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SÉRIE LETRAS PSICANALÍTICAS 4

Uma
psicanálise
por vir
Repensando a psican�lise
no s�culo XXI

PATRÍCIA GHEROVICI
Uma
psicanálise
por vir
SÉRIE LETRAS PSICANALÍTICAS 4

Uma
psicanálise
por vir
Repensando a psican�lise
no s�culo XXI

PATRÍCIA GHEROVICI
©2022 Aller Editora
Uma psicanálise por vir: repensando a psicanálise no século XXI

Editora Fernanda Zacharewicz


Conselho editorial Andréa Brunetto — Escola de Psicanálise dos Fóruns do
Campo Lacaniano
Beatriz Santos — Université Paris Diderot — Paris 7
Jean-Michel Vives — Université Côte d’Azur
Lia Carneiro Silveira — Escola de Psicanálise dos Fóruns
do Campo Lacaniano
Luis Izcovich — Escola de Psicanálise dos Fóruns do
Campo Lacaniano
Tradução William Zeytounlian
Revisão Fernanda Zacharewicz
Capa Wellinton Lenzi
Diagramação Sonia Peticov

Série Letras psicanalíticas


Primeira edição: maio de 2022

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


Ficha catalográfica elaborada por Angélica Ilacqua CRB-8/7057

G342p Gherovici, Patricia


Uma psicanálise por vir: repensando a psicanálise no século
XXI / Patricia Gherovici. — São Paulo: Aller, 2022.
64 p. (Letras psicanalíticas; vol 3 )

ISBN: 978-65-87399-35-5
ISBN e-book: 978-65-87399-34-8

1. Psicanálise I. Título

22-2691 CDD 150.195


CDU 159.964.2

Índice para catálogo sistemático


1. Psicanálise

Publicado com a devida autorização e com


todos os direitos reservados por

ALLER EDITORA
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AO ALCANCE DE TODOS

A Aller Editora nasceu do compromisso com a


transmissão da psicanálise por meio da publi-
cação de obras essenciais para a formação do
analista. Desde sua fundação, firmamos o tra-
balho de parceria com nossos autores, logramos
chegar a mais psicanalistas em nosso imenso país,
ultrapassamos as fronteiras institucionais. Enfim,
insistimos na convicção de que é possível ampliar
o acesso às publicações psicanalíticas.
Aprendemos que se comemora dando um
passo a mais em direção ao desejo. Como coro-
lário disso, surgiu a ideia de disponibilizarmos
periodicamente textos de nossos autores no for-
mato de pequenos livros que pudessem ser bai-
xados gratuitamente em qualquer computador,
celular ou tablet.
LETRAS PSICANALÍTICAS

Nomeamos essa série “Letras Psicanalíticas”,


pois “letra” em francês se escreve igual a “car-
ta” — lettre. Nosso desejo se estende por essas
duas vias: que a carta chegue a seu destino, a
todos os psicanalistas, e que a letra de nosso dese-
jo continue se escrevendo.
F e r n a n da Z a c h a r e w i c Z
Editora

6
4

Uma psicanálise por vir:


repensando a psicanálise
no século XXI

por Patricia Gherovici

No dia 17 de novembro de 2019, em um dos


últimos encontros presenciais antes da pandemia
de COVID-19, Paul B. Preciado falou a uma
audiência internacional de psicanalistas lacania-
nos em Paris. O encontro anual estava centrado
no tema “Mulheres na psicanálise”, começou
com uma observação desconcertante — “Há
mulheres na psicanálise!” — e Preciado, conheci-
da figura transgênero, havia sido convidado pelos
organizadores para a principal palestra.
O discurso de Preciado foi mais do que como-
vente: este de fato gerou o que ele chamou de
LETRAS PSICANALÍTICAS

“um terremoto”. A controvérsia foi desencadea-


da já nas palavras de abertura, quando Preciado
se dirigiu à plateia com a saudação de praxe,
“senhoras e senhores”, e logo a estendeu àque-
les que não eram nem senhoras, nem senhores.
Preciado interrogou incisivamente se havia no
gigantesco auditório ao menos um psicanalista
que fosse abertamente queer, trans ou não binário.
A resposta foi um silêncio glacial interrompido
por risadinhas nervosas. Ele prosseguiu pergun-
tando se alguma das instituições psicanalíticas
presentes no encontro assumia qualquer res-
ponsabilidade pelas atuais mudanças no que ele
chamou de “epistemologia de gênero e sexuali-
dade”, isto é, a forma como pensamos, tratamos
e teorizamos gênero e sexualidade, bom como o
reconhecimento dos limites do que sabemos.
A audiência ficou dividida entre aqueles
que aplaudiram e os que vaiaram, pedindo que
Preciado deixasse o local. Uma mulher expres-
sou sua raiva tão alto que foi ouvida do palco
por Preciado. Ela tinha gritado: “Não devemos
deixá-lo falar, ele é o Hitler!”. Embora esta

8
Uma p s ic anális e p or v ir : rep ens an do a p s ic anális e n o s é culo X X I

péssima comparação reconheça a posição de


Preciado enquanto importante liderança políti-
ca, ela o pinta como liderança autoritária e dita-
torial. O discurso dele foi ainda interrompido por
um dos organizadores, que disse a Preciado que
seu tempo tinha acabado, depois de ele ter lido
apenas um quarto de sua conferência.
A apresentação foi capturada por alguns celu-
lares e o vídeo se tornou viral como uma sex tape,
gerando ondas que atravessaram o mundo.
Pouquíssimos dias depois, transcrições provisó-
rias da conferência haviam sido traduzidas para
o espanhol, o italiano e o inglês, e publicadas
online. Muitas versões aproximadas da palestra
circularam na Argentina, Colômbia, Alemanha,
Espanha, Brasil1 e França. Em resposta a essa
circulação não autorizada da palestra, Preciado
publicou o texto original na íntegra em um

1
PRECIADO, P. B. “Conferência: Um apartamento em
Urano”. Tradução de Camila Quinteiro Kushnir. In: Revista
Lacuna, nº 8, 2019. Disponível em: https://revistalacuna.
com/2019/12/08/n-8-12/#_ftn2, acessado em 11 de maio
de 2022.

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LETRAS PSICANALÍTICAS

pequeno volume, lançado em 2020 com ver-


sões para o francês, o espanhol e o inglês, sob o
título Can the Monster Speak? Report to the Academy
of Psychoanalysts.2
Preciado estava aludindo ao conto de Kafka,
“Um relatório para uma Academia”, de 1917.
No conto, um macaco chamado Pedro Vermelho,
que aprendeu a viver como um humano, apre-
senta a uma academia de especialistas a história
de como alcançou sua transformação em euro-
peu aceitável e educado (ele, porém, está disposto
a abaixar as calças sempre que precisar mostrar a
ferida a bala em comemoração à sua captura na
Costa do Ouro, na África). Dessa forma, Preciado
exibe a si mesmo como espécie transexual, igual
ao macaco de Kafka que, ironicamente, alegou
ser “humano” como qualquer outra pessoa da
plateia, produto de uma transformação deli-
berada. Para continuar com o Kafka, evocarei
sua Metamorfose e sustentarei que a psicanálise

2
PRECIADO, P. B. Can the Monster Speak? Report to the Academy of
Psychoanalysts. Londres: Fitzcarraldo Editions, 2021.

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Uma p s ic anális e p or v ir : rep ens an do a p s ic anális e n o s é culo X X I

também precisa sofrer uma metamorfose, cujo


passo inicial poderia ser uma mudança de sexo.
Comecemos explorando mais de perto quem
eram os 3500 psicanalistas a quem Preciado,
como Pedro Vermelho, dirigiu seu “relatório”.
Em 1980, não muito tempo antes de sua
morte, o psicanalista francês Jacques Lacan dis-
solveu a École Freudienne de Paris, grupo
que havia fundado em 1964 após ter sido expulso
pela Associação Internacional de Psicanálise
(IPA). Em 1981, uma nova escola foi criada e
chamada de École de la Cause Freudienne
(Escola da Causa Freudiana). O chefe da nova
escola era Jacques-Alain Miller, genro e executor
literário com controle financeiro e legal absoluto
sobre o trabalho de Lacan.
Para sua fala na École de la Cause Freu-
dienne, Preciado escolheu citar a fábula kafkiana
de um macaco educado, Pedro Vermelho, que se
apresenta perante os membros de uma sociedade
científica e conta a história de sua vida, não como
uma estória de emancipação, mas sim como uma
“crítica do humanismo colonial europeu e suas

