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Emocionalismo, intolerância e fake

news à luz da Psicanálise

MONOGRAFIA DE CONCLUSÃO DE CURSO

Nome Completo: CINITA EMILIA SALOMÃO CASTRO

E-mail: cintiasalomaocastro@gmail.com

Conclusão: 2º SEMESTRE / 2023

Curso: Formação em Psicanálise Clínica

Unidade: Campinas (SP)

Professores: André Figueira e Paulo Vieira

Campinas (SP), 28/11/2023


Dedicado ao meu filho Tiago Prahlada, que me inspira evolução e
revolução permanente.

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Agradeço aos terapeutas que me acompanharam nos últimos anos e
me ajudaram a prosseguir na surpreendente aventura do
autoconhecimento.

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“Por não colocar mais suas expectativas no além e concentrar todas
as suas forças liberadas na vida terrena, provavelmente conseguirá
que a vida se torne suportável para todos e que a cultura não oprima
mais ninguém”.

Sigmund Freud

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Introdução
Intolerância, difusão de fake news, emocionalismo. Tais conceitos
têm sido apresentados nos últimos anos como fenômenos em
ascensão na sociedade atual, impulsionados principalmente a partir
do uso massivo das redes sociais. Partimos de fatos que
despertaram atenção no cenário político, com a ascensão de figuras
polêmicas e a formação de grupos numerosos de seguidores
dispostos a invadir e depredar monumentos.

A presente monografia se propõe a analisar tais tendências à luz dos


conceitos da Psicanálise, conforme desenvolvidos sobretudo por
Sigmund Freud, Wilheim Reich e Carl Gustav Jung (por meio da
Psicologia Analítica), abordando considerações do médico e escritor
Gustave Le Bon, cuja obra foi tomada como referência por Freud e
Jung em seus estudos sobre o comportamento das massas.

Vamos analisar, portanto, à luz da psicanálise, três aspectos


apontados como fenômenos típicos da atualidade, observados nos
meios de comunicação de massa, que desafiam os nossos tempos e
são propagados por meio das redes sociais: intolerância,
emocionalismo ou irracionalismo político e a difusão de fake news
(notícias falsas).

A grande relevância do tema para a atualidade está no


desdobramento de resultados eleitorais sobre diversos aspectos de
nossas vidas e na mobilização engajada dos cidadãos em torno de
pautas que podem ser baseadas em informações falsas. As
consequências de tais fenômenos para a vida coletiva são
imensuráveis, pois afetam a todos em nível político, econômico,
social e cultural.

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A metodologia usada foi a análise de declarações e notícias
publicadas na mídia brasileira e de textos de livros de autores
considerados referenciais para a Psicanálise.

Abordamos a questão da intolerância, do emocionalismo e da


difusão de notícias falsas, sob a ótica dos conceitos do Complexo de
Édipo, das ligações dos indivíduos com religiões e líderes em geral,
da formação da horda primordial e do inconsciente coletivo.

A autora, estudante de Psicanálise, atua como jornalista profissional


há diversos anos, o que explica seu interesse pelo tema do
comportamento das massas reportado nos meios de comunicação à
luz da Psicanálise.

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1. O irracionalismo é um fenômeno contemporâneo?
Em 2017, foi publicado o livro do jornalista ítalo-britânico Matthew
D’Ancona intitulado “Pós-verdade, a nova guerra contra os fatos em
tempos de fake news”. Naquele ano, o empresário Donald Trump
acabava de assumir a presidência dos Estados Unidos sob fortes
críticas da imprensa por difusão de notícias falsas e ataques a
jornalistas no exercício da profissão.

Frases típicas “trumpistas”, como “Está congelando e nevando em


NY; precisamos de aquecimento global”, reforçadas por outras
sentenças nos anos seguintes, como “O desinfetante elimina (o novo
coronavírus) em apenas um minuto”, chocaram parte da opinião
pública norte-americana e de outros países, por conterem um misto
de intolerância e informações comprovadamente falsas, arrastando
seguidores por meio de um emocionalismo sem espaço para
ponderações racionais. Em 2023, testemunhamos o argentino Javier
Milei ser eleito presidente com frases semelhantes.

“Entramos em uma nova fase de combate político e intelectual, em


que ortodoxias e instituições democráticas estão sendo abaladas por
suas bases por uma onda de populismo ameaçador”, destacava,
atônito diante dos fatos, D’Ancona, em sua obra.

