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R. Museu Arq. Etn., São Paulo, n. 21, p. 17-30, 2011.

A sociedade sambaquieira vista através de sexo e gênero

Maria Dulce Gaspar*


Maria Luiza Heilborn**
Eliana Escorcio***

GASPAR, M, D., HEILBORN, M. L., ESCORCIO, E. A sociedade sambaquieira vista


através de sexo e gênero. R. Museu Arq. Etn., São Paulo, n. 21, p. 17-30, 2011.

Resumo: A pesquisa em sambaquis é um tema fundador da arqueologia


brasileira e existe uma extensa e variada produção científica sobre esse tipo de
sítio arqueológico. Entretanto, a grande maioria dos estudos sobre a socie-
dade que colonizou o litoral preocupa-se em enquadrá-las em modelos de
classificação que não contemplam em suas análises os diferentes segmentos
sociais que as integram. O estudo sobre gênero é um caminho profícuo para
identificar e caracterizar segmentos sociais que compartilham o mesmo es-
paço e ideologia. Tendo por pano de fundo a trajetória do conceito de gênero
nas ciências sociais e seus desdobramentos para a arqueologia de sambaquis,
o artigo analisa elementos dos contextos funerários desses sítios identificando
a presença de construções simbólicas de extrema variabilidade que apontam
para aspectos da vida social dos pescadores-coletores do litoral do estado do
Rio de Janeiro.

Palavras-chave: Sambaqui – Pescadores-Coletores – Gênero – Organização Social.

Introdução princípios do evolucionismo social e destaca-se


a preocupação em estabelecer se os pescadores-

O estudo dos sambaquis confunde-se


com a própria formação do campo
de Arqueologia no Brasil. No início, o debate
-coletores que colonizaram o litoral brasileiro,
por volta de sete mil anos atrás, estavam orga-
nizados enquanto bando, macro-bando ou se
consistia em estabelecer se estes sítios eram for- era uma sociedade complexa ou em processo de
mações naturais ou artificiais e, após a década complexificação (Uchôa 1973; Machado 1984;
de 1940, prevalecem questões norteadas pelos Lima e Lopez Mazz 1999; DeBlasis et al. 1998).
A arqueologia brasileira tem estudado a socie-
dade sambaquieira a partir da caracterização de
sua organização social sem identificar segmentos
(*) Museu Nacional da Universidade Federal Rio de sociais e estabelecer especificidades de seus dife-
Janeiro.<madugaspar@terra.com.br> rentes componentes no jogo político. São pou-
(**) Universidade Estadual do Rio de Janeiro. <marialuiza.
heilborn@gmail.com>
cos os estudos que se preocuparam em entender
(***) Museu Nacional da Universidade Federal Rio de Janeiro. a trama social, Gaspar (1991), Kneip (2004) e
Mestre em arqueologia MNRJ/UFRJ. <e.escorcio@terra.com.br> DeBlasis et al. (2007) dedicaram-se a identificar