11
LETRAS PSICANALÍTICAS

categorias antropológicas”. Paul se torna Pedro,


um macaco transformado em humano para esca-
par ao confinamento de sua jaula. Preciado disse
à plateia:

Como o macaco Pedro Vermelho se dirigiu à


Academia de cientistas, eu me dirijo hoje a vocês,
acadêmicos da psicanálise, a partir da minha
jaula de homem transexual. [Eu], um corpo
marcado pelo discurso médico e jurídico como
transexual; caracterizado, na maior parte dos
diagnósticos psicanalíticos de vocês, como sujeito
de [“metamorfose impensável”] [...]; estando,
segundo a maior parte das teorias de vocês, para
além da neurose; à beira, ou mesmo dentro, da
psicose; tendo, segundo vocês, uma incapacidade
de resolver corretamente um complexo de Édipo
ou havendo sucumbido à inveja do pênis.3

3
PRECIADO, P. B. “Conferência: Um apartamento em
Urano”. Tradução de Camila Quinteiro Kushnir. In: Revista
Lacuna, nº 8, 2019. Disponível em: https://revistalacuna.
com/2019/12/08/n-8-12/#_ftn2, acessado em 11 de maio de
2022.

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Uma p s ic anális e p or v ir : rep ens an do a p s ic anális e n o s é culo X X I

E continuou:

Eu me dirijo a vocês como um macaco huma-


no de uma nova era. Eu, enquanto corpo trans,
enquanto corpo não binário — a quem nem
a medicina, nem o Direito, nem a psicaná-
lise, nem a psiquiatria reconhecem o direito
de falar, nem a possibilidade de produzir um
discurso uniforme de conhecimento sobre mim
mesmo —; eu aprendi, como Pedro Vermelho,
a linguagem do patriarcado colonial: a língua
de vocês. Eu estou aqui para me dirigir a vocês.4

Preciado explicou que, quando se voltou ao


conto de Kafka, o tema do simpósio pareceu mais
próximo da época do autor da Metamorfose do que
de sua própria época. Ele criticou os organizado-
res da conferência por tratarem das mulheres na
psicanálise como se fossem animais exóticos, ain-
da não reconhecidos plenamente como sujeitos
políticos, e sugeriu que “seria preciso, isso sim,

Ibid.
4

13
LETRAS PSICANALÍTICAS

organizar um encontro sobre os homens brancos


heterossexuais e burgueses na psicanálise”5.
A fala de Preciado abordou a heteronormativi-
dade e o binarismo da psicanálise, isto é, da tradi-
ção lamentável da psicanálise, lacaniana ou não,
de patologizar qualquer expressão não normativa
de gênero ou sexualidade. Ele mencionou “uma
epistemologia patriarcal e colonial da diferença
sexual”. Com isso, fez referência à tradição, em
psicanálise, de considerar a inclinação heteros-
sexual, genital, reprodutiva e voltada à família
como norma, um modelo cujos desvios de padrão
serão patologizados. Exemplo disso é que, mesmo
em Freud, é esperado que qualquer sujeito femini-
no terá que deslocar seu centro de prazer erótico
do clitóris para a vagina, de modo a alcançar a
maturidade reprodutiva plena. Freud comparou,
de maneira infame, a questão da sexualidade
feminina ao continente obscuro da África.
O discurso de Preciado foi recebido pela maio-
ria como provocação; por alguns, como ataque e,

Ibid.
5

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Uma p s ic anális e p or v ir : rep ens an do a p s ic anális e n o s é culo X X I

por outros poucos, como uma interpelação, para


citar o filósofo Louis Althusser. Althusser define
a “interpelação” como um “ritual material do
reconhecimento ideológico da vida quotidiana”6.
Uma pessoa que se apresente como sendo do
sexo feminino, mas tenha um passaporte que
diga “masculino”, pode ser “interpelada” pelas
autoridades de fronteira que, por sua vez, podem
ou não a deixar embarcar no avião. Judith Butler
desenvolve essa ideia de interpelação como habi-
tualmente relacionada ao gênero. Ela argumenta
que somos saudados, chamados e convocados a
ser por experiências que nos posicionam como
sujeitos genderizados. No momento em que
alguém diz “é menina!” ou “é menino!”, esta
declaração nos interpela e nosso ser é sancio-
nado com um valor de grande peso ideológico.
Como o sujeito da ideologia é também o sujeito
do inconsciente psicanalítico, eis um tema sobre
o qual precisamos refletir. Como reivindico meu

6
ALTHUSSER, L. Ideologia e aparelhos ideológicos do Estado. Tra-
dução de José de Moura Ramos. Lisboa: Editorial Presença,
Martins Fontes, 1980, p. 97.

15
LETRAS PSICANALÍTICAS

nome e como sou reivindicada por ele? Como


sou reivindicada [claimed] por noções de identida-
de? Como sou percebida e recebida no mundo,
o que afeta meu sentido pessoal, ao me declarar
homem, mulher, ou outra coisa, trans, cis ou mes-
mo psicanalista?
Na palestra em Paris, Preciado se designou
“renegado”, um “mutante”, alguém que foi, em
outro momento, “uma mulher em psicanálise”.
Tendo sido designado ao sexo feminino no nasci-
mento, como o macaco de Kafka, Preciado reali-
zou uma mutação e saiu de uma “jaula apertada
[...] para entrar em outra jaula; mas, pelo menos
dessa vez, com os meus próprios pés”7. Reconhe-
cendo o aspecto alienante da identidade, ele falou
de um lugar que descreveu como uma “jaula
escolhida e redesenhada de homem trans, do
corpo, do gênero não binário: uma jaula política

7
PRECIADO, P. B. “Conferência: Um apartamento em
Urano”. Tradução de Camila Quinteiro Kushnir. In: Revista
Lacuna, nº 8, 2019. Disponível em: https://revistalacuna.
com/2019/12/08/n-8-12/#_ftn2, acessado em 11 de maio de
2022.

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Uma p s ic anális e p or v ir : rep ens an do a p s ic anális e n o s é culo X X I

que é, em todo caso, melhor que a dos homens


e das mulheres, pois ao menos reconhece o seu
estatuto de jaula”.
Que jaula é essa a que Preciado faz referência?
Quando Preciado perguntou quantos psicana-
listas da Escola da Causa se declaravam aberta-
mente gays e recebeu, como resposta, um silêncio
apavorado, ele admitiu que não estava pedindo
aos psicanalistas homossexuais para saírem do
armário, mas, antes, aos psicanalistas heteronor-
mativos para saírem do armário da norma.
Normas e conceitos enquanto “jaulas” de
gênero e sexualidade são construções que têm
uma história. Preciado sublinhou o fato de gênero,
sexualidade e transexualidade serem construções
históricas. Uma vez assumidos como categorias
universais atemporais, eles se tornam “jaulas”.
Dessa maneira, Preciado usou a história como
instrumento analítico para revelar histórias alter-
nativas, conturbadas, e explorar o que ele chama
de “regime de sexo, gênero e da diferença sexual”.
Como concordo com este reenquadramen-
to histórico, irei compartilhar com vocês um