Em agosto de 2015, dois apoiadores de Donald Trump atacaram


com violência um morador de rua hispânico, afirmando terem se
inspirado na opinião do político e empresário sobre os ilegais. Trump
condenou o episódio, mas reconheceu sua influência no caso.

“Eu diria que as pessoas que me seguem são muito apaixonadas.


Eles são passionais", disse.

A passionalidade identificada por Trump constitui um comportamento


característico das massas de acordo com autores clássicos da
Psicanálise e, antes deles, por Gustave Le Bon, o que explica a
tendência à irracionalidade.

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No entanto, enquanto Trump surfava no ímpeto popular sem controle
e na “paixão” de seus seguidores, o autor de A era da pós-verdade,
D’Ancona, parecia ignorar o aspecto psicológico dos seres humanos,
ao dizer que, “enquanto 1968 será lembrado pelo colapso do
totalitarismo, 2016 foi o ano que lançou a era da pós-verdade de
forma definitiva”. Para ele, no ano em que escreveu seu livro, surgia
um período histórico marcado por algo novo: o emocionalismo
político.

D’Ancona prossegue com as seguintes frases:

“Entramos em uma nova fase de combate político e intelectual, em


que ortodoxias e instituições democráticas estão sendo abaladas por
suas bases por uma onda de populismo ameaçador. A racionalidade
está ameaçada pela emoção, a diversidade pelo nativismo, a
liberdade por um movimento rumo à autocracia. No cerne dessa
tendência global está o desmoronamento da verdade”.

Ainda no final do século XIX, o francês Gustave Le Bon já observava


que “a massa é impulsiva, instável e irritável”, enquanto Wilheim
Reich cunhava o termo “peste emocional” para falar do irracionalismo
que predomina nas multidões mundiais que leva ao poder líderes
que lhe exigem sacrifícios.

Em Psicologia de massas do fascismo (1933), Reich já concluía que


os ditadores não se baseiam em processos econômicos, e “sim em
atitudes irracionais das massas” e que as “massas humanas, após
milênios de repressão se tornaram apáticas, biopáticas e
submissas”.

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2. Fake news: a massa hipnotizada não busca a verdade nas
notícias
Cinco anos após a publicação do livro de D’Ancona a respeito da
pós-verdade, em 2021, uma multidão seguidora de Donald Trump,
inconformada com sua derrota nas eleições presidenciais, irrompeu
no Capitólio, sede do congresso dos EUA, causando depredação e
deixando cinco mortos. Exatamente dois anos depois, o mesmo
aconteceria em Brasília, na invasão ao Congresso Nacional e ao
Palácio do Planalto, destruindo relíquias e assustando o mundo.

No final do século XX, Gustav Le Bon concluía que quaisquer que


sejam as ideias sugeridas às multidões, “só podem se tornar
dominantes na condição de adotarem uma forma muito simples e
estarem representadas em seu espírito sob o aspecto de imagens”,
Tais imagens se sucederiam sem nenhum vínculo lógico de analogia
como “lentes de uma lanterna mágica que o operador retira da caixa
onde estavam superpostas”, descrevendo algo que nos lembra as
redes sociais de hoje.

Décadas antes, Sigmund Freud chegou a comparar o emocionalismo


das multidões com a hipnose, encontrando paralelismos inegáveis
entre ambos os fenômenos, como os “traços de debilitamento da
capacidade intelectual, da afetividade desenfreada, da incapacidade
de moderação e de adiamento, e da manifestação de emoções”,
além da tendência a descarregá-los completamente na ação.

Essa verdadeira regressão da atividade psíquica observada na raiz


da formação de uma massa existiria desde os tempos das hordas
primitivas, pontuou Freud. Tal natureza psíquica da massa, que se
vê “impossibilitada” de raciocinar explicaria a crença dos eleitores em
Trump, apesar de 69% das suas polêmicas afirmações serem
profundamente falsas, de acordo com uma pesquisa realizada pelo
site PolitiFact.

Em Psicologia das massas e análise do eu, Freud não deixa dúvidas


a respeito da relação entre a verdade e as massas hipnotizadas por
seus líderes ou por suas ideias, o que nos leva a concluir que a era

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do “desmoronamento da verdade” preconizada por D’Ancona e
outros comentaristas atuais sempre existiu nos enredos da mente
humana: é quando a instância do ID se sobrepõe ao ego e ao
superego.