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indícios de hierarquia entre assentamentos que descritiva disponível (Escorcio e Gaspar 2010).
integram um mesmo conjunto de sítios, Lima Parte do presente trabalho toma por base dados
e Lopez Mazz (1999) apontaram a existência e considerações levantados nesse estudo.
de diferentes segmentos sociais compostos por Por considerar que gênero é também um
líderes e não-líderes, Gaspar (apud DeBlasis et al. aspecto ordenador da sociedade sambaquieira,
2004) sugeriu a existência de grupos de afinida- é importante que se retome aqui a história de
de a partir da distribuição espacial de esqueletos formação desse campo de saber nas ciências
e Okumura e Eggers (2011) investigaram as sociais. Este artigo discute a universalidade da
especificidades biológicas dos indivíduos sepul- distinção sexo/gênero e leva em consideração
tados em uma mesma área funerária. Estudo que os princípios que norteiam as sociedades
sobre gênero é, também, um caminho profícuo nativas sul-americanas, em particular a socieda-
para entender o funcionamento da sociedade de sambaquieira, são distintos das sociedades
sambaquieira, ele permite identificar segmentos ocidentais em que foi cunhado o conceito de
sociais que compartilhavam o mesmo território, gênero.
ideologia e participavam do jogo político ineren- Com vistas a buscar especificidades do
te à vida social. modo de vida dos pescadores-coletores foram
Os estudos sobre gênero, no que se refere levantados os dados de sepultamento, em
aos sambaquieiros, bem como no que se refere especial dos acompanhamentos funerários em
à arqueologia brasileira como um todo, ainda associação a esqueletos identificados por sexo e
têm um longo caminho a percorrer (Lima 2003: idade, de dezoito sítios arqueológicos localiza-
136). A tese de Sene (2007), em contexto de gru- dos no estado do Rio de Janeiro, entre a baía de
pos horticultores do interior de Minas Gerais, Ilha Grande e Macaé, a partir de uma releitura
busca entender, a partir do estudo de rituais das arqueografias produzidas por Kneip (1977,
funerários e remanescentes ósseos humanos, as 1987, 2001), Kneip e Machado (1993), Kneip,
relações sociais e simbólicas sob o ponto de vista Machado e Crancio (1995), Livro de Tombo da
das elaborações de gênero. Rodrigues-Carvalho, Ilha da Boa Vista I (Nº 2118 a 2131), Machado
em sua tese de doutorado (Rodrigues-Carvalho (1984), Machado, Pons e Silva (1989b), Macha-
2004), analisa marcas de estresse ocupacional e do e Sene (2001), Lima (1991), Bezerra (1995),
procura identificar diferenças com relação aos Barbosa (2007), Tenório (2003).
sexos no contexto de grupos sambaquieiros do
litoral do estado Rio de Janeiro, explorando
novas linhas de investigação para o entendi- Sexo e gênero
mento das relações de gênero enquanto parte
de um conjunto mais amplo de relações sociais. Desde a década de 1970 as ciências huma-
O estudo de Escorcio e Gaspar (2005) é uma nas, as sociais em particular, foram marcadas
contribuição neste sentido. As autoras analisa- pela progressiva incorporação do conceito de
ram os acompanhamentos funerários presentes gênero. A distinção entre sexo e gênero cons-
no sítio Corondó em busca de indicadores titui-se numa ferramenta conceitual e política,
de diferenciação social e de gênero e a análise pois ela representou um forte argumento nas
empreendida confirmou a presença de indivídu- lutas políticas em torno dos direitos das mulhe-
os com status superior à maioria do grupo em res. Nessa diferenciação, o primeiro termo, sexo,
questão, de elementos que diferenciam adultos remete à natureza e, de maneira mais específica,
e jovens, e de elementos associados aos gêne- à biologia e o segundo, gênero, às construções
ros, entre os quais um aumento do prestígio culturais das características consideradas femini-
feminino ao longo do tempo. Em outro estudo, nas e masculinas (Scott 1990). Essas construções
as mesmas autoras ampliaram suas reflexões são percebidas como aspectos que mantêm
sobre gênero para o conjunto das sociedades relação com a biologia, mas não derivam dela e
sambaquieiras que ocuparam o litoral do estado variam (em diferentes contextos) (Shapiro 1981).
Rio de Janeiro, para as quais existe bibliografia Ao colocar em evidência o caráter arbitrário

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das noções de masculinidade e feminilidade, As abordagens que trabalham com a


a distinção entre sexo e gênero permitiu que perspectiva dos papéis mostram a construção
pesquisadoras e também militantes feministas cultural dos mesmos e esposam certa idéia do
salientassem a natureza eminentemente social social: elas tendem a conceber as relações entre
da subordinação das mulheres e, portanto, para os sexos a partir de pressupostos de costume e
sua possível alteração (Franchetto, Cavalcanti e estabilidade social e, em geral, tendem a descar-
Heilborn 1981; Mathieu 1991). tar a incorporação de mudança nesse arranjo
O conhecimento antropológico foi central social. Uma reflexão crítica dessa perspectiva
na reunião de elementos substantivos para pode ser observada no conceito de “sistema de
formular essa distinção. Contudo, como é sexo e gênero”, formulado por Gayle Rubin
natural no ofício científico, posteriormente (Rubin 1975), que postula que a assimetria
essa distinção tão difundida - e incorporada ao entre homens e mulheres presentes em múlti-
senso comum hoje em dia – foi também pro- plas sociedades deveria ser debitada às formas
blematizada. Em tempos atuais, o conceito de de organização social do sexo e da reprodução.
gênero passou a ser alvo de questionamento por Interpelando Lévi- Strauss (1976) na teoria sobre
ter suas raízes na tradição de pensamento que a circulação de mulheres, Rubin assevera que a
sustenta a diferenciação universal entre natureza desigualdade de distribuição de poder está na
e cultura (Strathern 1988). raiz da apropriação pelos homens da capacidade
reprodutiva do sexo feminino. Essas idéias são
Histórico do conceito centrais no desenvolvimento da antropologia
dedicada ao gênero nas décadas de 1970 e 1980
A distinção sexo/gênero integra a história (Harris e Young 1979; Reiter 1975).
das teorias sociais sobre a “diferença sexual”. Já No marco de abordagens que consideram
entre os chamados fundadores do pensamento a subordinação feminina um aspecto universal
sociológico é possível rastrear a sugestão da idéia da organização social, o conceito de gênero foi
de diferença sexual como princípio universal de amplamente utilizado para aludir à construção
diferenciação e classificação (Durkheim e Mauss social das diferenças entre homens e mulheres.
(1971) [1903]. Assim, firma-se uma linha argu- O foco de interesse era compreender as ma-
mentativa de que a diferença sexual é produto neiras como essas construções se relacionavam
da cultura e não de um substrato natural ou com as práticas sociais situando às mulheres em
essência que informaria a modelação dos então posições de desigualdade. Algumas antropólogas
chamados papéis sexuais. definiram gênero como uma forma de desigual-
Os papeis sexuais constituem a aplicação da dade social (Ortner e Whitehead 1981; Collier
teoria dos papéis sociais – que focaliza os fatores e Yanagisako 1987) e consideraram o estudo do
que influenciam o comportamento humano – na gênero como o estudo de relações assimétricas
esfera da divisão de trabalho material e moral de poder e oportunidades. Enquanto algumas
entre os sexos. Indivíduos nascidos e classificados linhas teóricas persistiram nessas formulações
como homens e mulheres seriam socializados a (Tabet 1998), outras contestaram os fundamen-
agir, pensar e sentir segundo roteiros culturalmen- tos desse estilo de análise.
te construídos em posições vinculadas ao sexo A crítica parte da negação da universalidade
anátomo-biológico. As análises comparativas de- da dominação masculina (Bourdieu, 1992). O
senvolvidas segundo a teoria dos papéis mostraram principio da supremacia masculina presente
que a crença sobre a existência do temperamento em todas as culturas garantindo aos homens
inato ligado ao sexo não é universal. A evidência mais prestígio do que às mulheres. Segundo
oferecida é o fato de que embora diversas socieda- tal modelo, as mulheres seriam controladas em
des institucionalizem de alguma maneira os papéis função de suas capacidades reprodutivas (Héri-
de homens e mulheres, não o fazem necessaria- tier 1989), e/ou inferiorizadas por tais capacida-
mente em termos do contraste entre as personali- des, que as colocariam do lado da natureza, das
dades dos dois sexos (Mead 1969). emoções, do doméstico, do privado (Rapport e