17
LETRAS PSICANALÍTICAS

capítulo importante, mas esquecido na história da


psicanálise, de uma ideologia não binária e não
normativa externa à epistemologia que Preciado
critica. Voltarei aos primórdios da psicanálise,
quando Freud colaborava com os principais
sexólogos de sua época. Entre eles estava Magnus
Hirschfeld, o assim chamado dr. Einstein do
Sexo, fundador, em Berlim, do primeiro instituto
mundial de pesquisa sexual, pesquisador e clíni-
co pioneiro, além de defensor LGBT com um
trabalho inovador sobre transgênero e mais de
2000 artigos publicados sobre homossexualidade
e comportamentos sexuais variantes. Hirschfeld,
um fervoroso ativista e reformador sexual, era
também cross-dresser ocasional e uma figura polí-
tica central no incipiente campo da sexologia na
Alemanha. Ele publicou muitos dos primeiros
artigos psicanalíticos, incluindo os de Freud.
Hirschfeld exerceu um papel importante nos pri-
mórdios da psicanálise. Freud e Hirschfeld colabo-
raram de perto: Freud contribuiu com artigos para
os jornais de Hirschfeld, ao passo que Hirschfeld se
interessou seriamente pela psicanálise. Além disso,

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Uma p s ic anális e p or v ir : rep ens an do a p s ic anális e n o s é culo X X I

em agosto de 1908, Hirschfeld cofundou, ao lado


de Karl Abraham, a Sociedade Psicanalítica de
Berlim. Em 1911, no terceiro congresso interna-
cional de psicanalistas, Freud acolheu Hirschfeld
de maneira bastante calorosa como convidado de
honra, expressando publicamente sua admiração
pela “autoridade berlinense em homossexualida-
de”. Mesmo com o reconhecimento, Hirschfeld
deixou a Sociedade Psicanalítica de Berlim pouco
depois do encontro de Weimar, apesar das tenta-
tivas de Abraham de fazê-lo ficar.
O afastamento de Hirschfeld havia sido
precipitado por “uma causa externa”, também
descrita por Abraham como “uma questão de
resistências”, na ocasião da objeção de Jung à
homossexualidade do colega8. Diferentemente de
Jung, Freud via a defesa dos direitos dos homos-
sexuais feita por Hirschfeld como um avanço
positivo e incentivou Abraham a trabalhar com
ele desde o começo. O afastamento de Hirschfeld

DOSE, R. Magnus Hirschfeld: The Origins of the Gay Liberation


8

Movement. Nova York: Monthly Review Press, 2014.

19
LETRAS PSICANALÍTICAS

amargurou Freud profundamente, que tentou


esconder a decepção comentando que não se tra-
tava de uma perda tão grande. Não muito tempo
antes da ruptura entre os dois, porém, Freud
escreveu uma carta a Jung expressando seu dese-
jo de incluir sexologistas no movimento psicanalí-
tico e insistiu na importância de tal colaboração.
Enquanto ambos, Freud e Hirschfeld, opu-
nham-se à criminalização do desejo pelo mesmo
sexo e não o consideravam uma anormalidade
no sentido patológico, eles discordavam quanto
às causas da homossexualidade9. Hirschfeld acre-
ditava numa homossexualidade biológica, inata,
enquanto Freud considerava que as experiências
infantis determinavam as tendências libidinais e
a escolha de objeto inconscientes. Mais do que
advogar contra a punição das manifestações
não normativas da sexualidade com base na
alegação de que variantes biológicas determi-
nam o comportamento, a abordagem original de

MANCINI, E. Magnus Hirschfeld and the Quest for Sexual Freedom.


9

Nova York: Palgrave, 2010.

20
Uma p s ic anális e p or v ir : rep ens an do a p s ic anális e n o s é culo X X I

Freud consistia em separar sexo e reprodução,


destacando o caráter não linear da sexualidade
humana. É possível ler Freud de maneira norma-
tiva e patriarcal — associando a masculinidade à
atividade e a feminilidade à passividade, dando
ênfase à inveja do pênis, ao masoquismo femini-
no e ao papel do pai —, mas também é possível
encontrar um “Pink Freud10”.
No texto psicanalítico fundador de 1905, Três
ensaios sobre a teoria da sexualidade, Freud11 concebe
a pulsão sexual como fundamentalmente bisse-
xual e intrinsicamente queer, como mostraram
Christopher Lane e Tim Dean12. Philippe Van
Haute e Herman Westerink13 demonstraram, por

10
A autora faz aqui uma brincadeira com a cor pink, um Freud
Rosa, e a banda inglesa de rock progressivo, Pink Floyd. [NdT]
11
FREUD, S. (1905). Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. In:
Obras completas, volume 6: Três ensaios sobre a teoria da sexualidade,
Análise fragmentária de uma histeria (“O caso Dora”) e outros textos
(1901-1905). Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo:
Companhia das Letras, 2016.
12
DEAN, T.; LANCE, C. (orgs.) Homosexuality and Psychoanalysis.
Chicago: University of Chicago Press, 2001.
13
VAN HAUTE, P.; WESTERNINK, H. Deconstructing Norma-
tivity? Re-reading Freud’s 1905 Three Essays. Nova York: Routledge,
2017.

21
LETRAS PSICANALÍTICAS

um cuidadoso estudo textual, que a primeira edi-


ção dos Três ensaios não mencionava o complexo
de Édipo e promovia a deseterossexualização e a
sexualidade polimorfa. Essa queerness14 da psica-
nálise foi produtivamente elaborada no trabalho
de Judith Butler15, David Eng16, Lee Edelman17 e
Preciado18, entre outros.
Fazendo uso dos instrumentos teóricos da psi-
canálise, os estudos queer mostraram que no nível
da pulsão sexual não existe objeto ou gênero pre-
determinados e, consequentemente, nenhuma
norma prescritiva. A potencial liberdade da pul-
são — liberdade que também é ruína [doom] —
não desce muito bem para o público em geral ou

14
Optamos por preservar aqui o original queerness por não
possuir um bom equivalente em português. Além de qualificar
aquilo que é queer, o termo dicionarizado significa “estranheza”,
“singularidade”, “excentricidade”. [NdT]
15
BUTLER, J. Problemas de gênero: Feminismo e subversão da identida-
de. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.
16
ENG, D. Racial Castration: Managing Masculinity in Asian America.
Durham: Duke University Press, 2001.
17
EDELMAN, L. No Future: Queer Theory and the Death Drive.
Durham: Duke University Press, 2005.
18
PRECIADO, P. B. Testo Junkie: sexo, drogas e biopolítica na era
farmacopornográfica. São Paulo: N-1 edições, 2018.

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Uma p s ic anális e p or v ir : rep ens an do a p s ic anális e n o s é culo X X I

mesmo para a maioria dos psicanalistas. A psica-


nálise tem a tendência a abordar essa realidade
através das lentes de valores conservadores. Isso
vai a contrapelo das próprias bases da psicaná-
lise, uma vez que sua teoria está nas raízes de
muitas críticas mordazes que recebeu da cultural
heteropatriarcal dominante.
Ainda que Freud nunca tenha tratado dire-
tamente o gênero, ele problematizou a sexuali-
dade humana quando definiu a diferença sexual
como consequência psíquica da descoberta pela
criança da diferença anatômica entre os sexos.
Mesmo que a obra de Freud sobre a sexualida-
de infantil pareça descrever uma progressão da
latência infantil à atividade sexual adulta, o que
ele propõe, contudo, é uma evolução não linear,
o que fica claro já na mais superficial das leituras
de seus famosos estudos de caso.
À medida que desnaturaliza o sexo em termos
de cultura e história, e que problematiza o gênero
como movediço e conflituoso, a psicanálise nos
permite reconsiderar as formas patriarcais e hete-
rossexistas de dominação ideológica e cultural.

23
LETRAS PSICANALÍTICAS

Era exatamente isso que Preciado estava


fazendo em sua fala. Ele concluiu com uma
recomendação, interrompida pelos aplausos, que
poderia ser ouvida como um alerta. Ele disse
acreditar que restava aos psicanalistas, hoje, a
tarefa de começar um processo de despatriarca-
lização, deseterossexualização e descolonização
do nosso campo. E encerrou com um apelo por
“uma psicanálise mutante à altura dessa mutação
de paradigma. Talvez somente este processo de
transformação — por mais terrível e desmante-
lador que lhes possa parecer — mereça hoje, de
novo, ser chamado de psicanálise”19.
Voltarei a insistir no fato de Preciado ter usado o
conto de Kafka, “Um relatório a uma Academia”,
história que pode ser lida como alegoria da dife-
rença judaica e sua assimilação. Como a liberdade
do macaco Pedro Vermelho não é uma opção, sua

19
PRECIADO, P. B. “Conferência: Um apartamento em
Urano”. Tradução de Camila Quinteiro Kushnir. In: Revista
Lacuna, nº 8, 2019. Disponível em: https://revistalacuna.
com/2019/12/08/n-8-12/#_ftn2, acessado em 11 de maio de
2022.

