava 13 insistia sobre o contra-senso
(um pouco como a paleontologia, por meio de uma série de fósseis, a evitar e não deixava supor que o tratado em questão pudesse conter
encontra os antecedentes dos seres vivos de hoje). Desde os precursores qualquer coisa de utilizável pelo compositor de hoje.
longínquos aos inspiradores imediatos, mostra o seu desenvolvimento Alguns anos mais tarde, fui levado a esboçar por minha conta
progressivo, sublinhando aliás os obstáculos que se opuseram durante uma teoria da arte musical 14 • Apercebi-me, ao fim dum certo tempo e
muito tempo ao triunfo da verdade, os erros que o fizeram atrasar ou não logo a princípio, que a doutrina que eu formulava como verdadeira
o comprometeratn momentaneamente. Sem dúvida, uma tal reconstituição e cuja responsabilidade assumia como estético, era afinal a própria dou-
con$ua a ser um dever para todo o pensamento que deseja ser honesto; trina de Santo Agostinho, que se revelava válida neste plano, à custa
deve situar-se em relação a todas as tentativas anteriores, ordenar em de uma transposição e de algumas adaptações que eu tinha realizado
relação a elas a herança cultural que recolheu e muito particularmente inconscientemente.
Estou convencido- e a experiência infeliz de um dos meus pre-
pôr à prova o seu próprio critério de verdade, indicando o erro onde
decessores 15 assim o prova- que nunca teria obtido este proveito ines-
os filósofos anteriores se afastaram dessa verdade. Mas não podemos
perado se houvesse lido Santo Agostinho com um espírito menos livre-
alimentar ilusões sobre o valor demonstrativo de uma tal retrospecção.
mente curioso e demasiado ansioso por o interrogar sobre o problema
O filósofo triunfa sem esforço, porque é ·em função dos seus princípios
actual da música.
que julga o comportamento de outrem. A nossa teoria do conheci-
mento desmontou esse mecanismo. Mais do que nunca, pode-se dizer Para haver uma verdadeira história da filosofia, tem portanto de
aqui que «a teoria precede a história>>. Toda a filosofia dada se classi- se converter o filósofo à aventura histórica e persuadi-lo de que tem
fica, em relação à minha, como um predecessor ou um adversário. não só o direito, mas também o dever de proporcionar a si mesmo
Não se trata propriamente de história. Esta só começa quando o histo- algumas férias- a legitimate holiday 16 -durante as quais terá a curio-
riador se esquece o bastante para sair de si mesmo e avança, disponível, sidade de descobrir outra filosofia. Já tem havido quem faça essa ten-
à descoberta, ao encontro de outrem. tativa colocando-se no plano moral: em nome da virtude da docilitas,
O filósofo oferece-nos um caso maior dos perigos, tais como os que é, afinal, a virtude fundamental da humildade aplicada às coisas
denunciávamos mais acima (cap. VIII), da obsessão existencial. Mats do espírito, o filósofo em demanda da verdade deve começar por per-
do que qualquer outro, o pensador acha-se absorvido pelo seu próprio guntar a si próprio se outros não a teriam por acaso descoberto antes
problema, tem dificuldade em se arrancar a ele, em se abrir ao pensa- dele. Mas isso equivale ainda a encerrarmo-nos de mais numa perspec-
mento do Outro. No entanto, é este o preço da seriedade, da realidade tiva interessada. Prefiro insistir num outro argumento: a verdade não
e da fecundidade da história. é o único predicado que pode qualificar uma doutrina; há pensamentos

Tomarei, como sempre, um exemplo pessoal: tinha estudado


outrora o tratado agostiniano de Musica, movido por uma curiosidade
13 Em Seint Augustin et le fin de le cultura entique ( 1938), nomeadamente
propriamente histórica por esse livro desconcertante à primeira leitura pp. 199-204.
.e muitas vezes desprezado. O seu estudo tomava lugar numa investiga- 14 Treité de le musique selon l'esprit de Seint Augustin ( 1942).
ção sobre as origens antigas do ciclo medieval das sete artes liberais. 15 J. Huré, Seint Augustin musicien ( 1924), o quel, por exemplo, eo ler, nlls
Ao lê-lo, tinha-me impressionado sobretudo que aquilo que Santo Agos- Confissões, e pelevrll pselterium, a traduz por «psaltérion»: teis contre-sensos, o bese
de wishful thinking, representem verdedeiros «ectos falhedos», no sentido freudieno
tinho designava pela palavra musica não fosse aquilo a que nós damos
do termo!
esse nome, mas sim a ciência dos seus fundamentos matemáticos, acús- 18 G. J. Renier, History, its purpose end method, p. 31.

230 231
DO OONHEOIMENTO HIST6RIOO A UTILIDADE DA HIST6RIA

que são verdadeiros, mas estreitos, pobres, rígidos, bárbaros; a cultura cada uma destas doutrinas e a verdade delas - em si eterna - na sua
histórica não é propriamente um instrumento de verdade, mas um factor historicidade concreta, no seio da realidade humana situada no espaço
de cultura. e no tempo, a cronologia, e ainda mais, a civilização, a cultura, a con-
Far-me-ei compreender se invocar uma comparação: assim como juntura política, econômica, social, que· acompanhou os homens Sócra-
P_aleografia, epigrafia, numismática, etc., em vez de se bastarem só por tes, Descartes, Kant ou Auguste Comte. «Levamos este tesouro em
s1 (o paleógrafo que é apenas um paleógrafo não pode deixar de ser vasos de argila>> 18 : a verdade filosófica, e toda a verdade (a verdade
um espírito bastante mesquinho), se apresentam humildemente como revelada de fé religiosa é-me transmitida através de uma Igreja, de
ciências auxiliares da história, assim direi que, para o filósofo, a his- uma tradição, de um livro: fides ex auditu), não se nos oferece sob a
tória aparece, por sua vez, como uma ciência auxiliar do pensamento;
forma de parcelas de metal nativo no estado puro, mas no estado de liga
ela não basta para nada, mas revela imperícia prescindir dos seus servi-
ou de combinação com uma realidade humana.
ços. Ela ensina ao filósofo a dilatar o seu horizonte, a tomar consciência
A compreensão de uma doutrina será tanto mais autêntica e mais
da complexidade dos problemas e das suas implicações, propõe solu-
profunda quanto melhor a apreendermos no seio desta realidade origi-
ções- ou objecções- que talvez não tivesse imaginado nem previsto,
nal; de direito pode-se sempre abstraí-la, de facto a operação cirúrgica
arranca-o à estreiteza inevitável que o isolamento implica e integra-o na
mais vasta sociedade dos espíritos, mediante um diálogo que sempre é tão delicada que muitas das finuras, dos matizes mais delicados -
enriquece. onde reside a verdade - correm o risco de serem pisados ou destruídC's
Era o que Séneca exprimia numa bela página cara ao humanista: durante a operação.
«nenhum século nos está vedado; (pela história) o poder do nosso
espírito pode ultrapassar os limites da fraqueza do homem sozinho, Que progresso desde o Sistema de Aristóteles de Hamelin até
egredi humanae imbecillitatis angustias. Podemos discutir com Sócrates, ao Aristóteles de Werner Jiiger, onde seguimos o pensamento que nasce,
duvidar com Cameadas, conhecer a tranquilidade de Epicuro, com os se desenvolve e se revela através das formas literárias e das ocasiões
Estóicos vencer a natureza humana, ultrapassá-la com · os Cínicos. Uma diversas, porque mais uma vez aqui o historiador põe ao espírito dema-
vez que a estrutura do ser (rerum natura) nos permite entrar em comu- siado sistemático de um Hamelin a sua questão prévia: deste Sistema,
nhão com todo o passado, porque não nos havemos de arrancar à
o que é que sabe e como o sabe?
estreiteza da nossa temporalidade primeira e de partilhar com os melho-
res espíritos essas verdades magníficas e eternas», quae immensa, quae Aqui, imagino eu, serão os filósofos, se me ouvem, que se vão
aeterna sunt? 17
preocupar: «numa (tal) história das filosofias, ainda se trata de filo-
A esta última palavra algum dos meus leitores vai soltar um grito
sofia?» 19 ; ao inserirmos demasiado intimamente o pensamento na vida
de surpresa: não será uma maneira anti-histórica de utilizar a história,
dos homens que o conceberam, não vamos dissolver a verdade e, por-
não é voltar a encontrar essa falsa philosophia perennis, onde, num vago
tanto, a realidade do passado no fluxo temporal e deslizar para o rela-
cenário de Campos Elísios, Sócrates de túnica e pés descalços, Descartes
tivismo do Historismus? É ai que encontramos essa reticência profunda,
d~ · gibão Luís XIII, Kant de perruca polvilhada e Comte de fato preto,
tão amiúde observada, dos verdadeiros filósofos a respeito da história.
discutem uns com os outros e invocam argumentos desencarnados?
Respondo eu: não, porque se sou verdadeiramente historiador, apreendo

18 11 Cor., IV, 7.
17 De breuitate vi•ae, XIV, 1-2. 19 H. Gouhier, L'histoire et sa philosophie ( 1952), p. 138.

232 233
DO CONHECIMENTO HISTóRICO A UTILIDADE DA HISTóRIA

E que dizer dos teólogos? Facilmente passamos a seus olhos por gue reconstituir cada doutrina na perspectiva segundo a qual ela apare~
um «relativista», se por acaso nos interessamos com maior vivacidade cera ao seu autor como verdadeira, apresentar-se-á de novo a mim
pelas etapas passadas da teologia- por Orígenes, por exemplo, por também sob a mesma luz de verdade- pelo menos enquanto eu aceitar
São Máximo o Confessor, ou mesmo por São Tomás por pouco que colocar-me nesta perspectiva. Se consigo ver o problema da salvação
insistimos sobre o facto de ter vivido no século XIII. como o via Santo Agostinho, o mistério da predestinação deixará de me
escandalizar e passarei a admitir as suas consequências mais extremas.
Neste mal-entendido ora irrisório ora dramático 20 , decerto nem Mas se, pelo contrário, adopto a problemática de Pelágio ou de Julião
todas as culpas estão do lado dos historiadores. Se o filósofo resmunga de Eclana, lá me torno eu pelagiano .. . O perigo não ~ imaginário; lem-
com a intervenção de Clio, é porque muitas vezes esta o vem arrancar bremo-nos das fórmulas generosas, mas tão imprudentes, de que se
ao seu dogmatismo confortável, feito de ingnorância e de ingenuidade. serviu Péguy no seu Bar-Cochebas:
Censurá-la-á por complicar como que por gosto os problemas, em vez
de os procurar resolver. Mas, como vimos, a missão e a fecundidade da «Mas temos de nos representar o conjunto das grandes metafísicas
história consistem precisamente em lembrar sem cessar: «Há mais coi- na história e na memória da humanidade .. . como o conjunto dos gran·
sas na Terra e no Céu- no pensamento dos teus predecessores- d'J des povos e das grandes raças, numa palavra, como o conjunto das
que a princípio imaginava a tua cândida filosofia». Ela faz compreen- grandes culturas: como um povo de linguagem, como um concerto de
der que nada é simples; em presença de duas posições doutrinais que vozes que muitas vezes (?) concordam e algumas vezes (!) discordam,
parecem opor-se, a primeira reacção do filósofo exprimir-se-á em ter· que ressoam sempre». E mais acima, criticando a filosofia da história
mos brutais: «Se uma é verdadeira e a outra a contradiz, é porque a que dispõe as doutrinas sucessivas segundo uma progressão linear e .
segunda tem de ser falsa>>. O historiador chegará e procurará apreender contínua, e mostra abolidas uma após outra, «ultrapassadas» por este
de dentro a ·intenção original destes dois pensamentos e será amiúd~ movimento do progresso: « ... Não vemos que qualquer homem, nem
levado a sugerir que não existe propriamente contradição, «porque é qualquer humanidade ... possa inteligentemente gabar-se alguma vez de
claro que se estas duas doutrinas são organizadas segundo duas preo- ter ultrapassado Platão». Ou ainda: «Um espírito que começa a ultra-
cupações iniciais diferentes, nunca encararão sob o mesmo aspecto os passar uma filosofia, é muito simplesmente uma alma que começa a
mesmos problemas e, por conseguinte, uma nunca responderá à questão perder o tom e o ritmo, a linguagem e a ressonância desta filosofia .. .»
precisa que a outra tiver levantado»; desde logo, «elas não podem nem Segue-se o magnífico elogio de Hypatia, essa alma «tão perfeitamente
excluir-se nem coincidir» 21 • concorde com a alma platónica ... e em geral com a alma helénica que .. ·
Isto realmente não deve acalmar as inquietações do nosso adver- mesmo que todo um mundo, que todo o mundo perdesse o acordo,
sário dogmático: se o esforço de simpatia desinteressada, onde reconhe- só ela permanecia conforme até à morte» 22 •
cemos a nota específica do verdadeiro historiador, faz desvanecer-se a
própria possibilidade de uma contradição, que será feito da noção de .Éo historiador agora que nos parece pronunciar a palavra ímpia,
Verdade e do seu absoluto? Se o meu esforço de compreensão canse- Larvatus prodeo, e que se adianta mascarado: naquilo a que nós cha-
mávamos 0 arsenal do pensamento, pode pegar à sua vontade em tal
ou tal máscara nova, tal «défroque» 28 e, de cada uma das vezes, desem·
20 Neste ponto, inspiro-me tonto em H. Gouhier como em P. Ricoeur, em 22 Cahiers de-la Quinzaine (11.o caderno da oitava série, 3 de Fev. 1907) , texto
Offener Horizont (Festchrift für Kerl Jespers) (Munique, 195l), pp. 110-125, texto reproduzido nas «Oeuvres en prose de Charles Pég uy, 1898-1908», «Bibl. de la Pléiade>>,
francês em Histoire et Verité (1955). pp . 53-72. pp, 1100, 1106, 1110-1111 .
21 E. Gilson, no conclusiio do suo Philosophie de Seint Boneventure, p. 396 2s Poro folor como Morx, bem comentodo por G. Duvel!u, em L'homme ét
do 3.• ediçiio ( 1953), porolelo entre Siío Booventuro e Siio Tom~s . l'histoire (Actes do Con.gresso de Estrosburgo), pp. 74-75.

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DO CON,HECIMENTO HISTóRICO A UTILIDADE DA HISTóRIA

penhar o seu papel como perfeito comediante, até se deixar tomar por mais que as críticas dos seus contemporâneos, porque o verdadeiro
ele. A tentação é grande: uma vez despertado o interesse pela investi- filósofo é aquele que sabe estar na verdade e que, seguro da sua po i-
gação histórica, o filósofo corre o risco de se deixar arrastar até ao ção, se resigna, se for preciso, a ter razão diante e contra todos.
ponto de esquecer a sua missão, a sua vocação pessoal, o seu problema,
por curiosidade, preguiça ou devoção cheia de humildade, por algum Evocarei aqui o apólogo do trovador Peire Cardenal, Una ciul 11 '1.
ilustre mestre de outrora. Demora-se, limita a pouco e pouco a sua fo, no sai cais... Era uma vez uma cidade na qual, devido a um ttl'i
ambição, a reconstituir o magistério de um outro, já não ousa pensar dente, todos os habitantes enlouqueceram, a não ser um deles: «G rw rtf,•
em seu próprio nome. O perfeito historiador da filosofia tem tendência é a surpresa dele por os ver assim, mas maior ainda a deles por w-rt·m
para se identificar com esse Outro que conhece tão bem: já não pensa, o que ficou são: é a ele que tomam como um louco ... Esta fábula ,,
repensa, joga (o jogo pode ser jogado seriamente sem deixar de ser um imagem do mundo, que é esta cidade cheia de furiosoS>>. Quando tm11
jogo), a contemplar o mundo e a vida through the other's glass, com os bém se visse, o filósofo saberia resistir ao consensus dos demenft'·"'
olhos do outro; torna-se Platão, Plotino ou São Tomás... e deixa de
ser ele mesmo. Aquele que não abdica da sua personalidade, não se vê dosn1
mado perante a história. Reage diante dos seus predecessores comn
diante dos seus contemporâneos. Pesa as suas razões, julga-as, aceitu-u
O remédio é fácil, uma vez diagnosticado o mal: temos de manter
ou repele-as. Mas o seu pensamento sai do diálogo enriquecido por st(
viva em nós, de alimentar e de reavivar a consciência do compromisso
confronto ou (se não mudou) reforçado por esta provação aceit· t'
existencial do · pensamento. Não nos deixarmos evadir passivamente por
vitoriosamente ultrapassada.
esta personalidade alheia, não aceitarmos os seus princípios ou o seu
ponto de vista como se aceitam as regras do bridge ou do xadrez: nesta
dialéctica, não deixarmos sufocar o eu pelo outro, não deixarmos de Evocarei mais uma vez o testemunho de Étienne Gilson, que 11os
existir, de ser alguém ... fornece um exemplo de um historiador que soube permanecer um fi/ô .
safo (não constitui segredo para ninguém que o seu dogmatismo, em
Para o filósofo, o verdadeiro perigo que a história apresenta reside vez de se tornar insípido, de se diluir numa experiência histórica cadtJ
aí, no diletantismo, e não no relativismo. Não é a experiência histórica vez mais vasta, teve antes tendência para se afirmar com maior nitidez
e intransigência). Fazendo eco à minha observação sobre o perigo de
que é responsável pelas devastações do Historismus, mas sim uma
se tornar pelagiano, escrevia-me 24 : «De boa vontade o creio tanto mais
doença interior do pensamento filosófico, que tinha perdido o sentido
real, quanto me recordo do meu deslumbramento quando descobri o
da Verdade. O relativismo historicista (seja o que for, só é verdade
sentido desta doutrina: não a negação da graça, mas a afirmação de
para um tempo- o seu tempo) é a resposta inevitável a um problema
que o livre arbítrio é que é a graça. Falsa sunt quae dicitis, sim; nova,
cujos termos enganadores foram ·ditados por um cepticismo anterior e
também sim; mas pulchra, sim ainda. Tem de se correr esse risco, se
fundamental: se o filósofo renuncia a elaborar um quadro dos valores,
se quer que a certeza seja escolha e não ignorância ... »
um critério de verdade, e se se arrisca aventurosamente no terreno do
passado, como é que a história lhe havia de fazer descobrir, lhe havia
O perigo entrevisto será ultrapassado se cada um - o filósofo,
de revelar aquilo que ele não se tornou capaz de ver?
mas também o historiador- desempenha bem o seu ofício e o desem -
Se não é infiel à sua vocação, o verdadeiro filósofo deve começar
penha até ao fim. Também não pretendo dissimular as culpas do his-
por enfrentar, e no plano porpriamente filosófico, o difícil problema da
toriador.
verdade; quando o tiver resolvido - e se não o resolve, ninguém o fará
em vez dele - então pode, sem perigo, enfrentar a diversidade do pas-
sado: as variações dos filósofos, seus predecessores, não o intimidarão H Numa carta de 26 de Setembro de 1949.

