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Do divã para as redes: como a psicanálise conquistou a internet

No final de janeiro, quando a corrente “5 curiosidades sobre mim” tomou conta do Instagram, o
perfil New Memeseum (com 186 mil seguidores) publicou um vídeo (editado e tirado de contexto)
no qual a psicanalista Maria Homem parecia comentar a modinha: “Ah! Não precisa, né, gente? Aí
é uma onipotência narcísica, é uma fantasia. A gente pode mais que isso, né?” No início deste mês,
mais memes: a página compartilhou uma sequência de trechos (de vídeos no YouTube) em que a
psicanalista supostamente falava sobre arte contemporânea: “que angústia mais
homogeneizante!”, “é a ética da radicalidade do gozo individualista”, “é só a carapaça imaginária
da nossa onipotência narcísica”.

Autora de “Lupa da alma: quarentena-revelação” (Todavia), Maria integra um time de discípulos do


Doutor Sigmund Freud que viralizou na pandemia. Avessos ao estereótipo do psicanalista calado,
que no máximo solta um misterioso “hum...”, eles ocuparam o debate público e as redes sociais.
Inspiram memes, bombam no Instagram, gravam vídeos para o YouTube, participam de podcasts,
escrevem na imprensa, dão cursos e falam sobre arte, política, relacionamentos, burnout e
angústia.

Maria acumula 285 mil seguidores no Instagram e 221 mil inscritos em seu canal no YouTube. Bem-
humorada, ela conta que um amigo lhe disse que aparecer no New Memeseum é o equivalente
pop a sair no New York Times. Ela lembra que o namoro da indústria cultural com a psicanálise é
antigo. O próprio Freud foi convidado pela produtora hollywoodiana Metro-Goldwyn-Mayer para
supervisionar roteiros, mas recusou. Alfred Hitchcock ilustrou conceitos psicanalíticos em filmes
como “Quando fala o coração”, “Psicose” e “Marnie, confissões de uma ladra”. Donald Winnicott
fazia conferências radiofônicas. O apelo da psicanálise, afirma Maria, está em seu “altíssimo poder
hermenêutico”, capaz de decifrar tanto a mente humana quanto o “texto complexo do mundo”.

— A psicanálise fala do que move as pessoas: amor, ódio, afetos, pulsões de vida e de morte,
sexualidade, identificação. Não dá para explicar por que as pessoas amam ou odeiam Lula e
Bolsonaro só por fatores econômicos. É preciso entender o que é pulsão, identificação,
inconsciente — diz ela, que é cobrada por internautas para traduzir o jargão. — Quando reclamam
que falo difícil, tento explicar mais, indicar um texto, um vídeo, um curso. Ainda estou aprendendo.
Não quero baratear o debate.

‘Psicanálise de boteco’

Maria credita o sucesso da psicanálise na internet ao desejo das pessoas de “sair da angústia”. O
psicanalista Alexandre Patricio de Almeida, criador do podcast “Psicanálise de boteco”, acrescenta
que a pandemia “trouxe novas formas de sofrer” e, impedida de extravasar “no bar, na academia
ou na ioga”, muita gente procurou um divã nas novas mídias. Criado na periferia de São Paulo,
crítico do que considera um elitismo da psicanálise e seguido por mais de 43,3 mil pessoas no
Instagram, ele estreou o “Psicanálise de boteco” para articular as teses de Freud, Winnicott e
Melanie Klein “com temas do cotidiano de forma leve e descontraída”. Há episódios sobre temas
como o filme “Divertidamente”, ciúme e cultura do cancelamento. E outros mais cabeçudos, como
os das séries “Café com Freud” e “Café com Klein”, nos quais esmiúça conceitos dos dois autores.
Os episódios vêm com referências bibliográficas. Ontem, o podcast ocupava a 92ª posição no
ranking brasileiro do Spotify e apresentava tendência de alta.