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Uma p s ic anális e p or v ir : rep ens an do a p s ic anális e n o s é culo X X I

transformação é apenas “uma saída”. O macaco


imita os humanos: ele aprende a cumprimentar
com um aperto de mãos, a fumar cachimbo, a abrir
uma garrafa com saca-rolhas e até, superando sua
repulsa inicial, a beber aguardente. Depois de con-
seguir tudo isso, num momento surpreendente do
texto, ele interrompe seu discurso e grita para os
raptores: “Olá!”. Sua imitação bem-sucedida dos
humanos lhe garante a saída da jaula. Pedro atra-
vessa um processo de treinamento e alcança o nível
educacional de um europeu médio. Seu relatório
à Academia visava compartilhar sua experiência,
disseminar conhecimento, de modo a “muda a
epistemologia” (para citar Preciado).
O conto de Kafka é mais do que uma reflexão
sobre as fronteiras entre humanos e animais. Ele
também toca temas como raça e colonialismo.
Como Pedro Vermelho não é capaz de recordar
sua vida animal passada, na “vida civilizada”, sua
“raça” não é usada contra ele; pelo contrário,
ele é cumulado de atenção e mesmo admiração.
Sua hereditariedade “racial” não é um obstáculo,
mas quase o oposto: seus esforços em se tornar

25
LETRAS PSICANALÍTICAS

humano são valorizados, amados até, exatamente


porque ele é um macaco, membro de uma espécie
exótica20. Num gesto imperialista, um nativo da
África é capturado, escravizado e importado para
a Europa. Um quadro inverso a esse, mas movido
por um desejo semelhante de se assimilar para
sobreviver foi vivenciado pelos psicanalistas que,
antes da Segunda Guerra, fizeram sua migra-
ção forçada aos Estados Unidos para escapar à
perseguição nazista. Podemos dizer que eles se
envolveram em uma tentativa fracassada de des-
colonização? Aquela primeira descolonização foi
um fracasso pois eles tentaram tornar a psicanáli-
se menos europeia medicalizando a prática. Esta
americanização do inconsciente apagou a sexua-
lidade e qualquer dimensão política. Igualmente,
partiu do pressuposto de que a psicanálise estava
fora da história.
Talvez precisemos, agora, de uma nova forma
de descolonização.

20
SOKEL, W. H. The Myth of Power and the Self: Essays on Franz
Kafka. Detroit: Wayne State University Press, 2002.

26
Uma nova descolonização da psicanálise não
se concentraria tanto na adaptação, no consenso,
mas no dissenso, tal como o propõe o filósofo
Jacques Rancière21. A ideia de dissenso também
foi discutida em 1995 pelo psicanalista franco-
-egípcio Jacques Hassoun. O dissenso é a libe-
ração de opiniões contraditórias ou divergentes;
literalmente, dis-senso quer dizer um processo de
reordenamento. O dissenso não acontece natu-
ralmente. Pode ser algo que precisemos treinar
antes de aprender a fazer. O dissenso é o exato
oposto do consenso. Para Rancière, a política
não está relacionada com instituições ou arranjos
sociais, mas com aquilo que as pessoas fazem e,
em particular, com o poder disruptivo do povo.
Espera-se que a disrupção possa levar a um
arranjo social mais justo. Costumamos acreditar
que o consenso é bom e o dissenso ruim, mas não
devemos esquecer que a discordância é necessária
para que ocorram mudanças. Como sabemos, a

21
RANCIERE, J. Dissensus: On Politics and Aesthetics. Nova York:
Continuum, 2010.
LETRAS PSICANALÍTICAS

democracia se assenta tanto no dissenso quanto


no consenso.
Foi nesse espírito de dissenso, confrontando
as possibilidades e limites das organizações de
grupo, que me juntei a um coletivo de amantes
da psicanálise desvinculado a instituições. Há dez
anos, sob o nome de Das Unbehagen, vários clíni-
cos, acadêmicos, artistas e intelectuais formaram
uma associação de pesquisa em psicanálise livre
das limitações de institutos e outros corpos regu-
ladores, incluindo organizações em nível local
e nacional. O Das Unbehagen trabalha como um
experimento de dissenso, criando um espaço
onde os membros possam aprender a ser clínicos
do inconsciente. O Das Unbehagen funciona como
um grupo de pares, criando uma série de relações
transversais com pessoas que também buscam
revitalizar a prática psicanalítica de maneira
ética. Temos dias de estudos clínicos, grupos de
leitura, supervisão de pares e grupos de trabalho
que oferecem estruturas de apoio para quem está
enfrentando o trabalho analítico de forma inde-
pendente. Nos Estados Unidos, o Das Unbehagen

28
Uma p s ic anális e p or v ir : rep ens an do a p s ic anális e n o s é culo X X I

deu novo impulso às descobertas de Freud e


Lacan. Não há mensalidade, adesão, direção
nem líder. Todo mundo pode participar com suas
próprias ideias e propostas. Os participantes têm
diferentes orientações psicanalíticas. Ninguém
pode nem nunca foi excluído.
A palestra “O futuro da psicanálise”22, pro-
ferida por Marilyn Charles em 2015, é um belo
exemplo de um exercício produtivo de dissenso.
Ela reexamina a história da psicanálise e reivin-
dica o potencial criativo e dissidente da psicose,
interpretada por ela de forma original, liberando
assim o potencial da psicanálise para um tem-
po por vir. Sentimos essa energia na troca de
opiniões divergentes nos debates ocorridos na
Society for Psychoanalysis and Psychoanalytic
Psychology, a SPPP. Se o ambiente dá lugar ao
dissenso, podemos aceitar as diferenças, isto é,
discutir, discordar e conversar uns com os outros.

22
A conferência de Marilyn Charles, “The Future of Psy-
choanalysis”, está disponível no endereço https://vimeo.
com/129141233, acessado em 11 de maio de 2022.

29
LETRAS PSICANALÍTICAS

Há outros exemplos de dissenso e descoloni-


zação em psicanálise, como as práticas latino-
-americanas, eminentemente políticas e associadas
à justiça social. Uma nova tendência, correspon-
dente àquilo que Preciado defende, pode ser
observada em todo o mundo. Com efeito, Pre-
ciado se identifica como “um dissidente do regime
de sexo e gênero”. Precisamos todos responder ao
alerta de Paul Preciado, no qual vejo um antídoto
contra a obsolescência da psicanálise.
Precisamos ser capazes de compreender que
as questões que ele coloca são relevantes para a
teoria e para a prática. Minha perspectiva, con-
tudo, é diferente: não são filósofa nem ativista
trans. Sou uma psicanalista e defino meu traba-
lho como o de uma “clínica do inconsciente”.
De minha parte, eu argumentaria que o incons-
ciente não conhece binarismos. Não compartilho
todas as declarações críticas de Preciado acerca
da psicanálise, mas acompanho seu movimento
de denúncia da história de patologização, na psi-
canálise, de expressões não normativas de gênero
e sexualidade.