236 .'. I I
DO OONHEOIMENTO HIBTORIOO A UTILIDADE DA HIBTORIA

Ripostando ao que eu disse (p. 229) sobre a perpétua irritação um pergaminho: graça, graça!, a palavra justa. Porque o rei concede a
que causam em nós os filósofos, Jtmile Bréhier fez-me parar um dia sua graça; não leva em conta um mérito. Assim é o Deus de Calvino 27
num corredor da Sorbonne e disse-me delicadamente, mas ironicamente:
«Oh! você sabe, Marrou, o historiador também irrita muitas vezes o Isto é vivo, isto é «verdadeiro»,. o historiador sorri de contenta-
filósofo»- e compreende-se facilmente porquê. mento, mas qual é ao certo o alcance de tais aproximações? Deixo
passar aquilo que de ambiguidade fundamental apresenta uma tal rela-
Com receio de despersonalizar o seu herói, o historiador de bom ção (foi Calvino que sofreu a influência da justiça do seu tempo, ou
grado insistirá, ao estudar um filósofo, um pensador, sobre a diferença não terá sido antes esta que encarnou um clima teológico e moral que
irredutível que o distingue de qualquer outro. Com a atenção que põe não tem em Calvino a única testemunha?). É preciso pelo menos insistir
em apreender o seu objecto na sua realidade concreta, terá demasiado de novo (p. 179) sobre o que tem de «fácil», de arbitrário, a escolha
facilmente tendência para sublinhar de maneira excessiva aquilo que do tipo de explicação.
constitui a sua originalidade. E é bem verdade que a «continuidade da
tradição platónica» 25 não se reconduz à - permanência de um plato- Na esteira de L. Febvre, encarrego-me de vos explicar o rigor da
nismo abstracto, definido como uma essência pura, que passaria de teoria da predestinação em Santo Agostinho, a sua indiferença pela de~i­
mão em mão sem se alterar; pelo contrário, encarna na série destas gualdade da sorte entre eleitos e condenados, pelo clima social da escra-
personalidades em última análise incomparáveis que são Platão, Plotino, vatura antiga; mas poderei também ver nisso uma consequência do seu
Porfírio, etc., até Giordano Bruno e Marsilo Ficino. temperamento fisiológico, da angústia do asmático que, segundo parece,
Para apreender esta originalidade que faz, por exemplo, com ele teria sido 28 - a não ser que eu embarque na galera psicanalista
que a «descren?» de Rabelais não seja a de um Luciano, de um Voltaire e vos fale do seu <<Édipo». E não é tudo: há a hipótese racista que vos
ou de um Anatole France, o historiador procurará «explicar», isto é, explicará a coisa pelas tradições do povo berbere, que sei eu aindv?
compreender a mentalidade de cada um deles, a sua maneira de pensar
e de sentir, em função do meio cultural e social que os formou. Mas, sobretudo, se tais hipóteses dão conta do Como, e quando
muito (sejamos optimistas) do Porquê, não poderiam explicar o Quid
Acabo de dtar Lucien Febvre 26 : põe algures Calvino e «o carácter do pensamento. Não se pode reduzir este às condições empíricas que acom-
de dom totalmente gratuito e incondicional que reveste (nele) a concessão panharam e, se se quer, condicionaram o seu aparecimento. Sejam quais
da graça aos eleitoS», em relação com a concepção da justiça e da forem as razões que levaram Calvino a formular a sua doutrina, sejam
«graça» reais em vigor na França do século XVI: «Lembremo-nos de quais forem as vias e os meios como apareceu, o calvinismo existe, tem
determinada narrativa desse tempo, o culpado ajoelhado, de olhos uma coerência interior, um sentido, um valor- um grau de verdade
vendados, com a cabeça em cima do cepo... Já o homem vermelho que pertence ao pensador (aqui o teólogo mais que o filósofo, a coisa
brande a sua temível espada nua. E, bruscamente, gritos, um cavaleiro importa pouco) determinar. O que prova bem é que houve e que há
que aparece a correr desenfreadamente e que invade a praça brandindo

27 Combets pour l'hiatoire, pp. 227-228 ( reimpressiio dos Anneles d'Hiatoire


R. Klibt~nsky, The Continuity of the Plt~tonic: trt~dition during the middle
25
soc:iele, t. 111, 1941 ).
ege, I (Londres, 1950).
26
28 Cf. P. Alforic, L'évolution intellec:tuelle de Saint Augustin, t. I, 1918, p. 40.
Devem ter reconhecido o tftulo do seu livro Le probleme de l'inc:royenc:e Mos contra, Dr. B. Legewie, Die Hlrperlic:he Konstitution und die Krenkheiten Augut·
eu XVIe aiec:le, lt~ religion de Rebeleia (2.• ed., 1947). tin's, em Misc:ellenee Agostiniana (Romo), 1931, t. 11, pp. 17, 19.

238
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DO CONHECIMENTO HIST6RIOO A UTILIDADE DA HIST6RIA

ainda e que podem existir durante muito tempo calvinistas, vivendo Era antes de estudar historicamente Santo Agostinho que o seu
num meio completamente diferente do da França do século XVI e aos pensamento me parecia relativo, curioso na sua estranheza e na sua
quais, apesar desta diferença de enquadramento, a sua «verdade» se alteridade. Esbarrava nele como num estranho, era para mim esse
imporá da mesma maneira. Desde logo dizer que «reconstituir pelo letrado da decadência, ess~ represental'lte de uma civi1ização desapare-
pensamento, quanto a cada uma das épocas que estuda, o material mental cida, de um estádio ultrapassado da evolução social, intelectual, re1igiosa
dos homens desta época ... , eis o ideal supremo, o fim último do histo- da humanidade. É, pelo contrário, agora que aprendi a conhecê-lo, a
riador»29, explicar Cuvier por Montbé1iard ou pela Revolução Francesa 3 u, compreendê-lo, a penSar um pouco como ele, a pensar por dentro comn
é estabi1izar a investigação histórica a um nível superficial, exotérico. e por que motivo ele fora levado a assumir tal posição doutrinai e a
Não é esse o resultado mais subtil do nosso esforço: se efectiva- exprimi-la desta ou daquela maneira (aqui endurecendo-a até ao para-
mente o historiador se debruça com tão inquieta e escrupulosa curiosi- doxo no fogo da polémica, acolá exprimindo-se, com uma simp1icidadc
dade, quando estuda um pensamento de outrora, sobre o homem que popular e sorridente, em tal Sermão dirigido ao seu povo de Hipona),
o concebeu, sobre a sua pessoa e o que o rodeia- sobre as ocasiões, é agora que o valor do seu pensamento me é realmente acessível - o seu
amiúde fúteis, sempre extraordinariamente contingentes quanto ao con- valor, seja de verdade, seja de objecção temível, que devo defrontar
teúdo doutrinai que o levara a formulá-lo -sobre as obras onde ele e' vencer.
o exprime, o seu género literário, o seu texto e as suas 'Vicissitudes, não É com esta historicidade original, que foi a sua realidade, que
dispensando, como se viu a propósito de Platão, a menor partícula de a minha própria historicidade estabelece essa relação que constitui
1igação - não é pelo prazer da anedota, nem movido pela ambição a história,
ilusória de «reduzir» esse pensamento às suas condições de apareci-
mento, mas necessidade de compreender. relação complexa oiule intervém -o leitor que o não esqueça ( p. 39)
O que nós procuramos, o que devemos procurar compreender é, - tudo o que posso saber da historicidade das idades intermediárias.
se me permitem, para falar como os químicos, a verdade no estado Não apreeiulo somente a doutrina agostiniana da predestinação no ins-
nascente, nessa «situação original» de que Bergson falou tão bem, esse tante em que ela acaba de tomar forma sob o fogo das objecções de
brotar central, o grande Ursprung, no seio do qual, quaisquer que sejam, Julião de Eclana, mas penso-a ao assumir ao mesmo tempo tudo o que
mais uma vez, as contingências, a ideia surgiu na consciência do pensador com razão ou sem ela pôde passar a ser no pensamento de Gottschalk,
e se impôs a ele. Invoco neste ponto a experiência de todos aqueles que, Lutero ou Jansenius.
com um coração dócil e sincero, se debruçaram um dia sobre uma página
que podia ter sido escrita ontem ou remontar a mais de dois mil anos, Relação no seio da qual se estabelece um diálogo fraterno onde
mas que, finalmente compreendida, lhes revelou a sua autêntica, a sua comungam o seu espírito e o meu no que há de mais profundo numa
eterna verdade. Serão unânimes em testemunhá-lo: não, o estudo histórico, e noutra das nossas existências, porque somos, quer um quer outro,
levado a fundo, não é uma escola de relativismo; não, não leva a dissolv~r almas capazes e apaixonadas pela Verdade.
o pensamento no seu quadro cultural ou social ou em qualquer outra Estendi-me um pouco longamente sobre o caso da história da
coisa. Constitui a ocasião e o meio de Uma redescoberta, de uma reto- filosofia. Parece-me típico: ab illo disce omnes; reconhecer-~-á ao conhe- ,
mada, de um enriquecimento. cimento histórico uma função análoga, sejam quais forem os domíni0s
onde possa exercer-se. Não se deve pedir-lhe mais, nem coisa diferente,
do que pode fornecer. Assim como não descarrega o filósofo da respon-
29 L. Febvre, Combats pour l'histoire, p. 334 (reimpressão do Revue de Synthàse
sabi1idade de formular o juízo de verdade, não pretenderá, por exemplo,
Historique, t. XLIII, 1927).
ditar ao homem de acção, em virtude dos precedentes ou das ,analogias
80 lbid., pp. 327, 335. que lhe dá a conhecer. uma decisão de ordem política. A história não

18
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DO OONHEOIMENTO HISTORIOO A UTILIDADE DA IiiST6RIA

pode assumir na cultura humana, na vida, o papel de um princípto que ela é também, e num · sentido que ela é, em primeiro lugar, isso:
animador; o seu verdadeiro papel, infinitamente mais humilde, mas ao a minha história, a reconstituição, a tomada de consciência do desen-
seu nível' real e bem precioso, é fornecer à consciência do homem que volvimento humano que fez de mim aquilo que eu sou, que levou a esta
sente, que pensa, que age uma abundância de materiais sobre os quais situação, cultural, económica, social, poHtica, na qual me encontro inserto
exerce o seu juízo e a sua vontade; a sua fecundidade reside nesta por todas as fibras do meu ser.
extensão praticamente indefinida que realiza da nossa experiência, :io É aqui que aparece uma diferença, capital do ponto de vista d::t
nosso conhecimento do homem. É essa a sua grandeza, a sua «Utilidade». historiodiceia, da «justificação da história» no interior da cultura e da
Não hesitaremos em retomar aqui, num sentido renovado, a con- vida, entre a evolução biológica e aquilo a que, por analogia, tínhamos
cepção antiga da historia, magistra uitae. Sabe-se que aplicação estreita proposto que se chamasse a evolução da humanidade: se um cavalo, por
e ridícula dela faziam os velhos retóricos: a história, nas mãos deles, exemplo, pudesse tomar consciência dos avatares dos seu~ longínquos
reconduzia-se a um repertório de anedotas tópicas, de exemplos para antepassados terciários, o Hyracotherium, o Orohippus, etc., isso não
uso do moralista, de precedentes para o jurista ou para o homem de mudaria nada da sua estrutura óssea, nem da sua ·técnica da corrida
Estado, de estratagemas comprovados para o táctico ou para o diplomata. (o mesmo acontece com o homem, quando reconstitui a sua filogénese).
Mas esta fórmula é susceptível de um sentido profundo: é des- A evolução da humanidade transmitiu-nos também uma herança que
cobrindo os homens, encontrando outros homens diferentes de mim se impõe primeiro a nós com a mesma necessidade «natural» e tirânica,
que aprendo a conhecer melhor o que é o homem, o homem que eu mas a partir do momento em que esta evolução se torne histórica, a
sou com todas as suas virtualidades, esplêndidas ou terríveis. Isto é partir do momento em que tomo consciência desta hereditariedade, em
evidente na experiência da vida quotidiana: quem ousaria dizer que foi que sei o que sou, porque e como o passei a ser, este conhecimento
em vão que encontrámos esses homens, que nós procurámos conhecer, torna-me livre a respeito dessa herança que doravante só recebo a
compreender - amar? A história também é encontro de outrem e reve- benefício de inventário (na medida em que se trata de coisas no meu
la-nos assim infinitamente mais coisas, sobre todos os aspectos do ser poder); quanto ao que me ultrapassa, posso pelo menos julgá-lo ousa-
e da vida humana, do que as que nós poderíamos descobrir só na nossa damente, opor-lhe, por exemplo, a minha condenação indignada- e .esse
vida, e dessa maneira ela fecunda a nossa imaginação criadora, abre acto de pensamento pode, por sua vez, inspirar e animar toda uma acção
mil e uma vias novas quer ao nosso esforço de pensamento, quer à em vista de transformar as coisas.
nossa acção.
Se Staline, através de um estudo histórico da noção de liberdade
(Tomo a palavra no seu sentido · mais vasto, anexando-lhe, por pessoal (do tipo daquela que tinha sonhado realizar Lorde Acton), pudesse
exemplo, a vida sentimental: ao ouvir os trovadores, descubro, ou apro- ter descoberto donde lhe vinha a sua técnica policial, talvez houvesse
fundo, uma arte de amar). recuado de horror diante de tudo o que sobrevivia nele de Ivan o Terrível
e do Basileu bizantino, e talvez isso o tivesse levado a modificar o regime
A história liberta-nos dos entraves, das limitações que impunha do M. D. V., esse herdeiro do N. K. V. D., do O. G. P. U., da Tcheka,
à nossa experiência do homem a nossa situação no seio do devir, em tal da Okhrana, e assim sucessivamente até aos agentes in rebus do Baixo
lugar, em tal sociedade, em tal momento da sua evolução - e dessa Império e aos frumentarii de Adriano.
maneira torna-se, sob certos aspectos, um instrumento, um meio da
nossa liberdade. A tomada de consciência histórica opera uma verdadeira catharsis,
Mas há mais: empenhei-me em insistir sobre o facto de que a uma libertação do nosso inconsciente sociológico um pouco análogo
. história não é somente a reconstituição da minha linhagem, dos meus àquela que, no plano psicológico, procura obter a psicanálise. Manifestei
antecedentes biológicos, mas não neguei que ela seja, e é bem evidente alguma ironia a respeito das pretensões agressivas desta, quando se aven-

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DO CONHECIMENTO HISTóRICO A UTILIDADE DA HISTóRIA

turava no nosso domínio, mas é com a maior seriedade que invoco aqui sinuosa que desenha no tempo a realização da ldeia, perde com o sentido
o seu paralelo 81 : num e noutro caso, observamos esse mecanismo, à pri- da Verdade e do seu absoluto toda a ossatura interior, autonomia
meira vista surpreendente, rpelo qual «o conhecimento da causa passada e dignidade, uiva com os lobos, adora os poderosos, cospe nos vencidos.
modifica o efeito presente»: num e noutro caso, o homem liberta-se do O homem historiador, pelo contrário, sabe que não pode saber
passado que até aí pesava obscuramente sobre ele, não através do esque- tudo, não se considera mais do que um homem e aceita com simplicidade
cimento, mas do esforço por o encontrar, por o assumir em plena cons- não ser Deus. Conhece em parte, no seu pequeno espelho, de maneira
ciência, de maneira a integrá-lo. É neste sentido, como se repetiu muitas limitada e amiúde obscura. Mas sabe que não sabe, mede e situa a
vezes desde Goethe a Dilthey 82 e a Croce 38, que o conhecimento histórico imensidade do que lhe escapa, adquirindo precisamente assim um sentido
liberta o homem do peso do seu passado. Ainda aqui, a história aparec~ agudo da complexidade do ser e das situações do homem, na sua
como uma pedagogia, o terreno de exercício e o instrumento da nossa trágica ambivalência.
liberdade.
Se - é difícil insistir demasiado - a história não poderia pretend~r Que é que se vai passar IW resto do século XX? Assistir-se-á
assumir esse papel director e dominante que para ela tinham sonhado à emancipação da classe operária (e dos povos de cor) ou assistiremos
os homens do século XIX, a sua presença no seio da cultura humana a uma simples mudança do imperialismo, consagrando o declínio da
pode conferir a esta um valor característico e bem precioso, que .basta Europa ocidental em proveito da América do Norte ou dos povos eslavos
para determinar todo um clima de pensamento e de vida. Definirei de (enquanto não é da Ásia)? Os sofrimentos do tempo presente serão o
bom grado o homem historiador, o homem que se compraz na história anúncio da geração de uma humanidade finalmente fraterna na unidade
e sabe alimentar-se deste conhecimento, apreensão autêntica, ainda que do planeta e da paz universal, ou entramos definitivamente na era da
sempre parcial, do seu objecto, por oposição ao homem da filosofia da guerra total com esse desencadeamento em breve incontrolado das forças
história, esse bárbaro que sabe ou imagina saber a última palavra sobre de destruição? V amos finalmente assistir ao cumprimento e à realização
o mistério do tempo e, vítima da sua ilusão, esquecido das selecções dos sonhos acariciados pelos nossos pais durante o período liberal, tiO
arbitrárias e das mutilações deformantes por meio · das quais pode ser triunfo da pessoa humana, ao reconhecimento do homem pelo homem,
elaborada a imagem esquemática que formou do passado e do devir na sua plenitude e na . sua generalidade, ou, pela emergência do estado
da humanidade, embriagado pela vontade de poder, se lança à acção totalitário e policial, pela ditadura dos tecnocratas, chegaremos aos
com fanatismo cego. Ah! oxalá não vos encontreis no caminho dele, umbrais de um !Wvo mundo de terror? Ver-se-á desabrochar uma
nem mesmo vos associeis em parte ao seu impulso, como aliado reti- civilização do trabalho ou, sob esse nome, o sinistro engano de uma
cente. Dado como suspeito e em breve como certo de vos opordes ao sujeição tal do escravo à sua tarefa que venha a abe11;çoar e a adorar
movimento da «História», não tardareis a ser varrido, «liquidado» sem os próprios sinais da sua servidão? Um baixo materialismo ou um surto
piedade. Ao mesmo tempo, por uma compensação dolorosamente irónica, espiritual? E neste, um renascimento das formas mais nobres da vida
esse mesmo homem, obrigado a aderir, instante por instante, à linha tão religiosa ou o triunfo dessas formas bastardas e grosseiras do Sagrado
colectivo? Quem o saberá?

