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AS RELIGIÕES AFRO-BRASILEIRAS E A CIDADE

Marcia Contins
Marcia Contins*

Comparando experiências religiosas

As imagens da cidade não somente permitem como suscitam um trânsito e trocas intensas entre seguidores de diferentes religiões e
segmentos sociais. O fluxo e o diálogo entre fronteiras religiosas e étnicas permitem novas representações em termos de categorias
espaciais e sociais. Este artigo pretende refletir sobre a presença das religiões afro-brasileiras no espaço urbano contemporâneo. As
estreitas, tensas e ambíguas relações entre a igreja católica, os neopentecostais e as religiões afro-brasileiras, tais como o candomblé e a
umbanda no Rio de Janeiro, tornam possível uma rica discussão. Minha pesquisa atualmente está voltada para descrever as diversas
formas de enquadramentos religiosos no espaço urbano realizados por diferentes grupos religiosos, especialmente aqueles relacionados
às religiões afro-brasileiras. Darei ênfase, principalmente, às mudanças na forma de viver a religião na contemporaneidade e à maneira
como essas mudanças se expressam nesses diversos universos religiosos.

O foco dessas reflexões são as relações entre religião e contexto urbano, analisando o fato de que determinados grupos religiosos
distinguem-se a partir de sua modalidade de inserção no espaço da grande cidade moderna, no caso a cidade do Rio de Janeiro. Exploro
os vínculos de natureza social e cultural na experiência desses grupos, sobretudo nos processos de apropriação do espaço da cidade,
assim como os vínculos de natureza cosmológica expressos por categorias mágico-religiosas, valorizando, desse modo, o ponto de vista
nativo para o entendimento de suas experiências (Contins, 2005, 2009; Contins e Gomes, 2007, 2008).

Este último aspecto desempenha papel relevante na comparação entre essas experiências religiosas, principalmente no que se refere às
religiões afro-brasileiras e à relação de oposição entre estas e os grupos pentecostais e carismáticos católicos. Localizados em diversos
pontos da cidade do Rio de Janeiro e associados a distintas identidades religiosas, esses grupos partilham a experiência de terem suas
práticas e representações moldadas pela sua participação em determinados circuitos religiosos e de sociabilidade.

Tais grupos elaboram representações dessa experiência em função mesmo de estarem inseridos em distintas tradições religiosas e
étnicas. Nesse sentido, ofereceram um campo metodologicamente privilegiado para a comparação. É importante destacar as relações
sociais a partir das quais são construídas essas concepções enquanto matrizes de identidades socioculturais e étnicas, centrando a
atenção nas funções sociais e simbólicas que desempenham essas representações nos processos de construção de distintas
modalidades de autoconsciência individual e coletiva. As discussões sobre as relações e as experiências desses grupos religiosos passam,
necessariamente, pelo  seu permanente deslocamento e circulação no espaço da grande cidade e pelo aprofundamento da noção de
“circuitos urbanos”[1]. Esses estudos também exploram as repercussões que tais deslocamentos e circulação exercem sobre as
autorrepresentações desses grupos.

Antes de analisar essas experiências, com alguns exemplos do meu trabalho de campo atual, gostaria de tratar aqui da minha trajetória
como pesquisadora dessa área de estudos e como cheguei a trabalhar com a discussão sobre religiões afro-brasileiras e a cidade.
Exploro também as transformações dentro desse campo de estudo.

As religiões afro-brasileiras e o espaço da cidade na década de 1970 e 1980: o trabalho de campo do antropólogo

Durante as décadas de 1970 e 1980, realizei pesquisas sobre umbanda e candomblé no Rio de Janeiro, especificamente na Baixada
Fluminense. Naquele tempo eram poucas as igrejas pentecostais existentes naquela área e por outro lado havia inúmeros terreiros de
umbanda e candomblé. Eram todos terreiros locais, ou seja, com clientela basicamente do próprio bairro, apesar de receberem
eventualmente pessoas de outros locais.