30
Uma p s ic anális e p or v ir : rep ens an do a p s ic anális e n o s é culo X X I

Desenvolvi minha própria crítica da psica-


nálise e da diferença sexual por meio de minha
clínica no bairro latino da Filadélfia23. Comecei
a escutar algo inesperado de meus analisandos.
Alguns dos meus pacientes se interrogavam:
“Sou hétero ou bissexual?”. Percebi que expres-
savam dessa forma uma variante da questão “Sou
homem ou mulher?” ou “O que é uma mulher?”.
Isso me levou a relacionar tal incerteza acerca do
gênero com a problemática mais geral da popu-
lação trans pois, para ela, essa pergunta ocupa
o lugar de uma resposta, o que é dito de forma
“transparente” por uma analisanda: “Eu tenho o
pior defeito de nascença que uma mulher pode
ter: nasci com um pênis e um par de testículos”.
É o mesmo de quando outra analisando me diz:
“Eu sabia que era homem desde menininha”.
Estes comentários sobre a identidade sexual
me conduziram a perguntas que poderiam
ser chamadas de ontológicas, já que estavam

23
Trata-se do “Centro de Oro”, no coração do bairro latino do
norte da Philadelphia. O barrio em questão é, historicamente,
uma das regiões pobres e marginalizadas da cidade. [NdT]

31
LETRAS PSICANALÍTICAS

enraizadas na própria existência das pessoas.


Ao mesmo tempo, fizeram-me retornar à explo-
ração da metapsicologia freudiana e lacaniana
uma vez que, com frequência, me vi confron-
tada com a pulsão de morte. Uma das lições
mais importantes que aprendi trabalhando com
pessoas de transidentidades foi que, para elas,
a preocupação não concerne ao gênero ou à
sexualidade. A questão é de vida e morte. Para
Griffin Hansbury, psicanalista trans, a transição
de gênero é, em si, “um tipo de morte”24.
Eu não tinha levado esse aspecto em conta em
2010 quando publiquei Please Select Your Gender,
meu primeiro livro sobre pessoas transgênero e
histeria, subintitulado From the invention of hysteria
to democratizing of transgenderism25. Como muitos
psicanalistas lacanianos, dos quais Preciado tira-
ria sarro, foquei no problema da sexualidade e

24
HANSBURY, G. “Mourning the Loss of the Idealized Self:
A Transsexual Passage”. In: Psychoanalytic Social Work, volume 12,
nº 1, 19-35, 2006, p. 22.
25
“Escolha seu gênero, por favor – Da invenção da histeria à
democratização do transgenerismo”, em tradução livre. Inédito
no Brasil. [NdT]

32
Uma p s ic anális e p or v ir : rep ens an do a p s ic anális e n o s é culo X X I

divisão de gêneros sem entender que, na verdade,


a fronteira em questão era entre vida e morte,
como confirmou um de meus analisando quan-
do disse: “Eu não tive escolha. Eu estaria morto
hoje se não tivesse feito a transição. Eu teria me
suicidado.” Nesses casos, o que está em jogo é
menos a fluidez de gênero do que a capacidade
de encontrar uma forma de ser, de existir. Depois
de cinco cirurgias de transição de gênero, um
homem trans explica: “Por quê? Porque você
quer viver... quer experimentar a vida ao máxi-
mo, por inteiro. Para mim, isso implica que eu
esteja confortável em minha pele.” Quero insis-
tir nesse ponto: não se trata de uma questão de
gênero, sexualidade ou, como Preciado diz, “da
velha epistemologia de sexo, gênero e diferença
sexual”, mas de vida ou morte.
Para responder a Preciado: a normatividade é
insustentável dado que qualquer posicionamen-
to sexual é uma forma fracassada de ser — ser
mulher, ser homem ou, quem sabe, ser algo além
disso. Nesse sentido, o desejo trans nos oferece
uma forma de ressignificar a assunção de um

33
LETRAS PSICANALÍTICAS

corpo sexuado e mortal. Dessa perspectiva, a


identificação “trans” é tão problemática quanto
a identificação “cis” (ambas são fracassos frente a
um enigma sem solução evidente).
Quando alguém muda de gênero, a possi-
bilidade de corporalizar outro gênero que não
aquele designado no nascimento implica que o
corpo foi alcançado: alguém se tornou um corpo.
Eis minha primeira discordância com Preciado.
Diferentemente do que defende Preciado, a dife-
rença sexual não é nem “uma realidade empí-
rica, nem uma ordem simbólica fundadora do
inconsciente”, nem “uma epistemologia do ser
vivo, uma cartografia anatômica, uma economia
política do corpo e uma gestão coletiva de suas
energias reprodutivas”. A assunção de um corpo
sexuado é um processo no qual cada pessoa faz
uma escolha que não depende completamente
de diferenças anatômicas (ou mesmo de conse-
quências psíquicas) ou de convenções sociais.
A diferença sexual não é uma epistemologia,
mas, antes, um curto-circuito na epistemologia e
na ontologia.

34
Uma p s ic anális e p or v ir : rep ens an do a p s ic anális e n o s é culo X X I

Como Preciado observa, os conceitos de gêne-


ro e patologia são construções historicamente
sobredeterminadas e é por isso que quero propor
a vocês o que chamei de uma psicanálise transgê-
nero26. Da perspectiva do inconsciente freudia-
no, a binaridade sexual é um sintoma do impasse
introduzido pela diferença sexual27. A etiologia
da incongruência de gênero permanece desco-
nhecida. Gênero é uma atribuição designada
desde fora do sujeito e sem seu consentimento,
como ocorre com frequência na inscrição na cer-
tidão de nascimento de um recém-nascido muito

26
Estou evocando aqui aquilo que Susan Stryker chama de
“gêmeo mau” da teoria queer: o discurso trans. Tanto as cor-
poralizações trans quanto a homossexualidade nos mostram
formas não normativas de lidar com o imperativo de assumir
uma posição sexual e escolher um objeto. Algumas distinções
entre os discursos queer e trans são necessárias. O conceito de
queerness tem sido associado principalmente à homossexualida-
de. A sensação de que existe uma discordância entre o ser que
habita o corpo e o sexo que lhe foi designado é uma experiência
que evidencia que uma pessoa não é um corpo, mas, antes,
“possui” um corpo (sexuado) cuja assunção precisa ser realizada
de alguma forma.
27
Como observa Ian Parker, o que chamamos de gênero é “um
significante que opera enquanto efeito imaginário de uma dife-
rença real”. O “efeito imaginário” que chamamos de gênero.

35
LETRAS PSICANALÍTICAS

antes de o bebê adquirir a capacidade de fala.


Aqui, Preciado recorre à experiência de inter-
sexualidade para desafiar a ideia de que possa
haver algo de natural no sexo. Discordo com o
argumento de Preciado de que uma pessoa trans
pode ser equiparada a uma pessoa intersexual
(“intersexual por design”, como ele a chama28).
Os movimentos intersexual e trans são as pontas
opostas no que concerne às manipulações corpo-
rais tornadas acessíveis por avanços tecnológicos
recentes. Enquanto o movimento intersexual se
opõe a procedimentos cirúrgicos indesejados,
as pessoas trans reivindicam cirurgias eletivas.
Ambos, porém, parecem defender a noção de
que o gênero deveria ser uma escolha, não uma
designação externa e coerciva. Que grau de auto-
nomia está implicada, portanto, neste exercício
de autodeterminação?

28
O trecho em questão não consta na tradução da Revista
Lacuna aqui utilizada. Outra fonte, porém, pode ser consultada
no endereço: https://sarawagneryork.medium.com/eu-sou-o-
-monstro-que-vos-fala-94dd10a366ef, acessada em 11 de maio
de 2022. [NdT]

36
Uma p s ic anális e p or v ir : rep ens an do a p s ic anális e n o s é culo X X I

De uma perspectiva psicanalítica, a identida-


de sexual não é determinada pela biologia ou por
qualquer outro fator inato; a identidade sexual é
aprendida por meio da linguagem na qual uma
pessoa nasceu e por certas dinâmicas de identifi-
cações. A identidade é aleatória e construída em
torno da perda, de uma perda que remonta ao
momento inaugural em que caímos de uma com-
pletude pregenderizada [pre-gendered wholeness]
para a diferença sexual, instante em que alguém
sancionou nosso ser ao exclamar ou “É menina!”
ou “É menino!”. Para a psicanálise, a escolha
inconsciente não tem nada a ver com o livre
arbítrio voluntarista. Na escolha em questão, as
duas alternativas disponíveis não são isomorfas;
surgem, portanto, discordâncias entre o sexo eró-
geno e o sexo declarado de uma pessoa.
Temos visto mais e mais analisandos que,
como Paul Preciado, não acham que estão no
corpo errado, mas sentem que o binarismo de
gênero não lhes serve. A identidade deles é “não
binária” ou “agênero”: eles não se identificam
como sendo do sexo masculino ou feminino.