A contas com esta ambiguidade irredutível, o homem historiador


11 Na esteira de Ch. Baudoin, n11 sua comunicação ao Congresso de Estrasburgo, adquire um sentido mais agudo da sua responsabilidade, da significação
1952, Assumer le passé, em L'homme et l'histoire, pp. 121-130.
do seu compromisso, do valor da sua decisão livre, ao mesmo tempo
82 Der Aufbeu der geschichtlichen Welt in den Geiste~wissenscheften, Gesamm.
Schriften, t. VIl, p. 252; cf. R. Aron, La philosophie critique, p. 87.
que o conhecimento mais profundo e mais vasto das virtualidades imensas
aa B. Croce, Le storie come pensiero e come axione, I, 8, «A historiografia que se oferecem à sua escolha. É o homem que passou a ser consciente
como libertação da história>>. tradução francesa, pp. 56-58, citando Goethe. e que caminha de olhos abertos, que não se deixa enganar e, em vez de

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DO OONHEOIMENTO HIST6RIOO

caminhar, como um boi de trabalho, com a nuca estendida para o sulco,


leva a cabeça alta, contempla o horizonte imenso aberto aos quatro
ventos do espírito. Sabe que nada é simples, que o processo não está
encerrado, que muitas possibilidades esperam, e podem ou não realizar-se.
Escolhe e julga. É aquele que não se deixa embriagar pela vitória, pois
sabe que ela é precária, incerta, e que tem limites. É tanibém o homem
CONCLUSÃO
que. a derrota não pode abater e que sabe dizer, quando 1á não pode mais
nada: Não. não ceder, sofrer · com nobreza e conservar a esperança.

A OBRA HISTORICA

Definimos a história como conhecimento e depois mostrámo-la ora


a nascer, ora a constituir-se, a ,frutificar, encerrada no pensamento dum
sujeito cognoscente, anteriormente a todo o esfÇ>rço de expressão. Mas,
desde o limiar desta anáJ.ise (p. 28), deixámos prever que normalmente
a investigação histórica deve, no entanto, levar a uma obra - um ensino
oral, cursos, conferências ou mais frequentemente um escrito, memória,
artigo, livro. É, como nós dizíamos, uma exigência de carácter prá-
tico, social.
Lnsistirei sobre esta palavra, para acrescentar um último comple-
mento à nossa teoria que, pelo facto de pôr em evidência o vínculo de
caráoter pessoal estabelecido entre a história e os seus historiadores, não
deve lá por isso interpretar-se num sentido individualista.

Não se deve imaginar que o historiador passeia através das riquezas


do passado como um visitante ocioso diante das vitrinas de um museu,
parando aqui ou ali, conforme lhe despertam a curiosidade ou o interesse
-ligando-se dessa maneira a um herói, a uma época, a um problema,
a um encontro, a uma aventura, a uina amizade.

As coisas não se passam assim, porque a pessoa do historiador


não é o indivíduo abstraoto tal como o definem na perspectiva do libe-
ralismo, mas sim um ser comprometido que, por todas. as fibras do ·seu
ser, se enraiza no meio humano a que pertence- meio social, político,
nacional, cultural- que fez dele o que ele é e ao qual tudo o que ele
faz regressa e aproveita.

247
246
DO OONHEOIMENTO HIBTCIRIOO A OBRA HIBT6RIOA

O historiador não avança soZinho ao encontro do passado. Aborda-o Da mesma maneira é a própria seriedade da sua investigação, a qua-
como representante do seu grupo. A questão que ele .vai pôr, aquela lidade dos resultados que obtém, que impedirá o historiador de limitar
que orienta todo o desenvolvimento da investigação, se ao menos levantl a ambição só ao enriquecimento da sua experiência interior, a uma
um «verdadeiro» problema, carregado de existencial, ex.primirá necessa- contemplaç~o solitária da verdade. Bonum diffusivum sui: na medida
riamente, tanto como um cuidado próprio do historiador, uma exigência em que o historiador atinge a ·verdade e um conhecimento rico de valores
comum a todos os homens do seu meio colectivo. fecundos, deve-os ao seu próximo.
Todos os casos são possíveis aqui: a dependência entre a aventura Depois de reconhecido tudo isto, continua a ser verdade que o
pessoal e as necessidades ou aspirações da colectividade pode ser mais problema da expressão é em si exterior à história e que se introduz
ou menos estreita, directa, evidente. A melhor história, aquela que será nele sob o impulso de considerações de uma outra ordem. · De facto,
mais realmente útil à sociedade, está muito longe de ser aquela que, como o atesta a nossa experiência quotidiana, a necessidade (ou o dever)
nas fronteiras da propaganda, proporciona uma documentação em relação de escrever é sentida como uma servidão dolorosa. A investigação é em
imediata com aquilo a que se chama a actualidade, por exemplo, diplo- si mesma indefinida, a verdade histórica nunca é definitiva, continua
mática ou política. Podemo-nos lembrar utiLmente das palavras de Hera- sempre em devir: exprimi-la, é fixá-la; há, por outro lado, as exigências,
dito: «A harmonia secreta (que ex.prime um vinculo profundo) prevalece também indefinidas, da arte, digamos, do escritor: ars longa, vila brevis,
sob a harmonia visível» (amiudadas vezes superficial) 1 • A obra consi- o historiador sente-se como que dividido entre estas exigências contra-
derada como a mais pessoal será aquela em que o historiador, sem o ter ditórias destas duas artes- a não ser que acabe por sucumbir à tentação
previsto, ao procurar a solução para o seu problema, responderá de e sacrifique o seu dever social à paixão de conhecer, .porque (e aqui
facto à questão que importava mais aos homens do seu tempo. ·voltamos a encontrar a crítica moralizadora da curiosidade) pode tomar-se
uma paixão desoladora e tirânica.
Gibbon contou-nos como lhe ocorrera a ideia do seu Decline and Os anais da nossa profissão estão cheios de tais casos, desses
Fall: Foi no dia 15 de Outubro de 1764, em Roma, no Capitólio, ao homens que, durante uma vida, acumulam conhecimento, enriquecem
ver os Franciscanos de Aracoeli, the barefooted friars, cantarem o ofício a sua experiência, alcançam uma competência sem par, mas, esquecidos
no próprio local onde outrora se erguera o esplendor da cidade antig~··· de que são homens e não imortais, não escrevem nada - <tpoços de
Contraste aliciante, encontro casual? Medimos hoje plenamente aquzlo ciência insondáveis, mas sem darem água alguma vev> 2 - e vêm um
que o problema do «triunfo da religião e da barbárie», o escândalo da dia a morrer como inúteis e só deixam atrás de si uma massa de notas
Idade Média cristã, tinha de irritante e de essencial não só para Gibbon, garatujadas, sem valor para outrem. Cito ao acaso uma das últimas
mas também, além dele, para todos os homens da Aufklii.rung; era um notícias necrológicas que me foi dado ler (trata-se de um musicólogo,
desafio a que eles não podiam fazer frente. André Tessier):

Ainda Gi:bbon era um representante dessa classe praticamente desa- «Confessava-me que só dava valor à descoberta, à descoberta por
parecida hoje: o amador esclarecido, diletante; hoje, o historiador é quase si mesma; importava-lhe pouco divulgá-la. O conhecimento que tinha
sempre um profissional. Mesmo que não seja pago pelo orçamento da adquirido do século xvu: e não só da música dessa época, era mais
sua :1,1ação ou ·pela U. N. E. S. C. 0., tem a plena consciência de ser um considerável do que se imaginou. Repousava sobre muitos factos miúdos,
trabalhador especializado, encarregado de procurar a verdade ex.actamente obscuros, que não tinham chamado a atenção de ninguém, mas aos quais
como, a seu lado, o camarada biólogo ou físico.

1 H. Di eis, Die Fragmente der Vorsokrotiker, § 22 ( 12), fr. 54. 2 L. Febvre, Combats pour l' histoire, p. 340.

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DO CONHECIMENTO HISTORICO A OBRA HISTóRICA

ele atribuíra significado. Posso dizer que sentia uma orgulhosa satisfação A investigação outras ·vezes exaspera-se e complica-se sem proveito;
em ser o único que se conseguia reconhecer no meio de tantos sinais. não tarda a atingir o limite, variável segundo os casos, a partir dos quais,
Quantas vezes declarou que tinha um estudo acabado. Só o tinha no segundo o nosso axioma .favorito, a precisão aumenta à custa da certeza.
espírito; e os vestígios deixados nas suas fichas só de longe em longe Finalmente.- e é o que se pode conservar como válido da lição
marcavam as etapas do seu pensamento. Escrevo isto para pôr de sobre- de Paul Valéry- investigação e expressão, por muito distintas que sejam
aviso conta a aparência enganadora, esquelética, das notas inéditas de do ponto de vista lógico, interferem de facto na prática e esta interfe-
Tessier que vão ser publicadas» 9• Como Tucídides leva o seu Péricles algu- rência é .fecunda: muitas vezes, é ao procurar exprimir-se que o conheci-
res a dizer: «Ter adquirido o conhecimento sem o talento de o comu- mento dará mais um passo em frente, realizando um progresso decisivo.
nicar, é como se nunca se tivesse pensado nisso»! ' 'É nessa altura que se revelam as suas lacunas, que se restabelecem as pro-
porções e que a ~erdade acaba de tomar forma, saindo finalmente dessa
O historiador tem de consentir em se submeter a estas exigências zona incerta onde o devir lutava com o não-ser.
de ordem moral que derivam da função social que assume e às exigências Portanto, uma vez acabada ou pelo menos bem encaminhada a
técnicas daí resultantes. Aliás, encontrar-se-á as mais das vezes directa- investigação, o historiador deve marcar um compasso de espera e, tomando
mente recompensado, porque eu tenho empenho em fazer notar, sempre em consideração esse novo aspecto do problema, perguntar a si próprio:
preocupado por completar a nossa doutrina precisando-a, que a antino- com aquilo que eu sei e posso saber, como construir a melhor e~posição,
mia assinalada não é sempre, na prática, tão absoluta. Sem dúvida, em a mais rica de conteúdo, a mais verdadeira e, ao mesmo tempo, a mais
princípio, a investigação nunca está acabada (uma questão levanta uma convincente, a mais assimilável (seja como for, se escrevo; é para ser
outra que, ·p or sua vez, supõe outras resolvidas}, mas se se considera um compreendido); como, com este .ficheiro, escrever o melhor livro?
campo de investigação determinado, tem de se constatar que, muitas Não se trata de completar, de coroar o nosso tratado de lógica
vezes, o historiador aproveitará em repetir com Aristóteles: ch&.yx'Y) a1:fiva.L por meio de uma retórica para ser·viço do historiador. Estas poucas páginas
tem de parar, porque pode dizer, segundo as palavras famosas atribuídas de conclusão pretendem simplesmente fazer aparecer e situar a questão,
(entre outros) ao padre Vertot: «Já fiz o· cerco». Efectivamente, chega .fazer sentir ao leitor a importância do trabalho a realizar neste domínio
um momento em que a sua visão do passado, precisamente por se encon- da expressão. Mais uma vez, é a eficácia social, é o rendimento humano
trar ordenada a um ponto de vista, a pressupostos, a conceitos, a um da história que se encontram em jogo: a nossa história científica não teria
método, alcançou o grau de verdade de que é susceptível; a partir desse caído tão baixo na estima geral, a sua função não teria sido usurpada por
momento, a investigação não proporciona mais nada, documentos e obser- caricaturas (literatura romanceada ou anedótica, propaganda servil) se os
vações vão dispor-se por si mesmos nas divisões do ficheiro constituído; tmbalhadores sérios não houvessem desprezado a este ponto o seu público,
os elementos que resistem flutuam à superfície da consciência como um se não se houvessem tantas vezes contentado em derramar sobre ele, com
corpo estranho e já não são assimilados o nome de livros, simples carradas de fichas, rudis indigestaque moles.
Muitas publicações, em vez de serem história, são apenas um conjunto de
(se o historiador é consciencioso, e deve sê-lo, encontrá-los-emas nalguma materiais meio devastados com que a elaborar. Muitos dos nossos con-
parte em notas ao pé da página, introduzidos por uma fórmula do género: frades têm, neste ponto, tudo a aprender: uma coisa, por exemplo, é acu-
«Sei bem que ... C f. no entanto ... Ver também ... », pedras de espera que mular na nossa frente toda a documentação acessível, e outra coisa impor
um sucessor poderá recolher). com todos os pormenores essa leitura aos leitores; justificar as conclusões
adaptadas é um dever estrito, mas não implica que se volte a traçar minu-
ciosamente todo o caminho, muitas ·vezes sinuoso, seguido. pelo pensa-
3
1\. Schaeffner, Revue de Musicologia, t. XXXV ( 1953) , p. 152. mento para o alcançar; uma exposição, para ser legível, deve desenrolar-
4 Tucfdides, 11, 60·6. -se segundo um tempo uniforme, não se deve interromper uma ex.posição

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DO CONHECIMENTO HIBTORICU A OBRA HISTORIGA

sintética com uma discussão complicada que incida sobre um pormenor; Mas não. Se a história é, tomada em si mesma, esse conhecimento
deve-se atirar com ela para o apêndice, ou melhor, publicá-la separada- infinitamente subtil que amadurece lentamente no espírito do historiador
mente numa colectânea especializada sob a forma de um artigo de eru- durante essa experiência propriamente técnica prosseguida ao contacto dos
dição cujo trabalho definitivo só terá que invocar o valor demonstrativo. documentos, se a sua verdade, toda de. matizes delicados, é representada
Mas mais uma vez não se trata de esboçar aqui um tratado da arte pela coordenação minuciosa e complexa de mil e um 'elementos diversos, e
de escrever: elaborar um livro é um verdadeiro ofício, que se tem de saber. tende no limite a tornar-se quase intransmissível a quem não passou pela
De momento, só importa o princípio, e é claro: para desempenhar bem a mesma experiência, que domínio na arte de escrever, que destreza de
sua tarefa, para desempenhar verdadeiramente a sua função, é necessá- pena. que felicidade de expressão serão requeridos, serão indispensáveis
rio que o historiador seja ,também um grande escritor. Esta evidência para apresentar uma formulação autenticamente válida que comunicará
viu-se nublada pelas discussões que os nossos predecessores empreende- sem o deformar de mais, este conhecimento tão precioso, tão fácil de trair.
ram sobre o tema: «A história deve ser uma ciência e não uma arte» 5 • Volto aqui a falar por experiência: o profano dificilmente imagina
Travaram a esse respeito um combate que era necessário para arrancar o combate quotidiano que o historiador trava para conseguir a expressão
a história à eloquência, à «literatura» (no sentido mais pejorativo), fazer- justa, a frase que dirá tudo o que ele sabe, sem nada deixar escapar, mas
-lhe reconhecer o seu estatuto de investigação e de verdade. Mas, como também sem endurecer o pensamento nem parecer saber mais do que na
sempre, a paixão polémica produziu as suas devastações e vimo-nos con- realidade sabe, nem encaminhar a imaginação do leitor por uma falsa pista.
duzidos a uma posição-limi,te vizinha do al;tsurdo. Historiador francês, obrigado a medir-me todos os dias com esta língua
exigente que é a nossa, acontece-me, nos dias de preguiça, não me con-
Dizem-nos 6 que muitos historiadores britânicos se esforçam por seguir contentar sem escrever em alemão, essa língua fluida e dócil, hábil
escrever «mal» (sacrificando a elegância e mesmo a correcção) para terem para camuflar o vago em profundidade - mas é ser ingrato, porque sei
a certeza de que são levados a sério. Ou ainda: «Se um livro que contri- bem tudo o que devo de progresso, em precisão e em exactidão, à pró-
bui para o estabelecimento da verdade acontece ser belo por acréscimo, pria inércia do utensíliq resistente que emprego.
é uma grande sorte e uma espécie de luxo. Um historiador não tem maior O historiador deve conseguir a expressão exacta da sua verdade
obrigação de escrever como um Fustel de Coulanges do que um biólogo de subtil. Quem duvidará de que, para isso, deva ser também um artista?
escrever como um Claude Bernard ... » 7 Todos os bons espíritos estão de acordo comigo a esse respeito, de Ranke
(Que estranho ideal do «belo» literário! A «procura dos efeitos a G. J. Renier, passando por Dilthey, Sinunel ou Croce.
de arte» consistiria, em suma, em salpicar o Verdadeiro com essas
Se Ranke, mais do que Niebuhr, é venerado pela nossa memona
colores atque sententiae dos retóricos de antigamente, com essas reflexões
como o primeiro historiador moderno, no sentido em que tomamos a
de wna profundidade pretensamente filosófica de que Chateaubriand se
palavra, é porque foi o primeiro que soube acrescentar à penetração e à
julgava obrigado a enriquecer o texto das suas Memórias, aliás admirá-
subtileza da investigação crítica, juntamente com a largueza de vistas
veis. Um pouco como essas pessoas que imaginam que a poesia é prosa
do espírito filosófico , a pena feliz de um clássico da sua língua'·
mais a rima).
E, como é fácil constatar, todos os grandes historiadores foram tam-
bém grandes artistas do verbo. O caso, aliás, é geral: o maior filósofo
5 Bibliografia da questão ap . H. Berr. La synthêse en histoire, p. 226, n. 1. não será o homem que mais se houver aproximado da verdade, o maior
6 .Opinião expresss, com slgum p11r11doxo, por G. J. Reni~r, History, its purpose teólogo não será o místico que tiver avançado mais na ·via da experiência
and method, p. 244.
7 H. Berr, op. cit., p. 226 (que, oli6s, corrige imedistomente um pouco este
exsgero). 8 Th . von Loue, Leopold Ranke, t he formative years ( Princeton, 1950), p. 21.

