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17/08/2021 Departamento de Psicanálise - Sedes Sapientiae - PUBLICAÇÕES

     

PUBLICAÇÕES

  JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS

   
53 Abril 2020  
 
 
POLÍTICA DA PSICANÁLISE

ENTRE UNS E OUTROS, FICAMOS COM TODOS

EQUIPE EDITORIAL DO BOLETIM ONLINE

Em torno da intervenção de Paul Beatriz Preciado em sessão plenária


da 49ª Jornada da
Escola da Causa Freudiana, Paris, novembro de
2019
[1]

Deu o que falar a conferência pronunciada por Paul B. Preciado em 17 de


novembro de 2019 na
Escola da Causa Freudiana, por ocasião de sua 49ª
Jornada, intitulada Mulheres na psicanálise.

Diatribe nunca antes pronunciada num congresso de Escola de Lacan, a


ressoar uma nova conjuntura
e novas conjecturas históricas (Maleval) que
desafiam a vocação alteritária de nosso saber, de
nossos saberes. Eis um
dos sentidos possíveis do trajeto empreendido por Tania Rivera, que parte
das trilhas freudo-lacanianas de subversão da lógica fálica para abordar
anamorficamente o
Manifesto contrassexual. No interesse de
responder ao suposto anacronismo da psicanálise pela via
do ato de
distinguir clínica e militância, e advertida de nossa inelutável posição de
encarceramento
quando o assunto é a subjetivação, Denise Maurano encontra
respiro no mais além do sexual, pelo
qual se abre o campo do feminino. Sua atenção às ideologias nefastas que podem acompanhar
uma
epistemologia política do corpo, histórica e mutável, nos leva, por
fim, à leitura das proposições de
Alessandra Parente e Léa Silveira, que
visam a adentrar a epistemologia mutante de Preciado.

Fica o convite para coletivizar a palavra, politizar o inconsciente (Preciado).


Interessados nos
dizeres subjacentes aos 5 escritos a seguir compilados,
entre uns e outros ficamos com todos. Para
seguir falando. Afinal, o
potencial de verdade não pertence exclusivamente a ninguém.

UM APARTAMENTO EM URANO [2]

PAUL B. PRECIADO

Boa tarde,

Prezadas senhoras, prezados senhores da Escola de psicanalistas da França,

Senhoras e senhores da Escola da Causa Freudiana,

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E não sei se vale a pena que eu também diga “boa tarde” a todos aqueles que
não são nem senhoras
nem senhores, porque acredito que não haja entre vocês
alguém que tenha renunciado legal e
publicamente à diferença sexual e que
tenha sido aceito como psicanalista efetivo depois de ter
conseguido fazer
o passe e ser aprovado — falo, aqui, de um psicanalista trans ou não
binário que
tenha sido admitido entre vocês. Se existe, permitam-me enviar
a esse mutante, desde já, o mais
caloroso dos cumprimentos. [risos e aplausos]

También quiero saludar aquí a todos psicoanalistas hispanohablantes, de


América Latina y de España
[aplausos]: señoras, señores, y sobre
todo otros (aquellos que no son señoras ni señores) [3]. [risos]

Em 1917, Franz Kafka escreveu Um relatório para uma Academia [4]. O narrador do texto é um
macaco que, depois de ter aprendido as linguagens humanas, se apresenta
perante uma Academia
das mais altas autoridades científicas para
explicar-lhes o que a evolução humana representou para
ele. O macaco, que
se chamava Pedro Vermelho, conta como foi capturado por uma expedição de
caça organizada pelo circo Hagenbeck; como foi, em seguida, transportado
para a Europa; e como
foi que, em seguida, ele conseguiu se tornar um
homem.

Pedro Vermelho conta como foi que ele aprendeu as linguagens humanas e como
foi que, para fazer
isso — e para entrar na sociedade da Europa do seu
tempo —, ele teve de esquecer a sua vida de
macaco e se tornar alcoólatra.
Mas o mais interessante, no monólogo de Pedro Vermelho, é que
Kafka não
apresenta a sua história de humanização como uma história de libertação,
mas sim como
uma crítica do humanismo europeu. Uma vez capturado, o macaco
diz não ter tido outra opção que
não fosse ou morrer numa jaula, ou viver
passando para a jaula da subjetividade humana. E é a
partir dessa nova
jaula da humanidade que ele se dirige à Academia científica.

Como o macaco Pedro Vermelho se dirigiu à Academia de cientistas, eu me


dirijo hoje a vocês,
acadêmicos da psicanálise, a partir da minha jaula de
homem transexual: o meu corpo marcado pelo
discurso médico e jurídico como
transexual; caracterizado, na maior parte dos diagnósticos
psicanalíticos
de vocês, como sujeito de metamorfose impossível — segundo vosso colega
Pierre-
Henri Castel[5] —;
estando, segundo a maior parte das teorias de vocês, para além da neurose;
à
beira, ou mesmo dentro, da psicose; tendo, segundo vocês, uma
incapacidade de resolver
corretamente um complexo de Édipo ou havendo
sucumbido à inveja do pênis. Eu me dirijo a vocês
como um macaco humano de
uma nova era.

Eu, enquanto corpo trans, enquanto corpo não binário — a quem nem a
medicina, nem o Direito,
nem a psicanálise, nem a psiquiatria reconhecem o
direito de falar, nem a possibilidade de produzir
um discurso uniforme de
conhecimento sobre mim mesmo —; eu aprendi, como Pedro Vermelho, a
linguagem do patriarcado colonial: a língua de vocês. Eu estou aqui para me
dirigir a vocês.

Talvez vocês digam que estou recorrendo a um conto kafkiano para começar a
falar-lhes, mas o
colóquio de vocês me parece mais próximo da época do
autor de
A metamorfose [6]
que da nossa.
Vocês organizam um encontro para falar das “mulheres na
psicanálise” em 2019 como se nós ainda
estivéssemos em 1917 [burburinho], e como se esse tipo particular de animal — que vocês
chamam,
de forma condescendente e naturalizada, de “mulher” — ainda não
tivesse um reconhecimento
pleno enquanto sujeito político; como se ela
fosse um anexo ou uma notinha de rodapé, uma
criatura estranha e exótica
entre as flores[7][risos], sobre a qual é preciso refletir, de quando em
quando [aplausos], num colóquio em mesa-redonda.

Seria preciso, isso sim, organizar um encontro sobre os homens brancos


heterossexuais e burgueses
na psicanálise. [risos e aplausos]. A
maioria dos discursos psicanalíticos gira em torno do poder
discursivo e
político desse tipo de animal necropolítico que vocês tendem a confundir
com o humano
universal, e que é — pelo menos até o momento — o sujeito da
enunciação central no discurso das
instituições psicanalíticas da
modernidade colonial.

Eu não tenho — como vocês podem ver — grande coisa a dizer sobre as
“mulheres na psicanálise”, a
não ser que eu também sou, como Pedro
Vermelho, um fugitivo; que eu também fui, um dia, uma
“mulher na
psicanálise”; que me designaram o sexo feminino. E, como o macaco mutante,
eu
também saí dessa jaula apertada. Talvez para entrar em outra jaula; mas,
pelo menos dessa vez,
com os meus próprios pés. Falo a vocês, hoje, a
partir desta jaula — escolhida e redesenhada — de
homem trans; do corpo, do
gênero não binário: uma jaula política que é, em todo caso, melhor que
a
dos homens e das mulheres, pois ao menos reconhece o seu estatuto de jaula.

Gostaria de transmitir a vocês hoje pelo menos três ideias — se me


permitirem — com a estranha
liberdade que falar a partir de uma posição
discursiva impossível me outorga. Pois enquanto homem
trans, enquanto corpo
de gênero não binário, mutante de uma humanidade binária e colonial que
vocês representam, dediquei toda a minha vida a estudar os diferentes tipos
de jaulas em que os
humanos se confinam.

Antes de mais nada, gostaria de dizer que o regime da diferença sexual com
o qual a psicanálise
trabalha não é nem uma natureza, nem uma ordem
simbólica, mas uma epistemologia política do
corpo; e que, como tal, ele é
histórico e é mutável.

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Em segundo lugar, gostaria de lhes informar — caso vocês não saibam — que
essa epistemologia
binária e hierárquica está em crise desde os anos 1940.
Não somente por causa da contestação
exercida pelos movimentos políticos de
minorias dissidentes, mas também por causa do surgimento
de novos dados
morfológicos, cromossômicos e bioquímicos que tornam impossível a
atribuição
sexual binária.

Em terceiro lugar, gostaria de dizer a vocês que, abalada por profundas


mudanças, a epistemologia
da diferença sexual está em mutação, e vai ceder
lugar — provavelmente nos próximos 10 ou 20
anos — a uma nova
epistemologia. O movimento transfeminista, queer, de denúncia da
violência
heteropatriarcal, mas também as novas práticas de filiação, de
relação amorosa, de identificação
de gênero, de desejo, da sexualidade e da
nomeação não são outra coisa que não indícios dessa
mutação.

Diante dessa transformação epistemológica em curso será preciso que vocês


decidam, senhoras e
senhores psicanalistas da França, da América Latina, da
Europa, do mundo; será preciso que vocês
decidam o que vão fazer, onde vão
se colocar, em que jaula querem estar confinados, como vão
jogar as suas
cartas discursivas e clínicas num processo tão importante como esse.

Peço a vocês mais alguns minutos de atenção, caso ainda consigam escutar um
corpo de gênero não
binário e conceder a ele um potencial de razão e de
verdade.

Antes de mais nada, senhoras e senhores e outros [risos], o regime


da diferença sexual que vocês
conhecem e consideram como universal — e
quase metafísico — sobre o qual se assentam e se
articulam todas as teorias
psicanalíticas, não é uma realidade empírica, nem uma ordem simbólica
fundadora do inconsciente. Não passa de uma epistemologia do ser vivo, uma
cartografia
anatômica, uma economia política do corpo e uma gestão coletiva
das suas energias reprodutivas.
Trata-se de uma epistemologia histórica que
se constrói em relação com uma taxonomia racial, no
período de
desenvolvimento mercantil e colonial europeu, e que se cristaliza na
segunda metade do
século XIX.

Essa epistemologia, longe de ser a representação de uma realidade, é uma


máquina performativa
que produz e legitima uma ordem política e econômica
específica: o patriarcado heterocolonial.
Antes do século XIX, o corpo e a
subjetividade feminina não eram reconhecidos como sujeitos
políticos. A
mulher, as mulheres não existiam — nem anatômica, nem politicamente — como
subjetividade soberana antes do século XIX. No regime patriarcal, anterior
ao século XIX, só o corpo
masculino e a sexualidade masculina eram
reconhecidos como soberanos. O corpo feminino e a
sexualidade eram
subalternos, dependentes e minoritários.

É interessante pensar que a psicanálise freudiana, enquanto teoria e


aparelho psíquico… perdão, do
aparelho psíquico… e enquanto
prática clínica, aparece precisamente no momento em que se
cristalizam as
noções centrais da epistemologia da diferença sexual: o homem e a mulher
definidos
como anatomicamente diferentes e complementares pelas suas
potências reprodutivas, como
figuras potencialmente paterna e materna,
respectivamente, na instituição familiar colonial
burguesa; mas também a
heterossexualidade e a homossexualidade pensadas como normal ou
patológica,
respectivamente.