O lugar desses centros de umbanda para a vida do bairro foi analisado em um artigo que produzimos na época, “Gueto cultural ou a
umbanda como modo de vida” (Maggie e Contins, 1980). Naquela ocasião realizávamos um trabalho de campo em locais considerados
mais distantes do centro da cidade. Quanto mais distante socialmente e geograficamente de nós pesquisadores, mais “autêntico” o
campo. Em geral eram locais menos urbanizados, com ruas sem asfalto e também com poucos meios de transporte. O trajeto para esses
locais da Baixada Fluminense passava necessariamente pela Via Dutra e depois por caminhos estreitos, geralmente de terra, até
chegarmos nas casas que abrigavam os terreiros. Era frequente dormirmos nos locais de pesquisa, já que as sessões de umbanda e
candomblé duravam a noite toda e só pela manhã terminavam. Pensávamos, naquele tempo, que havia uma distância social e
psicológica significativa entre nós e o grupo que iríamos estudar.
A experiência de campo era muito marcante e toda a interpretação que construímos parecia diminuir e simplificar a realidade vivida
pelas pessoas. O importante, naquele momento, era trabalhar a partir do ponto de vista nativo, ou seja, perceber o significado da religião
para suas vidas como um todo. Percebemos que, nesse tipo de situação religiosa, na umbanda principalmente, havia uma relação
profundamente estreita e imbricada entre o cotidiano e o universo ou domínio religioso.

Esses terreiros funcionavam como um centro criador de relações simbólicas, sociais e econômicas. Tratar a umbanda apenas como uma
religião seria deixar de perceber uma dimensão mais ampla desse fenômeno, já que toda a vida das pessoas do bairro estava
relacionada com o que se passava e se formava a partir dos terreiros. Chamamos de “modo de vida da umbanda” esse tipo específico de
relação social, econômica e ideológica criada a partir dos terreiros (Maggie e Contins, 1980).

A Baixada Fluminense, naquele momento, e o bairro que estudamos em particular, viviam uma situação de isolamento social e espacial.
Partimos de um estudo de caso a partir da descrição do bairro, da história do terreiro, de sua organização social e econômica. O terreiro,
neste caso estudado, era o centro de onde era gerada grande parte das relações sociais, econômicas e simbólicas vividas pelo grupo.
Enquanto “guetos culturais”, esses terreiros estavam distantes dos centros de decisão, de emprego, do poder público e centralizavam a
produção cultural desses grupos.

O trabalho de campo e as análises  realizadas em situações específicas, em um único terreiro ou grupo, durante as década de 1970 e
1980, faziam um contraste significativo com relação às análises de desenvolvimento econômico e social realizadas nas décadas
anteriores, estudos estes com enfoque mais generalizantes. Havia um debate também, nesse momento, com os autores que trataram a
umbanda como sintoma de um processo de urbanização da cidade.

O livro Guerra de Orixá: um estudo de ritual e conflito, por exemplo, inaugura essa mudança no fazer antropológico, escrito, segundo a
autora, “em meio a um turbilhão de mudanças no país e na antropologia brasileira” (Maggie, 2001, p. 7). Ainda de acordo com ela, a sua
geração, que ficou impedida de se expressar por meios políticos nas décadas de 1960 e 1970, tentou por meios menos ortodoxos uma
outra descrição do país. Em termos da antropologia das religiões afro-brasileiras, os enfoques ficaram mais centrados em campos
específicos, em estudos de caso, e dessa forma rompem com os estudos sobre a busca da origem dessas religiões, relacionada a uma
autenticidade africana. O lugar da África estava agora nos próprios terreiros.

Na década de 1980, vários autores discutiam o papel da autoridade etnográfica e as pesquisas buscaram trabalhar com narrativas dos
próprios “informantes”, agora também como autores. Pesquisando comparativamente os negros pentecostais norte-americanos e
brasileiros na década de 1980 e no começo de 1990 (Contins, 1995), tentei não privilegiar apenas a minha interpretação e análise dos
grupos estudados, mas iluminar o fato de que a minha voz era apenas uma das muitas vozes que iriam aparecer na pesquisa.

As minhas dúvidas com relação ao modo tradicional de interpretação etnográfica foram surgindo a partir do momento em que eu não
estava mais satisfeita com a discussão antropológica de olhar o “nativo” como um “outro”, separado do etnógrafo e principalmente
possuidor de uma verdade intrínseca que precisava ser desvendada por mim ou por outros pesquisadores. Minhas interpretações só
foram possíveis a partir do momento em que eles também, não apenas enquanto objetos de estudo, mas enquanto interlocutores num
diálogo, possibilitaram diversas interpretações de suas vidas e de suas crenças religiosas.