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DO OONHEOIMENTO HIST6RIOO A OBRA HISTóRIOA

unitiva, mas sim, nos dois casos, o homem que, além disso, tiver recebido 0 e havíamos de hesitar em lhe dar razão, nós que, de há tantos séculos para
carisma propriamente «poético» (no sentido completo do grego 'ot1J-rtx6c; cá, relemos a sua História com um proveito sempre renovado? É que
da expressão mais plena, mais adequada, mais transmissível. O mesmo encontramos nele esta verdade- verdade sobre o homem, a sua vida, a
acontece com o historiador. sua acção- que conseguira alcançar e· que soube eX!primir. O seu génio
. Encontro qualquer coisa de ainda um pouco excessivamt<nte polé- fez da guerra do <Peloponeso a guerra mais inteligível da história; qualquer
mtco na atitude, frequente hoje em dia, que só vê no livro de história guerra se encontra e se revela, por paralelo ou contraste, de alguma maneira
o reflexo de um estado transitório da investigação. Já houve quem dissesse iluminada por ela.
que o mais belo elogio seria que ele se tomasse, ao fim de trinta anos,
totalmente inútil e caduco, por todas as suas conclusões se encontrarem Lembro-me de, na Primavera de 1939, em Nancy, quando se
retocadas pelo próprio progresso que teria suscitado 9 • Isto é esquecer acumulavam sobre Praga e Dantzig as tempestades que iam tomar conta
que a verdade da história é uma verdade em partido duplo, feita daquilo da Europa, ter retomado com os meus estudantes, no Primeiro Livro,
que apreende no seu ohjecto e do que o esforço do historiador aí intro- essa análise, comovente devido à serena claridade, da situação na Grécia
duz de si mesmo. Sem dúvida, ao cabo de trinta anos, um leitor será nas vésperas do grande conflito: a Europa não se encontrava, como a
so~retudo sensível ao que um trabalho apresenta de ultrapassado (não Grécia nessa altura, numa velada de armas? E as réplicas entrecruzavam-
exts~e um semelh~nte período de desafecto na geração que .se segue ao -se: eu, ora estava io lado de Atenas, ora do lado de Esparta, demo-
escntor ou a~ arttsta, quer se trate de literatura, de artes plásticas ou de crata como uma, anti-imperialista como a outra ...
artes d~corattvas?); mas quando o recuo do tempo permite um juízo Os homens da I Guerra Mundial haviam tido a mesma experiência:
men?s mteressado, descobre-se que a obra histórica, decerto, num Toynbee 11 conta, em termos carregados _de emoção, como Tucídides
sentido, cada vez mais ultrapassada, sobrevive ainda por tudo 0 que 0 seu assumiu subitamente para ele, em Agosto de 1914, uma significação nova,
autor lá encamou da sua própria humanidade. A obra, que lentamente foi e como, nos dias sombrios de Março de 1918, o relia ainda para ganhar
ganhando uma pátina, vai-se el'lguendo lentamente à dignidade de teste- coragem. Pela mesma altura, na França, o cabo Thibaudet, que guardava
munho histórico, tomando-se, como nós mostrámos, um documento sobre algures uma barraca inútil, redigia La campagne avec Thucydide ...
o próprio historiador, o seu meio e o seu tempo.
Estes exemplos bastam para mostrar em que sentido analógico e pro-
Quem, ao reler o espantoso prefácio de Michelet à sua História da fundo se tem que entender a declaração famosa de Tucídides sobre a utili-
Revolução, não mede tudo o que ele nos revela das ideias que circula- dade da sua ·história «para aqueles que quiserem ver claro nos aconte-
~am e';' França aí por 1847 e, de maneira mais precisa, sobre as origens cimentos passados e naqueles que no futuro, em .virtude do seu carácter
]ansemstas da nossa tradição «laica»? humano, se produzirem de novo de maneira análoga». Nada andaria mais
afastado da verdade do que uma interpretação de estilo maurrassiano,
Mas não é o essencial: a obra sobrevive também na medida em que como se a história permitisse apurar de alguma maneira as leis de uma
~estemunha, ~ que :Xip:ime uma vet~ade sobre o passado, uma vez que <<física social»: não, a analogia é sempre parcial e a similitude participada .. .
e uma apreensao autentica do seu objecto (embora parcial e encarnada Agora, se admiramos o génio de Tucídides, é, bem entendido, com
num pensamento particularizado). Tucídides tinha bem consciência disso 10 toda a clarividência. Sabemos contastar, definir, a sua forma e os seus
limites: esta História é a de «Tucídides Ateniense», Tucídides, filho de

9 11 Civilisation on triad , tradu ção francesa , pp. 15-16. Cf. T. Lean, em Horizont,
L. Febvre, Combats .. , pp. 397-398.
10 Tucfdides, I, 22-4. t . XV (1947) , p. 27.

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A OBRA HIST6RIOA
DO OONHEOIMENTO HIBT6RIGO

alguma maneira já não se estabelece exclusivamente entre, ·digamos,


Oloros, descendente de Milciades, um homem que nós situámos em deter-
minada etapa do desenvolvimento da cultura helénica; elaborou esta Tibério e o historiador que eu sou. Tácito ergue-se como um terceiro
inteligibilidade, que soube arrancar ao seu objecto, com os meios ao seu entre nós, é uma figura nobre, grave, por vezes um pouco afectada, e
oiço repetir as suas fórmulas prestigiosas (.. .ruere in serviti um ... ibatur
alcance. os instrumentos de pensamento que recebera do magistério dos
sofistas, os grandes esquemas humanos que lhe sugeria a tragédia de in caedes) que eu admiro, não decerto apena1s pela sua magia verbal, mas
Ésquilo 12 ; vemos bem como se efectuou esta construção- mas estas na medida em que o seu esplendor está cheio de verdade. É num tal sen-
caracteristicas particulares não impedem que seja ·verdadeira ao mesmo tido que a obra histórica participa da eternidade da obra de arte,
tempo. «bem •plllra sempre, tesouro imperecível», x-rij~J.IX is otle:t.na paJav.r a profé-
tioa de Tucidedes.
Talvez achem o exemplo escolhido um pouco artificioso, porque, na
falta de documentação directa sobre a Guerra do ·Peloponeso, a História .
de Tucidides faz para nós as vezes de fonte primária. Peguemos então em
Tácito. Graças aos progre~sos da documentação acumulada e ex.plorada
pelas nossas ciências auxiliares, graças às moedas, às inscrições, aos papiros,
podemos hoje conhecer Tibério, Oáudio ou Nero por vias muito diferentes
das Histórias ou dos Anais e, no entanto, nós continuamos sempre a ler
Tácito, como historiadores, note-se. É certo que também aqui nos aperce-
bemos claramente dos seus limites, sabemos criticar o seu testemunho, as
deformações ou as selecções que implica.

Fala um representante da aristocracia senatorial e, o que é mais


importante (numa certa medida), um filho da fortuna: como Saint-Simon,
reúne as duas qualidades. Estamos mesmo em condições, graças às Tábuas
Cláudias de Lião, que nos conservaram o texto autêntico de um discurso
do imperador Cláudio, de o surpreender a manipular as suas fontes. J.
Carcopino u mostrou que ele tivera à vista um texto original, mas que
o refez inteiramente, re-written!

Mas não ipodemos elaborar a nossa própria v1sao de Tibério, de


Cláudio ou de Nero. privando-nos da contribuição de Tácito, não pela
documentação suplementar que nos pode proporcionar, mas, mais uma
vez ainda, por essa inteligibilidade, por essà verdade humana que, em
virtude do esforço de pensamento, introouz na sua narrativa. O diálogo de

12 Devemo-nos lembror do livro tiío revelodor de F. M. Cornford, Thueydides


mythistoricus ( 1907).
1s Poinh de vue sur l'impérielisme romein ( 1934), pp. 164-189.

256 1f 251
AP~NDICE

Resposta às objecções

1. A F~ HISTóRICA (1959 *)

Numa crónica redigida por ocasião do último congresso internacional


de filosofia\ o relator referia·se à convergência que lhe pareciam mani-
festar «os trabalhos recentes consagrados ao conhecimento histórico» e
arriscava-se a exprimir esta conclusão imprudente: <d~ão hâ, segundo
parece, hoje em dia, uma outra filosofia crítica da história que a que se
resume na fórmula: a história (i. é, a ciência histórica) é inseparável do
historiador>>. Era efectivamente ir longe de mais: nem todos os espíritos
estão ainda igualmente dispostos para acolherem com simpatia um tal
esforço de superação do objectivismo estrito que caracteriza os teóricos
positivistas. A bibliografia recente dâ bastante testemunho disso, pois
vamos encontrar entre ela tantas recusas expressas ora com um espanto
escandalizado 2, ora com um humor irónico 8 , ora com uma paixão que
vai até ao sarcasmo\ quando não até à invectiva~.

• Artigo aparecido em Les Etudes Philosophiques, Abril-Junho de 1959,


pp. 151-161.
1 Instituto lnternacion11l d_e Filosofie, Philosophy in the Midc:entury, e Survey,
Florenç11, 1958, t. 11 I, p. 178.
2 A. Pig11niol, «Ou'est-ce que l'histoire7» (Revue de Métaphysique et de Morale,

Julho-Setembro de 1955, pp. 225-247 . .


8 M.-L. Guérerd des L11uriers, «A propos de lo Connaiuanc:e hi,torique» (Revue

des Sc:ienc:es Philosophiques et Théologiques, Outubro de 1955, pp. 5b9-602).


' G. Gurvitch, «Continuité et discontinuité en histoire et en sociologia~ (Annales,
Economias, Soc:iétés, Civilisations, Jt~neiro-Mt~rço de 1957, pp. 73-84) . ·
~ F. Ch11telet, «Non, l'histoire n'est pes insoisisst~ble!» (La Nouvelle Critique,
M11io de 1955, pp. 56-72) . Ver tombém do mesmo 11utor, e num tom m11is c11lmo: «Le
temps de l'histoire et l'évolution de lo fonction historienne» (Journal de psyc:hologie
normale et pathologique, Julho-Setembro de 1956, pp. 355-378).

259
DO CONHECIMENTO HISTóRICO A F2 HISTóRICA

Há muita coisa a fazer antes de alcançarmos o consensus esperado; jornalista, a teoria resume-se a uma frase do tipo: «A história não é mais
muitos mal-entendidos a dissipar. Causa-nos admiração, por exemplo, do que o projecção no passado das opções, nomeadamente políticas.
o que se escreve à margem de um debate sobre as relaçõ~s entre a histó- tomadas no presente». Causaríamos sem dúvida admiração em mais de
ria e a sociologia: «É fácil observar que mesmo os críticos mais ferozes um daqueles que dela se servem, se lhes revelássemos que ela não está
da objectividade em história, como R. Aron, admitem que se podem ligada a nenhum dos «nominalistas. idealistas e espiritualistas» respon-
apurar e como que ler no próprio real certas estruturas, antes mesmo de sáveis pela nossa filosofia crítica, mas sim a um marxismo abastardado, o
se poder falar de teoria .. .» 6 Sim, realmente o historiador não apuraria do historiador soviético M. N. Prokovskij (m. em 1932), que conheceu
estas estruturas se não as visse como que impressas no material docu- a sua hora de glória antes de se encontrar, como hoje, anatematizado a
mental que lhe legou o passado, mas, para lá as ler, é preciso que as título póstumo.
tenha proposto a título de hipóteses submetidas à verificação e, portanto, Tem de se protestar contra a interpretação sofística que se esforça
havê-las primeiro formulado por meio do seu equipamento mental; neste por atrair a filosofia crítica para a órbita do cepticismo. Quando ela
sentido, não se pode recusar a fórmula, sem dúvida um pouco abrupta, de estabelece «OS limites da objectividade histórica» 8 , não vai até ao ponto
R. Aron: «A teoria precede a história». de pretender, como querem que ela pretenda, que o que o homem de hoje
Quer partidários, quer adversários, todos nós abusamos da polé- pode saber do de ontem não é verdade 9 ; a interpretação, no seio do conhe-
mica, de maneira que já não se vê nitidamente o que se esconde de acordo cimento histórico, da realidade do passado e da contribuição do sujeito
ou de desacordo por trás das afirmações decisivas e das provocações para- cognoscente não implica a identificação desta realidade e deste conheci-
. doxais que se opuseram alternadamente. Ficamos surpreendidos quando, mento 10 •
depois de ter denunciado a nossa filosofia crítica como um encadeamento Para triunfar de tantas calúnias ou de mal-entendidos, é sem dúvida
necessário que a teoria da história se preocupe por elaborar uma lógica
de ingenuidade, de equívocos e de erros, o mesmo autor chega a propor,
aprofundada e mais completa, fundada numa análise sempre mais pre-
por sua própria conta, conclusões que, se .têm um sentido, exprimem uma
cisa do comportamento do historiador no trabalho. É o método que se
exacerbação da .própria doutrina que ele começou por combater: «A
impõe na filosofia das ciências. A história existe -digamos desde Heró-
verdade histórica é a mais ideológica de todas as verdades científicas ...
doto, Hellanicos de Mitilene e Tucídides- enquanto disciplina que possui
Os termos de subjectivo e de objectivo já não significam nada de preciso
um método progressivamente afinado por um longo uso, que elabora um
desde o triunfo da consciência aberta... A verdade histórica não é uma
conhecimento reconhecido como válido pelos técnicos qualificados, e o
verdade subjectiva, mas sim uma verdade ideológica, ligada a um ~nhe­
problema é analisar a sua estrutura. Uma lógica não será nunca bastante
cimento partidário» 7 •
rigorosa, mas devemos evitar aqui um falso rigor. Há vantagem em nos
Aos malefícios da polémica têm de se juntar os da propaganda,
lembrarmos da distinção pascalina entre o espírito de geometria e o
amiúde pérfida, da vulgarização, às duas por três inábil; na pena de um
espírito de finura. Por ser cientificamente elaborada, a história não é uma
ciência geométrica 11 • «Os geômetras que são apenas geómetras» torn.am-se

6 P. de Goudemor, <d~vénement, structure, histoire: limites du rôle de lo pensée


formelle dons las scie nces de l'h omme» (Cahiers de l'lnstitut de Science Economique .8 Reconhece·se perfeitamente o subtítulo do tese de R. Aron, lntroduction
Appliquée, série M, n.0 2, Recherches et dialogues philosophiques et économiques, A l11 philosophie de l'histoire, Paris, 1938.
Dezembro de 1958, p. 35, n. I). Esclareço que a minha critico só incide sobre o 9 Chotelet, art. cit. (La Nouvelle Critique). p. 59.
fórmula citada. Estou, o liós, de acordo com o conjunto do desenvolvimento em que lO Gurvitch, art. cit., p. 76.
P. de Goudemor reivindica com roziio o direito que o história tem o tomar lugar 11 Os filósofos neo-escolásticos sã o os primeiros a reconhecê-lo. Ver, por
entre os ciências humanos e a elevor·se acima do nfvel do experiênci!l imediot!l. exemplo, J . de Vries, Critica (I nstitutiones ph ilosophiee scholast icae dos Jesuítas
7 Gurvitch, art. cit., p. 83. de Pul111ch 11) , Fri burgo, 1954, § 238.