A psicanálise, vista do ângulo da história dos corpos abjetos, da história


dos monstros da
sexualidade normativa, é a ciência do inconsciente
patriarcal e colonial. Peço que, por favor, não
tentem negar a
complexidade… perdão, a cumplicidade — a complexidade também… as
duas, caso
queiram —; a complexidade, então, e a cumplicidade da
psicanálise com a epistemologia da
diferença sexual heteronormativa.

Estou oferecendo a vocês a possibilidade de uma terapia política da


instituição de vocês [risos e
aplausos seguidos de agradecimento do conferencista],
mas esse processo não pode ser feito sem
uma análise exaustiva de seus
pressupostos. Não os recalquem, não os neguem, não os reprimam,
não os
desloquem. Não venham me dizer que a diferença sexual não é crucial na
explicação da
estrutura do aparelho psíquico na psicanálise. Todo o
edifício freudiano é pensado a partir da
posição da masculinidade
patriarcal do corpo masculino heterossexual, compreendido como um
corpo com
pênis eréctil, penetrante e ejaculatório. É por isso que as “mulheres na
psicanálise” —
esses animais estranhos entre as flores [risos],
com útero reprodutor e clitóris — continuam sendo
sempre um problema. É por
isso que vocês precisam, em pleno 2019, de uma jornada para falar das
“mulheres na psicanálise”. [risos e aplausos]

Não venham me dizer que a instituição psicanalítica não considerou, e não


considera ainda hoje, a
homossexualidade como um desvio em relação à norma.
Caso contrário, como explicar o fato de que
até bem pouco tempo atrás não
havia psicanalistas podendo se identificar publicamente como
homossexuais?
Pergunto a vocês: quantos de vocês se definem hoje — bem aqui, nesta Escola
da
Causa Freudiana —, publicamente, como psicanalista homossexual? [silêncio geral seguido de risos;
silêncio seguido de aplausos]

Eu não forço a revelação de posições subjetivas privadas [risos] —


de toda forma, estou vendo que,

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se depender de vocês… [risos] …
talvez não tenha, não tenha nenhum… —, o que lhes peço é o
reconhecimento
de uma posição de enunciação política, num regime de poder heteropatriarcal
e
colonial. Contrariamente ao que a psicanálise pensa, não acredito que a
heterossexualidade seja
uma prática sexual ou uma identidade sexual. Penso
que é, isso sim, um regime político que reduz a
totalidade do corpo humano
vivo, e a sua energia psíquica, a um potencial reprodutivo; uma posição
de
poder discursiva e institucional.

A psicanálise é epistemológica e politicamente… perdão, os psicanalistas… epistemológica e


politicamente ainda binários e
heterossexuais, até que o contrário seja dito ou denunciado — e
tivemos
prova disso aqui hoje. Eu não estou pedindo que os psicanalistas
homossexuais saiam do
armário, ainda que eu ache que isso faria bem para
vocês [risos]. São os psicanalistas heterossexuais
— logo, vocês
(todo este auditório) — os que devem sair, urgentemente, do armário da
norma.

A psicanálise freudiana começou a funcionar, no final do século XIX, como


uma tecnologia de gestão
do aparelho psíquico confinada à epistemologia
patriarcal e colonial da diferença sexual. Não há
tentativa na psicanálise
freudiana de superar essa epistemologia, mas sim de inventar uma
tecnologia, um conjunto de práticas discursivas e terapêuticas que permitam
normalizar as posições
de “homem” e de “mulher”, e suas identificações
sexuais e coloniais dominantes e desviantes.

Nessa epistemologia hegemônica os sujeitos patriarcais coloniais modernos


utilizam a maior parte
de sua energia psíquica para produzir a sua
identidade normativa. Angústia, alucinação, melancolia,
depressão,
dissociação, opacidade e repetição não são mais que os custos gerados para
a
manutenção dessa epistemologia normativa. A psicologia não é uma crítica
dessa epistemologia
dominante, mas sim a terapia necessária para que o
sujeito patriarcal-colonial continue
funcionando, apesar dos custos
psíquicos enormes da violência indescritível desse regime. Mas essa
epistemologia da diferença sexual com a qual a psicanálise freudiana
trabalha, e sem criticar, eu
lhes digo, entrou em crise depois da Segunda
Guerra Mundial. E talvez… não tenho certeza, na
verdade… se vocês estão
totalmente cientes de que essa epistemologia da diferença sexual com a
qual
vocês continuam trabalhando está hoje em crise. Está em uma profunda crise
desde… — e é
esse o caso, efetivamente — desde os anos 40.

A politização das subjetividades dos corpos considerados como abjetos nessa


epistemologia, a
organização de movimentos de luta pela soberania
reprodutiva e política dos corpos das mulheres e
pela despatologização da
homossexualidade, bem como a invenção de novas técnicas de
representação
das estruturas bioquímicas do ser vivo vão levar a uma situação sem
precedentes
depois dos anos 40. Os discursos médicos e psiquiátricos
parecem ter cada vez mais dificuldades —
depois dos anos 40 do século
passado — para enfrentar o surgimento de corpos aos quais não se pode
designar, de imediato, “sexo feminino” ou “masculino” no nascimento.

Com as novas técnicas cromossômicas e endocrinológicas, e a expansão da


medicalização do parto,
cada vez mais bebês, chamados antigamente de
“hermafroditas”, aparecem. Diante desses bebês, a
comunidade
médico-científica inventou uma nova taxonomia. O psiquiatra infantil John
Money[8],
trabalhando na
Universidade John Hopkins de Nova York, deixa de lado a noção moderna de
“sexo”
— como realidade anatômica — e inventa a noção de “gênero” para
falar da possibilidade de
produzir tecnicamente a diferença sexual. As
noções de “intersexualidade”, de “transexualidade”,
aparecem também entre
1947 e 1960. Pela primeira vez a medicina e a psiquiatria se dão conta,
com
assombro, da existência de uma multiplicidade de corpos e de posições
sexuais para além do
binário. Mas, em lugar de mudar a epistemologia, a
instituição médica, psiquiátrica, psicológica
decide por modificar os
corpos, por normalizar a sexualidade, por retificar as identificações.

Gostaria de compartilhar, hoje, com vocês, a hipótese segundo a qual toda a


psicanálise lacaniana,
que nasce precisamente depois dos anos 40 — a sua
releitura de Freud, o seu desvio pela linguística
—, já é uma primeira
resposta a essa crise da epistemologia da diferença sexual. Penso ser
possível
dizer que Lacan tenta, como John Money, desnaturalizar a diferença
sexual; mas que, como John
Money, ele acaba produzindo um metassistema que
é quase mais rígido que a noção moderna de
“sexo” e de “diferença
anatômica”.

No caso de John Money esse metassistema introduz a gramática do gênero,


pensada como
construção social e endocrinológica. Em Lacan, esse
metassistema — e vocês sabem disso muito
melhor que eu — também não é
anatômico, mas sim aquele do inconsciente estruturado como uma
linguagem.
Porém, como no caso de John Money, trata-se de um sistema de diferenças que
não
escapa — infelizmente — do binarismo sexual e da genealogia patriarcal
do sobrenome. A minha
hipótese é que Lacan não conseguiu se desfazer do
binarismo sexual por causa da sua afeição
política pelo patriarcado
heterossexual. A sua desnaturalização está conceitualmente em marcha;
mas
Lacan, ele próprio, não estava pronto.

A partir de 1960, com a comercialização da pílula anticoncepcional; depois,


com a despatologização
da homossexualidade, a epistemologia da diferença
sexual entra num processo de questionamento e
de mutação implacável. Hoje
sabemos que, a cada 400 bebês, um é identificado como intersexual —
não
podendo ser reconhecido nos gêneros binários. No decorrer dos últimos 20
anos, as crianças que
foram operadas ou tratadas como intersexuais
organizaram-se para pedir o fim da mutilação genital
e dos processos de
redesignação forçada. Ao mesmo tempo, cada vez mais corpos começam a se

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identificar como não binários. Diferente dos Estados Unidos[9]… mas também na Argentina [10] —
como vocês sabem —
ou na Austrália[11] se
reconhecem hoje em dia gêneros não binários como uma
possibilidade
política. Tenho também o prazer de anunciar a vocês que poucas semanas
atrás a
minha amiga e colega, Judith Butler, se inscreveu no registro civil
da Califórnia como pessoa de
gênero não binário.

As identificações de heterossexualidade e de homossexualidade, pensadas em


relação à capacidade
reprodutiva de dois corpos de sexo oposto, parecem
cada vez mais obsoletas, diante de uma
multiplicidade de técnicas de gestão
da procriação assistida — não só pílula anticoncepcional ou
pílula do dia
seguinte, mas também paternidade transexual, PMA[12], gestação sub-rogada [13],
exteriorização do
útero etc. A epistemologia da diferença sexual está em plena mutação.
Estamos
assistindo a um processo de transformação na ordem da anatomia
política e sexual comparável
àquele que levou a passagem da epistemologia
geocêntrica à epistemologia heliocêntrica,
copernicana, entre 1510 e 1730.

Nos próximos anos, deveremos elaborar coletivamente uma epistemologia capaz


de dar conta da
multiplicidade radical de seres vivos, que não reduza os
corpos a sua força reprodutiva
heterossexual, e que não legitime a
violência heteropatriarcal e colonial. Quando falo de uma nova
epistemologia, estou me referindo a iniciar um processo de ampliação
radical do horizonte
democrático, para reconhecer como sujeitos políticos
todo corpo humano vivo, sem que a
designação sexual ou de gênero seja a
condição de possibilidade desse reconhecimento social ou
político.

Estamos vivendo um momento — vou transmitir isso a vocês hoje — de uma


importância, uma
importância histórica, sem precedentes. A violenta
epistemologia da diferença sexual — posta em
questão pelos movimentos
feministas, homossexuais, intersexuais, transexuais (dizemos queer
) —,
e igualmente sacudida pela confrontação com novos dados científicos,
está mudando. Esse processo
de mudança de paradigma científico e político
levará ao reconhecimento, enquanto sujeitos
políticos soberanos, de todo um
conjunto de corpos que até agora haviam sido marcados como
politicamente
subalternos.

Nesse contexto de transição epistêmica, honoráveis membros da Academia da


Psicanálise da França
e da Escola da Causa Freudiana, vocês têm uma enorme
responsabilidade. Vocês é que sabem… e
cabe a vocês saber… onde querem se
colocar. Se querem permanecer do lado desse discurso
patriarcal e colonial
— e reafirmar a universalidade da diferença sexual e da reprodução sexual
heterossexual —; ou entrar, conosco, os mutantes deste mundo, num processo
crítico de invenção de
novas epistemologias que permitem a redistribuição
da soberania, o reconhecimento de outras
formas de subjetividade política. [aplausos]

Vocês não podem — já, já termino… —, vocês não podem recorrer toda santa
vez aos textos de
Freud e de Lacan como se eles tivessem um valor
universal, não situado historicamente; como se
esses textos não tivessem
sido escritos no interior dessa epistemologia patriarcal da diferença
sexual. Fazer de Freud e de Lacan a lei é tão absurdo quanto teria sido
pedir a Galileu que ele
retornasse aos textos de Ptolomeu ou a Einstein que
continuasse pensando com a física de
Aristóteles.