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Overing 2000). Essas idéias foram consideradas e os adeptos da teoria da complementaridade


parte de um referencial teórico “ocidental”, simétrica entre os gêneros possui bastante vigor.
historicamente datado, embasando os aparatos Importa para os fins deste artigo os signos utili-
conceituais mediante os quais se pretendia ana- zados para demarcar os sexos e os gêneros nessas
lisar todas as outras sociedades, obscurecendo sociedades e que vêm acompanhados de utensí-
suas especificidades. lios da vida cotidiana. O estudo de Silva (s/d)
Essa postura crítica se insere em uma sobre os Enawene-Nawe, grupo Aruak da Ama-
linha de questionamentos à distinção entre zônia meridional assinala que a passagem à vida
sexo e gênero que remete aos fundamentos da adulta é socialmente marcada por emblemas
construção do conhecimento ocidental. As da sexualidade e da capacidade reprodutiva de
mencionadas abordagens sustentam-se em pilar ambos os sexos: o estojo peniano e as tatuagens
epistemológico problemático: a própria distin- no ventre e nos seios, signos de valor na eco-
ção sexo/gênero. Pois a categoria sexo enquanto nomia simbólica desse grupo. A condição de
realidade física não é objeto de problematização adulto é atingida por rituais que não só apresen-
histórico-cultural (Laqueur 2001). No binômio tam adornos corporais específicos à maturidade
sexo-gênero, o primeiro termo aparece como sexual e social como também a substituição
objeto de conhecimento da biologia, numa dos utensílios diários por novos, a saber, para
particular tradição ocidental na qual o corpo é a moça novas panelas, e para o menino-rapaz
página em branco a ser formatada por marcas, novos arco e flechas.
inclusive aquelas produzidas pelo discurso bioló- Estabelecer especificidades referentes a
gico. Na tradição ocidental cartesiana o objeto gênero é uma via para identificar segmentos
de conhecimento é matéria para o ato do sujeito sociais em culturas pré-coloniais, estabelecer e
que analisa e a “natureza” é tão somente matéria entender articulações sociais. Para tanto, consi-
prima para a cultura (Haraway 1991). dera-se que a distinção tenha manifestação ma-
Argumenta-se que a noção de sexo, ou da terial quer no próprio corpo em decorrência de
natureza biológica de homens e mulheres, é atividades físicas específicas e/ou em adereços.
uma construção social (Moore 1994; Oudsho- Tratando-se de sociedades extintas consideram-
orn 1994). Isto é, o que é reconhecido como -se, também, objetos e arranjos tanto do próprio
corpo sexuado, fisicamente diferente, não é algo corpo e dos acompanhamentos dispostos pelos
que, levando em conta as idéias de outras socie- orquestradores do ritual funerário. Parte-se do
dades sobre a realidade física, possa ser conside- princípio que há uma relação de continuidade
rado um dado universal. Assim, tanto a distin- entre atributos vivenciados e representados na
ção entre sexo e gênero como as idéias de poder morte.
a ela associadas estendem a outras sociedades
concepções sobre as relações entre homens e
mulheres presentes nas sociedades “ocidentais” Sambaquis, acompanhamentos e gênero
e devedoras do pressuposto da dicotomia entre
sujeito e objeto. Esta dicotomia, por sua vez, de- Nos contextos funerários de sambaquis do
riva de noções de poder (dominação/submissão) litoral do estado do Rio de Janeiro podem ser
vinculadas à noção de “propriedade” e a uma observados componentes de sua cultura material
visão do mundo “natural” como algo fixo sobre como pontas ósseas de variados tipos, artefatos
o qual se atua, no plano da cultura (Strathern líticos, conchas, adornos de diferentes materiais e
1980; Jordanova 1980). Esta nova perspectiva corante na forma de concreções e sedimentos. A
rejeita a universalidade da distinção sexo/gêne- reflexão sobre a forma como se distribuem esses
ro para o conjunto das diversas culturas existen- elementos em contexto de enterramento pro-
tes ou desaparecidas. posta neste artigo buscou perceber a existência,
No que concerne às sociedades ameríndias, ou não, de uma associação clara entre um deter-
o debate travado entre os defensores da idéia de minado artefato e o sexo biológico da pessoa ali
que há hierarquia de gênero nessas sociedades enterrada como base para inferências sobre confi-