260 261
DO CONHECIMENTO HIBTORIOO A FB HIBTORIOA

«falsos e insuportáveis», quando transplantam as suas maneiras de racio- Conhecemos com uma objectividade perfeita o ângulo facial, a tez e a
cinar para um domínio onde não são aplicáveis. Não são os espíritos de cultura de Luís XIV. Que digo eu? Conhecemos mesmo o comprimento
tipo geométrico que .se encontram mais bem armados para fazer a·vançar (excessivo) do nariz de Cleópatra; é quando se trata de exprimir outra
a análise do saber histórico, porque, «como se acostumaram aos princí- coisa, por exemplo, que ela era <<femme de gentil esprit», cheia de «douceur
pios claros e grosseiros da geometria e a só ·raciocinarem depois de et bonne grâce» {para falar como o Plutarco de .Atnyot), que as dificulda-
terem visto bem e de terem manejado os seus princípios, perdem-se nas des começam e que as.diferentes .versões do retrato, como as da história,
coisas delicadas ... » · correm o risco de divergir. Porquê? É que nos dois casos, sejam quais
No 'termo de uma longa análise, em que procurava mostrar inter- forem as diferenças específicas na natureza do objecto, presente ou pas-
penetração entre o objecto conhecido e o sujeito cognoscente no seio do sado, e nos meios de expressão, plásticos ou conceptuais, é o mesmo
conhecimento histórico, eu tinha retomado, à maneira de ilustração, a género de conhecimento que se encontra em jogo -o conhecimento do
comparação de que já antes de mim se servira um filósofo inglês entre homem pelo homem- e a mesma mistura inextricável de sujeito e de
a ciência do historiador e a arte do pintor de retratos 12 • Çhega um geó- objecto que implica. O que não significa que, no interior desta mistura,
metra e empreende dar forma a esta «analogia da proporcionalidade»: «0 não seja capaz de verdade.
conjunto dos retratos de um indivíduo está para este individuo assim como Fizemos talvez mal em insistir de mais sobre o papel de Dilthey
o conjunto das vistas de um mesmo <tpassado humano» por diferentes e sobre a tradição nele originada, «toda a família confusa dos seus .filhos
historiadores está para este passado humano». E ele objecta-me: «É então espirituais» 1 \ no desenvolvimento da teoria crítica da história. De facto,
legítimo «aproximan> um individuo humano no seu aparecer exterior, esta é o resultado de toda uma série de esforços convergentes. Deve-se ter
objecto do retrato, e o «passado humano», objecto da história?» 13 Donde em conta a série que parte de Hume 15 e a que parte- tenho prazer em
se vê que os matemáticos não se interessam pelas artes plásticas: «Que insistir de novo -da irradiação do pensamento de Bergson 16 • Nada seria
vaidade a pintura ... »- exclamava já Pascal, que neste ponto aproveitara mais enganador do que associar demasiado intimamente a nossa filosofia
mal as lições do cavaleiro Méré. O verdadeiro homem culto não ignora crítica a uma etapa particular do neo-kantismo 17 • O excelente humanista
que o pintor, quando se chama Holbein, Rafael, Rigaud, Mignard ... ,
pretende nos seus .retratos representar uma coisa completamente diferente
14 Por11 retom11r o expressão pitoresc11 de F. Br11udel, «Lucien Febvre et l'histoire)
do «indivíduo humano no seu aparecer exterior»; o que ele pretende
{Annales, Abril-Junho de 1957, p. 181). .
representar, através deste e por meio deste, é tudo o que compreendeu 15 Assim como em Dilthey ou Max Weber não se deve separ11r a obr11 do
da realidade humana do seu modelo, encarado, segundo os casos, na suà histori11dor d11 reflexão filos6ficli sobre a história, também n.ão se deve separor em
psicologia mais pessoal ou na sua personalidade social (os grupos de Hume. Admir11-me que I. Meyerson («Le temps, l11 mémoire et l'histoire», Journal
Regentes de Franz Hals sã0 espantosos testemunhos sobre a burguesia de psychologie ... , Julho-Setembro de 1956, pp. 344-346) evoque 11 História da Inglaterra,
. holandesa do século XVII). Há efectivamente uma analogia real entre o sem fal11r do Ensaio sobre os milagres •
16 Ver jó a minha nota Bergson et l'histoire, nos primeiros Mélanges Bergson
pintor de retratos e o historiador (ou pelo menos o biógrafo). O paralelo (La Baconniere, Neuchâtel, 1941 ), pp. 213-221.
poderia ser levado muito longe: da mesma maneira que, no limite, todos 17 cThere is perhaps 11 little too much of K~~nti~~nism in Marrou's approach»,
os historiadores que tratam do mesmo objecto acabam por concordar escreve J. Maritain (On the Philosophy of History, Nova Iorque, 1957, p. 7), e constitui
num núcleo comum de «factos» materiais, assim os elementos somáticos na sua pena uma censur11 amigável. Mas eu s6 me tinha referido a um kantisrno muito
exotérico que, como pensou K. Jaspers {La Foi philosophique, tr. fr., Paris, 1953, p. 12),
dos diferentes retratos se podem as mais vezes sobrepor perfeitamente.
se deve ter integrado na philosophia perennisi cf. as observações de R. Marlé {Recher-
ches de science religieuse, 1958, p. 428 e n. 15) a respeito das criticas que R. Bultmann
formulou à minh11 referência ao objecto «numenal», n11s adendas (pp. 134, n. 2;
12 Ver otrós, p. 206. 135, n. I; 159, n. I) da edição alemã das G ·ifford Lectures de 1955 {Geschichte
13 Guérord des Lauriers, art. c:it., p. 584. und Eschatologie, Tubinga , 1958).

262 263
DO CONHeCIMENTO HIBTORICO .A. F:& HIBTOl~JOA

e historiador da história que é Arnaldo Momigliano lembrou com bastante credenidade, crença), e a lógica da históri a pod0 a pn• v1lll t1 111111 ' ''
utilidade 18 , encarecendo a erudição de E. Cassirer, que esta lógica da análises. A recíproca, aliás, é verdadeira. Não nos d VI'""' d " "'I'"
história já tinha sido formulada, quanto ao essencial, pelo classicismo do de maiS por SatisfeitOS, a propÓSito da fé Cristã, CO!Ill rú l'lllld I dn I•. I V I
século XVII (há nela, portanto, mais alguma coisa do que os simples conhecimento «absoluto, perfeito e irrefutável» 22 , cconot uiu p · 1 k 1 ,
expedientes de um capitalismo «nas últimas», a que a querem reduzir os mente satisfatória em razão da qualidade da Testemunha» ~" . .plliiJIH
marxistas), e mais precisamente pelos jansenistas, replicando ao mesmo «Deus não pode nem enganar-nos nem enganar-se» H: só um d ·us ( r
tempo ao pirronismo histórico e às exigências exageradas do racionalis- semelhante palavra pudesse ter aqui um sentido que não fosse b lusfc
mo cartesiano. Esqueceu-se de mais os últimos capítulos da Logique de matório) poderia ter a certeza de haver compreendido o sentido da Pala-
Port-Royal que, retomando uma fórmula célebre de Santo Agostinho, vra de Deus, porque se Deus nos falou, falou numa língua humana, atra-
distinguem duas vias gerais que conduzem ao conhecimento verdadeiro: vés de instrumentos humanos acerca dos quais nos podemos enganar:
de um lado, o raciocínio e a experiência: do outro, a fé que, por sua vez, o tratado de fé supõe elaborado o da Igreja, do magistério, dos lugares
pode ser de duas espécies, divina e humana; e é desta última que depende teológicos, etc. Seja como for, a distinção permanece e a noção de fé
a história. humana tem o seu lugar no interior da teoria do conhecimento, designa-
«A fé humana encontra-se por si mesma sujeita a erro- escreve damente histórico, e isso independentemente de toda a referência à fé
a este propósito Ant. Arnauld 19 - porque todo o homem é mentiroso, religiosa.
segundo a Escritura, e pode ser que mesmo aquele que nos assegure Houve mérito da parte dos lógicos de Port-Royal em terem sabido
que uma coisa é verdadeira seja enganado 20 • E, no entanto, como já recuperar esta noção no magistério de Santo Agostinho (e da parte de
assinalámos mais acima, há coisas, que só conhecemos por uma fé Arn. Momigliano em no-lo ter lembrado: é sempre útil arrancar os
humana, que devemos considerar tão certas 'e tão indubitáveis como se modernos que nós somos à barbárie e à doce ilusão de redescobrir a
nós tivéssemos demonstrações matemáticas.» América). Mostraram bem, em primeiro lugar, que o conhecimento de
Dava vontade de mandar alguns dos nossos contraditares para a fé não é um acto irracional: credere non possemus, nisi rationales animas
escola: a paixão polémica fá-los esquecer a distinção fundamental entre haberemus 2 ~. A fé, confiança e crença, procede de um processo racional
fé divina e fé humana, como se, quando falamos de um conhecimento
que lhe é anterior e que a legitima (não sem graus, matizes, hesitações,
a propósito da história, isso se devesse entender da fé religiosa, da fé
incertezas):
sobrenatural. Sem dúvida, não é ridículo nem inútil aproximar uma da
«Para julgar da verdade de um acontecimento e me determinar a
outra: o Cristianismo em particular, religião histórica, foi levado a reflectir
acreditar ou a não acreditar nele, não é preciso considerá-lo a nu e em
sobre a noção de fé, os seus matizes (a língua cristã distinguiu credere
si mesmo, como quem elaborasse uma proposição de geometria; mas é
Deum, credere Deo, credere in Deum) 2 \ as suas etapas (credibilidade,
preciso reparar em todas as circunstâncias que o acompanham, tanto
interiores como exteriores. Chamo circunstâncias interiores àquelas que
18 Contributo e lia Storia degli Studi Classic:i, Ramo, 1955, p. 113 (reproduzido pertencem ao próprio facto e exteriores às que dizem respeito às pessoas
da Rivista Storica Italiana, I, 1936).
19 La Logique ou I'Art de pensar, IV, XII , ed. P. Clair, F. Girbad, 1965, p. 336: é
realmente a Arnauld, segundo parece, mais do que a Nicole, que se devem atribuir estas
páginas . 22 Pigo nioi, p. 229 .
20 E é por isso que o historiodor deverá, num sentido.• «desconfiar» sempre 23 Guérard des Lauriers, p . 595.
(cf. Piganiol, art. c:it., p. 227): umo teorio do conhecimento histórico fundado sobre 2• Logique de Port Royal, IV, XII, na mesm a página (com ressonâncias do Catecismo
Romano).
o noç5o da crenço não implica e credulidode.
21 C. Mohrmann, cCredere in Deum», op. Etudes sur le Latin das Chrétiens, 25 Santo Agostinho, Ep., 122, I (3) , o que se refe re explicit oment e o Logiq ue
Roma, 1958, pp. 195-203 (ret. das Mélanges J. de Ghellinc:k, I, 1951 ). de Port-Royal, p. cit.

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DO CONHECIMENTO HIBTORIOO A F:S HIBTORIO.A

pelo testemunho das quais somos levados a acreditar nele ... » 26 Se logi- de credibilidade) no documento, crença e credibilidade relativas ao pró-
camente, o conhecimento histórico repousa, em rúltima análise, sobre um prio historiador. Filósofos (e teólogos) 31 parecem-me demasiado prontos
acto de fé, é um conhecimento verdadeiro na medida em que o histo- a conferir o estatuto de «ciência» às técnicas de crítica e de identificação
riador o conseguiu fundar racionalmente: a história é verdadeira na dos documentos. Trata-se de um conjunto de processos operatórios pre-
medida em que o historiador possui razões válidas para conceder a sua parados pelas tradições de oficina, mas cuja validez de aplicação não é
confiança ao (que ele compreendeu do) que os documentos lhe revelam separável de uma intervenção, de carácter mais geral, do espírito do
do Passado 21• historiador. Tinha-me demorado a dar um exemplo deste comportamento
Convém insistir sobre o carácter racional do trabalho do histo- crítico, mostrando como a •análise paleográfica, diplomática e arqueoló-
riador: fiquei contente por verificar que os filósofos que me tinham gica do documento ,permitia ao epigrafista concluir com certeza que
ouvido, quando eu analisava o mecanismo da elaboração da história, tinha ali um texto que interessava à história da religião .galo-.romana, e
sublinharam que o esquema racional deste comportamento se encon- não, como se tinha pensado no século XVI, ao culto das Saintes-Maries-
trava, rigorosamente idêntico, em qualquer tipo de saber hwnano 28 • -de-la-Mer 82 • O ponto essencial da análise, que alguns pa·recem ter deixado
A história é realmente um conhecimento científico, especificado pelo seu escapar, é que esta conclusão é verdadeira, de uma certeza moral cuja
objecto próprio- o passado humano- e que a sua própria .técnica probabilidade é praticamente ~nfinita, em .virtude de um acto de .fé inicial
metodológica (heurística, crítica, interpretação) é função deste objecto: (o único que a seguir permitiu o recurso aos métodos experi!mentados da
a razão humana adapta-se às diversas missões que lhe são confiadas, mas epigrafia clássica) pelo qual decidi aceitar este te~to pelo seu valor facial
é sempre a mesma razão que se exerce e é o seu trabalho que nós óbvio (uma dedicatória às lunones Augustae), em vez de ·ver aí, como
observamos. o nosso informador do século XVI, um criptograma redigido por Cristãos
Eu bem sei que o filósofo não se dá por satisfeito tão depressa. do século I «o mais obscuramente que puderam», acto de fé fundado
Se lhe. é difícil contestar que a história pertença a um «dos tipos de sobre um preambulum racional: para que um criptograma possa ser um
saber cuja moda11dade é o provável», que seja «um conhecimento do dia decifrado, é preciso que, pelo menos, seja possível perceber que é
tipo crença>> 29, não deixará de me perguntar: <<Mas qual é precisamente um criptograma.
o objecto formal desta U histórica? ·A que se referem os praeambula que O erro de numerosas críticas, erro muitas vezes denunciado por
precedem esta fé?» 80 Responderei: ao conjunto dos processos operató- L. Febvre, é imaginar que o trabalho histórico se resume a dois actos:
rios mediante os quais nos esforçamos por atingir o passado, por descobrir I. Estabelecer os factos; 11. Utilizá-los 83 • E pensa-se que a primeira ope-
e compreender os seus ·Vestígios. Não creio efeotivamente que seja bom ração comporta maior segurança, maior objectividade, maior verdade
método distinguir a ponto de as opor crença (e, portanto, juízo racional que a segunda. Não nos podemos contentar em ordenar ao historiador
que «parta dos factos», como se nos nossos arquivos, nas nossas :biblio-
tecas e nos nossos museus nos esperasse uma massa de documentos com-
pletamente prontos que, depois de um tratamento «científico» apropriado
2:6 Mesma Logique, IV, XIII, p. 340. Como o farã a três séculos de distância, A.
Piganiol (art. cit., p. 227). é ao <<dossiem da lenda de Constantino que Arnauld vRi buscar
um exemplo de problema crítico, IV, XIII, pp. 340·341.

81 Ver, por exemplo, S. Harent, ap. Dictionnaire de théologie catholique,


27 Supra, pp. 134 e 232.
s. v. Foi, col. 446: «Reconhecemos, aliás, como ciência, a critica histórica ... ».
28 B. Brunello, «Sul la conoscenza storica», ap. Convivium (Bolonha, 1958), p. 84; 82 Ver mais acime, pp. 101-105.
Guérard des Lauriers, pp. 576-577. 88 L. Febvre, Combats pour l'histoire, Peris, 1953, pp. 6-7 (Lição de abertura
2:9 Guérard des Lauriers, pp. 598, 594. no Colégio de França, 1933); 430-431 (ret. da Revue de Méthaphysique et de
so lbid., p. 595. Morale, 1949) .

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DO OONHEOIMENTO HIST6RIOO A F:S HIBT6RICA

(crítica externa e interna, interpretação, etc.), pudessem ser «exorcisados do espírito do historiador (a sua mentalidade, a sua cultura, ·o seu enrai-
do presente do historiador» 84 e nos entregariam «factos», passado (no zamento social...), se aproxima a pouco e pouco do «real», formulando
limite) em estado puro, entre os quais se trataria de estabelecer a seguir uma problemática que conduz à elaboração de uma heurística; ei-nos
relações. em contacto com os documentos: crítica, interpretação, há aí todo um
Mas não, o próprio documento não existe anteriormente à inter- processo operatório que é logicamente bastante análogo àquele de que
venção da curiosidade do historiador. Foi o que e~primiu, na sua maneira se servem as ciências experimentais; o historiador é levado a fazer uma
paradoxal, R. C. Collingwood, com a fórmula «Everything in .the world pergunta precisa a um documento seleccionado (é o equivalente da expe-
is potential evidence for any subject whateven> 85 , bem compreendida rimentação); uma vez verificada a hipótese, que muitas vezes não deixa
pelos nossos conservadores de museus, bibliotecas e arquivos que se de ser retocada, consegue-se estabelecer um «facto». Este não é um dado
esforçam por salvar tudo o que pode ter subsistido. do passado, sem inicial, mas sim o resultado de todo este trabalho de elaboração que
ousar estabelecer limites ao uso que deles poderia fazer a história no constitui a primeira parte do trabalho. É inútil descrever a segunda: se
futuro. Temos muita sorte em eles, por exemplo, haverem conser·vado não constitui um ponto de partida, o «facto» não constitui o ponto de
esses ·artigos notariais, esses registos paroquiais, durante muito tempo chegada. Depois de o termos estabelecido, temos de o interpretar, de o
abandonados debaixo do pó, inutilizados, inutilizáveis, até ao momento explicar inserindo-o em cadeias causais, conjuntos, estruturas, sínteses
em que historiadores preocupados por problemas económicos e sociais cada vez mais vastas que nos reconduzem gradualmente às mesmas regiões
se aperceberam da possibilidade e dos meios de os eXiplorar com proveito. profundas do espírito donde tínhamos partido.
Porque a ciência histórica não progride somente, nem principal- Empreguei o termo aceite de «facto histórico», apesar da sua ambi-
mente, por acumulação (um número sempre maior de dossiers do mesmo guidade. É necessário que não façamos dele uma ideia de alguma maneira
tipo devassado~ em função do mesmo qu(;stionário): ela conhece também atomística, como se a história fosse constituída por meio de uma multi-
as revoluções e dá um salto em frente quando surge uma outra escola plicidade de pequenos núcleos duros de realidade factual. Isso só é ver-
histórica animada por um espírito diferente e, por conseguinte, induzida a dade acerca da velha história, sobretudo ·política, muito próxima ainda
fazer ao passado perguntas novas, o que leva a explorar; de maneira com- da crónica, que a escola dos Annales designa, com algum desdém, pela
pletamente diferente, os documentos na nossa posse, ou a procurar e a expressão «história historicizante», a que outros chamam «factual», aquela
promover à dignidade de documentos históricos uma categoria de vestígios que se ocupa de questões do tipo: «Quando, onde e como morreu Hugo
até aí desprezados. Quem, antes do desenvolvimento recente da história Capeta?» Sem dúvida, a história é um conhecimento do concreto, e até
dos regimes agrários, pensava em interrogar os planos parcelares, a pró- do singular, desde · que se tenha bem presente que o singular que ela
pria forma dos campos, tal como nos aparecem na paisagem rural, para estuda pode ser, por sua vez, um facto global, que abarque um vasto
descobrir o sistema de propriedade ou de exploração que os modelou? sector da humanidade, de homens cada um dos quais viveu a sua vida
Poder-se-ia simbolizar o desenvolvimento do trabalho histórico por pessoal, ou de ideias, de valores, de criações culturais; a noção de acon-
meio de uma curva do tipo da parábola, em que o éllpoio sobre os «factos» tecimento histórico pode aplicar-se a um fenómeno de longa duração 88 ;
interviria no meio do processo, correspondente ao cimo da curva, que o objecto histórico pode ser não só uma batalha, uma guerra, uma dinastia,
compreende dois ramos (e não, como se finge ainda muitas vezes admitir, mas também esses acontecimentos que são uma crise econômica, um
.um só): um primeiro que toma o seu ponto de partida nas profundidades

H Retomo aqui ainda fórmulas de Guérerd des Leuriers, art. eit., pp. 590, 595. sa Género de fenómeno que F. Breudel, em nome de história, se recuse, com
3
~ The .)dea of History, Oxford, 1946, p. 280 (mas ver o comentário matizado rezõo, e ebendon!!r: c:Histoire et sciences socieles, La longue durée» (Annales, .Outubro-
que propus mais acima, pp. 79-80). -Dezembro de 1958, pp. 725-753).