— Faço parte de um movimento que quer tirar a psicanálise de sua torre de marfim e colocá-la
para discutir política, arte e problemas sociais. Freud falou sobre tudo isso em seu tempo. Devemos
costurar a psicanálise com o contemporâneo sem perder o rigor técnico — diz ele, que alerta seus
seguidores a terem cuidado com o conteúdo supostamente psicanalítico que consomem por aí. —
Tem muita gente desesperada por likes que repete meia dúzia de bobagens e diz que é psicanálise.

A escritora Tati Bernardi, autora de “Depois a louca sou eu” (Companhia das Letras), criou dois
podcasts para disseminar a psicanálise. Em “Meu inconsciente coletivo” (que ela descreve como
“pira egoica” e “sessão de terapia maluca”) ela recebe um psicanalista diferente a cada episódio e
conta “tudo o que há de mais inconfessável” perturbando sua mente. Já em “Quem lê tanta
notícia” tenta entender o que acontece no mundo com a ajuda do advogado Thiago Amparo e da
psicanalista Vera Iaconelli.

Meu sonho era falar todo dia com a Vera. Então, inventei esse podcast — brinca Tati. — A
psicanálise mudou a minha vida. Crio podcasts para gente que é como eu, que quer se
intelectualizar, mas só vai entender metade de uma aula de psicanálise na pós-graduação da USP.

A quarta temporada de “Meu inconsciente coletivo” vai discutir psicanálise e literatura e deve
estrear em março ou abril. Ontem, “Quem lê tanta notícia” e “Meu inconsciente coletivo” eram,
respectivamente, o 14º e o 45º podcasts mais ouvidos pelos brasileiros no Spotify.

— Acho fantástico que psicanálise esteja na moda. Psicanálise é para todo mundo! Ela nos tira de
nossas bolhas ao mostrar que ninguém é filho do demônio, que o obscuro está dentro de todo nós.
Saber disso melhora o debate — diz a escritora.

Tradição de Py e Contardo

Não é de hoje que os brasileiros se interessam pelo que os psicanalistas têm a dizer. Antes do
advento das redes sociais (e, em alguns casos, mesmo depois), nomes como Virgínia Bicudo (1910-
2003), Hélio Pellegrino (1924-1988), Contardo Calligaris (1948-2021) e Luiz Aberto Py colaboraram
exaustivamente com a imprensa. Py chegou a ser consultor das primeiras edições do “Big Brother
Brasil”. Autor do recém-lançado “Lacan e a democracia” (Boitempo) e dono do canal “Falando
nisso” no YouTube, que soma mais de 324 mil inscritos, Christian Dunker levanta algumas hipóteses
para explicar o sucesso da psicanálise. Entre elas, a abundância de psicanalistas no Brasil, a
acessibilidade dos cursos (em comparação com outros países) e a formação r…

— O psicanalista que participa do debate público deve pensar: “O que estou fazendo com a minha
fala?” O objetivo não deve ser se enaltecer ou criar superávit narcísico para o próprio consultório
— afirma. — Também não adianta dizer que, se a pessoa aceitar Lacan no coração, tudo vai
melhorar. Temos que convidar as pessoas a pensar criticamente seus sintomas e cuidar da própria
alma.

Diretora do Instituto Gerar de Psicanálise, Vera Iaconelli suspeita que a atuação pública dos
psicanalistas seja também um jeito de compensar a solidão dos consultórios, onde eles não emitem
nenhuma opinião. Ela reforça que, embora livros, vídeos e podcasts de psicanálise possam
provocar boas reflexões, nada substitui o divã.

A banalização da psicanálise me preocupa. Não acho que os psicanalistas devem se pronunciar


sobre tudo, mas podemos fazer furos naquilo que parece muito consistente, levar a dúvida onde há
certeza, criticar obviedades e o senso comum. A psicanálise vem estragar a festa e, ao mesmo
tempo, permitir algum alívio — pondera. — Temos que continuar na mídia, sim. O que não está na
mídia não está no mundo. E a psicanálise tem que estar no mundo.

MATÉRIA DO O GLOBO

Ruan de Sousa Gabriel

DATA: 22/02/2022

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