“E por fim: as massas nunca conheceram a sede da verdade. Elas


exigem ilusões, às quais não podem renunciar. Nelas, o irreal
sempre tem prevalência sobre o real; aquele as influencia com quase
tanta força quanto este. Elas têm uma tendência evidente a não fazer
qualquer distinção entre ambos”, ressalta Freud.

Décadas antes da conclusão de Freud, Le Bom afirmava que as


multidões, além de não se interessarem pela verdade, fogem dela.

“Diante das evidências que lhes desagradam, desviam-se, preferindo


deificar o erro e este as seduzir. Quem sabe iludi-las facilmente
torna-se seu mestre; quem tenta desiludi-las é sempre sua vítima”,
concluiu, com exemplos gritantes na classe política.

A constatação freudiana nos sugere causas psíquicas para a difusão


das fake news em larga escala. Em uma obra escrita nos seus
últimos anos de atividade, já impossibilitado de falar em público por
conta do tumor na boca, Freud advertiu que a tese segundo a qual
as ideologias constituem frutos das condições sociais e econômicas
da população constitui parte da verdade — mas não toda. No texto
das Novas Conferências Introdutórias sobre Psicanálise (1932-1933),
as quais ele nunca proferiu, afirma que a “humanidade nunca vive
inteiramente no presente”, evidenciando um considerável delay entre
as ideias correspondentes aos tempos vividos por uma pessoa e
ideais do seu superego, o que nos fornece pistas sobre as crenças
atuais em teses antiquadas e absurdas para nossos tempos, como
superioridade racial ou o chamado terraplanismo.

“O passado, a tradição da raça e do povo, vive nas ideologias do


superego e só lentamente cede às influências do presente, no
sentido de mudanças novas; e, enquanto opera através do superego,
desempenha um poderoso papel na vida do homem,
independentemente de condições econômicas”, afirmou.

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3. A intolerância e o narcisismo das pequenas diferenças
Donald Trump foi continuamente acusado de manter uma conduta de
intolerância por analistas políticos, manifestada sobretudo contra
estrangeiros, com discursos como “Temos traficantes de drogas
vindos de outros países, temos estupradores, temos assassinos.
Você acha que eles vão nos enviar suas melhores pessoas? A
resposta é não”.

Há mais de um século, no entanto, a intolerância foi analisada por


Sigmund Freud. Ele afirmou que episódios violentos de intolerância
não eram mais tão frequentes como nos séculos anteriores devido
ao declínio das religiões, que forneceram à história uma série de
exemplos de falta de amor e agressões cometidas sobretudo fora do
círculo de seus membros. No entanto, ele deixou claro que uma
ligação de massas de outro tipo poderia perfeitamente tomar o lugar
da fé religiosa como “liga” principal das massas e praticar a
intolerância contra pessoas estranhas ao seu mundo de ideias com a
mesma intensidade. Esse cenário seria visto de forma cruel na
década seguinte.

“Se hoje essa intolerância não se manifesta mais de maneira tão


violenta e cruel quanto em séculos anteriores, dificilmente se poderá
deduzir disso uma atenuação nos costumes dos seres humanos. A
causa de ser buscada no inegável enfraquecimento dos sentimentos
religiosos e das ligações libidinosas que deles dependem. Se outra
ligação das massas tomar o lugar da religiosa, como o socialismo
parece agora estar conseguindo, resultará, dirigida aos de fora, na
mesma intolerância da época das lutas religiosas”, escreveu Freud.

Publicada no livro Psicologia das massas e análise do eu em um


período de convulsões econômicas e políticas, a análise freudiana
não deixa dúvidas de que a intolerância não havia abandonado a
humanidade por causa do Iluminismo ou da propagação do
Racionalismo na sociedade europeia, e do esvaziamento das missas
católicas nos países europeus.

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No cenário brasileiro, onde a cultura ainda é fortemente marcada por
práticas religiosas, episódios da clássica intolerância ligadas a fiéis
não são fenômenos raros. Temos testemunhado a multiplicação de
casos de destruição de templos e agressões a praticantes
principalmente das religiões de matriz africana — em aumento no
país nos últimos anos, de acordo com os dados da polícia civil dos
estados.