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DO OONHEOIMENTO HIBT<JRIOO A F:& HIBT<JRIOA

movimento demográfico, uma classe social, um regime~ ou, no dominio menta, a taxa de mortalidade geral, que sei eu ainda? Nem isto nem
artístico, um estilo - uma religião, um sistema de organização geral da aquilo, mas antes a relação entre o número das sepulturas e dos baptismos,
sociedade, uma civilização, por exemplo, a Cidade Antiga, o Feudalismo. ou melhor, das concepções, como propõe J. Meuvret, apoiado numa expe-
o Barroco, o Islão, o Capitalismo ... riência de mais de trinta anos de trabalho ... !É aí que reside o problema
Na sua tese 87, J. Scheider estudou o desenvolvimento de uma classe e da sua solução dependerá a ·verdade da história demográfica ulterior-
social original, o patriciado de Metz; apoia-se, entre outros, num dossier mente elaborada.
com .grande minúcia constituído, criticado, interpretado, explorado de As análises precedentes permitirão, segundo espero, que o leitor
alguns duzentos actos relativos a operações financeiras, em particular apreenda em que sentido o historiador «personalista» acha que pode
imobiliárias, efectuadas por burgueses de Metz, entre 1219 e 1324. Seria responder à pergunta que lhe fazia o filósofo: «Que critério nos dá e
falso imaginar que esses «factos» elementares são mais concretos, mais que critério possui do seu próprio acto de fé?» 39 Não há um critério
reais, mais históricos que o fenómeno de conjunto- a > transformação de único, porque a elaboração da verdade histórica é o fruto de um processo
uma oligarquia urbana em aristocracia territorial. Mas, de maneira mais complexo (aquele que procurei simbolizar pela imagem de uma parábola),
evidente ainda que no caso dos factozinhos individuais, o papel dos pro- que mergulha as suas raízes- à chegada e já à partida- no que há de
cessos operatórios postos em jogo pelo historiador aparece como deter- mais profundo no seio do pensamento do historiador, a sua Lebens und
minante na cof\Stituição destes «factos» de carácter global. Nada mais W eltanschauung, a sua filosofia geral; a sua validez depende da de cada
instrutivo, por exemplo, do que assistir aos debates apaixonados que uma das operações efectuadas durante este processo - e não apenas da
travam entre si demógrafos e historiadores, a propósito das condições fase mediana de experimentação ao contacto com os documentos. Fal-
de aplicação ao passado dos métodos estatísticos utilizados para o estudo taria precisar- mas isso arrastar-nos-ia muito para além dos limites de
das sociedades contemporâneas 38 • Seja, por exemplo, o problema das uma simples nota - oomo se pode efectuar ,praticamente a .verificação
·variações da imortalidade em determinada região rural da França do desta validade, em primeiro lugar aos olhos do próprio historiador, depois
século XVII ou do século XVIII; dispomos, para esse estudo, de docu- aos dos seus confrades e pares, e, finalmente, aos do seu público. Isso
mentos preciosos: os registos paroquiais; mas, se os tomarmos tal como levaria a retomar a análise daquilo a que eu propunha que se chamasse
são, só reflectem uma acumulação de «factos» elementares (baptismo ou a «psicanálise existencial» do historiador •o (a etiqueta, escolhida pelo seu
sepultura deste e daquele paroquiano); a discussão, isto é os problemas de pitoresco, deve, como é natural, entender-se cum grana salis).
. crítica ou de interpretação não se situam praticamente a este nível de [D1gamoo sem nwt:áfora: não sou o primciro nem, hoje, o únioo a re-
realidade, porque o problema propriamente histórico da mortalidade e comendar ao hist:oci~dor um tal esforço de al!láliise e de e:x,plicitação. Já
das suas variações (como consequência, por exemplo, de uma guerra, de Seignobos e:soreY'ia: « ... ·a perfeirtla oonooiênai:a que tenho das m.iJnhras pre-
uma epidemia, de uma crise das subsistências) só começa a aparecer a ferêooiJas pessoatils por 1\Jffi reg.im.e .J.iibeml, ~aü.oo. democrático e ooidentJal
partir do momento em que o emprego de um processo estatístico ·permita preset'VIa-me, pooso eu, de ser levado a deso11ever oom me:x~ootidão ou a ne-
definir com precisão e posteriormente apreender esse facto global. Mas gligenciar os fenómenos que reoonheço serem-lllle antiipátiJoos. Se me enga-
qual é o método legítimo? Deve-se calcular a idade média do faleci- nei, o tlcitor ~iJoa oovelltido acerca d:o sentido em q ue é 'Possível que me
·llÍ~es8e rmoJinaJdO H,))

ar Citada meis etr6s, p. 57.


as Ver, por exemplo, R. Beehrel, <~:Statistique et démographie historique: La se Gulírard das Lauriers, p. 597.
mortalité sous I'Ancien Régime» (Annales, Joneiro-Março de 1957, pp. 85-98), e a 40 Supra, p. 243.
H Ch. Seignobos, Hlstoire politique d e I'Europe contemporaine, Paris , 1897, 1924, p. XI.
polémica entre o autor e L. Henry (ibid., Outubro-Dezembro de 1957, pp. b28-b38).

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270
DO CONHECIMENTO HIBTóRICO

Harv1a n.isto alguma imgenu1dadre: de ~acto. o problema, para o histo-


ruador, IIlão CiOl1ISiiffie em engaoo:r ou enganar-se mas em ser carpa.z de com- 2. HISTORIA, VERDADE E VALORES (1975*)
preemd:er- e, em relação 1a o público e à critJ1oa- de medir a e~1Jenlsão, os
.
lim~tes ·as ca~racteristioas desrtJa compreensão. Eils,
mUJÍJto mais longe:
. oo entaJnto, quem vai
. No mome~DJto em que nos enCOilltramos, o esp~r1to dos hQID.ens é <hls-
<~orque o h:istloriador está na histó11ia>>, é OOllvenienlte que toda a putado •poil' du!31S oori'eiilltJes dle 1pems;arrnenro oon1Iradirt:órias. Por um lado,
obra do hilstor.~ador seja colocada, desde o início e pelo ·própri.o !3JUJtor, no astSÍ!stimos àqu<ilo que ~er.ila parecido ümprovável há uma ge11ação ·a trás- a
campo claro e ~ooto que ele 13ltr~bllli pessoalmente quer •a o método de uma oooovação do aientilsmo: os êX!Íitos eJSpeotoouiliares da ciência e dia
retilexão quer às dooUil!Stânoias da s'Ula •investigação. técn:iioa pr.iv.hlegiam o espí-r.Íit.O <<O.ientí1}ico»; qualquer •ti:po ·de OO!llheoimento
Este <~avtitSo» lllão é somente le:akl:ade pa:ra oom o ~tor e pa11a com o tende a elevar-se oo estádio da «cientif,icidade» (o •apctreoimento deste noo-
crítico. É um dever para oom um método histórico em 011Íiação continua, 1ogismo é, por ·SJi só, signifti,cati.vo). Como oo tempo de Maroo1iln Berthelot,
queJ.'Iella Slempre 1'e131111ÍLlllida onde cada tentativa é •UJm ltle.9temu:nho. os biólogos ~OOSiootam -~e: como modtclos do rponsaanooto e proporcionam,
«Mesmo que o 1Jesltemunho seja nega,tiiVo e a 1enltia1Jiva se gore, conti- aos nossos .conrempmâneo5, a sua concepção •do mmdo e dia viDa. 1 • Mas
nuaria a oor •ailinda útil poder comparar o ·resu~tJado obtlido oom o .resuJ•tado ao meiSIIIlo ·t empo, por outro ·l'ado, esta mesma ciêlliOÍJa é •P001la em cau~;
esperado, proourado. Só a ·im.ve:511Jigação s:em fi.nailiidade, o esftorço sem mé- não, como '11!0 <tempo •em que BJ1U1Ite1~~re invo;;aJVa uma pretensa <<failência
todo LSão wrutuooos. O excesso de inquietação met:odológJ1oa .na investi- da oiêniCÍia>> pm IUiffia critiJOa de •tlÍipo reaccionár1o, mas SIÍliil por ootêntioos
gação será sempre preferível à ausência de <inqUJÍJe:tação.» ciellltÍISttas- dos matemácicos aos etnólogos-, homem; de esquerda, auten-
É ·u m histortiador que ·ass:im fal<a, de restJo um ·his1lormor marxista, tiJcam,entJe esq~erd1stJas., •ilnqwetos em face ,daJs ap1ioações (por exemplo mi-
Pierre y ,.hl•ar. Por estias liimhas abre o prefácio da sua tese monumental liitanes) que se ,f3Ziem •das suas deiSioobentas. A <~suspeita»- olllt11a palavra-
robre •a Catalu:nJha 42 , às quais oo ooguem Vlime e ~to pá~ de ooá.lire, -mestlra do lll!osso rtJempo- v<l!i-:se estlenldendo cada v.e:z. ma!is ao próprio
em qUJe o autor procwa ·im.fooo&-lflJOS aJCeroa das elialpas percor.ridas durante saber ou}a oorvidão, or1entJação e 3iloance denUIIlcia.
os m3ilis ou menos .trmta. •31IlJOS que durou a eLaboração da sua obra no•tável; Estas duas cOI'OOilites oo111trastan1Jes oooontf!am-se lll'as discussões aotua:is
aoerca do dese:nvOtlVIime:ntJo da sua própr.ia ollllrura, do !progresso da sua que ,dizem .respeito à epistemologia da mSitó11ia. A <~uspeitla>> atinge-a,
reftlexão, da:s .infJuêncirus doutr.ilnai<s que o marcaram - aceooa, também, da como a •tlodlas as formas ;presemes do saber. A .partir do axrioma funda-
i:ntelfft:~rênoia da sua histó11ia .pe:sooaJ com a história gera:l (a gue:rra civil mental dlesta f.hliOSIOffira cmiJoa da histór:ia, oo qual . V'1VIemos há quaren<ta
de Esp31Il1ha, a campanha de 1939-1940, os ócios forçados de um longo ooos- •a históóa é wnseparável do hiJstoni,a dor -, a <<moda rfiillosófiica» não
oatilvciro, etc.)- enfim, '3ioeroa de oomo ·foi 1levado a defiWr o oou objeoto hesilta em tirar <OC'Oilooquênoi:as ddirootles 2». Diúamos que o historiador
e os pr.iJnóp1os metodológicos qU!e o oDren<tavam 43 • Não creio que se possa chega a 311ling1r, lllJa real•1dade •inesgotáwl. do tpa.siSiaJdo, a rparte ou os aJS<pec-
iJnvooar eX'eliilpio maÍIS aoa:bado da efeotilvação .pmtica da <tJeoria que tínha- ros cuja apreensão ~he é rpoosíVIel, em faJCe da L'iiituação em que se e:noo111tra,
mos procurado rasumtr numa pa:ll3lvra 44 • ] a :par •da sua :irnoorção ll1IUffia d:ada dvriJ.,ização e nruma dada soCÍieldade, .rendo

Artigo dos Cahiers d'histoire, número especial por ocasião do XX aniversário da


revista, 1976.
42 P. Vilar, La Catalogna dans I'Espagna moderna. Recherches sur les fondaments 1 Lembremos a grande aceitação pelo público de um livro como Le Hasard et la
économiques das structures nationalas, Paris, 1962, 3 vols . Nécassité de Jacques Monod (Ed. du Seu i I, 1970) .
4 3 Ver a minha anãlise em «L'introduction à la philosophia de l'histoire, le point de 2 Devo esta fórmula penetrante e mordaz a Raymond Aron. «Comment l'historien
vue d'un historiem>, Scienca et Conscianca da la Société. Mélanges en l'honnaur da Raymond écrit l'épistémologie, à propos du livre de Paul Veyne» (Comment on écrit l'histoira, Ed. du
Aron, Paris, 1971, pp. 44-45. Seuil, 1971). Annales ESC, 1971, p . 1332.
44 O texto entre parêntesis rectos é uma adenda da 6.• edição (1973).

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272
DO CONHECIMENTO HIBT6RICO HISTORIA, VERDADE E VALORES

em iOOOta, aillnda, a sua equação pessool. Pelo contrá:rro, hoje, .im.s.istlir-se-á, nenhuma ep1stemolog1a podeda rpaiSSlllr 8ietil1 ela: a 1nves;tigação crentífica
de preferêllloia, llliO Jia:cto de este <d:uga:m em que o histort1a:dor rtiDabalha «lhe não ,p ode justificar-<Se- tooro '110 plano teór:iloo oomo no 'Pl'atllO humat11o -
permitir 'lllil!iloamoote iUID .tlilpo de produções e Jlbe interditar outros 3 ». ConviÍ- se arbstl'IMrmos ·d a sua ~1nia1Wdade JiunidammtaJ, a procUJra .da verdade. Que,
dam-lllJos, oom ~oo1stênda, a desoobt11r, por de~rás do <<:est!a.Wto de uma em 'OOtól11a, a vel'ld31de reja sempre parcii!l, fmgmenrtada, sUJbmetJida a irn-
oiêno1a» 4 a h.istór~a. a situação social do histor1a:dor- a qual é o seu per.iosos oondildooaJ:ismos, não ~pede que, como OUJtro qualquer oonhe-
não-dito, o 'moonfes8ado. Deste modo se sUJbs1llitui. à noçãO helénioa do cimenrto cientíJiroo, ela atinja :a sua finalidade - um CO!llhecimenro verda-
erro, a noção sem~ta da meDJt1ra. deiro da !l."eeal!idade pas.9ada.
<(Fazer história, é uma prátruoa G» qUJe 'termma oom a produção de Oonrtudo, 1iemos que combater em duas frentíes: enquat11ro a intelli-
um d1soUJI'ISO 6 , a operação tfimal, <(a eoo11ilta», l1eiSip0111Sável ~a própnia, de gentsia panisriense -leitores de LévJ-Strauss, Rola~nd Bail11lhes, Miahel Fou-
diist:orsão, de ~nrvernão, de rtra:ição e de estratagemas SUJplemelllltares 7 • Nada cauld, etc. -se entrega ·Com piiazet' •a esties jogos oofÍSitli.cados, os h.isltor:ia-
mais mlleire.51Siain1Íle do qUJe v:er Rolaatd Bart:hes dirver.t1r-se 8 a pôr a qUJeS·tão: dore.s de profnssão, esses. são seduzidos peias sere1a:s do nreo-cientis:rn.o.
<(A llllatflração dos aoonoooimenros plllSISados difulli<rá ve11dadciramoote, por Sempre wpaoie1n:tes a respe1~o dos problemas propr.iJamenre fillosóficos,
algum rtraço e:>pe~cíf1oo, pO[' uma pei1tWnênJo1a mduhiJtáNcl, dã oorreção ima- eles 11ie1!1Jdem a afasta;r, oomo margin:al se não ,UJ1trapaiS'sado, o probJema das
gmria, que oo enoontra '00 epopeila, no romanoe, 1110 drama 9 ?» E, na ver- relaçõas entre ·a obj1eat1~iJdaJde e a subject1wdrade: <~peço-vos, não engrallllde-
dade, rod:a a subtliilieza de 1uma kmga al!lálise, mantida no út111oo plano çamos dresm:esumdamente o papel do histor1ador 12 !». Em rodo o caso,
da retóruoa, não ohega a dar conta daq~o que o esfruço do historJad()[' o movtimento demo111Sl1!ra-se pela marcha; ora, oomo não ser sensível à
procura artiingilr e que Ba;r.the:s desilgn:a j;poruoamoore por <<O efeito do real». transformação proJiUtllda dos métodos da hilstória e aos ·progresoos inespe-
De ~gUJal modo, e!]qU'a1nto nos < Jimitarmoo a a:nailJsar ,a <~praxis» do rados, real,izados por erla no decul'ISO dos úLtimos :anos? Bas,t ará enumerar
historiador, as OOIIlldições da «produçãm> da :hlstól'li:a, 'também não oonse- brevemente: a aplicação, cada vez mais generalizada, à ·Í!nves1Jigação his-
gmremos dar conta da sua <<'referênoia <aJO ,peaJl», da «·mlação com o real» tórica de <téoni.cas llllpuradas de es~tí~tliloa, .util·izladas também em sociologia;
que se ltorna <<'uma relação enrtre os termos .de uma operação 10». Há uma o ll'IOOU:l'ISO à ·1 nfurmática- •a qUJe me perm,1ti chamar- «a corrida ao com-
paia~vm que os nossos autores evtitam oollidad:osamm'te ou só ~pregam puta;dor 13 »; de modo geral, · o i MeJre&se cooscenrtie por rodo aquilo que,
1