Os chamados “nativos” não estão lá apenas para serem observados e analisados; se fazem presentes enquanto participantes ativos que
falam sobre si mesmos e são, até certo ponto, coautores do texto final. Essas questões, colocadas por alguns antropólogos norte-
americanos na década de 1980, levam em conta as condições de coleta de dados de campo que envolvem dimensões intersubjetivas,
jogando luz nas relações de poder que se estabelecem entre antropólogos e o grupo pesquisado, afetando assim as interpretações
elaboradas no texto etnográfico.

Silva (2005) aponta para o que chama de “diálogo etnográfico”. Ele relatou, a partir de sua própria experiência de campo como
pesquisador, como adepto do candomblé, e por meio das entrevistas com os outros pesquisadores, a relação de diálogo mantida com os
observados. Nesse sentido, o entendimento da observação participante vai muito além de uma simples técnica ou de um procedimento
metodológico adotado pelo pesquisador para conhecer a comunidade estudada.

O livro discute, na perspectiva do diálogo etnográfico, a participação ativa dos antropólogos nos rituais de iniciação das religiões afro-
brasileiras e, em alguns casos mais extremos, a própria conversão destes a essas religiões. É possível, do ponto de vista do antropólogo,
ter acesso ao grupo religioso apenas como observador ou é preciso observar de dentro, tornando-se nativo? O autor não traz, enfim,
uma discussão ingênua da problemática do trabalho de campo, mas situa essa discussão dentro da questão do diálogo que o etnógrafo
mantém com os seus pesquisados.

Esses estudos levam em conta a perspectiva dos observados, a maneira pela qual os grupos religiosos se apropriam tanto do texto
escrito pelos antropólogos, quanto dos possíveis resultados da pesquisa para a comunidade estudada. Nessa perspectiva, os diálogos
entre observados e etnógrafo são intensos. Os próprios pesquisados descrevem o processo de pesquisa do qual participaram, centrando
a atenção na presença do antropólogo no grupo religioso, na relação que este mantém com eles e suas participações nos resultados da
pesquisa.

As religiões afro-brasileiras e os movimentos sociais: diálogo entre a academia e o movimento negro

Desde a década de 1970 e principalmente a partir de 1988, a relação das religiões afro-brasileiras com a sociedade foi intensificada e
diversificada a partir dos vários movimentos e de suas redes sociais. Diversos pesquisadores analisaram em alguns artigos os efeitos
dessas redes para a realização de diferentes eventos relacionados aos 100 anos da abolição da escravatura. Em 1988 se realizou um
estudo desenvolvido a partir da Coordenação Interdisciplinar de Estudos Culturais (ECO/UFRJ) em conjunto com o Núcleo da Cor da UFRJ,
com apoio da Fundação Ford. Esse estudo foi realizado a partir de um mapeamento das muitas visões da abolição, tendo como
perspectiva surpreender as relações raciais no Brasil cem anos depois da abolição (Contins, Strozenberg e Maggie, 1997).

Um dos resultados desse levantamento foi a produção de uma valiosa coleção de documentos a respeito de tudo o que se fez no ano do
centenário. O interessante desse trabalho foi o diálogo entre os discursos produzidos pela academia e aqueles produzidos por militantes
dos movimentos negros e também por pessoas que não estavam engajadas em nenhum dos dois mundos. Militantes e acadêmicos,
mesmo ocupando posições diferenciadas quanto ao engajamento na luta contra a discriminação, conversam entre si e compartilham
visões semelhantes de nação, de indivíduo e de cidadania.

Ainda repercutindo as comemorações dos cem anos da abolição, em 1988, meu livro Lideranças negras (Contins, 2005) voltava-se para
aqueles que foram os promotores de parte significativa daqueles eventos. Nosso propósito era ouvir lideranças femininas e masculinas
dos movimentos negros no Rio de Janeiro, principalmente sobre sua experiência de militância na década de 1970. Esses anos foram
bastante significativos, na medida em que os movimentos negros intensificaram sua luta contra a discriminação tanto de cor quanto
social.

Vale ressaltar ainda que os depoimentos reunidos apresentam um caráter que ultrapassa o aspecto propriamente político ou doutrinário
dos movimentos negros. As entrevistas trazem uma notável riqueza existencial percebida através das diversas narrativas que
enquadram as experiências biográficas e políticas dos entrevistados. São histórias de vida de indivíduos, de famílias, de relações de
parentesco, de experiências religiosas, de vizinhança em diversos lugares do Brasil mas principalmente na cidade do Rio de Janeiro. Essas
narrativas desempenham um papel fundamental nos processos de construção de imagens da experiência de ser negro no Brasil em uma
determinada época.