Hoje os corpos antigamente excluídos do regime da diferença sexual falam e


produzem um saber
sobre eles mesmos. Os movimentos transfeministas, me too, ni una a menos operam uma
transformação crucial.
Vocês já não podem continuar falando do complexo de Édipo ou do Nome-do-
Pai
numa sociedade na qual as mulheres são objeto de feminicídios, onde as
vítimas da violência
patriarcal estão se expressando para denunciar seus
pais, seus maridos, seus chefes, seus
namorados; onde as mulheres denunciam
a política institucionalizada do estupro; ou onde milhares
de corpos saem
às ruas para denunciar as agressões homofóbicas, e os assassinatos, quase
cotidianos, de mulheres trans, assim como as formas institucionalizadas de
racismo.

Vocês já não podem continuar afirmando a universalidade da diferença sexual


e a estabilidade das
identificações heterossexuais e homossexuais numa
sociedade onde é legal mudar de sexo, onde é
possível se identificar como
pessoa de gênero não binário; numa sociedade em que já há milhares
de
crianças nascidas em famílias não heterossexuais e não binárias. Continuar
praticando a
psicanálise utilizando a noção de diferença sexual, e com
instrumentos críticos como o complexo de
Édipo, seria hoje tão aberrante
como pretender continuar navegando pelo universo com um mapa
geocêntrico
ptolemaico, ou negando as mudanças climáticas, ou afirmando que a Terra é
plana.
[aplausos]

Hoje em dia… — eu sei, já vou terminar bem rapidinho —, hoje, meus amigos
psicanalistas, é mais
importante escutar os corpos excluídos pelos regimes
patriarcais coloniais do que reler Freud e
Lacan [burburinho]. Não
se refugiem junto aos pais da psicanálise. A obrigação política de vocês
[aplausos] é cuidar dos filhos, não legitimar a violência dos
pais. Chegou a hora de botar o divã na
praça e de coletivizar a palavra, de
politizar o inconsciente.

Nós já estamos enfrentando uma nova aliança necropolítica do patriarcado


colonial e de novas
tecnologias farmacopornográficas. Sem dúvida nenhuma,
já estamos confrontados a uma

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farmacolonização crescente das ditas
patologias psiquiátricas, uma mercantilização das indústrias
de cuidado.

[alguém chama: “Paul!”]

É, acho que é para eu parar.

[risos, aplausos]

Uma última coisa: eu penso que a tarefa que nos resta por fazer é começar
um processo de
despatriarcalização, deseterossexualização e descolonização
da psicanálise [aplausos] (…) uma
psicanálise mutante à altura
dessa mutação de paradigma. Talvez somente este processo de
transformação —
por mais terrível e desmantelador que lhes possa parecer — mereça hoje, de
novo,
ser chamado de “psicanálise”.

[aplausos]

UMA RESPOSTA A PAUL B. PRECIADO [14]

DENISE MAURANO [15]

QUERIDOS SR. PAUL PRECIADO E SEUS APLAUDIDORES

Começo essa comunicação agradecendo o estímulo que me foi dado pela


conferência do Sr. Paul
Preciado ocorrida nas Jornadas da Escola da Causa
Freudiana na França e difundida na internet,
para tecer esses comentários
que partilho agora com vocês.

Sinto informar que somos todos Pedro Vermelho, ou somos todos descendentes
diretos desse macaco
que como Sr. Preciado mencionou, é o personagem da
história criada por Franz Kafka em 1917 para
explicar às autoridades
científicas quais danos lhe trouxeram sua captura e o consequente
esquecimento de sua vida de animal, em prol de sua humanização e
aprendizagem da linguagem. É
verdade que de modo algum isso nos trouxe
liberação, mas encarceramento. A humanização
realmente não é uma história
de liberação seja na Europa ou onde for. A subjetivação, com todas as
identificações que ela comporta, sejam bem-vindas ou mau-vindas, é um
enjaulamento. Portanto, é
desse inelutável lugar de encarceramento que me
dirijo a vocês. É num jogo de alienação e
separação que vamos cavando
espaço para respirar.

O regime da diferença sexual com o qual trabalha a psicanálise diz do modo


como apreendemos
simbolicamente o que vigora na natureza e que em última
instância nos é inapreensível. É a
constatação de diferenças que nos
permite reconhecer o que há. Se algo jaz na mesmidade, nem o
notamos, é
indiferente para nós. Não causa pathos, espanto, não merecendo,
portanto, nosso olhar.
É pela comparação, inclusive dos corpos, que fazemos
distinções e entramos no exercício de
tentarmos nos situar, buscando
referências que malgrado nos enjaulem, nos permitem ainda assim
identificações protetivas, estratégias de invenção de sentido, onde no real
não há sentido algum. Se
há aí algo que possamos chamar nesse regime da
diferença sexual de heteronormatividade, é
importante que se saiba que esse
hetero, caro sim à psicanálise, deve remontar à origem grega do
termo. Ou
seja, a psicanálise preserva o exercício da diferença, preserva a ideia do
outro, do
desigual, no centro de nossas reflexões e de nossa prática
clínica. E isso não se dá, ou pelo menos,
não deve se dar para privilegiar
uma prática sexual em detrimento das outras, ou para determinar
padrões de
escolhas de objeto e muito menos para privilegiar um sexo em detrimento do
outro.

Se acontece de fazerem isso, é porque se confundiu alhos com bugalhos. Ou


porque se colocou a
pobre da psicanálise a serviço da caretice conservadora
que a descaracteriza completamente. Isso
não faz jus à Freud, Lacan, ou
qualquer um dos grandes.

Se a presença ou ausência de pênis, na comparação dos corpos põe, desde


cedo, o psiquismo para
trabalhar, tentando dar um sentido à diferença, e se
diferentes culturas desde os seus primórdios
relacionam a plena fertilidade
da natureza com a ereção, isso talvez se justifique pela fascinação
que faz
com que o símbolo fálico, que enquanto tal não pertence a ninguém, funcione
psiquicamente como unidade de medida de potência de um sujeito. Todos,
homens, mulheres, e
quem mais for, estamos em falta para com essa plena
potência vital e cada um a ressignifica a seu
modo. Nossa jaula humana é
desaparelhada de falos, desaparelhada disso que falta para sermos
supostamente plenos.

Não por acaso, Freud, para tentar figurar o que resta de insondável na
configuração psíquica da
diferença sexual, propõe a metáfora da atividade e
passividade, relacionados respectivamente ao
masculino e feminino. Desse
modo, sendo todos nós homens e mulheres bissexuais potencialmente,
podemos
fruir da masculinidade ou da feminilidade na medida da assunção do que há
de ativo ou
passivo em nós no campo da sexualidade.

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Nesse ponto, dando um passo além de Freud, Lacan aceita a provocação deste
para pensar o que há
de misterioso e de peculiar ao feminino que na disputa
fálica, no âmbito imaginário poderia
aparecer em desvantagem. É quando
então, reconhecendo que o campo sexual é fundamental mas
insuficiente para
cernir o campo da existência, supõe, para além da dualidade do sexual que
vigora
em nós, há uma dualidade de gozos. Um, dito fálico, gozo da
celebração da potência que pode
tomar muitos sentidos, e dado a
insuficiência desse gozo sexual, eu diria seccionado, ele supõe um
outro,
não fálico, ilimitado, alheio ao sentido. Gozo que ele nomeia como
feminino, o avizinhando
ao gozo místico, fora do sexual. Poderíamos dizer
que em um se trata da possessão fálica, afirmação
de si, da subjetividade,
e diante do limite da subjetividade, advém a hipótese de um gozo Outro,
gozo da entrega, gozo da existência, não seccionado, que pode tomar
diversas vertentes, tanto
celebrativas como na experiência da criação,
quanto devastadoras, comparecendo como gozo do
Outro invasivo e
psicotizante.

Percebe Sr. Preciado, o Sr. tem razão, nem tudo é restrito à divisão
sexual, binária ou não. Há uma
dimensão de gozo, que transpõem em muito o
que é da ordem da diferença. Mas aí, estamos num
campo no qual a designação
de feminino transpõe a fronteira entre os sexos. E é aí que o feminino,
se
apresenta como um conceito a ser melhor cernido em nosso campo, dado sua
não obviedade. Por
isso fazemos tantos Congressos sobre o tema do feminino,
que inclusive me parece bem mais próprio
do que o tema das mulheres. Mas é
verdade, precisamos falar do masculino também, e das inúmeras
variáveis
através das quais tentamos cernir a vasta dimensão da sexualidade que
extrapola em
muito a dualidade sexual. Por isso é preciso que consideremos
também um mais além, mais além do
sexual.

Mas, voltando a questão do regime da diferença sexual, é verdade que ele


também foi explorado em
certos campos, e mesmo numa ampla perspectiva na
cultura, como uma epistemologia política do
corpo que realmente enquanto
histórica e mutável, é acompanhada de ideologias diversas com
múltiplas
consequências muitas vezes, absolutamente nefastas e pervertidas. Uma
coisa, não anula
a outra. Uma diz respeito a um modo de pensar a
organização psíquica sobretudo a partir das
Consequências psíquicas da diferença anatômica entre os sexos,
dentro da lente oferecida pela
psicanálise para se ver o mundo e pensar
acerca do conflito e do sofrimento humano, no exercício
de fazer de si
mesmo sua morada, propiciando meios de investigá-lo de modo a depreender
efeitos,
na melhor das hipóteses, terapêuticos.

Habitar esse estranho que é nosso corpo, não é tarefa fácil para ninguém.
Não à toa o corpo, por
mais que seja também fonte de prazer, é um dos
fundamentos do mal-estar. Não apenas porque é
sexuado, mas também porque
não o escolhemos, adoece, envelhece e morre, a despeito do nosso
controle.
Nas estratégias para habitá-lo se descortinam, na atualidade, inúmeros
recursos, dentre os
quais cirúrgicos e farmacológicos. Enquanto
psicanalistas não somos juízes para absolver ou
condenar as opções tomadas
pelo sujeito. E também nossas hipóteses diagnósticas como bem diz o
nome,
são hipóteses, não sentenças. E ainda, só podem ser levantadas no contexto
de um processo
psicanalítico em curso, servindo para que o analista, no
caso, se oriente quanto ao seu modo de
intervir. Isso serve a ele, não ao
analisante. E é bom que se diga que para que o analista possa se
emprestar
a essa difícil função clínica, é preciso que ele pendure seu eu cheio de
si, e de ”gênero”,
na sala de espera, e compareça como “trans”, ou seja,
suporte mutante de todas as investidas que
o desejo inconsciente pode
operar na contingência da trans-ferência.

Lidamos justamente com a dimensão traumática do sexual. Essa comparece para


quem quer que
seja, homo, hetero, bi, trans, e todas combinatórias
possíveis. Não há sexuação que repouse sobre
um jardim de rosas. Trata-se
aí de secção, corte, ruptura com uma natureza na qual a harmonia
ficou
perdida. Daí a pertinência do conceito de castração que bem assume sua
dimensão simbólica,
encobrindo a dimensão radical da privação que nos toca
a todos de diferentes maneiras.