oom •Íin:fmiltas pi'oca:uções 1 \ a ~pal:avm verdade. ContJiJnoo a pensar que em histó11ila, é s:usoerptíverl de quan~1oação. .Por outro ·la:do, a escolha, como
quadro de investigação, não já do aconteJcimento, em certa mOOida, pon-
3 M. de Certeau, «L'opération historiographique», L'~criture de l'histoire, Paris, Galli- tual (a baltallha da Mrurarona, ou de Watel"loo, a acção de <u m homem,
mard 1975, p. 78. Remeto de modo geral o leitor aos estudos reunidos neste volume em
que o autor, com um virtuosismo deslumbrante, desenvo lve exemplarmente a tendência que César ou Bilsma.rk), mas, antes, de um fenómeno mais ~asto, •aquele a que
aqui anotamos em algumas palavras, necessariamente insuficientes. F. Braudel gosta de chamoc «a long~ duração», •a ·hilstó.I'1a das oonj<UI!lltul"aJS,
4 lbid .. p. 71.
dos ciclos, dos grandes moVI.Ímenros dre 011drem demográfica, eCOtiló.mioa,
5 lbid . , p. 79.
6 Sempre, M. de Certeau, «Faire de l'h istoire», op. cit., p. 27 e segs.
olll1tllirarl, e que leva o his1Jo11iador de hoje a pi11vilegi:ar o gemi em relação
1 Op . cit., «L'opération histo riographique», pp. 101-120. áo pal'ltlioular, o IOO!Ífurme (ou o que muda <lentlamente) em relação oo aoi-
8 Emprego a palavra intencionalmente: R. Barthes é um espírito demasiado arguto deotal. ·a ooá:l;ise em relação à :na11mção.
para tomar a sério estes exercícios dialécticos, verdadeiras «experiências para vem- tão a
sério como alguns dos se us discípulos! Cf. Roland Barthes par Roland Barthes, Paris, Ed. du Es1Ja orientação, ooda ·V~eZ ma:is maroada, há uma gemçã.o, - o nosso
Seuil, coll. «~criva i ns de toujours». 1975. oolega de Oxfol'ld, Geof~rey Brurmolough daJr~ de bom gi'ado e oom
9 R. Barthes, «Le discours de l'h istoire». Social Science lnformation, 64, 1967, pp. 65-75.
O autor voltou muitas vezes ao assunto, sem - parece-me- avançar muito mais a questão:
<<L'éffet de réel», Communications, n.• 11, 1968, pp . 84-90, «L'écriture de l'événement>>,
Communications, n.• 12, 1968, pp . 108-113. 12 F. Braudel , interpelando-me. «Histoire et sociologia». ~crits sur l'histoire, Paris,
10 M. de Certeau , L'écriture de l'histoire, p. 94 e mais acima p. 29, 40, 56, 57. Flamarion, 1969 (retomado da Introdução ao Traité de Sociologia de G. Gurvitch). p. 101 .
11 M. de Certeau escreve, a maior parte das vezes, verdade, somente em itálico ou 13 H. I. Marrou , «L'épistémologie de l'histoire en Franca aujourd'hui», Denken llber
entre aspas; ibid , pp. 64, 65, 110. 134, 317 ... Geschichte, Wien, 1974, p. 106.

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DO CONHECIMENTO HISTóRIQO
HISTÓRIA, VERDADE E VALORES

preoi:são, a OOta. d!e 1955 'para esta viragem u - esm nova hi:stór.ia quanrt:i- secrurndânas do Wdealismo alemão e mai:s eX!aJOtJamente do noo-kaJJll~i,SJ no da
tativa, matrematúzioote, fez 11enascer, aJté na soo e~pOOSISão CJ011Siagrada, os Escola de Baden (WWndelband, Rickert, etc.)?
sonhos da grande época po,s.iJtiJvJs;m na viragem do séc. XIX e do séc. F. Furet aflma de passagem o nosso segoodo ponto: a his·t ória 'SCIPia,J,
XX-, a espel'ooça de a~00111çar <~uma mruor~objeotiMiidade», o ü1i:UJnfo de enquanto fuVOI"eeCe o longo prazo e o ~lllilibl1io de um siJStema, parocx:
uma hi:SJtóúa mão mai:s <~prec:ientifica», mas entii:m a:uten1!iJcarnen1ie oientífica. dar 'UJma espécie 1de ptúmama à '001100l'Vlação - à mudooça Jenta em detni-
Não se .trata de negar a fuoUJndlidJadie des.1Jes nOVIOIS métodos de investigação; mootJO das mutações, à evol:ução em prejuízo das ·r evoluções. Tadvez tenha
não ob~tanlte, seja permitido ao observador ohamar a atenção pall'a dois chegado a h0111a de ruma reab.Wmção do aconteci:merno oomo <<iooorição,
pontos. irrupção, r.asgão, e.<>to.iro, cisão» e especiallmente do ooonteoi:mento poli-
Não basta 'a;Ea:strar rum problema para este f~car resolvido. Longe de ti:co (recordem-se 'as ~jomadas revolucionâ11Í!as de 1789-1792 ou de OutUJbro
ser eLi:rn.i!lmdo, o 'p apel 'aoti:vo do histooiador oorá cada vez mai:s e:vidente, de 1917) 17 • Oomeçou a exip11i:mlir-oo uma ·reacção neste sentido 18 • Que taJl
à med:iida do deoonvolv.imenro desm histótúa «qUJantiJtJa:tiva>> ou <~serial» reacção seja molii'Vada à pa'11tlida por preooupações poHticals, nada tiira à
(não po,rmenorizemos). Como não sUJbl:inhar a parte de elaboração, de soo :pertinêrroia e à soo feoood:idade.
construção, até de invenção que entra no oou rt:rabaJho, sobretudo a partir Vo1temos ao essenciall da questão. G. Ba'Draclorugh acentua com razão
do mome,nto ·e m que ,ut:J.hl;iza os dados numé11i:cos das suas ·fulllres, oo, me- que «a ootude dos :histJorladores foi prof:~d'amente ãnfiuenoilada pelo espí-
1hor aimda, dooos l!lã:o estwllltillll'a:lm.:ente numé11i:oos, mas que ,UJilliza de ma- riJ1Jo dentí.firo que dOilliÍIIlia. o munido moderno». Contludo o oiootismo e o
neira qu:anti:traltiVia, eSJtaibeleoondo «sél"ies»- para enoon:trar 'illlla resposta seu mtrépido dogmatismo tomam-se ameaçadores; o mesmo aJUJtor, avoo-
a qu~tões to,tallmente 13Jhei:as àquilo que era a ·r azão pr.imcira do seru çamdo maills ,um 'passo, assegura-nos que <~ pr~ressos revoLUJCionários»
estabeà·eoim:ento - como, 1por exemplo, quando se uti!ltizam os 'arqrul'VOS pa- que aotUJ:clmoote a !história ,regista se devem <~ao impaoto que exeroe sobre
roqui:a:i:s ou notalli,3Jis pam os intetrogar aoerca do oomportamento s:exuaJ uma oova geração de: hislíociJaJdores, ruma visão cienti~ioa do UTI!iverso, no
ou da •a titude •ml,~giosa de uma sociedade antiga. qUJ:cl a espécie homo sapiens- objecto (talvez e11radw:nenre?) de 99% da
Não 's ou o úruoo ne:m o pnimeiro a recordar estie f.aoto impo11tante: produção histónioa. -não é mruis do que ruma parte>>. A diootomia entre
depo'is do própr;1o F. Braudel 15, Fmnçois Furet, numa comun1oação de a ·hum'31nidadie e o Ulrui'V'el"so físioo se11i:a apenas 'u ma visão ru1trapassada e
ram V'1gor, ~dvertiru que «o his~oruador d:e hoje re encon~ra obrigado a <~as rn.zões por qoo se tram a história da espécie humana como qualitati-
renunci~r à ;ÍJngoouidad:e inetodológiJca>>. O compllltiador não pode fazer VJameilte difurente da h:.i!Stória de: qualquer outm espécie - o peixe por
tudo e l9Uipõe trabailiho prévio: <<A codificação dos dados srupõe a sua defi- exemplo -são mUÍJtlo sUJSprutas de laJIJJtropomo!liismo 1. 9 ».
nição; a defànição wmp1i:ca um certo número de opções e de ,hrupóteses ... Certamente, e .u ma ve:z mrui~S, não sejamos ailivo da fómrula p110Voca-
Deste modo ca:i dcliiiniti'V'amente a rruk>cara de UJma objecl!iViidade hi:stónica dora e: d:enrols '30 humor lb11Íitâniloo ·a parte que 1Jhe oonrvém. Nada, ront!Uido,
que se enoontrar.ia e.<>conilida nos «f1actos» e seria descoberta ao mesmo é mais e~pressivo do que !Uima cal'ioart:llll'a: como não ptotestar contra o
tem'Po que eles» 16 • Seria timpossí!Vcl dizer melhor. Podemos nós ver na a1il1l!hamelllto da !história sobre ·a evolução hilológiiCa? Na 'VIelroade, a hi~tóda
noSISia «fboEia oríJtica da históniw> - como quer~a G. Bai11raclough - as ocupa-se, primacialmoo~. do homem e das suas oo~idades porque é
esoniita pelos homens para os homens e não -por exemplo- para os
peixes.
14 Na sua comunicação sobre a história que constitui o cap. 111 do Main Trends of
Research in the Social and Human Sciences, 2 nd Pary Anthropological and Historical Sciences, O '31utor continua: <~podemos pe11g1ootar - ~abstraiÍindo dos preconoei-
editado pela UNESCO. No momento em que escrevi> este volume não tinha ainda aparecido
e utilizei o manuscrito da «Final Version» que foi amavelmente posto à minha disposição pelo 17 lbid .. p . 46.
autor e pelas autoridades da UNESCO.
18 A. Casanova et F. Hincker, lntroduction à Aujourd'hui l'histoire, Paris, Ed. Sacia·
15 F. Braudel; ~crits sur l'histoire, pp. 135·139 (retomado dos Annales, 1963), sobre les, 1974, pp. 26-27 (que remete a literatura anterior), e sobretudo: 81. Barret-Kriegel, «His-
H. · e P. Chaunu, Séville et I'Atlantique, Paris, SI;VPEN, 1955-1959. toire et politique, ou l'histoire des effets», Annales, 1973, pp . 1437·1462.
10 Fr. Furet, «Le quantitatif en histoire» (retomado dos Annales, 1971), in J . de Goff et 19 Devo esta citação e a seguinte às últimas páginas da comunicação de G. Barra-
P. Nora, Faire de l'histoire, Paris, Gallimard. 1974, t. I, p. 53. clough, «Some concluding Observations» .

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DO CONHECIMENTO HIBTORIOO HIST0RIA, VJ::UJJ ,.Ifll• I I 1111 /U '•

ros lbumooos -se o 1p apcl do homem na h.istooÍia do moodo foi fma:lmente fillosotiÍia, ciência, 'a rte, nas quais se cx.pt i'lll "'"'" , , ti • ltttnt u 1
tão limpo11tan.te como o rde muitos OUJtros 3!Illianais, por exemplo, os piolhos todas as épocas 23 », e nós chamamos de acor~ lo • Htll I' V
e os ·raros 20». Sem dúv.ida, não se tratJa rde isolar a histór.ia 1humana da sua dadas de V'alores». O prime1ro desVIilo coru>t'llli.l ~,111 '', l111d ,,,, " 1 1
1nserção oo meio hiológiro. O mixovm A da gdpe espallllhoia fez, em uma tradição artistüca, ciootífica, doutrilnal, em fun t; o d" 11nl• t 1 11
1918, maàs VÍitimas do que a guerra das tnincheiras. De ·r esto, não sendo Y1istia. da situação pres;en<te da c:Liscipl.Íin.a escolhida. ÀI S~;iilll , ifi1JJI
um mto nem um piolho, mas o mamífero cuniosamoote evoluído que é o tado a história das ciêll'oiléiiS com:o um mero ·1nV'ellltá·nio (~ro•u•I••V.'''
homo sapiens, é o comportamento deste no tempo, e especia!lmen:te no venções e desrobel1tas tidas como vál.iJdas para a oi8rwiü a '"·'''
deollll'SO dos últimOs milénios, que antJes de tudo me Jnmeressa. manuallis da hiJStór.ia d:as ma1emátiloas gregas con:tentam-oo (: Jllll oi
Se. aimda agora. retivi:ndicá.V'amos, para a histónia como ciência, .o ração dos elementos da ciência .an:lliga qu:e :foram conse;rv·a dos 1)1Cllm 11o· ··•
direito à verdade, devemos denoooia:r o pevigo que 'representJa o af·asta- matemáJtliJoos. Oom ~azão P. Veyne ~ouva A. Koyré por IOOr suh~ tulu d..
mento da noção de valores 21 • Continuo 'a pensar que uma das funções elSlta :p seudo-história pclla ;hiffi.óri'a veroadeira do caminhar do csp1rit.<> hu
essencia1is da história é a recupetl'ação dos 'V'alore:s do lpaiSiSado em prol m31110, a1JraJVés de erros e de verdades, 1inltimamente tligados. Uma hiNt(~•·m
da CllLLtura v·ilva dos nossos dias. Fico espanl!ado IOOlll o sober:bo desdém autêntilca da oiêooia .grega deve mtJegrar a laiStrolog:Íia ao lado da astronomia:
que os noo-cientisl!as manifestam 'a :respeilto da históvÍia das ~creias, da o mesmo P1t::oilomeu é autor da T etrabíblia (manual de astrologia) e do
cu1tul"a. do espínüt:o. E, CIOOIWdo, há neste campo uma perene aotilv~dade da Almagesto (expOISição do sistema geocêntrico do moodo que deveria v:igo-
mva<>tigação ootual.: com um séowlo de permeio, 'a groode 11ese de André rar 1a1té Copérnilco e Gail.il.eu).
Ohas:'lel, Art et Humanisme à Florence ... (1959); veio substituir 'a obra O oaso não se J,imiJta à ciência. Sob o nome de «·teologia pooitiva»,
olássica de Joakob BUII'Ck!arot sobre a Civilização da Renascença na Itália apresenta-se muiltas v;ezes um me;ro 'mventá~io dos ·mtleoed:entes da dogmâ-
(1860). Quero léllpresootaJr aqui lélllgumas considerações ou esclarecimentos t1ca, tJida hoje como orrodo~a. O pensamento cristão ·r enovou-se e enri-
suplementares às págJilll'as muilro breves que Paul Veyne ooooagrou àquiJlo queceu-se quando procurou ,t entar compreender o que tinha sido, em si
que ele chama, com o tradutJOr de Max Weber, <{3. história a.xicl.ógica 22 )>. mesmo, o pensamento dos :Padres' da Igreja. NotJOu-oo que hlWÍia neles
Apenas me separo dele ao rOCJUSiar este epíteto bá:r,baxo, .recebildo sem muiJto mrus ide1as vá;Lildas do que aqueias que uma tradição escolar
dúvida do calão dos filósofos (no sentido muito gemi de <<O que tem retiV'era.
relação oom os V'alores»), mas que 'l"e:pugilla ao humanista. (O grego tem O segundo ~1po de desvilo é representado pelo género li:tJerávio ou peda-
o adjectivo axiologos: encoll11tJro..o, no ·lugar certo, 'IliOS n'OOSos antepassa- gógico, conheoid.o sob a dooignação de histó~ila da ;liJteratura. Géinero me-
dos Heródotlo e Tucídides- oom o sentido de «digno de consideração, todol.ogilcamen'lle ·1!1Sitável que <fs:e •apresCil'lltia ordilnariameilltle como :uma «his-
de registo, memorá'Vel», noção que a teoria da história deve u~r. como tóúa das obras-p!I1im·as» à quail. se ju:ntJa, de modo capl"ilohoso e s:em prin-
veremos). cipias bem 1i1rmes, uma <{histór1a da vida l:ilterár.Íia e do gosto, reallizada
Como P. Ve)me sublinha mu:irto j'l1stamen;te, há duas maneiras não quer 1pam si mesm;a, quer pam melhor compreCIIl!der a prime1m». Para
h!istórioas, não oientifioas de trrutar aqllllhlo que R. Aron chama «léiiS ·obras, o ,cr.íJtilco, ou para o homem de Ietras, a Jtra:gédia grega :resume-se a três
20 O autor refere-se aqui a Zinsser, Rats, Lice and History (1935) e acrescenta em nomes. A histórÍia verdadeira J"egilsta bem mais, os qwis são pam nós
nota: «Voando à altitude agora normal de 30 000 pés e observando de avião as miseráveis quase só nomes. Mas não há mS:to erudição inútil, porque não é sem
escoriações que o homem fez sobre a superfície da Terra, pode ocorrer ao historiador per-
guntar se a acção do homem sobre o meio físico que o cerca se compara com a acção dos iln'lleresse :r ecoroar que Fil.oclés, um sob11illlho de Ésquillo venceu Sófool.es,
pólipos antozoários. oo ano do Édipo Rei- nem é ,iJnÚJtii), :ig:ual.menrte, para a :histórÍia do nasoo
21 Cf. Supra, p. 241-246 .
22 P. Veyne, Comment on écrit l'histoire, Paris, Ed . du Seu.il, 1971, pp. 84-88, às tempo saber que oo tempo em que Ma:1raux foi ;pela primeilra ve:z. Mi!Ilistro
quais remetem as citações seguintes. A expressão «história axiológica» vai buscá-la a J. Freund, da GuJ.tura, os dliJrcitos de autor m~s elevados foram entl'e§ues aos her-
tradutor de Max Weber, Essais sur la théorie da la science, Paris, Plon, 1965. A minha
critica não põe em causa o tradutor, colocado perante uma tarefa impossfvel: traduzir para
francês a linguagem tão rica, concreta e imaginosa de Weberl 23 No artigo citado acima (nota 2) , Annales, 1971, p . 1348.