Outros estudos também foram realizados durante as décadas de 1990 e 2000 sobre a circulação e os efeitos de noções como as de “ação
afirmativa”. Aproximadamente com trinta anos de diferença em relação às primeiras iniciativas de ação afirmativa nos Estados Unidos,
essa discussão pode ser vista em parte como um dos resultados do chamado “ressurgimento do movimento negro no Brasil”, que se
verifica a partir da década de 1970, para movimentos negros no Rio de Janeiro e em São Paulo. As organizações que discutem a questão
racial desenvolveram um trabalho significativo, pondo em perspectiva as desigualdades existentes entre brancos e negros. Apesar das
diversas tentativas de conscientização da sociedade para o problema, propostas mais eficazes que atendessem à população negra se
mostraram pouco aceitas. Assim, o movimento negro chegou na década de 1990 buscando reformular suas iniciativas, também no que
se refere à relação entre militância e academia.

Setores desses movimentos concluem que é necessário garantir a realização de políticas públicas, governamentais ou não, que atendam
à população negra. Posições contra e a favor da ação afirmativa, nas suas diversas modalidades – política de cotas, ação compensatória e
outras estratégias visando favorecer um maior acesso dos grupos discriminados à educação e ao mercado de trabalho –  integram uma
discussão atual e revitalizada no centro dos movimentos negros. Esses debates levam em conta a conjuntura nacional e internacional, a
situação da população negra brasileira, os mecanismos de discriminação e a política da “democracia racial” para avaliar a eficácia da ação
afirmativa como instrumento de combate à discriminação. As religiões afro-brasileiras são citadas como peça fundamental para esses
movimentos sociais, especificamente para os movimentos negros. Elas emergem, nesse momento, como personagens no espaço
público. Se antes as religiões afro-brasileiras estavam restritas a espaços privados, elas agora adquirem visibilidade no espaço público.
Isso se realiza principalmente por meio do discurso e das práticas dos movimentos negros. Nesse momento, para parte dos movimentos
negros, “ser negro” é uma categoria definida primordialmente pelas religiões de origem africana. É preciso assinalar, no entanto, que
esse quadro merece uma qualificação. Para muitos esse vínculo religioso não é exclusivamente mediado pelas religiões africanas. Muitos
assinalam a presença significativa de negros nas religiões evangélicas.

Registro dos terreiros de umbanda como patrimônio cultural: a relação com as outras religiões na cidade

As pesquisas voltam-se também, neste momento, para a discussão sobre o espaço da cidade. O trânsito entre as religiões configura um
novo espaço em que os pesquisadores realizam suas pesquisas. A presença atual de pesquisadores e de entidades oficiais que procuram
esses grupos para realizarem o registro de seus terreiros como “patrimônio imaterial” também intensifica o diálogo. “Virar patrimônio” já
faz parte de seus horizontes (Bitar, 2011). Do ponto de vista desses grupos, essa experiência não necessariamente os congela como algo
do passado, mas permite que sejam reconhecidos publicamente como grupos atuantes e com possibilidades de mudança.

Nas últimas décadas, como vários autores já vêm assinalando, o espaço religioso vem se modificando no contexto das grandes cidades
(Maggie e Contins, 1980; Silva, 1992, 2005; Mariz e Machado, 1998; Contins, 2003; Contins e Gomes, 2007, 2008). Uma das características
desse processo é o crescimento e a visibilidade alcançados pelas denominações evangélicas pentecostais, em especial das chamadas
neopentecostais, além do aumento de igrejas católicas com características carismáticas como o Movimento de Renovação Carismática
Católica (MRCC). Ressalte-se que as mudanças não se dão apenas externamente na relação que estabelecem com e no espaço público,
mas também internamente às confissões religiosas envolvidas. Os terreiros de umbanda e candomblé tiveram que dividir seu espaço,
nessas áreas, com as igrejas pentecostais e neopentecostais. O ponto que quero frisar é como esses grupos afro-brasileiros se colocam
diante do fato do crescimento dessas religiões na cidade.

Enquanto as igrejas evangélicas mais antigas, que já atuavam em locais onde havia predominância da Igreja Católica e de terreiros de
Candomblé e Umbanda (como na Baixada Fluminense), privilegiam atividades religiosas voltadas à congregação e à população local, as
igrejas neopentecostais apresentam características distintas. Essas são igrejas voltadas para receber um grande público, diferente das
igrejas pentecostais mais tradicionais, como a Assembleia de Deus, além de disporem de um público fixo, investindo em uma clientela
difusa e móvel.