“Por isso, uma religião, mesmo que se chame religião do amor, tem
de ser dura em relação àqueles que não pertencem a ela.
Intolerância e crueldade com aqueles que não são membros”,
escreveu o pai da psicanálise 100 anos antes de tais episódios, em
um raciocínio que nos ajuda a compreender a natureza de tais
fenômenos de massas.

Nas redes sociais, mídia usada pelas grandes massas do planeta, a


intolerância ganha impulso, estimulada pelo anonimato — uma
característica típica das massas, conforme identificado por Reich e
Le Bonn. No universo das mídias sociais, o Dossiê da Intolerância
(2016) apontou que 88% das menções de naturezas odiosas foram
feitas no âmbito da misoginia.

Ao nos debruçarmos sobre os fundamentos da psicanálise, podemos


notar que a intolerância, a irritabilidade e ausência de lógica
aparecem com frequência no comportamento das massas, desde
tempos remotos, conforme autores, além de Sigmund Freud.
Teóricos ainda anteriores ao pai da psicanálise, sobretudo as
observações do médico francês e polimata Gustav Le Bon — cujo
livro Psicologia das Multidões, publicado em 1895, serviu de
referência para Freud elaborar seu livro mais importante sobre
massas Psicologia das massas e análise do eu (1921).

Freud também se referia ao “narcisismo das pequenas diferenças”


ao classificar a obsessão dos que se diferenciam de pessoas ou
características que resultam mais familiar e parecido, um fenômeno
notado principalmente em comunidades muito próximas (e ao
mesmo tempo distantes), como portugueses e espanhóis, italianos
do norte e do sul, turcos e gregos. Esse narcisismo de tipo cultural

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pode assumir inclusive contornos explosivos no interior das grandes
massas modernas. Na era da internet, é facilmente manifestada com
poucos cliques e movimentos de polegares, entre curtidas, frases
curtas e hashtags.

4. A “peste emocional” que embota o raciocínio das massas


Em concordância com o pensamento freudiano a dinâmica psíquica
das massas, Wilhelm Reich explicou como o fascismo, um regime
repressor, foi abraçado pelas massas operárias. Ele concluiu que “a
estrutura psíquica e a situação social raramente coincidem” e que
“não há uma simples mecânica entre a situação social e a estrutura
do caráter”. Ao pesarmos o fato de que o indivíduo adulto tem boa
parte do seu caráter formado nos primeiros anos de vida, quando
ocorrem as fases cruciais de desenvolvimento da libido — oral, anal,
fálica, latência e genital — entendemos por que as condições
socioeconômicas do momento não exercem efeitos imediatos em
nossa estrutura psíquica.

Ainda no final do século XIX, o francês Le Bon notou que as ideias


filosóficas que culminaram na Revolução Francesa levaram muito
tempo para serem implantadas na alma popular e que as multidões
estão sempre décadas “atrás” de filósofos e idealizadores.

O emocionalismo que parece embotar o funcionamento do raciocínio


das massas e que surpreende os analistas dos nossos tempos como
um fenômeno decorrente de mudanças atuais ou criado pelos
avanços tecnológicos não representava nenhuma novidade para os
psicanalistas das primeiras décadas do século XX. A “peste
emocional”, conforme relatada por Reich, é característica dos
estados nos quais predomina parte do ID, que é atemporal. No ID,
vivem impulsos plenos de desejos virtualmente imortais e que se
comportam como se tivessem surgido agora.

“Naturalmente, o ID não conhece nenhum julgamento de valores;


não conhece o bem nem o mal, nem moralidade”, definiu Freud.

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O psicanalista, psiquiatra e biólogo Wilhelm Reich contribuiu com o
debate sobre o conceito de verdade vivenciada pela mente humana
ao analisar a questão sob a perspectiva das relações de poder. De
acordo com ele, a verdade é inconciliável com o poder, sobretudo
quando existe a sujeição nas relações.

“O poder e a verdade são inconciliáveis”, conceituou Reich.

Para o psicanalista alemão, quanto mais as massas humanas


aderirem à verdade, menor será o abuso de poder; em contrapartida,
se as massas humanas acalentarem ilusões irracionais, tanto mais
amplo e brutal será o exercício do poder por parte de um punhado de
homens.