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DO CONHECIMENTO HIBTõRICO HIST6RIA, VERDADE E VALORES

deiros dos Petliltjean de la R.iJviere, romaooistas popllllaoos mais oonhooidos Bouvaro ou Pécuohet («Se escrevêssemos a vJrda do duque de Angoulême?
pelo p.seudónJimo comum de Delrly, e não a um <~groode» escl1itor. -Mas era lllffi ,ifmbooil» ... ).
Seria V'all1ltaJjoso, rob o ponto de vâsta da teoriia, diJ.stiJnguir bem as É ne:oessá11io dilstiiilJguir muitos planos •sobrepostos: o arqueólogo, o
duas pel'SipOOtiV!as, que são diferentes aim.da que se •possam tomar comple- a:rqwi'Vlista. reoorlhe-.tJudo, deve recoLher ~. não deiJCar tperder ood!a do
mentares: o humanãsta dlebr:uçar-se-á sobre a história do t.eaJtro ateniense passado: seillte-se honrado quando enroontra ·num •trapeiro algum lote
para compreender melhor a obra de Sófooles; e o hi.Sitormor -insistire- que •uma ardmirn.istração negliJgente vendera como <(!papéis sem mreresse»,
mos 11listo pa111a rermin!ar -lllão pode ignorar que a Atenas do séc. V é o porque é bem possíV!cl oobrervliJr ·algum histor:ilador que ponha a questão
lugar onde, entre 'ésquilo e Euripedes, um SóoofJes (mais ou menos apre- através da qual~ 'Papéis, ou esses delicados fragmentos, obterão vad.or
oiado pelos seus contemporâneos - nisto não há discussão) pôde cf!ia.r documentail. Muirt:o 'a:l1ltes de Luoien Febv.re ou de CoHingwood, Max Weber
as suas obras-primas. tinha notado hem o papel que desempenhava esta sénie de objootoo, em
Contudo, é necessário levar mais longe a análise. Não se .pode opor, si Wn:sign:ificalll.~tes, mas úteis 1para o oonhooirmento de outros aspectos do
sem malis, •u ma má hlistónia. IiterárJa qUJe :senia, ,por exemplo, uma <dilteratura passado, esses, s.im, dignos de ~nrere:.sse 25 , axiologoi.
do séc. XVII oob o ponto de ·v ista .do gosto do séc. XX» a uma história Atingimos então o grau superior, o do objooto .propruamoote histó-
pura que seflila uma <d,iteratura do séc. XVII reooloc:ad:a m sua época», rico: !porque merecerá ele ser conheoiido, senão porque •tem para nós um
porque em qualquer ·rooornstmção da <<ISOC.iologia da l•iteratura 1110 tempo siglni:liicado, porque lhe reconhecemos um valor? Podemos dlilstingui.r dois
de Luis XIV»qualquer esforço de objootividade que o histo11iador dispenda tipos de esoolha: por um bido, •r eteremos aquilo que se revelou ter sido
ser:á necessaciamoore model•a do pela sua meilJtaJ.,iJdade. A nossa interpreta- histo11icamoote ellicaz («was wirksam ist>>, escrevia Max Weiber), ou, como
ção da 1artte <<geométJJ:Iica>> do a.rca:ismo grego já não é a mesma depois se teroia dito no prilncíprio do séou:lo: o que .foi causadmente limpol'ltaJillte - ;
de !termos conhec.ido Püoasso. Onde os nossos predecessores só viam infan- mas, oomo diz P. Veyne, <ro problema da caUJSalllid:ade em hilstór.ia, é uma
tis bonecos, nós tornamo-nos habiiiiltados .a reconhecer uma abstracção sobreviÍ!Vênoia da era paleo-epi.stemológiloa. 26 ». Foi •assim que me apercebi,
estilí&tioa -e os nosros sucesoores hão-de admirar«, um dÍia, por o nosso um doiJa, do faoto 'importalnte que a LilteratJura rhistór.ica 31lllte11i.or dissimu-
juíro hilstórioo •ter Slido •tão prooundamoote Jinfiueooiado 1pedo gosto do ·lav.a opor excesso de purdor, ~sto é: que a pederastia 11inha desempenhado
nosso 1tern.po 24 • um papel de pl1imeilro rplai110 na !pedagogia d:a Grécia •ootiga.
Ent!usi•asmado peLa veia polérni:oa. que dá tanto elliOOIIllto aos seus Todavia, é neoossárlio ~r niiSito, porque se :tem 1por vezes a ,tJen.
eso11iltos, P. · Veyne vai demasiado longe naquela vez em que afinna sem dênci1a a não 'retler oomo propr:i:amente histó11ioo senão este p11imeiro oas-
ma:is e:xtpl,icações: «A .J:l!isltór:ia iilltere:ssa-se: por •aquilo que foi como .tendo peoto, quando exüste :um outro .tipo de esoolrha: a redesooberta., no pas-
sido; ipel\Spteatilva esta que se d!iJStiJnguirá. cuidadosamente da da história sado, de um aspecto da rea1idoade humana que oonservoa um valor para
da litemtura ou da lélJ!te, defii.nida por uma ·r elação :aos 'Valores». Esta nós. O verdadeiro historiador não sUOUllllJbe à ,i)llJLSão 'hiiSitOJ:Iroist!a. - rodo é
noção (W ertbeziehung) que ele deve a Max Weber desempenha um pa:pel rela'liÍIVO à sua época -IIlelll às pretensões da Wissensoziologie, reduzindo
muilto mais iim•pOil'lt!ante, mais COilSitaiilJte, mailis central na histól'lia, em roda urna vel'ldade às o1rcunstâlllcias do oou arpareoirrnooro. Isto é ev.idenre em
a hiJsrtó111~,t. Devemos ouood:amente pôr a questão prévtia: o que é histórico? relação a certas obras de cará.oter excepcional, objecto de uma admiração
Falemos gl'ego: sim, o que é axiologon, o que é digno de memócia, o que s001pre renovada, séoulo •lllpós sércullo. Marx, depois de Hegel, tJim.ha-o
merece o esforço de elaboração, de <(!produçãO>>, esforço que o historiador notado bem: «a dirfiiouildade não consiste em compreender que a arte
voai dispender? .Ele não estuda •tudo o que possa ser- a menos que sejoa grega e a epoopei:a. eiSitlejam ligadas a cerrtas foJ:IIlUlS do desen'Volvimooto
ooc.iail. A doifiooJldade é esta: essas obms proporoionam-illOS aàlllda um
. ·- 24 Ver, a propósito deste assunto, as reflexões demasiado pessimistas, na minha
oponoao, de J . Séguy, «Histoire, Sociologia, Théologie», Archives de sociologia religieuse, 34, 2G Ver a distinção entre Realgrund e Erkenntnisgrund: Max Weber, Essais sur la theorie
1972, pp. 138·151: «Nós mesmos nos explicamos a nós mesmos por meio dos condicionalismos de la science. pp . 244-247, 265 .
do nosso saber; uma outra sociedade, um dia, verã nos nossos esforços para obter maior
clareza, outros tantos sintómas da nossa cegueira» ...
oo P. Veyne, Comment on écrit l'hiatoire, p .. 115.

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po OONHEOIMENTO HISTpRIOO HIST0RJA, VJ:.'RD A /)/:' 1\ VA U 1/U.'S

prazer eslléciro, e, em certos aspootos, OOI'VIelll de nomi•a, pe:mlanecem para de !Israel e de Judá, <cvendo que não podia aguonba1r o comhah: , to m' o
nós um modelo .iJn!acessível 27 .» Apocila, de .facto, faml ao ISell hàstoJ.'Iicioolo seu filho mais vdiho que devevia reinar depo1s dele e o ofort.'l' <'111 :.a n
radli.oa:l; a solução proposta por Marx faz-nos sorJ.'Iir (a arte grega OOJ.'Ires- fício sobre a murMha», COilllJpreendemos não só o -sobressaJto dos Mot~~bitru~.
rpondenila. à Wnfânoia da humanidade); na verdade, ele não podia, em como ainda o medo que se apoderou dos siltiantes.
1857, prever o que hél!Veríamos de oober aceroa da pré-himória e da proto- Redeooobe11too, os vMores ·do pa&Sado revelam-se alternadamente fra-
-histórtia - mas basta reffi.eotir um momen·t o 'Para se dar COillt:a que o que ~emos, ooálogos ·~os il110&90S (ao estudar •a mora[ que Glemente de Alexan-
é ·v:ertdadciro para Homero, tamhém o é para Dante ou para Shak:espeare dr:i:a prega no 'Seu Pedagogo, enoontrei :Iludo o que para m1m é e5renc1al
(re:coJ.'Ide-<se o •papel que a mtenpi'etação do Hamlet desempenhou e •a inda na ascese c:r>istã)- ou, pelo oontrá1:1io, estranhos, diferentes: P. Veyne
de5ell1Jpeniha na CUJ1tum ·russa). estudou a noção de evergetismo 'n o mU!fildo hclenístioo e rom·ano; teve de
Não oonstÍirui paradoxo algum o facto de estas obras terem sido recorrer a um neologti:s.m o paTa designar essa ins~iftuição que não tem
apreciadas atJ.1él!Vés dos séculos segundo cânones estéti!OOS diferentes (ve- equmvalentJe no Ocidente modemo (o nosso <«<leoenato» não se aprox1ma
ja-se •a Odisseia oo tempo de Perrot d' Ablanoourt, de Leconte de Lisle, dede) e, :a1nda, para de:linr o seu objeoto, viu-se obrigado a emrpregar
de ViÍJOtlor Bérartd e hoje). O faoto :resoolta do roaoo mais gerail do oonhe- comparações: «rumag,Íinemo~ que a maior parte das câmaras, das esoolas e
oimento histórico que definimos oomo uma mistura ~ndilssociável do ob- das barmgens h1dráulllicas da França .se deviam à magnificênoia dos bu:r-
jecto (o passado) e 1do sujei:to (o historiador). Recorde-1se o [e1tor do co- guese:s ·da iooaJ.Wdade, os quaiiS, ~além disso, oferecedam aos il:rrubalhadores
mentári:o que fizemoo à fórmula famos:a. de Raymond Aron: «lnesgotávetl, o apeJ.'Iitillvo e o c1nema 29 .»
a reail!idade histór.ica é •igualmente equí·v oca 28 ». Resta-a:JJOS recuperar, de
D.iferent:es, OUitiJ.'IOs, os valores do ;passado 1podem ser para nós, ora
passagem, a noção da «obra-.pJ.'Iima»: não é dado a 1todos os :p oetas e a
um desaf,io, ora 'uma ,iJoopiração: o col11heo1mento da pedagogia antJiga, em
rodos os a;rtistas oferecerem à posteridade a llíada ou o Panténon. O que
que o papel da esoola é muito mais d1m.1nuto que o de um clube desrpor-
é .também um !facto hiiSit:óJ.'Iico!
tliiVO, o das associações de juventude, etlc., -1nsp1rou ou 1pelo menos deu
Bniúretan.to não é Jsto o ma1s :impor:tante. Reffi.eotÍIIlldo com malis pro-
força à bem coniheo1da :tese de I'V'run IH>icll que desqua:li:ffiloa a .esoola do
fundidade. descobr1mos que não há pJ.'Iiv:hlégwo epi:stemológioo para <~as
lugar que ocupa n:o nosso si!Stema de educação. Mesmo que não se mani-
obras que merereram permanecer»; não são elas somenrte que podem
feste oom ev:idênoia, o oonheoimento destes vMores P'emlla nece uma aqui-
ser tratadas como VIÍJVas e num cento •sefiltÍido eternas. Não façamos das
sição preciosa para •a nossa cultura porquanto enr.iquece a nossa eX:periên-
<~aot1v:iJdades de valores» .produtoras de «obras» (oote, ciência, pensa-
cia humana - o que é muito ma1s do que simples prazer estwoo. «Quem
mento), um•a ootegoria à 1par:te: 1toda a '310tiv:idade humana é igua[mente
se lilnteressa hoje ainda oom a democracia ateniense?» ip erguntava o lllli-
impregnada de vooor, produtora d:e valores; nada do que o homem faz
:nistro 11 gnaro- e, oo entanto, milni:stro da Bduoação- a 1U ffia delegação
é gratuiro (quantos 'b clos estudos hi:s.tÓJ.'Iioos furam dedica:doo à noção de
de professores de históvia :antiga. A .r esposta é simples: aqueles que aillnda
<~jogo>>). Ora, rodo o 'VIallor humano, porque foi humai!1JO, pode ser :redes-
são capazes de ta!preoia;r os seus valores exemplares!
cobet1to, novamente 3!pf00iaoo, recuperado, se SUIJ.'Ige um histol'iador caJPaz
Uma vez bem oom:preend1ida, esta noção centrail de «vaJores», leva-
de o rompreender.
~ os comportamentos mais a~beJ.'Irantes em ,r elação às nnrm.as oo-
-nos, para •temlinar, a refrear o entuS!LlliSillO eX~CeSS1vo que provoca hoJe
moos 1110 nosso meio s.oaioa[: P. Veyrne toma ailgures, oomo exemplo, os a rustóJ.'Iia ma1Jem•llltimnte. Bntre os homens de outrora que desoobr1mos
alternadamente tão próXImos ou tão difeJ.'Ientes de nós, há alguns que se
sacrifídos de cJ.'Iianças :na religião canancia e púnioa. Quando, em li Reis
3,27, lemos oomo Mesha, re:i de Moab, duramente siltJiado 1pelos exércitos revelam g;ranldes, .i!Sto é, nós ~Vemos que os v$ores redescober:tos neles
merecem atenção, oonsilderação, admiração. Bste juízo de valor não per-
21 K. Marx, lntroduction gánárale à la critique de l'economle politique, Oeuvres, Gal· manece necessariamente rubjeotJiiVO; pode ser !palr.ti:lhado 1por roda uma
limard, <<Bibl . de la Pléiade». t. I, p. 266.
28 V-er acima, p. 167. 29 P. Veyne , op .. cit. , p. 53.

282 283
DO CONHECIMENTO HIBT6RIOO

época e oontdbwir paTa definir o seu Zeitgeist ~assim. a ·redescoberta da


Antiguidade: na Renascença, a do heleruismo no :tim do séc. XVIII, ou a
oomrpreensão, nos nossos dias, da música «an~ilga>>, ,isto é, alillterior à mú-
sica clássica que vai de Bach 'a Beetlhoven).
Redesoobrimoo aqu~ o uso legíltimo não só da noção de obra-p1.1ima,
mas ~também da de grande homem, de géillÍIO - e ,isto para a <(hi;Sitória de
menmtidade:s», 1hoje mmto apreciada. Contra os noosos neo-cien~ÍSII:as, P.
Veyne teve o mértÍJto, mais uma vez, de denurroiar os 1imtirt:es daiS <<inves-
tigações es~tístJicas em maté1.1ia de mentailiidade:s 30». Reiteremos o que
dizíamos -aoim:a 'aceoca de uma obra popul·ar de gmnde rtiragern: não é
verdade que o OOillhooimento quantitatilvo do que as pesooas de uma época
liam, do que e:Ias produziam e dos números correspondentes, ti10S forne-
oerá uma lm'aJgem mais saroisfatória, mais ver;dadei,ra rdo 1seu meio oulrturaJ
do que o estudo dos oous «gr3111ides» escritores. A histó11ia deve praticar
as d!uas 'ÍII:1ivestJigações, porque os casos excepcionais 'lançam uma luz pro-
~unrda ne:sse meio e ne~S~sa época que tomaram possí'Vel o nasoirne:nto de
gr3111ides homens, os quais actu:alizlam, desenvol'Vem aquelas Jliquezas de
uma ouJ,tul.'la que: a massa dos contemporâneos só ,iJmplücitamente possuíam. ÍNDICE
O que eles pode11i:am e d!evedam ser ·revela-se na obra dos :seus mdhores.
Uma paJaiVm para f,Íin!aJliz,a r: :se ,todo o conheoimento possw :um valor
Introduç~o - A filosofia crítica da história .. ..... .. .. ... ............. .......... .... 7
pelo próp!lio faoto de oor um conhecimento verdadeiro, 'a redução da
htis.tó1.1ia ao mero prazer de conhecer parece uma justJif.iJOação demasiado 1. A história como conhecimento ........ .. ........ . ....................... .. ....... 25
insUifiicienrtJe :pam uma :sooiedade como a nossa, tão utilliml1i:a, tão preo- 2. A história é inseparável do historiador ........ ...... ..... .................... 45
cupada 1oom o rendimento: o en1.1iquecime:nto tda cultura presente aJtravés 3. A história faz-se com documentos .... ...................... .... ............ .... 61
da ,r eouperação dos valores do passado é, em def,ÍIIlÍitirvo, o ún~ argu-
4. Condições e meios de compreensão ............. .......... .................... 87
.mento que :pode jmtlif,ioar, em últim·a anál:ise, o esforço do histociador aos
olihos daqueles que, como vimos, oo sentem tão ,tJen'tJados a pôr em causa 5. Do documento ao passado .......... ...... .... ..................................... 109
o saber. 6. O uso do conceito ... ..... ......... .... .. ................. .... .. ... ... ................... 131
7. A explicação e os seus limites ............. ...... ....... .......................... 151
8. O existencial em história .... ............... ....... ......... .... ...... ......... ..... 183
9. A verdade da história ... ... .. ... ..... .. ................... .. ................... .... . 199
10. A utilidade da história .. ... .... ..... ............... ... ................... ............ 219
Conclusão: A obra histórica ........... .. ................................. ............... 247
Apêndice: Resposta às objecçõ es .... .... .. .. ...... .... .............................. 259
1. A fé histórica (1959) ... ....... .... ..... ....... ... ..... ........................... 259
ao P. Veyne, «L' histoire conceptualisantell, in J. Le Goff et P. Nora, Faire de l'histoire, 2. História, verdade e valores (1 975) ... .............. .................... .. .. 273
t. I, p. 80.

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