Você denuncia a violência hetero-patriarcal colonialista, e é extremamente


justo que o faça,
sobretudo no momento dessa onda de retrocesso mundial a
um conservadorismo nefasto que
justamente pretende anular e penalizar as
diferenças, as minorias, e pasteurizar comportamentos
padrões. Assim, um
discurso de militância, sobretudo agora é extremamente bem-vindo. Por isso
sua
coragem, sua provocação, são inspiradoras. Ainda que caiba também a
ressalva de que essa
militância deve ser consciente o suficiente para que
não alimente a voracidade capitalista que na
ânsia de alimentar a indústria
farmacológica e faturar cirurgias, promova um modismo inadvertido
provocando danos irreversíveis com tais manipulações do corpo, prometendo
uma felicidade que
enquanto humanos só a desfrutamos parcial e
momentaneamente, seja qual for nossa posição
sexual.

Mas é preciso que façamos uma diferença entre o que diz respeito à teoria e
a clinica psicanalítica e
o que diz respeito à militância política na
reivindicação de reconhecimento social, jurídico,
médico… relativa à
liberdade de escolher dentro do possível o que cada um, “maior de idade”,
pode
fazer com seu corpo, seu modo de habitá-lo e de fruir dele.

É verdade que talvez a grande maioria dos psicanalistas tenham ficado tempo
demais apartados da
cena pública e da intervenção política. Porém, no
momento que falamos enquanto psicanalistas,
creio que é preciso diferenciar
o que vem a ser um discurso psicanalítico imbuído de uma política

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própria
que é afeita à singularidade da ética da psicanálise, de um discurso de
militância. O discurso
psicanalítico destoando inclusive de muitos ideais
da cultura, é sobremaneira, prevenido quanto à
fragilidade de todas as
certezas, por isso trabalhamos tanto com as representações e com o que
resta de irrepresentável. Um discurso de militância tem uma verdade própria
a ser defendida e
difundida. Cada um desses discursos tem suas pertinências
e contextos específicos.

Penso, sr. Preciado, que seu discurso é bastante pertinente do ponto de


vista da militância política,
e reconheço nele seu valor, porém, na visão
que constituí a partir de minha formação psicanalítica,
o que implica minha
própria análise, minha prática clinica e os estudos nesse campo, me permito
dizer que sua intervenção é um desserviço à psicanálise. Ou seja, revela um
desconhecimento em
situar a que veio a psicanálise. É injusto para com a
potência revolucionária que ela tem desde sua
invenção, até os dias de
hoje.

SUBVERSÕES DA LÓGICA FÁLICA - FREUD, LACAN, PRECIADO


[16]

Tania Rivera [17]

Em vez de se traduzirem necessariamente em falocentrismo e normatização,


não apontariam as
teorias freudiana e lacaniana – especialmente com a
questão da feminilidade ou da mulher –
também a possibilidade de
estratégias de subversão da lógica fálica?

Retomar hoje a questão da castração e do falo é necessário e urgente, mas


com ela se trata, como
sabemos, de elaborações extremamente complexas, que
exigiriam uma releitura detida de textos
fundamentais e sempre abertos à
apropriação encarnada e historicamente situada de cada
pesquisador. Tenho
que renunciar a fazê-lo neste breve ensaio, é óbvio, e deixá-lo para um
escrito
mais longo. Mas arriscarei traçar aqui, no calor da polêmica
lançada por Paul Preciado em Jornada
recente da École de la Cause Freudienne, um rápido caminho transversal, para
defender a ideia de
que em Freud encontramos uma vigorosa relativização da
anatomia que reduziria as questões de
gênero à posse ou não-posse de um
órgão, e em Lacan o convite para que se busquem modelos não-
todos fálicos
ou de subversão da lógica fálica.

Neste desafio, começarei relembrando algumas afirmações freudianas que


podem soar
surpreendentes frente a uma certa simplificação didática e
normativa da teoria – ainda frequente
entre nós, infelizmente – que
essencializa a referência fálica de modo a reforçar o discurso
hegemônico
sobre a diferença entre “os sexos” e repudiar, ou mesmo patologizar,
questões de
gênero.

Em primeiro lugar, quero lembrar que antes de Simone de Beauvoir dizer, em


1949, que “não se
nasce mulher, torna-se mulher”, em 1932 Freud afirmava
que não se tratava para ele de “descrever
o que é a mulher”, mas sim de
“examinar como ela se torna mulher”, a partir da criança bissexual
(Freud,
1961/1932, p. 124). Como bem sabemos, em psicanálise a anatomia não basta.
Para ser
mais exata, Freud chega a desconfiar dela, a relativizá-la e mesmo
subvertê-la de modo bastante
radical, como no trecho em que afirma que a
própria biologia apontaria para o fato de que “partes
do aparelho sexual
masculino encontram-se também no corpo da mulher, ainda que em estado
atrofiado” e vice-versa, e isso indicaria a existência de uma “dupla
sexuação
(Zwiegeschlechtigkeit), uma bissexualidade, como se o
indivíduo não fosse homem ou mulher, mas
os dois a cada vez, ainda que ele
tenha muito mais de um do que de outro” (Ibid., p. 121).

Sem nos esquecermos que a teorização freudiana está marcada pelo momento
histórico em que se
inscreve, e portanto não deixa de ecoar alguns
estereótipos de gênero vitorianos, talvez devamos
mesmo considerar a
psicanálise, sem exagero ou benevolência, como a primeira teoria a
subverter
com vigor o determinismo biológico, especialmente na esfera da
vida sexual e da própria concessão
de sexualidade. Se a anatomia toma nela
papel importante e Freud chega a parafrasear Napoleão
para afirmar que ela
“é o destino”, é como terreno de equivocidade, mobilidade e construção
processual. Masculinidade e feminilidade estão nela apresentadas como
problemas, e sua distinção
não se resolve pelo recurso literal à anatomia,
nem pela adesão cega às “convenções”, aos
estereótipos que supostamente as
caracterizaria do ponto de vista psicológico (Ibid., p. 122).

Não surpreende, portanto, que o psicanalista considere que “masculino e


feminino se misturam
(vermengt) no ser individual” e o modo como o
fazem “está submetido a flutuações consideráveis”
(Ibid., p. 121). Tais
flutuações não se referem apenas à proporção de cada um desses fatores (em
si
tão mal delimitados) em cada indivíduo, mas também à possibilidade de
que esta se altere ao longo
da vida. Freud termina tais argumentos
concluindo, taxativo, que “o que determina a masculinidade
ou a
feminilidade é um caráter desconhecido, que a anatomia não pode apreender”
(Ibidem).

Não se trata, assim, de conceder de saída ao pênis – ausente ou presente –


o lugar de fator
determinante para caracterizar “masculinidade” e
“feminilidade”. As elaborações freudianas

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desestabilizam qualquer
naturalização das posições de gênero, e quando lidam diretamente com “a
diferença anatômica entre os sexos”, não hesitam em misturar as cartas, ao
falar, por exemplo, de
uma “posição feminina” ocupada pelo menino em
relação ao pai. Trata-se sempre de pôr em jogo e
em flutuação esses
significantes, e não a ceder à simples equação entre posse do pênis e
masculinidade (Freud, 1961/1924). Aliás, Freud ataca o próprio postulado da
distinção entre os
sexos com a ideia de mistura ou confusão ( Vermengung) apresentada no trecho acima citado, e dá
seu golpe
final com a postulação de uma “bissexualidade” constitutiva e universal.
Apesar de a ideia
de “bissexualidade” hoje soar bem mais restrita, creio
que devemos levá-la a sério em seu caráter
de indeterminação, de abertura
de um leque infinito de possibilidades de “flutuação” e “mistura” –
ou
seja, de construção sexual e de gênero – para cada um de nós.

Do corpo anatômico, de fato, a teoria freudiana de saída desloca-se para o


“grande enigma da
sexualidade”, como Freud o nomeia em 1937, articulando-o
aliás a um “repúdio da feminidade” que
seria um dos principais obstáculos
ao término de uma análise (Freud, 1961/1937, p. 99). Mas tal
enigma está
presente desde cedo em sua teoria, e pode ser caracterizado como aquilo que
a fala e
o corpo dos outros – seu gozo – transmite e ressoa no corpo da
criança, levando-a a fazer das
pulsões, outra coisa: narrativas, ficções
estruturantes, fantasias. Tomada por sua pulsação a criança
age, inventando
teorias sexuais infantis que a conformam ao oferecer as linhas de força do
desejo
(Freud, 1961/1908). Uma dentre estas teorias – apenas uma, no meio
de outras, como a teoria
cloacal e diversas variantes para como se dá o
coito, a concepção e o nascimento dos bebês – é a da
posse universal do
pênis. E é como desdobramento desta que virá se inscrever outra: nada menos
do
que a castração, ou melhor, que leva ao temor de vir a perder este órgão
particularmente investido
pelo narcisismo (Freud, 1961/1925), que se
apresenta como apêndice virtualmente destacável e
possui a curiosa
propriedade de ganhar e perder volume.

Diante do enigma do sexual – ou melhor, habitados por ele – somos tomados


pela tarefa de inventar
teorias sexuais, fazendo do corpo, pensamento. O
livre curso de tal transformação do gozo em
teoria é inclusive, segundo
Freud, a condição para que se possa pensar, ao longo da vida, e
sobretudo
pensar inventivamente, com autonomia. Ele não deixa de ser, portanto, o
motor da
própria teoria psicanalítica, assim como, e em igual medida, das
teorias biológicas a respeito da
diferença anatômica.

Todas as teorias sexuais – e de gênero – são portanto ficções, fantasias no


sentido forte que a
psicanálise dá à palavra: o de conformações do desejo
que constroem realidade, e não o de
inverdades, ilusões que a esta se
oporiam. E a recíproca é verdadeira: toda teoria, toda reflexão, é
sexual,
na medida em que repõe em jogo a linguagem, para inscrever nela o gozo do
corpo. Toda
reflexão é sexuada e encarnada, no sentido em que nela o
teórico ocupa um lugar singular,
fornecendo apenas um ponto de vista no
contexto de uma cena complexa, na qual outros lugares
podem ser ocupados de
modo a conformar outras perspectivas. Mas não se trata de defender, com
isso, um mero relativismo, ou um jogo de alternância entre posições
complementares, mas sim de
tentar analisar – ou seja, quebrar – construções
que tendem a se apresentar na teoria como
universais. Pois, como ensina a
arte e a literatura, toda cena é estruturada pela marcação de um
ponto de
vista e de um ponto de fuga que fornece os alicerces simbólicos de sua
montagem
imaginária, e o deslocamento de tais posições altera
significativamente a própria cena. Podemos,
nesta linha, apostar no
delineamento de diversos “pontos de vista” ocultos sob a montagem
hegemônica e inscritos em linhas de força que se entrecruzam e se põem em
jogo entre nós.

A teoria da castração o mostra muito bem: nela a posição de Freud é


sobretudo aquela do menino
que, tomado pela fantasia da posse universal do
pênis, aguarda o encontro com o corpo feminino
como revelação da castração.
É em suas elaborações sobre o fetichismo que encontramos a
descrição mais
exata dessa cena, na qual é dado à mulher o lugar de território da
inscrição da falta
(Freud, 1961/1927); ou melhor, de efetivação da ameaça
de castração, na medida em que a relação
do menino com seu pênis biológico
é marcada, de saída, por uma descontinuidade: “o membro que
ele tem em tão
alta estima não vai necessariamente junto com o corpo”, como diz o
psicanalista
(Freud, 1961/1932, p. 133).