37
LETRAS PSICANALÍTICAS

Eles são cuidadosos ao usar a linguagem: em vez


dos pronomes “ele” e “ela”, esses analisandos
referem-se a si mesmos usando os pronomes “elu”
ou “ile”29. E mesmo quando eventualmente não
querem mudar de gênero, essas pessoas podem
tomar hormônios para redistribuir a musculatu-
ra e modificar o timbre de voz, justamente para
habitar o espaço entre gêneros.
Uma das verdades que o fenômeno transgêne-
ro ilustra é que a consistência de corpo e gênero
é uma ficção cuja assunção se dá por identifica-
ção. É absurdo a imputar à anatomia o papel de
normalizador de uma sexualidade pautada nos
genitais ou em uma única ação determinada,
como a psicanálise clássica tradicionalmente fez.
Este papel normalizador tem sido efetivamente
desafiado pelos discursos e práticas transexuais.
Nos dias de hoje, recebemos em nossos con-
sultórios analisandos que nos dizem que o sexo
designado a eles no nascimento não se alinha ao

29
“She”, “he” e, para xs não binárxs, “they”. Em português,
tentamos manter a equivalência levando em consideração as
formas mais recorrentes entre nós: “elu” e “ile”. [NdT]

38
Uma p s ic anális e p or v ir : rep ens an do a p s ic anális e n o s é culo X X I

gênero com o qual se identificam. Eles nos pro-


vam que, em matéria de gênero, anatomia não
é destino. Alguns relatam ter uma experiência
estranha do próprio corpo, um corpo que pode
cair da pessoa como um embrulho que não se
segura completamente no lugar. Confirmamos
por seus relatos que ter um corpo implica um
processo complexo de corporalização.
Alguns desses analisandos não falam mais de
cirurgia de redesignação de gênero, mas de rea-
justamento de gênero ou de cirurgia de confir-
mação de gênero, como se a intervenção médica
lhes restituísse uma posição ou estado diferente
ou anterior, ou então corroborasse a verdade
contradita pela carne. Alguns analisandos que
embarcaram na jornada de transformação entre
gêneros, contudo, expressaram que a viagem não
termina com a transformação corporal. É preciso
outra coisa para que o processo de corporaliza-
ção seja bem-sucedido.
Aprendi em minha clínica que a designação
de “paciente trans” com frequência se aplica a
pacientes cis. O desafio de realizar a assunção

39
LETRAS PSICANALÍTICAS

de um corpo diferente ou transformado, como


argumentam muitos, é semelhante à experiência
de se tornar uma obra de arte. O corpo com
frequência se torna uma empreitada artística.
Assim, deve-se encontrar na artificialidade trans
uma arte semelhante à dos artistas profissionais.
Sugeri acima que as experiências das pessoas
trans podem nos permitir compreender a função
da arte de um modo capaz de afetar a vida de
todos, homens e mulheres, trans e cisgêneros.
Eu tenho um corpo em vez de eu sou um corpo.
A corporalização é um processo que, por vezes,
exige criação.
Eu gostaria, hoje, de imaginar um futuro dife-
rente para a psicanálise e, para isso, responder
ao pedido de Paul Preciado, expresso em 2020
em entrevista ao psicanalista Jamieson Webster,
na qual diz que a psicanálise deveria empenhar
a condição política do inconsciente de modo a
questionar “o modelo patriarcal/colonial do cor-
po e a ideia normativa de interioridade subjetiva”.
Ele pede que a psicanálise abandone “um tipo de
monopólio sobre os sonhos e a imaginação, e sua

40
Uma p s ic anális e p or v ir : rep ens an do a p s ic anális e n o s é culo X X I

obsessão com o enredo familiar”. Observa ainda


que “a psicanálise está, neste momento, em desa-
cordo com a realidade, com o que está mudando”
e propõe “uma psicanálise mutante”, isto é, “não
uma busca pela interioridade, mas um espaço
para a transformação coletiva da consciência”30.
Ao conferir a Pedro Vermelho atributos
humanos, Kafka desafia a superioridade humana
em matéria de inteligência e moral; de maneira
semelhante, Preciado acolhe a posição de Pedro
Vermelho enquanto monstro pela transgressão
dos limites entre animal e humano que o macaco
falante representa. Preciado fala a nós, analistas,
alertando-nos das consequências desumaniza-
doras do preconceito psicanalítico. Sabemos
que Freud nunca considerou patológico o desejo
pelo mesmo sexo. Para o criador da psicanálise,
a homossexualidade era uma orientação sexual
como qualquer outra, tão contingente quanto a

30
A entrevista de Preciado a Jamieson Webster pode ser con-
sultada em: https://gagosian.com/quarterly/2020/12/04/
interview-pathologically-optimistic-paul-b-preciado/, acessado
em 11 de maio de 2022.

41
LETRAS PSICANALÍTICAS

heterossexualidade. Na verdade, como sublinha


Dany Nobus, a grande questão de Freud é “Por
que e como alguém chega a se tornar sexualmen-
te normal?”31. “Normal” é estranho. Ademais,
para a psicanálise, como notou Robert Stoller,
“normal não tem significado... onde está essa
pessoa ou aspecto? Nenhum analista relatou um
caso assim ou conheceu essa pessoa enquanto
paciente, companheiro amoroso, amigo, colega.
Não preciso avançar mais na elaboração desse
ponto; ele é óbvio, universalmente conhecido,
comumente negado...”32. Apesar disso, sabemos
que mesmo com a determinação da Associação
Americana de Psiquiatria (APA), em 1973, de
que a homossexualidade não era um transtorno
mental, os psicanalistas levaram mais vinte anos

31
NOBUS, D. “Locating perversion, dislocating psycho-
analysis”. In: NOBUS, D; DOWNING, L. (orgs.) Perversion:
Psychoanalytic Perspectives/Perspectives on Psychoanalysis. Nova York:
Routledge, 2006, p. 9.
32
STOLLER, R. Verbete “Perversão”. In: FOGEL, G. I.;
MYERS, W. A. (orgs.) Perversions and Near-Perversions in Clinical
Practice: New Perspectives. New Haven: Yale University Press,
1991, p. 41-42.

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Uma p s ic anális e p or v ir : rep ens an do a p s ic anális e n o s é culo X X I

para deixar de considerá-la uma patologia. Sob


ameaça de processo pela lei antidiscriminação,
a formação de psicanalistas gays e lésbicas foi
permitida em 1991. Mais tarde, a Associação
Psicanalítica Americana (APsaA) se tornou
uma apoiadora de primeira hora do casamento
do mesmo sexo e uma oponente da “terapia de
conversão”, cujo objetivo era mudar a orientação
sexual do paciente. Poucos meses antes da pales-
tra de Preciado, em junho de 2019, durante o
mês do Orgulho Gay, a Associação Psicanalítica
Americana (APsaA) pediu desculpas por ante-
riormente ter tratado a homossexualidade como
doença mental, alegando que os erros do passado
contribuíram com a discriminação e traumatiza-
ção da população LGBTQIA+.
Muito diferente do que deve ter sido a expe-
riência de vários dos analistas que Preciado
encontrou em Paris em 2019, nossas clínicas
pandêmicas apontam para uma situação diferen-
te da psicanálise. Com os tratamentos exclusiva-
mente remotos e todo mundo reduzido a uma
janelinha da tela do Zoom, os analisandos têm