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gurações de gênero nas sociedades sambaquieiras. to das arqueografias disponíveis, e que foram
Esta é uma tarefa cercada de dificuldades, seja objeto de análise na dissertação de mestrado
pela escassez de dados para uma contextualização de Escorcio (2008), consideramos neste estudo
mais ampla, seja pelo fato de os sambaquieiros apenas os sítios cujas escavações revelaram um
há muito se encontrarem desaparecidos quando número mais significativo de sepultamentos e
do início da ocupação européia não havendo, de esqueletos com sexo identificado e, portan-
portanto, relatos diretos ou indiretos sobre esses to, potencialmente mais capazes de refletir, no
grupos sociais. Em acréscimo, cabe ressaltar ain- âmbito da distribuição dos acompanhamentos,
da que estudos etnográficos não se ocupam com uma ação social que possa ter concorrido para
frequência dos acompanhamentos funerários e originar o registro arqueológico. Incluímos, tam-
sua simbologia nos relatos de sociedades ágrafas bém, alguns sítios com menor número relativo
caçadoras, ou pescadoras- coletoras, deixando de de indivíduos, mas que apresentaram em seus
fornecer essenciais subsídios para uma reflexão contextos elementos pertinentes ao desenvolvi-
comparativa. mento desta análise.
Evidências mortuárias são valiosas fontes Os sítios considerados, e as respectivas
de informação sobre configurações de gênero obras de referência, com o número de indivídu-
quando obtidas sob condições ideais tais como os do sexo feminino e masculino identificados
remanescentes esqueléticos bem preservados encontram-se na Tabela 1.
e analisados por diferen-
tes especialistas, grande Tabela 1
número de enterramentos
escavados sistematicamen- Nº de indivíduos identificados por sexo
te, evidências iconográficas
entre outros aspectos Sexo Sexo
Sítio Referência
(Arnold 2006: 140, 146). feminino masculino
Os dados de que dispomos Corondó 32 25 Machado 1984
para os construtores de Beirada 15 13 Kneip e Machado 1993
sambaquis estão longe de Moa 12 13 Kneip e Machado 1993
preencher esses requisitos, Zé Espinho 7 13 Kneip 1987
as descrições existentes são
Ilhote do Leste 2 12 Tenório 2003
de extrema variabilidade
Ilha da Boa Vista I 5 9 Livro de Tombo
quanto ao conteúdo, pro-
fundidade e extensão. Por Algodão (inferior) 5 4 Lima 1991
outro lado, o que está po- Tarioba 3 6 Machado e Sene 2001
tencialmente representado Forte 1 4 Kneip 1977
em um contexto funerário Itaúnas 1 2 Barbosa 2007
pode corresponder ou não
à prática real da ideologia de gênero daquela
Como diretrizes norteadoras da análise
sociedade, ao mesmo tempo em que não se
empreendida:
limita a expressar o aspecto de feminilidade ou
masculinidade do enterrado, mas também o - A suposição de que uma cultura
universo simbólico relacionado à transição do material simples, em termos relativos,
mundo dos vivos para o mundo dos mortos não é sinônimo de sociedade simples, no
(Arnold 2006: 137). sentido das suas elaborações simbólicas
Ao tentar propor inferências sobre constru- (Fausto 2000: 67);
ção de gênero entre os sambaquieiros levamos - A consideração de que, mesmo
em consideração as descrições de enterramento quando a igualdade social possa se cons-
encontradas na bibliografia, tendo em mente as tituir em um forte aspecto de uma dada
restrições referidas anteriormente. Do conjun- sociedade, ela nunca se dá em termos