Se o menino se assegura de sua posse de um pênis (da propalada “diferença


sexual”) diante do
corpo supostamente castrado da mulher, é justo na medida
em que se confirma que ele pode vir a
perdê-lo – ou seja, que não o possui
plena e indubitavelmente. Mesmo assim, ele pode aferrar-se à
ideia de que o
teria, confundindo o concreto com o simbólico, e buscar reafirmá-lo, ao
longo da
vida, apoiando-se imaginariamente em significantes fálicos
oferecidos culturalmente – e,
eventualmente, em certa misoginia. Essa
teoria seria, grosso modo, aquela do chamado
falocentrismo.

Mas devo acrescentar que, além de encarnação da falta, o lugar que tal
ponto de vista dá à mulher
possui uma outra face, um outro lado da mesma
moeda: a ereção do corpo feminino em fetiche.
Parte deste corpo, ou ele
inteiro, pode tomar o papel de substituto do pênis que falta. Tal
objetificação da mulher implica uma forte idealização segundo parâmetros
oferecidos
culturalmente, é claro, mas sua outra face é aquela da agressão,
da violência, como bem apontam
os pés mutilados das mulheres chinesas
trazido por Freud como exemplo de fetiche.

Esta cena é organizada segundo um esquema perspectivo no qual ao ponto de


vista do menino,

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diante da imagem, corresponde linearmente o sexo da mulher
como ponto de fuga. Esta linearidade
seria a estrutura de base da lógica
fálica, ao estabelecer uma relação direta e centralizada entre o
ponto de
vista encarnado pelo menino e aquele encarnado pela mãe. Nesta organização
simbólico-
imaginária da fantasia, cabe à mulher ocupar o lugar da mãe
“castrada” e/ou erigida em fetiche, ou
assumir tal lugar como “seu” ponto
de vista – mas apenas para complementar, tomada pela
estrutura fálica,
aquele do menino, confirmando a suposta posse masculina do pênis. Só lhe
resta
então invejá-la e reivindicá-la, ou para ela buscar substitutos como
um bebê, a posse vicariante do
órgão de seu homem ou de seu filho, etc.

Mas não se poderia pensar em outras estruturações desta mesma cena? Em


outras possibilidades de
localização do ponto de vista e do ponto de fuga?
Vou avançar aqui o que me parece ser uma dessas
possibilidades: posicionar
o ponto de vista não em centralidade, como o do menino, mas
lateralmente,
como faz a construção anamórfica do quadro de Holbein comentado por Lacan
no
Seminário XI. Ao nos posicionarmos no ponto diante desta cena, vemos
algo de contorno fálico a
flutuar, mas se nos deslocarmos lateralmente e o
olhamos transversalmente, ele revelará uma
quimera que busca revestir de
poder a castração – a morte, em última instância – a que estamos
todos
submetidos. Por este engenhoso dispositivo de representação, subverte-se e
critica-se a
própria cena dos embaixadores vestidos e circundados de
símbolos de poder. Esta montagem
simbólico-imaginária corresponderia,
assim, àquela que, diante do corpo da mãe, em vez de erigir
apesar de tudo
o pênis em significante maior (apto a sustentar a “metáfora paterna”, para
Lacan) e
elevá-lo a uma “magnificação” (Hochschätzung é o termo
usado por Freud em uma pouco conhecida
conferência de 1909 sobre o fetiche
(Freud, 1992/1909, p. 13)) imaginária, desconfia de sua
potência e põe em
questão a possibilidade de o pênis representar o falo e inscrever a relação
à lei.

Aqui, a revelação não seria a da castração do corpo feminino, a sustentar a


fantasia de que algum
outro corpo não esteja por ela marcado, mas a do
próprio órgão como mero apêndice destacável,
destinado a cair ou ao menos a
se desinflar, e portanto inapto para encarnar concretamente o falo –
restando-lhe apenas a possibilidade de representá-lo por uma espécie de
artifício, de jogo de
linguagem, de metáfora. Nesta vertente, tal metáfora
não se sutura (como uma catacrese), mas
mostra seu caráter mal-ajambrado,
um tanto forçado (como em sua redefinição por Lautréamont
como o encontro
entre um ferro de passar e um guarda-chuva, cara aos surrealistas que tanto
influenciaram Lacan). Ainda como no quadro de Holbein, a revelação consiste
no desvelamento dos
símbolos fálicos como ridículos, vãos. E a cena do
fetiche revira-se, de confirmação metafórica do
falo em seu poder de fazer
a partilha da humanidade entre aqueles que teriam e aqueles a quem
falta
algo, em paródia na qual se revela o artifício da postulação de tal medida
universal.

O que pode faltar (e portanto sempre falta, em alguma medida) seria,


segundo esta lógica, uma
espécie de um pênis falso – um dildo,
como propõe Paul Preciado em seu Manifesto Contrassexual.

(…) O dildo ocupa um lugar estratégico entre o falo e o pênis. Ele age como
um filtro e denuncia a
pretensão do pênis de se fazer passar pelo falo
(Preciado, 2014, p. 75).

É inegável que as elaborações freudianas, em especial a ideia de


descontinuidade entre corpo e
pênis, abrem caminho nesta direção. Mas
apenas o admirável Manifesto de Preciado vem, na
atualidade, nos
fazer salientar a possibilidade de o falo se dar como construção paródica,
e não
literal ou metafórica. Aliás, este livro consegue a façanha de fazer
da teoria, em algumas de suas
proposições “práticas”, uma construção
paródica fiel a seu “objeto” (Preciado, 2014). Devo notar,
contudo, de
passagem, que considero equivocada sua tendência a assimilar as relações
sexuais
heterossexuais a um esquema hegemônico que as reduziria, em última
instância, à domesticação do
gozo para fins de procriação. Pois o sexual,
como bem mostra a psicanálise, é sempre “perverso
polimorfo”, ou seja:
transgressivo.

Não tenho aqui tempo nem fôlego para pôr a proposta da parodização do falo
em discussão rigorosa
e consequente com a teoria lacaniana; gostaria
apenas, neste rápido ensaio, de propor a ideia de
que haja outras
possibilidades de sexuação, outras conformações simbólicas possíveis a se
explorar/modelizar, sejam elas irônicas, paradoxais etc., segundo a
declinação de figuras que a
linguagem nos oferece para que forjemos nela
algo distinto de uma mera descrição de “fatos”, e
nesta construção possamos
ter lugar (ou nos movimentar entre alguns lugares).

Trata-se nesta busca, para mim, neste momento, de forjar a entrada da


menina (ou, para ser mais
exata: do não-menino) como ponto de
vista. De tentar ativamente transformar, manipular a cena,
revelando (ou
melhor, construindo) outras linhas de força em seu desenho, para não se
restringir às
posições pré-assignadas à mulher na organização fálica. Elas
são basicamente duas, e eles parecem-
me delimitar (e portanto limitar) as
elaborações de Freud e Lacan sobre a feminilidade.

Um desses lugares destinados à menina seria aquele ao lado do menino, a


reconhecer nele uma não-
ausência e na mulher (que ela deve vir a se tornar)
a marca de uma ausência à qual ela pode
contrapor substitutos ou procurar
apagar em uma guerra entre os sexos e reinvindicações sem fim.
O outro
seria o de buscar encarnar o corpo da mãe, com as duas faces de
objetificação que ele
implica e que são descritos por Freud no final de Fetichismo: tentar salvar-se da castração ao
corresponder a uma
imagem idealizada e tão fálica quanto um belo carro de corrida, ou
submeter-
se docilmente à castração – e à agressão que a atualiza. As duas
possibilidades são como duas faces

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da mesma moeda, as duas vertentes de uma
mesma posição sacrificial na qual reverência e
violência se alternam como
no “costume chinês de mutilar o pé feminino e, depois disso,
reverenciá-lo
como um fetiche”. É como se o homem chinês, conclui Freud, “quisesse
agradecer à
mulher por se ter submetido a ser castrada” (Freud, 1961/1927,
p. 317). Sim, devemos reconhecê-
lo: na configuração do “menino”, o lugar da
mulher é por princípio aquele da castração, e seu papel
é o de assegurar
com seu corpo, por contraste, a fantasia de que ele pode não ser castrado.

Pergunto-me se não há algo de tal “reverência” na posição de Freud diante


do “enigma da
feminilidade” (Freud, 1961/1932, p.120). Fazer da mulher um
enigma não deixa de ser uma
estratégia de circunscrição do enigma do
sexual, mas ao encarná-lo na teoria, a mulher é
automaticamente posicionada
como a mãe cujo corpo misterioso o menino (o psicanalista)
perscruta,
fascinado como na cena do fetiche. Jacques Lacan, por sua vez, não parece
menos
perturbado diante do êxtase de Santa Teresa na escultura de Bernini,
a ponto de chegar a
equacionar A Mulher e A Verdade e a se colocar
subitamente em cena, em seu desejo:

Eu não sei como lidar, por que não dizê-lo, com a verdade – não mais do que
com a mulher. Eu disse
que uma e outra, ao menos para o homem, são a mesma
coisa. Isso causa o mesmo embaraço.
Acontece este acidente que eu tenho
gosto tanto por uma quanto pela outra, apesar de tudo que se
diz. (Lacan,
1975, p. 108)

Apesar de irremediavelmente situado no lugar do menino diante d’A Verdade


cifrada no corpo da
mãe, Lacan reconhece que a mulher não estaria
totalmente tomada pela lógica fálica, e declina tal
ideia em fórmulas que
põem em jogo, apesar disso, a castração: ela estaria/seria “não-toda na
função fálica” (Ibid., p. 69)). Contudo, em seguida ele não deixa de
“magnificá-la” de certa
maneira, ao fazer dela o Outro, equacionando-a à
ex-sistência e chegando no limite do misticismo
ao dizer: “e por que não
interpretar uma face do Outro, a face de Deus, como suportada pelo gozo
feminino?” (Ibid., p. 71). A própria noção de Gozo Outro, de gozo
suplementar, para além do falo,
não deixa de carregar o risco de
reverberar, assim, a fetichização da mulher, que inclusive implica
em uma
despossessão de sua própria experiência: sobre o que a faz gozar, como os
místicos, ela
nada saberia e portanto nada poderia dizer, segundo Lacan.

Por esta via, quase se perde algo que me parece muito mais importante: a
possibilidade aberta pelo
psicanalista de que a mulher possa “abordar” o
falo, e não apenas ser posicionada na abordagem
fálica, e que possa fazê-lo
de diversas maneiras:

(…) toda a questão está aí, ela (a mulher) tem diversos modos de abordá-lo,
o falo, e de guardá-lo
para si. Não é porque ela está não-toda na função
fálica que ela não está em absoluto nela. Ela nela
está não
não-toda. Ela está nela a fundo.” (Ibid., p. 69)

E quais seriam os “diversos modos” de abordar o falo? Cabe às mulheres e a


todxs, hoje, a tarefa –
teórica e política – de construir pensamento sobre
outras lógicas possíveis – irônicas, paradóxicas,
antitéticas, eufemísticas
etc. –, dentre as quais a paródia ou satírica talvez sejam especialmente
interessantes. E parece-me urgente que nós, psicanalistas, possamos fazê-lo
de modo singular e
encarnado, indo além da ideia de um Falo que reifica
caladamente a Lei imutável, bem como de um
misterioso e silencioso gozo
Outro a cortar-nos a voz e a escrita.