Sua arquitetura também se distingue das construções das pequenas igrejas de bairro, que ainda existiam nas décadas de 1970 e começo
de 1980. Uma das características importantes está em sua localização, geralmente no entroncamento de grandes avenidas, expostas aos
permanentes deslocamentos da população. O grupo reconhecido como  “renovação carismática”, apesar de atuar na esfera da própria
Igreja Católica, também realiza missas e eventos voltados para um grande público. Essa característica reflete-se na escolha do local que
será utilizado para a realização dos eventos e na própria relação que se estabelece com o espaço da cidade. Os grupos afro-brasileiros
tiveram que conviver com o aumento do número de igrejas neopentecostais e carismáticas e também com a arquitetura monumental de
suas igrejas, possibilitando receber, de uma só vez, uma quantidade enorme de fiéis. No espaço da cidade, desenha-se um contexto de
pluralidade em que a prática religiosa tem sido mais transitiva, e a procura por novas experiências ultrapassa seus espaços originais. Um
dos pontos relevantes que percebemos a partir dessa nova configuração religiosa no espaço urbano, foi o lugar das religiões afro-
brasileiras.

Os terreiros voltados para o grande público

Verifiquei, em pesquisas recentes, algumas iniciativas ligadas às casas de candomblé e umbanda voltadas para o grande público: uma
aproximação com a mídia, por meio de programas em rádios locais e na televisão e a produção de cursos sobre história da África
realizados em barracões de candomblé na Baixada Fluminense, além de cursos de línguas africanas, produção e divulgação de CDs e
vídeos sobre seus rituais, tendo em vista diferentes entidades do candomblé. É uma espécie de diálogo que se estabelece com o grande
público, que não fica mais restrito às pequenas casas ou terreiros situados na Baixada Fluminense. O que se observa hoje são as
diferentes casas de candomblé e umbanda no Rio de Janeiro que privilegiam a relação com o mercado, com a universidade e com os
movimentos negros.

Comparamos alguns grupos relacionados às religiões afro-brasileiras no subúrbio e na zona Oeste do Rio de Janeiro como exemplo de
diferentes grupos afro-brasileiros que inovaram seus rituais, com a construção de terreiros maiores e que têm como meta aproximar-se
de um público mais amplo. São eles um barracão de candomblé localizado em Vila Valqueire, um em Irajá e um terceiro em Anchieta.
Analisamos, a partir da discussão sobre ritual e performance, a importância desses barracões para a comunidade local e também para
além desses bairros. Comparando os dois primeiros terreiros, que possuem uma importância local bastante forte, ou seja, durante os
rituais há uma enorme troca e participação de diversos terreiros da região, com o barracão de Anchieta, verificamos que a diferença com
relação aos dois primeiros estava justamente na forma de “espetáculo” que este último assumia durante os seus rituais.

As festas realizadas no barracão de Anchieta para as entidades do candomblé eram feitas em um grande salão com a participação de
uma grande audiência de fora do bairro. Os rituais são filmados e gravados em CDs que depois são vendidos no Mercadão de Madureira.
Esse pai de santo tem um programa semanal numa rádio e se apresenta em programas de televisão. Ao mesmo tempo, percebemos que
os rituais internos (só para as pessoas do próprio candomblé) tem importância fundamental para a continuidade desse barracão,
enquanto que o ritual como espetáculo, no entanto, faz parte dessa relação com o grande público. A sua forma arquitetônica é também
bastante significativa na relação que se estabelece entre as religiões afro-brasileiras e as outras religiões, já que ela se aproxima da
forma de arquitetura das igreja neopentecostais. Em lugar de ser um terreiro tradicional, a casa onde fica o terreiro se assemelha a uma
igreja com três andares. No primeiro andar fica o salão onde o ritual para as entidades são realizados. Neste salão, pessoas de diversas
partes da cidade comparecem. Um membro da comunidade filma o espetáculo e depois esse CD é colocado à venda. Ao lado da casa há
uma entrada para a parte de baixo do terreiro, onde ficam as obrigações de santo, e é também o local onde os membros do terreiro se
vestem e se preparam para os rituais. É uma espécie de bastidor da casa, onde somente as pessoas de dentro podem ficar; os
convidados assistem tudo no salão que tem a forma de um teatro, com bancos ao redor do palco. Atualmente, o pai de santo de
Anchieta já produziu mais de 20 CDs das suas festas, cada uma dedicada a uma entidade específica. A circulação desse objeto material
religioso, que não se restringe a apenas um CD de vídeo, fica exposto no Mercadão de Madureira em várias prateleiras das lojas. A
questão da autenticidade relacionada à africanidade dos terreiros baianos, neste caso, é construída a partir das imagens que são
distribuídas nos mercados pelo próprio autor. Esse pai de santo e alguns membros do terreiro elaboram um ritual específico para uma
plateia, ensaiam os participantes, filmam em DVD e os distribuem no mercado para venda.