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absolutos (Flannagan 1989: 247-248), necessariamente teria um caráter simbólico


ocorrendo, na prática, contextos de podendo tratar-se de uma medida prática para
igualdade e contextos de desigualdade afastar odores, por exemplo. Pode-se considerar,
ou assimetria, frutos, nos dois casos, de também, que se trata de um hábito correlacio-
elaborações sociais; nado com o tratamento dado aos corpos dos
-A constatação de que a caça é valo- vivos, a pintura corporal, tão frequente entre os
rizada simbolicamente no continente nativos sul americanos. Seja qual for sua finali-
americano, seja entre os grandes caça- dade, o que se pode observar na distribuição do
dores do Alasca e do Canadá, seja entre corante nos enterramentos dos sítios citados é
sociedades de horticultores da floresta que homens e mulheres em quantidades sig-
tropical (Viveiros de Castro 2002: 357) nificativas o recebiam, assim como homens e
Pressupõe-se que a caça, embora tenha mulheres deixavam de recebê-lo.
sido apenas um componente comple-
mentar na dieta dos sambaquieiros, era Pontas ósseas e adornos de dentes de animais
também uma atividade valorizada. É
observada em contextos funerários a pre- As pontas ósseas consideradas neste estudo
sença de pontas de projéteis e adornos são aquelas descritas nos trabalhos arqueológi-
de dentes de animais, tanto aquáticos cos como possuindo função de ponta de projé-
quanto terrestres. Há menção, também, til, ou seja, aquelas potencialmente associáveis
à presença de porções de caça como par- às atividades de pesca e caça.
te de festim fúnebre (Klokler 2008). As considerações sobre esses artefatos reme-
tem a um modelo teórico em voga nas décadas
Corante de 1960/70 que atribuía a evolução humana ao
desenvolvimento da caça, o modelo “homem,
O corante é o componente mais comum o caçador” (Lee e Devore 1968) e seu modelo
nos cenários de enterramento de sociedades pre- complementar, “mulher a coletora” (Dahlberg
téritas e seu uso é muito antigo (Mithen 1996: 1981). Ambos foram amplamente criticados no
36). Há sítios de sambaquieiros em que ele artigo fundador da arqueologia de gênero nos
está presente de (1) forma marcante, (2) sítios Estados Unidos, de Conkey e Spector (1984),
onde ele está totalmente ausente, e (3) situações por seu pressuposto de divisão rígida de tarefas
intermediárias entre esses dois extremos. Em entre homens e mulheres.
dois sítios às margens da lagoa de Araruama, Um estudo etnoarqueológico empreendi-
na Região dos Lagos, a distribuição do corante do por Brumbach e Jarvenpa (1997) entre os
ocorre da seguinte forma: no Beirada, com quin- Chipewyan, que vivem na região sub-ártica do
ze mulheres e treze homens, oito delas têm o co- Canadá, alimentando-se predominantemente
rante, enquanto ele ocorre para seis homens; no da caça, nos mostra que homens e mulheres
Moa, de doze mulheres, nove levam o corante, organizados em grupos, sob diversas formas de
de treze homens, nove o possuem em seu enter- combinação, seja de várias famílias reunidas,
ramento. Para o Corondó, situado na região de mulher e marido, pai e filha etc participam da
Arraial do Cabo, cuja escavação revelou trinta e caça ao alce e ao caribu. Os homens realizam
duas mulheres e vinte e cinco homens, são vinte a matança propriamente dita, mas as parcerias
e duas as mulheres que apresentam o corante, entre homens e mulheres facilitam o fluxo das
os homens totalizam dezenove. No Zé Espinho, diversas etapas envolvidas no ato de “caçar”, que
um sambaqui localizado na área da baía de vai muito além do momento do abate, como
Sepetiba, com sete mulheres e treze homens o deslocamento, rastreamento, carneamento,
sepultados, nenhum deles possui o corante. processamento e a distribuição da carne.
Há uma discussão entre os arqueólogos Há também o exemplo etnográfico das mu-
quanto à função do corante em um enterra- lheres caçadoras Agta, das Filipinas, que rompe
mento sambaquieiro, considerando-se que não com os cânones estabelecidos outrora para os