43
LETRAS PSICANALÍTICAS

avançado a despeito de tudo. Em minha própria


clínica, assim como na de muitos colegas, vi um
aumento grande do volume de trabalho. Recebi
muitos novos pacientes no meio da catástrofe
global. Vejo muitos deles fazendo bons progres-
sos. Nada como uma pandemia global letal para
nos recordar da mortalidade: frente a frente com
a morte, muitos de nós sentimos que não havia
tempo a perder.
A pandemia mostrou que o vírus não era
equalizador — ricos e pobres não foram afetados
de maneira igual. Alguém pode até achar que
desastres não discriminam. A experiência norte-
-americana, porém, mostrou que pretos pobres
e pardos (latinx) tiveram três vezes mais chances
de contrair COVID-19 e morreram em maior
número do que os brancos na pandemia, expon-
do antigas desigualdades de raça, etnia e renda.
A ideia do vírus como um grande equalizador
social se mostrou equivocada. Isto me faz voltar a
meu trabalho como psicanalista no barrio latino,
onde existe a mesma desigualdade. Eu gostaria
de reiterar aqui, a partir de minha experiência

44
Uma p s ic anális e p or v ir : rep ens an do a p s ic anális e n o s é culo X X I

de trabalho como psicanalista junto a comuni-


dades marginalizadas e racializadas com altos
níveis de moralidade — como aquelas do barrio
da Filadélfia —, que a psicanálise pode operar
como uma prática anticolonial, uma clínica afir-
mativa da vida.
A investigação psicanalítica do inconsciente
tem potencial emancipatório, uma promessa
importantíssima para as minorias oprimidas.
A psicanálise não lida apenas com o conflito
inconsciente recalcado; ela também incentiva a
investigação da fantasia, pois dá muita impor-
tância ao devaneio como metáfora do desejo.
A associação livre expande a imaginação e abre
um espaço de futuridade para além dos con-
dicionamentos da repetição, possibilitando a
capacidade de mudança tanto em nível pessoal
quanto social. Ao invés de reforçar a adaptação a
condições sociais opressivas, a psicanálise traba-
lha pelo agenciamento subjetivo. Na intersecção
entre psiquismo e comunidade, podemos tratar
de modalidades de sofrimento individual que
são, igualmente, alegorias de condições sociais.

45
LETRAS PSICANALÍTICAS

Esse enfoque é um passo crucial para tornarmos


a psicanálise acessível a todos que podem se
beneficiar dela.
Como superar nossa situação existente de
desigualdades e violências estruturais, situação
que causa os traumas em curso em nossa época?
Como transcender o trauma atual? A palavra
trauma vem do grego e quer dizer “ferida”,
enquanto transcendência traz o prefixo latino
trans, que quer dizer “além”, e scandare, que
significa “subir”. Precisamos buscar no alto e
embaixo, em todos os cantos, e subir por uma
estrada íngreme. Nos Estados Unidos, a maio-
ria dos psicanalistas sustentou a crença de que
a psicanálise é uma prática neutra e apolítica,
próxima do modelo médico, supostamente imu-
ne às pressões da história. Isso vem mudando,
felizmente: conforme a psicanálise se desloca
para perto da comunidade, ela evidencia valores
politicamente engajados que levam em conta
desigualdades estruturais.
Venho da Argentina, onde a psicanálise
vem sendo uma prática engajada, até mesmo

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perigosa. Durante a ditadura militar dos anos


1970 e 1980, os psicanalistas foram alvo da per-
seguição terrorista do Estado. Em um discurso
infame, o almirante Emilio Massera, orador da
junta militar, denunciou Sigmund Freud como
um dos grandes inimigos da civilização ocidental.
O resultado disso foi que um número grande de
estudantes de psicanálise e psicanalistas “desa-
pareceram” (foram sequestrados, torturados
e assassinados).
Levando em conta esse contexto, era óbvio
para mim que trabalhar clinicamente com
minorias pobres e marginalizadas compostas por
pessoas de cor da periferia implicava assumir um
posicionamento político. Esse posicionamento
relaciona-se à minha percepção de que os pobres
são pobres, mas ainda assim capazes de “bancar”
um inconsciente. Minha posição clínica precisou
ser política desde o início. Essa asserção tem con-
sequências na práxis. A ideia de que a psicanálise
é neutra está começando a mudar. Depois dos
resultados das eleições norte-americanas de 2016,
muitos psicanalistas começaram a expressar seus

47
LETRAS PSICANALÍTICAS

posicionamentos políticos em diversos meios


psicanalíticos na internet; eles foram duramente
repreendidos e censurados por seus respectivos
institutos, sob o pretexto de manter a neutrali-
dade analítica “científica” e não desagradar os
analisandos que por ventura pudessem descobrir
que os analistas não compartilhavam a mesma
opinião política. O argumento deles faz sentido
e eu não diria que recusaria um analisando que
tenha votado no candidato que não apoio. Isso
levanta a questão dos limites da neutralidade do
analista e da deontologia de uma psicanálise polí-
tica. Nós, analistas, temos sorte. O divã é como
a janela de um trem em movimento através da
qual podemos acessar o que está acontecendo na
sociedade. O analista precisa estar alerta, escutar
com atenção e deixar os analisandos guiarem.
Um exemplo disso é que meu interesse por ques-
tões de gênero (trans, cis, não binário) chegou até
mim pelo divã. Quanto às questões políticas mais
prementes que escuto, além da pandemia, meus
analisandos estão cada vez mais preocupados
com o aumento das demonstrações de ódio no

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país: racismo, misoginia, islamofobia, homo-


fobia, transfobia, antissemitismo e sentimentos
anti-imigração. Eles também estão preocupados
com a degradação do ambiente. Um sentimento
generalizado de precariedade vem se espalhan-
do; muitos estão inseguros e preocupados com
o futuro. Se considerarmos que o inconsciente é
determinado pelo desejo, é na dimensão do dese-
jo que o inconsciente encontra sua bússola subje-
tiva, ética e política — ele é um ativista interno.
A psicanálise opera sobre os ecos da lingua-
gem no corpo. Mas a verdade é que não sabemos
ao certo o que é um corpo (trans ou cis), nem até
que grau a linguagem é eficaz. Há quem ques-
tione o que é ser mulher, homem ou algo além
disso, e sua sobrevivência em um corpo mortal
e sexuado é precária. Meu trabalho com anali-
sandos transgênero resultou de estratégias que
tentam superar essa precariedade daqueles que
estão encarando as novas fronteiras do corpo.
Como clínicos, temos a responsabilidade
ética de assumir uma atitude mais tolerante com
manifestações diferentes e não normativas da

49
LETRAS PSICANALÍTICAS

sexualidade, manifestações não limitadas pelos


papéis de gênero tradicionais. É possível apren-
der muito sobre sexo e gênero com analisandos
marginalizados por conta de raça, classe, gênero
e sexualidade. Tal experiência radical de escuta
pode reorientar a prática e melhorá-la.
É nesse aspecto que a psicanálise está espe-
cialmente equipada para desempenhar um papel
único. Os protestos em massa que se espalharam
pelos Estados Unidos lançaram luz sobre a mar-
ginalização e a discriminação sofrida pelos negros
americanos: a escravidão, a segregação racial
legalizada, os altos índices de encarceramento e
o silêncio das autoridades diante da necessidade
de agir se combinaram ao racismo para além da
morte pela injustiça generalizada depois na estei-
ra do assassinato de negros do país. Ao mesmo
tempo, o número desproporcional de infecções
e mortes por COVID-19 entre essa comunidade
vem expondo o racismo estrutural mortífero.
Depois da pandemia de COVID-19 e de um
aumento da consciência acerca da discrimi-
nação violenta impulsionado pelo impacto do

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movimento Black Lives Matter, ficou claro que


nenhum analista pode permanecer imune ao
contexto político no qual trabalha. Os psicana-
listas não estão fora da história. O discurso de
Preciado expôs a tensão inerente à psicanálise,
tensão entre certo universalismo que frequen-
temente mascara realidades colonialistas e
imperialistas, e uma posição marginalizada de
alteridade em que cada sujeito em análise é úni-
co, de modo que nenhum processo psicanalítico
pode ser replicado de forma idêntica. A verdade
que a psicanálise revela, porém, empenha-se
em se dirigir a todos os sujeitos. Essa tensão
reaparece na obra de dois pensadores racismo
que destacam a importância da psicanálise em
suas teorias: Frantz Fanon33 — que se apropria
da teoria de Jacques Lacan contra Octave Man-
noni para postular as populações negras como
Outro absoluto, ao mesmo tempo excluído e
marginalizado — e Frank Wilderson34 — que

FANON, F. Pele negra, máscaras brancas. São Paulo: Ubu, 2020.