BIBLIOGRAFIA

Preciado, B. (2014).
Manifesto Contrassexual. Práticas subversivas de identidade sexual.
São Paulo:
n – 1.

Freud, S. (1961/1908). “Über infantile Sexualtheorien”. In Sigm. Freud Gesammelte Werke.


Londres/ Frankfurt: Imago/
S. Fischer, vol. VII.

_______ (1961/1925). “Einige psychische Folgen des anatomischen


Geschlechtsunterschieds”. In
Sigm. Freud Gesammelte Werke, op.
cit., vol. XIV.
_______ (1961/1927). “Fetischismus”. In Sigm. Freud Gesammelte Werke, op. cit., vol. XIV.

_______ (1961/1932). “Neue Folge der Vorlesungen zur Einfürung in die


Psychoanalyse”. In Sigm.
Freud Gesammelte Werke, op. cit., vol.
XV.

_______ (1961/1937). “Die endliche und die unendliche Analyse”. In Sigm. Freud Gesammelte
Werke, op. cit., vol. XVI.

_______ (1992/1909). “Zur Genese des Fetischismus”. In Federn, E. &


Wittenberger, G. (orgs.) Aus
dem Kreis um Sigmund Freud.
Frankfurt: Fischer.

Lacan, J. (1975). Le Séminaire livre XX. Encore. Paris: Seuil:


1975.

PAUL B. PRECIADO E SUA EPISTEMOLOGIA MUTANTE [18]

ALESSANDRA MARTINS PARENTE [19]

LÉA SILVEIRA [20]

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Mutante é um significante central para refletir sobre o mote que orientou o


discurso de Paul B.
Preciado em sua conferência de abertura naÉcole de la Cause Freudienne (recentemente publicada
na Lacuna – uma revista de psicanálise). Antes de mais nada, é fundamental reconhecer o vigor da
instituição que lhe fez o convite. Notar
que a escolha implicava criar zonas de tensões e intensos
atritos, sempre
bem-vindos quando a perspectiva é a de ir mais longe afetiva e
intelectualmente.
Não era um(a) psicanalista da casa a dirigir-se à
plateia, alguém que reiterasse o conhecido feijão
com arroz do vocabulário
psicanalítico em belas composições gramaticais, capazes de reapresentar
conhecidas posições – o que também, diga-se, não é de todo dispensável,
pois num momento
politicamente difícil como o que estamos vivendo
globalmente, temos de rememorar e reinscrever
frequentemente o que orienta
eticamente a prática e a escuta psicanalíticas e o pensamento
articulável
em torno delas. Em todo caso, a decisão de convidar Paul B. Preciado
demonstra a força
a partir da qual a psicanálise se faz viva e aberta aos
desdobramentos simbólicos e históricos que
exigem uma reelaboração teórica
contínua do ofício a que se presta. A presença de Paul B. Preciado
naquele
contexto implicava colocar o arsenal psicanalítico à prova, reconhecer
limites de seu
repertório conceitual, conceder lugar de escuta ao Outro,
estrangeiro ao campo e capaz de dar
corpo ao que se mantém latente ou quase
abafado entre nós. Tratou-se, em suma, de uma escolha
distanciada de moldes
narcísicos.

Por isso, a excelente escolha de convidá-lo deveria ser levada até suas
últimas consequências.
Invalidar subsequentemente o que Paul B. Preciado
trouxe de embaraçoso para a comunidade
psicanalítica é gesto menor, pouco
suscetível ao que faz borrar a imagem especular das instituições
e que
poderia abrir importantes veredas clínicas e teóricas para todos nós.
Reativar todo o
repertório gramatical psicanalítico só para atacar a
verdade – sempre não-toda, vale frisar – daquele
dizer é, então, perder
oportunidade valiosa. Sim, pois colher a verdade que porta um discurso
implica estar aberto aos efeitos que ele promove, por mais incômodos que
estes possam ser.
Algumas mais virulentas, outras mais ponderadas, as
respostas dadas por psicanalistas à crítica feita
por Preciado apresentaram
alguns bons argumentos. Entretanto, o que ressoa também, em grande
parte
delas, é um certo tom defensivo e da pior espécie. Compreendidos aqui
psicanaliticamente,
os mecanismos defensivos, não nos esqueçamos, são quase
sempre conservadores. Revelam, como
se sabe, uma insistência em velhas
soluções de compromisso, ineficazes para abarcar o que vibra de
inédito nos
percursos desejantes.

Pedro Vermelho, o macaco kafkiano, é um mutante. É com ele que


Paul B. Preciado se identifica ao
performar sua posição diante da plateia
de membros da École de la Cause Freudienne,
espirituosamente
comparada à “Academia das mais altas autoridades científicas”, que aparece
no
conto escrito em 1917 pelo autor tcheco. Como avatar, Paul B. Preciado
mostra os ranços normativos
que ainda pairam na abordagem psicanalítica da
sexualidade e, por conseguinte, da própria
subjetividade. Sua verdade
emerge encarnada na metamorfose visível de seu corpo-linguagem. Seu
desejo
não está apenas impresso nos significantes que emprega, mas no caráter mutante que
assume seu corpo-linguagem.

É certo que sempre existirá o argumento da materialidade ou corporeidade da


linguagem ou da
inexistência de um corpo que esteja destituído das marcas
linguísticas. Não se trata de acionar, por
conseguinte, a dicotomia
corpo/linguagem ou natureza/cultura. Trata-se, isso sim, de escutar as
bases sobre as quais se sustentam sua linguagem. A célebre frase de Lacan
em Aturdito, “que se
diga fica esquecido por trás do que se diz
naquilo que se ouve”, aponta já para o fato de que o
dizer,
demonstrável por escapar ao dito que se ouve, tem a capacidade de
complexificar e
enriquecer a noção mais contemporânea de “lugar de fala” . O real que comanda a verdade da
enunciação de Preciado não foi
colonizado pelos moldes identitários, como muitos psicanalistas
insistiram
em sugerir. O real de seu dizer está entranhado em cada pedaço de sua carne
tecnológica
e farmacologicamente modificada, em cada órgão transfigurado,
em cada palavra vociferada pelos
efeitos fármaco-hormonais. Trata-se de um
dizer trans não apenas pelo fato de o portador daquelas
palavras
ser concretamente um homem trans, mas pelo fato de que sua
transmutação subjetiva é
ela mesma uma incisão cirúrgica de caráter
revolucionário em termos políticos e epistemológicos.
Uma política
interseccional que emanará de uma conjunção de vozes oprimidas até
transfigurar o
colorido, o tom, a forma e a estrutura de todas as bases nas
quais ainda nos apoiamos. Sim, pois – e
agora voltamo-nos à crítica feita
por ele à psicanálise – ainda apelamos ao universal e operamos
pela sua
lógica que, como disse Lacan, sempre se nega em cada expressão singular. O
contorno
universal – pensado tradicionalmente pelas vias da Lei paterna – é
o que dará condições ao sujeito
de assumir uma expressão singular, que
escapará daquela universalidade, mas que só a partir dela se
constituirá.

Embora a tensão dialética entre universal e singular também se faça


presente no discurso de Paul B.
Preciado, toda sua estrutura materialmente mutante propõe outra lógica. Sua voz metamorfoseada
vibra para
compor-se com outras vozes mutantes, mostrando que o dito e o dizer do inconsciente
podem mais do que Freud ou Lacan pensaram.
Embora suas críticas tenham sido contundentes, Paul
B. Preciado não fez da
crítica à Lei que orienta as instituições de psicanálise seu alvo
principal. Seu
dizer emanado de seu corpo trans
já carrega novas ferramentas, concede corpo a outra
epistemologia. Não é
uma provocação sobre a falta de democracia das instituições psicanalíticas
que está em jogo quando ele afirma: “não sei se vale a pena que se diga
também bom dia a todos

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aqueles que não são nem damas nem cavalheiros,
porque creio que não há entre vocês alguém que
haja renunciado legal e
publicamente à diferença sexual e que tenha sido aceito como
psicanalista”.
Fosse este o caso, bastaria proceder a um programa de inclusão de minorias.
Entretanto, o que a ausência completa de corpos trans ou queer numa plateia inteira de
psicanalistas revela é a
inexistência de ferramentas hoje imprescindíveis para pensar rumos
civilizatórios alternativos aos estabelecidos pelos pilares
patriarcal-heteronormativo e colonizador-
europeu. Tais ferramentas não são
trazidas apenas numa liberdade discursiva do desejo. É
necessário que o
corpo que se movimenta por este mundo e a linguagem que atravessa a carne
do
sujeito também estejam impregnadas de tais transfigurações.

Ainda que a psicanálise seja um saber que coloque em suspensão alguns


fundamentos patriarcais,
não seria muito honesto negar que a epistemologia
psicanalítica se rende a tais rudimentos
carcomidos. O pensamento em torno
da noção de complexo de Édipo possui, de fato, em Freud,
fortes conotações
patriarcais. É ao dado anatômico que Freud remete a possibilidade de fazer
uma
travessia do complexo de Édipo que seja compatível com as tarefas
éticas e estéticas implicadas na
cultura e, por conseguinte, no campo do
que pode ser tomado como público. Não é, contudo, à
perpetuação do
patriarcado que se resume o pensamento envolvido no complexo de Édipo. Em
seu
coração situa-se o desejo diante do caráter traumático da sexualidade,
da ruptura inerente ao fato
de que falamos e da necessidade, experimentada
pela criança, de tomar alguma distância com
relação a seus primeiros
objetos de amor, construídos e apropriados numa profunda relação de
dependência. Ao estruturalizar o Édipo e pensar funções em vez de
indivíduos, Lacan avança em
relação a uma desnaturalização da experiência
que não apenas é mais coerente com a forma pela
qual narramos nossos
desejos, mas também mais rica do ponto de vista político. Trata-se de algo
que também lhe permite reconhecer a interdição como um expediente de que
nos valemos para
lidar com o desamparo que marca a situação de vida na qual
somos lançadas. Porém, o que Lacan
permitiu enxergar ainda não é suficiente
porque, ao caracterizar
um certo gozo como masculino e
outro como feminino
[21]
, ele preserva a equivalência entre cultura e
masculinidade
[22]
. E é
nesse sentido e nesse lugar preciso de convocar à destituição dessa
equivalência – convocação que,
lembremos, Preciado não é o primeiro a fazer
– que, para nós, se situa a força de sua fala.

É certo que a equivalência entre cultura e masculinidade precisaria ser


desdobrada. Aqui, porém,
basta dizer que, para Lacan, ninguém tem o falo,
exceto a cultura. Ou seja, a cultura, ela mesma, é
sempre lida pelo
registro fálico. Isso se expressa de modo central nas fórmulas da sexuação,
propostas pelo psicanalista francês em 1973, no Seminário 20.

Se nos referimos apenas ao primeiro nível de sua escrita, vemos que elas
trazem, de cada lado (lado
Homem e lado Mulher), uma proposição
quantificada existencialmente e outra quantificada
universalmente. As
universais trazem os seguintes conteúdos, respectivamente: para todo x, x é
Φ
(a letra grega escreve aqui a função predicativa “… ser submetido à
castração”); do lado mulher:
não todo x é Φ. Seguindo o léxico da lógica,
tem-se, portanto, que as universais “para todo x, x é
submetido à
castração”; “não todo x é submetido à castração” (Lacan altera aqui o modo
de usar a
negação com o universal). São essas proposições universais que
fazem parte, então, da distinção
entre Gozo fálico (Homem) e Gozo Outro
(Mulher).