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papéis sexuais. Essas mulheres são responsáveis Tabela 2


elas próprias pelo abate de animais de certo por- Indivíduos com adornos de dentes de animais
te, como porcos selvagens e veados, caçados por
elas com arco e flecha (Estioko-Griffin e Griffin Sítio Sexo Identificação
1981: 121-129).
Corondó F cachorro do mato
Com relação aos sítios arqueológicos em
foco neste estudo, no sambaqui Zé Espinho F felino
foram relatados uma mulher e dois homens F seláquio
com pontas em seus contextos funerários. M felino
No Corondó, cinco mulheres e três homens
apresentam este artefato em seus sepultamen- M cachorro do mato
tos. Para o Beirada e o Moa não foi relatada M não identificado
a presença de pontas em sepultamentos, nos Ilhote do Leste M felino
estudos revisados.
M seláquio, primata
Os adornos de dentes de animais são artefa-
tos relacionados ao ato de caçar ou pescar, pela M seláquio
sua forma de obtenção. No sítio Corondó três Beirada F primata
mulheres e três homens têm adornos de dentes Ilha da Boa Vista I F não identificado
de animais. No Beirada ele ocorre em um único
contexto funerário, o de uma mulher. Para Algodão F mamífero
um outro sítio, o Ilha da Boa Vista I, também Legenda: F = feminino , M = masculino
é relatada a presença de adorno de dente de
animal no sepultamento de uma mulher, assim
como no sítio Algodão uma mulher também Do ponto de vista de um universo simbólico
tem adorno de dentes de animais. mais amplo, a presença de adornos de dentes de
A não ser que se opte por uma interpre- animais sugeriria também a interação humano/
tação baseada na essencialização de papéis de animal segundo o perspectivismo ameríndio pro-
gênero ocidentais contemporâneos, a qual posto por Viveiros de Castro (2002).1 Aborda-
induziria à aplicação, por vezes inconsciente, do gem que também, poderia dar conta da presença
“duplo padrão” (Nelson 2004: 106) – artefatos de adornos confeccionados com dentes humanos
“típicos” do universo masculino encontrados e característicos de alguns sambaquis como o
em enterramento masculino, correlação direta, Corondó em que é descrita a presença deste tipo
os mesmos artefatos quando observados em de adorno para uma mulher e para um segundo in-
enterramentos femininos, correlação direta divíduo de sexo não identificado (Machado 1984).
descartada – semelhante registro arqueológico,
como o descrito acima, não enseja motivos para Líticos diversos
se excluir por princípio a correlação de mulhe-
res sambaquieiras às atividades de pesca ou caça, Nesta categoria consideramos os artefatos
e/ou à simbologia representada pelas pontas de líticos descritos como lascas, polidores, raspado-
projétil e pelos adornos de dentes animais. A res, percutores, almofarizes e quebra-coquinhos.
forma como surgem nos contextos de enterra- No geral, o que se observa são homens e mulhe-
mento relatados se coadunaria melhor como res com esses tipos de artefatos em seus sepul-
expressão de papéis sociais não rígidos, e/ou tamentos, não se definindo qualquer tendência
com a existência de parcerias entre os gêneros. de atribuição para nenhum dos sexos.
O animal de onde se retirava esses dentes para
adornos também indica esta direção, visto que
parece não haver associação específica de ne- (1) No universo simbólico do perspectivismo ameríndio, ani-
nhum animal a nenhum dos sexos, conforme a mais se vêem como humanos, o que difere homens e animais
Tabela 2. é seu aspecto exterior, sua aparência física.

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Lâminas de machado Considerando apenas os seixos pintados,