No sentido cronológico, Reich relaciona a chamada peste emocional


ao patriarcado, conectando o emocionalismo das massas à sujeição
patriarcal. Para ele, toda a “reação política pode ser explicada a
partir da peste emocional que se fixou na estrutura das massas
humanas, desde o aparecimento do patriarcado”. Nesse sentido,
milênios de repressão tornaram as massas apáticas, acríticas,
biopáticas e submissas, suscetíveis ao que Reich classifica como
peste do irracionalismo, com sua ignorância e submissão típicas.

Ainda com Hitler no poder, o psicanalista Reich notava que os


ditadores não se baseiam em processos econômicos, mas em
atitudes irracionais das massas, enquanto as organizações
partidárias de qualquer linha se orientam economicamente para tecer
suas estratégias. A mesma observação foi feita por Le Bon décadas
antes a respeito de líderes políticos, e não somente ditadores. Por
essa linha, podemos entender a origem da convicção de Donald
Trump a respeito de seus eleitores ao afirmar: “As pessoas que me
seguem são muito apaixonadas; são passionais".

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5. A busca incessante pelo “pai” nos movimentos massivos
Para Freud, os líderes políticos, seguido fanaticamente pelas
massas, encarnam a figura do pai para os indivíduos que sentem
psiquicamente desamparados e oferecem sua própria obediência.
Freud enxergava em tal necessidade as marcas digitais da chamada
horda primordial, onde surgiu a figura do pai primitivo, sobre o qual
ele se debruçou em obras como Totem e tabu e O homem Moisés e
a religião monoteísta. A horda primordial poderia ressurgir a partir de
qualquer multidão contemporânea.

Em O futuro de uma ilusão, Freud comenta que a transferência da


imagem do pai primitivo nos líderes serviu para a formação de um
modelo de Deus, situando a base da religião no Complexo de Édipo:

“A religião seria a neurose obsessiva universal da humanidade e, tal


como a da criança, teria sua origem no Complexo de Édipo, na
relação com o pai”, analisou.

A liga entre a multidão e seus líderes seria, portanto, originada na


libido. O líder da massa continua sendo o temido pai primordial. A
massa deseja ser dominada por uma força irrestrita, anseia pela
autoridade num grau extremo, com sede de submissão. O pai
primordial é o ideal da massa, que domina o eu em lugar do ideal do
eu, concluiu Freud.

Jung chegou a identificar em Hitler e Mussolini a transferência de


arquétipos de origem religiosa por parte de seus seguidores.

“Não podemos chamar o fascismo ou o hitlerismo de ideias; são


arquétipos. O fascismo é a forma latina de religião e seu caráter
religioso explica por que a coisa tem um tão tremendo poder de
atração”, comentou em suas conferências no livro Os Fundamentos
da Psicologia Analítica.

Jung prossegue, enfatizando que o Duce (apelido de Mussolini) é


uma “figura religiosa” e que “Hitler tem um caráter religioso”.

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6. Emocionalismo: as multidões dominadas pelo
inconsciente coletivo
Os fundamentos da Psicologia Analítica, formulados por Carl Gustav
Jung, nos permitem analisar o comportamento das massas sob a
perspectiva do inconsciente coletivo — um dos quatro níveis da
psique do indivíduo, segundo o psicoterapeuta suíço e colaborador
de Freud em suas primeiras décadas de atuação.

Segundo Jung, o nível inconsciente da mente humana divide-se em


dois aspectos: o pessoal e o coletivo, também chamado de psique
objetiva, mas que ficou mais conhecido como inconsciente coletivo.
De acordo com essa teoria, o inconsciente pessoal é exclusividade
da psique de cada pessoa. Já o inconsciente coletivo apresenta uma
estrutura universal, no qual residem os famosos arquétipos comuns à
humanidade. Enquanto o inconsciente pessoal é habitado pelo ego,
pela persona, pela sombra pelo animus ou anima, a camada do ID
coletivo abriga arquétipos e imagens arquetípicas, que influenciariam
o conteúdo mental de cada um. De qualquer forma, cada pessoa
forma a sua própria imagem arquetípica, embora influenciada pelos
princípios de um arquétipo universal.