Em outro estudo de caso, destaco a questão da crescente importância das procissões religiosas de umbanda realizadas pelo Centro
Espírita São Miguel Arcanjo em Magé, na Baixada Fluminense. O Centro Espírita São Miguel Arcanjo fica localizado no centro de uma área
correspondente a três terrenos de aproximadamente 360 m2, cada um. O terreiro tem a denominação do santo que é o protetor do líder
religioso, São Miguel Arcanjo, e Ogum-Megê como Orixá chefe da Casa. O centro espírita conta com aproximadamente 300 integrantes.
No entanto, contando aqueles que já passaram pela casa de culto, tendo agora os seus próprios centros espíritas, tem-se um número
maior ainda, de mais ou menos três mil integrantes.

Existem, estimativamente, 70 terreiros filiados ao Cesma, oriundos de filhos, filhas, netos e netas, bisnetos e bisnetas-de-santo. A maioria
dos centros fica localizada no Estado do Rio de Janeiro, havendo um em Brasília e outro em São Vicente, São Paulo, e um em fase de
abertura no Rio Grande do Sul; todos foram espalhados a partir do Cesma. Os médiuns ou filhos e filhas-de-santos e frequentadores,
consulentes, são de vários bairros, cidades, inclusive de outros estados, também de camadas sociais diversas da população e de
diferentes grupos étnicos, desde empregadas domésticas, donas de casa, garis, até promotores de justiça, prefeitos e políticos locais.
A procissão de São Miguel Arcanjo, ou de Ogum Megê, é realizada sempre no mês de setembro, no qual todos os filhos de santo
participam, além dos terreiros filiados com os seus filhos e filhas de santo, netos e netas de santo. A procissão percorre todo o centro do
município de Magé, com saída e retorno ao centro, cantando músicas em homenagem ao seu padroeiro e o Hino da umbanda,
alternados. Nas ruas por onde a procissão passa, as pessoas aguardam em seus portões ou janelas, com velas acesas e copos de água;
na praça principal, um aglomerado de pessoas a espera.

A procissão, ao mesmo tempo em que é um ato religioso, além dos limites do seu terreiro, é um ato social. Faz parte não só do
calendário religioso, como também do profano, já que a cidade fica receptiva a sua passagem. Há uma relação direta com o calendário
religioso católico. As pessoas que assistem à procissão não necessariamente são umbandistas e na passagem pelas igrejas pentecostais
e mesmo católicas não há nenhuma restrição, pelo menos mais recentemente. Segundo o pai de santo, no início, quando começou a
realizar a procissão, eles não eram bem recebidos pela igreja católica e muito menos pelos pentecostais.

No depoimento que o pai de santo nos deu, ele descreveu a mudança do comportamento das outras religiões com relação à procissão.
Antes, havia muita reclamação e disputa, as igrejas neopentecostais fechavam as suas portas e eram contra a procissão. A igreja católica
local também mantinha as portas fechadas nesse dia. Atualmente, há uma clara receptividade da igreja católica e as pentecostais não se
manifestam. Isso, no entanto, não quer dizer que não haja, no dia a dia, disputas em torno da eficácia de cada religião e na
administração do espaço de cada uma. Uma entrevistada, também filha de santo desse centro e com seu próprio terreiro bem próximo
do dele, disse que montou seu terreiro na própria casa.

Há também, nesse contexto da Baixada Fluminense, um forte trânsito religioso entre os membros pertencentes a várias religiões.
Entrevistando essa mesma filha de santo, soube que por questões de família e doença deixou de se filiar ao centro espírita de umbanda
e se tornou evangélica. Durante alguns anos passou a frequentar uma igreja neopentecostal, e mais tarde voltou a procurar o pai de
santo. Agora tem seu próprio terreiro.