eles ocorrem em sepultamentos em quatro
As lâminas de machado (“polidas” ou “las- sítios, Zé Espinho, Moa, Corondó e Tarioba.
cadas e polidas”) ocorreram em sepultamentos No Corondó, o seixo pintado apresenta uma
do Ilhote do Leste e do Zé Espinho, ambos na distribuição que se constitui em um dos poucos
área de Sepetiba, no Moa e no Forte, ambos na “quase” padrões em contexto de sambaqui. O
Região dos Lagos. Consideraremos apenas os seixo pintado é quase exclusivo de mulheres ou
três últimos sítios, visto que no Ilhote do Leste de grupos de mulheres com crianças. Este quase
parece ocorrer uma subrepresentação das mu- padrão observado no Corondó é um dos raríssi-
lheres na amostra. mos traços de predomínio em matéria de acom-
No Zé Espinho um único homem tem lâmi- panhamento funerário, pelo que nos foi possível
na de machado em seu sepultamento, o mesmo depreender das descrições revistas. Um outro
ocorrendo no Forte. No Moa, são observados “quase” padrão, também marcante no Coron-
três homens e duas mulheres com lâminas. Ana- dó, diz respeito aos adornos infantis, em que o
lisando as idades atribuídas a esses indivíduos número de peças dos adornos das crianças, em
do Moa, temos dois homens na faixa de 30/35 especial das bem pequenas, é frequentemente
anos com duas lâminas cada um deles e um maior do que o número relativo de peças do
terceiro com uma única lâmina, estando este adorno de um adulto.
na faixa etária descrita como acima de 25 anos.
Uma das mulheres tem entre 40 e 50 anos de
idade, a outra entre 30 e 35. Ambas possuem Um sepultamento sambaquieiro
uma única lâmina de machado cada uma em
seus sepultamentos. A ausência de padrões recorrentes e rígidos
Considerando a quantidade como um com- nas atribuições de acompanhamento funerário
ponente das construções simbólicas, uma única em contexto sambaquieiro talvez seja o fato
lâmina para as mulheres do Moa, sendo uma maior a se destacar. O cenário de enterramento
dessas mulheres bem idosa para os padrões em que descrevemos a seguir é bastante representa-
sambaquis, as colocaria em um patamar simbó- tivo desta asserção. Trata-se de um sepultamento
lico semelhante ao do homem de menor idade triplo, dois homens e uma mulher, encontrado
relativa que tem também apenas uma lâmina. no sítio Itaúnas, descrito por Márcia Barbosa
Projetando sobre este quadro um viés hierárqui- (Barbosa 2007: 164), do qual apresentamos um
co, as mulheres estariam em um patamar inferior resumo descritivo: A área em redor do sepulta-
ao dos homens de idade aproximada às suas. mento encontrava-se delimitada por estacas que
Entretanto, refletindo em uma outra direção, é são indicadores da existência de uma estrutura
possível pensar esse perfil do registro arqueológi- leve. Os três indivíduos, dispostos em uma
co em termos de uma aproximação dos universos mesma orientação, encontravam-se cobertos por
masculino e feminino na idade mais avançada. sedimento arenoso avermelhado que impreg-
Algo da natureza do que ocorre na sociedade nou os ossos, objetos e fauna que compunham
Kayapó do Brasil Central, conforme interpretado a parafernália ritual. A mulher à esquerda no
por Vanessa Lea, em que “a idade tende a dissol- conjunto, com cerca de 30 anos, estava em
ver a distinção entre os sexos” (Lea 1994: 99-100). decúbito dorsal com a face para cima, membros
inferiores e superiores estendidos. Uma valva da
Seixos polidos concha Lucina pectnata encontrava-se sobre cada
uma das órbitas de sua face. Havia uma ponta
Os seixos polidos, com ou sem corante, óssea sobre seu fêmur direito. Ao centro, um
parecem imbuídos de uma função simbólica homem de cerca de 20 anos, membros também
especial, seja por sua associação ao corante, seja estendidos e em decúbito dorsal, tinha sua face
por sua forma de disposição nos enterramentos voltada para o Leste. Suas órbitas encontravam-
conforme sugerem as descrições. -se igualmente cobertas cada uma delas por uma

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Maria Luiza Heilborn
Eliana Escorcio

Lucina pectinata, um seixo polido posicionava-se em cada análise sugerindo que, ao invés de
entre seus membros inferiores, havia um outro padrões rígidos relacionados com o sepultamen-
seixo próximo à mão direita. O terceiro indiví- to, articulavam-se condutas padronizadas com
duo, um homem de mais de 20 anos, à direita tratamentos específicos de cada corpo ou con-
no conjunto, encontrava-se em decúbito ventral junto de corpos.
com a face para Oeste e os membros estendidos. Um jogo em que aspectos estruturais e
Ele possuía, ainda, um adorno de placa óssea, conjunturais se complementavam. Por um lado,
além de duas pontas junto às costelas, em seu era uma regra sepultar corpos nas proximidades
lado direito. de mar, lagoa ou rio e em locais construídos e
Diferenças de status entre esses indivíduos que se caracterizam por se destacar na paisagem
poderiam estar em jogo aqui, conforme sugeriu em decorrência do acúmulo de material faunís-
Barbosa (2007: 164). Entretanto, consideramos tico. O fogo, a proximidade de outros corpos,
que essas diferenças de status, expressas pela também eram elementos constantes e pesquisas
distribuição dos acompanhamentos e outros recentes sugerem que a oferenda de alimento
aspectos do sepultamento, não corresponderiam parece ter sido um hábito. Por outro lado, há es-
a uma gradação absoluta em termos de inferiori- queletos fletidos, hiper-fletidos, estendidos, com
dade e superioridade. Elas expressariam elabora- membros superiores e inferiores em posições
ções simbólicas indicativas de níveis variados de distintas, orientação dos corpos e cabeça em
igualdade e desigualdade, refletindo diferentes direção variada. Alguns estão cobertos de con-
papéis que um mesmo indivíduo poderia encar- chas, outros são precedidos por grandes blocos
nar dentro de um grupo social. Essa interpreta- de pedra e os acompanhamentos funerários são
ção encontra respaldo na variabilidade recorren- variados como mostra o nosso estudo. Plastici-
temente observada em contexto de sambaquis, dade e ausência de papéis gênero rigidamente
que procuramos destacar, variabilidade esta que definidos parecem ser características marcantes
parece se coadunar mais com a idéia de uma da sociedade sambaquieira. É bem provável que
plasticidade social do que com a pressuposição o estudo de gênero aqui empreendido aponte
de papéis rígidos para os gêneros no contexto para aspectos estruturais do modo de vida dos
das sociedades sambaquieiras. pescadores-coletores que ocuparam a faixa lito-
rânea entre a baía de Ilha Grande e Macaé, já
que não há, também, indícios de um segmento
Conclusão social que se destaque entre os demais membros
da sociedade e que tivesse uma posição hierár-
A busca por padrões de sepultamentos2 foi quica diferenciada e estabelecida. Apoiando-nos
e é um tema recorrente em Arqueologia, mas nas reflexões de Klokler (2008) sobre as festivi-
especialmente a que está voltada para o enten- dades mortuárias, tomadas como cruciais para
dimento da sociedade sambaquieira. A grande coesão e solidariedade social, há apenas indícios
quantidade de esqueletos humanos recuperada de desigualdade social incipiente.
em escavações torna atraente esse tipo de abor- É preciso lembrar que não se fala aqui de
dagem muito embora as análises não tenham ausência de liderança, aspecto pertinente a
identificado padrões que dessem conta dos todas sociedades, mas sim de ausência de hierar-
rituais funerários que integram sambaquis em quia instituída, aspecto característico de socie-
sua totalidade ou que integram um determina- dades complexas. Arnold (1996) destaca, entre
do agrupamento de sítios. Semelhanças e dife- inúmeros aspectos sociais mencionados por
renças parecem se destacar de maneira alternada diferentes estudiosos, a presença de padrões de
organização social supra-parentesco e de meca-
nismos regulares de controle de forca de traba-
(2) Essa busca abrange, também, padrões de assentamentos
lho para a caracterização de sociedades comple-
ou na maneira de confeccionar artefatos, a qual está expressa xas. Não há evidências destes aspectos sociais no
em inúmeras tipologias existentes. modo de vida dos sambaquieiros que ocuparam