Vale lembrar que, de acordo com Lacan, não há realidade pré-discursiva e,


por conseguinte, os
significantes ali empregados – Homem e Mulher –
cumpririam funções de semblante, isto é, tais
substantivos não teriam
quaisquer correspondências com a anatomia ou algum tipo de caráter
essencialista dos sujeitos. Grosso modo, essas
formulações lógicas podem ser traduzidas nos
seguintes termos comuns: a
articulação do homem se dá, de um lado, pela exclusividade do Gozo
fálico
e, de outro, pelo conjunto de todos os homens castrados. O conjunto de
todos os homens
equiparáveis em sua condição de castração só pode se moldar
por uma exceção à regra, isto é, por
alguém que emerge num lugar fora e
dentro do conjunto categorial universal – um homem não-
castrado. Na
psicanálise, a figura não-castrada é mítica e, portanto, inexistente.
Trata-se do Pai
Primevo da horda primitiva, tal como pensada por Freud em
Totem e tabu
[23]
.

Na composição lógica da mulher, não se trataria mais do Gozo fálico, mas


sim do Gozo Outro ou
Gozo feminino. Foge-se aqui da lógica dialética entre
conjunto ou classe categorial de todos os
homens castrados (universal) e a
exceção de um Pai Primevo não-castrado em seu Gozo (particular).
O Gozo
Outro seria, então, não-todo e giraria em torno do falo, significante
primordial. Com tal
articulação, Lacan supõe estremecer a noção de mulher,
afirmando que “Ⱥ mulher não existe”. Para
ele, tal axioma busca evidenciar
o fato de que não haveria como falar d’A mulher no interior de um
modelo
universal, tal como vimos na formulação do conjunto de homens equivalentes
na condição
castrada. No caso da mulher, haveria apenas a singularidade,
capaz de organizar o feminino a cada
vez. Se o homem deposita na mulher uma
função de objeto causa do desejo (objeto a), aquilo que o
fisga e o
convoca, a mulher tomaria o homem no lugar de falo. Daí advir o outro
axioma lacaniano,
segundo o qual, “a relação sexual não existe” – nesse
desajuste não há encontro que esteja apto a
formar Um.

Seria possível desmontar de diferentes modos esses preceitos que congelam


logicamente certos
problemas históricos e ideologicamente complicados para
os atuais debates em torno da questão de
gênero. A crítica mais óbvia e
imediata que poderia ser formulada é: como o psicanalista francês,
que
concedeu lugar central à linguagem e ao impacto dos significantes para o
sujeito do desejo,

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pode utilizar do evasivo argumento de que emprega os
significantes Homem e Mulher quase
aleatoriamente, visando tratar de
diferentes posições do sujeito? De todo modo,
independentemente de quem as
viva – Homem, Mulher, Trans, Bissexual, Intersexo, Queer, Gay,
Lésbica –,
ambas as modalidades de Gozo – o fálico e o Outro – são formulações
abstratas que
reiteram, sim, a subdivisão binária do patriarcado. A crítica
de Preciado não atinge, por
conseguinte, apenas corpos héteros, mas a
reprodução dos velhos moldes de poder e de Gozo que
ocorrem dentro desses
registros lógicos nas mais variegadas formas de semblantes. Seguindo por
aí,
outra crítica incontornável é a já mencionada correspondência entre
falo e cultura ou, em termos
mais precisos, o fato de que, para Lacan, só a
cultura tem o falo. Ora, não existe aí outro
fundamento para a articulação
que ele faz entre o falo, pela via da castração, e o termo “todo” a
não ser
o próprio fato contingente (que, portanto, não se deduz) da prevalência
histórica do
patriarcado. As coisas se passam aqui como se Lacan
transformasse uma contingência histórica em
necessidade lógica.

Por isso, é decisivo para a psicanálise, hoje, conseguir enxergar e


encontrar formas de lidar com a
tarefa que Preciado nomeou como
“despatriarcalização”. De um lado, disso depende sua
sobrevivência. De
outro, essa sobrevivência é fundamental porque fazer de conta que a divisão
da
subjetividade não existe corresponde talvez aos piores dados de partida
e às mais indesejáveis
formas de fazê-la operar.

Alheio a esse engessamento lógico que reitera modelos patriarcais e à ideia


de que a inexistência de
realidade pré-discursiva implique necessariamente
a ausência de corpo-carne, todo ele, entranhado
de linguagem e técnica,
Preciado carrega na materialidade transfigurada discursiva e
tecnologicamente nem um homem, nem uma mulher, mas sua condição mutante ou trans, portando
uma verdade Outra, que escapa
às regras daquela lógica constantemente torcida para manter
alguns de
nossos velhos lugares.

RESPOSTA À INTERVENÇÃO DE PAUL B. PRECIADO [24]

JEAN-CLAUDE MALEVAL

Um longo comentário criticando a psicanálise, acusada de obsolescência,


nunca havia ressoado na
tribuna de um congresso de uma escola de Lacan
antes do dia 17 de novembro de 2019. Não
podemos duvidar que a diatribe de
Paul B. Preciado vem testemunhar uma nova conjectura
histórica.

Ele rejeita a binaridade dos sexos, considerada patriarcal, em nome de um


construtivismo do
gênero, que supostamente estaria mais comprometido com a
modernidade. Ele ignora que a
abordagem lacaniana da sexuação não é
essencialista. Ela se afirma tão construtivista quanto a sua
abordagem: não
consideramos que o devir sexual seja determinado pela fisiologia [25]. Existem
fortes
identificações contrárias ao sexo biológico entre os neuróticos. E existem
suplências que
passam pela transexualização.

No entanto, segundo Lacan, a escolha do sexo não está aberta à infinita


diversidade de gêneros. Ele
a concebe como sendo determinada por uma
fixação de gozo em um sintoma, ao qual ele reduz a
função fálica: fixação
feita “toda” pelo dito homem, e não-toda pela dita mulher. Este é um dado
histórico? É o patriarcado que gera o primado da referência fálica? A
hipótese de Lacan[26] o
relaciona a um efeito de linguagem sobre o falasser. Mortificando
o vivente, o significante produz
um limite que se impõe ao gozo de cada um
- parcialmente, totalmente ou de modo algum (ele
pode falhar). A conexão do
gozo com a linguagem, que une a perda traumática do vivente (a) e sua
cifragem significante (S1), constitui o que Lacan designa como a função
fálica em seu último ensino
[27]. Embora de maneira
diferente, ela vale tanto para o homem como para uma mulher. Ela é
própria
ao falasser qualquer que seja a conjuntura social na qual é
construída[28]. No entanto,
ela
leva a abordar o gozo, destaca Jacques-Alain Miller, "pelo lado onde
ele é interditado"[29];
enquanto
P. B. Preciado o gostaria ilimitado.

Considerando que "a pornografia diz a verdade da sexualidade" [30], P. B. Preciado


postula, escreve
Sophie Marret-Maleval, um corpo gozante "capaz de escapar
da influência do significante", que o
leva a "visar a correlação entre
verdade e gozo", na busca pela "desalienação total" [31]. A
existência de um
corpo biológico natural, não tocado pela linguagem, está no início de suas
hipóteses; a partir de então, ele o concebe aberto a todas as construções
possíveis. Na sua
perspectiva, ele mesmo, hoje Paul, Beatriz ontem, o gozo
é mal limitado por escolhas identitárias,
voluntárias, temporárias,
reversíveis e estendidas ao infinito. Por outro lado, segundo Lacan, existe
um limite com o qual é preciso compor. Na época do Outro que não existe,
fica claro que esse limite
não é determinado por uma ordem simbólica. O
modo de gozo, para a maioria dos sujeitos, se

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encontra restrito e limitado
por uma captura contingente e singular a um significante. Disso resulta
uma
constatação: um modo de gozo próprio a cada um. Uma das conclusões mais
seguras do passe,
já esclarecida por Lacan, revela a produção de "esparsos
disparatados"[32] e desfaz
a ilusão de uma
travessia comum.

A diatribe de P. B. Preciado certamente se baseou em uma leitura rápida de


Lacan, que tendia a
congelar sua abordagem em um binário da sexuação; no
entanto, sua inserção em 2019, em um
congresso de psicanálise, não pode ser
considerada um evento menor. Os aplausos que pontuaram
positivamente seus
comentários várias vezes atestam que eles não deixaram de ecoar em um
grande
público. Por mais questionável que nos pareça seu discurso, ele não
deixa de ter uma grande
repercussão sobre os sujeitos cada vez mais
numerosos que aderem a ele: ele modifica alguns de
seus comportamentos e às
vezes transforma voluntariamente seus corpos.

B. Preciado iniciou sua intervenção formulando questões que não devemos


negligenciar muito
rapidamente: quantos analistas da Escola (AE)[33] são homossexuais [34]? Quantos AEs são
transexuais[35] ou
transgêneros? É certo que o passe implica uma desidentificação que exclui
se
apresentar sob esses significantes, mas é ele compatível com esses modos
de gozo? Como um
analista que conhece hoje seu nó subjetivo não borromeano
pode abordar o passe? Como nenhum EA
até agora se apresentou assim, a
escolha se reduziria para ele, em renunciar a se introduzir na
experiência
ou em dar uma forma neurótica ao seu testemunho? Nos dois casos, a
investigação de
Lacan sobre se tornar um analista sofre um abalo. Não há
dúvida, porém, que no século XXI os gozos
que determinam a passagem ao
analista demonstram uma diversidade que vai muito além dos
modos de gozo do
século passado. Por que, por exemplo, uma substituição não poderia levar a
isso?

A referência continuinista certamente forneceria uma solução fácil: seria


suficiente no passe
destacar o S1 do sinthoma sem se preocupar com
as diferenças de funcionamento subjetivo. No
entanto, trata-se de não
ignorar a distinção entre o sinthoma "desabonado do inconsciente" [36] e
aquele que, ao
contrário, está articulado a ele. Até então, os passes parecem tratar
apenas os
últimos.

Além disso, uma discussão sobre a relevância do conceito desinthome no autismo poderia ser
evocada [37]. O que o autismo tem a
ver com o passe? Lembremo-nos de Jacqueline Léger,
convidada da Primeira
Jornada do Centro de Estudos e Pesquisas sobre Autismo (CERA) [38]. Ela nos
disse que,
após uma longa análise, trabalhou por muitos anos como psicóloga clínica de
formação
analítica. Certamente ela não deu o passo para se tornar uma
analista. Mas outras pessoas autistas o
farão, se já não o tiverem feito.
Quanto a saber se a prática de analistas não neuróticos irá se
deparar com
limites, a questão merece ser levantada. Seria muito ilusório, no entanto,
supor que os
analistas neuróticos nunca iriam se deparar com limites - se
eles fossem bem analisados.