No final, depois de darem a volta por toda a cidade e serem vistos por todos que estão à espera da procissão, os participantes retornam
ao centro espírita. Na procissão, o centro espírita traz para a rua seus objetos rituais, suas crenças, e a relação com a cidade se torna
mais visível e mais próxima.

Considerações finais

No trabalho de campo que venho realizando com esses grupos religiosos, percebi a enorme proximidade social e cultural entre eles. Há
um grande fluxo entre pessoas que saem das religiões afro-brasileiras e se tornam evangélicas, geralmente para igrejas próximas ao seu
terreiro de origem ou para locais que já conheciam, perto de suas casas. Do mesmo modo, existe também um trânsito religioso de
pessoas que retornam às religiões afro-brasileiras. Foi fundamental perceber, nos relatos biográficos dos entrevistados, de suas histórias
de vida pessoal e religiosa, as interpretações que realizam sobre suas experiências religiosas, sobre os objetos e rituais religiosos e de
que maneira convivem com distintas interpretações, ora pela umbanda e pelo candomblé, ora pelo neopentecostalismo.

O momento de crise em suas vidas religiosa e pessoal possibilita a mudança de religião. Nesse sentido, na medida em que esse acesso
ao sagrado se dá no universo de uma grande metrópole moderna (Rio de Janeiro), essas práticas tendem a assumir, além de sua forma
ritual, o caráter de “espetáculos”, em razão mesmo de atender a uma clientela que se caracteriza por seu elevado índice demográfico. As
narrativas sobre a memória coletiva também são fundamentais  para entender as formas de apropriação dos espaços e dos objetos nas
construções de identidades individuais e coletivas. As diferentes narrativas sobre subjetividade, encontradas nos grupos acima
selecionados, apontam para a importância das  religiões afro-brasileiras no contexto da grande cidade.

O movimento permanente de incorporação e diferenciação de estilos de vida e visões de mundo distintas é característico da grande
cidade (Simmel 1971, 1968; Velho, 1980, 1994, 2010). No mesmo sentido, a vida cosmopolita oferece possibilidades e alternativas ao
indivíduo por meio das redes de pertencimento, sistemas de troca, mediações e trocas contínuas inscritas no contexto da cidade. O fluxo
entre fronteiras religiosas e reinterpretações das orientações institucionais admitem novas representações em termos de categorias
espaciais, sociais e étnicas. A utilização do espaço da cidade pelas diferentes religiões proporciona novas formas de percepção sobre o
fenômeno religioso, redefinindo as diversas formas de apropriação desse espaço por meio da experiência religiosa.

Os atores sociais estabelecem múltiplos vínculos e elaboram diferentes e criativos arranjos coletivos nos usos da cidade. Terreiros que
antes pareciam muito distantes, hoje parecem bem próximos. No trabalho de campo que realizávamos na década de 1970 e 1980 havia
uma distância muito grande entre pesquisadores e pesquisados, distância física e social. Hoje, a ida a algum terreiro da Baixada
Fluminense não parece tão distante. A cidade era imaginada como espacialmente distante e diversa. A questão da autenticidade estava
nesse “outro” distante. Mas hoje talvez ela não esteja precisamente em lugar algum. A fonte da autenticidade pode estar ligada aos
registros dos terreiros; mas pode ser construída também pelos próprios participantes das religiões e de sua rede de sociabilidade.

Como procurei demonstrar, as diferenças entre as várias religiões na cidade podem ser percebidas tanto no aspecto da arquitetura de
suas igrejas, templos ou terreiros, quanto no aspecto de suas performances e rituais, e nas formas de autorrepresentação desses grupos.
As imagens que cada grupo religioso tem de si mesmo e dos outros acompanham as transformações da cidade.

* Marcia Contins é professora associada de Antropologia do PPCIS/Uerj e pesquisadora do CNPq. Doutora em Comunicação e Cultura
(UFRJ), mestre em Antropologia Social (MN/UFRJ), publicou Lideranças negras (Aeroplano, 2005) e “O caso da pomba gira: reflexões sobre
crime, possessão e imagem feminina” (Ideias e Letras, 2009).

[1] Aproximo a definição de “circuitos urbanos”  da noção de “fluxos” em Hannerz (1980), e com isso  pretendo destacar os aspectos de
permanente deslocamento e circulação desses indivíduos e grupos.

Referências:

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