Em suas conferências, Jung também abordou o comportamento


emotivo das massas, que lhes embota o raciocínio. Em 1935, em
uma apresentação na Clínica Tavistock, em Londres, Jung falou do
assunto, mas diferenciou dois fenômenos da mente humana, que
podem ser confundidos: sentimento e emoção. O sentimento se
diferencia das emoções devido à seu conteúdo mais racional de
discriminar valores, esclareceu. A emoção chega à pele e se
caracteriza por uma condição fisiológica alterada, enquanto o
sentimento não costuma apresentar manifestações físicas nem
fisiológicas tangíveis, afirmou na ocasião.

“Quando temos sentimento, temos controle”, conceituou.

De tal esclarecimento, podemos deduzir como os fenômenos das


massas atingem o nível emocional, no qual não temos controle nem

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consciência. Além disso, o emocional prevê contágio, conforme havia
sido sublinhado por Le Bon.

“As emoções são mais contagiantes, são verdadeiras


desencadeadoras de epidemia mental. A multidão que, por exemplo,
esteja presa de uma condição emocional sensibiliza a todos os que
nela se encontram, não havendo possibilidade de escapar. Mas os
sentimentos dos outros, em absoluto, não nos concernem, e
podemos observar que o sentimento diferenciado tem efeito calmo
sobre nós, o que não se dá com a pessoa dominada por uma
emoção; ela nos atinge porque o fogo continuamente dela se irradia.
A chama da emoção está em seu rosto. Através de uma espécie de
sincronização, o sistema nervoso simpático se altera, fazendo-nos
apresentar provavelmente os mesmos sinais dentro de algum tempo,
o que não se dá com os sentimentos”, explicou Jung, acrescentando
que o impacto emocional exercia um “efeito psicogalvânico” nos
corpos, em uma verdadeira redução da resistência elétrica da pele,
com aumento da corrente.

Na ocasião, Jung alertou que, via de regra, quando o inconsciente


coletivo se torna verdadeiramente constelado em grandes grupos
sociais, a consequência será uma quebra pública, “uma epidemia
mental que pode conduzir a revoluções, guerra, ou coisa
semelhante”.

“Tais movimentos são tremendamente contagiosos, eu diria


inexoravelmente contagiosos, pois quando o inconsciente coletivo é
ativado, ninguém mais é a mesma pessoa. Você não está apenas no
movimento, mas é o próprio movimento”.

Jung prossegue sua exposição diante dos ingleses, naquele ano de


1935, quando a Europa assistia à ascensão dos regimes ditatoriais
do nazismo e do fascismo, proporcionando cenas como um
laboratório vivo das emoções contagiantes das massas, mesmo que
fossem letradas, instruídas e vivessem em um ambiente no qual as
religiões já não exerciam influência na vida cotidiana.

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“Quem viveu na Alemanha ou lá esteve por algum tempo tentava
defender-se, mas era em vão. Isto entra na pele. Somos humanos, e
no mundo, onde quer que estejamos, é possível nos defenderemos
apenas através da restrição de ordem consciente. Quando se está
em uma multidão excitada por razões políticas, não se consegue
evitar participar dessa exaltação, pois as emoções têm esse caráter
de sugestão.”

O contágio emocional pode representar uma ameaça até mesmo


para o próprio psicoanalista, alertou ele, que deve tomar cuidado
para não ser contagiado pelas emoções de seus pacientes, já que
“as emoções dos pacientes são sempre ligeiramente contagiosas”.
Quando a transferência dos pacientes toca os arquétipos, uma mina
é tocada, podendo explodir, exatamente como a vemos explodir
coletivamente, observou.

“Teriam os senhores acreditado que uma nação inteira de pessoas


inteligentes e cultas pudesse ser dominada pela força fascinadora de
um arquétipo? Só pude compreender após conhecer o inconsciente
coletivo”.

Explicações racionais são inúteis para decifrar o comportamento da


massa quando está dominada pelo inconsciente coletivo, esclareceu
Jung, pois os acontecimentos fogem à capacidade de raciocinar
quando a mente é tomada por um arquétipo comum a todos, com
aspectos históricos.

“O cérebro acaba não valendo nada e o sistema simpático é tomado.


Não podemos ser infantis tendo ideais razoáveis e intelectuais,
dizendo que isto jamais deveria acontecer”, concluiu Jung,
descartando motivações que apelem para o raciocínio a fim de
explicar tais reações das massas humanas.