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R. Museu Arq. Etn., São Paulo, n. 21, p. 17-30, 2011.

o litoral do Rio de Janeiro. No que se refere a de artefatos sugere ampla circulação de pessoas
diferenciação, nota-se um corte etário em que através da linha de costa. Cooperação que é
crianças se diferenciam dos demais membros e, reforçada pela exploração de grandes corpos de
como já havia sido mencionado por Escorcio e água onde os recursos são abundantes e renová-
Gaspar (2005), indivíduos com status superior veis e, portanto, passíveis de exploração conjunta
aos demais. Com relação ao corte etário, trata- (Gaspar 1991). Estudos sobre pescadores tradi-
-se de um “quase” padrão em que crianças são cionais da região Sul (Gaspar et al., no prelo) su-
ornadas com um número de peças superior as gerem, também, que a atividade pesqueira tende
dos adultos. Colares de conchas diminutas por a propiciar o comportamento cooperativo. No
vezes adornam o dorso dos pequenos e apontam domínio simbólico dos sambaquieiros, destaca-
para o tratamento diferenciado para membros -se o cuidado com os corpos e é bem possível
desse segmento social, não para todos, é de se que na região Sudeste, da mesma maneira como
destacar. ocorre na região Sul, cooperação e circulação
Analisando outros aspectos já estabelecidos tenham sido ingredientes fundamentais de seu
para a sociedade sambaquieira é possível dese- ritual funerário (Gaspar 2004; Klokler 2010).
nhar alguns princípios sociais ordenadores desse Ausência de papéis de gênero muito bem defi-
modo de vida. Estudos voltados para a carac- nidos, como parece indicar a variabilidade na
terização da área de captação de recursos dos atribuição dos acompanhamentos funerários, e
sambaquieiros que ocuparam a região dos Lagos ausência de hierarquia estabelecida desenham
apontam para existência de comportamento uma sociedade bastante plástica em que aspectos
cooperativo entre os construtores de sambaquis conjunturais da vida social norteavam a relação
que integram um conjunto de sítios e a análise entre os diferentes segmentos sociais.

GASPAR, M, D., HEILBORN, M. L., ESCORCIO, E. The sambaquieira society from the
perspective of sex and gender. R. Museu Arq. Etn., São Paulo, n. 21, p. 17-30, 2011.

Abstract: The research on sambaquis is a founding theme of Brazilian ar-


chaeology and there is a varied and extensive scientific production concerning
this kind of archaeological site. Nevertheless, the great majority of the studies
about the society that colonized the seashore aims to project on them some
classification models that do not consider the different social segments that
form them. The study of gender is a fruitful way to identify and characterize
social segments that share the same space and ideology. Taking for background
the path of the concept of gender in social sciences and its extensions to the
archaeology of sambaquis this article analyses some elements of the mortuary
contexts of these sites identifying the presence of symbolic constructions of
extreme variability that point to some aspects of the social life among the fisher-
collectors of Rio de Janeiro State seashores.

Keywords: Sambaqui – Fishers-Collectors – Gender – Social Organization.

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