P. B. Preciado chamou nossa atenção para a estreiteza do modelo no qual o


passe seria baseado.
Devemos afirmar, contra a experiência, que a prática
analítica é reservada aos neuróticos? Isso é
pouco provável, exceto para
retornar ao ato de Lacan que institui uma autorização que se baseia
em uma
decisão do analista. Portanto, por que limitar a investigação desejada por
Lacan sobre
tornar-se analista? Suas modalidades de ontem ainda são as de
hoje? Não se costuma dizer que o
passe não pode ser a verificação de
qualquer conformidade? Levar Lacan a sério quando ele convida
quem recorre
à psicanálise a "alcançar em seu horizonte a subjetividade de seu tempo" [39] não
implica uma
renovação contínua do passe? - à semelhança por exemplo de um
posicionamento
acolhedor do casamento para todos. Certamente, nada proíbe
um homossexual, um transexual, um
transgênero, ou um autista de se
apresentar a um passe, mas na prática eles não passam por ele,
não o
atravessam ou mesmo não o declaram. Pois o AE ainda não está obrigado a
aderir a uma parte
da ordem simbólica?

Uma dificuldade, no entanto, P. B. Preciado não deixou de enfatizar: os


entrelaçamentos sempre
persistentes da teoria psicanalítica com o discurso
da psiquiatria. Como apresentar-se ao passe
dando a entender que se é
psicótico, perverso ou autista? Obviamente, o processo é dificultado por
esses significantes. A ampliação do passe leva então à premissa de uma
mutação da denominação
dos funcionamentos subjetivos? Deveríamos falar de
estrutura repressiva ou substitutiva? [40] Talvez
seja melhor,
para produzir uma ruptura mais radical, distinguir apenas entre o nó
borromeano, o nó
não borromeano e o nó pela borda?

Todas essas questões complexas sobre o passe e nossa terminologia hoje


estão surgindo com maior
força. Ainda é muito cedo para levantá-las? Mas
quando chegará o momento certo? Devemos temer
que elas abram um abismo? Ou
devemos tentar entender melhor uma mutação já em andamento? A
escolha que
nos é oferecida é de sufocá-las, o que não as impediria de surgir, ou
acompanhar seu
progresso, sem deixar de considerá-las. Temos que ter
cuidado para não deixar de ouvir a
intervenção de P. B. Preciado: ele veio
lembrar a psicanálise da necessidade de evolução
permanente. Os modos de
gozo são tributários das mudanças sociais. Também Lacan nunca para de
apontar que "o inconsciente é política" [41]!

www.sedes.org.br/Departamentos/Psicanalise/index.php?apg=b_visor&pub=53&ordem=7 15/17
17/08/2021 Departamento de Psicanálise - Sedes Sapientiae - PUBLICAÇÕES
[1]
Link da intervenção de Paul B. Preciado na Jornada da Escola da
Causa Freudiana, França:
https://www.youtube.com/watch?v=vqNJbZR_QZ4&feature=youtu.be
[2]
PRECIADO, Paul B. (2019) Um apartamento em Urano (Conferência)
[Trad. C. Q. Kushiner & P. S.
Souza Jr.]. Lacuna: uma revista de psicanálise, São Paulo, n. -8, p.
12, 2019. Disponível em: <
https://revistalacuna.com/2019/12/08/n-8-12/
>.
[3]
“Também quero cumprimentar aqui todos os psicanalistas falantes de
espanhol, da América
Latina e da Espanha. Senhoras, senhores e,
sobretudo, outros — aqueles que não são senhores nem
senhores”. (N.
do R., como todas as notas inseridas neste texto)
[4]
KAFKA, Franz (1917) “Um relatório para uma Academia”. In: Um médico rural, 3ª ed. Trad. M.
Carone. São Paulo:
Brasiliense, 1994; pp. 57-67.
[5]
Referência ao livro do parisiense Pierre-Henri Castel (1963-)
intitulado “A metamorfose
impensável: ensaio sobre o transexualismo
e a identidade pessoal”. O autor, filósofo e historiador
das
ciências, é membro da Associação Lacaniana Internacional – ALI, e
exerce a psicanálise em
Paris. Cf. CASTEL, Pierre-Henri (2003)
La métamorphose impensable: Essai sur le transsexualisme et
l’identité personnelle
. Paris: Gallimard, 2003.
[6]
KAFKA, Franz (1915) A metamorfose. Trad. M. Carone. São
Paulo: Companhia das Letras, 1997.
[7]
Referência à imagem que consta no material de divulgação do evento.
Cf. <
www.femmesenpsychanalyse.com
[8]
John William Money (1921-2006) foi um psicólogo e sexólogo
neozelandês que emigrou para os
Estados Unidos em 1947. Os estudos
que realizou na década de 1950 foram os primeiros a oferecer
subsídio científico para a hipótese de que a diferença entre homens
e mulheres é uma construção
social, e não algo biológico.
[9]
Embora os Estados Unidos, como federação, não reconheçam os gêneros
não binários, alguns de
seus estados o fazem. Oregon foi o primeiro
(“Huge validation: Oregon becomes first state to allow
official third gender option”. Disponível em: <
www.theguardian.com/us-
news/2017/jun/15/oregon-third-gender-option-identity-law
>), seguido por outros — como
Washington, Califórnia, Nova
Jersey, dentre outros.
[10]
“Argentina emite por primera vez identificación sin especificar
género”. Disponível em: <
https://cnnespanol.cnn.com/2018/11/06/argentina-emite-por-primera-vez-identificacion-sin-
especificar-genero/
>.
[11]
“Australia is first to recognise ‘non-specified’ gender”.
Disponível em:
>
[12]
Procriação (ou Reprodução) Medicamente Assistida.
[13]
Conhecida vulgarmente como “barriga de aluguel”.
[14]
Originalmente publicado na revista Psicanálise & Barroco. Disponível em:
http://www.seer.unirio.br/index.php/psicanalise-barroco/announcement/view/145
[15]
Psicanalista, escritora, membro do Corpo Freudiano (RJ),
correspondente da Association
Insistance (Paris) e
integrante do Movimento Articulação das Entidades Psicanalíticas
Brasileiras.
[16]
Originalmente publicado no site Psicanalistas pela democracia, 24 de dezembro de 2019.
Disponível em:
https://psicanalisedemocracia.com.br/2019/12/subversoes-da-logica-falica-freud-
lacan-preciado-por-tania-rivera/
[17]
Psicanalista, ensaísta, professora na Universidade Federal
Fluminense.
[18]
Originalmente publicado na Revista Cult, 10 de janeiro de
2002. Disponível em:
https://revistacult.uol.com.br/home/paul-b-preciado-psicanalise/
[19]
Psicanalista, doutora em Psicologia Social e do Trabalho pela USP.
Ex-aluna do Curso de
Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.
[20]
Professora de Filosofia na UFLA e doutora em Filosofia pela UFsCar.
[21]
https://revistacult.uol.com.br/home/libido-nao-tem-genero/
[22]
https://revistacult.uol.com.br/home/dossie-cartografias-da-masculinidade/
[23]
https://revistacult.uol.com.br/home/totem-cartas-e-tabu/
[24]
Tradução para o português por Arryson Zenith Jr.
[25]
São os psicanalistas que dizem se referir a Lacan tendo uma
abordagem essencialista da
sexuação que fazem com que a
transexualidade seja considerada “uma loucura”: segundo Frignet:
“é
impossível não ser um homem ou uma mulher. A essa primeira
impossibilidade, se soma uma
segunda: a transformação exterior e o
desejo pessoal do sujeito, é impossível modificar esse
pertencimento. Somente a aparência será mudada, o sujeito, queira
ou não, será para ele mesmo e
para os outros, um homem ou uma
mulher” (Frignet H., Le transsexualisme, Paris, Desclée de
Brouwer, 200, p.149 & 128).
[26]
A abordagem lacaniana da sexuação, como qualquer teoria, se baseia
em hipóteses
indemonstráveis, isso vale também para a teoria de
gênero. Invocar a experiência analítica em favor
de uma, ao invés
da outra, seria recorrer ao que Lacan chamou de “carta marcada da
clínica”
(Escritos, p. 815).
[27]
“O falo é a conjunção do que chamei de esse parasita, ou seja, o
pedacinho de pau em
questão, com a função da fala”. (Seminário 23,
p.16).
[28]
Ganharíamos no século XX em acentuar a abordagem lógica da função
fálicas, que a reduz a
uma barra sobre o gozo operado por uma
cifragem significante, a fim de destacá-la mais
radicalmente de
qualquer imagem peniana.
[29]
J.-A. Miller, “Orientação Lacaniana, O Partenaire-sintoma”
(1997-1998) lição de 18 de março de
1998
[30]
Preciado, B. Testo Junkie. Sexe drogue et biopolitique.
Paris, Grasset, 2008, p. 218.
[31]
Marret-Maleval S. “Sur Testo Junkie. Sexe drogue et biopolitique de
Beatriz Preciado”, Ornicar?
58, 2018, p. 195-198.
[32]
Lacan, Outros Escritos, p. 569

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17/08/2021 Departamento de Psicanálise - Sedes Sapientiae - PUBLICAÇÕES
[33]
AE: título concedido por três anos àqueles cujo percurso e o fim da
análise têm valor de ensino,
ao final do procedimento do passe,
instituído por Lacan, por sua vez, os passadores, analisandos
ainda
em análise, transmitem ao cartel do passe o testemunho do passante.
[34]
No que diz respeito ao sujeito homossexual, Miller afirma que a
psicanálise visa
“essencialmente obter que o ideal deixe de impedir
o sujeito de praticar seu modo de gozo, [...]
aliviar o sujeito de
um ideal que o oprime por ocasião e colocá-lo em posição de
sustentar seu mais-
de-gozar, o mais-de-gozar que ele é capaz, o
mais-de-gozar que lhe é próprio, ter uma relação mais
confortável”
(Miller & Laurent, O outro que não existe e seus comitês de
ética, lição de 21 de maio
de 1997, publicado em espanhol). Não
compartilhamos as opiniões dos psicanalistas que afirmam ser
capazes de identificar o normal e o patológico, tal como Charles
Melman no jornal Le monde de 01
de outubro de 2005: “Façamos uma
pergunta simples, a homossexualidade constitui uma patologia?
É o
que psiquiatria americana hoje rejeita. Se admitirmos que ela está
organizada por uma defesa
contra a diferença e a alteridade, neste
caso, é incontestável que ela constitui”.
[35]
Quando a psicose ordinária é suplantada, por exemplo por uma
transexualização bem assumida,
ela constitui um dos modos de
conformidade social, e nada autoriza a considerá-la como uma
patologia. (ver Maleval J.-C., « Du fantasme de changement de sexe
au sinthome transsexuel »,
Repères pour la psychose ordinaire. Paris, Navarin, 2019,
p. 186-208).
[36]
Lacan J., « Joyce le symptôme I », em Joyce avec Lacan, Paris,
Navarin, 1987, p. 24
[37]
Parece que a cura do autismo permite às vezes não liberar o S1 de
um sinthoma, mas sim
construir um S1 como síntese.
[38]
Jornada do Centro de Estudos e Pesquisas sobre o Autismo, Paris, 10
de março de 2018.
[39]
Lacan J., « Fonction et champ de la parole en psychanalyse »
(1953), Écrits, Paris, Seuil, coll.
Champ Freudien, 1966,
p. 321.
[40]
Cf. Maleval J.-C., Repères pour la psychose ordinaire,
Paris, Navarin, 2019, p. 199-200.
[41]
Lacan, Seminário 14, lição de 10 maio de 1967, disponível no blog
Lacan em .pdf

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