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CONCLUSÃO

A Psicanálise nos ajuda a compreender as causas dos fenômenos


de massa constantemente classificados como “novos” ou
desafiadores por parecerem inusitados aos olhos das gerações
atuais. A prova da realidade e da razão recua diante das massas
guiadas por líderes sedutores e pela força de seus próprios desejos
inconscientes, permitindo a profusão em larga escala das notícias
falsas, a mobilização histérica que leva ao vandalismo e à ascensão
de políticos de aura “mística”.

Os registros milenares da difusão de notícias falsas e mistificações,


com os meios de comunicação da época — entre discursos nas
praças medievais, pergaminhos e cartas enviadas em rotas
terrestres ou marítimas, manifestos pregados em portas de igrejas,
comunicados via rádio ou telegramas — até chegarem às postagens
em redes sociais ou mensagens enviadas em grupos de WhatsApp
— e sobretudo a multidão de crédulos, não deixam dúvidas a
respeito da reincidência da formação e da crença nas fake news.

A Psicanálise se revela uma grande aliada para estudiosos


investigarem os motivos pelos quais multidões letradas e instruídas
depositam sua fé e energia em tais conteúdos. Episódios não faltam
a respeito de boatos que prejudicaram inocentes de maneira violenta
e cruel, como prática de bruxaria, envenenamento de poços,
bruxarias e a existência de raças inferiores. A história testemunha o
quanto tal crença independe de alto ou baixo nível de letramento ou
educação.

A presente monografia não tem a pretensão de recriminar todos os


movimentos de massa nem de rotulá—los, todos, como fenômenos
fanáticos. Tampouco pretende condenar as mobilizações das
multidões em torno de lutas políticas, muitas das quais são legítimas
diante da opressão dos detentores do poder. Afinal, conforme

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lembrado por Le Bon, a multidão não é capaz apenas de atos de
violência, mas também pode suportar grandes sacrifícios em nome
de algo elevado em prol da sociedade. “Somente as coletividades
são capazes de grandes sacrifícios e grande abnegação” e “até
mesmo os grandes canalhas, pelo simples fato de estarem reunidos
em multidão, às vezes adquirem princípios de moralidade muito
estritos”, pontuou.

Concluímos, a partir deste estudo, que o indivíduo que prioriza o seu


autoconhecimento provavelmente será mais capacitado para
reconhecer movimentos de massa que correspondem
verdadeiramente a seus anseios de vida. A prática psicanalítica
revela-se extremamente útil como ferramenta de tal processo de
autoconhecimento a fim de evitar aderências cegas e neuróticas a
teses ou movimentos que se oferecem como salvações para uma
espécie de desamparo infantil, conforme pontuado por Freud.

Nesse sentido, a psicoterapia revela-se ferramenta valiosa a fim de


seguir a jornada chamada por Jung de “individuação”. O processo de
individuação exclui qualquer imitação, do tipo papagaio demoníaco,
conforme relatado em um sonho analisado na obra O homem e seus
símbolos, no qual a bela ave é interpretada como o símbolo de um
“espírito de imitação que nos deixa psicologicamente petrificados”.

Nessa aventura ética individual, na ótica do pensamento junguiano, o


ego aprende a seguir sua própria natureza, evitando dissociações.

“De fato, cada vez que o ser humano se volta honestamente para o
seu mundo interior e tenta conhecer-se – não remoendo
pensamentos e sentimentos subjetivos, mas seguindo as expressões
da sua própria natureza, como os sonhos e as fantasias genuínas –
mais cedo ou mais tarde o self emerge. O ego vai encontrar, assim,
uma força interior onde estão contidas todas as possibilidades de
renovação”, declarou Jung.

Por sua vez, Sigmund Freud identificava nesse processo de


amadurecimento a superação do Complexo de Édipo, em sua
análise da formação da figura de um pai mistificado que proteja do

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desamparo o humano adulto. “O homem não pode permanecer
criança para sempre; ele precisa sair finalmente para a vida hostil”,
resumiu Freud em O futuro de uma ilusão.

A concepção freudiana está longe de ignorar as fatalidades e


tragédias da vida; pelo contrário: “E quanto às grandes
inevitabilidades do destino, contra as quais não há remédio,
aprenderá a suportá-las com resignação”. Para as demais
circunstâncias, “já é alguma coisa quando alguém sabe que depende
das suas próprias forças”, enfatizava o pai da Psicanálise.

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Referências bibliográficas
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