33

WILDERSON III, F. B. Afropessimismo. São Paulo: Todavia,


34

2021.

51
LETRAS PSICANALÍTICAS

evoca Lacan para argumentar, em Afropessimismo,


que a maldição da escravidão não foi superada
e que a posição subjugada dos afro-americanos
é desumanizadora. Essa exclusão estrutural os situaria
numa posição de morte social, posição mórbida que satura
a vida negra35.
Se por um lado ficamos chocados com a
negatividade explícita na crítica de Preciado,
por outro, certa dose de pessimismo não vai tão
mal assim. Precisamos dialogar com o afropes-
simismo, o que implica sabermos todos que, ao
menos na psicanálise, precisamos levar em conta
a pulsão de morte e trabalhar na intersecção
inconsciente de raça, classe e gênero.
Nas diferentes teorias psicanalíticas, velhos
pressupostos sobre a formação do gênero e o
desenvolvimento psicossexual continuam em
vigor, tais como a dualidade de sexo, o papel
fundador da diferença sexual e o casal parental
(principalmente o hetero) como contexto chave e

35
PATTERSON, O. Slavery and Social Death: A Comparative Study.
Cambridge, MA: Harvard University Press, 2018.

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Uma p s ic anális e p or v ir : rep ens an do a p s ic anális e n o s é culo X X I

referência estrutural. Conforme as experiências


e corporalizações transgênero vão se tornando
mais diversificadas, passam a desafiar a fixidez
da binaridade da diferença sexual e narrativas
de um gênero “autêntico” que precisaria ser des-
coberto, definido e posto no lugar. Os pilares do
dualismo sexual — a família nuclear estruturada
pelo casal (heterossexual) e a primazia da dife-
rença sexual — também estão intrinsicamente
ligados à história do colonialismo e da branqui-
tude estrutural.
O brilhante e comovente apelo de Preciado
para que a psicanálise se volte às grandes ques-
tões sociais, do colonialismo ao feminismo,
deve ser compreendido como um chamamento
que nos ajude a imaginar uma vida e um futu-
ro diferentes nos quais a psicanálise tenha um
papel importante a desempenhar. Não é muito
diferente do início do século XX, quando Freud
falou em análise “leiga”, de modo a retirá-la da
ordem médica. Freud achava que o futuro da
psicanálise dependia de ela se tornar uma prá-
tica inclusiva. Em 1926, em A questão da análise

53
LETRAS PSICANALÍTICAS

leiga36, Freud propôs que não os médicos, mas


os “leigos” eram mais aptos a se tornarem psi-
canalistas. Sua escolha de palavra reforçava a
inclusividade uma vez que “leigo” vem do latim
tardio laicus, que por sua vez derivou do grego
laikos, “do povo”.
Pode soar paradoxal falar no futuro da psica-
nálise dado que, primeiramente, Freud afirmou
que o inconsciente não conhece temporalidade
e, depois, foi acusado de enfatizar a determina-
ção pelo passado. Ele se recusou ferrenhamente
a considerar que os sonhos pudessem ser pro-
féticos, como muitas interpretações de sonhos
antigas alegavam. Jung o atacou nesse ponto,
objetando uma referência excessiva ao passado.
Contudo, se prestarmos atenção aos sonhos, a
via real que conduz ao inconsciente, podemos
observar uma temporalidade diferente: nos

36
FREUD, S. (1926) “A questão da análise leiga: diálogo com
um interlocutor imparcial”. In: Obras completas, volume 17: Inibição,
sintoma e angústia, O futuro de uma ilusão e outros textos (1926-1929).
Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das
Letras, 2014.

54
Uma p s ic anális e p or v ir : rep ens an do a p s ic anális e n o s é culo X X I

sonhos, passado, futuro e presente coexistem.


Além disso, os sonhos introduzem a imedia-
tez do presente: eles são sempre narrados no
presente, o tempo da urgência. William Butler
Yeats escreveu em um poema que “nos sonhos
começa a responsabilidade”, o que sugere uma
noção ética do sonhar. A responsabilidade, por
sua vez, introduz a ideia de liberdade. Quando
compreendemos em que a liberdade implica,
passamos a tomar distância do determinismo
do passado. Assim, não é exagero afirmar que
a psicanálise propõe uma sensibilização ética e
se abre à dimensão do futuro. Uma pessoa vai a
um analista para imaginar um futuro diferente,
mesmo que essa futuridade dependa daquilo que
o filósofo Martin Heidegger chamou de cons-
ciência da finitude radical: ser-para-a-morte,
para Heidegger, é a condição para uma relação
“autêntica” com a vida. Nesses ecos tanto de
Lacan e Jung, a psicanálise parece menos enfo-
cada no passado (“me conte sobre sua infância”)
do que orientada para o futuro. Ela serve a nos
reconciliar com a vida ao passo que aprendemos

55
LETRAS PSICANALÍTICAS

a viver com a pulsão de morte. Em psicanálise,


o futuro abre uma via que conduz do individual
(eventos enquadrados nas linhas de falha do
trauma) ao coletivo, dado que o futuro envolve
os outros (podemos ir a uma guerra para salvar
o país, um ideal, os outros). O trabalho clínico
abre uma via no sentido de descobrir como viver
com a pulsão de morte que, paradoxalmente,
torna possível a vida. Nesse sentido, a língua
inglesa é reveladora, pois construímos o futuro
gramaticalmente dizendo “I will37”, o que revela
a força vital: o desejo. Se repetimos as palavras
de Martin Luther King, “eu tenho um sonho”,
vemos que a frase nos volta tanto ao passado
quanto ao futuro: os sonhos reciclam infini-
tamente imagens antigas e evocam um futuro
possível, habitável, de desejos realizados.
Para concluir, proponho que retornemos a
uma psicanálise dissidente inspirada por um
Freud queer, um Pink Freud, um Freud que

37
Como verbo, “I will” pode ser traduzido como “eu quero” e
“eu vou”, ambas. Enquanto substantivo, “will” pode significar
“desejo”, “vontade”. [NdT]

56
Uma p s ic anális e p or v ir : rep ens an do a p s ic anális e n o s é culo X X I

acreditava que a “o pobre tem tanto direito a


auxílio psíquico quanto hoje em dia já tem a
cirurgias vitais.38”, um Freud que apoiou uma
rede ativa de clínicas públicas para as classes
trabalhadoras e que operaram em dez cidades
em sete países, de Viena a Londres, de Berlim
a Budapeste. Vale mencionar que, durante os
anos de 1920 e 1930, a segunda geração de psi-
canalistas que estava ativa nas clínicas públicas
incluía diversas mulheres psicanalistas em posi-
ções de liderança, dentre elas Helene Deutsch,
Anna Freud, Karen Horney, Edith Jackson e
Melanie Klein. A psicanálise no entre guerras
era não apenas sensível à injustiça na sociedade,
como também um movimento internacional39.
Na esteira do exemplo delas, nós, psicanalistas,
podemos aprender mais com os dissidentes da

38
FREUD, S. (1919) “Caminhos da terapia psicanalítica”. In:
Obras completas, volume 14: História de uma neurose infantil (“O homem
dos lobos”), Além do princípio do prazer e outros textos (1917-1920).
Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das
Letras, p. 291
39
DANTO, E. A. As clínicas públicas de Freud: Psicanálise e justiça
social (1918-1938). São Paulo: Perspectiva, 2019.

57
LETRAS PSICANALÍTICAS

ordem social/sexual. Sigamos uma ética da dife-


rença (sexual ou de outros tipos). Chegou a hora
da psicanálise fazer sua transição.

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SOBRE A AUTORA

Patricia Gherovici
Este livro foi finalizado em maio de 2022.
A fonte usada no miolo é Baskerville corpo 11,5.

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